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ANTROPOLOGIA

SOCIAL

Gabriela Felten da Maia


O relativismo cultural
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Analisar a emergência do relativismo cultural no tensionamento dessa


corrente com o etnocentrismo.
„„ Listar as ferramentas metodológicas que permitiram praticar o rela-
tivismo cultural.
„„ Descrever a noção de cultura proposta por Franz Boas, expoente do
relativismo cultural.

Introdução
O relativismo é uma corrente que se contrapõe ao etnocentrismo a partir
da compreensão dos comportamentos, pensamentos e sentimentos do
outro conforme sua cultura. Trata-se de um procedimento antropológico
por excelência, porque tenta demonstrar que toda cultura opera como
uma lente que condiciona a visão de mundo dos indivíduos no contexto
da cultura em que estão inseridos. Esse processo possibilita que se entenda
que cada cultura é singular e diferente.
Neste capítulo, você estudará o relativismo cultural, uma perspec-
tiva fundamental para compreender as diferenças e a diversidade; as
ferramentas metodológicas para praticá-la, a partir da antropologia;
bem como a noção de cultura por Franz Boas, um importante expoente
dessa discussão.

Descentramento do olhar
A curiosidade do ser humano sobre si mesmo sempre acompanhou a história,
mas recentemente se tem uma consciência da alteridade que marca o surgi-
mento de um campo do saber sobre a diferença. A compreensão da diferença
como diversidade, não hierarquia, somente será possível diante do processo
de estranhamento e reflexividade que a acompanha (LAPLANTINE, 2003).
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Uma atitude reflexiva proporciona um descentramento do olhar para que se


entenda a cultura do outro a partir da lógica interna da cultura a ser analisada,
porém, no olhar do outro, encontra-se o ponto de partida. De acordo com
Laplantine (2003), o estudo de sociedades inicialmente distantes instaura um
projeto antropológico em que:

[...] a perplexidade provocada pelo encontro das culturas que são para nós as
mais distantes, e cujo encontro vai levar a uma modificação do olhar que se
tinha sobre si mesmo. De fato, presos a uma única cultura, somos não apenas
cegos à dos outros, mas míopes quando se trata da nossa. A experiên­cia da
alteridade (e a elaboração dessa experiência) leva-nos a ver aquilo que nem
teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa aten-
ção no que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos “evidente”.
[...] O conhecimento (antropológico) da nossa cultura passa inevitavelmente
pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhe-
cer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única
(LAPLANTINE, 2003, p. 21).

Nesse contexto, a diferença torna-se diversidade, havendo a possibilidade


de se ver o mundo com espanto e curiosidade, quando se estende o olhar como
um binóculo para observar para além das próprias lentes.

Margaret Mead foi uma importante antropóloga e pesquisadora da escola estaduni-


dense Cultura e Personalidade, bem como está inserida na discussão sobre cultura
e relativismo, propondo que se pense em uma etapa do curso da vida a partir da
perspectiva transcultural. Entre suas obras, está A adolescência em Samoa, publicada
em 1928. Em homenagem à sua contribuição para a antropologia, foi realizada a
série televisiva Strangers Abroad, exibida na década de 1990. No link a seguir, você
pode assistir ao episódio Maioridade (Coming of ages) e conhecer um pouco de sua
trajetória, sua pesquisa e a forma como praticou o relativismo como uma ferramenta
para a análise cultural.

https://qrgo.page.link/3TwrX

As correntes teóricas constituídas na antropologia pós-evolucionismo


tentaram descrever os modos de pensar e agir que consideravam a variação
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cultural dentro dos próprios termos, bem como marcam a ruptura com a
centralidade da cultura do eu no pensamento europeu sobre a diferença. Já o
efeito epistemológico é a separação dos olhares de dois sujeitos: o de etnógrafo
(o eu) e o do nativo (o outro).
O outro torna-se um porta-voz de sua cultura, e o etnógrafo aquele que
olha a partir de uma perspectiva de olhar distanciado, analisando as diferenças
culturais. Portanto, os estudos realizados começam a observar o contexto
em que vivem as sociedades analisadas como um importante fator para a
explicação da cultura. Assim, segundo Rocha (1988, p. 62):

[...] o “outro” começa a deixar de ser um simples retrato dos momentos pri-
mitivos do “eu” e passa a ocupar um lugar mais destacado como algo que
transforma a teoria antropológica e pode, de muitas maneiras, servir para
dimensionar a própria sociedade do “eu”.

No início do século XX, na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, a


antropologia desenvolveu importantes discussões que trouxeram a relativização
e a ruptura com o modelo evolucionista de cultura. As escolas que emergiram
nesse contexto criticam a antropologia de gabinete, um termo utilizado para
designar a tradição clássica do evolucionismo, pois ela não consegue mais
pensar os dados empíricos. A ida ao campo começa a se tornar cada vez
mais necessária, sendo uma experiência fundamental para o conhecimento
etnográfico.
Portanto, as escolas antropológicas posteriores criticaram os métodos
de investigação e as conclusões de teses evolucionistas, reagindo à ideia de
sociedades escalonadas em termos hierárquicos como superiores e inferiores.
Elas denunciavam o etnocentrismo do pensamento antropológico ao utiliza-
rem as características da sociedade europeia como critérios comparativos
para análise do desenvolvimento cultural de sociedades. Assim, as críticas
revisavam a ideia de um evolucionismo cultural linear e questionavam a im-
possibilidade de encontrar as leis universais do desenvolvimento cultural ou
que seus fenômenos tenham se desenvolvido do mesmo ponto de partida. Já
a extensão dessas comparações era considerada muito vasta, tanto geográfica
como temporalmente, resultando em hipóteses dedutivas bastante frágeis. Essa
metodologia era vista como arbitrária, porque escolhia os elementos culturais
a serem isolados para análise.
Os críticos entendiam que era necessário encontrar uma compreensão
particular e minuciosa das culturas observadas, em vez do isolamento de
elementos. Assim, a cultura seria uma totalidade que não poderia ser desmem-
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brada, tornando-se possível olhar a sociedade do outro como ela se manifesta


e a partir do ponto de vista de quem participa dela. Por isso, a ideia de contexto
é importante para as escolas ulteriores.

Especificidade da prática antropológica


As críticas à abordagem comparativa dos evolucionistas culturais levaram à
crítica da etnologia posterior, entre os anos de 1880 e 1920, por Franz Boas
e Bronislaw Malinowski, a partir de uma outra compreensão do estudo das
culturas como totalidades. A etnografia torna-se um importante método para
desenvolver tal empreendimento, um estudo sistemático das culturas, para
realizar a compreensão da lógica própria de cada sociedade em seus contextos.
A abordagem antropológica para o estudo dos seres humanos ocorre por
meio dos significados, pelos quais os indivíduos produzem, percebem e in-
terpretam fatos e ações, sem os quais estes não teriam sentido para a ação
humana. Portanto, somente é possível compreender ao se comunicar com as
pessoas a partir da convivência por algum tempo, realizando uma experiência
de imersão que possibilite entender as estruturas de significação que mostrem
como e porque, em uma situação específica, determinados significados e
ações são produzidos.
O que interessa não é a interpretação e explicação dos fatos independen-
temente do contexto de expressão, mas, sim, o modo como os fatos e ações
estão sendo interpretados pelos sujeitos, pois nunca são analisados em sua
forma real, senão aquilo que os indivíduos transmitem, os sentidos produzidos
durante a enunciação. Segundo Geertz (1989), a cultura como um sistema de
signos passíveis de interpretação não é:

[...] um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os aconteci-


mentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é
um contexto, algo dentro do qual eles (os símbolos) podem ser descritos de
forma inteligível — isto é, descritos com densidade (GEERTZ, 1989, p. 20).

Isso significa que a compreensão ocorre a partir de dentro, tal como é


percebida pelos atores sociais, e consiste em uma abordagem microssocioló-
gica que se atenta ao cotidiano, às práticas dos atores, aos gestos, aos hábitos
alimentares, à higiene, às expressões corporais, etc. Trata-se de uma abordagem
que possui um modo particular de olhar, apresentando o que não é familiar
com curiosidade (LAPLANTINE, 2003). Esse movimento do encontro com
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o exótico, estranho ou diferente perpassa a ideia de uma distância que pode


ser geográfica ou no limite da própria pele (GEERTZ, 2001).
Em um movimento, o encontro foi com sociedades ou grupos que estavam em
outros lugares, longes do mundo social do antropólogo, e envolvia um processo
de saída de sua sociedade, a ida a uma região distante geograficamente (outros
países, em geral, colonizados pelo país de origem do antropólogo) e seu retorno.

O olhar distanciado
A seguir, veja o exemplo que Malinowski (1978, p. 19) trouxe em sua obra Argonautas
do Pacífico Ocidental.

Imagine o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa praia


tropical próximo a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o
trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista. Tendo encontrado um
lugar para morar no alojamento de algum homem branco — negociante
ou missionário — você nada tem para fazer a não ser iniciar imediata-
mente seu trabalho etnográfico. Suponhamos, além disso, que você seja
apenas um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem
ninguém que o possa auxiliar — pois o homem branco está tempora-
riamente ausente, ou, então, não se dispõe a perder tempo com você.
Isso descreve exatamente minha iniciação na pesquisa de campo, no
litoral Sul da Nova Guiné. Lembro-me bem das longas visitas que fiz
às aldeias durante as primeiras semanas; do sentimento de desespero e
desalento após inúmeras tentativas obstinadas mas inúteis para tentar
estabelecer contato real com os nativos e deles conseguir material para
a minha pesquisa. Passei por fases de grande desânimo, quando então
me entregava à leitura de um romance qualquer, exatamente como um
homem que, numa crise de depressão e tédio tropical, se entrega à bebida.

O relato do exemplo anterior está presente no livro Os Argonautas do Pa-


cífico Ocidental e demonstra o trabalho do etnógrafo em localidades distantes
do contexto da pessoa branca. Tratava-se de um momento de institucionali-
zação da disciplina e afastamento dos modelos explicativos do evolucionismo
cultural. Por isso, a distinção entre eu-outro resulta também de uma distância
que possibilitará a criação de um contexto, uma totalidade que faz pensar em
uma cultura e suas especificidades. Esse processo permite que o exótico se
torne inteligível às sociedades ocidentais.
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O descentramento radical dessa perspectiva implicava uma ruptura com o


etnocentrismo, e esse processo tornou-se basilar para o desenvolvimento de um
olhar para o outro que possibilita olhar para o mundo com mais curiosidade.
Segundo Laplantine (2003, p. 160), “essa experiência de arrancamento de si
próprio age, na realidade, como um verdadeiro revelador de si”, portanto, ao
olhar para outra cultura, também é possível olhar para a própria cultura com
outra perspectiva.
As transformações na forma de fazer antropologia começam com Franz
Boas, e sua concepção de cultura consolidou o trabalho de campo como central
para a antropologia cultural estadunidense. A aproximação empírica, a obser-
vação direta de uma realidade, o domínio da língua nativa, a disposição para
a escuta e a descrição detalhada dos aspectos culturais foram privilegiados
a tal ponto que se considerava difícil realizar uma síntese abrangente, como
os evolucionistas faziam. Por isso, seu enfoque recaía sobre a compreensão
particular e minuciosa das culturas observadas.
Já Malinowski fez trabalho de campo anos depois de Boas, mas apresentou
as bases para a antropologia moderna, porque sistematizou a realização da
etnografia, em que havia uma convivência intensa e de longa duração com a
sociedade estudada. Os elementos culturais não poderiam ser desmembrados
do contexto, e sim tomados a partir do todo. Os costumes e as crenças come-
çam a ser considerados no contexto integrado, e a pesquisa empírica surge
como uma forma de mostrar que as sociedades possuem uma organização
que lhes é própria.
A fim de se afastarem do etnocentrismo presente no campo antropológico,
essas perspectivas trabalharam com a ideia de incomensurabilidade existencial
entre eu (etnógrafo) e outro (nativo). Nessa relação, a diferença é produzida a
partir da existência de culturas dissociadas, estando ancorada na divisão entre
Ocidente e não Ocidente, dado que eram os outros não ocidentais os objetos
de estudo da antropologia.
Se as fronteiras físicas constituíram esse lugar da diferença, deve-se en-
tender que não é preciso realizar essa transposição para considerar o olhar
sobre o outro como uma diferença e diversidade. Estranhar o que é familiar,
parece banal e constitui seu cotidiano tem sido um importante ensinamento
da antropologia, bem como possibilita observar esse familiar e o transformar
em exótico. Assim, a viagem pode ser simplesmente lançar um olhar curioso
ao redor para conhecer a própria cultura.
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Na relação entre exótico e familiar, o estranhamento emerge não apenas para os


modos de vida considerados bizarros ou esquisitos, como também para práticas
relativamente conhecidas, com as quais se convive na mesma cidade, região ou país.
Pensando nessa dimensão dos estudos antropológicos, a análise da sociedade do
antropólogo Gilberto Velho (no capítulo “Observando o familiar”, do livro A aventura
sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social, de Edson de
Oliveira Nunes) apresenta algumas de suas experiências de pesquisas em contexto
urbano para refletir sobre como relativizar a familiaridade. É uma leitura importante
para compreender que estar familiarizado não significa conhecer todos os pontos de
vista, as regras e as práticas dos atores sociais.

Cultura como particularidade — a contribuição


de Franz Boas
Franz Boas foi expoente da antropologia norte-americana e inaugurou uma
escola de antropologia cultural que influenciou gerações posteriores em cada
uma das áreas estudadas por ele: psicologia, linguagem, raça e história. Pre-
cursor do relativismo cultural como princípio teórico-metodológico, ele ainda
contribuiu para a ênfase da antropologia na complexidade de cada cultura.

A série televisiva Strangers Abroad foi exibida na década de 1990 e objetivava apresentar
alguns antropólogos importantes que influenciaram tradições e escolas. Por meio da
reconstituição da trajetória acadêmica deles, é possível saber mais sobre suas pesquisas,
influências e ideias. No link a seguir, você pode assistir ao episódio “As correntes da tra-
dição” (The shackles of tradition) para acompanhar a trajetória acadêmica de Franz Boas.

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8 O relativismo cultural

Na definição do objetivo da pesquisa antropológica, Boas introduz a noção


de cultura no plural, indicando que o estudo das culturas deve considerá-las
em sua totalidade e evitando a busca por uma causa explicativa para as for-
mas culturais, uma vez que suas diversas expressões estão integradas a uma
complexidade. Por isso, o foco precisa ser sobre o indivíduo em sua cultura e
o entendimento da influência desta sobre ele.
Segundo Boas, o indivíduo é influenciado pelo seu ambiente social, e sua
atividade influencia a sociedade em que vive, modificando-a, o que indica que
os fenômenos culturais estão em fluxo constante. A dinâmica do fenômeno
cultural começou a chamar a atenção dos pesquisadores que, cada vez mais,
se interessavam pela forma como o sujeito reage à totalidade de seu ambiente
cultural.
A elaboração do conceito de cultura por Boas está inserida nos debates rea-
lizados em diferentes contextos regionais, políticos, sociais e epistemológicos.
Portanto, a acepção de cultura possui influências de Kultur, relacionada ao
contexto do romantismo alemão, e de Civilization, ligada ao contexto inglês
e francês, bem como aos debates do Iluminismo.
Kultur trata-se de uma noção particularista e privilegia o que é específico
de uma localidade, em que há a valorização das tradições locais e a lingua-
gem de cada povo. A história é marcada pelo h minúsculo, pois se refere à
história local e às particularidades desse povo. Já a cultura consiste em um
todo complexo, um contexto limitado, considerando a história local, a língua,
os mitos, as crenças e a tradição (CUCHE, 1999).
Essa compreensão contrapõe-se a noção de Civilization, elaborada no
contexto francês e inglês, ligada a uma visão universalista e progressista
da História, sempre com H maiúsculo, pois está associada à ideia de evolução.
Já a noção de cultura nesse contexto influenciou as discussões do evolucionismo
cultural, porque é entendida como universal, na medida em que a humanidade,
em sua totalidade, caminha para a mesma direção evolutiva para alcançar o
estágio de civilização (CUCHE, 1999).
Considerando a cultura como uma totalidade e no plural, holista, integrada,
com ênfase ao particularismo histórico e associada aos aspectos particulares
de cada localidade, aos modos de fazer, falar e pensar, Boas aproxima-se da
noção de Kultur. Cada grupo cultural é específico, singular e coerente, porque
possui uma história própria e única que torna impossível compreender o que
ocorreu a um grupo a partir de um esquema cultural evolutivo.
Portanto, ele propôs um método diverso à tendência geral do pensamento
etnológico para compreender a dinâmica da mudança cultural observada no
presente, tornando-se um ferrenho crítico do evolucionismo cultural e difu-
O relativismo cultural 9

sional. Se, para alguns antropólogos, a existência de fenômenos semelhantes


em povos de regiões diferentes era a prova da existência de leis gerais que
governam o desenvolvimento da sociedade, ou de um caminho evolutivo —
pressuposto do evolucionismo cultural, Boas afirmará que as investigações
realizadas não a haviam confirmado. Ele critica a abrangência da difusão
ao afirmar que o mesmo fenômeno etnológico pode ter sido alcançado por
linhas diferentes de desenvolvimento e por um número infinito de pontos
de partida.
De acordo com Franz Boas, as hipóteses de que o desenvolvimento cul-
tural ocorreria de modo uniforme, em um esquema evolutivo, em todas as
partes ou a partir do contato realizado pelas migrações e difusão de elementos
culturais, não poderiam ser sustentadas. Portanto, a existência de fenômenos
similares não é uma prova incontestável da conexão histórica, nem de que a
mente humana obedece às mesmas leis em todos os lugares. Havia também
investigações suficientes para afirmar que fenômenos culturais semelhantes
têm condições de produção diferenciadas.
Contudo, isso não significa que não se considerava a possibilidade de
que a mente humana possui essas condições, muitas vezes, fenômenos simi-
lares, como o totemismo, seriam justificados porque as condições psíquicas
da mente favorecem a existência de determinadas formas de organização.
Nesse sentido, os seres humanos têm uma unidade psíquica da mente. Com o
entendimento de que todos pertencem à espécie Homo sapiens, compreende-
-se que, se os fatos culturais são diversos, a mente capaz de inventá-los é
a mesma, nem mais avançada ou lógica. É possível realizar combinações
espontaneamente ou aceitá-los em qualquer ocasião em que são oferecidos
em processos de difusão ou justaposição, portanto, o ser humano tem uma
mente complexa e variada que desenvolve fenômenos semelhantes por uma
multiplicidade de caminhos.
Portanto, deve-se esclarecer os processos que ocorrem diante de si, abs-
tendo-se de solucionar o problema da história do desenvolvimento cultural
geral. Isso acontece devido ao seu pressuposto do particularismo histórico,
em que cada cultura seria produzida a partir de uma combinação dos meios
geográfico, histórico, linguístico e psicológico. Nessa linha de discussão,
apresenta-se os objetivos como “uma tentativa de compreender os passos pelos
quais o homem tornou-se aquilo que é biológica, psicológica e culturalmente”
(BOAS; CASTRO, 2004, p. 88).
Para Franz Boas, as tentativas de explicar a cultura a partir de bases
biológicas, como a relação entre raça e cultura, sempre fracassam. Do mesmo
modo, ao tecer críticas ao determinismo geográfico e econômico, ele aponta
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que o ambiente geográfico pode estimular as condições culturais existen-


tes, mas não as moldar, assim como as condições econômicas têm pouca
força criativa para inventar a cultura. Qualquer uma dessas tentativas de
desenvolver generalizações sobre a integração cultural produzem resultados
infrutíferos.
Boas sustentou que as ciências sociais devem analisar os fenômenos e
ser limitadas às formas definidas, em que há como centro de investigação o
indivíduo que vive em determinada cultura. Essa associação ocorre devido
à necessidade de se compreender as condições ambientais que criaram e
modificaram os elementos culturais e fatores psicológicos que atuaram na
sua configuração e a história de seu desenvolvimento. Por isso, passou-se
de uma compreensão de história da humanidade para a ênfase na história
local, particular, em curto prazo e mais próxima da história oral, a qual
valoriza costumes, crenças, mitos, tradições e língua, associada à geografia
e psicologia.
Nesse sentido, o material dos estudos antropológicos precisa ser baseado
em dados históricos. Para tal, ele propõe o método histórico, porque entende
que o objetivo último da antropologia é descobrir as razões pelas quais deter-
minados costumes e crenças existem, considerando a cultura total do grupo.
Isso deve ser aliado à geografia e psicologia, às condições ambientais que
criaram e modificaram os elementos culturais, aos fatores psicológicos que
atuaram na sua configuração e à história de seu desenvolvimento. Para ele:

O estudo detalhado de costume em sua relação com a cultura total da tribo


que os pratica, em conexão com a investigação de sua distribuição geográfica
entre tribos vizinhas, propicia-nos quase sempre um meio de determinar
com considerável precisão as causas históricas que levaram à formação dos
costumes em questão e os processos psicológicos que atuaram em seu desen-
volvimento (BOAS; CASTRO, 2004, p. 33–34).

Já o resultado dessa investigação pode revelar as condições ambientais


que criaram e/ou modificaram os elementos culturais; esclarecer os fatores
psicológicos que atuaram na configuração da cultura; ou mostrar os efeitos
que as conexões históricas tiveram sobre o desenvolvimento dessa cultura
(BOAS; CASTRO, 2004).
A partir dessa perspectiva antropológica, Franz Boas levantou questões
sobre o determinismo biológico, que envolvia as discussões acerca de carac-
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terísticas mentais associadas às raças. Ele destacou que as formas corporais


sofrem variações conforme uma série de influências externas, como ambiente,
tipo de ocupação e dieta, indicando que as diferenças ocorrem devido aos
fatores sociais e ambientais, e não biológicos.
Diante dos diferentes estudos que indicavam as influências dos contextos
social e cultural nas funções mentais, Franz Boas teceu críticas aos testes
de inteligência e à sua limitada capacidade de afirmar sobre a capacidade
mental como determinada biologicamente. O conhecimento antropológico
demonstrava que os indivíduos não diferem por razões biológicas, mas, sim,
culturais. Portanto, ele defendeu que o antagonismo racial é um fenômeno
social que tem como objetivo a aparência, e a segregação em grupos de cará-
ter racial não tinha nenhuma base científica, tratando-se de uma construção
histórica e cultural.

Publicado na obra Antropologia Cultural (organizada por Celso Castro), “Raça e Pro-
gresso” é uma conferência de Franz Boas no encontro da American Association for the
Advancement of Science, sendo uma importante leitura para compreender as críticas
ao determinismo biológico e ao racismo presente naquela época, nos Estados Unidos.
Nessa palestra, mostra-se como os aspectos considerados científicos sobre as raças
eram falhos, iniciando com uma desconstrução da ideia de raça e a questão da mistura
racial, a partir de estudos etnológicos e históricos de que essa mistura em outras
regiões do planeta não apontou evidências para uma degeneração, como as teorias
racialistas do período defendiam.

Estas importantes reflexões metodológicas introduziram na pesquisa an-


tropológica uma crítica relativista e um combate às argumentações racistas,
sendo ainda uma importante ruptura com a centralidade da cultura do eu na
relação com a diferença. Isso consolidou a antropologia norte-americana e
a antropologia cultural, o que influenciou diversos alunos em uma série de
linhas de investigação.
12 O relativismo cultural

BOAS, F.; CASTRO, C. (org.). Antropologia cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. 112 p.
CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999. 258 p.
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. 213 p.
GEERTZ, C. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 248 p.
LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2003. 205 p.
MALINOWSKI, B. K. Argonautas do Pacífico ocidental: um relato do empreendimento e
da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné melanésia. 2 ed. São Paulo:
Abril Cultural, 1978. 424 p. (Os Pensadores, 55).
ROCHA, E. P. G. O que é etnocentrismo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988. 95 p. (Coleção
Primeiros Passos, 124).

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