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ANTROPOLOGIA

DA RELIGIÃO
Antropologia urbana
Ráisa Lammel Canfield

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

>> Problematizar a questão da antropologia urbana nos âmbitos individual e


social com base no conceito de comportamentos desviantes.
>> Descrever os possíveis diálogos entre a antropologia urbana e as demais
ciências humanas.
>> Identificar as novas identidades religiosas e as novas práticas ritualísticas
no contexto urbano.

Introdução
Neste capítulo, você vai aprender sobre o espaço urbano a partir de uma perspectiva
das ciências sociais, mais especificamente, da antropologia, e sua inter-relação com
os demais campos das ciências sociais. A antropologia urbana é um subcampo da an-
tropologia relativamente recente nas ciências sociais. Consolidou-se como disciplina
entre o final da década de 1960 e o início de 1970. Sua contribuição perpassa estudos
dos fenômenos urbanos, principalmente fenômenos manifestados nas grandes
metrópoles, onde há maiores complexidades e diferenciações sociais e culturais.
Assim, neste capítulo, você vai estudar como surgiu a antropologia urbana,
quais são seus métodos e suas técnicas e quais são as suas especificidades
dentro da grande área que é a antropologia. Você também vai compreender como
antropólogos urbanos compreendem o comportamento desviante no meio social,
bem como o que é o comportamento desviante. Por fim, você vai aprender sobre
as formas de manifestações religiosas no meio urbano.
2 Antropologia urbana

Introdução à antropologia urbana


A antropologia, de forma geral, é um dos campos de conhecimento das ci-
ências sociais. Ela tem como objeto principal de análise os estudos cultu-
rais — dentro desse amplo campo de possibilidades que existe dentro das
expressões culturais — e as formas como os seres humanos são constituídos
socialmente e expressam suas identidades a partir do que foi internalizado
culturalmente. Ela surgiu no contexto histórico de expansão das grandes
navegações, quando diferentes civilizações passaram a interagir ao entrar
em contato umas com as outras.
As primeiras explicações para as diferenças culturais foram elaboradas com
base nos determinismos biológico e/ou geográfico. O determinismo geográfico
se mobilizava para explicar diferenciações culturais tendo como base o território
de moradia dos grupos sociais considerados diferentes. Já o determinismo bioló-
gico buscava explicar tais diferenciações com base nos aspectos biológicos dos
sujeitos. As explicações deterministas justificavam as diferenças, por exemplo,
a partir do que era considerado como capacidades inatas aos seres humanos,
dentro das diferenciações criadas a partir do critério racial. Nesse sentido, esse
modelo explicativo reforçava a dominação sobre certas populações a partir de
um viés carregado de preconceitos e sem sustentação científica (LARAIA, 2001).

Um exemplo de argumento determinista pode ser demonstrado a


partir da justificativa dada para a escravização de povos africanos,
quando diziam que se tratava de uma “raça submissa”. Outro exemplo pode ser
identificado no fragmento contido no Tratado da Terra do Brasil, escrito por
Pero de Magalhães Gândavo (2015), que diz que os índios se constituem como
“povo sem fé, lei e rei”, além de preguiçoso. Tais afirmações consistiam em
justificativas para desprezá-los, inferiorizá-los e dominá-los.

Os estudos antropológicos surgiram para refutar esses determinismos. Ao


estudar de forma minuciosa cada cultura, os antropólogos puderam constatar
e afirmar que não existe povo mais ou menos evoluído, assim como não existe
nenhum que possa ser considerado como melhor ou pior. O que existem são
diferenças culturais, de significação para as ações e concepções de mundo,
não sendo possível, portanto, justificar qualquer diferença a partir de aspectos
biológicos ou geográficos.
Foi a partir dos primeiros estudos antropológicos que aprendemos mais
profundamente sobre hábitos e costumes dos povos primitivos. Ou seja, a
partir de estudos antropológicos, podemos aprender como determinado
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grupo social é formado e desenvolve sua cultura e como os costumes e valores


constitutivos dessa cultura são produzidos, reproduzidos e internalizados por
seus participantes. É um trabalho de imersão que busca compreender como
cada ação e concepção de mundo é significada pelos indivíduos em análise.
Somos, portanto, seres produtores, mas também produto da cultura, e
o principal fator disso é a linguagem, o que também nos faz diferenciar de
outras espécies animais. Por exemplo, a arte rupestre foi uma das primeiras
formas de representação artística, mas também de expressão da consciência
simbólica humana. Foi a partir dela que a linguagem humana se desenvolveu e
pôde ser expressa e significada de diferentes formas. É com base em narrativas
emitidas por interlocutores que, a partir de estudos antropológicos, memórias
são reconstruídas, por meio de processos de construção e expressão de
identidades, sejam elas subjetivas, artísticas, religiosas, políticas etc., assim
como de qualquer especificidade cultural de qualquer grupo populacional,
comunidade, tribo etc. (LARAIA, 2001).

Para saber mais sobre antropologia, acesse o canal Leituras Obri-


gaHISTÓRIA no YouTube e assista aos vídeos “O que é ANTROPOLOGIA?
- Antropológica” e “O que é ETNOGRAFIA e como fazer? - Antropológica”. No
primeiro vídeo, a antropóloga Mariane Pisani explica o que é a antropologia,
de forma mais abrangente do que é apresentado neste capítulo e, no segundo,
o que é a etnografia, método próprio da antropologia.

Como campo de conhecimento, a antropologia parte de um método de


investigação próprio, a etnografia. Este é um método que tem por base a
chamada observação participante, em que os pesquisadores se inserem
no campo a ser pesquisado e passam a acompanhar a rotina. O objetivo é
coletar dados que auxiliem na compreensão das diferentes formas com que
os sujeitos dão significado às suas ações e compreendem os espaços em que
estão inseridos, sem deixar de contextualizá-los. De forma geral, a etnografia
é um método que auxilia no processo de compreensão das representações e
concepções de mundo de diferentes grupos sociais. Geertz (1978, p. 15) define
a etnografia da seguinte forma:

[…] segundo a opinião dos livros-textos, praticar a etnografia é estabelecer rela-


ções, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear
campos, manter um diário de campo e assim por diante. Mas não são estas coisas,
as técnicas e os processos determinados, que definem o empreendimento. O que
define é um tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado
para uma descrição densa.
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É por meio dessa descrição densa e minuciosa, como diz Geertz (1978), que
passamos a compreender aspectos que são específicos de cada cultura, de cada
grupo social. Podemos entender também como, por exemplo, uma determinada
concepção, comportamento ou categoria pode ser reproduzida e compreendida
de forma diferente, de acordo com o meio em que os sujeitos estão inseridos.

Para exemplificar de forma didática e simples essa ideia, há um


relato clássico na antropologia que é o famoso “caso das piscadelas”,
um exemplo de como uma simples piscadela pode ter diferentes significados.
Direcionar uma piscadela a alguém pode significar um interesse (paquera) ou
pode ser um sinal de alerta, de consentimento ou mesmo um “tique nervoso”,
e é nesses pequenos significados que os antropólogos se detêm. O estudo
minucioso, de observação em detalhes, permite explicar os rituais, os costumes
e os significados das ações, das categorias sociais, das normas, enfim, das
concepções de mundo e das estruturas de significação em geral.

A antropologia é, portanto, um campo geral de conhecimento, e, dentro


dele, há diferentes subcampos, como antropologia da alimentação, antropo-
logia da educação, antropologia brasileira, antropologia econômica, antro-
pologia do direito, dentre outras que podem, inclusive, se sobrepor. Daremos
ênfase neste capítulo à antropologia urbana.
A antropologia urbana se consolidou como disciplina no final da década
de 1960 e, de certa forma, rompeu com os estudos clássicos voltados às
sociedades tradicionais (camponesas e indígenas, especialmente). As-
sim, voltou-se aos estudos em espaços urbanos, com foco nas chamadas
sociedades complexas, em contraponto às sociedades tradicionais ou
primitivas. O contraponto é no sentido de que, nos espaços urbanos, a
configuração social é diferente e com maior complexidade do que nas
comunidades tradicionais.
Nos espaços urbanos, há uma diversidade de grupos sociais, com es-
tilos de vida diversificados e normas diversas; os indivíduos podem se
entrelaçar, de forma sobreposta ou não, construindo e reconstruindo
suas identidades e concepções de mundo. Por isso, também não podemos
afirmar a existência de uma cultura comum a todos. Sendo assim, cabe ao
antropólogo social compreender as lógicas urbanas, as especificidades
dos territórios, a forma como os indivíduos vivenciam esses espaços e
dão sentidos a eles. No decorrer deste capítulo, essas especificidades
ficarão melhor especificadas.
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Comportamentos desviantes e a relação indivíduo


versus sociedade
No campo das ciências sociais, a discussão sobre a relação indivíduo versus
sociedade e/ou cultura é recorrente entre os teóricos clássicos, como Karl
Marx, Émile Durkheim e Max Weber, e também entre os contemporâneos, como
Norbert Elias e Pierre Bourdieu. De forma geral e resumida, as perspectivas
variam conforme descrito a seguir (QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA, 2002).

1. Foco na influência da sociedade sobre o indivíduo, ou seja, na coerção


social a partir das normas e instituições sobre os indivíduos — nesse
caso, as formas de agir, pensar e sentir são propriedades que existem
fora das consciências individuais, pois dependem das relações externas
a eles para serem produzidas (Émile Durkheim).
2. Foco nas relações e ações sociais, com a identificação dos sentidos
dados às ações e de como as ações coletivas impactam as estruturas
coletivas, e não exclusivamente as estruturas no comportamento
individual (Max Weber).
3. Foco de análise de acordo com o contexto das condições materiais
e situações sociais, pois são os acessos materiais dos sujeitos que
determinam suas condições e suas subjetividades (Karl Marx).

O modelo analítico varia conforme o autor e a intensidade com que os aspec-


tos subjetivos e/ou sociais impactam a construção das identidades e produções
culturais. Mas, de forma geral, podemos compreender que a relação entre
indivíduo e sociedade é construída como uma via de mão dupla: estruturas e
instituições sociais influenciam e são também influenciadas pelas ações dos
sujeitos, estando todos em transformações contínuas. Com isso, percebemos,
de início, que esse é um tema complexo dentro das ciências sociais.
A seguir, vamos direcionar o foco para a forma como Velho (2013) constrói
a noção de comportamento desviante a partir de diferentes concepções
teóricas (descritas a seguir) que se apropriam da relação entre indivíduo e
sociedade para indicar caminhos possíveis dentro da antropologia urbana.
Historicamente, os comportamentos desviantes eram explicados por pers-
pectivas atualmente superadas dentro do campo das ciências sociais, como
o positivismo e o determinismo biológico. Por um lado, havia explicações
que indicavam que os desvios eram decorrentes de uma sociedade disfun-
cional, por outro, que eram características inatas aos indivíduos desviantes,
caracterizando-os como criminosos natos. Tais concepções remontam ao
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século XVIII, quando surgiu o chamado cientificismo, corrente de pensamento


decorrente de diversas áreas de saberes que estavam em efervescência na
Europa Ocidental. Entre esses saberes, destacavam-se a frenologia, a fisiono-
mia, o darwinismo, o positivismo, a craniologia, dentre outros (BANDERA, 2013).
Merton (1949) é um autor que segue a mesma linha de Durkheim ao estudar
a relação do comportamento desviante, pois se apropria de uma explicação
funcionalista, que indica que comportamentos desviantes são decorrentes do
mau funcionamento das instituições sociais e da consequente fragilidade dos
laços sociais. De acordo com esse autor, há pressões sociais que favorecem
o desvio de comportamento, quando, por exemplo, determinados padrões
sociais não podem ser seguidos ou quando socialmente também não são
oferecidos os meios para alcançar esses padrões. Quando isso acontece, é
gerada uma situação de anomia. Nesse momento, há o que Merton chama de
comportamento aberrante, o qual “pode ser considerado sociologicamente
como um sintoma de dissociação entre as aspirações culturalmente prescritas
e as vias socialmente estruturadas para realizar essas aspirações” (MERTON,
1949, p. 207). Ou seja, o conceito de anomia indica uma sociedade doente, e
os sintomas são os comportamentos desviantes.
A teoria da anomia supera a posição lombrosiana e positivista em relação
ao desvio, ao classificar a anormalidade como um fato social e presente no
convívio social humano desde sempre. A conduta desviante, portanto, tem a
função de permitir que a sociedade defina com maior clareza seus padrões
de ordem moral, ou seja, sua consciência coletiva, sedimentando os valores
da população. No entanto, para Velho (2013), essa perspectiva é ainda insufi-
ciente, pois remete a possíveis relações de causalidade com patologias para
explicações dos comportamentos desviantes. Ou seja, segundo o autor, a
partir do conceito de anomia, passa-se da ideia de uma patologia do indivíduo
para uma patologia do social.
Dentro dessa perspectiva, a anomia se refere à desorganização de normas
e valores, à falta de acordos e de respeito às normas, gerando a sensação de
insegurança e produzindo um ambiente social favorável ao aparecimento de
indivíduos “anômicos”.

O problema de desviantes é, no nível do senso comum, remetido a uma perspectiva


de patologia. Os órgãos de comunicação de massa encarregam-se de divulgar e
enfatizar esta perspectiva quer em termos estritamente psicologizantes, quer em
termos de uma visão que pretende ser “culturalista” ou “sociológica”. A formulação
deste tipo de orientação é feita a partir de trabalhos muitas vezes de orientação
acadêmica, que não são capazes de superar a camisa de força de preconceitos e
intolerância (VELHO, 2013, p. 36).
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Partindo disso, Velho (2013) se propõe a analisar o desvio a partir de


uma perspectiva que dê conta de explicar como determinados compor-
tamentos são classificados como desviantes, mas desde que de forma
relativizada. Isso é considerado no sentido de que não há uma verdade
absoluta quando se fala de fenômenos culturais, pois há valores que são
relativos e precisam ser analisados dentro dos contextos sociais especí-
ficos em que ocorrem.
O autor chama a atenção para o fato de que os sujeitos agem como des-
viantes em determinadas situações, mas também como cidadãos “normais”
em outras. Por isso, patologizar a questão é generalizar e condicionar os
sujeitos a algo maior do que eles, criando, assim, um marcador permanente
nas identidades. Para Velho (2013), por fim, a antropologia urbana deve ana-
lisar os comportamentos desviantes, buscando pontos de encontro entre as
tradições “psicológicas” e também as “socioculturais”.

Comportamento desviante é todo ato efetuado contra normas em


geral, o que pode variar conforme o contexto sócio-histórico. Por
isso, esse é também um fenômeno que pode ser analisado pela antropologia
urbana, pois pode ser compreendido como um aspecto cultural, se pensarmos
que um mesmo ato pode ser entendido ou não como desviante dependendo
de onde é praticado e em que período histórico é efetivado. Por exemplo, o
consumo de determinadas substâncias psicoativas, especialmente a maconha,
não é criminalizado em países como Holanda e Uruguai, mas no Brasil, sim. Desse
modo, o ato de consumir droga é considerado desviante no Brasil, mas não na
Holanda. Por isso, a categoria desviante está muito atrelada à ordem moral e
à consciência coletiva de cada sociedade em específico.

Diálogos entre ciências humanas


e antropologia urbana
Sinalizamos anteriormente que o campo de estudos culturais é amplo e he-
terogêneo. Agora, vamos enfatizar a importância dos estudos antropológicos
urbanos frente aos demais campos do conhecimento das ciências sociais,
como sociologia, economia, psicologia, história, entre outros. O objetivo é
tentar mostrar como a antropologia urbana pode introduzir um olhar mais
humano para as cidades, pois as experiências vividas e as sensibilidades
coletivas se tornam dados para os antropólogos sociais durante a construção
dos estudos urbanos.
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Dentro das ciências sociais, os estudos urbanos passaram a ganhar maior


notoriedade a partir da década de 1970 entre sociólogos e antropólogos da
Escola de Chicago. Esta, segundo Frúgoli Jr. (2005, p. 134), foi “a primeira [es-
cola] a tomar a cidade como laboratório privilegiado de análise da mudança
social”, buscando entender, inicialmente, aspectos da “desorganização social”
e abrindo espaço para uma série de investigações antropológicas.
Na mesma época, o campo de pesquisa da antropologia urbana estava
se consolidando no Rio de Janeiro e em São Paulo. As primeiras pesquisas
urbanas perpassavam relações com a violência, principalmente com pesquisas
realizadas nas periferias urbanas, e buscavam compreender os fatores sociais
e culturais por trás dos crimes e os distintos papéis sociais desenvolvidos na
atuação do mundo ilegal do tráfico de drogas. Pesquisas como a da antropó-
loga Alba Zaluar (2007) são referência até hoje nos estudos da antropologia
e da sociologia da violência. Zaluar (2007) traz aspectos sobre as diferentes
formas de sentir, vivenciar e efetivar violências, sem deixar de problematizar
as distintas dimensões das violências, que podem possuir configurações
decorrentes de violações nem sempre materiais ou físicas, mas também do
campo simbólico, psicológico, institucional e moral (ZALUAR, 2007).
Outro viés analítico, no caso de São Paulo, é o construído a partir de movi-
mentos culturais com diferentes formas de manifestação, como os realizados
por grupos de jovens ligados ao hip hop, ao grafite, aos slams etc. Trata-se de
expressões muito atreladas às relações étnicas, aos territórios de moradia e
a reivindicações sociais, podendo servir também como formas de resistência
às diferentes situações. Esse campo é permeado por todo um contexto de
representações compartilhadas e reproduzidas por meio das músicas, dos
grafites e das ações promovidas por esses grupos. Muitas das representações,
no entanto, trazem à tona questões étnicas, de gênero, geracionais, morais
etc. sobre as violências existentes nos territórios de periferia, principalmente.
As pesquisas urbanas trazem à tona o que Velho (2013) chama de “nível
consciente do morador”, ou seja, concepções que formam a base e determi-
nam a complexidade cultural contida no espaço urbano. O nível consciente
do morador consiste, portanto, na forma como os sujeitos compreendem as
suas vivências, os espaços em que transitam no âmbito público, para além de
seus espaços de moradia, e como impactam, são impactados e dão sentidos a
eles. Isso traz especificidades analíticas que só estudos socioantropológicos
conseguem absorver por meio de seus métodos e suas técnicas qualitativas
de pesquisa. Segundo Magnani (2003, p. 83), frente às demais áreas das
ciências sociais,
Antropologia urbana 9

[…] a antropologia tem uma contribuição específica para a compreensão do fenô-


meno urbano, mais especificamente para a pesquisa da dinâmica cultural e das
formas de sociabilidade nas grandes cidades contemporâneas. Para cumprir esse
objetivo, tem à sua disposição um legado teórico-metodológico que, não obstante
as inúmeras releituras e revisões, constitui um repertório capaz de dotá-la dos
instrumentos necessários para enfrentar novos objetos de estudo e questões mais
atuais. O método etnográfico faz parte desse legado, e um dos desafios é como
aplicar essa abordagem à escala da metrópole sem cair na “tentação da aldeia”.

A “tentação da aldeia” a que o autor se refere consiste na tradição an-


tropológica de realizar pesquisas em comunidades tradicionais. Ao contrário
das sociedades tradicionais, nas sociedades complexas, há uma variedade
cultural muito grande. Quanto maior o espaço urbano, maior poderá ser
a complexidade e a heterogeneidade das manifestações culturais. Dentro
dessa complexidade, um único indivíduo pode construir diferentes teias de
relações, tanto no âmbito público como no privado.
O desafio atual consiste no fato de que o urbano, ao contrário das aldeias,
nos é familiar, e não é fácil desnaturalizar o que está naturalizado em nós
— isto é, desconstruir padrões, normas e concepções já internalizadas por
nós e acessar outras concepções de mundo, reconstruindo-as em pesquisas.
Além disso, há uma variedade muito grande de possibilidades de análises
das culturas urbanas. Dentro desse escopo de possibilidades, a antropologia
urbana vai contribuir para o estudo das lógicas das trocas e relações sociais
que ocorrem no meio urbano.

No livro Um antropólogo na cidade, Velho (2013) levanta questões


sobre a pesquisa no meio urbano, a relação entre as diferentes
subjetividades e as influências sociais externas aos indivíduos. Inclusive, ele
trata sobre a subjetividade do próprio pesquisador em um campo que é natural
e comum para ele, pois é o espaço de sua convivência, mas sem deixar de
reforçar que também há elementos que podem ser analisados para além do
que nos é familiar.

O espaço público, portanto, é o espaço de visibilidade, de comunicação, de


produção e reprodução da cultura urbana. Já o espaço privado é o espaço de
produção de outros tipos de subjetividades. Frúgoli Jr. (2005) traz um apanhado
de estudos realizados por antropólogos como Macedo (1979), Magnani (1984) e
Caldeira (1984), indicando-os como fontes potentes no campo da antropologia
urbana. Segundo o autor, esses pesquisadores
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[...] tomaram as áreas periféricas como local de pesquisa, buscando compreender


detidamente redes de parentesco e de vizinhança, modos de vida, estratégias de
sobrevivência, formas de sociabilidades e representações políticas, com ênfase em
dimensões cotidianas e em representações simbólicas, muito pouco contempladas
nas perspectivas “macroestruturais”. (FRÚGOLI Jr., 2005, p. 141).

As pesquisas realizadas na área econômica, por exemplo, possuem uma


perspectiva macrossocial sustentada principalmente por dados quantitativos,
e as pesquisas da psicologia são restritas às subjetividades. Já o foco das
pesquisas antropológicas e, em grande medida, das pesquisas sociológicas
é voltado para interesses diferenciados nas ciências sociais, ao envolver,
principalmente, os sistemas simbólicos marcados por múltiplas determina-
ções. Entretanto, apesar de serem campos diferentes, segundo Velho (2013,
p. 43), em pesquisas antropológicas no espaço urbano, não se pode “negar a
especificidade de fenômenos psicológicos, sociais, biológicos ou culturais,
mas sim reafirmar a importância de não perder de vista seu caráter de inter-
-relacionamento complexo e permanente”.
O que Velho (2013) parece nos indicar é que o comportamento humano
deve ser analisado e compreendido de forma integrada, pois somos seres
sociais, multifacetados, que interagimos de diferentes formas e com dife-
rentes estruturas e grupos sociais, ao mesmo tempo que também somos
constituídos por uma carga genética. Por isso, é preciso tomar cuidado com
análises generalizantes, construídas de forma arbitrária e que possam reforçar
estigmas e marcadores sociais da diferença. Por conta disso, o autor propõe
também acabar com a dicotomia indivíduo/sociedade ou cultura e integrar as
possíveis dimensões de análise e campos do conhecimento, possibilitando
um olhar mais ampliado da vida humana nas cidades, captando fatores de
natureza física, mental e espiritual. No próximo tópico, vamos abordar como
essas perspectivas são operacionalizadas em estudos sobre expressões
religiosas no espaço público.

Se você gostou do tema sobre comportamento desviante, bem como


sobre estudos realizados por antropólogos urbanos, indicamos o livro
do antropólogo Gabriel Feltran (2018) intitulado Irmãos: uma história do PCC.
Nesse livro, Feltran aborda a relação construída entre integrantes do Primeiro
Comando da Capital, o PCC, uma facção criminosa dominante no estado de São
Paulo, relatando as formas de sociabilidade, as prisões, o mercado do tráfico,
dentre outros aspectos que compõem o “mundo do crime”.
Antropologia urbana 11

Práticas religiosas no contexto urbano


Após o processo de secularização e racionalização moderno e ocidental, as
normas religiosas deixaram de ser determinantes na vida pública e também
política do Estado, ficando restritas ao âmbito privado dos seus seguidores,
o que acarretou também o processo de laicidade dos Estados modernos.
Além disso, a relação entre fiéis e Igreja, que antes ocorria de forma vertical
e quase inacessível, passou por um processo de ampliação de acesso aos
seguidores, reconfigurando o universo religioso ao ampliar a horizontalidade
na relação entre a fé e seus adeptos.
Nas raízes históricas do Brasil, há uma herança cultural religiosa plural
advinda de matrizes indígenas, africanas e europeias. No entanto, por conta
da colonização portuguesa, a religião dominante sempre foi o catolicismo,
e, por muito tempo, muitas manifestações religiosas foram proibidas no
nosso país. Foi com o processo de laicidade que houve também o processo
de pluralismo religioso no Brasil, a partir do qual a diversidade de tradições
e práticas religiosas passou a se manifestar livremente. Os princípios inclu-
ídos na Constituição de 1988 passaram a servir como parâmetro normativo,
instituindo, assim, a livre manifestação das religiões como um princípio
democrático.
Pensar as relações entre cidade e religião dentro do contexto do plura-
lismo religioso é pensar sobre as diferentes formas que existem atualmente
de expressar a religiosidade. Os estudos antropológicos, desde seu início e
ainda atualmente, sempre estiveram atentos às manifestações religiosas das
sociedades primitivas. O interesse perpassa por mitos, ritos, magias e demais
formas representativas, buscando compreender as relações dos sujeitos com
a fé e os seus símbolos. Já os estudos da antropologia urbana, interpostos à
antropologia da religião, buscam entender, a partir de exercícios etnográficos,
as manifestações e expressões de fé no espaço público, ou mesmo a relação
entre a cidade e as religiões. No Quadro 1, são especificados alguns conceitos
relacionados às manifestações da religião no espaço urbano.
Quando falamos que o campo é amplo e heterogêneo é porque uma única
categoria pode ter diferentes significados, como vimos no caso das piscadelas.
Quando falamos de religião, há todo o contexto da pluralidade religiosa e a
forma como cada ator entende o processo religioso em sua subjetividade.
Segundo Magnani [200-?], em seu artigo “Religião na Metrópole”, o que se
entende por “religião” é aplicado a um variado conjunto de experiências que
estão diretamente relacionadas a diferentes doutrinas, ritos, experiências e
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formas de entender e dar diferentes sentidos ao universo e à própria vida.


E a cidade é um espaço que oferece condições de desenvolvimento e mani-
festação para as práticas religiosas.
Ao andar pela cidade, principalmente as grandes cidades, podemos
observar a presença de templos, igrejas, sinagogas, santuários, oratórios,
terreiros, casas espíritas, dentre outros. Todos eles são centros de mani-
festação e expressão de diferentes fés, cada um com formas representa-
tivas e concepções de mundo próprias, que são materializadas por meio
de cultos, passes, ritos, cerimônias, festas públicas e devoções diversas.
Eles representam também uma pluralidade de expressões identitárias por
meio da fé, podendo inclusive um mesmo indivíduo circular por diferentes
religiões ao mesmo tempo ou em diferentes fases da vida. Segundo Peter
Berger (1997, p. 78):

O indivíduo moderno existe numa pluralidade de mundos migrando de um lado a


outro entre estruturas de plausibilidade rivais e muitas vezes contraditórias, cada
uma sendo enfraquecida pelo simples fato de sua coexistência involuntária com
outras estruturas de plausibilidade. Além dos “outros significantes” que confirmam
a realidade, há sempre e em toda parte “aqueles outros”, incômodos refutadores,
descrentes — talvez o incômodo moderno por excelência.

O que podemos compreender dessa citação é que as identidades dos


sujeitos são construídas a partir de elementos diversos, heterogêneos e
fragmentados, sendo as religiões um dos campos de possibilidades, dentro de
outros elementos constitutivos, para a formação do ser. Esse é um aspecto do
cosmopolitismo moderno e da pluralidade religiosa, que criam um campo de
possibilidades de manifestação e expressão da fé no espaço público. Alguns
exemplos podem ser verificados a partir de diferentes festejos em datas
comemorativas, como a Festa dos Santos Reis, a Festa do Bonfim, a Festa
de São Sebastião, a Semana Santa, as procissões religiosas em geral, bem
como eventos e encontros promovidos por diferentes religiões, dentre outras
possibilidades. Segundo Mafra e Almeida (2009, p. 139), “é na amplitude de
significado que a cidade como espaço representa, que notamos proximidades
dos universos urbanos e religiosos”.
Apresentamos apenas um quadro geral para identificarmos algumas
relações possíveis e visualizarmos possibilidades dentro dos contextos
em que estamos inseridos de forma exemplificada. Os estudos das formas
de pensar o espaço da cidade e da religião devem ser especificados de
forma minuciosa e precisa, considerando a diversidade de olhares de
quem participa. Apesar de todo o processo de racionalização e laicidade,
Antropologia urbana 13

a religião é um aspecto muito forte no Brasil e é manifestada de diferentes


formas. Um exemplo disso é a música “Andar com fé eu vou”, de Gilberto
Gil, que diz o seguinte:

Andar com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá / [...] Que a fé tá na mulher / A fé
tá na cobra coral / oh oh / Num pedaço de pão / A fé tá na maré / Na lâmina de
um punhal / Oh oh / Na luz e na escuridão / […] A fé tá viva e sã / A fé também tá
pra morrer / Oh oh / Triste na solidão / Certo ou errado até / A fé vai onde quer
que eu vá / Oh Oh / A pé ou de avião / Mesmo a quem não tem fé / A fé costuma
acompanhar / Oh oh / Pelo sim pelo não.

A partir dessa letra, podemos compreender alguns aspectos represen-


tativos das manifestações de fé. Por exemplo, vamos considerar o possível
significado de alguns trechos:

„„ “a fé tá na mulher” — pode representar a figura de Maria;


„„ “na cobra coral” — pode-se considerar que a cobra sempre esteve
ligada a diferentes símbolos religiosos e míticos; há, por exemplo, um
caboclo na umbanda que se chama Cobra Coral e representa a pureza
e a magia, algo ligado à fé que habita em cada indivíduo;
„„ “num pedaço de pão” — nas missas, o pão representa “o corpo de cristo”;
„„ “a fé tá na maré” — pode representar as oferendas à Iemanjá, em que
há o ideal de que as oferendas sejam transmutadas em prosperidades
vindas com a maré.

Enfim, essas expressões se referem a diferentes religiões que possuem


atividades em espaços públicos, e as possibilidades de análise sobre as
representações são variadas. Um mesmo fragmento, prática ou categoria
pode possuir diferentes significados e explicações de mundo.
Nesse sentido, a antropologia amplia a relação com os espaços de fé e a ma-
nutenção da memória, pois se baseia em estruturas de discursos e significações
que permitem intercambiar signos. Serve ainda como intermediação cultural,
ao tratar da relação das pessoas com o espaço de significação que ocupam,
abordando questões que vão além do que dados quantitativos podem oferecer.
A religião é ampla e possui inúmeras modalidades de relação com a cidade.
Com isso, o foco de análise da antropologia urbana consiste na forma como
os sujeitos compreendem, internalizam e dão sentido às suas ações baseadas
em princípios da religião com que possuem vínculo. A inscrição religiosa é
manifestada nos eventos públicos, mas também nos corpos, nas mentes e
no espaço físico e político da cidade.
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Quadro 1. Noções conceituais para ampliar a compreensão sobre a antro-


pologia urbana e a sua relação com as religiões

É um fenômeno moderno que corresponde à


pluralidade de manifestações religiosas e crenças
que possuímos hoje no Brasil. Há uma pluralidade
de formas de conceber o mundo e dar explicações
místicas a ele, e todos os sujeitos possuem
Pluralismo religioso
liberdade para seguir a religião que desejarem,
ou não seguir, se assim desejarem. Há princípios
normativos na Constituição de 1988 que garantem o
respeito, a liberdade de culto e a isonomia a todas
as religiões.

Também conhecida como Fé Pública, são atos de fé


Manifestação
realizados no espaço público ou fora dos seus locais
pública de fé
sagrados.

O processo de construção identitária ocorre ao


longo de toda a vida e está muito atrelado às
experiências que possuímos, às relações, interações,
regras, valores etc. É, portanto, um produto cultural.
No que se refere às identidades religiosas, esse é
um termo que tem sido usado também para estudar
processos em que sujeitos trocam de religião. Nesse
processo, há a desconstrução e a reconstrução
de novas perspectivas religiosas que impactam
diretamente as novas formas de expressar as
Identidades religiosas
identidades religiosas. Por exemplo, suponha um
sujeito que nasceu e cresceu como judeu ortodoxo e,
por isso, seguiu por um determinado tempo da vida
seguindo normas de comportamento, de vestimenta
e de relações subjetivas específicas. Se, por acaso,
ele resolver trocar de religião e seguir a umbanda,
por exemplo, aspectos identitários nele e relativos
ao judaísmo serão desconstruídos, e novos serão
criados. Isso impactará diretamente a forma de
expressar sua identidade.

Um exemplo de estudo antropológico sobre uma manifestação pú-


blica de fé é a tese de doutorado de Daniel Bitter (2008) intitulada
A bandeira e a máscara: estudo sobre a circulação de objetos rituais nas folias
de reis. Em seu estudo, o pesquisador direciona a análise às representações
e à circulação da bandeira e da máscara no contexto social e ritual das folias
de reis, evento festivo que ocorre em grande parte do território brasileiro. O
objetivo principal do estudo é entender como ocorre a construção de vínculos,
relações e significados dados pelos participantes do empreendimento festivo.
Antropologia urbana 15

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