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Questão: Nos dias atuais as experiencias de campo têm levado os antropólogos repensar

a relação entre "cultura" e "poder". Usa a literatura indicada para discutir essa questão.
Resposta:
Falar da relação entre cultura e poder na ciência antropológica é como andar
numa areia movediça temporal. A depender do momento do tempo e do espaço de que
estes assuntos são abordados o emissor da mensagem pode variar de posição ao sabor
do vento. O que nos deixa, enquanto prováveis ingressantes num Programa de Pós-
graduação, numa situação de indecisão e incerteza. Para que este pequeno texto seja
claro e objetivo na sua empreitada de responder essa questão volátil, vou abordar alguns
pontos sobre o percurso sinuoso da cultura na tradição antropológica. Em seguida,
procurarei relacioná-la com os aspectos de poder que surgem nos trabalhos etnográficos.
E, por último, farei uma síntese particular dessas duas terminologias muito caras à nossa
ciência. Claro, dando prioridade às leituras indicadas no edital da seleção que serão
nossas bússolas.
É praticamente impossível ao tratar de cultura na antropologia e não mencionar
quem primeiro tentou conceituá-la, o inglês Edward Tylor, que escreve que cultura “... é
aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e
quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem”. O “problema” com
esta definição, como fomos compreender com o passar dos anos e da experiência
científica adquirida, é que ela aborda a cultura de uma forma engessada. Trata-a como
algo exclusivamente exógeno, algo que o ser humano aprende externamente e o
interioriza e reproduz. O que é um paradoxo, por que quem é que “inventa a cultura” se
não o próprio ser humano e a dissemina? O pensador britânico não a observou como um
fruto da ação humana também, não observou a sua dinamicidade.
Contudo, a cultura vai passar uma boa parte dos anos sendo abordada dessa
maneira tyloriana. É com Franz Boas, que vai fazer uma separação da noção de
raça/natureza e cultura, que vai fazer um recorte nesse conceito. “A cultura pode ser
definida como totalidade das reações e atividades mentais e físicas que caracterizam a
conduta de indivíduos que compõem um grupo social, coletiva e individualmente, em
relação ao ambiente natural, a outros grupos, aos membros do próprio grupo e a cada
indivíduo consigo próprio. (...) Ela é mais. Seus elementos não são independentes, eles
têm uma estrutura. (...) a conduta humana (...) não pode ser chamada de instintiva. (...) A
cultura humana é diferenciada do mundo animal pelo poder da razão a ela, o uso da
língua” (p. 47). Dada essa importância à cultura, a antropologia americana será
conhecida como antropologia cultural, fazendo um contraponto à antropologia social
britânica que conta com um viés estrutural-funcionalista. Boas, sendo o pai da
antropologia americana, vai influenciar toda uma legião de alunos que desenvolveram e
se encaixaram em novos paradigmas teóricos da antropologia.
É o caso da antropologia simbólica ou interpretativa cujo seu preconizador,
Clifford Geertz, trata a cultura não como algo preso na cabeça das pessoas, mas sim
incorporada em símbolos públicos, símbolos através dos quais membros de uma
sociedade comunicam sua visão de mundo, orientações, valores, ethos. De acordo com
Sherry Ortner (2011), ele deu um grau de objetividade à cultura.
Outra importante contribuição dele à questão, que também é encontrada na obra
da Ortner (2011), foi a insistência em estudar a cultura da perspectiva do ator. Digamos
que seria uma antropologia empática. Claro que não implica que devemos entrar na
cabeça das pessoas. O que Geertz procura disciplinar é que a cultura é um produto de
ação de seres sociais tentando fazer sentido do mundo no qual eles se encontram.
Cultura não é algo de ordem abstrata, de uma lógica estrutural obscura ou de símbolos
especiais que fornecem as chaves para sua coerência. A lógica da cultura provém da
organização da ação, de pessoas operando dentro de certa ordem institucional,
interpretando suas situações para agir coerentemente dentro dessa ordem.
Ao abordar cultura em seu sentido antropológico, não podemos esquecer de
mencionar a contribuição a esta área da corrente estruturalista. Seu criador, Lévi-
Strauss, destacou que o fenômeno que fez a ruptura entre a natureza e a cultura foi a
proibição do incesto. Ele procurou estabelecer uma gramática universal da cultura, as
maneiras pelas quais as unidades do discurso cultural são criadas, pelo princípio da
oposição binária, e as regras conforme quais unidades são arranjadas e combinadas para
fabricar as produções culturais do ser humano, ou seja, os mitos, as regras de
casamento, arranjos de clãs totêmicos. Culturas são, de acordo com o pensador francês,
primariamente sistemas de classificação, assim como os conjuntos de produções
institucionais e intelectuais construídas sobre esses sistemas de classificação e
performando operações sobre eles.
Tais abordagens sobre a cultura às vezes convergindo e outras divergindo talvez
seja um dos motivos do “desgaste” dela no campo antropológico. O que vai ser
abordado no texto do Adam Kuper (2002), Cultura, diferença e identidade. Segundo
ele, as pessoas já não a orientação dos antropólogos sobre o tema. O senso comum vai
atrás das explicações dos estudos culturais, o que a Manuela Carneiro da Cunha (2009)
também menciona, e dos multiculturalistas. O que eles entendem por cultura é, em
geral, as artes, a mídia, o sistema educacional, isto é, cultura seria uma pequena parte do
todo.
Agora, a questão do poder dos antropólogos na antropologia acredito que seja
um tema mais sinuoso ainda, pois não é tão abordado quanto a cultura. Mas ambos são
tratados no texto da Manuela Carneiro da Cunha (2009), quando ela aborda a questão da
diferenciação das abordagens de cultura para as sociedades indígenas e ocidental. Um
mesmo termo, mas com concepções diferentes. E é aí que entra a questão do poder,
geralmente exercido pela sociedade ocidental, que é quem possui a lógica dominante.
Cabendo ao antropólogo ser esse mediador, tradutor, entre esses dois mundos distintos.
A autora trata da problemática institucional dos direitos intelectuais e dos
conhecimentos tradicionais. Há um conflito entre cosmologias distintas. De um lado, as
várias visões de mundo dos povos tradicionais, que são entendidas como uma única, e
de outro, a visão ocidental, das sociedades industrializadas. A autora afirma que é
preciso distinguir a estrutura interna dos contextos endêmicos da estrutura interétnica
que prevalece em outras situações. As situações interétnicas não são desprovidas de
estrutura. Ao contrário, elas se auto-organizam cognitiva e funcionalmente. Na
Amazônia, por exemplo, o estranho não é mantido à distância, mas sim incorporado.
Enquanto na sociedade ocidental ocorre o inverso. Carneiro da Cunha retoma o exemplo
ilustrativo do honi, ele não é cultura na concepção indígena porque seria propriedade e
cultura é por definição compartilhada. Todos a possuem e todos compartilham.
Claro, que neste pequeno texto deixamos de abordar a noção de cultura para
outros pensadores tão consagrados no nosso cânone quanto os mencionados aqui.
Porém, dado o período de tempo delimitado para responder a questão, optamos por
escrever sobre o que mais nos saltou aos olhos na bibliografia consultada e que fosse
pertinente ao assunto.
Dada esta explicação, faço coro ao que escreveu Kuper (2002), separar uma
esfera cultural e tratá-la em seus próprios termos não constitui uma boa estratégia. Se
não separarmos os vários processos que estamos agrupando inadvertidamente sob o
título de cultura e olharmos além dela, não iremos muito longe na nossa compreensão.
Existe uma objeção moral à teoria da cultura. Ela tende a desviar a atenção do que
temos em comum em vez de nos estimular a nos comunicarmos através dela. E o
elemento que faz toda a diferença nessa equação é o poder.
Referências
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (2009). Cultura com Aspas. Capítulo 19 – “ ‘Cultura’ e
Cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais”. São Paulo: Cosac Naify, 311-373.

KUPER, Adam (2002). Cultura: A Visão dos Antropólogos. Capítulo 07 – “Cultura,


Diferença, Identidade”. Bauru, SP: EDUSC.

ORTNER, Sherry (2011). "Teoria na antropologia desde os anos 60." Mana 17: 419-466.

ROCHA, Everardo; FRID, Marina (Orgs.). (2015). Os antropólogos: clássicos das ciências
sociais. Rio de Janeiro: Editora PUC; Petrópolis: Vozes.

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