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QUAL NEGRITUDE FREQUENTA O AFROPUNK?

Contribuições das epistemologias pós e decoloniais para o entendimento de práticas


discursivas como ferramentas de marginalidade

Ihan Pedro Silva de Souza1

Introdução, apresentação e resumo


O presente texto integra o método de avaliação da disciplina “Epistemologia das
Ciências Sociais”, do Curso de Ciências Sociais da UFBA; busco fazer uso das formas de
produção de conhecimento – epistemologias – oriundas das correntes pós e decoloniais para
analisar o fenômeno dos produtos culturais ofertados de/para pessoas negras dentro da lógica
de afroempreendedorismo; bem como as práticas discursivas que o envolvem e seus efeitos de
marginalidade. Com esse trabalho não pretendo, a priori, seguir uma linha rígida de escrita
científica; meu intuito é organizar minimamente numa cadeia lógica as reflexões que pude fazer
sobre um tema que me é caro2, me apoiando em conceitos presentes no pensamento de autores
discutidos na disciplina, como Stuart Hall. Me aterei também aos conceitos produzidos pelas
epistemologias decoloniais, sobretudo o de colonialidade do poder – herança de Aníbal
Quijano, que será devidamente citado adiante nesse texto.

O texto será organizado a partir da sequência lógica que acredito conduzir à reflexão
maior: uma apresentação dos conceitos teóricos a serem trabalhados, seguida da
contextualização acerca do que identifico como afroempreendedorismo e do evento chave de
análise – o Festival Afropunk Bahia. Dessa forma, tento relacionar onde podem ser identificados
os elementos trabalhados por Hall dentro da esfera delimitada por mim. O fio condutor da
reflexão será, do princípio ao fim, a crítica à homogeneização das múltiplas expressões de
negritudes em um bloco rígido e previamente localizado: seja pelo evento colonial escravocrata
por excelência, seja pelos resquícios desse evento (a colonialidade) presentes nas práticas
discursivas atuais, incluindo as reproduzidas mesmo nos espaços ofertados como opostos à
lógica de colonialidade.

1
Ihan Pedro é graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia, e bolsista pesquisador do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) pela mesma instituição, atuando no subprojeto
Interdisciplinar de História e Ciências Sociais.
2
Não quero afirmar que o que escrevo tem pouca importância ou preocupação acadêmica, mas apontar que por
não se tratar de um artigo a ser publicado ou tese a ser defendida, serei menos rigoroso quanto às exigências que
esses processos pediriam. Pretendo, futuramente, revisitar esse trabalho com mais calma para então adaptá-lo.
Da cultura, linguagem, representação e discurso
Os esforços empregados pelas Ciências Humanas e Sociais a fim de entender a
“Cultura” são evidentes e múltiplos ao longo da história de construção dessas mesmas ciências.
De fato, o termo cultura hoje abrange uma gama de significados tamanha que aponta para a
necessidade de delimitação quando se propõe falar a respeito. É exatamente o que Stuart Hall
aponta já na introdução do livro que leva o termo em seu título: Cultura e Representação
(2016)3. Hall traça uma pequena trajetória do conceito de cultura, partindo de como a
tradicionalidade das ciências já o definiram: a distinção entre o erudito e o popular, ou seja,
cultura como o ápice da produção intelectual e artística de determinada sociedade/época em
contraponto à cultura produzida pelas “pessoas comuns” e pertencente às massas. Essa
dicotomia imperou por muito tempo como como a forma clássica de se pensar cultura e – como
toda dicotomia – sempre foi envolta em uma forte valoração moral (alta cultura = bom; popular
= degradado).
Entretanto, vai dizer Hall (2016), há algumas décadas a palavra “cultura” foi revestida
de outros entendimentos, sobretudo nas ciências sociais. Entra a noção de cultura como tudo
que seja característico à [o modo de] vida de povos, comunidades, nações ou grupos sociais.
Hall aponta que a esse entendimento passou a se referir como definição antropológica. Aponta,
também, que uma ênfase sociológica se assemelha à definição antropológica, embora difira
quando aborda “valores compartilhados” de grupos ou sociedades. Todos esses conceitos
aparecem durante o livro. Entretanto, o autor (como apontei ser necessário) delimita o que ele
próprio vai chamar de cultura. Hall está preocupado em explorar a relação entre cultura e
representação; para tanto, se dedica em pormenorizar o que é representação, o que é linguagem,
qual a relação entre ambos. De fato, um enfoque mais específico, que surge a partir da chamada
“virada cultural” das ciências humanas, em que cultura está intimamente ligada ao sentido das
coisas. Assim, cultura não é tanto

[...] um conjunto de coisas — romances e pinturas ou programas de TV e histórias em


quadrinhos —, mas sim um conjunto de práticas4. Basicamente, a cultura diz
respeito à produção e ao intercâmbio de sentidos — o “compartilhamento de
significados” — entre os membros de um grupo ou sociedade. Afirmar que dois
indivíduos pertencem à mesma cultura equivale a dizer que eles interpretam o mundo
de maneira semelhante e podem expressar seus pensamentos e sentimentos de forma
que um compreenda o outro. Assim, a cultura depende de que seus participantes
interpretem o que acontece ao seu redor e “deem sentido” às coisas de forma
semelhante. (HALL, 2016, p.20)

3
Embora não tenha sido a bibliografia principal e indicada, esse livro reflete em muito o pensamento do autor que
representa as epistemologias pós-coloniais.
4
Todos os grifos em negrito são meus e denotam ênfase aos pontos que julgo importantes para o texto.
Com a definição supracitada, Hall oferece uma possibilidade de grande importância à
presente escrita. É que entender cultura como compartilhamento de significados implica em
afastar a lógica de homogeneidade de compreensão acerca dos fenômenos sociais.
Compartilhamento pressupõe pluralidade, e pluralidade pressupõe diferença; a questão, então,
é: o que se faz com e a partir dessa diferença? É sabido que por muito tempo a lógica de
interpretação dominante colocou o diferente como atípico, extraordinário, destoante,
patológico, selvagem; é então essa virada de compreender o compartilhamento que permite
entender a diferença como parte fundamental e ontológica do que chamamos de cultura. Dessa
forma, podemos pensar como [o ato de] compartilhar múltiplos significados é o que fazemos a
todo instante quando nomeamos as coisas; como nos referimos a determinado objeto-fenômeno,
quais termos utilizamos, quais imagens criamos, quais valores integramos.

Um exemplo claro (utilizado por Hall, a saber) é a diferença entre o que chamamos de
“casa” – construto de tijolos e massa – e o que chamamos de “lar” – o que sentimos, pensamos
e dizemos sobre esse construto. Significados essencialmente diferentes, mas transpassados pela
mesma lógica de representação dentro do sistema cultural. Agora, há uma latente confusão no
entendimento da relação entre pluralidade de significados e unidade de representação. Explico:
apesar de todos os conceitos criados em uma determinada cultura passarem pela mesma lógica
de representação, os significados em torno desses conceitos são diversos e, por tanto, carecem
do diálogo acessado pela linguagem dessa mesma cultura. Uma flor, por exemplo, é definida
pela lógica de representação (recebe o nome de flor) e pode ganhar múltiplos significados a
partir da linguagem cultural em que está inserida – sendo ao mesmo tempo o mecanismo natural
responsável pela reprodução de vegetais e um presente carregado de significado valorativo
afetivo entre pessoas.

Seja definindo o que é casa ou o que é flor, a linguagem é uma prática significante
(HALL, 2016) na medida em que permite acesso ao sistema de compartilhamento de
significados em determinada cultura. É significante pois não apenas comunica como cria o
sentido das coisas; é significante porque está atrelada à simbologia. É a partir da linguagem que
criamos noções de conhecimento, identidade e pertencimento. Só torcemos para um
determinado grupo de atletas num campeonato esportivo porque temos em primeiro lugar
conhecimento do que se trata; segundo porque criamos identidade específica (seleção brasileira
disputando a Copa do Mundo) e por fim nos sentimos pertencentes à essa identidade (brasileiros
usando verde e amarelo, em busca da sexta estrela). Tudo isso se dá a partir dos elementos da
linguagem: as cores, as palavras, as imagens dão significado ao que consideramos Brasil[eiros].
A compreensão da linguagem como ferramenta de representação se deve à virada
cultural experimentada pelas ciências humanas sociais, que passaram a caracterizar ambas
representação e cultura como processos constitutivos dos sujeitos sociais 5; tais processos
produzem o sentido ao invés de apenas identifica-lo. Agora, seria ingenuidade admitir que a
produção desses sentidos corresponderá sempre a uma ótica desvinculada de valoração e
domínio. Não nos enganemos: a linguagem é, inevitavelmente, uma ferramenta poderosa de
dominação6 e colonialidade. Em sociedades onde exista hierarquização de grupos – ou classes
–, aí haverá utilização da linguagem como ferramenta de opressão partindo dos dominantes
para dominados. Nesse âmbito, Hall (2016) nos aponta para o movimento feito pelas ciências
humanas e sociais de deslocar a ótica da linguagem (como sistema de códigos significantes)
para o discurso, que desempenha um papel mais amplo. Aqui a descrição é tão bem colocada
que faço uso ipsis litteris:

Discursos são maneiras de se referir a um determinado tópico da prática ou sobre


ele construir conhecimento: um conjunto (ou constituição) de ideias, imagens e
práticas que suscitam variedades no falar, formas de conhecimento e condutas
relacionadas a um tema particular, atividade social ou lugar institucional na sociedade.
Essas formações discursivas, como assim são conhecidas, definem o que é ou não
adequado em nosso enunciado sobre um determinado tema ou área de atividade social,
bem como em nossas práticas associadas a tal área ou tema. As formações discursivas
definem ainda que tipo de conhecimento é considerado útil, relevante e “verdadeiro”
em seu contexto; definem que gênero de indivíduos ou “sujeitos” personificam essas
características. Assim, “discursiva” se tornou o termo geral utilizado para fazer
referência a qualquer abordagem em que o sentido, a representação e a cultura são
elementos considerados constitutivos. (HALL, 2016, p. 26)

A abordagem discursiva se preocupa, dessa forma, com os efeitos da linguagem e da


representação sobre os sujeitos e grupos em sua materialidade. É, em verdade, a Michel
Foucault a quem Hall (e eu, deste ponto em diante) se refere e concorda ao falar sobre discurso.
Ele delimita o conceito de discurso abrangendo linguagem (códigos) e prática, entendendo que
o discurso constrói o assunto. Considerando ele que o discurso produz o sentido pela linguagem,
e que todas as práticas sociais implicam sentido, logo toas as práticas são discursivas. A questão
que nos interessa é a seguinte: segundo nossos autores, o discurso não apenas rege as formas
de falar, agir, produzir sobre determinado assunto que ele mesmo determina como aceitável,
como inevitavelmente exclui tudo que não se encaixa nessa determinação. Ora, dizer que – em
termos de aceitável, lógico, coeso – a Seleção Brasileira é a maior campeã de Copas do Mundo
e, desse modo, a melhor seleção é também dizer que [grosso modo] as demais não a são.
Identificaremos essa lógica em discursos de menor evidência objetiva.

5
Trata-se do Construtivismo
6
Domínio como posse e controle do poder
O que Foucault nos alerta quando se refere aos discursos é que nunca consiste em um
único pronunciamento, fala ou fonte, mas uma variedade de textos, falas e campos. Retorna
aqui a lógica que apontei anteriormente entre pluralidade versus unidade; ou, ainda, pluralidade
versus homogeneidade. Uma gama de elementos discursivos contribui para a homogeneização
de determinado conceito-categoria e, no processo, exclui a pluralidade existente mesmo na
disputa em torno dos conceitos. Aos exemplos: Foucault escreve (à exaustão) sobre conceitos-
categorias de loucura-louco, histeria-histérica e homossexualidade-homossexual. É apenas, diz
ele, quando se cria os conceitos (a partir das práticas discursivas) que surgem as categorias para
os sujeitos sociais. E, continua, essas práticas discursivas estão sempre vinculadas ao contexto
histórico e à forma como o poder impera em determinado tempo e espaço

A este ponto, cabe retomar à consciência do leitor o eixo que move esse texto: as práticas
discursivas [do afroempreendedorismo] como ferramentas de marginalidade. A especificidade
do tema será desenvolvida adiante, mas até então nossa reflexão tem dado conta de entender
como exatamente operam as práticas discursivas. A conceituação de poder em Foucault está
atrelada ao conhecimento: conhecimento é poder pois, a partir do discurso, torna-se verdade
uma vez que tem efeitos reais ao ser aplicado na materialidade. Mas o que vem, de fato, a ser
poder? Como esse conceito nos ajuda a pensar ferramentas de marginalidade? Para responder
essas perguntas retorno à pluralidade: o poder não emana de um único polo, mas circula. Diz
Foucault, a partir de Hall:

Nós tendemos a pensar que o poder sempre irradia em uma única direção — do topo
para baixo — e que vem de uma fonte específica — o reino soberano, o Estado, a
classe dominante e assim por diante. Para nosso autor, no entanto, o poder não
“funciona na forma de uma cadeia; ele circula. Ele nunca é monopolizado por um
centro. Ele é implantado e exercido por uma organização como uma rede” (Foucault,
1980: 98). Isso sugere que nós todos somos, em algum grau, pegos em sua circulação
— opressores e oprimidos. O poder não irradia de cima para baixo, nem de uma única
fonte ou lugar. Relações de poder permeiam todos os níveis da existência social e
podem, portanto, ser encontradas operando em todos os campos da vida social — nas
esferas privadas da família e da sexualidade, tanto quanto nas esferas públicas da
política, da economia e das leis. (HALL, 2016, p. 90)

Eis aí a nossa chave de interpretação: o poder circula e, salvas as proporções, todos nós
somos em alguma medida opressores e oprimidos. O poder nunca é apenas negativo, mas
também produtivo (FOUCAULT, 1980) na medida em que penetra todo o corpo social, criando
uma rede discursiva complexa. O poder se reveste de plural em seus efeitos, quando na verdade
o é apenas nos métodos e ferramentas. Efetivamente, o poder é homogeneizante; capilar, sem
dúvida; mas mesmo os milhares de vasos capilares levam a um único sistema vascular.
Agora, com o perdão de Foucault – que jamais se denominou marxista, pretendo trazer
as proximidades da sua “microfísica do poder” a conceitos notadamente inspirados pela teoria
de Marx. É fato que Foucault busca se distanciar da lógica do materialismo histórico e dialético,
definidor do conceito de classes sociais e dominação; o faz com êxito se tratando da teoria
marxista clássica. A meu ver falha, entretanto, quando tratamos da crítica marxista; é o caso do
conceito de hegemonia em Gramsci, que define o poder como disputado por grupos inclusive
nas esferas discursivas e culturais. Esse exemplo é citado por Hall como uma quase
proximidade entre Gramsci e Foucault. Se quisermos ir mais a fundo – e o queremos – é possível
relacionar o pensamento de um outro autor, fruto e fundador da corrente epistemológica
conhecida como decolonial7: o peruano Aníbal Quijano. É de sua autoria o conceito de
colonialidade do poder, onde vai demarcar os resquícios do processo colonial na forma como
o poder se estrutura e organiza em sociedades marcadas por esse processo violento. Quijano
oferece aos seus colegas maneiras de pensar também a colonialidade do saber e do ser
(BALESTRIN, 2013), demarcando exatamente a lógica colonial na circulação e produção de
conhecimentos e identidades outras. Todos esses conceitos têm em comum as práticas
discursivas (proximidade com Foucault) caracterizadas pela marcação colonial, ou seja,
produzem a exploração, violência e marginalidade próprios do colonialismo.

A interpretação da existência da colonialidade não é de forma alguma alheia à discussão


desenvolvida até aqui: o próprio Stuart Hall está inserido em construção de epistemologias pós-
coloniais8 (HALL,2005) que já enxergavam a necessidade de deslocar os discursos produzidos
pela colonialidade/hegemonia. O que proponho aqui, e tentarei fazer com todo o cuidado, é
identificar as marcas de marginalidade – amparadas pelos discursos – promovidas pela
conceituação do afroempreendedorismo. É entender, pensando a microfísica proposta por
Foucault (capilaridade, circularidade, pluralidade), como a colonialidade alcança espaços que
se revestem de um discurso (linguagem + ação) fora da lógica excludente da hegemonia
(branquitude); nesse processo de entendimento, é imprescindível lembrar que o fruto mais bem
feito da colonialidade é o sistema de produção capitalista que, em espaços marcados pela
colonização, se utiliza das mesmas ferramentas sofisticadas e violentíssimas de exploração. A
saber: a homogeneização de múltiplos corpos, desconfiguração da individualidade, exclusão de
identidades, retirada de autonomia e apagamento de significados outros. Tudo isso é prática
colonial. E tudo isso é prática discursiva.

7
Brilhantemente circunscrita por Luciana Balestrin em “América Latina e o giro decolonial” (2013)
8
Hall é autor de “Da diáspora: identidades e mediações culturais” (2005)
Da negritude, afroempreendedorismo e festival afropunk
Assim como “cultura”, o termo “negritude” está envolto em disputas por significados já
há algum tempo. De fato, a contemporaneidade disseminou o uso da palavra negritude no senso
comum, sobretudo a partir das redes de comunicação de consumo imediato (Twitter, Instagram,
TikTok), a ponto de ser difícil mensurar com precisão o que significa de fato negritude. Nesse
âmbito, Petrônio Domingues (2009) nos oferece um artigo9 que permite reconstruir a trajetória
histórica do movimento e do termo negritude. Serei breve quanto a essa genealogia,
considerando que Domingues a fez com maestria. O autor inicia o artigo explicitando, como
apontado, que o termo negritude recebeu ao longo do tempo diversos usos e sentidos, mas que
sua origem remonta de um movimento intelecto-cultural de valorização das origens africanas
das populações negras ao redor do mundo. Esse movimento teria nascido fora do continente
africano (DOMINGUES, 2009) partindo principalmente do chamado Renascimento Negro10
nos anos 1920, em Harlem nos EUA – uma forte cadeia de manifestações culturais da população
preta e periférica daquele bairro, reclamando o orgulho e altivez que carregavam. Para além dos
Estados Unidos, Domingues continua:

Já nas ilhas do Caribe, e em particular em Cuba, foi articulado o movimento


denominado negrismo cubano, tendo como principal expoente o poeta negro Nicolás
Guillén. No Haiti, Jean Price-Mars fomentou em conjunto com outros intelectuais, o
movimento indigenista de reabilitação da herança cultural africana, valorizando as
línguas crioulas e a religião vodu [...]. Em Paris, no período entre-guerras, um grupo
de estudantes negros oriundos dos países colonizados (Antilhas e África) iniciou um
processo de mobilização cultural. [...] Esse movimento literário a favor da
personalidade negra e de denúncia contundente da dominação cultural e da opressão
do capitalismo colonialista marcou a fundação da ideologia da negritude no cenário
mundial. (DOMINGUES, 2009, p. 195-196)

Tendo descrito o percurso histórico do movimento – dos EUA às Antilhas e França –,


Domingues (2009) aponta Aimé Césaire como cunhador do termo negritude. É que, na França,
o termo nègre era atribuído pejorativamente ao indivíduo negro, em contraponto ao termo noir
Césaire entende o que nós vimos em Hall: a linguagem é uma ferramenta significante poderosa;
e, por isso, defende o uso subversivo do termo como sinal de orgulho e valorização. Nos
interessa aqui a preocupação com o deslocamento cultural e político de conceitos a partir da
linguagem (códigos, palavras, arte e ação).

9
DOMINGUES, Petrônio José. Movimento da negritude: uma breve reconstrução histórica. 2009
10
Sobre o tema, recomendo fortemente os artigos de J. G. do Nascimento Nganga: “Harlem Renaissance” (2021);
e de B. S. da Conceição e L. C. Ferreira dos Santos: “A ancestralidade e a Ressignificação da Arte frente ao
Renascimento do Harlem” (2021)
Para além do peso sobre a subjetividade dos indivíduos negros, servindo como
ferramenta de (re)construção da identidade pessoal e coletiva, negritude passa a ganhar um peso
político cada vez maior ao se inserir do campo da militância. A própria metodologia do
movimento, personificada em seus expoentes, bebia da luta marxista (DOMINGUES, 2009); o
movimento que outrora restringia-se ao campo intelectual – e pequeno-burguês, como veremos
– passa a orientar as lutas pela emancipação dos países africanos e afro-diaspóricos. Nessa
escalada, negritude passa a abarcar uma gama de significados ainda maior, a partir do alcance
dos movimentos negros organizados ao redor do globo. No Brasil, por exemplo, apesar da
ideologia da negritude remontar aos feitos de Luís Gama11 no século XIX, foi apenas nos anos
1940 que a intelectualidade da negritude francesa aparece; as graças (DOMINGUES, 2009) se
dão ao Teatro Experimental do Negro (TEN), movimento de valorização do negro a partir artes
– sobretudo a dramatúrgica – encabeçado por Abdias do Nascimento12. Aponto também a
importância da produção de Guerreiro Ramos para o entendimento da construção identitária do
sujeito negro a partir da autoestima – embasada, novamente, em práticas discursivas – e de
um “personalismo negro13”.

Onde, afinal, e de que forma se encaixa essa discussão na proposta de análise desse
texto? Justamente no que se refere aos efeitos das práticas discursivas no campo da
materialidade. Não estavam os intelectuais da negritude preocupados, fundamentalmente, com
os obstáculos concretos impostos pelo discurso da branquitude aos corpos pretos? E, ainda, não
os afetava a impossibilidade de, mesmo assimilando a linguagem da branquitude – língua,
roupas, cabelo, costumes –, acessar os espaços destinados à essa branquitude14? É evidente que
sim e, portanto, daí vem a sacada de utilizar da lógica discursiva para responder a essas
opressões15. Linguagem e discurso, no contexto do então movimento intelecto-político da
negritude, assumem um papel subversivo. Capilar, nos termos da microfísica de Foucault; pós-
colonial se pensarmos Stuart Hall; decolonial, nas palavras de Aníbal Quijano. Porém, em
algum momento perde-se o caráter subversivo do movimento e, a meu ver, do próprio termo.
Identifico essa perda como fruto do processo de surgimento do “afroempreendedorismo”.

11
Luís Gama (1830-1882), líder abolicionista, advogado e poeta negro é considerado o precursor da ideologia da
negritude no Brasil. (DOMINGUES, 2009)
12
Sobre o TEN e seu embasamento ideológico-político, ver as obras do próprio Abdias: “Teatro experimental do
negro: trajetória e reflexões” (2004) e “O negro revoltado” (1964).
13
Conceito brilhantemente delimitado por Muryatan Barbosa (2006)
14
Ideia presente no pensamento de Fanon em “Pele Negra, Máscaras Brancas” (1968) e de Kabengele Munanga
em “Negritude: usos e sentidos” (1986[2019])
15
Saudação ao “pretuguês” de Lélia Gonzalez; “Racismo e Sexismo na cultura brasileira” (1984) nos dá uma boa
visão do tema.
Contrariamente à negritude, “afroempreendorismo” carece de conceituação clara. Em
verdade, o termo começa a circular muito recentemente tanto no meio acadêmico quanto no
senso comum. Em um esforço para encontrar produção acadêmica acerca do conceito do tema,
referencio o recente – e coeso – trabalho de dois pesquisadores brasileiros da área do Direito
Empresarial16, Daniela Amartine e Marcos Queiroz, que sintetizam o que se há de produzido
acerca do tema e ajustam à luz de entrevistas com afroempreendedores no Brasil e na Colômbia.
Apontam:

Portanto, dois conceitos de afroempreendedorismo emergem no horizonte. O


primeiro, geralmente elaborado por organizações sociais negras voltadas para a
inclusão social, afirma que afroempreendedor é um empresário que se autodeclara
negro e que possui um negócio voltado à comercialização de produtos e/ou serviços
relacionados à cultura negra, seja africana, seja latina: o afroempreendedorismo. O
segundo, normalmente expresso em legislações, políticas públicas e pesquisas do
Estado, descreve o afroempreendedor como uma pessoa que se autodeclara negra e
comercializa quaisquer tipos de produtos e serviços, ou ainda uma pessoa que tenha
seu público consumerista exclusivamente negro (TEIXEIRA, 2017; DISTRITO
FEDERAL, 2015; SEBRAE, 2017apud AMARTINE; QUEIROZ; 2022, p.9)

Dessa forma, tomo o afroempreendedorismo como – grosso modo – o ato de empreender


revestido de práticas discursivas da negritude. Empreender, por sua vez, é a ponta mais
sofisticada da lógica de exploração do capitalismo; é imbuir na classe dominada a noção de que
possui não apenas os meios básicos de produção, como é capaz de superar esse básico e ir atrás
de mais: demandar força de vontade, criatividade e autonomia para gerar seu próprio valor. Ora,
se nem mesmo o trabalhador médio branco pode verdadeiramente chamar a si mesmo de
possuidor de qualquer meio, que poderá o negro reivindicar para si? Se até sua identidade,
subjetividade e cultura são passíveis de resgate e reconstrução, qual meio a negritude tem de
gerar capital e empreender? Respondo: vendendo essa mesma identidade, subjetividade e
cultura; vendendo, além da sua força de trabalho, seu próprio corpo. E corpo aqui compreendido
como o completo da sua existência: intelectual, material, cultural. Não se pode fugir da lógica
colonial capitalista apenas revestindo as suas ferramentas de um novo discurso; o modo de
produção capitalista cria uma competitividade violenta impulsionada pelo consumo, e tudo isso
se potencializa com o racismo, porque raça se torna marcador tanto de quem compra e quem
vende, quanto um marcador de quem consome e quem é consumido. O caráter subversivo do
discurso da negritude se perde quando assimila a lógica homogeneizadora do capital colonial.

16
Daniela Amartine e Marcos Queiroz oferecem uma síntese do que há de conceituação teórica e legal acerca do
afroempreendedorismo no artigo “Discutindo o afroempreendedorismo: reflexões sobre o conceito a partir dos
casos brasileiro e colombiano” (2022). Apesar do enfoque na área do Direito, considero o artigo muito bem
construído e de grande valia ao escopo do presente trabalho.
É típico da colonialidade homogeneizar culturas dissidentes e suas manifestações; e o
faz quando, concomitantemente, afirma-se enquanto verdade e como norma. Ora, se a norma
colonial é branca ocidental, o desvio, a dissidência, o contrário é o “negro” africano
colonizado17. Acerta em seu objetivo o colonialismo ao tratar todos os povos advindos de África
como um bloco homogêneo “negro”: marginaliza, destrói, assimila centenas de culturas
distintas. Peca o movimento da negritude ao cair na lógica de mercado e se esforçar em vender,
agora como afroempreendedor, produtos e eventos para pessoas pretas – em sinônimo: para a
negritude. Agora, não se deve ter a falsa impressão de que equiparo a violência colonial ao
movimento de emancipação identitário da negritude. O que pretendo é – pensando em como a
colonialidade impera nas relações de poder (QUIJANO,2015) e, ainda, como esse poder circula
a partir do discurso de forma circular e capilarizada (FOUCAULT,1980) – apontar para o perigo
dos discursos em torno de produtos/eventos pautados no afroempreendedorismo, na medida em
que não rompe com a lógica do capitalismo colonial.

A fim de tornar mais lúcida essa linha argumentativa, apresento, agora, um exemplo
concreto de evento produzido “por e para” pessoas pretas, “pela e para” a negritude: o Festival
Afropunk. A produção teórica acerca do Afropunk gira em torno de uma fonte comum: o filme
documentário, de mesmo título, do estadunidense James Spooner (2003). De fato, uma análise
muito precisa do movimento Afropunk – que precede o festival – foi feita por Ramirez-
Sanchez18. Analisando o documentário e entrevistando seu autor sob a ótica da chamada “teoria
co-cultural19”, Sanchez discorre sobre como o movimento punk, que nasce se contrapondo à
cultura de grupos dominantes, carrega em si mesmo traços de opressão utilizados contra outros
grupos co-culturais imersos nessa contracultura. Spooner, autor do documentário referenciado,
foi um punk afro-americano que registrou de forma amadora várias entrevistas com outros
punks afro-americanos, sobre temas que variavam dentro da temática racial no movimento punk
(RAMIREZ-SANCHEZ, 2008, p. 95).

17
Formulação de caráter retórico pedagógico. Entendo a profundidade das relações étnico-raciais de colonização,
que vão para além dos povos africanos e abarcam também povos indígenas das américas e povos asiáticos. Chamo
atenção, especificamente, para a categoria “negro” como sinônimo homogeneizador de “africano”.
18
A busca por artigos acadêmicos em língua portuguesa sobre o tema Afropunk não resultou em nenhum que
focasse em conceituar ou mesmo traçar a trajetória do festival. Me baseio aqui num artigo do professor da
Faculdade e Comunicação e Informação da Universidade de Poro Rico, Rubén Ramírez-Sánchez:
“Marginalization from within: Expanding co-cultural theory through the experience of the Afro Punk” (2008). Em
apoio, um artigo jornalístico do produtor cultural Gabriel Moreno, para o site Projeto Pulso (2020).
19
Do que extraí da leitura do artigo de Sanchez, a teoria co-cultural se aproxima em muito dos estudos subalternos
e de decoloniais, com a diferença de enfoque do colonialismo para uma segregação mais abstrata. Baseia-se, de
fato, nas metodologias feministas de Hill Collins (Teoria do ponto de Vista) e Ardener (Teoria dos Grupos
Silenciados). Está muito focado nas formas comunicativas; em nossos termos: nos discursos.
A análise de Sanchez se aproxima em muito da minha própria, fundamentada nos
autores que apresentei até então. Antes mesmo do movimento Afropunk se tornar o Festival
Afropunk, já era possível identificar as contradições discursivas entre cultura dominante e
dominada. Nesse caso, ambas as manifestações culturais são dominadas pela lógica hegemônica
capitalista, mas ainda assim passíveis de reproduzir ferramentas de marginalidade. É que o
poder, novamente, não é exclusivo dos grupos dominantes (FOUCAULT, 1980). Todo
indivíduo reproduz práticas discursivas capazes de afetar a materialidade; a que difere é o peso
conferido a esse discurso, a depender de qual esfera de poder atravesse esse indivíduo: é um
homem branco cis-hétero burguês ou uma travesti negra da periferia de Salvador? Diversos são
os arquétipos possíveis, e plurais são as relações estabelecidas entre eles. O punker branco dos
EUA estava em posição de reproduzir marginalidade aos afropunkers dos bairros periféricos,
como explicita Sanchez:

O status co-cultural decorrente de ser punk é vivenciado por punks brancos e punks
negros, mas os punks negros também experimentam um status co-cultural adicional
dentro das cenas punk em que participam. Além desses níveis de marginalização, os
punks negros enfrentam rejeição de suas comunidades afro-americanas também. [...]
Esse dilema de não ter um lugar é o que muitos Black punks, em seu status co-cultural,
enfrentam nas cenas punk a que pertencem e suas comunidades afro-americanas.
(RAMIREZ-SANCHEZ, 2008, p. 99-100, tradução minha).

Assim como negritude perde peso político ao assimilar as ferramentas do capital, o


movimento afropunk passa pela mesma lógica. É o produtor cultural Gabriel Moreno que, em
uma narrativa leve e clara, nos apresenta a transição do movimento ao Festival. Em artigo
jornalístico ao Projeto Pulso em 2020, Moreno elucida que James Spooner realizou uma
maratona de exibições do documentário de sua autoria pelos EUA e, na ocasião da centésima
exibição, organizou junto a um outro afropunker um mini festival na Academia de Música do
Brooklyn. O festival durou um final de semana e na programação estava a exibição do filme,
shows e apresentações artísticas. Nesse momento, a intenção do festival, segundo Spooner, era
reunir a comunidade afropunk e estreitar as interações culturais da cena. Em que, então, difere
do atual formato do Festival Afropunk? A entrada da lógica do capital. O texto de Moreno
indica que, à medida em que o Festival ganhou espaço no mercado cultural, Afropunk se tornou
uma marca rentável. Por conseguinte, atraiu patrocinadores e grandes nomes da música
mainstream. A quem se interesse por simbologia: o próprio fundador do movimento, James
Spooner, se afastou da liderança do Festival em 2008. Foi nesse período que o Festival
Afropunk começou a delimitar-se nos moldes dos grandes festivais de música da cultura
hegemônica, com o diferencial de ser feito por e voltado à negritude.
Retomemos alguns pontos, a fim de fixação. Compreendemos, a partir dos autores das
ciências humanas e sociais definidos na primeira parte desse texto, que as práticas e
ferramentas discursivas são elementos culturais e impactam diretamente na materialidade,
uma vez que produzem e dão significado às coisas (HALL, 2016). Vimos, também, que o
discurso está intimamente ligado ao poder, uma vez que se faz verdadeiro e tem efeitos de
verdade; que esse poder tanto circula de forma capilar (FOUCAULT, apud HALL, 2016)
quanto é marcado pela lógica de colonialidade (QUIJANO, 2015). Delimitamos o que se
entende por negritude, observando a origem do movimento de emancipação subjetiva, cultural
e política de indivíduos negros a partir dos anos 1920 (DOMINGUES, 2009); observamos como
o conceito de negritude esvazia-se de força política, sobretudo na contemporaneidade, ao
assimilar ferramentas discursivas da colonialidade capitalista. Aproximamos essa interpretação
ao conceito ainda pouco discutido de afroempreendedorismo (AMARTINE; QUEIROZ,
2022), como ferramenta discursiva do modo de produção capitalista que se reveste de múltiplos
elementos afro-diaspóricos e os homogeneíza; em última instância, essa homogeneização
reforça a lógica de exploração do capital colonial, tornando os corpos negros um produto.
Sigamos.

Ao se vender a partir de um diferencial, o Festival Afropunk encarna todos o processo


desenvolvido até aqui. É a síntese do movimento de assimilação da contracultura pela
hegemonia do modo de produção capitalista. Ora, que é, hoje, o Afropunk? Uma rápida busca
pelo termo na internet nos remete à resposta: o maior festival de cultura negra do mundo. É
onde se manifesta a negritude; mas no âmbito do contemporâneo, esvaziada. Para além do valor
político, consumir o Festival Afropunk tornou-se, processualmente, sinônimo de validar um
lugar dentro da negritude. Em outras palavras, afirmar-se negro. A última edição do festival, o
Afropunk Bahia 2022, ocorreu em novembro20 na cidade de Salvador – Bahia; reuniu em dois
dias os maiores artistas negros nacionais, nomes como Liniker, Ludmilla, Emicida. A carga
discursiva em torno do evento foi [e continua sendo] massiva, afinal Salvador esteve desde
sempre imersa em cultura afro-diaspórica, sendo a “Roma Negra21” dos destinos turísticos, das
produções culturais, dos estudos acadêmicos em raça e cultura. Logo, os elementos discursivos
já presentes no Festival Afropunk ganham ainda mais força ao incorporar os discursos
preexistentes e coexistentes dentro e fora da Bahia, e especificamente de Salvador.

20
Outro chamado à simbologia. Novembro é o mês da negritude, em decorrência dos debates e comemorações em
torno do Dia da Consciência Negra, comemorado no dia 20.
21
Salvador é “a cidade mais negra fora da África”.
Consumir Afropunk está para além de consumir os shows ofertados. E está porque o
próprio Festival não se oferece com esse propósito. A questão aqui é exibir, valorizar, exaltar,
manifestar a cultura da negritude. Nessa lógica, o discurso (linguagem + ação) é utilizado sem
dosagem máxima; a linguagem cultural se manifesta nos signos: moda, mídia e estética dão a
régua. É preciso que se faça uso desses elementos a fim de demarcar o pertencimento dentro da
negritude. Cabelos muito bem trançados, armados ou “na régua22”. Roupas originais,
exclusivas, bem pensadas e dentro do Dress Code (que exalte a negritude, quer seja essa
exaltação o que melhor se justificar). Acessórios que remetam às características intrínsecas à
negritude (búzios, joias de ouro ou prata, estampas). O uso dos plurais não é ocasional: espera-
se que seja mais de um look; um para cada dia, ambos muito bem pensados. A cobrança pelo
dress code não é, evidentemente, uma exigência expressa pelo Festival. Dá-se de forma sutil e
muito bem fundamentada: nos discursos. São neles, também, que se sustentam as também sutis
retaliações a quem fuja do que é esperado.

O apelo midiático do Afropunk é mesmo esperado, tendo em vista constante virada


tecnológica dos meios de comunicação de consumo imediato. Redes sociais como Instagram,
TikTok e Twitter configuram-se como ferramentas do exercício – atuando inclusive a partir de
algoritmos de alcance e consumo – da nova tendência do empreendedorismo: influencers; ou o
que outrora foram os blogueiros, e mesmo mais recentemente os youtubers. Os produtores de
conteúdo ocupam hodierno uma posição destaque na lógica de consumo capitalista, se
utilizando dos elementos midiáticos como meio de trabalho. Grandes (ou pequenas, em
específicos casos) marcas fecham parceria – contratam – com influencers que transmitem ao
seu público seguidor um produto a ser consumido23. É evidente que, produzidos pelo mercado
hegemônico, essas ferramentas são pensadas de e para pessoas que se adequem aos padrões
hegemônicos – de e para a branquitude. Também evidente é a ocupação ao mesmo tempo
natural e subversiva dessas ferramentas pela negritude. O movimento da negritude ganhou
muito espaço na contemporaneidade em grande medida pela atuação dos produtores de
conteúdo negros nas redes sociais. Pelo princípio de pluralidade, alguns indivíduos mais
preocupados com emancipação cultural e política, outros em assimilar as ferramentas do capital.

22
Expressão popular da periferia para cortes de cabelo feitos com máquina de barbear; a intenção é valorizar os
“disfarces” e desenhos feitos no cabelo crespo raspado parcial ou totalmente.
23
Daí o termo influencers. Eles influenciam o consumo de determinado produto/serviço.
Estar no Festival Afropunk é, nesse sentido, uma forma de alimentar as redes com o
conteúdo que a negritude se dispõe a produzir. É, ao mesmo tempo, afirmar a própria negritude
e influenciar outras pessoas a se afirmarem também: um movimento afroempreendedor, na
medida que essas pessoas se tornam produtos consumíveis, para pessoas que tanto consomem
quanto querem ser consumíveis. O quão mercadológico esse pensamento soa? Muito, eu diria.
É interessante notar que um dos patrocinadores oficiais do Afropunk Bahia 2022 foi justamente
a Meta – empresa multimilionária do ramo de comunicação e tecnologia capitaneada por Mark
Zuckerberg e detentora das principais redes de comunicação do mundo: Facebook, Instagram
e WhatsApp. Os discursos, como assinalo, reproduzem a cobrança pelo consumo; assinalam
qual o dress code do evento; retaliam quem não segue – seja retirando engajamento das redes,
seja desfazendo parcerias, seja colocando em xeque o pertencimento na negritude. Tudo isso, é
claro, para aqueles que conseguem acessar.

E quanto aos que sequer consomem o Afropunk? Bem, há diferenciações, em meu


entendimento; embora haja uma constante: práticas discursivas atravessam todos.
Naturalmente, tratando-se de um festival pautado em lógica de mercado, há a demanda de
cobrança de ingressos; os preços, segundo informações do site oficial, variavam entre R$90,00
e R$765,00 considerando-se os dois dias de Festival. Passado o entendimento de que trata-se
de um festival de grande porte, ainda resta a noção de que grande parte da população negra no
Brasil também é a população de menor renda. Soma-se a isso as despesas esperadas para
manutenção do dress code; o consumo de produtos (alimentação e bebidas), transporte e
locomoção. Todos esses são elementos materiais que podem ser obstáculos para o consumo.

Ademais, há o discurso de necessidade de vivenciar o Afropunk como afirmação de


pertencimento. Quem não consegue acessar, por inviabilidade total de quitar todos esses
elementos, não pertence à negritude? Se a medida de negritude é acessar com black excellence
as exigências do discurso em torno do Afropunk, menos negros são os indivíduos que não o
fazem? Em sucinta busca-pesquisa24 realizada por mim, nas plataformas virtuais de consumo
imediato (Instagram, Twitter), acerca do [não] consumo do Afropunk, identifiquei os pontos
colocados aqui como fatores. A justificativa principal foi a falta de dinheiro para quitar não
apenas os ingressos, mas as roupas e penteados. Poucos foram os que não contabilizaram roupa
e cabelo no orçamento necessário para consumo. Entretanto, mesmo entre estes últimos, é
possível identificar a noção de que existe uma “pressão” por “não ir básico” e “sustentar o

24
Não foi utilizada metodologia rigorosa e padronizada de pesquisa, deu-se de forma espontânea e voluntariada.
Apesar disso, manterei o sigilo quanto às identidades dos entrevistados
look” – termos utilizados pelos entrevistados, e que permeia a linguagem em torno das
discussões sobre o evento. Nas palavras de um deles:

“as neigronas vão com sede de julgar, tlgd? se eu for com meu lookinho da shein
segunda eu não sou mais negraaa [...]. mas falando sério tem amg meu que comprou
o ingresso e não vai pq não tem ROUPA vei em que ponto a gente chegou ne”

Apesar das marcas de informalidade – muito pertinentes para pensar inclusive as


capilaridades do discurso – a ideia geral é nítida: há um receio, resguardadas as proporções, de
que o discurso seja utilizado para retirar a negritude de quem não se adeque. Me parece,
entretanto, que o contrário se efetiva: a negritude, enquanto movimento, desde o princípio lida
com a retirada de identidades. É, aliás, o lugar de marginalidade que há muito se impõe aos
corpos negros. A marcação de marginalidade é fruto da colonialidade capitalista oriunda da
branquitude: ela cria a lógica de centro e periferia, dominador e dominado; dicotomias
homogeneizantes. E essas marcações aparecem capilarmente mesmo nos discursos que outrora
surgem contrários à colonialidade. Práticas discursivas, num último – e, espero, desnecessário
– esforço de elucidação, são as palavras, as falas, os textos, os adjetivos, as imagens, os reels,
tiktoks e threads; são ainda os olhares, os risos, os afastamentos e aproximações, as validações
e negações. Todas essas [práticas] têm, em verdade, um grande potencial tanto negativo quanto
produtivo (FOUCAULT, apud HALL, 2016).

Considerações finais
Tudo que o capital colonial toca, é transfigurado em produto. Assim o fez com a
negritude; assim o fez com o afropunk. E, se o fez, é porque compete à colonialidade capitalizar.
Mas, lembremos, não compete ao subversivo capitalizar; compete subverter. À negritude
compete construir o que branquitude apagou. O erro, me parece, está na forma que se tem feito.
Não se constrói uma parede sólida sobre alicerce irregular. É impossível fugir da colonialidade
utilizando as práticas discursivas da mesma maneira que ela sempre o fez: homogeneizando.
A branquitude colonial capitalista define a si mesma como geral e normativo, e categoriza tudo
que não é a partir da mesma visão única de dissidência. É aqui que identifico a contribuição
das epistemologias pós e decoloniais: não há apenas uma expressão de negritude, seja em
África, seja nos países afro-diaspóricos. Que tomemos as devidas seguranças no âmbito do
aparato institucional ao definir negritude a fim assegurar direitos básicos. Entretanto, no que
compete à construção identitária emancipatória, pensemos quais as outras negritudes – plurais,
como são os significados – possíveis. Negritudes, por exemplo, que possam, mas não
necessitem frequentar o Afropunk pra se reconhecerem negras. É um convite de prazo contínuo.
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