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br/his-gs0009-

fev-2022-grad-ead/)

1. Introdução
Nesta disciplina, trataremos de aspectos teóricos e metodológicos da História.
Isto é, buscaremos compreender a história da ciência da História a partir de
questões epistemológicas (teoria do conhecimento) e hermenêuticas (interpre-
tação e compreensão). Ou seja, nos deteremos à historiogra�a, que, de forma
simplista, pode ser entendida com a escrita da história.

Dessa forma, teremos duas perspectivas para serem tratadas: a primeira delas
é a de compreender como, ao longo do tempo, a História foi pensada, de�nida
e escrita. Nessa direção, estudaremos a História da História, ou, para empre-
garmos uma outra expressão, a história da ; já a segunda será a
de compreender neste panorama os conceitos e procedimentos metodológicos
criados ao longo do tempo para a escrita da História.

Enfatizando as relações da história com as demais Ciências Humanas, vere-


mos as produções historiográ�cas da antiguidade, do medievo, do renasci-
mento, do iluminismo e do positivismo, destacando nessas duas últimas pro-
duções a efetivação da História como disciplina na construção de um método
pretendido como cientí�co. Dando continuidade, vamos nos deter nas contri-
buições do materialismo histórico e da criação da “história problema” com a
Escola dos Annales, em suas três gerações. Por �m, abordaremos as correntes
historiográ�cas mais recentes, desde a Micro-História e a História Cultural,
chegando à crise de paradigma da pós-modernidade, entendendo a História
como discurso, prática e representação.

Abordaremos, ainda, as transformações temáticas, metodológicas e a amplia-


ção das fontes de pesquisa em decorrência das diversas propostas historiográ-
�cas ao longo do tempo e, por �m, o que tais debates trouxeram de novo para o
ofício do historiador. Além disso, compreenderemos os contextos históricos
nos quais as diferentes propostas historiográ�cas foram desenvolvidas, res-
pondendo aos tipos e funções de produção.

Em suma, o cerne desta disciplina será analisar as mudanças nos paradigmas


epistemológicos da historiogra�a, que é a forma como o conhecimento históri-
co foi e é produzido em decorrência dos diversos métodos, fontes e contextos
de produção. Assim, a disciplina pretende ampliar sua visão sobre a natureza
do fazer historiográ�co, a �m de torná-lo apto para o exercício pro�ssional, se-
ja como pesquisador seja como professor em sala de aula.

2. Informações da Disciplina
Ementa
A disciplina de discute os processos de mudança nos paradig-
mas epistemológicos da historiogra�a, sendo esses as alterações promovidas
no fazer historiográ�co após a incorporação de novos temas, métodos e lin-
guagens pelos historiadores. Para isso, abordaremos a relação entre a História
e as outras Ciências Humanas, buscando na escrita da História a compreen-
são dos processos que envolvem a produção deste conhecimento na
Antiguidade, na Idade Média e no Renascimento. À vista disso, a análise se-
gue com base na construção historiográ�ca iluminista, positivista e metódica,
além de também apresentar e discutir a historiográ�ca marxista e a produzida
pela Escola dos Annales em suas 3 gerações. Ainda serão feitas análises acer-
ca da crise de paradigmas e produção historiográ�ca no século XXI por meio
das teorias do conhecimento histórico pós-moderno, perpassando a constru-
ção historiográ�ca acerca da História enquanto narrativa, discurso, literatura,
�cção, e representação, bem como as relações estabelecidas com a
e a Nova História Cultural. Por �m, a disciplina busca a compreensão
da construção do discurso historiográ�co através do tempo, a �m de se com-
preender, também, o atual estado da arte.

Objetivos Gerais
• Compreender o conceito de historiogra�a em sua epistemologia.
• Perceber os processos de mudança nos paradigmas epistemológicos da
historiogra�a.
• Localizar e relacionar as diferentes correntes historiográ�cas e suas prin-
cipais características.
• Re�etir sobre a ampliação de temas, métodos e fontes de pesquisa na pro-
dução do saber historiográ�co.
• Perceber as mudanças epistemológicas da História diante de sua relação
com as demais Ciências Humanas e contexto de produção.

Objetivos Especí�cos
• Identi�car a produção historiográ�ca na Antiguidade, na Idade Média e
no Renascimento.
• Compreender a contribuição historiográ�ca marxista e da Escola dos
Annales em suas três gerações para o fazer historiográ�co.
• Caracterizar a Micro-História e a Nova História Cultural em relação à his-
toriogra�a proposta pelos Annales.
• Entender o paradigma pós-moderno, compreendendo a História enquanto
narrativa, discurso, literatura, �cção e representação, bem como as rela-
ções estabelecidas com a Micro-História e a Nova História Cultural.
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Ciclo 1 – Epistemologia da História e Historiogra�a

Leandro Salman Torelli


Reginaldo de Oliveira Pereira
Renata Cardoso Belleboni Rodrigues

Objetivos
• Compreender o conceito de historiogra�a.
• Identi�car os tipos e funções da historiogra�a.
• Reconhecer os diferentes documentos e métodos de pesquisa.
• Perceber a relação da História com as demais ciências humanas.

Conteúdos
• A historiogra�a em seus tipos, funções, métodos e fontes de pesquisa.
• Processos de mudança nos paradigmas epistemológicos da historiogra-
�a.
• A relação entre a História e as demais Ciências Humanas.

Problematização
O que é historiogra�a? Como diferentes temas, métodos e fontes de pesquisa
transformam a construção do discurso historiográ�co? O que é uma quebra
de paradigma historiográ�co? Qual a relação da historiogra�a com as demais
ciências humanas?

Orientações para o estudo


A compreensão do que é a historiogra�a se apresenta como fundamental pa-
ra o ofício do historiador, pois elucida a forma como o conhecimento é produ-
zido nessa área do saber, destacando as condições de sua produção. Devemos
ter em mente que cada grupo, sociedade e período histórico constroem seu
discurso sobre o passado, a �m de responder determinados propósitos e in-
tuitos. Tais visões historiográ�cas possuem suas características próprias,
quanto aos seus métodos, temas e fontes. Nesse sentido, é fundamental que
você, futuro historiador, compreenda o que podemos chamar de história da
historiogra�a.

1. Introdução
Neste primeiro ciclo de aprendizagem, veremos os diversos signi�cados que a
história assumiu em diferentes contextos e usos. Veremos como variados mé-
todos, temáticas e fontes de pesquisa determinam diferentes concepções de
história, que se transformaram ao logo tempo, sobretudo, em função dos diálo-
gos estabelecidos com as demais Ciências Humanas, que interferiram direta-
mente na construção das correntes historiogra�as.

Nessa perspectiva, neste primeiro ciclo, também abordaremos de forma su-


cinta uma espécie de linha do tempo da historiogra�a, perpassando as dife-
rentes quebras de paradigma do fazer historiográ�co, a �m de criar um pano-
rama geral que nos ciclos seguintes serão abordados de forma mais detida.

2. História: signi�cados e funções


Neste momento, vamos nos deter aos conceitos básicos para a compreensão
do ofício do historiador, perpassando a concepção de história e seus signi�ca-
dos e/ou funções, o conceito de historiogra�a nos métodos de pesquisa empre-
gados e, também, as relações da história com as demais Ciências Humanas. É
de fundamental importância o entendimento dessas relações com as demais
Ciências Humanas, uma vez que implicam diretamente no repensar do fazer
historiográ�co ao longo do tempo. Para isso, acompanhe o vídeo a seguir, que
explora tais questões de forma introdutória, pontuando os principais conceitos
e contextos de produção historiográ�ca.
3. Signi�cado(s) de história
Qualquer pessoa que fosse inquirida com a pergunta “O que é História?” se
sentiria, geralmente, à vontade para responder. Possivelmente, ela diria que
História é aquilo que aconteceu em tempos passados e consideraria essa res-
posta su�cientemente clara para elucidar a dúvida. Mas será mesmo que isso
é o su�ciente para concluir o signi�cado de História? Vejamos.

A exemplo da língua francesa, e ao contrário da língua inglesa, italiana e ale-


mã, a língua portuguesa utiliza a palavra "História" para designar coisas dife-
rentes. Exempli�cando: as palavras em inglês "history" e "story", em italiano
"istoria" e "storia" e em alemão "geschichte" e "historie" são termos utilizados
para designar o acontecimento e a narração deste, respectivamente. É dessa
diferença, que não é registrada pela língua portuguesa, que vamos tomar co-
mo base para iniciar nossos estudos.

Portanto, nosso objetivo é demonstrar que a de�nição de História como fatos


que aconteceram no passado não é su�ciente. Essa disciplina exige uma de�-
nição que lhe permita uma abordagem muito mais abrangente e complexa.

É evidente que a História se refere sim a todo o


. Desse modo, todos os povos possuem História, desde os clãs pré-
históricos até as modernas e complexas sociedades tecnológicas dos dias atu-
ais, pois todos eles agiram, criaram, pensaram, sonharam, lutaram...

Todas as pessoas que participaram das sociedades humanas realizaram atos


sociais, em coletividade. Logo, �zeram História.

Entretanto, essa de�nição de História não encerra todos os signi�cados do ter-


mo. Assim, podemos dizer que um segundo aspecto importante para se de�nir
a História é a narrativa dos acontecimentos passados. Ou seja, a História sig-
ni�ca, também, a reconstituição dos acontecimentos humanos no tempo.
Você acha que em seu país, em seu estado, em sua cidade, há a preocupação da preservação
da memória das coisas e dos acontecimentos da História?

É bom lembrarmos que nem todos os povos que �zeram História se preocupa-
ram em reconstituí-la, em narrá-la. Muitos, na verdade, procuraram explicar
seu passado de outras formas, utilizando-se, por exemplo, dos mitos.

Na de�nição de Borges (1995, p. 10-11):

a primeira forma de explicação que surge nas sociedades primitivas é o mito, sem-
pre transmitido em forma de tradição oral, ou seja, os mitos eram contados de gera-
ção a geração, preservando-se na memória daquele povo por meio da transmissão
oral. A historiadora Vavy Pacheco a�rma ainda que “o mito é sempre uma história
com personagens sobrenaturais, os deuses. Nos mitos os homens são objetos passi-
vos da ação dos deuses, que são responsáveis pela criação do mundo (cosmos), da
natureza, pelo aparecimento dos homens e pelo seu destino”. Assim, os mitos con-
tam em geral a história de uma criação, do início de alguma coisa. É sempre uma
história sagrada.

Podemos, então, dizer que várias civilizações procuravam explicações para


seu passado e para sua origem fora da História.

Nesse sentido, povos como do Egito Antigo, da Mesopotâmia, ou das civiliza-


ções indígenas da América nunca escreveram a História de seu povo, mas
procuraram explicar suas origens por meio de outros mecanismos, como o
mito.

É claro que esses povos primitivos, como já dissemos, tiveram História, uma
vez que houve acontecimentos humanos ao longo do tempo; contudo, nunca
produziram História, pois não registraram nem narraram os acontecimentos
presenciados e vivenciados por eles.

Dessa forma, podemos a�rmar que a História, nesse segundo sentido, nasce na
Grécia Antiga entre os séculos 6º e 5º a.C. A partir desse momento, o homem
passou a sentir necessidade de registrar os fatos do passado, procurando ser
�el a eles.

Sobre a evolução desse processo até os dias atuais, isto é, como o homem es-
creveu e escreve sua História, veremos em breve. O que nos interessa no mo-
mento é de�nir que História tem esse duplo caráter: acontecimento humano
no tempo e reconstituição desses acontecimentos por meio da escrita sobre o
passado.

Desse modo, o trabalho do historiador é registrar os fatos, ser �el a eles, mas,
também, buscar interpretá-los, reconstituindo o passado de maneira a dar-lhe
sentido. Assim, toda História escrita é uma análise do passado, mas com as
preocupações do presente.

Nos termos colocados por Carr (1996, p. 79), “não há indicador mais signi�cati-
vo do caráter de uma sociedade do que o tipo de História que ela escreve ou
deixa de escrever”.

Podemos, então, estudar os diferentes modos como o passado foi interpretado,


reconstruído. A esse estudo chamamos historiogra�a, ou seja, a História da
História.

É importante ressaltar que não há uma só maneira de se olhar para o passado,


de forma que o historiador pode estudar essas diferentes visões de um povo,
de um momento ou de um pesquisador para as memórias, para os fatos e rela-
cionamentos que constituem a História.

Em seu cotidiano, quando várias pessoas narram um acontecimento do passado, cada uma
delas faz isso de uma maneira diferente, apesar de o fato ser o mesmo. Re�ita sobre isso...

Com base nas a�rmações de Carr (1996) – de que é indicativo o modo como
uma sociedade escreve ou deixa de escrever sua História –, concluímos que a
historiogra�a, a História da História, é um aspecto essencial das sociedades
humanas e pode revelar suas visões de mundo.

Voltando à de�nição, podemos dizer que historiogra�a é o estudo do conjunto


dos textos produzidos com a intenção de reconstituir o passado, isto é, os tex-
tos de História. Assim, todas as obras que procuram reconstruir o passado são
passíveis da análise historiográ�ca.

Dessa forma, vamos analisar a construção do texto histórico ao longo do tem-


po, buscar entender os métodos de investigação e de seleção de fontes, com-
preender o porquê e de que forma isso aconteceu ao longo do tempo. En�m,
nosso objetivo é reconstituir a História da História para analisar os limites e
as possibilidades de seu futuro na sociedade.

Como escreveu Carr (1996, p. 63), História é “um processo contínuo de intera-
ção entre o historiador e seus fatos, um diálogo interminável entre o passado e
o presente”. Assim, é impossível construir uma “História de�nitiva” ou
“História verdadeira”, uma “História única”, pois o historiador lida a todo o mo-
mento com essa dualidade de, por um lado, reconstituir o passado, e, por outro,
interpretá-lo.

Essa interpretação do passado é feita sempre da perspectiva do presente, apesar de baseada


em fatos já ocorridos. É nessa tensão entre o documento histórico e a sua interpretação, en-
tre o presente e o passado, que se constrói a História.

Esse mecanismo de tensão entre passado e presente, de múltiplas interpreta-


ções do documento histórico, mantém a História viva e original a todo o mo-
mento e seduz qualquer pessoa que tenha alguma curiosidade sobre a relação
do homem com seu passado.

Uma das obras fundamentais, porém inacabada, para a de�nição do que é e


para que serve a História é a que foi escrita pelo historiador francês Bloch, en-
tre os anos de 1943 e 1944, época em que estava preso pelos nazistas durante a
ocupação da França pelos alemães na época da Segunda Guerra Mundial.

Bloch, brilhante fundador da Revista Annales, em 1929, marco da historiogra-


�a mundial, foi assassinado em um campo de extermínio nazista, em Lyon, no
dia 16 de junho de 1944. Como diz o historiador Jacques Le Goff (2001, p. 15),
“Marc Bloch deixava inacabado em seus papéis um trabalho de metodologia
histórica composto no �nal de sua vida, intitulado Apologie de l’histoire”.

Aprofunde seus conhecimentos com a leitura da obra: BLOCH, Marc. Apologia da História ou O ofício do
Historiador. Prefácio de Jacques Le Goff. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

Nesse texto, Bloch (2001) de�ne os aspectos fundamentais do trabalho de um


historiador e, especialmente, a maneira como se escreve a História, aspectos
que iremos abordar no tópico seguinte.

Para que serve a História?


Bloch (2001, p. 43) dá alguns indicativos que podem auxiliar na resposta para
essa questão: “mesmo que a história fosse julgada incapaz de outros serviços,
restaria dizer, a seu favor, que ela entretém”.

Mas, evidentemente, o autor vai além dessa observação. A�rma que a História
só sobrevive se mantiver seu caráter estético, ou seja, sua beleza poética.
Assim, a História caminha entre a beleza e o rigor conceitual, entre o texto
bem escrito, por um lado, e o bem construído teoricamente, por outro. A
História é “uma ciência em marcha” e, além disso, está “na infância”, pois ne-
cessita ser (re)pensada a todo o momento, algo que à época de Bloch estava
apenas começando.

De�ne o eminente historiador que o objeto da História, ou seja, aquilo que ela deve investi-
gar, não é uma entidade metafísica como “o tempo”, mas sim o homem e, mais precisamen-
te, os homens no tempo, suas ações e práticas em todas as suas manifestações.

Nesse sentido, para Bloch (2001), onde houver seres humanos, existirá História
e, assim, algo a ser elucidado pelo historiador. Além disso, ele diz que somente
um historiador atento ao presente, conhecedor de seu tempo, pode inquirir, sa-
tisfatoriamente, os homens do passado, pois “o presente bem referenciado e
de�nido dá início ao processo fundamental do ofício de historiador: compre-
ender o presente pelo passado e, correlativamente, compreender o passado pe-
lo presente” (BLOCH apud LE GOFF, 2001, p. 25).
Para encerrar essa primeira abordagem sobre o que signi�ca o estudo da
História, gostaríamos de citar uma metáfora de Carr. Segundo ele, em um de-
terminado momento, os historiadores de�niam que História era um amontoa-
do de fatos. Portanto,

os fatos estavam disponíveis para os historiadores nos documentos, nas inscrições,


e assim por diante, como os peixes na tábua do peixeiro. O Historiador deveria
reuni-los, depois levá-los para casa, cozinhá-los, e então servi-los da maneira que o
atrair mais (CARR, 1996, p. 45).

Essa concepção, nos últimos 50 anos, vem sendo substituída por uma mais
condizente com a realidade da produção histórica, isto é:

os fatos na verdade não são absolutamente como peixes na peixaria. Eles são como
peixes nadando livremente num oceano vasto e algumas vezes inacessível; o que o
historiador pesca dependerá parcialmente da sorte, mas principalmente da parte
do oceano em que ele prefere pescar e do molinete que ele usa – fatores estes que
são naturalmente determinados pela qualidade de peixes que ele quer pegar. De um
modo geral, o historiador conseguirá o tipo de fatos que ele quer. História signi�ca
interpretação (CARR, 1996, p. 49).

Resumindo, de acordo com as orientações de Carr (1996) e de Bloch (2001), po-


demos considerar que História é o ramo do conhecimento que estuda os ho-
mens no tempo e que o papel do historiador é reconstituir o passado,
interpretando-o a partir do presente. Fazer História é, pois, relacionar, a todo o
momento, passado e presente; é reconstituir o passado explicado pelo presente
baseado nas perspectivas de mundo do próprio historiador.

4. Documentos e suas interpretações: o método


em questão
Durante boa parte do século 19 e início do século 20, os documentos históricos
considerados válidos eram apenas os escritos e os o�ciais, isto é, os perten-
centes a instituições governamentais.
Essa etapa da produção histórica, conhecida como positivismo, veremos em
detalhes mais adiante. Gostaríamos de assinalar, neste momento, que a produ-
ção histórica, durante um bom tempo, atendeu a essas perspectivas. No en-
tanto, isso vem mudando nas últimas décadas, tanto nos tipos, como na forma
de se utilizar os documentos históricos.

Mas, a�nal, o que é documento histórico? O que, na História, é digno de regis-


tro? Todo fato humano pode se tornar um fato histórico? E quanto ao trabalho
do historiador, de que maneira ele seleciona e analisa os documentos e o que
para ele se con�gura um fato histórico? Essas são as questões que iremos
abordar neste tópico.

Borges (1985, p. 48) lembra que, “desde que existem sobre a Terra, os homens
estão em relação com a natureza (para produzirem sua vida) e com os outros
homens. Dessa interação é que resultam os fatos, os acontecimentos, os fenô-
menos que constituem o processo histórico”. Desse modo, o objetivo funda-
mental do historiador deve ser a reconstituição do passado. Para isso, são ne-
cessários levantamentos e estudos de fontes documentais desse passado.

Nesse sentido, fontes ou documentos históricos são todos os registros possí-


veis de serem pesquisados e analisados; em outras palavras, são todos os ma-
teriais de determinada época que permitem sua utilização na construção da
História de um determinado grupo social, ou seja, fontes de caráter escrito, vi-
sual, oral, material, sonoro etc. Mas essas fontes não são quase nada sozinhas.

Os documentos históricos só se con�guram como tais quando os historiadores


lhes atribuem um signi�cado, um sentido, pois, até esse momento, são sim-
ples objetos que só se transformam em registro de uma época ou contexto
quando são analisados.

Podemos concluir, então, que os documentos históricos não são absolutos, não falam por si, ou seja, que
eles dependem de uma análise do historiador.

Dessa forma, os acontecimentos humanos só podem tornar-se fatos históricos


no instante em que os registros documentais desses acontecimentos são ana-
lisados e considerados numa análise histórica. Vejamos um exemplo:

Imagine, num exercício de análise contrafactual, que, por acaso, os nazistas tivessem ven-
cido a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Acreditamos que, para isso acontecer, eles nun-
ca poderiam ter perdido a longa luta travada em Stalingrado, na União Soviética.

Possivelmente, se os nazistas tivessem ganhado aquela batalha, os feitos de


bravura dos soldados soviéticos que encaravam um exército mais bem equi-
pado e mais preparado para a guerra, a boa estratégia de resistência elaborada
pelos comandantes do exército vermelho russo, o massacre sofrido por boa
parte da população local, entre outros, seriam fatos humanos não registrados
pela História da maneira como hoje são. A narrativa histórica seria outra por-
que os registros documentais desses acontecimentos não seriam preservados,
os interesses em contar essa História não seriam os mesmos e a possibilidade
de fazê-lo, mesmo que se quisesse, seria muito menor do que é hoje.

Toda vez que aparecerem datas entre parênteses na frente de um nome, como, por exemplo, René
Descartes (1596-1650), estamos fazendo referência ao período em que viveu determinado pensador.

Assim, �ca claro que narrar o passado é um exercício de re�exão sobre os do-
cumentos históricos, sobre os registros que temos do passado, mas não ape-
nas isso. Devemos sempre nos perguntar sobre as motivações e razões para a
preservação de determinados fatos e não de outros.

Evidentemente, as fontes documentais são um aspecto fundamental da pes-


quisa histórica; no entanto, elas não podem ser tomadas como algo que ex-
pressa a “verdade absoluta” sobre aquele momento ou fato histórico estudado.

É bom lembrar que quem produz o documento está imbuído de sua visão de
mundo, de sua forma de interpretar a situação em que se envolveu, de maneira
que não é neutro nem está acima dos fatos para julgá-los com “imparcialida-
de”. Como a�rma Carr (1996, p. 55), “os fatos e os documentos são essenciais ao
historiador. Mas que não se tornem fetiches”.
Em contrapartida, o historiador não pode cair na tentação de negar o docu-
mento, de apenas valorizar a interpretação que construiu em sua mente, de
buscar adaptar a realidade que estuda aos interesses de sua visão de mundo.

Novamente, podemos nos apoiar em Carr para elucidar essa relação entre do-
cumento e interpretação dos fatos.

Para ele, “o historiador começa com uma seleção provisória de fatos e uma in-
terpretação, também, provisória, a partir da qual a seleção foi feita”. Enquanto
está trabalhando no tema, “tanto a interpretação e a seleção quanto a ordena-
ção de fatos passam por mudanças sutis e talvez parcialmente inconscientes,
através da ação recíproca de uma ou da outra”. Por isso, “o historiador e os fa-
tos históricos são necessários um ao outro”, pois “o historiador sem seus fatos
não tem raízes e é inútil; os fatos sem seu historiador são mortos e sem signi-
�cado” (CARR, 1996, p. 65).

Logo, essa ação mútua de historiador sobre os fatos e estes sobre o historiador
“envolve a reciprocidade entre presente e passado, uma vez que o historiador
faz parte do presente e os fatos pertencem ao passado” (CARR 1996, p. 65).

Portanto, todo registro do passado humano é um documento histórico. Esse documento, se


analisado e criticado satisfatoriamente, permite que aquele acontecimento por ele registra-
do se transforme em fato histórico.

O que vai se tornar ou não depende do contexto e dos inte-


resses que a História produzida representa; o que, por �m, nos leva à última
questão, que é o trabalho do .

Certa vez, perguntou-se o historiador Schaff (1978, p. 66) o seguinte:

Se apesar dos métodos e das técnicas de investigação aperfeiçoadas, os historiado-


res não só julgam e interpretam as mesmas questões e os mesmos acontecimentos
em termos diferentes, mas ainda selecionam e até mesmo percebem e apresentam
diferentemente os fatos, será possível que esses historiadores façam simplesmente
uma propaganda camu�ada em lugar de praticar ciência?
O autor construiu essa questão baseado na ideia de métodos e técnicas de in-
vestigação, algo que procuramos elucidar anteriormente. Mas esses métodos e
técnicas, na provocação do autor, não seriam apenas formas de esconder uma
visão de mundo já cristalizada e que a investigação histórica só serviria para
con�rmar?

Inicialmente, vale ressaltar que os métodos e técnicas cientí�cas dos historia-


dores diferem em muitos aspectos daqueles utilizados, por exemplo, pelos físi-
cos e pelos matemáticos; mas, mesmo para esses, o conhecimento é relativo,
na medida em que está formulado com base em convicções do sujeito e do
contexto em que ele está inserido. Assim, ter convicções não é nenhum pro-
blema.

A questão fundamental nesse debate é elucidar onde estaria o erro do qual um


historiador deve fugir para evitar que seu trabalho perca o valor que deve ter. O
historiador Febvre, cofundador da Revista Annales, a qual �zemos referência
anteriormente, diz que o anacronismo é o pecado mortal do historiador.

Para ele, o termo "anacronismo" refere-se à situação em que o historiador atri-


bui ao personagem, ou contexto histórico que estuda, uma visão que não era
possível de se ter naquele momento em que os fatos ocorreram. Ao cometer
esse erro, o historiador analisa os fatos com base nos resultados do processo
de seu estudo, esquecendo-se de que os personagens não poderiam ter a mes-
ma clareza dos acontecimentos.

Febvre utilizou-se desse argumento para estudar a obra do escritor francês do


século 16, Rabelais, que muitos historiadores diziam ser ateu. Entretanto,
Febvre (1989) demonstrou que era impossível ser ateu no século 16 na Europa,
utilizando-se de diversos meios para isso, demonstrando que aqueles que dizi-
am isso estavam sendo anacrônicos.

Para aprofundar seus estudos acerca desse assunto, sugerimos a leitura das seguintes obras:
Lucien Febvre. Olhares sobre a História. Lisboa: Edições ASA, 1996.
Lucien Febvre. Combates pela História. Lisboa: Presença, 1989.
Para Novais (2005), que é um dos mais importantes historiadores brasileiros, o
problema do anacronismo aparece de maneira cristalina em um tipo de
História especí�co: a chamada História “Nacional”, que tem por objeto a nação
e o Estado Nacional. Vejamos como ele apresenta o problema:

O anacronismo, que, no dizer de Lucien Febvre, constitui pecado mortal do histori-


ador, torna-se, no caso da história "nacional", uma di�culdade quase insuperável. É
que a tentação é por demais intensa de se fazer a história do povo na "sua vontade
de ser nação"... No caso do Brasil, Estado-nação de passado colonial, esta di�culda-
de ainda sobe de ponto, e se consubstancia na idéia de que a nação estava já inscri-
ta na viagem "fundadora" de Pedro Álvares Cabral, quer dizer, como se a coloniza-
ção se realizasse para criar a nação, e o chamado "período colonial" vai sendo re-
constituído como algo tendente a forjar a independência, num curioso exercício de
profecia do passado (NOVAIS, 2005, p. 331).

Observamos no exemplo trazido por Novais (2005) que o anacronismo pode


comprometer toda a estrutura de pesquisa e desenvolvimento da produção
histórica de um tema amplo como a História de um país.

Fazendo uma retomada de nossas ideias, o erro do anacronismo consiste em


acreditar que os personagens de determinada época têm a mesma visão e a
mesma clareza dos fatos que o historiador pode ter, analisando-os de outra
época. No caso exempli�cado por Novais (2005), o anacronismo signi�ca pen-
sar que os colonos tinham a visão clara de uma nação futura, o que sabemos,
hoje, que acabou se concretizando, mas os homens daquela época, do Brasil
colonial, não poderiam saber, pois viviam sua realidade de colônia.

Portanto, o historiador que, atravessando os problemas da abordagem do pas-


sado, evitou cometer anacronismos está muito mais próximo de fazer uma
boa História.

Na procura por essa boa História, além de ter que selecionar documentos e fa-
tos históricos para reconstituir o passado e procurar estabelecer �os conduto-
res para uma interpretação satisfatória dos acontecimentos humanos, o histo-
riador deve fugir da tentação de
, na medida em que
é impossível que estes o saibam e, portanto, impossível, também, analisá-los
dessa perspectiva.

Em contrapartida, ao se tentar fugir do anacronismo, deve-se tomar cuidado,


também, com o relativismo absoluto em História.

Assinalando aquilo que escreveu o historiador inglês Hobsbawm (1998, p. 8),


“sem a distinção entre o que é e o que não é assim, não se pode fazer história”.
No entanto, “o modo como montamos e interpretamos nossa amostra escolhi-
da de dados veri�cáveis (que pode incluir não só o que aconteceu, mas o que
as pessoas pensaram a respeito) é outra questão”. Assim, nunca podemos per-
der de vista que a História tem sim sua objetividade e que ela está no
.

Para ilustrar, voltemos ao exemplo que utilizamos anteriormente sobre a


Segunda Guerra Mundial: ela aconteceu e a Alemanha nazista foi derrotada. A
questão que �ca ao historiador é e . A partir dessas perguntas,
selecionamos as fontes históricas, reconstituímos como aconteceu o fato e
procuramos argumentar por que foi assim.

A demanda social do historiador, então, será esta:


.

Você acha que a produção de História é a expressão da Verdade?

5. História e outras ciências humanas


Como lembra o historiador francês Dosse (2003), a pro�ssionalização do histo-
riador, já que sua disciplina foi tornada acadêmica no século 19, e a ascensão
das outras Ciências Sociais (Economia, Sociologia, Política, ) ao
longo dos séculos 19 e 20 �zeram que a História sofresse muitos impactos tan-
to dessas Ciências Sociais quanto da mais antiga ciência humana, a Filoso�a,
a qual, quando nasceu, não era apenas humana, mas, também, física e mate-
mática.

Assim, estabelecer os �os de relação, nem sempre amistosa, entre a História e


as outras Ciências Humanas é um aspecto essencial para se entender o papel
do discurso historiográ�co no cenário da produção de pensamento nas áreas
humanas.

Novamente, o historiador brasileiro Novais (2005, p. 277-278), abre caminho


para a compreensão da relação entre História e as outras Ciências Sociais:

A História (...) é um domínio do saber muito antigo, anterior à ciência, à universida-


de, e obviamente às Ciências Sociais. Tão antigas como a História só a Filoso�a e as
artes. Todo livro de História da História diz isso, mas nem sempre tiram as implica-
ções teóricas desse fato. Primeira implicação: se de fato é assim, é possível estudar
o impacto da História das Ciências Sociais na História, e não o inverso. Não é possí-
vel estudar o impacto da História na Sociologia; existe o impacto da Sociologia so-
bre a História. A segunda implicação é que a História não responde às demandas
sociais semelhantes ao que ocorre com as outras ciências. Pode-se associar o apa-
recimento da Sociologia na segunda metade do século 19 ao aparecimento da soci-
edade urbana industrial moderna. O aparecimento da Economia está diretamente
relacionado à Revolução Industrial. Já a História está associada à criação da me-
mória.

É evidente, nas palavras de Novais (2005), uma primeira distinção fundamen-


tal entre a História e as outras Ciências Sociais: estas estão associadas ao de-
senvolvimento e ao aumento da complexidade da sociedade pós-Revolução
Industrial; já a História é muito mais antiga e corresponde a uma outra de-
manda da sociedade: a de preservação da memória social.

O historiador brasileiro designa uma segunda distinção importante entre


História e Ciências Sociais: “(...) o campo da História é indelimitável. Qual é
seu objeto? É o acontecer humano em qualquer tempo e em todo o espaço, só o
futuro não é seu objeto. O que caracteriza esse objeto? A impossibilidade de
delimitá-lo – não se sabe onde é que ele acaba” (NOVAIS, 2005, p. 379).

Se a História, por seu lado, tem um objeto não delimitado, o grande debate den-
tro das Ciências Sociais é justamente saber onde delimitar os seus objetos.
Qual é a fronteira que divide a Sociologia da Antropologia, por exemplo?

Apesar do ataque que a História sofreu das outras Ciências Sociais, o funda-
mental é que, do ponto de vista do objeto, temos uma vantagem comparativa: o
objeto da História é toda a ação humana no tempo.

Por causa dessa amplitude de seu objeto, foi possível que, no momento em que
ocorreu uma crise das Ciências Sociais no último quarto do século 20, a
História respondesse a essa crise com uma ampliação dos objetos de estudo,
dedicando-se a temas que antes estavam negligenciados (o sexo, o amor, a fa-
mília, a criança, a mulher, entre outros).

Você acha que a História pode ser considerada o carro-chefe das Ciências Sociais?

Fica claro, portanto, que a História é um ramo do conhecimento muito mais


antigo que as Ciências Sociais e responde a outras demandas. Além disso, o
objeto de estudo da História é muito mais amplo e abrange todo o aconteci-
mento humano no tempo.

Assim, a História tem compromisso potencial de reconstituir as ações huma-


nas em todas as suas esferas de existência: econômica, política, social, cultu-
ral e mental. Já as Ciências Sociais são recortes dessa realidade.

É evidente que o historiador não reconstitui a totalidade da História, mas par-


celas dela, por isso que Veyne (s/d.) escreveu que não existe apenas “História”,
mas sim “História de”. A preposição depois do substantivo é o recorte do objeto
in�nito do historiador.

:
Sugerimos a leitura da seguinte obra para o aprofundamento de seus estudos: VEYNE, Paul. Como se es-
creve a História. Lisboa: Edições 70, s/d.

Talvez você esteja se perguntando: mas isso signi�ca que a História não ne-
cessita das Ciências Sociais?

A resposta é não; na verdade, uma é necessária à outra. O historiador moderno


enxerga-se como cientista; portanto, ele acredita que é necessário explicar.
Fundamentalmente, é utilizando-se dos conceitos criados pelos cientistas so-
ciais que o historiador explica o que reconstitui. Ao mesmo tempo, se os cien-
tistas sociais �carem apenas na abstração conceitual, não conseguem de-
monstrar a aplicabilidade desses conceitos. Assim, ele necessitam da História
para comprovar que são e�cazes.

Em resumo, o historiador explica para reconstituir e o cientista social reconstitui para ex-
plicar. As demandas sociais que os �zeram surgir explicam essa diferença e, ao mesmo
tempo, o sentido de necessidade de apoiar-se um no outro.

O francês Braudel (1992), um dos historiadores mais importantes do século 20,


escreveu, em um artigo publicado em 1958, sobre a necessidade de encontrar-
se um caminho de diálogo entre as diversas ciências do homem. Para ele, esse
diálogo poderia partir da dimensão das diversas temporalidades que a exis-
tência social compreende.

Para saber mais sobre o assunto em questão, leia: BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais: a longa
duração. In: BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 39-78.

Mas o que signi�ca “diversas temporalidades”?

Vejamos um texto do autor apresentado em seu clássico estudo de 1946, intitu-


lado O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II, que nos
ajudará a compreender essa expressão.

Esta obra divide-se em três partes, cada uma das quais pretende ser uma tentativa
de explicação de conjunto.

A primeira trata de uma história, quase imóvel, que é a do homem nas suas rela-
ções com o meio que o rodeia, uma história lenta, de lentas transformações, mui-
tas vezes feita de retrocessos, de ciclos sempre recomeçados [...].
Acima desta história imóvel, pode distinguir-se uma outra, caracterizada por um
ritmo lento: se a expressão não tivesse sido esvaziada do seu sentido pleno,
chamar-lhe-íamos de bom grado história social, a história dos grupos e agrupa-
mentos. Qual a in�uência dessas vagas de fundo no conjunto da vida mediterrâni-
ca, eis a pergunta que a mim próprio pus na segunda parte da minha obra, ao es-
tudar, sucessivamente, as economias, os Estados, as sociedades, as civilizações, e
ao tentar, por �m, e para melhor esclarecer a minha concepção de história, mos-
trar como todas estas forças profundas atuam no complexo domínio da guerra. [...]

E, �nalmente, a terceira parte, a da história tradicional, necessária se pretender-


mos uma história não à dimensão do homem, mas do indivíduo, uma história dos
acontecimentos [...], a da agitação de superfície, as vagas levantadas pelo poderoso
movimento das marés, uma história com oscilações breves, rápidas, nervosas
(BRAUDEL, 1995, p. 25).

Assim, para o autor, a temporalidade histórica teria diversos níveis de existên-


cia: o tempo de longa duração, o de média duração e o de curta duração.

O tempo longo seria aquele em que as transformações são muito lentas, quase
imóveis, no qual o fundamental está na relação “homem e espaço”. Já o tempo
de média duração seria aquele em que as transformações ocorrem no nível
das estruturas sociais, com movimentos longos, resultando em grandes sínte-
ses econômicas, sociais, políticas, culturais. Por �m, o tempo curto, o tempo
jornalístico, seria o tempo do registro imediato, o tempo das paixões, dos acon-
tecimentos e da instantaneidade.

Observamos, pois, que cada uma das Ciências Sociais ajusta-se mais a um de-
terminado tempo do que a outro, e, na relação desses tempos, seria possível
estabelecer o contato entre as diversas ciências do homem. A História seria,
nesse sentido, o carro-chefe do processo, na medida em que ela, como vimos, é
a ciência social que melhor compreende o homem no tempo.

6. A história da historiogra�a
Entendido que a História pode assumir diferentes sentidos e funções nos di-
versos contextos e períodos em que foi produzida, agora veremos uma breve
linha do tempo da historiogra�a. Com isso, poderemos criar uma visão mais
ampla do desenvolvimento da disciplina, para que depois possamos abordar
de forma detalhada os principais paradigmas historiográ�cos que pautaram
e/ou in�uenciaram a historiogra�a até os dias atuais.

Para isso, assista aos vídeos a seguir, que, partindo do próprio conceito de his-
toriogra�a, abordam a produção na antiguidade, no medievo e nos séculos 18,
19 e 20, criando uma visão geral da evolução dessa área do saber ao longo do
tempo e destacando seus temas, métodos e fontes de pesquisa. Acompanhe.

Agora, vamos ver as principais características e contextos de produção das


principais correntes historiográ�cas, por meio de uma visão geral sobre todo o
processo. Entretanto, ressaltamos que, neste momento, visamos uma perspec-
tiva mais geral de uma possível história da historiogra�a, já que tais correntes
serão tratadas de forma mais detida nos próximos ciclos de aprendizagem.

7. O que é historiogra�a?
Eis um conceito simples de se explicar: em resumo, historiogra�a é a escrita
da História. Quem dera ser realmente tão simples. Este é um daqueles mo-
mentos em que ditados populares não são meros clichês: “a simplicidade é
complexa”. O problema reside no fato de que escrever a História implica consi-
derar contextos diferentes (do tema, do historiador), ideologias diversas (do
historiador, da editora, do público), fontes utilizadas para a pesquisa (escritas,
orais, iconográ�cas), questionamentos dirigidos a essas fontes, teoria empre-
gada para análise.

Assim, é interessante que você tenha acesso a distintas de�nições de historio-


gra�a, para além daquela já citada. Vejamos dois casos!

“A historiogra�a seria assim a melhor vacina contra a ingenuidade” (SILVA;


SILVA, 2006, p. 189).
O que apreender de uma assertiva como essa? Se aceitarmos que historiogra-
�a é o questionamento acerca da produção e da escrita da História, sobre o(s)
discurso(s) dos historiadores e seus métodos, compreenderemos que, se co-
nhecemos o que in�uencia os historiadores em suas escolhas de temas a
abordar e na teoria a seguir, se conhecemos o resultado de suas pesquisas, se
temos acesso aos erros e acertos por eles elencados, a ingenuidade não fará
parte de nossa pro�ssão. Dito de outro modo, se conhecemos o historiador em
seu ofício, em seu contexto e a sua produção, não há como �carmos alheios à
memória das sociedades.

Uma última de�nição, segundo Carbonell (1987, p. 6):

O que é historiogra�a? Nada mais que a história do discurso – um discurso escrito


e que se a�rma verdadeiro – que os homens têm sustentado sobre seu passado. É
que a historiogra�a é o melhor testemunho que podemos ter sobre as culturas de-
saparecidas, inclusive sobre a nossa – supondo que ela ainda existe e que a semi-
amnésia de que parece ferida não é reveladora da morte. Nunca uma sociedade se
revela tão bem como quando projeta para trás de si a sua própria imagem.

Vamos re�etir juntos sobre essa de�nição? Inicialmente, tomemos a frase “na-
da mais que a história do discurso”, ou seja, historiogra�a é o estudo de tudo o
que já foi dito sobre um tema em diferentes modos, lugares e tempos. Depois,
“um discurso escrito e que se a�rma verdadeiro”, ou seja, o que foi dito deve ser
considerado como discurso digno de ser acatado. E, por �m, “nunca uma soci-
edade se revela tão bem como quando projeta para trás de si a sua própria
imagem”. Em outras palavras, como não temos como nos desvencilhar total-
mente de nossas ideologias, de nossos conceitos, das marcas de nosso tempo,
sempre que apresentamos o resultado de uma pesquisa histórica, a marca de
nossa época �ca evidenciada. Resumindo, a historiogra�a é o produto de uma
era, é uma construção histórica.

Como se pode observar, trata-se de um conceito polissêmico. Mas, para além


do conceito, igualmente devemos considerar que a historiogra�a depende de
dois elementos: da formulação de um problema e das fontes disponíveis. Ao
levantar essas questões, Blanke (2006) estudou a história da historiogra�a e
apontou dez tipos e três funções, conforme você pode veri�car nos Quadros 1 e
2. O autor adverte: “Os tipos que (re)construí, no entanto, possuem um alcance
mais amplo do que os exemplos dos quais eles são uma abstração” (BLANKE,
2006, p. 29).

Tipos de historiogra�a.

Pesquisas que abordam a vida e a


1) História dos historiadores
obra de um historiador.

Pesquisas sobre um gênero literário


2) História das obras
(qual o estilo literário da obra).

Pesquisas que classi�cam os historia-


3) Balanço geral
dores em campos especí�cos.

Pesquisas sobre conferências e traba-


4) História da disciplina
lhos de instituições históricas.

5) História dos métodos Pesquisa sobre os métodos históricos.

Pesquisa sobre as tendências da his-


6) História das ideias históricas
tória intelectual.

Pesquisa sobre a história das subdis-


ciplinas (Antiga, Medieval...), da rela-
7) História dos problemas
ção entre a História e outras Ciências
Sociais etc.

8) História das funções do pensa- Pesquisa sobre as funções sociais da


mento histórico historiogra�a.

Pesquisa da historiogra�a como histó-


9) História social dos historiadores
ria social.

Pesquisa sobre o desenvolvimento da


10) História da historiogra�a teorica-
disciplina no interior de sua re�exão
mente orientada
metateórica.
: BLANKE in MALERBA, 2006.

Funções da História.
1) Função a�rmativa A�rmar uma ideologia o�cial.

Críticas aos princípios ideológicos, vi-


2) Função crítica sões de mundo, modelos tradicionais
etc.

Oferecer material para a re�exão teó-


3) Função exemplar
rica (servir de exemplo).
: BLANKE in MALERBA, 2006.

Esses tipos e funções não serão sistematicamente analisados aqui. Porém,


explicitá-los ajuda-nos a observar e a con�rmar que a historiogra�a é mais do
que a escrita da história: é a compreensão de todo o contexto que envolve essa
escrita.

Nesta conjuntura, podemos iniciar nossa compreensão do que é Teoria da


História. Alguns a leem mesmo como historiogra�a, como debate historiográ-
�co, e muitos outros, como metodologia. Igualmente, é entendida como qual-
quer atividade re�exiva do historiador. Desse modo, os conceitos de historio-
gra�a e Teoria da História são justapostos. A historiogra�a, enquanto escrita
da História, apresenta-nos concepções diferenciadas do passado de acordo
com as teorias norteadoras do ofício do historiador, a saber: o marxismo, a no-
va história, a micro-história etc.

Agora que já re�etiu sobre os conceitos de historiogra�a, Teoria da História e


possibilidades historiográ�cas, que tal iniciarmos nossa retrospectiva? Vamos
lá!

8. A historiogra�a na antiguidade
Antes de adentrar na produção de Heródoto e Tucídides, é importante enten-
dermos o contexto no qual a escrita da História nasceu: aquele da oralidade e,
também, da mitologia.

Para o Grego das épocas arcaica e clássica, a palavra representava o poder por
excelência. Vejamos o que o helenista Jean-Pierre Vernant tem a dizer a esse
respeito (o termo “Grego” é utilizado aqui em maiúsculo não só para caracteri-
zar os habitantes da Grécia, mas igualmente compreendendo-o como uma ca-
tegoria que inclui homens e mulheres, crianças, jovens e adultos, todos incluí-
dos dentro de um contexto social e cultural maior):

O que implica o sistema da polis é primeiramente uma extraordinária proeminên-


cia da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder... A palavra não é mais
o termo ritual, a fórmula justa, mas o debate contraditório, a discussão, a argumen-
tação (VERNANT, 1996, p. 34).

Com base nessa assertiva, observamos que o logos ocupava um lugar central
nessa época da nascente razão. Mas não nos enganemos: logos e mythos não
eram totalmente excludentes, nem mesmo contraditórios. A razão, representa-
da pelo logos, nasce do mythos.

Mas como esse logos foi utilizado e compreendido no cerne da primeira


História? Essa nova maneira de se narrar os acontecimentos se distanciou de
forma de�nitiva do mito?

Observemos, então, as diferenças e as similitudes entre os dois historiadores,


que, desde a Antiguidade, estão no centro da discussão que tenta decidir quem
é o “pai da História”.

Heródoto: ouvir, ver e escrever


Ouvir, ver e escrever. Não se trata de um ordenamento aleatório de verbos. Os
dois primeiros podem até se alternar, porém, escrever vem depois. Esta era a
prática de Heródoto (484-420 a.C): colher testemunhos (essencialmente histó-
ria oral, embora tenha tido acesso a alguns documentos), observar regiões,
pessoas, fatos e, posteriormente, narrá-los. Em sua obra História (2,9), ele a�r-
mou: “Até aqui disse o que vi, re�eti e averiguei por mim mesmo, a partir de
agora direi o que contam os egípcios, como ouvi, ainda que acrescente algo do
que vi” (HERÓDOTO, 1998, p. 152).

Heródoto procurou registrar a tradição, feitos e fatos que, em seu entendimen-


to, não deveriam ser esquecidos – a lembrança e o conhecimento do passado
como forma de reforçar a identidade dos helenos. Em sua escrita, utilizou-se
do termo logos” no sentido de relato, de conhecimento, de razão; tudo isso
reportando-se a opiniões contrastantes que nem sempre puderam ser compro-
vadas (o que se ouviu, mas não se viu). A obra História, nesse contexto, procu-
ra estabelecer as causas da guerra entre gregos e persas apresentando uma
escrita que, embora ainda traga elementos mitológicos, traz como novidade o
relato do ocorrido, de fatos concretos, de feitos de homens, e não histórias mi-
tológicas, feitos heroicos e/ou divinos, de um mundo abstrato.

Por essa inovação, Heródoto foi considerado o “pai da História” já na


Antiguidade, título atribuído a ele por Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) em De
Legibus – Das Leis, (1,1,5). Porém, apenas nos tempos modernos, tal honraria
estabeleceu-se de�nitivamente.

Tucídides: a busca da verdade do que se vê


Segundo Detienne (1998, p. 105), “O ouvido é in�el e a boca é sua cúmplice.
Frágil, a memória é igualmente enganadora: ela seleciona, interpreta, recons-
trói”.

Tomamos por empréstimo essas palavras do helenista Marcel Detienne por


acreditarmos que ela representa bem a repulsa de Tucídides em relação à es-
crita de Heródoto. Diferentemente deste, Tucídides preocupou-se com as cau-
sas imediatas. Atentou-se para o presente, narrou o que viu, acreditava no que
estava diante dos olhos. O passado, para ele, mostrava-se como boatos: fulano
disse que ouviu de sicrano o ocorrido com beltrano na terra de alguém. Para o
autor de Guerra do Peloponeso, memória sem provas não é História.

Por que devo vos falar de acontecimentos muito antigos quando estes são atestados
antes por boatos que circulam (akoaí) do que pelo que se viu com seu olhos aqueles
que nos ouvem (TUCÍDIDES, I, 73, 2).

Resumindo, algumas das principais diferenças entre Heródoto e Tucídides


são: o primeiro privilegia o resgate da tradição, e o segundo, o registro do pre-
sente com o pensamento focado no futuro; Heródoto é considerado mais ro-
mântico, enquanto Tucídides, mais realista. As diferenças também podem ser
observadas na escolha das fontes: o primeiro elege as fontes orais, e o segun-
do, não vendo credibilidade nestas, descarta-as.

Outros nomes podem e devem ser citados para esse período da historiogra�a:
Aristóteles, Políbio, Salústio, Tácito e Cícero.

Vale ressaltar aqui a diferença estabelecida por Aristóteles entre História e po-
esia. Reproduziremos, a seguir, uma das mais famosas passagens desse autor
em que esclarece este binômio contrário:

Não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia
acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade.
Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (...) –
diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam su-
ceder. Por isso, a poesia é algo de mais �losó�co e mais sério do que a História, pois
prefere aquele principalmente o universal, e esta o particular (ARISTÓTELES. 2003,
9, 50).

De forma bem esclarecedora, assim Funari e Silva (2008, p. 23) se expressam


acerca desta a�rmação:

Aristóteles aponta como característica essencial da História sua preocupação com


o efêmero, com o acontecimento que não se pode repetir e que, por isso mesmo, na-
da nos pode ensinar sobre a natureza humana ou mesmo do mundo. O particular,
por de�nição, nada revela.

É bom e temeroso poder discordar de alguém como Aristóteles. Mas o desen-


volvimento da História como disciplina e como teoria veio nos mostrar que o
particular diz muito sobre homens e sobre o mundo, assim como sobre os ho-
mens no mundo.

9. A historiogra�a no Medievo
A no Medievo está intrinsecamente ligada ao Cristianismo.
Basta lembrar que, durante muito tempo, a Igreja foi a detentora do saber.
Nesse período, os homens, suas obras e os acontecimentos só ganhavam im-
portância se vistos como resultados dos desígnios divinos.

Essa historiogra�a produziu genealogias (http://pt.wikipedia.org/wi-


ki/Genealogia), anais (http://pt.wikipedia.org/wiki/Anais) (reais e monásticos)
e cronologias (http://pt.wikipedia.org/wiki/Cronologia) de acontecimentos su-
cedidos nos reinados dos seus senhoris ou da sucessão de abades
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Abade). Nos documentos, encontramos, igual-
mente, hagiogra�as e biogra�as de reis. Os textos ainda podiam exaltar uma
dinastia como condenar aqueles que não seguiam os preceitos do
Cristianismo.

A escrita dessas fontes estava sob a responsabilidade de hagiógrafos


(http://pt.wikipedia.org/wiki/Hagiogra�a), cronistas (http://pt.wikipedia.org
/wiki/Cr%C3%B3nica), integrantes do clero (http://pt.wikipedia.org/wiki/Clero)
episcopal ligados ao poder e por monges (http://pt.wikipedia.org/wi-
ki/Monge). Como exemplo dessa historiogra�a, citamos: História Eclesiástica
do Povo Inglês, do século 8 (http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9culo_VIII),
de autoria de Beda, o Venerável, e Etimologias, de Isidoro de Sevilha.

10. A historiogra�a nos séculos 18 e 19


É contraproducente unir as historiogra�as dos séculos 18 e 19 num mesmo tó-
pico. Pode parecer que as continuidades e permanências são superiores às
descontinuidades e rupturas no interior da escrita da História. No entanto, es-
sa junção aqui realizada justi�ca-se por dois motivos: primeiro, não é a passa-
gem de um século para o outro (temporalmente falando) que modi�ca as es-
truturas e, em segundo lugar, porque o século 19 pode ser entendido como um
momento de concreção e reação ao que foi divulgado no século precedente.

Observe os tópicos a seguir:

1. Avanço do Iluminismo → Nova roupagem das Universidades →


Surgimento da Filologia.
2. Filologia Histórica: conhecimento mais rigoroso e aprofundado das lín-
guas antigas → conhecimento das fontes mais objetivo.
3. Conhecimento mais objetivo do passado → início do positivismo historio-
grá�co: crítica textual que visava saber se os documentos eram verdadei-
ros e �dedignos: descrição factual precisa. A História, desse modo, surge
como um conjunto de fatos que existem nos documentos. Basta extraí-
los. Há um rompimento com a escrita da História de tradição literária (fá-
cil de ler) rumo a um discurso árido e douto. Seus principais representan-
tes: Barthold Georg Niebuhr e Leopold Von Ranke.
4. Revue Historique (1876) – surgimento da Escola Metódica: autores associ-
ados a essa escola estavam preocupados com a escrita da história nacio-
nal e o estabelecimento da identidade da nação. Para tanto, exigiu-se um
rigor metódico, o afastamento da parcialidade, da especulação e da não
objetividade para se contar como a história realmente aconteceu. Dois de
seus representantes são: Gabriel Monod e Gustave C. Fagniez.
5. Karl Marx e a concepção dialética da História: a história de toda socieda-
de é a história da luta de classes; a revolução é a força motriz da História.
A vida social, política e intelectual é condicionada ao modo de produção
da vida material (materialismo).

Em 1870, ocorreu a derrota do exército francês na guerra franco-prussiana. Com essa derrota, a França
sentiu a necessidade de reescrever sua história e de construir sua identidade. O pensamento histórico ale-
mão teve grande in�uência nesse contexto. Dentre os autores mais conhecidos desse período, citamos:
Gabriel Monod, Charles Seignobos e Ernest Lavisse. Todos eles, ao lado de Theodor Mommsen, serviram
de modelo e inspiração para as gerações posteriores de historiadores franceses.

11. O século 20 e os Annales


Segundo Burke (1991, p. 127):

Da produção intelectual, no campo da historiogra�a, no século XX, uma importante


parcela do que existe de mais inovador, notável e signi�cativo origina-se da
França. A historiogra�a jamais será a mesma.

É assim que Peter Burke inicia e �naliza o seu livro A Revolução Francesa da
Historiogra�a: a Escola dos Annales, 1929-1989, em que descreve e analisa as
três gerações do movimento intelectual francês associadas à revista Annales
(o primeiro título da revista foi Annales d'histoire économique et sociale
[1929]), que teve como seus principais representantes Marc Bloch, Lucien
Febvre, Fernand Braudel, Georges Duby, Jacques Le Goff, Emmanuel Le Roy
Ladurie, Ernest Labrousse, Pierre Vilar, Maurice Agulhon, Michel Vovelle, en-
tre tantos outros.

A última assertiva da citação anterior não é fortuita ou mero chavão. Re�ete


bem a prática historiográ�ca dos membros dos Annales, que objetivaram su-
prir a tradicional narrativa de acontecimentos por uma história-problema, co-
mo também deixar de fazer apenas a história política e abordar a história de
todas as atividades humanas e, por �m, estabelecer uma relação profícua com
outras disciplinas das Ciências Sociais, como a Antropologia, a Sociologia, a
Geogra�a etc. As massas anônimas e seus modos de viver, sentir e pensar fo-
ram analisados nesse contexto de interdisciplinaridade. No entanto, vale res-
saltar que essa escola não formou um grupo monolítico, executando uma his-
toriogra�a uniforme. Bem pelo contrário. As diferenças podem ser observadas
no interior das três fases (ou gerações) desta escola:

1ª geração de 1920 a 1945


História enquanto ciência do homem: há uma separação entre os conceitos de
História e passado. O que se procura entender é a história passado e não
passado em si, que é compreendido como uma construção histórica. Seus
maiores representantes foram Marc Bloch e Lucien Febvre.

2ª geração de 1945 a 1968


O que se aspirava era uma prática histórica mais aberta, ou seja, que abordas-
se os campos social, econômico, cultural, geográ�co e religioso, em suas dife-
rentes temporalidades e diversas perspectivas. Dito de outro modo: aspirou-se
por uma história total. Fernand Braudel representa exemplarmente essa gera-
ção.

3ª geração de 1968...
Fase também conhecida por História Nova ou Nova História. Essa geração
particularmente nos interessa, pois os questionamentos apresentados no de-
correr desta disciplina são oferecidos a nós pelos integrantes desse grupo ou
por estudiosos que questionaram os paradigmas da história a partir das dis-
cussões desse grupo. Por esse motivo, um item separado abordará o tema.

12. A nova história


Três processos caracterizam a terceira geração: a assimilação de�nitiva de
novos problemas, novas abordagens e novos objetos. Temas como mulher, se-
xualidade, prisão, doença, sonho, corpo e morte são estudados não somente
sob a luz da História, mas igualmente na sua relação com a Antropologia, a
Psicologia e a Sociologia.

Ocorre um distanciamento acentuado em relação à história política tradicio-


nal. A questão da unidade do objeto e a possibilidade concreta de uma histó-
ria total também foram deslocadas. Não existe mais o homem, mas os ho-
mens, e não mais história, mas histórias.

Então, a atenção voltou-se para o sótão, deixando-se o porão (o material) para


trás, ou seja, as mentalidades ressurgiram com nova roupagem nos estudos
históricos acadêmicos. Philippe Ariès foi, talvez, o maior responsável por esse
retorno; Robert Mandrou, pela divulgação; e Jacques Le Goff, Georges Duby,
Emmanuel Le Roy Ladurie e Michel Vovelle, pela aplicação dos estudos das
mentalidades.

De acordo com Chartier (1990, p. 14-15):

[...] as atitudes perante a vida e a morte, as crenças e os comportamentos religiosos,


os sistemas de parentesco e as relações familiares, os rituais, as formas de sociabi-
lidade, as modalidades de funcionamento escolar etc [...] Sob a designação de histó-
ria das mentalidades ou de psicologia histórica delimitava-se um novo campo [....]

Mas esses objetos carecem de uma abordagem apropriada. Como você anali-
saria essas temáticas no tempo, melhor dizendo, a uma primeira vista?
Acredita ser capaz de reconhecer as atitudes perante a morte num breve espa-
ço de tempo? Os adeptos da história das mentalidades não apostaram nessa
possibilidade. Houve um aprofundamento nas pesquisas de longa duração:
“[...] tempos das estruturas, tempo quase imóvel da relação entre o homem e a
natureza” (VAINFAS, 1997, p. 134).

Mas essa história foi rebatida: se não há o homem, no singular, se não há a


história, também no singular, igualmente não há uma única forma de pensa-
mento que caracterize o homem na história, mas diferentes modos de viver,
sentir e pensar para diferentes homens e passados.

É óbvio, e você já estudou em outras disciplinas, que a Nova História não se re-
sumiu à História das Mentalidades. Para �nalizar, a sua atenção, nesse mo-
mento, deve voltar-se para o fato de que, com a introdução de novos proble-
mas, novas abordagens e novos objetos nos estudos historiográ�cos, o próprio
conceito de História mudou, o modo de se contar a história mudou, e a sua re-
lação com outras disciplinas também. São essas transformações que veremos
mais adiante.

Uma última consideração importante à compreensão dos conteúdos futuros:


nessa terceira geração, não houve a predominância de um grupo à frente dos
demais estudiosos, não houve mais a prevalência da língua francesa nos estu-
dos, como também a própria França deixou de ser o centro do pensamento
histórico. Autores de outras línguas e outras regiões entraram no embate con-
tra a “velha” História.

Para Falcon (1997, p. 111):

Batizada de nouvelle histoire, essa historiogra�a compreende historiadores cujas


trajetórias intelectuais e políticas podem ser muito distintas entre si, tal como a
maneira de cada um deles encarar a disciplina histórica e seu ofício.

13. Texto complementar


Os fragmentos a seguir versam sobre o único tratado da Antiguidade sobre a
historiogra�a. Eles fazem parte de um artigo escrito por André L. Lopes.
A leitura desses fragmentos levará a conhecer um pouco mais sobre a temáti-
ca discutida até aqui. Observe o que o historiador antigo fala sobre a escrita da
História. Algumas de suas colocações vêm ao encontro do que estamos estu-
dando. Observe, também, o que ele fala sobre a verdade.

Para auxiliá-lo numa re�exão crítica sobre a historiogra�a, após alguns frag-
mentos, foram inseridos comentários direcionando a leitura. Sugerimos que
após essa leitura dirigida, você busque pelo artigo na íntegra e elabore seu
próprio bloco de anotações. O artigo pode ser consultado na íntegra no clican-
do aqui (http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&
pid=S0101-90742005000200008&lng=en&nrm=iso).

Na Antigüidade se inventou a história, e foi pródiga em produções historiográ�-


cas, bastante econômica em re�exões sobre essa novidade. Se existem referências
a algumas obras antigas que parecem tratar da historiogra�a – como, por exem-
plo, o tratado de Teofrasto, Perì Historías (Sobre a história), do qual conhecemos
apenas o título, ou o livro de Praxífanes citado por Amiano Marcelino em sua Vida
de Tucídides –, essas obras estão hoje completamente perdidas e especular sobre
seu conteúdo seria perda de tempo. Aliás, é signi�cativo que nenhuma obra sobre
a história seja citada nas bibliogra�as dadas por Diógenes Laércio em Vidas e dou-
trinas dos �lósofos ilustres.

O silêncio dos �lósofos antigos sobre a historiogra�a é quase completo. Mesmo


Aristóteles, tão prolí�co a respeito de todos os campos do conhecimento, a ignora
em toda a sua extensa obra. As únicas aparições da história no extenso corpus do
�lósofo de Estagira são duas passagens da Poética, nas quais é rejeitada em favor
da poesia, e uma breve recomendação, na Retórica, aos políticos que leiam histó-
ria para ampliar seus conhecimentos.

Encontramos algumas re�exões sobre a historiogra�a nas obras dos próprios his-
toriadores. Mas, na maior parte das vezes, essas re�exões são fragmentárias, estão
inseridas em polêmicas com outros historiadores ou trata-se de simples elogios
retóricos da historiogra�a. Na verdade, a mais completa investigação antiga sobre
a historiogra�a encontra-se em um pequeno tratado da autoria de Luciano de
Samósata, um escritor satírico nascido na Síria no século II da Era Cristã: Como se
deve escrever a história, a única obra antiga inteiramente dedicada à historiogra-
�a de um ponto de vista teórico que conhecemos.

Comecemos, portanto, pelo próprio ineditismo da obra: por que Luciano resolveu
escrever uma teoria da história? Por que escrever um tratado que nenhum outro
escritor da Antigüidade tivera necessidade ou interesse em escrever?

Como se deve escrever a história, além de um “manual metodológico”, é um “pan-


�eto literário”, ou seja, uma obra destinada à crítica de uma prática literária que
Luciano não via com bons olhos. Dos 63 parágrafos do texto, Luciano dedica 19,
quase um terço da obra, a exemplos de maus historiadores (§§ 14-32). Essa mesma
técnica, “como não fazer” (crítica cômica) e “como fazer” (preceitos sérios), foi usa-
da por ele em diversos outros pan�etos do mesmo tipo como, por exemplo, em
Mestre de retórica – “como não ser bem-sucedido na retórica e como sê- lo” – e
em Lexífanes – “como não reviver palavras áticas e como fazê-lo”. No entanto,
Como se deve escrever a história se destaca dentre todos, pois apenas nele a cari-
catura não é a principal preocupação do texto e “a balança é mais ou menos equi-
librada”:2 contrapondo-se aos 19 parágrafos dedicados à crítica cômica dos maus
historiadores, 27 são destinados aos ensinamentos prescritivos sobre a história
(§§ 34-60).

Observe este pequeno resumo da obra onde o autor do artigo descreve alguns
elementos do texto analisado. É interessante constatar que a crítica historio-
grá�ca já era utilizada nos primórdios da escrita da História.

Sendo uma obra de crítica, Como se deve escrever a história estava, portanto, viva-
mente inserida na prática historiográ�ca do século II d.C.. O que não signi�ca ne-
cessariamente que os vários exemplos ridículos de histórias e historiadores cita-
dos por Luciano tenham realmente existido. O próprio Luciano parece extrema-
mente irônico ao garantir a veracidade das histórias por ele criticadas:

Dir-lhes-ei então, em detalhes, o quanto me lembro haver ouvido alguns


historiadores dizerem recentemente na Jônia, e agora mesmo na Acaia,
descrevendo essa mesma guerra. E, em nome das Graças, que ninguém
deixe de acreditar no que vou dizer. Pois eu juraria por sua veracidade,
se fosse próprio inserir um juramento em um tratado.

É provável que diversos historiadores estivessem ativos na época em que Luciano


escreveu e que novas histórias da guerra entre os romanos e os partos fossem pu-
blicadas – ou recitadas – com freqüência. Já no séc. I a.C., [...] No entanto, nada
impede que Luciano tivesse criado histórias e historiadores “ideais”, que se encai-
xassem melhor nos pontos que ele critica. A crítica aos maus historiadores se
mantém, mesmo que todos os historiadores criticados sejam criação do crítico. E a
crítica é necessária, pois o que Luciano busca é uma história justa (historías di-
kaías). A verdade, um dos traços mais importantes da historiogra�a desde o seu
início na Grécia, em Luciano não é senão o instrumento que conduz ao justo. “É
necessário” escrever a história “com o verdadeiro”: “eis sua régua e seu �o de pru-
mo para uma história justa”.

História justa... verdadeira – eis a proposta de Luciano. Para elaborar essa crí-
tica, o autor parte do pressuposto de que muitas histórias estão fantasiadas;
não narram o que realmente teria acontecido. Muito disso estava relacionado
ao contexto no qual o historiador estava inserido (funcionário de governo, fun-
cionário direto ou escravo do imperador etc.). Podemos dizer que hoje em dia
também é necessário considerar o lugar do historiador?

Para Luciano, o poder romano era uma constatação evidente e explícita: ninguém
se atreveria a combatê-lo, pois ele já havia submetido e conquistado todos os po-
vos. Com efeito, a época da vida de Luciano, o século II d.C., foi o auge do poderio
imperial romano, o período dos Antoninos, e a di�culdade de se escrever uma his-
tória justa era que a maioria dos historiadores, “negligenciando contar o que ocor-
reu [os eventos], gastam seu tempo no elogio dos chefes e dos generais, elevando
os nossos até as nuvens e depreciando os do inimigo além de toda a medida”.

Tratava-se, portanto, de mais do que um pan�eto literário. Como se deve escrever


a história era, também, um pan�eto anti-romano. E a crítica era feita em um cam-
po que, para a maior parte dos antigos, era naturalmente político, a historiogra�a:

[...] como o judeu Flávio Josefo traduziu a história da guerra judaica em


grego para formar um contraste com o �orescimento da mentirosa his-
toriogra�a �lo-romana, assim – mais ou menos um século mais tarde –
o sírio Luciano reagiu com o opúsculo Como se deve escrever a história
na ocasião da explosão de uma historiogra�a �lo-romana que �oresceu
a partir da euforia provocada pelas vitórias de Lúcio Vero.

Luciano, embora não critique os romanos diretamente nem uma vez, resume seus
preceitos para a história dizendo que é necessário escrever a história “com o ver-
dadeiro […] mais do que com a adulação [kolakeía]”. Portanto, o alvo das críticas de
ambos eram os historiadores aduladores, intelectuais que estavam mais preocu-
pados com os favores dos poderosos do que com a narrativa dos eventos ou com o
rigor histórico, as preocupações de um verdadeiro historiador. Além disso, ao es-
crever em grego, ambos os autores visavam, evidentemente, a um público que fa-
lava grego e, certamente, suas críticas eram dirigidas aos historiadores que escre-
veram histórias romanas em grego. Ora, qual seria a relação possível entre esses
intelectuais gregos e seus senhores romanos senão a adulação e a troca de favo-
res?

Podemos ler, assim, em Luciano, uma forte oposição entre a verdade que a história
deveria possuir e a adulação que, na maior parte dos casos, era o que se lia nas
narrativas dos historiadores. A oposição central do Como se deve escrever a histó-
ria não é, portanto, entre verdade e mentira, como poderíamos pensar inicialmen-
te; é entre verdade e adulação, pois a história era um assunto político que exigia
imparcialidade e justiça.

Verdade x mentira... história x �cção? Será que podemos fazer tal associação?
Se a adulação não é uma escrita justa e verdadeira, ela não pode ser estudada
como um produto de uma situação? Em outras palavras, por que adular? A
quem atingir com o texto? Sabendo que muitos escritores antigos trabalhavam
diretamente ligados a órgãos do governo, como analisar a produção deles? Que
cuidados tomar quando da análise desse tipo de documento?

A única ação possível para Luciano contra o poder invencível de Roma e seus
aduladores era a crítica. Em diversas obras de Luciano os �lósofos cínicos – como
Diógenes, Crates, Menipo e outros – são encarregados dessa crítica que, mesmo
cômica e caricatural, não perde sua mordacidade. Eles são os médicos das paixões
– as doenças da mente humana – e o próprio Luciano, pela boca de Diógenes, nos
diz qual a função do crítico cínico: “Sou um libertador de homens e um médico de
suas paixões; para dizer tudo, quero ser um profeta da verdade e da franqueza.”

Não se pode deixar de observar que quase todas essas virtudes aparecem na de�-
nição do historiador ideal em Como se deve escrever a história:
Assim, pois, para mim, deve ser o historiador: sem medo, incorruptível,
livre [eleútheros], amigo da franqueza [parresías] e da verdade [aléthei-
as]; como diz o poeta cômico, alguém que chame os �gos de �gos e a ga-
mela de gamela; alguém que não admita nem omita nada por ódio ou
por amizade; que a ninguém poupe, nem respeite, nem humilhe; que se-
ja juiz equânime, benevolente com todos até o ponto de não dar a um
mais que o devido; estrangeiro nos livros, sem cidade, independente [au-
tónomos], sem rei, não se preocupando com o que achará este ou aquele,
mas dizendo o que se passou.

Assim, vemos que, para Luciano, o historiador deve ser uma espécie de �lósofo cí-
nico, livre e sem medo de ser sincero. Mais uma vez, é possível ligar essa passa-
gem ao problema da adulação: se o historiador cometesse o erro de bajular os po-
derosos, estaria abdicando de sua liberdade e de sua auto-su�ciência.

Para todos os lados que se olhe, a adulação surge como um pecado a ser evitado.
Como a adulação não devia ter espaço em uma obra de história, Luciano, para cri-
ticar esse vício, escreveu um pan�eto com a forma de uma teoria da história. Em
Como se deve escrever a história, os aspectos teóricos do tratado estão a serviço
da intenção crítica; uma crítica surgida das necessidades políticas do presente. Se
a circunstância da guerra e das histórias adulatórias que ela gerou não ocorresse,
imagino que Luciano não teria escrito um tratado sobre a história.

Segundo Luciano, seus conselhos funcionavam “de uma maneira dupla”; ensina-
vam os historiadores “a escolher isso e evitar aquilo”. Assim, ele começa a parte
teórica de seu tratado catalogando “os vícios que seguem nos calcanhares dos his-
toriadores medíocres” e ensinando, precisamente, como não se deve escrever a
história.

Não à toa, dada a insistência de Luciano contra a adulação, a primeira distinção


feita por ele é entre a história e o panegírico: com efeito, os historiadores “ignoram
que não é um istmo estreito que delimita e separa a história do panegírico [enkó-
mion], mas que há entre os dois uma grande muralha e, como dizem os músicos,
uma distância de duas oitavas”.

A posição de Luciano nessa guerra entre a �loso�a e a sofística é clara: ele se posi-
ciona contra a retórica vazia, simples discursos de aparato, sem conteúdo. Luciano
começou sua carreira como orador e nunca deixou de sê-lo, mas voltou o arsenal
da retórica e da sofística contra os �lósofos, so�stas, historiadores, gramáticos ou
qualquer outro que considerasse hipócrita ou mentiroso.
A retórica, para Luciano, deveria ser uma retórica idealizada que seguisse “as pe-
gadas de Demóstenes, Platão e alguns outros”. Mas a retórica dos antigos não
existia mais; fora substituída por uma retórica das aparências, simples ornamento
sem conteúdo ou utilidade. Restava apenas o “outro caminho”, trilhado por “muita
gente”. Esse era o caminho da retórica “moderna”, o caminho trilhado pelos “se-
gundos” so�stas, biografados por Filóstrato, que visavam apenas a ganhos materi-
ais.

É interessante observar que Luciano propôs uma escrita historiográ�ca que


seguisse as pegadas da Filoso�a. Nesse contexto, a mitologia e a poesia seri-
am vistas como instrumentos utilizados pelos “aduladores”? Escrever com ra-
ciocínio e retórica com conteúdo. É nesse caminho que seguem os historiado-
res contemporâneos?

Juntamente com a retórica sem conteúdo, Luciano renega o prazer dos discursos e
não lhes permite um lugar na história. No entanto, os maus historiadores acha-
vam que era possível distinguir entre o prazeroso e o útil quando se tratava de his-
tória. “Por essa razão”, prossegue, eles “trazem elogios para ela [a história], para
dar prazer e divertimento aos leitores”. Eles não sabem quão longe estão da verda-
de, pois “a história tem uma única tarefa e um único objetivo – o que é útil – e isso
deriva somente da verdade”. Por isso, os historiadores “não pode[m] admitir uma
mentira, mesmo em pequenas doses”, enquanto os oradores de sua época não se
importavam em mentir para obter seus resultados: o prazer dos ouvintes, a fama e
a fortuna resultantes do sucesso na carreira declamatória.

No entanto, Luciano concede que possa haver lugar para elogios em uma obra his-
toriográ�ca, desde que eles sejam controlados pelo interesse da posteridade e pela
utilidade. Tanto os elogios (épainoi) quanto as censuras (psógoi) deviam ser “cui-
dadosos e bem considerados, livres de contaminação pelos informantes, suporta-
dos pela evidência [metà apodeíxeon], curtos e não inoportunos, pois os envolvi-
dos não estão sendo acusados no tribunal”.

Ou seja, há um lugar para o elogio na historiogra�a, desde que “seja feito na hora
certa e que se mantenha dentro de limites razoáveis”. O grande problema, portan-
to, não parece ser o elogio em si, mas o exagero do seu uso. Além disso, quando
Luciano diz que o elogio na historiogra�a deve se basear em evidências (metà
apodeíxeon), mostra a antiga �liação daquela com a verdade e afasta-a ainda mais
da retórica epidítica. Com efeito, assim como a apódeixis da retórica aristotélica, a
história deveria partir de fatos verdadeiros e mostrar sua causa. Isto �ca bem cla-
ro no prefácio de Heródoto:
[...] esta é a demonstração da investigação [historíes apódexis] de
Heródoto de Halicarnasso, para que nem as coisas feitas pelo homem se
apaguem com o tempo, nem que as grandes e maravilhosas obras, algu-
mas realizadas [apodechthénta, i.e., demonstradas] pelos gregos, outras
pelos bárbaros, se tornem inglórias, tanto em outros respeitos, quanto
sobre a causa [aitíen] pela qual eles moveram guerra uns contra os ou-
tros.

Ou seja, Heródoto partiu de um acontecimento – a guerra contra os persas – e ten-


tou demonstrar (apódeixis) sua causa (aitía), mediante um procedimento baseado
na investigação (historía).

O uso de procedimentos retóricos na elaboração da narrativa histórica era absolu-


tamente natural e necessário para Luciano – que, não podemos esquecer, teve am-
pla formação retórica. A “retórica historiográ�ca” proposta por Luciano (e levada a
cabo por Heródoto e Tucídides), no entanto, se afastava da retórica exibicionista
dos so�stas de seu tempo e se aproximava da retórica �losó�ca de Aristóteles.
Tratava-se de partir dos acontecimentos, verdadeiros e evidentes, e demonstrá-
los. Mas nunca se poderia esquecer que a história “tem uma única tarefa e um
único objetivo – a utilidade – e isso deriva apenas da verdade”. Todos os procedi-
mentos retóricos utilizados na elaboração historiográ�ca deveriam estar sujeitos a
isso.

Por �m, creio que vale a pena examinarmos uma pequena metáfora utilizada por
Luciano em seu manual. Segundo o sírio, o historiador deve deixar que sua inteli-
gência seja “semelhante a um espelho impoluto, brilhante, preciso quanto a seu
centro – e, qualquer que seja a forma dos fatos que recebe, assim os mostre, sem
nenhuma distorção, diferença de cor ou alteração de aspecto”.

A referência à mente do historiador como um espelho que re�ete os fatos é bas-


tante interessante. Pois o espelho, por mais centrado e impoluto que seja, re�ete
uma imagem parecida com a original, mas que guarda algumas diferenças dessa.
A mais evidente dessas diferenças é a inversão que se efetua na superfície do es-
pelho entre direita e esquerda – e os antigos jamais deixaram de percebê-la.
Platão, por exemplo, cita diversas vezes esse fenômeno.

Muitos autores antigos, modernos e contemporâneos �zeram uso da metáfora


do espelho. Procure saber mais sobre os signi�cados tomados por esse utensí-
lio tão precioso aos homens. Perceberá que, muito mais do que re�etir, ele po-
de deturpar uma realidade. As fontes históricas também não cumprem esses
papéis?

Isso poderia signi�car que o historiador sempre vai acrescentar algo aos fatos,
malgrado sua precisão e imparcialidade? Talvez. Mas creio que isso seria ler
Luciano pensando em Hayden White. Luciano, como todos os antigos, acreditava
na possibilidade de “narrar a história tal como ela aconteceu”. Além do que, não
podemos esquecer que o espelho criticado por Platão e Aristóteles é o objeto, o dis-
co metálico que re�ete imagens. Na literatura grega, no entanto, o espelho aparece
quase sempre com um sentido �gurado. E esse sentido sempre se re�ete sobre o
plano moral....

A única tarefa do historiador é contar o que aconteceu. Quando um homem vai es-
crever história, deve ignorar todo o resto.

Vê-se novamente nessa passagem a questão da verdade da historiogra�a oposta à


adulação dos poderosos. Como já dissemos antes, essa é a oposição central em
Como se deve escrever a história.

Ao utilizar o espelho como metáfora para a mente do historiador, creio que


Luciano estava, como nos demais exemplos citados, ressaltando o aspecto moral e
ético da história. Pois se o espelho re�ete tanto o certo quanto o errado, é tarefa do
historiador re�etir, dentre as imagens que sua mente vê nos acontecimentos,
aquelas que são justas. Se o historiador pretende que sua história seja justa, se pre-
tende que sua obra tenha alguma utilidade para o futuro e possa ser, como
Tucídides “legislou”, “um tesouro [ktêmá] para sempre”, ele não pode dar espaço
para a adulação ou para os excessos da poesia. Sua obra deve ser uma história
verdadeira e digna de con�ança, que ensine e eduque os homens do futuro com os
acontecimentos do presente, para que, quando os acontecimentos, devido à natu-
reza humana, venham a se repetir, eles estejam preparados para agir melhor.

* Professor de Teoria da História e Historiogra�a no Depto. de História da Universidade


Estadual de Goiás – UEG, Formosa, GO. CEP 73802-000. e-mail: a.lemelopes@gmail.com

1
Como se deve escrever a história, 2. Luciano se refere à guerra iniciada pelo rei parto
Vologésio IV na primavera do ano 162 e vencida pelo co-imperador Lúcio Vero quatro anos de-
pois (o triunfo foi celebrado em 12 de outubro de 166). A edição consultada para as obras de
Luciano é Lucian in eight volumes. Londres, Cambridge, Mass.: William Heinemann,
Harvard University, 1913-1959; as traduções, exceto quando indicado, são minhas.

Por �m, trazemos o texto de Cecília Cordeiro, Historiogra�a e história da histo-


riogra�a: alguns apontamentos (http://www.snh2015.anpuh.org/resources
/anais/39/1428357432_ARQUIVO_ArtigoSNH2015Historiogra�a.pdf), no qual a
autora apresenta um balanço atualizado de 2015 no que tange aos debates so-
bre o conceito de historiogra�a, de história, de quebra de paradigmas, re�etin-
do sobre os desa�os de se tentar construir uma história da historiogra�a.

Pudemos, então, perceber que diferentes correntes historiográ�cas se desen-


volveram em diferentes períodos, cada uma delas respondendo aos seus con-
textos de produções, que estão relacionados aos usos da história, aos temas,
fontes de pesquisa e métodos distintos. Esses elementos que balizam a cons-
trução do discurso historiográ�co foram revistos e repensados por essas di-
versas correntes, sendo fundamental compreender o histórico de cada um de-
les na evolução do discurso historiográ�co. Para complementar essa percep-
ção, por meio de um vídeo do historiador Icles Rodrigues, veremos como os
documentos históricos podem ser selecionados, criticados e usados pelo his-
toriador em diferentes perspectivas e contextos.

Neste momento, re�ita sobre sua aprendizagem respondendo à questão a se-


guir.

14. Considerações
Pudemos perceber durante os estudos deste ciclo que a história pode possuir
diversos usos e signi�cados em decorrência de cada contexto em que é produ-
zida, e que cada um desses contextos acaba por rever as temáticas, métodos e
fontes de pesquisa, elementos fundamentais da construção historiográ�ca.
No Ciclo 2 nos deteremos de forma mais profunda à historiogra�a produzida
na Antiguidade, no Medievo e no Renascimento, bem como suas principais
características. Devemos ter mente que é a compreensão da construção do
discurso historiográ�co ao longo do tempo que nos trará um melhor entendi-
mento do que é a disciplina hoje, o que buscaremos compreender no decorrer
do presente estudo.
(https://md.claretiano.edu.br/his-gs0009-

fev-2022-grad-ead/)

Ciclo 2 – A Historiogra�a na Antiguidade, Idade


Média e Renascimento

Leandro Salman Torelli


Reginaldo de Oliveira Pereira

Objetivos
• Perceber a função da história na Antiguidade por meio de seus princi-
pais autores.
• Compreender a historiogra�a medieval como referência cultural para a
Europa ocidental.
• Identi�car na historiogra�a renascentista uma nova perspectiva huma-
nista.

Conteúdos
A escrita da História e a compreensão dos processos que envolvem sua pro-
dução na Antiguidade, na Idade Média e no Renascimento.

Problematização
Qual o tipo e a função da história para a Antiguidade? Quais seus principais
autores? Quais as principais características e funções da historiogra�a medi-
eval? Quais as transformações que o renascimento trouxe para a historiogra-
�a?
1. Introdução
Como pontuado durante os estudos do Ciclo 1, devemos ter em mente que cada
grupo, sociedade e período histórico constrói seu discurso sobre o passado a
�m de responder a determinados propósitos e intuitos. Tais visões historio-
grá�cas possuem suas características próprias quanto aos seus métodos, te-
mas e fontes. É nessa direção que se apresenta como fundamental para o his-
toriador a compreensão do que podemos chamar de uma história da historio-
gra�a. Por este motivo é que neste ciclo vamos abordar de forma mais detida o
papel da história na Antiguidade com seus principais autores, a historiogra�a
medieval como referência cultural para a Europa ocidental e, por �m, a histo-
riogra�a renascentista em uma nova perspectiva humanista.

2. História e historiogra�a na antiguidade


É durante a Antiguidade que nomes como Heródoto e Tucídides trouxeram su-
as contribuições para a construção do discurso historiográ�co em seu tempo,
sendo esses nomes e suas formas de pensar a história as bases para a com-
preensão da historiogra�a proposta por esse paradigma.

Perpassando uma perspectiva mitológica e de busca da verdade, a história se


apresentou por meio de uma visão voltada ao fortalecimento da identidade e
valores julgados como importantes para os gregos. Assim, para melhor com-
preender essa perspectiva historiográ�ca, veremos sobre história da historio-
gra�a na Antiguidade, destacando suas fases, autores, características e condi-
ções de produção.

3. Escrita da história na antiguidade


É quase consenso entre os estudiosos da escrita da História que esta teria nas-
cido na Grécia Antiga, entre os séculos 6º e 5º a.C. Assim se manifesta
Carbonell (1987, p. 15), importante historiador e pesquisador do tema: “é na se-
gunda metade do século 5º a.C., no pequeno mundo egeu onde tinha desabro-
chado a arte dos poetas trágicos e despertava a especulação dos �lósofos, que
nasce a história”.
No mesmo sentido, seguindo as a�rmações do historiador Fontana (1998, p.
17), podemos dizer que a historiogra�a surgiu com os chamados “ ”
da Ásia Menor, “que tinham recolhido a informação dos manuais em que os
marinheiros anotavam os portos e povos das costas mediterrâneas, com ob-
servações sobre seus costumes e sobre a história local”.

: segundo o dicionário Aurélio, é a designação comum aos primeiros escritores gregos, ou,
ainda, refere-se a autores de um glossário.

Observando a origem do termo "História", completa o historiador Fontana


(1998, p. 17), percebemos que ela “deriva de um verbo que signi�ca ‘explorar,
descobrir’, o que viria a corresponder ao fato de que a primitiva historiogra�a
grega era, antes de tudo, uma exposição de ‘descobrimentos’ sobre terras e po-
vos estranhos”. De acordo com o mesmo autor, entre os logógrafos, destaca-se
“Hecateu de Mileto (c. 500 a.C.), cujas obras se referem à descrição da terra e à
história, e de quem se destaca a vontade expressa de analisar racionalmente
os mitos do passado” (FONTANA, 1998, p. 17).

Acredita-se que o avanço da escrita da História guarde relações diretas com as transforma-
ções da sociedade grega entre meados do século 6º e 5º a.C.

Nesse momento, iniciou-se uma difusão da atividade econômica no interior


de algumas cidades-Estado, o que acabou promovendo certo desequilíbrio en-
tre a aristocracia vinculada à posse da terra e os grupos que faziam as ativida-
des mercantis.

Esse desequilíbrio entre a aristocracia e os grupos mercantis resultou em mu-


danças na estrutura de poder das sociedades helênicas, derrubando reis e as-
cendendo grupos que apoiavam os chamados tiranos.

Posteriormente, foram esses tiranos que abriram espaço para a ascensão de


regimes ditos democráticos, controlados por uma nova elite, talvez mais mer-
cantil e menos rural.
O caso clássico dessas transformações na sociedade grega ocorreu em Atenas,
ao redor do ano de 600 a.C. O historiador Anderson (1994, p. 30) descreve essa
mudança da seguinte forma:

A ruptura dessa ordem geral ocorreu no último século da era arcaica, com o adven-
to dos tiranos (c. 650-510 a.C.). Estes autocratas romperam a dominação das aristo-
cracias ancestrais sobre as cidades: eles representavam proprietários de terras
mais novos e riqueza mais recente, e estendiam seu poder a uma região muito mai-
or graças a concessões à massa sem proprietários dos habitantes das cidades. As
tiranias do século 6 realmente constituíam a transição crucial para a pólis clássica.
Foi durante seu período geral de predominância que as fundações militares e
econômicas da Grécia clássica foram lançadas.

Além disso, mudanças da ordem religiosa manifestaram-se também, especi-


almente a tendência de revisar criticamente os mitos gregos (algo que
Hecateu de Mileto procurou realizar) e a característica antropomór�ca da sua
religião.

O termo "antropomor�smo" origina-se da junção de duas palavras gregas: anthropos (homem) e morphe
(forma). Portanto, um antropomor�smo se dá quando os deuses se manifestam em forma humana ou são
atribuídos feições, sentimentos, atos e paixões do homem a divindades. Assim, para a civilização da
Grécia Antiga, os deuses eram antropomór�cos.

Nesse contexto de transformações, um novo modelo de análise do passado de-


veria surgir, pois aquele dos mitos que glori�cavam os grupos no poder não
servia mais para justi�car a nova realidade.

Logo, é nesse contexto e com esse papel que surge a História. Segundo
Fontana (1998, p. 18), “da fusão de revolução política e mudanças religiosas
surgiu a interpretação histórica da idade clássica: uma interpretação aristo-
crática, porém favorável à democracia e hostil aos velhos mitos em que se as-
sentava a sociedade da realeza e da oligarquia” .

Os “pais” da História
Depois de Hecateu de Mileto e os logógrafos, o grande salto da História grega,
rumo a seu auge, ocorreu com dois homens que tinham características distin-
tas, mas foram igualmente importantes: Heródoto e Tucídides.

A grande tensão que permitiu o desabrochar da História foi o rompimento com o


gênero literário, em busca da verdade. Heródoto encarna em sua obra justamente
essa tensão entre �cção e realidade.

Heródoto de Halicarnasso (c. 485 – c. 424 a.C.) era um historiador por inten-
ção. Isso ele deixa claro já na inauguração de sua obra sobre as Guerras
Médicas (490-479), em que diz que escrevia para “impedir que caíssem no es-
quecimento as grandes façanhas realizadas pelos Gregos e os Bárbaros”
(CARBONELL, 19987, p. 16).

O método de investigação de Heródoto era acreditar somente naquilo que ob-


servava e ouvia dizer; essas eram suas fontes. O autor em questão defendia
que qualquer coisa fora do alcance de sua visão ou do relato claro e objetivo de
alguém que houvesse presenciado o fato estava fora do terreno da História. No
entanto, ele utilizava-se dos mitos para preencher as lacunas que as fontes
não podiam clari�car.

Dessa forma, Heródoto simboliza uma era de transição, em que a História ten-
ta deixar de ser um gênero literário, mas não rompe totalmente com ele.

Esse rompimento apenas parcial com o gênero literário pode ser a explicação
de as obras de Heródoto terem sido escritas para serem lidas em público pelos
, como na velha tradição literária da Grécia. Talvez isso justi�que por
que, para Heródoto, a verdade se situa no lado do oral ou do observado, em de-
trimento do escrito.

Um (em grego clássico (http://pt.wikipedia.org/wiki/Grego_cl%C3%A1ssico) ἀοιδός/aoidos, do


verbo ᾄδω/aidô, "cantar") era, na Grécia antiga (http://pt.wikipedia.org/wiki/Gr%C3%A9cia_antiga), um ar-
tista que cantava as epopeias acompanhado de um instrumento musical, o forminx (http://pt.wikipe-
dia.org/wiki/Forminx). Distingue-se do rapsodo (http://pt.wikipedia.org/wiki/Rapsodo), mais tardio, por
compor as próprias obras. Por esse fato, era o equivalente a um bardo (http://pt.wikipedia.org/wiki/Bardo)
celta (http://pt.wikipedia.org/wiki/Celta).
Por manter elementos literários em suas histórias, Heródoto é considerado,
em determinado momento, como, por exemplo, no século 19, um farsante, um
mentiroso.

Contudo, no período renascentista e na atualidade, ele volta ao altar de pai da


História. Isso revela, como bem destaca Dosse (2002, p. 21), uma “ambivalência
do discurso histórico, sempre tensionado entre o real e a �cção”.

Outro homem grego importante para a História é Tucídides (c. 460 – c. 400
a.C.), que se estabelece como historiador fazendo justamente uma crítica radi-
cal a Heródoto.

Figura 1 Busto de Tucídides.

Para Tucídides, Heródoto era um mitólogo e, portanto, um mentiroso.


Tucídides quer buscar a verdade e, para isso, precisava romper com o método
de seu antecessor.

A�rma Carbonell (1987, p. 17) que: “com a História da Guerra do Peloponeso, de


Tucídides, nascem simultaneamente o método e a inteligência do historiador:
a crítica das fontes e a procura racional do encadeamento causal”.

Assim, Tucídides estabeleceu um método extremamente rigoroso para a cole-


ta de fontes. Segundo Dosse (2002, p. 21), “delimitando o campo de investiga-
ção ao que ele poderia observar, Tucídides reduziu a operação historiográ�ca a
uma restituição do tempo presente, resultando em um ocultamento do narra-
dor, que se retira para deixar falar os fatos”.

Já que as fontes seriam apenas o que pudesse ser observado, era tirada do his-
toriador qualquer possibilidade de analisar aquilo que estivesse distante de
seu tempo de vida. O saber histórico em Tucídides é, exclusivamente, o obser-
vado.

Os “novos” historiadores da Antiguidade


Neste tópico, veremos um outro momento signi�cativo na busca pela produ-
ção da História.

(c.208 – c.122 a.C.) é o historiador que surge após o aparecimento das


obras de Platão e Aristóteles, no século 4º a.C. Envolvida pelo cenário de dis-
cussão �losó�ca sobre democracia e aristocracia, a obra de Políbio é uma re-
cusa da História trágica ou mesmo da pura erudição livresca.

buscava as causas da conquista romana sobre todo o mundo grego e oriental. Seu método his-
tórico era a “procura das causalidades”. No início de sua Histórias, pergunta: “Que homem será tão néscio
ou negligente que não queira conhecer como e mediante que tipo de organização política quase todo o
mundo habitado, dominado em cinqüenta e três anos não-completos, caiu sob domínio de um único impé-
rio, o dos romanos?” (FONTANA, 1998, p. 25).

Segundo Fontana (1998, p. 24-25), Políbio, “devolvendo à História seu velho


propósito generalizador, queria que não só fosse investigação sobre o passado,
como também, e sobretudo, um meio de formação política”.
Figura 2 Estátua de Tito Lívio Políbio.

Políbio é fruto do mundo em transição da Grécia para Roma, como centro arti-
culador da vida econômico-social e cultural da Antiguidade europeia. É evi-
dente que, num contexto como esse, um homem exilado da Grécia para Roma,
que viveu e presenciou os dois contextos, é uma �gura privilegiada na busca
das causas dessas transformações.

A historiogra�a propriamente romano-latina é de difícil apreensão, pois seus


autores eram muito mais entusiastas dos governos e imperadores romanos do
que propriamente historiadores. De qualquer forma, observe a síntese produzi-
da pelo historiador Fontana (1998, p. 26):

Quando passamos dos historiadores gregos aos romanos, a di�culdade para inter-
pretar o pensamento que anima as suas obras aumenta. Temos, em primeiro lugar,
o problema dos proêmios: seguindo um costume que deriva dos retóricos gregos, os
historiadores latinos fazem preceder suas obras de exposições �losó�cas, onde se
insiste em sua preocupação pela imparcialidade e em seu propósito moralizador,
exposições que pouco ou nada têm a ver com a obra em si. Pelo que se refere à im-
parcialidade, é difícil admitir encontrá-la nos grandes historiadores da etapa �nal
da República e do primeiro século do Império, cujos vínculos com a política eram
claros. É difícil atribuir objetividade e propósitos moralizadores a Salústio (87-35
a.C.), político turbulento, acusado de crimes e abusos; a um Tito Lívio (59 a.C. – 17
d.C.), a quem se considerava como um defensor do regime implantado por Augusto,
ou a um Tácito (c.58 – c.120 d.C.), que expressava o rancor da classe senatorial, re-
duzida a um papel político secundário pelos imperadores, o que explica que nos te-
nha deixado uma imagem hostil e deformadora dos reinados de Tibério, Cláudio e
Nero.

Ao �nal do Império, os romanos manifestavam seu pessimismo em relação ao


futuro, que contrastava com seu orgulho sobre a grandeza do passado romano.
Como a�rma Carbonell (1987, p. 38-39), “lúcidos e patriotas, os historiadores
romanos escreveram durante seis séculos uma obra coletiva sobre a grandeza
e decadência de Roma”; evidentemente, “uma história assim não podia deixar
de ser épica, guerreira, fanaticamente chauvinista. E mortal”.

Você acha que hoje a História continua sendo utilizada para justi�car a realidade social em
que vivemos?

Para complementar o entendimento sobre a forma, a função e o intuito dessas


produções, bem como para re�etir sobre elas, assistiremos a dois vídeos.
Neles, o historiador Elias Silva pontua a produção historiográ�ca grega e ro-
mana, da antiguidade clássica greco-romana. O autor busca destacar tanto o
contexto de produção, quanto as principais características destas correntes
historiográ�cas, sintetizando, assim, os conteúdos que abordamos até o mo-
mento.

4. Historiogra�a medieval
Em relação à historiogra�a produzida pelo medievo, devemos ter atenção ao
fato de que nesse período a Igreja Católica esteve à frente desta, ditando os te-
mas, fontes, métodos e sobretudo a forma e o intuito dessas produções. Por
meio da leitura dos textos a seguir, poderemos compreender como a produção
historiográ�ca do medievo criou uma visão providencial da história, na qual
os valores e a identidade cristã eram fundamentais. Tais textos também des-
tacam os principais nomes e características dessa corrente, explorando a rela-
ção do contexto histórico como condicionante da própria criação do discurso
historiográ�co medieval. Entretanto, essa produção vigorou somente até o
Renascimento, momento em que a historiogra�a foi criticada, abrindo cami-
nho para novas correntes de pensamento, a saber, a iluminista, a positivista e
a metódica.

5. Clio cristã: historiogra�a na era medieval

Clio, de origem grega, signi�ca "glória" ou "fama". Filha de Zeus e Mnemósine, a memória, foi uma das no-
ve musas da mitologia grega. Com suas oito irmãs, chamadas “as cantoras divinas”, habitava o monte
Hélicon.
Segundo a mitologia, reunindo-se sob a assistência de Apolo, junto à fonte Hipocrene, as musas presidem
as artes e as ciências. Clio tem o dom de inspirar os governantes e restabelecer a paz entre os homens, e a
essa função é especialmente devotada. Além disso, ela é a musa da História e da criatividade, aquela que
divulgava e celebrava realizações. Ela preside a eloquência, sendo a �adora das relações políticas entre
homens e nações. É representada como uma jovem coroada de louros, trazendo, na mão direita, uma trom-
beta e, na esquerda, um livro intitulado Thucydide. Outras representações suas apresentam-na segurando
um rolo de pergaminho e uma pena, atributos que, às vezes, também acompanham Calíope. Clio é consi-
derada a inventora da guitarra, de forma que, em algumas de suas estátuas, ela traz esse instrumento em
uma das mãos e, na outra, um plectro (palheta).

O conturbado �m do Império Romano do Ocidente e o crescimento cada vez


maior da igreja cristã é o cenário da emergência de um novo tipo de escrita da
História.

Portanto, podemos concluir dessa a�rmação que mudanças na sociedade serão re�etidas
no modo como a História é escrita.

Fontana (1998, p. 28) a�rma a existência de “uma historiogra�a cristã que, ain-
da que escrita em latim, não surge da romana clássica por um processo de
evolução ou degeneração, mas antes responde a uma nova concepção da soci-
edade – à necessidade de justi�car um novo sistema de relações entre os ho-
mens”.
Esse novo sistema de relações entre os homens se dará em vista dos seguintes
fatores:

• Crise generalizada do �m do Império Romano do Ocidente.


• Processo de invasões dos povos germânicos do norte da Europa.
• Ruralização profunda pela qual passou o Ocidente europeu entre os sécu-
los 3º e 8º da era cristã.

Nesse cenário, houve uma instituição que veio se consolidando no período �-


nal do Império Romano, a qual sobreviveu à crise e conseguiu tornar-se o cen-
tro fundamental das referências culturais da sociedade europeia ocidental.
Essa instituição é a Igreja (ANDERSON, 1994).

Dentro da Igreja, começaram a emergir os pensadores, inclusive historiadores,


que passaram a justi�car o novo modelo social que surgiu como resultado des-
sa lenta transição da chamada Antiguidade Clássica para a denominada Idade
Média.

Assim, um novo sistema social, o feudalismo, apareceu como a solução para a


intensa ruralização que a sociedade da Europa ocidental sofreu ao longo da
crise de transição. Surge, dessa forma, a historiogra�a cristã.

Segundo Fontana (1998, p. 28-29), o que distingue a historiogra�a cristã da


greco-romana é:

o fato de que a greco-romana buscava a explicação dos fenômenos históricos no in-


terior da própria sociedade, fazendo uso de uma causalidade fundamentalmente
terrena, enquanto que a cristã supõe que existe um esquema determinado vindo de
fora da sociedade humana, por designo divino, que marca o curso inelutável da
evolução histórica.

Essa forma de observar a História surge com Santo Agostinho, que, no século
5º, estabelece uma �loso�a da História fundamentada na visão cristã.
Figura 3 Pintura representando Santo Agostinho.

De acordo com o que a�rma Carbonell (1998, p. 41), Santo Agostinho, em “sua
Cidade de Deus, escrita nos anos 420, de�ne a história como a realização do
plano formado por Deus para a salvação dos homens”. Para Santo Agostinho,
havia a cidade de Deus e a cidade dos homens, mas “as duas cidades estão en-
trelaçadas uma na outra e intimamente mescladas, de tal modo que é impos-
sível separá-las, até o dia em que o juízo as separe”. Vários historiadores, em
geral vinculados à Igreja, escreveram suas obras interpretando o passado ba-
seados na perspectiva de Santo Agostinho sobre a existência de uma cidade
de Deus e de uma cidade dos homens. A primeira representa a pureza, e a se-
gunda, o pecaminoso.

Nesse caminho estava, por exemplo, o discípulo de Agostinho, Paulo Osório,


que escreveu uma nova História do mundo baseando-se na teoria agostiniana.
Assim, segundo Osório apud Fontana (1998, p. 32), o ataque dos germânicos a
Roma teria sido algo permitido por Deus “para a correção da cidade soberba,
lasciva e blasfema”.

No entanto, temos de entender um pouco mais sobre as origens e a estrutura


do feudalismo para que possamos compreender sua produção histórica.

A desarticulação dos impérios bárbaros, que emergiram do �m do Império


Romano ocidental, fortaleceu os grupos rurais e permitiu a ascensão de um
novo sistema social, o feudalismo. Sobre ele, assim se manifesta o historiador
inglês Anderson (1994, p. 143):
Foi um modo de produção regido pela terra e por uma economia natural, na qual
nem o trabalho nem os produtos do trabalho eram bens. O produtor imediato – o
camponês – estava unido ao meio de produção – o solo – por uma especí�ca rela-
ção social. A fórmula literal deste relacionamento era proporcionada pela de�nição
legal de servidão: os servos juridicamente tinham mobilidade restrita. Os campo-
neses que ocupavam e cultivavam a terra não eram seus proprietários. A proprie-
dade agrícola era controlada privadamente por uma classe de senhores feudais,
que extraía um excedente de produção dos camponeses através de uma relação
político-legal de coação.

Essa nova realidade social, que aparece em torno do século 9º no Ocidente eu-
ropeu, passou a predominar socialmente e, portanto, a necessitar de uma jus-
ti�cativa histórica para sua existência.

Dessa forma, a Igreja, que, segundo Fontana (1998), sem essa justi�cativa his-
tórica teria sua posição social colocada em perigo, veio em socorro do sistema
feudal, criando a chamada "teoria das três ordens", de maneira que a mais fa-
mosa é a do bispo Adalberon de Laon, realizada provavelmente entre 1025 e
1027. Segundo esse bispo:

[...] o domínio da fé é uno, mas há um triplo estatuto na Ordem. A lei humana impõe
duas condições: o nobre e o servo não estão submetidos ao mesmo regime. Os guer-
reiros são protetores das igrejas. Eles defendem os poderosos e os fracos, protegem
todo mundo, inclusive a si próprios. Os servos, por sua vez, têm outra condição.
Esta raça de infelizes não tem nada sem sofrimento. Fornecer a todos alimentos e
vestimenta: eis a função do servos. A casa de Deus, que parece uma, é portanto tri-
pla: uns rezam, outros combatem e outros trabalham. Todos os três formam um
conjunto e não se separam: a obra de uns permite o trabalho dos outros dois e cada
qual por sua vez presta seu apoio aos outros (JUNIOR, 1986, p. 72).

Surgia, então, a teoria das três ordens: o clero, a nobreza feudal guerreira e os
servos camponeses. Nesse sentido, Fontana (1998, p. 34) lembra que “a Igreja
reagia assim contra sua marginalização na nova ordem feudal, oferecendo-lhe
uma legitimação, ao mesmo tempo que a defendia e se defendia contra um
inimigo comum: a heresia popular igualitária”.

É importante ressaltar que o grande historiador dessa fase foi Joaquim de


Fiori (c.1132-1202).

Abade da Calábria, Joaquim de Fiori articulou em seus textos a visão das três
ordens com alguns discursos proféticos, algo que lhe causou reprovações no
Concílio de Latrão, apesar do tom geral de elogios a sua obra. As mesmas críti-
cas sofreu a obra de Frei Dolcino, que levou a discussão profética para a cons-
trução de uma sociedade mais justa, in�uenciando, decisivamente, os movi-
mentos de reforma dentro da Igreja e as heresias populares.

Já no século 14, a Idade Média assistia à decadência do modelo das três or-
dens com o chamado renascimento comercial e das cidades. Nesse período,
uma grave crise atingiu em cheio o mundo feudal. As revoltas camponesas, a
peste e a fome espalharam-se pela Europa ocidental, ocasionando transforma-
ções cada vez mais radicais no sistema. Novamente, Fontana (1998, p. 38) es-
clarece as relações entre as transformações sociais e a escrita da História:

As mudanças sociais destes séculos da baixa Idade Média preparariam a transfor-


mação do tipo de História que servia de suporte à economia política do feudalismo.
Na mesma medida em que a Igreja foi perdendo uma parte essencial da sua função
organizadora da sociedade, que passou aos novos Estados que agora se constituíam
[...]. Abandonou-se progressivamente a velha História universal cristã, com sua
identi�cação de ‘a Igreja do povo’, à maneira de Gregório de Tours ou de Beda, para
dar lugar à crônica cavaleiresca, de Villehardouin a Muntaner, justi�cadora de uma
classe social e de seu predomínio, e surgiram, junto com ela, outros tipos de crônica
laica que, se faziam uso da teoria das três ordens, em boa medida a secularizavam.

Podemos, neste momento, estabelecer uma conclusão importante: com a que-


da do sistema feudal, cai por terra, também, o modo de escrever História que o
justi�cava.

Assim, paulatinamente, a sociedade medieval foi dando espaço para o surgi-


mento de um novo modelo, radicalmente transformador das estruturas soci-
ais: o capitalismo.

A escrita da História deveria acompanhar essas transformações, fazendo,


muitas vezes, o papel de justi�cação da estrutura social, outras tantas na ten-
tativa de questioná-la.

Essa capacidade da História de justi�car ou questionar um sistema ocorreu


durante toda a Idade Média, no con�ito entre o discurso o�cial da Igreja em
choque com os movimentos heréticos de elite ou populares.

Com o �m do feudalismo, a História voltou a secularizar-se, ou seja, a deixar o


universo do sagrado e a procurar entender as relações sociais humanas. É as-
sim que termina a Idade Média: dando espaço para o surgimento de caminhos,
digamos, menos místicos para a escrita da História. Como a�rma Carbonell
(1987, p. 66): “a Europa da fé é sucedida pela dos sábios, do Estado e, por �m, da
Razão”.

Qual a relação entre as transformações sociais e de que maneira se dá a escrita da História


ao longo do tempo?

6. História renascentista: o humanismo em


marcha
Entre os séculos 13 e 15, intensas transformações na vida social, econômica,
cultural e política ocorreram na Europa ocidental.

Segundo o historiador Sevcenko (1994, p. 5 ), “entre os séculos 11 e 14, caracteri-


zado como a Baixa Idade Média, o Ocidente europeu assistiu a um processo de
ressurgimento do comércio e das cidades”. Esse acontecimento está ligado à
expansão europeia ocorrida a partir das Cruzadas contra o Oriente não-
cristão.

A�rma ainda Sevcenko (1994, p. 5) que


a criação desse eixo comercial, reforçado pelo crescimento demográ�co, pelo de-
senvolvimento da tecnologia agrícola e pelo aumento da produção nos campos eu-
ropeus, dava origem a novas condições que tendiam a, progressivamente, em con-
junto com outros fatores estruturais internos, dissolver o sistema feudal que preva-
lecera até então.

Entretanto, no século 14, esse processo de crescimento e expansão entrou em


colapso. Os fatores fundamentais disso foram:

• A Peste Negra, que dizimou cerca de um terço da população europeia.


• A Guerra dos Cem Anos (1337-1453), que opunha a Inglaterra à França.
• As revoltas camponesas, ocasionando crise no campo e problemas de
abastecimento alimentar no Ocidente europeu.

Nesse sentido, de acordo com Sevcenko (1994, p. 7):

essa crise do século 14 tem sido denominada também crise do feudalismo, pois
acarretou transformações drásticas na sociedade, economia e vida política da
Europa, que praticamente diluiu as últimas estruturas feudais ainda predominan-
tes e reforçou, de forma irreversível, o desenvolvimento do comércio e da burgue-
sia.

Essa nova classe social emergente, a burguesia comercial, necessitava de um


novo discurso ideológico que justi�casse seu poder econômico. A História, co-
mo ramo do saber que serve muitas vezes como legitimação do poder domi-
nante, não poderia ser diferente. Ela sofreu transformações importantes.

Você consegue enxergar em seu cotidiano como o mundo das ideias está relacionado com a
realidade concreta, com as questões sociais?

O século 15 assiste a três mudanças decisivas que vão promover o rompimento


da forma como se escrevia a História. Carbonell (1987, p. 77) descreve quais
são essas transformações:
Por volta de 1440, em Estrasburgo, Gutenberg põe a funcionar a imprensa de carac-
teres móveis; na mesma época, em Roma, Lorenzo Valla demonstra a falsidade do
ato conhecido pelo nome de Doação de Constantino; em 1453, Bizâncio sucumbe
aos assaltos otomanos: acelera-se então a diáspora dos copistas e gramáticos gre-
gos através da Europa. Novas técnicas de difusão, novo método de análise, novas
fontes... Nova curiosidade também, dado que a Renascença e a Reforma foram, ca-
da qual à sua maneira, peregrinação às fontes. Clio parece repudiar um milênio de
tutela teológica e escolástica para, por sua vez, reencontrar a sua infância pagã e
entrar na idade da razão.

No Renascimento, portanto, os três ramos mais importantes do trabalho his-


tórico foram transformados radicalmente no século 15:

• A crítica documental.
• A chegada de novos instrumentos de pesquisa.
• A difusão das produções em texto escrito.

Valla (1407-1457) operou uma ruptura importante na produção histórica ao


tornar como prática comum a com a elaboração que fez
sobre a famosa “Doação de Constantino”, documento que a Igreja preservava
como prova de que o imperador romano Constantino teria dado ao papa
Silvestre e seus sucessores a autoridade sobre a cidade de Roma e toda a parte
ocidental do Império Romano.

De acordo com Fontana (1998, p. 43):

Ainda que a suspeita de que se tratava de uma fraude havia sido já exposta por di-
versos autores, foi o humanista Lorenzo Valla, a serviço de Alfonso, o Magnânimo,
de Nápoles, e obrigado a defender o seu soberano contra as pretensões políticas do
papado, quem fez uma crítica demolidora do documento e pôs em evidência os
anacronismos, erros de linguagem e inexatidões de toda a ordem que continha.

Essa só foi possível em virtude do desejo dos humanistas


em pesquisar para conhecer profundamente as sociedades da Antiguidade
Clássica (Grécia e Roma). Esse desejo estava relacionado à negação do período
conhecido como Idade Média (passou a ser chamado assim justamente no
Renascimento), considerado um hiato de obscurantismo e decadência do pen-
samento humano, entregue aos ditames religiosos.

O afresco a seguir, intitulado Escola de Atenas, pintado por Rafael Sanzio em


1511, retrata exatamente essa vontade de os renascentistas buscarem suas in-
�uências �losó�cas, culturais, políticas e sociais no passado greco-romano,
caracterizando, portanto, a necessidade de reconstruir esse período de manei-
ra mais signi�cativa. Assim, a História é vital para o movimento renascentis-
ta.

Figura 4 A Escola de Atenas, afresco de Rafael (Raffaelo Sanzio). Roma, Stanza della Segnatura, Palácio do Vaticano.

Depois de Valla, outros pesquisadores passaram a utilizar esse tipo de


, embora já estivessem armados por um arsenal de novos ramos
do conhecimento, entre eles a arqueologia.

No século 16, o �orentino Maquiavel (1469-1527) defendeu a utilização política


da História como ferramenta importante para o exercício racional do governo.

O também �orentino Guicciardini (1483-1540) acreditava, diferentemente de


Maquiavel, que a História não poderia nos dar lições, pois, segundo ele, uma
interpretação global do passado era impossível. Ele defendia, ainda, que os fa-
tos pitorescos eram muito importantes para serem desprezados em favor de
uma visão global do passado (FONTANA, 1998).

No �nal do século 16, surgem na França os defensores de uma “História perfei-


ta”. Seus expoentes foram Pasquier, La Popelinière e Bodin.

Para Pasquier, o historiador deveria fazer uma crítica profunda às fontes e de-
�nir rumos em que pudesse explicar, logicamente, a sociedade com não me-
nos e�cácia do que as equações matemáticas.

Já La Popelinière propunha uma História geral, que abarcaria todos os aspec-


tos da vida humana e mostraria as razões dos acontecimentos e não apenas
os narraria.

Por �m, Bodin, que divide a História em três ramos: o natural, o sagrado e o
humano, defende que o historiador deve se ocupar do ramo humano, buscando
construir uma ciência que dê conta de explicar racionalmente a ascensão e
queda dos impérios e civilizações (CARBONELL, 1987).

No século 17, contudo, essa corrente histórica foi varrida da França para o sur-
gimento de outra que defendia a Igreja e o Absolutismo, uma espécie de
Renascimento da História Cristã medieval, mas com características da sua
época, destacando-se a defesa do absolutismo.

Segundo Fontana (1998, p. 49):

a historiogra�a francesa do século 17 verá, por exemplo, o triunfo do irracionalismo


teológico, culminando no sobre a História Universal (1681) de Bossuet, on-
de se faz tudo depender diretamente do desígnio divino. Não há lugar nem para
uma causalidade em termos humanos, nem sequer para o acaso. Toda a possibili-
dade de uma História que analise racionalmente a evolução humana acaba assim
negada.

Portanto, entre os séculos 15 e 18, o conteúdo da produção histórica na Europa


ocidental envolve desde magia e religião até a política e a ideia de ciência his-
tórica.

Dessa forma, não é possível construir uma ponte imediata entre o


Renascimento italiano e a Ilustração francesa ou o liberalismo inglês. Fica
claro, pois, que o período do século 15 ao 18, trata-se de uma fase de transição,
em que estruturas da antiga sociedade feudal coexistem com estruturas da
nova sociedade capitalista. Esse fenômeno manifesta-se na produção históri-
ca, impossibilitando a elaboração de uma síntese da forma em que se escreveu
a História na chamada Idade Moderna.

Por �m, a última leitura do presente ciclo de estudos será o artigo de José
Barros. Neste, o autor realiza um balanço da historiogra�a que tratou do perío-
do de passagem da antiguidade para o medievo por meio dos debates historio-
grá�cos pertinentes. Ou seja, para além da análise dos fatos e contextos objeti-
vos da história, Barros busca apresentar e re�etir sobre as diferentes propostas
de análise historiográ�cas, desde a medieval até a Nova História Cultural.
Assim, o autor enfatiza como os mesmos fatos e contextos podem ser inter-
pretados de formas distintas por diferentes correntes historiográ�cas ao longo
do tempo. Tal perspectiva de estudo se apresenta como fundamental para o
ofício do historiador na medida em que esse balanço historiográ�co se apre-
senta como prerrogativa básica para o estudo de qualquer tema.

Para realizar a leitura do texto indicado,

A �m de sintetizar tais conteúdos, bem como re�etir sobre essas produções e


contextos, nos detemos, agora, a um vídeo complementar. Neste, o historiador
Elias Silva retoma a caracterização da historiogra�a medieval em seu contex-
to de produção, demonstrando como o discurso historiográ�co é pensado e
construído em relação às preocupações e interesses de seu tempo. As princi-
pais características e autores dessa produção também são destacados pelo au-
tor.
Neste momento, re�ita sobre sua aprendizagem respondendo à questão a se-
guir.

4. Considerações
Como vimos, a história pode possuir diversos usos e signi�cados em decor-
rência de cada contexto em que é produzida, e cada um desses contextos aca-
ba por rever as temáticas, métodos e fontes de pesquisa, elementos fundamen-
tais da construção historiográ�ca. Nesse sentido, abordamos a historiogra�a
produzida na Antiguidade, no Medievo e no Renascimento, bem como suas
principais características.

No Ciclo 3, abordaremos a relação entre a História e as outras Ciências


Humanas nas construções historiográ�cas iluminista, positivista e metódica.

Até lá!
(https://md.claretiano.edu.br/his-gs0009-

fev-2022-grad-ead/)

Ciclo 3 – A Relação entre a História e as Outras


Ciências Humanas na Construção Historiográ�ca
Iluminista, Positivista e Metódica

Leandro Salman Torelli


Reginaldo de Oliveira Pereira

Objetivos
• Identi�car as características da historiogra�a iluminista e seus princi-
pais autores.
• Compreender a contribuição dos metódicos para a efetivação da história
como disciplina.
• Perceber as in�uências do positivismo na construção de uma metodolo-
gia pretensa como cientí�ca para a História.

Conteúdos
• Contexto de produção e propostas da historiogra�a iluminista.
• Contribuição dos metódicos para a efetivação da história como discipli-
na.
• As in�uências do positivismo na construção de uma metodologia de
pretensão cientí�ca para a História.
• A forma como essas correntes historiográ�cas contribuíram para a con-
solidação da História como uma área autônoma de conhecimento.

Problematização
Qual o contexto de produção e propostas da historiogra�a iluminista? Qual a
contribuição dos metódicos para efetivação da história como disciplina?
Quais as in�uências do positivismo na construção de uma metodologia para
História? De que forma estas correntes historiográ�cas contribuíram para a
consolidação da História como uma área autônoma de conhecimento?

Orientações para o estudo


Dando continuidade aos estudos sobre a história da historiogra�a, neste ter-
ceiro ciclo nos deteremos às produções dos séculos XVIII e XIX. Nesta dire-
ção, perpassamos o contexto de produção e propostas da historiogra�a ilumi-
nista no rompimento com paradigma do medievo. Também abordaremos a
contribuição dos metódicos para efetivação da história como disciplina e, por
�m, as in�uências do positivismo na construção de uma metodologia de pre-
tensão cientí�ca para História. Assim, neste momento, o que buscamos é a
compreensão da forma como essas correntes historiográ�cas contribuíram
para a consolidação da História como uma área autônoma de conhecimento.

1. Introdução
No presente ciclo de estudos, abordaremos as produções historiográ�cas dos
séculos XVIII e XIX. Iniciaremos com o contexto de produção e propostas da
historiogra�a iluminista na busca do rompimento com o paradigma medieval,
que coloca o homem como objeto de estudo por excelência em contraponto
com a visão providencial da história. Também abordaremos a escola metódica
e positivista, as quais trabalharam para efetivação da história como disciplina
na busca de uma construção historiográ�ca de caráter e pretensão cientí�ca,
características que permeiam o discurso historiográ�co até os dias de hoje.
Por �m, novamente ressaltamos que todas essas propostas acabam por repen-
sar os temas, métodos e fontes de pesquisa dentro de novos contextos de inter-
pretações e leituras, que, por sua vez, respondem à própria função e uso da
história neste período.

2. Historiogra�a e Iluminismo
O Iluminismo foi um importante movimento de renovação �losó�ca e intelec-
tual, que buscou o rompimento com a concepção de mundo medieval, pautada
no credo cristão. De forma simplista, podemos compreender que os iluminis-
tas buscavam colocar o homem como cerne do processo histórico, tendo por
base uma visão de pretensão racional da construção do discurso historiográ�-
co. Nessa direção, o homem passa a ser protagonista da história, abandonan-
do a visão providencial que pautou a produção medieval. Para isso, tivemos
decorrentes mudanças nos temas, métodos e fontes de pesquisa, sendo estas
balizadas por uma análise mais objetiva e �el dos documentos escritos e o�ci-
ais, criando, assim, uma nova concepção de história.

3. História dos Iluministas


Geralmente, chamamos de Iluminismo, Ilustração ou, ainda, Filoso�a das
Luzes o movimento de renovação �losó�ca e intelectual ocorrido na Europa,
cujo limite cronológico pode ser estabelecido entre a Revolução Inglesa do sé-
culo 17 e a Revolução Francesa do século 18.

Conforme sabemos, durante esse período, ocorreu um amplo processo de


transformação política, econômica e social que colocou �m ao modo de produ-
ção feudal e às instituições do , possibilitando, assim, a eclosão
de uma sociedade tipicamente burguesa e o advento do capitalismo como sis-
tema hegemônico.

Mas, a�nal, qual a relação que podemos estabelecer entre esse período de mu-
danças e uma nova maneira de ver, conceber, interpretar e escrever a
História? O chamado século das luzes realmente foi decisivo no estabeleci-
mento de uma nova forma de se entender a História? Existiu nesse período
um grupo de autores que in�uenciaram gerações futuras de historiadores?

No decorrer deste ciclo, vamos tentar responder a essas perguntas, de modo a


deixar claro o papel exercido pela Ilustração no desenvolvimento da chamada
historiogra�a moderna.

As transformações em curso na Europa ocidental no decorrer dos séculos 17 e


18 provocaram alterações na forma de pensar o mundo e na maneira como os
homens concebiam a História.
Alguns �lósofos, como René Descartes (1596-1650) e John Locke (1632-1704),
combatiam as explicações baseadas na vontade divina, típicas da Idade
Média. No entanto, essa nova atitude não provocou uma completa ruptura
com a visão mística de interpretação histórica da época medieval, conforme
podemos observar, especialmente, nos escritos de Jacques Bénigne Bossuet
(1627-1704), que ainda apresentam a crença num sentido de História �xado
por Deus, ou seja, numa concepção providencialista da História humana.

Consideramos, portanto, que a existência simultânea dessas duas maneiras de


ver o mundo – a providencialista e a crítica da vontade divina – ocorreu por
dois motivos principais:

• Período de transição em que as estruturas da antiga sociedade feudal co-


existem com estruturas da nova sociedade capitalista.
• Os referenciais metodológicos que norteiam o trabalho do historiador são
construídos lentamente e não de maneira imediata.

Nesse sentido, o uso da razão (inteligência) para entender e explicar a realida-


de teve seu papel reforçado e aperfeiçoado pelos expoentes da Ilustração no
desenvolvimento do processo histórico.

Os iluministas acreditavam que se a sociedade fosse organizada por princípios racionais,


ela se tornaria cada vez melhor e mais justa.

Essa visão de mundo baseada no racionalismo foi fortemente in�uenciada pe-


la física de Newton (1642-1727), cujos estudos a�rmavam que havia leis natu-
rais que regiam a dinâmica de funcionamento do Universo.

Na verdade, de acordo com Fontana (1998, p. 60), “os ‘ilustrados´ transportaram


os esquemas elaborados pelas ciências naturais para o campo das Ciências
Sociais, estabelecendo uma espécie de física da sociedade”. Fizeram isso vi-
sando compreender as relações humanas, já que achavam que a sociedade po-
deria ser organizada do mesmo modo que a natureza.

E você, acredita que o mesmo modo de raciocínio útil para as ciências naturais pode ser,
também, usado pela História? Quais seriam as implicações de se proceder de tal maneira?

Envolvidos nessas transformações que contribuíram para um visível aumento


qualitativo e quantitativo tanto no campo do conhecimento quanto no das téc-
nicas, os pensadores do Iluminismo foram cultivando uma crença apaixonada
na ideia de .

Desse modo, muitos “ilustrados” acreditavam que a História caminhava de


maneira linear rumo a um progresso humano contínuo e ininterrupto.

Devemos mencionar ainda que, durante o século 18, sob o impacto das ideias
iluministas, ganharam forma as chamadas �loso�as da História, cuja visão te-
leológica a�rmava que a evolução da humanidade estava orientada para um
determinado �m.

Nas palavras de Bourdé e Martin (1983, p. 44), que escreveram o livro As esco-
las históricas, “o ponto em comum das diversas �loso�as da história era des-
cobrir um sentido para a história”.

Essa visão (de estabelecer um sentido para a História) in�uenciou diversos


pensadores como Voltaire, Kant, Condorcet e Hegel, e, mais tarde, Comte,
Marx, Spengler e Toynbee.

Esses estudiosos tentaram, cada um à sua maneira, criar modelos explicativos


visando desvendar os nexos do curso dos acontecimentos passados para per-
ceber para onde caminhava a História ou, em outras palavras, para descobrir
qual era o sentido da História.

Certamente, os grandes problemas colocados ao ofício do historiador por essa


maneira de se fazer História, reduzindo-a a processos ou leis gerais, foram, ao
mesmo tempo, a limitação das possibilidades de pesquisa histórica e a ausên-
cia de preocupação com os aspectos especí�cos e particulares dos aconteci-
mentos históricos, já que havia uma opção por estudos generalizantes.

4. Ilustração francesa: concepções da história


em Voltaire, Montesquieu, Rousseau e
Condorcet
Apesar de haver algumas características comuns entre os pensadores ilumi-
nistas, não podemos incorrer no erro de acharmos que havia uma uniformida-
de de pensamento entre eles. Conforme veremos, cada um encarava a História
de uma maneira diferente.

Iniciaremos a apresentação das concepções históricas dos “ilustrados france-


ses” por François Marie Arouet (1649-1778), nascido em Paris e mais conheci-
do como . Esse autor, segundo Fontana (1983, p. 64-65), de�niu a
História na Enciclopédia da seguinte maneira:

A história é o relato dos fatos que se tem por verdadeiros, ao contrário da fábula,
que é o relato dos fatos que se tem por falsos. Há a história das opiniões, que não é
muito mais que a compilação dos erros humanos. A história das artes pode ser a
mais útil de todas, quando une ao conhecimento da invenção e do progresso das ar-
tes a descrição de seus mecanismos. A história natural, impropriamente chamada
história, é uma parte essencial da física. Tem-se dividido a história dos aconteci-
mentos em sagrada e profana; a história sagrada é uma seqüência das operações
divinas e milagrosas, pelas quais tem agradado a Deus conduzir no passado a na-
ção judia e pôr à prova no presente a nossa fé.

Pela de�nição citada anteriormente, �ca clara a preocupação de Voltaire com


a exatidão dos fatos históricos, ou seja, pela busca de sua veracidade. A crítica
às fábulas, que, na época, eram muito apreciadas por seus contemporâneos,
mostra seu interesse em transformar o modo como até então a História era ex-
plicada.

Além disso, conforme ensina Fontana (1998, p. 67), Voltaire foi responsável pe-
lo alargamento das perspectivas históricas, já que se empenhou “em superar o
estreito marco da história política tradicional, para construir em seu lugar, ‘a
do espírito humano’”.

Assim, podemos dizer que, para Voltaire, cabia à História se envolver com os
estudos dos motivos e das paixões que guiam as ações humanas, privilegian-
do as mudanças nos costumes e nas leis. Ademais, esse campo do saber deve-
ria abrir-se a tudo o que é humano, à diversidade das civilizações. No que diz
respeito à escrita da História, o historiador deveria procurar ser agradável, es-
crevendo de maneira breve e evitando acrescentar demasiadamente detalhes
inúteis e descrições numerosas em sua narrativa (BOURDÉ; MARTIN, 1983).

De acordo com o exposto até aqui, você deve ter percebido que a concepção
histórica de Voltaire privilegia os aspectos culturais da humanidade; daí a sua
preocupação com as mudanças nos costumes, com a diversidade das civiliza-
ções.

Esse iluminista também atribui uma grande importância aos feitos dos gran-
des homens (príncipes, militares, imperadores), conforme podemos depreen-
der de sua divisão em quatro grandes épocas para distinguir a evolução da
História humana:

• Grécia de Filipe e Alexandre.


• Roma imperial de César e Augusto.
• Renascimento com os Médicis.
• França de Luís XIV.

Em cada uma dessas fases, a razão humana teria progredido e aperfeiçoado-


se, levando-o a acreditar que a ilustração poderia ser um agente capaz de re-
formar a sociedade. Fontana (1983, p. 67) ilustra muito bem esse aspecto:

[...] A uma visão de história que se funda na evolução do espírito humano, corres-
ponde uma concepção política que sustenta que é a ilustração dos homens, como
instrumento de modi�cação de sua consciência, que transformará o mundo. E a es-
sa concepção política corresponde, por sua vez, um programa de ação como o dos
ilustrados, que Voltaire pôs em prática, não só por meio de seus escritos, como tam-
bém dos seus combates pela justiça e pela tolerância [...].

Um outro pensador de destaque no Iluminismo francês é Charles-Louis de


Secondat (1689-1755), mais conhecido como Montesquieu, autor da obra O
Espírito das Leis, publicada em 1748. Além disse, ele é famoso por sua doutri-
na dos três poderes, em que dividia a autoridade governamental entre os po-
deres Executivo, Legislativo e Judiciário.

:
Boa parte dos pensadores do Iluminismo francês publicava suas obras anonimamente ou fazendo uso de
pseudônimos. Voltaire, por exemplo, é um dos vários pseudônimos utilizados por François Marie Arouet.

Apesar de apresentar uma preocupação mais de natureza política do que de


crítica histórica propriamente dita, esse pensador deixou alguns legados espe-
cialmente para a Teoria da História.

Fontana (1983) destaca duas contribuições desse “ilustrado”:

• A distinção feita entre o que é meramente fruto do acaso e aquilo que tem
uma importância estrutural para explicar os fenômenos históricos, o que
possibilitaria, na concepção de Montesquieu, um estudo cientí�co da evo-
lução histórica.
• “Sua visão da evolução humana, como passagem por uma sucessão de
etapas de�nidas pela forma na qual os homens obtêm a sua subsistência”
(FONTANA, 1983, p. 69-70).

Essas duas etapas apresentavam como característica um caráter cíclico de


avanços e retrocessos, não sendo possível explicar as modi�cações ocorridas
na sociedade ou nações a partir de uma análise mecânica de causas e con-
sequências, já que as mudanças fazem parte de um processo inteligível “do es-
forço humano para entendimento próprio e para realizar no mundo as suas
capacidades” (CARDOSO, 2005, p. 134).

É exatamente essa visão cíclica da História que possibilita a apreensão de que


existem “causas gerais” passíveis de serem compreendidas, que justi�cam o
estudo cientí�co da evolução histórica da humanidade defendida por
Montesquieu.

O suíço Jean-Jacques (1712-1778) é outro pensador que merece des-


taque dentro do pensamento histórico do século 18, especialmente por levar
em consideração as modi�cações pelas quais passou a natureza humana ao
longo da História. Uma de suas ideias faz uma forte crítica às sociedades his-
toricamente constituídas, especialmente quando a�rma que:

“o homem nasce livre e por toda parte se encontra sob grilhões” (ROUSSEAU).

Desse modo, o próprio processo histórico por que passou o homem o transfor-
mou num prisioneiro, corrompendo seu modo de vida original caracterizado
pela liberdade e independência. Em outras palavras, a origem da corrupção do
ser humano está em seu contato com a civilização, que o afastou gradativa-
mente de seu contato com a natureza e produziu a desigualdade entre as pes-
soas, bem como os problemas criados por ela.

A concepção degenerativa da evolução social e dos males que impedia a


emancipação do homem apresentada por Rousseau contrasta bastante com a
visão de muitos de seus contemporâneos, os quais viam o processo histórico
pelo qual passou a sociedade como um sinônimo de progresso.

É do conhecimento de todos que diversos iluministas viam o século 18 como um momento


em que as realizações humanas haviam superado em muito tudo aquilo que havia sido feito
antes. A História, por sua vez, era apresentada como uma via de mão única rumo ao cons-
tante aprimoramento do potencial humano.

Será que podemos, assim como os iluministas, acreditar que a História caminha rumo ao constante apri-
moramento do potencial humano?

Quanto a (1743-1794), cujo verdadeiro nome era Marie Jean Antoine


Nicolas de Caritat, devemos destacar seu papel na modi�cação da imagem
que até então se tinha do tempo histórico: o de uma linha reta temporal. Esse
iluminista apresenta um modelo de compreensão dos acontecimentos consti-
tuído por uma escadaria, no qual acontecimentos diversos se desenrolam em
seus variados degraus .

“A grande idéia que está na base da concepção da história de Condorcet é que


a história retoma em cada época todos os progressos das fases precedentes,
enquanto ela é o resultado da acumulação de toda a riqueza do passado”
(BODEI, 2001, p. 32).

A citação anterior mostra que, para Condorcet, o processo histórico traduz o


progresso da humanidade. Esse pensador procurou descobrir o sentido dos
acontecimentos tentando interpretar as leis inerentes ao desenvolvimento do
curso dos fatos históricos, o que lhe possibilitou acreditar que seria possível
antecipar as tendências do futuro.

Além disso, ele colocou em relevo que a direção da marcha da História depen-
de da permanência de algumas precondições e da intervenção dos indivíduos
para antecipar o tempo daquilo que aconteceria de modo inevitável no futuro.

5. Ilustração britânica: Ferguson e Adam Smith


Aos representantes da ilustração britânica, com destaque para os membros da
Escola Escocesa, coube a tarefa especial de tentar construir uma visão de
mundo que inculcasse a lógica do capitalismo aos diversos segmentos da so-
ciedade que não se bene�ciavam diretamente das riquezas geradas por esse
sistema.

Surge, a partir daí, uma nova maneira para explicar a realidade e os fenôme-
nos humanos, que a�rma haver uma lógica interna de funcionamento obtida
pelas ações do homem e pelos princípios que ordenam a vida em sociedade.

O que faz a sociedade funcionar são os interesses dos indivíduos, que, no en-
tanto, só ganham sentido se inseridos “na trama das ações recíprocas produ-
zidas, através das gerações, pela vida em comum dos indivíduos” (BODEI, 2001,
p. 33). Nesse sentido, por exemplo, para que eu sobreviva, sou, de certa manei-
ra, forçado a trocar meu trabalho com o dos outros. Assim, é preciso que os in-
teresses de uma pessoa coincidam com os interesses de outrem. Isso levando
em conta o funcionamento do mercado, ou seja, o aspecto econômico.

Neste tópico, privilegiaremos as concepções históricas de Adam Ferguson


(1723-1816) e de Adam Smith (1723-1790), apesar de outros pensadores como
David Hume (1711-1776) e Edward Gibbon (1737-1794) terem deixado importan-
tes contribuições.

Ferguson foi um dos grandes responsáveis pela difusão dos conhecimentos


elaborados pela famosa escola escocesa. Além disso, em seu pensamento his-
tórico, implantou o conceito de “sociedade civil”, vista como o local da dimen-
são privada e individualista, que seria o fator principal para o surgimento da
economia política e da liberdade dos modernos.

Dessa forma, Ferguson vê o processo de divisão do trabalho como o responsá-


vel pela passagem da barbárie à civilização e usa o liberalismo para justi�car
e explicar de maneira racional a “nova” sociedade surgida no século 18.

Na opinião de Fontana (2001), a �gura mais importante que apareceu no con-


texto da Ilustração britânica é , que escreveu A Riqueza das na-
ções, publicada em 1776. Nessa obra, é apresentada uma visão economicista
da História “como ascensão da barbárie ao capitalismo, um programa para o
pleno desenvolvimento deste e uma antecipação de um futuro de prosperidade
e riqueza para todos” (FONTANA, 2001, p. 90).

Smith a�rma que os homens dotados de certo egoísmo, ou seja, voltados para
seus próprios interesses, promovem o interesse da sociedade – mesmo sem
saber ou ter essa intenção – já que existe uma “ ” que os levam a
fazer isso.

A“ ” que controla o mercado é a base do conceito do liberalismo, que, por


sua vez, prevê que se o mercado não for controlado – for deixado livre –, a mão invisível
controla a relação entre os homens, equilibrando-as. Na prática, sabemos que o liberalismo
abandona os homens à sua própria sorte, abrindo caminho para a dominação e exploração
dos mais poderosos sobre os menos privilegiados.

:
O liberalismo era um modelo de pensamento que reclamava o progresso por meio da liberdade. Suas prin-
cipais características eram: a não-intervenção do Estado na economia, o individualismo, a liberdade de
mercado, a livre concorrência, a liberdade de contrato e a livre iniciativa.
Esse pensador identi�ca uma organização dinâmica da sociedade que sempre
evolui para um melhor bem-estar coletivo. Dessa forma, é possível explicar e
prever tanto o comportamento dos indivíduos quanto as relações sociais do
homem, já que a natureza humana é vista como universal e imutável.

Você já ouviu falar do ? Consegue enxergá-lo como uma retomada do


? Re�ita sobre isso...

Ainda abordando as relações entre a proposta iluminista e sua relação com a


positivista, realizaremos a leitura do texto de Barros. Este artigo, além de pon-
tuar as principais características e autores da historiogra�a positivista, tam-
bém re�ete sobre alguns pontos fundamentais para a construção desse dis-
curso historiográ�co, a exemplo das possibilidades de se encontrar leis gerais
para a História e para o desenvolvimento social, ressaltando o caráter cienti�-
cista positivista.

BARROS, José D'Assunção. Considerações sobre o paradigma positivista em História


(https://historiar.uvanet.br/index.php/1/article/view/49). In: Revista Historiar -
Universidade Estadual Vale do Acaraú, v. 4, n. 4, Sobral, 2011.

A �m de complementar tais discussões, agora, assistiremos ao vídeo: "As �lo-


so�as do Iluminismo e os primeiros paradigmas historiográ�cos", de Carlos
Luiz Bento, no qual se apresentam algumas re�exões sobre como as �loso�as
iluministas in�uenciaram os paradigmas historiográ�cos subsequentes, por
meio de suas críticas aos modelos anteriores e suas propostas de renovação
metodológica. Nessa direção, Bento aborda o papel da razão, das ciências na-
turais e o próprio contexto histórico que permeou esse debate de renovação �-
losó�ca e também historiográ�ca.
6. A historiogra�a cienti�cista
Adentrando os novos métodos propostos pelas correntes cienti�cistas da
, agora, vamos explorar mais a fundo as correntes positivista e
metódica. Tais concepções, apesar de apresentaram algumas diferenças entre
si, convergem em suas propostas e forma de construção do conhecimento. O
rigor na escolha e trabalho com as fontes, a perspectiva de uma história de te-
or político visando à criação de identidades, dentre outras características, se-
rão a tônica dessas produções e discussões.

Escola metódica
No decorrer do século 19, ocorreu uma incessante tentativa de estabelecimen-
to de uma historiogra�a cientí�ca – acompanhando os passos das propostas
iluministas – que apresentasse métodos e critérios de trabalho para o histori-
ador.

Nesse contexto, implantou-se na França, entre os anos de 1880 e 1930, a Escola


Metódica, tornando-se uma das grandes responsáveis pela consolidação da
História como disciplina e pela pro�ssionalização do gênero histórico.

Seus princípios aparecem em dois textos: um foi redigido por Gabriel Monod,
para o lançamento da Revue Historique, em 1876; o outro é a obra Introdução
aos estudos históricos, escrita por Charles Seignobos e Charles-Victor
Langlois em 1898.

Apesar de a historiogra�a cientí�ca ser, algumas vezes, confundida com o po-


sitivismo, devemos destacar um ponto importante que os diferencia: os metó-
dicos tiveram como fonte de inspiração os escritos do alemão Leopold Von
Ranke (1795-1886) e não de Auguste Comte (1798-1857).

Ranke, em seus postulados teóricos, preocupou-se bastante com a questão do


método de pesquisa em História, destacando que cabia ao historiador não a
função de julgar os fatos do passado, mas sim de mostrá-los como realmente
aconteceram, pois acreditava que era possível atingir a objetividade e conhe-
cer a verdade com a História.
E você, acredita que a História possa atingir a verdade praticamente absoluta sobre os fatos
do passado?

Assim, Ranke valorizou o uso de documentos, dos quais o historiador deveria


reunir um número su�ciente de dados, descrevendo apenas o que estava con-
tido nas fontes, sem se ater a nenhum tipo de especulação teórica, evitando,
assim, qualquer tipo de subjetividade (BOURDÉ; MARTIN, 1983).

Os metódicos aplicaram em grande medida os postulados de Ranke, já que


buscavam delinear uma nova maneira de abordagem documental para a pes-
quisa histórica, fazendo que a História produzida fosse, ao mesmo tempo, des-
critiva, narrativa, imparcial e objetiva.

[...] A escola metódica quer impor uma investigação cientí�ca afastando qualquer
especulação �losó�ca e visando a objetividade absoluta no domínio da história;
pensa atingir os seus �ns aplicando técnicas rigorosas respeitantes ao inventário
das fontes, à critica dos documentos, à organização das tarefas na pro�ssão
(BOURDÉ; MARTIN, 1983, p. 97).

De acordo com a citação anterior, podemos notar a defesa de uma História ci-
entí�ca por parte dos metódicos e a crítica às especulações �losó�cas, especi-
almente aquelas que aparecem nas chamadas �loso�as da História.

Na busca da objetividade, o discurso histórico deveria diferenciar-se da lin-


guagem utilizada pela literatura meramente �ccional, a �m de não se tornar
algo romantizado ou uma simples fantasia. Além disso, o passado poderia ser
apreendido de forma indireta por meio dos registros escritos deixados em tex-
tos e documentos o�ciais. Em seu ofício, o historiador deveria procurar alcan-
çar a neutralidade máxima no trato com as fontes, deixando de lado suas pai-
xões e emoções.

Aliás, na obra Introdução aos estudos históricos, Seignobos e Langlois valori-


zam bastante a importância do documento escrito para o conhecimento histó-
rico ao a�rmarem que a História se faz com documentos e que estes falam por
si. Ou seja, as fontes documentais são a prova de que aquilo que o historiador
esta dizendo em seu trabalho é verdade.

A história se faz com documentos. Documentos são os traços que deixaram os pen-
samentos e os atos dos homens do passado. Por falta de documentos, a história de
enormes períodos do passado da humanidade �cará para sempre desconhecida.
Porque nada supre os documentos; onde não há documentos não há história
(LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 15).

Dessa forma, após a escolha do tema a ser estudado, o historiador deve reali-
zar a busca, a localização, a reunião e a classi�cação dos documentos, em uma
atividade conhecida como heurística. Além do mais, a crítica das fontes fazia-
se uma etapa fundamental, uma vez que tinha o objetivo de veri�car a autenti-
cidade e a credibilidade ou não dos registros deixados.

Apesar de toda essa preocupação com os métodos e procedimentos a serem


aplicados na maneira de se fazer História, no decorrer das primeiras décadas
do século 20, os metódicos eram alvos de duras críticas. Toda aquela concep-
ção de História linear, de progresso cumulativo – herdada da época das Luzes
–, bem como as questões, os métodos, as abordagens e objeto de estudo im-
plantados pela corrente metódica eram questionados, especialmente, por par-
te dos representantes da Escola dos Annales.

Positivismo de Auguste Comte


A corrente positivista elaborada por Auguste Comte exerceu um forte impacto
sobre diversos historiadores a partir da segunda metade do século 19. Esse sis-
tema assenta-se numa lei fundamental – conhecida como
– que está na base da explicação comtiana da História.

De acordo com essa lei dos três estados, o desenvolvimento histórico e cultural
da humanidade teria se desenvolvido em três etapas:

• Estado teológico – corresponde à Antiguidade; os fenômenos são explica-


dos por meio das vontades de agentes sobrenaturais.
• Estado metafísico – corresponde à época medieval; os fenômenos pas-
sam a ser explicados por meio de entidades ocultas ou abstratas.
• Estado positivo – corresponde aos tempos modernos; a explicação dos
fenômenos dá-se por meio de experiências demonstráveis, fazendo-se
uso do raciocínio e da observação.

Vale lembrar que cada ramo do conhecimento passa por esses três estados, de
forma que apenas se torna ciência no estado positivo.

Baseando-se no ponto de vista de Comte, temos uma visão evolutiva, linear e


previsível da História humana, que pode ser compreendida objetivamente, já
que é possível interpretar a aventura humana em sua linha única de desenvol-
vimento.

Os positivistas consideravam que era possível reconstituir os acontecimentos


passados tal como eles ocorreram, bastando, para isso, remeter-se aos teste-
munhos contidos nos registros deixados no passado. As fontes, geralmente,
eram vistas como algo dotado de neutralidade, não sendo necessária a preo-
cupação com sua autoria e possível intencionalidade de quem a produziu.

Portanto, no positivismo, o historiador ocupava um papel passivo diante das


fontes, já que não tinha a função de interpretar ou fazer perguntas para o do-
cumento.

O principal eixo de análise do positivismo do século 19 recaía sobre o estudo


dos grandes personagens da História política.

Essa ênfase no aspecto político foi alvo de crítica por parte dos marxistas, que
passaram a privilegiar os aspectos econômicos, baseando-se na análise dos
modos de produção – asiático, escravista, feudal, capitalista e socialista – co-
mo explicação do processo histórico.

:
A frase "Ordem e Progresso", escrita em nossa Bandeira, é um lema positivista, o que de-
monstra a forte in�uência dessa doutrina entre nossos republicanos.

Como já pudemos perceber com os estudos até aqui realizados, quando pensa-
mos em uma história da historiogra�a, estamos acompanhando as transfor-
mações de paradigmas frente às críticas e propostas metodológicas pertinen-
tes. Nessa direção é que nos debruçaremos na leitura do : "História e his-
toriogra�a nos séculos XIX e XXI: do cienti�cismo à História Cultural
(http://www.congressohistoriajatai.org/2010/anais2007/doc%20(51).pdf)", de
Simone Dantas, no qual a autora caracteriza a proposta cienti�cista da história
e apresenta a evolução crítica do discurso historiográ�co na busca de uma
história de caráter cultural e de crítica ao cienti�cismo. Assim, neste ciclo, já
podemos introduzir a tônica dos debates e paradigmas que abordaremos mais
a fundo nos próximos ciclos de estudos.

Por �m, para complementar tais discussões, agora, assistiremos a um novo ví-
deo de Luiz Carlos Bento, intitulado "A História ciência e o Positivismo
(https://youtu.be/OxSAxZik3fQ)", em que se apresentam algumas re�exões so-
bre as discussões até aqui realizadas. Assim, ressalta-se a abordagem sobre as
relações entre as Ciências Naturais e Humanas, a tentativa de criação de leis
gerais para a análise histórica, a neutralidade das fontes e pesquisadores, o
historicismo e a herança deixada por esse paradigma para a historiogra�a
atual.

Neste momento, re�ita sobre sua aprendizagem respondendo à questão a se-


guir.

7. Considerações
Neste terceiro ciclo de estudos, pudemos compreender uma nova quebra de
paradigma historiográ�co, sendo esta a linha mestra de nossa disciplina, ou
seja, a de compreender a própria história da historiogra�a diante de suas
transformações, enfatizando os temas, métodos e fontes de pesquisa. Esse pa-
radigma da escola metódica e positivista se apresenta como de suma impor-
tância para a historiogra�a atual. Devemos ter atenção ao fato de que a histori-
ogra�a contemporânea, apesar de não ser metódica ou positivista, ainda guar-
da características metodológicas destas em maior ou menor grau. Também é
importante ressaltar que todas as escolas que seguiremos estudando acabam
por partir de críticas para com essa visão cienti�cista da história, para justi�-
car e criar suas próprias concepções historiográ�cas, assim, as re�exões e
conteúdos tratados neste ciclo continuarão a ser revistos e discutidos nos pró-
ximos ciclos de estudos.
(https://md.claretiano.edu.br/his-gs0009-

fev-2022-grad-ead/)

Ciclo 4 – A Historiogra�a Marxista e a Produzida pela


Escola dos Annales em suas Três Gerações

Leandro Salman Torelli


Reginaldo de Oliveira Pereira

Objetivos
• Entender a contribuição do materialismo histórico para a historiogra�a.
• Analisar as re�exões metodológicas produzidas pela escola
dos Annales em suas 3 gerações.
• Compreender o surgimento da “história problema”, bem como a questão
da temporalidade no ofício do historiador.
• Compreender a história das mentalidades.

Conteúdos
• As contribuições e relações que o materialismo histórico teve na cons-
trução e renovação do discurso historiográ�co.
• A Escola dos Annales como uma das mais importantes rupturas de pa-
radigma historiográ�co, enfatizando o surgimento da “história proble-
ma”, por meio das relações estabelecidas com as demais Ciências
Humanas.

Problematização
Qual a contribuição do materialismo histórico para a historiogra�a? Qual a
contribuição da Escola do Annales para a renovação do discurso historiográ-
�co? O que é a “história problema”? Quais re�exões sobre a temporalidade tal
paradigma trouxe como novidade? Quais as principais características de
uma história dita cultural?

Orientações para o estudo


Neste ciclo de aprendizagem, vamos nos deter em duas correntes historio-
grá�cas que até os dias de hoje têm presença nas produções e debates episte-
mológicos da história, a saber, o e a
. Ainda ligado a uma perspectiva cienti�cista
da História, o materialismo histórico se apresenta como uma linha interpre-
tativa, pautada na análise da vida material da sociedade diante dos antago-
nismos decorrentes das relações sociais e de produção/reprodução da vida
material. Já no que se refere à Escola dos Annales, destaca-se a identi�cação
de suas três gerações e suas características particulares, as quais propõem
um repensar constante dos temas, métodos e fontes de pesquisa, sempre por
meio do recorrente diálogo entre a história e as demais Ciências Humanas.

1. Introdução
Iniciando os estudos do presente ciclo, nosso primeiro foco será o materialis-
mo histórico. Tal paradigma, originado nos estudos de Karl Marx e Friedrich
Engels, busca a compreensão do processo histórico tendo por base a produção
e reprodução da vida material, sobretudo no que tange às relações de tensão
entre os grupos sociais envolvidos nesse processo. Já nosso segundo foco será
a Escola dos Annales, na qual buscaremos o entendimento e caracterização
das propostas interpretativas e metodológicas em suas três diferentes gera-
ções. Pautada nas relações entre a História e as demais Ciências Humanas, de
forma muito simplista, podemos pensar a primeira geração dessa escola con-
forme sua relação com o pensamento sociológico, a segunda geração pautada
pelo diálogo com a geogra�a e a terceira geração na psicologia social e antro-
pologia, das quais emprestam temas e métodos de abordagem. Por �m,
destaca-se a importância dessas duas correntes historiográ�cas para os deba-
tes atuais, uma vez que tais re�exões ainda balizam o ofício do historiador até
os dias de hoje.
2. O Materialismo Histórico
O materialismo histórico tem sua origem nos estudos de Karl Marx e Friedrich
Engels, nos quais se busca o entendimento do processo histórico tendo por ba-
se a produção e reprodução da vida material e as relações de tensão entre os
grupos sociais envolvidos nesse processo. Nesse sentido, veremos tal produ-
ção em seu contexto histórico, além de pontuar importantes conceitos como o
materialismo histórico, o materialismo dialético, a luta de classes, entre ou-
tros. Destaca-se, também, a apresentação que os autores fazem sobre as relei-
turas que o materialismo histórico sofreu até o século XX, bem como suas
perspectivas de renovação metodológica, a exemplo da Nova Esquerda
Inglesa.

3. Karl Marx e seu tempo: o surgimento do ma-


terialismo histórico
À frente do túmulo de (1818-1883), (1820-1895) disse que “assim
como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, Marx
descobriu a lei do desenvolvimento da história humana” (MARX; ENGELS, p.
351).
Figura 1 Karl Marx

Figura 2 Friedrich Engels

Mas que lei era essa descoberta por Marx? Em que contexto ela foi produzida?
Como podemos observar sua in�uência na produção historiográ�ca desde en-
tão? Essas são as questões que iremos tratar nas páginas que se seguem.

Em meados do século 19, o sistema capitalista de produção encontrava-se em


pleno desenvolvimento. A industrialização era já uma realidade presente em
quase toda a Europa ocidental, embora não com fábricas em todos os países,
mas com in�uências sentidas em sua organização econômico-social.

Fique ligado!
Procure pesquisar por obras cinematográ�cas que tratam da época em questão, meados do século 19, em
que são abordadas as condições de trabalho dos operários das fábricas. Certamente, isso lhe ajudará a en-
tender melhor o contexto em que estavam incluídos os conceitos marxistas. Sugerimos que você assista,
especialmente, o �lme Germinal, do cineasta Claude Berri, na França, 1996.

Nessa mesma época, depois das barulhentas revoluções de 1830 (que tinham
no liberalismo e no nacionalismo as suas bandeiras), a Europa começava a as-
sistir novos levantes populares em 1848, agora com um novo ingrediente ideo-
lógico a se juntar aos antigos: o comunismo.
Em Manifesto do Partido Comunista, publicado em 1848, os seus autores, Marx
e Engels (1993, p. 66), diziam o seguinte:

A história de toda a sociedade até hoje é a história de luta de classes [...] Homem li-
vre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestres e companheiros, numa pala-
vra, opressores e oprimidos, sempre estiveram em constante oposição uns aos ou-
tros, envolvidos numa luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou
sempre ou com uma transformação revolucionária de toda a sociedade, ou com o
declínio comum das classes em luta.

Estava lançada, então, a teoria de Marx e Engels da História, em que se a�rma-


va que ;
, , .

Lançada a noção geral da teoria de História dos autores, Marx passou a


dedicar-se profundamente à pesquisa da organização do sistema capitalista.

Nessa fase, Marx procurou fazer a análise profunda das instituições econômi-
cas da sociedade capitalista. Dessa pesquisa surgiu sua obra mais importante,
O Capital, publicada originalmente em 1867. Contudo, em 1859, apareceu um
texto fundamental do universo marxista: o prefácio de Para a Crítica da
Economia Política.

Vejamos no texto a seguir a forma mais clarividente que Marx considerava


por .
[...] na produção social da própria vida, os homens contraem relações determina-
das, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que
correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças pro-
dutivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura
econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura ju-
rídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciên-
cia. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida
social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu
ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma
certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade
entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada
mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das
quais aquelas até então se tinham movido. De formas de desenvolvimento das for-
ças produtivas essas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então
uma época de revolução social. Com a transformação econômica, toda a enorme
superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez. [...] Em grandes traços
podem ser caracterizados, como épocas progressivas da formação econômica da
sociedade, os modos de produção: asiático, antigo, feudal e burguês moderno
(MARX, 1982, p. 25-26).

Segundo Marx (1993, p. 56), “não é a consciência do homem que determina seu ser social, mas, ao contrá-
rio, seu ser social que determina sua consciência”.
Você concorda com essa frase? Re�ita sobre ela...

Assim, para Marx, a vida humana e suas relações sociais são determinadas
pelo modo que a produção material da sociedade é realizada. Como con-
sequência, o modo de produção material é o fator determinante da organiza-
ção política e das representações intelectuais de uma época.

Logo, na concepção materialista da História, a infraestrutura econômico-


material determina as formas da superestrutura política, cultural, religiosa
etc.

As transformações na base infraestrutural determinam, em última instância,


transformações, também, na superestrutura. Dessa forma, os diversos modos
de produção surgem, ascendem, desenvolvem-se, entram em decadência e de-
saparecem, assim como suas correspondentes estruturas. Contudo, transfor-
mações como essas ocorrem mediante con�ito aberto entre os grupos sociais
ascendentes e decadentes.

Para o estudo desses con�itos, Marx desenvolveu o conceito chamado de


, em que há uma (que seria uma situação social e his-
tórica dada) em decadência, fazendo emergir pelas próprias contradições da
tese uma (modelo social e histórico opositor à tese).

A luta entre as classes sociais que representam as estruturas sociais decaden-


tes e ascendentes provocaria uma , ou seja, uma nova organização in-
fraestrutural da sociedade, gerando, também, novas superestruturas.

Nesse sentido, as lutas entre essas estruturas sociais corresponderiam a con-


�itos de classe, que, como vimos, na concepção marxista, trata-se do motor da
História.

No caso do regime capitalista burguês, Marx e Engels acreditavam que suas


contradições levavam à emergência de uma classe social revolucionária que
destruiria o capitalismo e faria emergir um novo sistema social chamado "co-
munismo", em que as classes sociais não mais existiriam e haveria uma
igualdade social na distribuição dos bens produzidos pela sociedade.

Atualmente, os estudiosos do marxismo nada concluíram sobre o signi�cado


desse novo sistema social, uma vez que este foi colocado de maneira incon-
clusiva nas obras de Marx e Engels.

Mas o fato é que esses dois autores criaram um novo método de estudo das re-
lações humanas no tempo e uma teoria de intervenção política revolucionária
de grande in�uência no século 20. Esses dois fatores são indissociáveis um do
outro.

Segundo Fontana (1998), os materialismos histórico e dialético não podem ser


desmembrados, visto que ambos fazem parte de um todo que Marx e Engels
pretendiam criar para dotar a classe operária de um arsenal teórico próprio
para lutar contra a burguesia, na sua tarefa histórica de derrubar o sistema ca-
pitalista.
No entanto, no tempo de vida dos pensadores em questão e mesmo nos pri-
meiros anos do século 20, a in�uência do materialismo histórico não era gran-
de. Segundo Perry Anderson 1989, poucos estudos procuraram, por assim di-
zer, testar o materialismo histórico.

Em outras palavras, a dialética da luta de classes era muito usada para o com-
bate da burguesia, do capitalismo, mas havia poucos estudos sobre o materia-
lismo histórico, que, no fundo, daria toda a base para o conceito da luta de
classes.

De acordo com Anderson (1989, p. 19), os marxistas do início do século:

estavam mais interessados em sistematizar o materialismo histórico como uma


abrangente teoria do homem e da natureza, capaz de substituir doutrinas burgue-
sas rivais e dar ao movimento operário uma visão de mundo ampla e coerente que
pudesse ser facilmente apreendida por seus militantes.

Entre os pensadores que Anderson aponta, podemos citar Labriola, Mehring,


Kautsky e Plekhanov, todos oriundos das regiões mais atrasadas do sul e leste
europeu.

Da produção histórica in�uenciada pelo materialismo histórico, talvez deve-


mos mencionar a História Socialista da Revolução Francesa, escrita entre 1901
e 1904, pelo francês Jean Jaurès, que procura dar um novo signi�cado à
Revolução Francesa à luz do materialismo histórico.

Além dele, devemos mencionar o russo Leon Trotsky (líder revolucionário


destacado nos acontecimentos de 1917 e na defesa da Revolução durante a
Guerra Civil) e sua História da Revolução Russa, texto importante e de alguma
in�uência, mas que nunca superou as obras seminais de Lênin, escritas entre
o �nal do século 19 até o início da década de 1920. A maioria dos textos de
Lênin não era constituída de obras de História propriamente dita, mas tiveram
forte in�uência no pensamento marxista ocidental e mesmo no Oriente, espe-
cialmente depois da Segunda Guerra Mundial.
No entanto, a era imperialista na Rússia e a Revolução Russa de 1917 trarão
transformações profundas, para o bem e para o mal, na produção historiográ-
�ca marxista. Assim, convidamos você para a leitura do próximo tópico.

4. Marxismo entre a revolução russa e a se-


gunda guerra mundial
Muitos estudiosos marcam a evolução do materialismo histórico desde a mor-
te de Engels (1895) até o �m da Segunda Guerra Mundial (1945) como uma era
de dogmatismo, especialmente o período entre 1925 e 1945, marcado pelo po-
der de Stalin na União Soviética.

Por isso, devemos observar que ocorreram nessa fase muitas tentativas frus-
trantes e frágeis, do ponto de vista político, realizadas pelo stalinismo. No en-
tanto, algumas manifestações teóricas do materialismo histórico foram muito
profícuas nesse contexto.

Nesse sentido, duas tendências resistiam ao movimento comunista internaci-


onal. De um lado, tínhamos o dogmatismo stalinista dominante, de outro, uma
tentativa de renovação desse pensamento, mas ainda frágil do ponto de vista
político. Entretanto, para efeito de estudo, iremos tratar separadamente cada
uma dessas correntes.

Inicialmente, iremos observar o materialismo histórico praticado pela corren-


te stalinista, que surge após a morte de Lênin em 1924, líder fundamental da
Revolução Russa de 1917, e grande pensador da prática política e da ciência in-
vestigativa marxista.

Entre os trabalhos de Lênin sobre História, podemos citar O desenvolvimento


do capitalismo na Rússia, publicado em 1899, em que “analisava os processos
como a desintegração do campesinato tradicional ou a formação do mercado
nacional”, e que “serviram de lição para os historiadores marxistas posterio-
res” (FONTANA, 1998, p. 233).

Após liderar a Revolução e escrever muitos trabalhos no calor dos aconteci-


mentos na Rússia, Lênin procurou organizar o país numa guerra civil em opo-
sição aos contrarrevolucionários. Venceu, mas logo depois morreu, sendo su-
cedido por Stalin no comando do Partido Comunista soviético.

A partir daí, uma nova tendência, menos democrática e renovadora e mais


dogmática e perseguidora, passou a comandar o movimento comunista inter-
nacional a partir da União Soviética stalinista. Assim se expressa Anderson
(1983, p. 34-35) sobre como �cou a União Soviética após a ascensão de Stalin:

No início de 1924, Lênin morreu. Num espaço de três anos, a vitória de Stalin no
PCUS selou o destino do socialismo e do marxismo na URSS nas décadas seguin-
tes. O aparelho político de Stalin suprimira ativamente as práticas revolucionárias
das massas dentro da Rússia e, no exterior, as desencorajava e sabotava. A consoli-
dação de um estrato burocraticamente privilegiado acima da classe operária era
assegurada por um regime policial cuja ferocidade desconhecia limites. Nestas
condições, a unidade revolucionária entre teoria e prática que tornara possível o
bolchevismo clássico foi irremediavelmente destruída. Na base, as massas foram
caladas, sua espontaneidade e autonomia pulverizadas pela casta que con�scara o
poder no país; no topo do Partido, os expurgos afastaram os últimos companheiros
de Lênin. Todos os trabalhos teóricos sérios foram interrompidos após a coletiviza-
ção. [...] O marxismo foi, em grande medida, reduzido a uma simples evocação na
Rússia, ao passo que Stalin atingia seu apogeu. O país mais avançado do mundo no
desenvolvimento do materialismo histórico, superando toda a Europa pela varieda-
de e vigor de seus teóricos, foi transformado, em não mais que uma década, em
uma atrasada terra de semi-analfabetos, notável apenas pelo rigor de sua censura e
pela crueza de sua propaganda.

Assim, além das produções o�ciais do Partido, praticamente desapareceu


aquela linha proveitosa do materialismo histórico que existia no Leste
Europeu durante as primeiras décadas do século 20.

No Ocidente, por ocasião da chamada Terceira Internacional (reunião dos


Partidos Comunistas internacionais), uma espécie de estruturalismo marxista
passou a apresentar-se com “uma cobertura �losó�ca de aparência respeitá-
vel”, mas que se converteu “na forma dominante de difusão do marxismo na
Europa ocidental e na América Latina”. Utilizavam alguns aparatos marxistas,
mas fugiam do essencial: a análise materialista da História e o projeto revolu-
cionário de transformação da sociedade. Assim, o marxismo põe-se “a serviço
da consolidação do sistema, fossiliza-se e não conserva mais que ecos da ve-
lha terminologia revolucionária” (FONTANA, 1998, p. 226- 229).

Entre os que construíram análises marxistas que careciam de sua essência (o


materialismo histórico), alguns historiadores destacam-se: Jerzy Topolski
(Metodologia da Investigação Histórica), Witold Kula (Problemas e métodos da
História Econômica), Louis Althusser (Aparelhos Ideológicos do Estado) entre
outros citados por Fontana (1998).

Evidentemente, muitos desses pensadores têm contribuições importantes pa-


ra o campo da historiogra�a e das Ciências Humanas em geral, mas a crítica
feita diz respeito, na verdade, à postura desses pensadores no que tange ao
modelo de Estado e de sociedade que vinha sendo construído na URSS e à sua
negação da própria revolução como o caminho essencial do materialismo his-
tórico.

Em suma e essencialmente, a fossilização do marxismo ocorreu em razão de


dois fenômenos históricos interligados: a derrota da revolução na Europa oci-
dental e a vitória dela na Europa oriental. Na primeira, o efeito da derrota foi
tornar os marxistas reformistas e não mais revolucionários; na segunda, o
efeito da vitória foi tornar os marxistas conservadores e, portanto, antirrevolu-
cionários. Isso acabou afetando a produção historiográ�ca marxista profunda-
mente.

No entanto, alguns pensadores marxistas dessa época já começavam a de-


monstrar uma outra forma de produção do materialismo histórico que poderia
colocar-se em oposição aos dogmatismos stalinistas. Entre eles, podemos ci-
tar dois autores fundamentais: o italiano Antonio Gramsci e a alemã Rosa
Luxemburgo.

Luxemburgo envolveu-se politicamente na tentativa de Revolução Socialista


Alemã (1918-1920), mesmo contra sua vontade, pois acreditava ainda não ser o
momento de um levante na Alemanha. Foi assassinada nesses embates com
as forças conservadoras, deixando entre seus trabalhos um esplêndido texto
sobre o Imperialismo, que trouxe novas contribuições à teoria do materialismo
histórico.
Gramsci, em seus trabalhos, a maioria feita na cadeia e, por isso, chamada de
Cadernos do Cárcere, defendia que a superestrutura tem uma existência relati-
vamente autônoma, que a economia não obedece às leis, mas às tendências, e
que o materialismo histórico mecanicista é infantil e nocivo à luta operária
(CARBONELL, 1987).

As várias derrotas do movimento comunista no Ocidente levaram a novas re-


�exões. Especialmente na Alemanha, quando surgiu o Instituto de
Investigação Social de Frankfurt, em 1923, como centro de estudos marxistas,
dando ensejo ao aparecimento de autores importantes para a renovação do
materialismo histórico, podemos citar, entre eles, Georg Lukács (1885-1971) e
Karl Korsh (1886-1961).

Esses autores mantinham contato com Gramsci na tentativa de superar a he-


rança mecanicista da chamada Segunda Internacional. Fontana (1988, p. 136)
expressa-se desta forma sobre a obra desses dois pensadores marxistas:

Desse ponto de partida, Lukács derivaria, em boa medida por causa da sua infortu-
nada e complexa história política, a ocupar-se de questões mais estritamente �lo-
só�cas e culturais. Desvinculado de toda a militância, Korsh manteria a luta contra
Kautsky em O Materialismo Histórico (1929), tentaria uma lúcida revalorização da
vertente revolucionária do pensamento de Marx, no seu Karl Marx (1938), e conti-
nuaria delineando os pressupostos de um marxismo revolucionário, em escritos
como Por que sou marxista (1935). A morte surpreendeu-o trabalhando numa tenta-
tiva de atualização do pensamento marxista, pelo duplo caminho da sua extensão
do âmbito europeu ao mundial e da necessidade de adaptá-lo às mudanças ocorri-
das na sociedade capitalista e ao avanço das ciências.

Para organizar nossas ideias sobre o estudo das correntes comunistas que co-
existiam e se opunham, temos de rea�rmar o que já dissemos no início deste
tópico:

Duas tendências resistiam no movimento comunista internacional. De um lado, tínhamos o dogmatismo


stalinista dominante, de outro, uma tentativa de renovação desse pensamento, mas ainda frágil do ponto
de vista político.
Para o próximo tópico, convidamos você a discutir como essas in�uências
chegaram à historiogra�a marxista do período pós-Segunda Guerra Mundial.
Vamos em frente!

Você acha que sua visão de mundo é in�uenciada por algum dos conceitos do marxismo?

5. Marxismo acadêmico da segunda metade do


século 20
Paradoxalmente, o socialismo e o capitalismo liberal uniram-se no início da
década de 1940 para derrotar um suposto inimigo comum: o nazifascismo.

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) acabou com quarenta milhões de vi-


das. O país mais atingido foi justamente a União Soviética, que resistiu brava-
mente e sozinha por um bom tempo à invasão germânica entre 1942 e 1943.

O contra-ataque do Exército Vermelho russo foi fulminante e exigiu das tropas


inglesas e norte-americanas a mesma postura no front ocidental, expulsando
os alemães da França a partir de 6 de junho de 1944, no famoso .

Como resultado dessa guerra, a Europa dividiu-se em duas: a Ocidental capita-


lista e a Oriental socialista, sob in�uência soviética.

Nesse mesmo período, a morte de Stalin e a realização do 20° Congresso do


Partido Comunista soviético, em que Kruchev expôs as atrocidades cometidas
a mando de Stalin, mudaram radicalmente o cenário do comunismo interna-
cional.

Dessa forma, Hobsbawm (2002, p. 226) a�rma que:


existem dois "dez dias que abalaram o mundo" na história do movimento revoluci-
onário do século passado: os da Revolução de Outubro (1917), descritos no livro de
John Reed com esse título, e o 20° Congresso do Partido Comunista soviético (14-25
de fevereiro de 1956). Ambos a dividem repentina e irrevogavelmente em "antes" e
"depois". Não posso imaginar nenhum acontecimento comparável na história de
qualquer movimento ideológico ou político mais importante. Em poucas palavras, a
Revolução de Outubro criou um movimento comunista internacional; o 20°
Congresso o destruiu.

Dessa desilusão, emergiu uma nova maneira de lidar com o materialismo his-
tórico. A característica fundamental dessa nova forma de interpretar o mar-
xismo é a desarticulação do movimento político da prática intelectual.

Um dos resultados práticos dessa desilusão é que a tradição analítica do mar-


xismo passou da economia e da política da fase pré-Primeira Guerra Mundial
para a �loso�a e, mais do que isso, para as raízes �losó�cas do pensamento de
Marx (ANDERSON, 1983).

Outra mudança prática foi o deslocamento geográ�co: se, antes, a maior parte
dos pensadores estavam na Europa oriental e do sul, nessa nova fase,
deslocou-se para a Europa ocidental e do norte, com a incorporação de pensa-
dores, também, da América, especialmente dos Estados Unidos.

Entre esses novos �lósofos do materialismo histórico, podemos citar os pen-


sadores da já citada Escola de Frankfurt, além de Marcuse e Walter Benjamin,
uma segunda geração com George Lefebvre, Theodor Adorno, Jean Paul
Sartre, Althusser, Goldman, Della Volpe e Colletti.

No campo da historiogra�a, as in�uências desses autores do campo �losó�co tiveram forte presença. A
principal corrente de historiadores que surgem a partir da década de 1960 foi inglesa: Eric Hobsbawm,
Perry Anderson, Christopher Hill, Rodney Hilton, Edward Palmer Thompson entre outros de menor ex-
pressão.

Hobsbawm dedicou-se ao estudo das estruturas sociais da sociedade burgue-


sa, assim como à vida e à consciência de classe dos trabalhadores ingleses,
ambos no século 19. Mais recentemente, procurou trabalhar sobre as estrutu-
ras político-sociais do século 20.

Já Anderson trabalhou sobre a gênese da sociedade burguesa, analisando o


desenvolvimento da sociedade ocidental desde a Antiguidade Clássica.
Depois, passou a dedicar-se ao estudo do marxismo no século 20 e tendências
culturais mais contemporâneas.

Outro historiador inglês importante, Christopher Hill, dedicou-se aos estudos


da Revolução burguesa na Inglaterra no século 17. Buscou estudar, também, as
questões que envolviam a transição do feudalismo para o capitalismo, basica-
mente na Inglaterra, debatendo fortemente as ideias de Maurice Dobb e Paul
Swezy.

Edward Palmer Thompson procurou esforçar-se para analisar a questão da


consciência de classe inglesa no século 19 e suas relações com um discurso
revolucionário. No �nal de sua vida, promoveu um profundo debate em oposi-
ção ao pensamento de Althusser.

Sobre a historiogra�a marxista inglesa e seus autores, Fontana (1998, p. 244)


a�rma que “em todos eles coincide o caráter aberto de sua obra, um certo de-
sinteresse pelo econômico [...] e uma preocupação pelo rigor cientí�co, agudi-
zada pela coação de que foram objeto desde os anos da Guerra Fria”.

Na França, Pierre Vilar destacou-se entre os historiadores marxistas. Ele pro-


curou recolocar o econômico no centro do debate do materialismo histórico,
mas sem abandonar um estudo global e mesmo certa autonomia da chamada
superestrutura, aos moldes de Gramsci.

Entre os trabalhos de Vilar, destacam-se aqueles que deram espaço à análise


do desenvolvimento do capitalismo na Espanha, o papel do ouro como moeda
na História capitalista e suas propostas metodológicas reunidas no título
Desenvolvimento Econômico e Análise Histórica. Nesse texto, ele a�rma que:
o objetivo deste livro é, portanto, o de apresentar a todos os problemas incessante-
mente postos por aquilo a que Marc Bloch chamou justamente ‘o mister do historia-
dor’. Mas procura-se também fazer compreender o quanto estas questões interes-
sam ao homem, única justi�cação, sem dúvida, da escolha e da prática desse mis-
ter. O Econômico (VILAR, 1992, p. 12).

Nessa sua a�rmação, percebemos que Vilar procura estabelecer uma relação
entre o marxismo por ele praticado e a historiogra�a surgida na França no sé-
culo 20, conhecida como Escola dos Annales. Talvez resida aí o canal para que
o marxismo continue vivo no século 21.

6. Materialismo histórico e mundo globalizado:


perspectivas para o marxismo no século 21

Você acha que os conceitos marxistas podem auxiliar na análise de nossa sociedade atual?

Até aqui, vimos que o materialismo histórico passou por profundas transfor-
mações ao longo desse um século e meio desde seu aparecimento em torno de
1850. Na construção teórica de seus fundadores, tratava-se de um arsenal teó-
rico com função de�nida, qual seja, a de dotar a classe trabalhadora de uma
teoria própria na luta contra o capitalismo burguês.

Ao longo do tempo, o marxismo foi sofrendo mudanças. Depois da morte de


Engels em 1895, novas formas de relacionar o materialismo histórico com a
luta operária foram construídas, especialmente com Lênin durante a
Revolução Russa. A partir da ascensão de Stalin, o marxismo tornou-se um
dogma, passando a ser censurado e fossilizado por uma prática política con-
servadora e repressora na União Soviética.

Contudo, depois da Segunda Guerra Mundial e da morte de Stalin, o marxismo


passou por um processo de renovação, deslocando-se o núcleo duro dos pen-
sadores do Oriente para o Ocidente europeu, especialmente na Inglaterra, onde
um grupo importante de historiadores ligados ao Partido Comunista passou a
atuar com uma vocação interpretativa do marxismo.

Essa nova corrente de pensamento procurava estabelecer diálogo com outras


linhas de pensamento e apoiava-se em teóricos que, mesmo naquele clima de
perseguição da era stalinista, conseguiram produzir um pensamento autôno-
mo e renovador do marxismo.

No entanto, essa nova era marxista do momento pós-Segunda Guerra promo-


veu certa separação da luta política e da produção teórica. Essa é a grande crí-
tica a que são submetidos esses novos pensadores.

Mas o que restou ao marxismo depois da queda do Muro de Berlim e do �m da


URSS? Quais eram as possibilidades de produzir História a partir do arsenal
materialista histórico?

Hobsbawm (1998, p. 182) fornece-nos algumas pistas para essas respostas.


Segundo esse historiador marxista, alguns temas são essenciais para o mate-
rialismo histórico. Vejamos:

O primeiro (...) é a natureza mista e combinada do desenvolvimento de toda socie-


dade ou sistema social, sua interação com outros sistemas e com o passado. Se pre-
ferirem, é a elaboração da famosa máxima de Marx de que os homens fazem sua
própria história, mas não conforme sua escolha, "sob circunstâncias diretamente
encontradas, dadas e transmitidas do passado". O segundo é o da classe e da luta de
classes.

Por seu lado, Anderson (1983), em um de seus estudos sobre o pensamento


marxista, pergunta-se sobre qual seria o lugar do materialismo histórico no �-
nal do século 20. Vejamos a sua resposta:
[...] o materialismo histórico continua a ser o único paradigma intelectual su�cien-
temente capacitado para vincular o horizonte ideal de um socialismo futuro às
contradições e movimentos práticos do presente, e à sua formação a partir de es-
truturas do passado, numa teoria da dinâmica determinada de todo o desenvolvi-
mento social. Como qualquer programa de pesquisa a longo prazo das ciências tra-
dicionais, ele conheceu períodos de repetição e estagnação, e gerou erros e falsas
direções. Mas, como qualquer outro paradigma, ele não será substituído enquanto
não houver um candidato superior para um avanço global comparável no conheci-
mento. Ainda não há sinais disso, e podemos, portanto, estar con�antes de que
muito trabalho nos espera amanhã, assim como hoje, no marxismo (ANDERSON,
1983, p. 122).

Em outras palavras, para Anderson (1983), o que se deve fazer é uma rea�rma-
ção dos princípios do materialismo histórico e buscar reorganizar a classe
operária para a conquista socialista, única alternativa viável para a sociedade
desigual atual.

Por �m, gostaríamos de convocar outro historiador marxista, Fontana (1998),


como forma de auxiliar você, futuro professor de História, a colocar claramen-
te os problemas que a História tem de enfrentar no século 21. Observemos:

À medida que o historiador é quem melhor conhece o mapa da evolução das socie-
dades humanas, quem sabe a mentira dos signos indicadores que marcam uma di-
reção única e quem recorda os outros caminhos que conduziam a outros destinos
distintos e talvez melhores, é a ele a quem toca, mais que a ninguém, denunciar os
enganos e reanimar as esperanças para começar o mundo de novo (FONTANA,
1998, p. 280 ).

Você já se questionou sobre o papel social, ou seja, o compromisso do historiador com seu
tempo?

Assim, para um historiador marxista, como para todos os outros historiadores,


cabe ajudar a sociedade a desnaturalizar e superar signos que atravancam ca-
minhos para um futuro com melhores características do que os atuais.

Hoje, o materialismo histórico tem este papel: o de ajudar nessa tendência de


abrir horizontes para mudanças sociais baseadas nos eventos históricos que
demonstram cabalmente que nada na História humana é eterno e que trans-
formações partem das lutas sociais.

O materialismo histórico é uma teoria da mudança e só assim, arejado e aber-


to a novas tendências, poderá manter seu papel importante na historiogra�a e
nas Ciências Sociais em geral.

A �m de sintetizar tal produção e aprofundar alguns conceitos e contextos, ve-


jamos o vídeo a seguir, intitulado "Série Escolas Historiográ�cas 2: o
Materialismo Histórico". Nele, Pereira pontua a visão etapista da história em
relação aos modos de produção e a luta de classes, entendidos como o cerne
do processo histórico para essa perspectiva materialista. A própria vida de
Marx e o contexto de sua produção também são abordados, elucidando a for-
ma como essa corrente historiográ�ca dialoga com as anteriores e os motivos
que levaram ao desenvolvimento dessa perspectiva interpretativa.

7. A escola dos Annales em suas três gerações


A Escola Francesa do Annales trouxe uma destacada renovação no fazer his-
toriográ�co do século XX, alterando de forma signi�cativa os temas, métodos
e fontes de pesquisa usados pelos historiadores. Realizando uma ampla crítica
aos paradigmas historiográ�cos anteriores por meio de uma proposta pautada
na relação com as demais Ciências Humanas, os Annales se estabeleceram
como um novo referencial para o fazer historiográ�co.

Pensando no contexto de surgimento dessa corrente historiográ�ca, vamos


nos deter à leitura das , do texto de Peter Burke (1997), intitulado
A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da historiogra�a
(https://edisciplinas.usp.br/plugin�le.php/4380045/mod_resource/content
/1/burke-p-a-escola-dos-annales-a-revoluc3a7c3a3o-francesa-da-his.pdf), no
qual é apresentado um breve panorama da história da , tendo
como foco o entendimento do papel e lugar da escola dos Annales nesse con-
texto de evolução do fazer historiográ�co.

Contextualizado o surgimento da Escola Francesa dos Annales, agora, vamos


nos deter na caracterização dela em relação aos temas, métodos e fontes de
pesquisa. Entretanto, para isso, devemos ter em mente que essa escola está di-
vidida em três distintas gerações, que apresentam convergências e divergên-
cias em suas pospostas.

Explorando as relações entre a História e as demais Ciências Humanas, de for-


ma simplista, podemos caracterizar a primeira geração (1929/49) dessa escola
e sua relação com o pensamento sociológico, destacando as produções de
Marc Block e Lucien Febvre e a criação da "história problema". A segunda ge-
ração (1946/68) foi pautada pelo diálogo com a geogra�a, destacando-se o no-
me de Fernad Braudel e seu trabalho com as diferentes temporalidades. Por
�m, a terceira geração (1968/98), fundamentada na psicologia social e antropo-
logia, tem como seus mais destacados autores Jacques Le Goff e Emmanuel
Le Roy Ladurie, que pautaram suas propostas de análise na compreensão de
uma espécie de história das mentalidades, de caráter cultural. Destaca-se,
também, uma possível quarta geração, representada por Bernard Lepetit, mas
que não se apresenta como de consenso para muitos historiadores.

8. Fundação da escola dos Annales


É importante que você saiba que, apesar dos historiadores dos Annales terem
promovido uma verdadeira inovação historiográ�ca, o debate em torno de
uma nova maneira de se conceber a História surgiu fora dos domínios dessa
disciplina, na passagem do século 19 para o século 20, quando as ciências so-
ciais passaram a conceber o homem como objeto de estudo da ciência. Essa
mudança teórica na concepção do homem foi muito signi�cativa, uma vez
que ele deixou de ser produtor da história para se tornar produto dela.

É importante ressaltar que, embora o movimento dos Annales seja conhecido como escola,
ele nunca apresentou um eixo teórico de�nido. Na verdade, o que unia seus integrantes era
o projeto de se fazer uma história total, bem como o às e
.

De acordo com Reis (2000), os primeiros combates mais efetivos à chamada


história tradicional – metódica e positivista – partiram dos sociólogos
durkheimianos. Eles pretendiam analisar a realidade fazendo uso de generali-
zações, preocupando-se, assim, com o regular, e não com o singular. Marc
Bloch e Lucien Febvre adotaram a visão desses sociólogos e a traduziram para
o discurso histórico. A partir desse momento, ocorreu um rompimento com as
explicações teleológicas de in�uência �losó�ca sobre o estudo da história e a
opção pela utilização das teorias elaboradas pelas ciências sociais.

Outra grande in�uência que impulsionou a renovação da História partiu de


Henri Berr (1863–1954) e de sua revista Revue de Synthèse Historique em 1903,
cujo objetivo “era promover uma discussão teórica sobre a história-ciência e
[...] contribuir à elaboração de uma teoria da história, afastada da �loso�a da
história e orientada para a observação empírica” (REIS, 2000, p. 57).

Nesse sentido, a História não deveria se preocupar apenas com as singulari-


dades, mas também com aquilo que é recorrente, repetitivo. Tinha de abando-
nar sua função exclusivamente descritiva e se preocupar em explicar os fenô-
menos históricos. Assim, a síntese histórica seria feita com base na colabora-
ção de diversos cientistas sociais e pelo trabalho em equipe.

Ainda em 1903, foi publicado na revista de Berr um importante artigo escrito


pelo sociólogo François Simiand (1873–1935), criticando a metodologia utiliza-
da pelos positivistas, que era baseada essencialmente no estabelecimento dos
fatos. No debate que se seguiu entre historiadores e sociólogos, Simiand defen-
dia a interdisciplinaridade e a criação de uma metodologia comum para todas
as ciências sociais, que deveria se basear no levantamento de hipóteses para a
realização das pesquisas.

Lucien Febvre, ao vivenciar esse ambiente de mudanças, de debates e de no-


vas propostas para o saber histórico, já demonstrava, desde o �nal da primeira
guerra mundial (1914-1918), interesse em criar uma grande revista internacio-
nal dedicada à história econômica, que teria como diretor o historiador belga
Henri Pirenne (1862-1953). No entanto, essa tentativa acabou sendo abandona-
da em virtude de uma série de di�culdades.

Nos anos de 1928, Bloch resolveu retomar o projeto de seu amigo, fundando no
ano seguinte a revista dos Annales, que pretendia, ao mesmo tempo, apresen-
tar uma nova abordagem da história e se tornar um elo entre todas as ciências
humanas, acabando com as divisões até então existentes entre as disciplinas
(BURKE, 1997).

Inicialmente, a direção dos Annales coube a Marc Bloch e Lucien Febvre, que
trouxeram uma inegável contribuição para a renovação formal da História co-
mo disciplina acadêmica, apresentando novas fontes de pesquisa, novas téc-
nicas de investigação e novas abordagens históricas.

De acordo com Burke (1997), a partir da criação da revista Annales d’histoire


économique et sociale, houve a pretensão de fazer com que sua publicação tor-
nasse uma liderança nas re�exões e estudos da história econômica e social,
os quais até então haviam sido desprezados.

Desse modo, os criadores da revista pretendiam romper com a história “evene-


mentielle”, ou seja, factual e política realizada pelos metódicos e positivistas.
Essas duas escolas que dominavam os meios acadêmicos franceses da época
foram acusadas de fazerem uma história historicizante e dogmática, centra-
das na idéia de que a história se fazia com documentos escritos.

No decorrer da década de 1930, os Annales foram pouco a pouco se transfor-


mando no centro de uma nova corrente historiográ�ca, recebendo a colabora-
ção de economistas, sociólogos, geógrafos, cientistas políticos e, claro, de di-
versos historiadores. Seu fortalecimento, nesse período, ocorreu especialmen-
te em virtude da intuição de seus dois grandes historiadores em adaptar seus
discursos com as mudanças que o mundo passava. Não foi por acaso que hou-
ve o deslocamento da preocupação com os aspectos políticos para as análises
econômicas. Assim, a sociedade das décadas de 1920 e 1930 passou a ser pen-
sada com base nos aspectos econômicos (reformas econômicas na União
Soviética, crise econômica na Alemanha, grande depressão, New Deal)
(DOSSE, 1992).

Mesmo com a ocupação alemã na França durante a segunda guerra mundial


(1939–1945), a revista dos Annales continuou sendo publicada, porém, com ou-
tros títulos, tais como: Annales d’Histoire Sociale, de 1939 a 1941 e Mélanges
d’Histoire Sociale, de 1942 a 1944.

Em 1946, a revista novamente modi�cou seu nome para Annales: Économies,


Sociétés, Civilisations. Essa denominação perdurou até 1993, quando a publi-
cação recebeu seu título atual Annales: Histoire, Sciences Sociales.

A partir de 1944, com a execução de Marc Bloch pelos nazistas, Febvre tornou-
se o único diretor dos Annales, e permaneceu no cargo até seu falecimento em
1956. Podemos observar, já nesse período, uma mudança no pensamento desse
movimento, especialmente se analisarmos os textos escritos por Febvre, nos
quais �ca explícito sua preocupação em relacionar todos os aspectos da vida
do homem entre si, já que passou a considerar que tudo estava relacionado a
tudo. Portanto, tudo seria válido para que se pudesse compreender o homem
em sua plenitude e complexidade.

A esse respeito, Fontana (1998, p. 206-207) diz:

Guiando-nos pelo título adotado em 1929, parecer-nos-ia ser uma História ‘econô-
mica e social’. Porém, já se viu que Febvre renegou essa de�nição original. Em 1941,
Febvre opina que a tarefa do historiador consiste em relacionar aspectos da vida
humana, sem se importar quais sejam; nenhum tem uma importância predomi-
nante: dá no mesmo tratar de relacionar os problemas econômicos de uma socie-
dade com a sua organização política, como sua �loso�a com as suas idéias religio-
sas.

A alteração do título da revista para Annales: Économies, Sociétés,


Civilisations, em 1946, demonstra as novas aspirações dos Annales: a ausên-
cia do termo história mostra claramente a vontade dessa corrente em “avan-
çar no projeto de reaproximação com as outras ciências sociais”.

Adaptando-se às novas realidades apresentadas após o término da segunda


guerra mundial, o movimento suplantou de�nitivamente a in�uência metódi-
ca e positivista presentes nas universidades francesas. Ademais, seus princí-
pios de pesquisa pouco a pouco romperam com as fronteiras nacional e euro-
péia, e atingiram várias áreas do mundo (DOSSE, 1992).

Em 1956, Fernand Braudel sucedeu Febvre na direção dos Annales e optou em


privilegiar o estudo das estruturas econômicas em detrimento de outros te-
mas como a história cultural, o estudo das mentalidades e a psico-história. Ele
manteve certos traços deixados por Bloch e Febvre, como a preocupação em
abrir as fronteiras entre as disciplinas das Ciências Humanas, a tentativa de
se fazer uma história total e a preocupação com os aspectos geográ�cos. Com
o objetivo de renovar o projeto dos Annales, Braudel recrutou alguns jovens
historiadores, dentre os quais merecem destaque Jacques Le Goff, Emmanuel
Le Roy Ladurie e Marc Ferro.

Nessa fase, vieram à tona signi�cativos trabalhos de história quantitativa, demográ�ca, re-
gional e serial.

Após 1968, Fernand Braudel foi substituído no comando da revista por uma di-
reção coletiva, formada por André Burguière, Marc Ferro, Jacques Le Goff,
Emmanuel Le Roy Ladurie e Jacques Revel. Em um contexto de crise dos
grandes paradigmas históricos, a escola dos Annales passou a acompanhar os
modismos intelectuais, descaracterizando praticamentetodos os postulados
de seus antigos criadores. Assistimos, nesse momento, a um retorno da histó-
ria política e ao ressurgimento da narrativa dos acontecimentos históricos.

Para os representantes da “Nova História”, expressão que comumente se refere


à terceira geração dos Annales e que se popularizou com a publicação do livro
A nova história, organizado por Jacques Le Goff no ano de 1978, não seria
mais possível a utilização de teorias totalizantes e abrangentes na abordagem
histórica.

Desse modo, a história fragmentou-se, desumanizou-se e descontextualizou-


se, passando a estudar temas como Amor, Medo, Tristeza, Feminismo, Morte,
Homossexuais, Mulheres. Feita em partes, a História transformou-se, utilizan-
do as palavras de Dosse, em migalhas.

- É possível relacionar os variados temas que fazem parte do estudo de História com as di-
versas esferas do vivido?
- A História deve tentar reconstituir e explicar os acontecimentos históricos ou apenas
narrá-los?

9. O programa dos Annales


Conforme você pôde observar, Marc Bloch e Lucien Febvre contestaram a tra-
dição historiográ�ca metódica e positivista, que enfatizaram o estudo dos
grandes personagens da história política. No positivismo, por exemplo, era
privilegiada a narrativa dos acontecimentos em uma ordem cronológica, que
levava em consideração as relações de causas e conseqüências. Os metódicos,
por sua vez, tinham uma grande preocupação com uma história erudita que
privilegiava a dimensão política. Além disso, eram fascinados pelos aconteci-
mentos relatados em documentos escritos.

Você pode estar se perguntando: o que a Escola dos Annales trouxe de inova-
dor em relação à história tradicional? Quais foram as principais mudanças
metodológicas apresentadas para a disciplina de História? Tente responder a
essas questões e compare com o conteúdo a seguir.

A corrente dos Annales tencionava alcançar uma história que fosse mais vas-
ta, abrangente e totalizante, ou seja, que apresentasse uma perspectiva mais
voltada para a análise da estrutura em detrimento do acontecimento. Em vir-
tude disso, seus fundadores se posicionaram contra as idéias de evolucionis-
mo e progresso da humanidade e se opuseram às análises destinadas ao estu-
do dos feitos de grandes homens (chefes militares e reis), exércitos e tratados
diplomáticos, até então preponderantes.

Nesse sentido, algumas propostas foram apresentadas, dentre as quais três


ganharam notoriedade:

1ª proposta dos Annales


Essa primeira proposta refere-se à substituição da simples narrativa dos
acontecimentos por um novo tipo de história – a . Aqui ca-
bia ao historiador levantar hipóteses e apresentar questões como ponto de
partida para seu trabalho, ou seja, interrogar o passado baseando-se em per-
guntas do presente. Feito isso, sua responsabilidade era, com base nos docu-
mentos, procurar a melhor forma de responder às suas indagações.

2ª proposta dos Annales


O deslocamento da preocupação – até então predominante – com a esfera po-
lítica para uma história que estudasse as variadas atividades humanas, desde
a organização econômica e social até a mentalidade coletiva. Assim, podemos
a�rmar que a escola dos Annales, em sua fase inicial, voltou seu olhar para a
construção de uma história social e econômica.

3ª proposta dos Annales


A última proposta destina-se, �nalmente, à interdisciplinaridade, ou seja, ao
contato da História com outras ciências sociais como Geogra�a, Sociologia,
, Economia, Lingüística, dentre outras. Essa aproximação propi-
ciou a incorporação de conceitos, re�exões, problemáticas, métodos e técnicas
de tais ciências por parte dos historiadores. Além disso, com a ampliação do
diálogo com outras áreas do conhecimento, houve um alargamento das possi-
bilidades de pesquisa histórica.

De acordo com Dosse (1992), a interdisciplinaridade serviu também para o for-


talecimento da História como campo do saber autônomo, pois contribuiu para
evitar a sua submissão à Sociologia e, conseqüentemente, a perda de identida-
de por parte de seus pesquisadores. Isso porque no início do século 20 houve
uma forte ofensiva por parte dos sociólogos que visavam fazer com que os
historiadores se submetessem à sua problemática e se tornassem meros cole-
tores de materiais para que eles pudessem interpretá-los.

Para que o programa interdisciplinar fosse levado adiante, os Annales tiveram


que apresentar uma nova representação do tempo histórico, pois a temporali-
dade utilizada pela não seria capaz de criar uma colabo-
ração efetiva entre a História e as ciências sociais. Assim, os Annales acres-
centaram a noção de permanência e simultaneidade, presentes no conceito de
“longa duração”, à noção de temporalidade histórica.

era baseada no aspecto acontecimental, do único, do singular, da construção li-


near e sucessiva, progressista e teleológico dos fatos.

Fique atento a esse assunto, pois vamos analisá-lo no decorrer de nossos estu-
dos. Agora, pautaremos nossa conversa na contribuição da primeira geração
dos Annales para a constituição de um novo método histórico.

10. Primeira geração (1929–1946): Marc Bloch e


Lucien Febvre
Conforme vimos, a Escola dos Annales dividiu-se em três fases. A primeira
durou de 1929 a 1946 e foi liderada por Marc Bloc e Lucien Febvre. A segunda
fase, que se formou em torno de Fernand Braudel, foi de 1946 a 1968. Já a ter-
ceira, de 1968 a 1988?, teve uma liderança coletiva com destaque para os histo-
riadores Jacques Le Goff, Emmanuel Le Roy Ladurie e Marc Ferro.

Dando continuidade ao estudo dessa escola, neste tópico analisaremos a pri-


meira geração dos Annales e a renovação que seus principais representantes
realizaram na História com base na criação da revista Annales d’histoire éco-
nomique et sociale.

Essa fase pode ser caracterizada pela (o):

• oposição ao Positivismo e ao programa de Ernest Lavisse (1842-1922),


Charles Seignobos (1854-1942) e Charles-Victor Langlois (1863 – 1929);
• preocupação com a história econômica e social;
• desprezo pela história política;
• tentativa de construção de uma historiogra�a que se constituísse em
uma ciência social;
• diversi�cação das fontes documentais;
• colaboração de diversas disciplinas do conhecimento.
Você sabia que a abertura de um campo mais amplo para os estudos históri-
cos aconteceu em virtude de o homem passar a ser encarado em sua totalida-
de e complexidade? Dessa forma, novos assuntos passaram a ser abordados,
tais como os relativos às mentalidades, ao imaginário, ao cotidiano, à geogra-
�a e à psicologia coletiva.

Nessa fase, ocorreu também o surgimento de uma temporalidade mais longa,


capaz de apreender todos os aspectos da vida humana em suas transforma-
ções que ocorrem mais lentamente. Diante disso, houve o abandono do estudo
dos fatos singulares e a virada para a análise das estruturas sociais, econômi-
cas, políticas, culturais, mentais e religiosas. Com essa nova concepção do
tempo histórico, foi possível observar as permanências, aquilo que se repete,
sem, no entanto, abandonar a compreensão das mudanças humanas em sua
duração.

Marc Bloch, um dos representantes da primeira geração dos Annales, profes-


sor especialista em história medieval, tornou-se bastante conhecido pela pu-
blicação de alguns livros, tais como:

• Os reis taumaturgos (1923).


• Os caracteres originais da história rural francesa (1931).
• A sociedade feudal (1936).
• Apologia da História ou O Ofício de Historiador (1949).

Se você ler essa última obra, iniciada em um campo de concentração nazista


durante a segunda guerra mundial e que permaneceu inacabada, perceberá a
nítida preocupação do autor em re�etir sobre o método histórico, assinalando
o que deve ser a história e como o historiador deve trabalhar.

Marc Bloch refutou a de�nição de história como ciência do passado, já que, pa-
ra ele, é absurda a idéia de que o passado possa ser objeto de estudo. Então,
qual deveria ser o objeto de estudo da história, ou seja, aquilo que ela deve in-
vestigar?

A resposta é a seguinte: a história deve investigar os homens no tempo, ou, em


outras palavras, as ações e práticas humanas em todas as suas manifestações
e em sua duração. O objeto de preocupação do historiador se volta para os ho-
mens comuns, e não mais exclusivamente para os grandes homens da histó-
ria tradicional. Portanto, onde houver seres humanos, existirá história e algo a
ser elucidado pelo historiador.

Ao a�rmar que é na relação presente-passado e passado-presente que se de-


senrola a construção histórica, nosso historiador rompe com o discurso pura-
mente passadista da história tradicional. Nesse sentido, �cou exposta a utili-
zação do método regressivo ou retrospectivo, em que temas do presente condi-
cionam e delimitam o retorno ao passado.

Na sua opinião, é possível compreender o passado partindo de questões do presente?

De acordo com Bloch (2001, p. 67):

[...] para interpretar os raros documentos que nos permitem penetrar nessa brumo-
sa gênese, para formular corretamente os problemas, para até mesmo fazer uma
idéia deles, uma primeira condição teve que ser cumprida: observar, analisar a pai-
sagem de hoje. Pois apenas ela dá as perspectivas de conjunto de que era indispen-
sável partir.

Portanto, o passado só se torna compreensível se o historiador partir de pro-


blemas suscitados pelo seu presente, pois, na visão de Bloch, seria necessário
partir daquilo que era mais conhecido – no caso o presente – para o que era
menos conhecido – o passado. Assim, somente um historiador atento ao pre-
sente, conhecedor do seu tempo, pode inquirir satisfatoriamente os homens
do passado.

Na investigação histórica, todos os vestígios do passado passíveis de serem


analisados pelos historiadores se transformaram em documento. Desse modo,
além das fontes escritas presentes nos arquivos, outros materiais passaram a
ser utilizados pelos historiadores em seus trabalhos, tais como poemas, ro-
mances, pinturas, materiais arqueológicos. Essa difusão de novas fontes his-
tóricas esteve associada à criação da história-problema e visava minimizar as
eventuais lacunas surgidas durante a realização da pesquisa.
A utilização de diferentes fontes históricas, promovida pelos Annales, propiciou aos historiadores realiza-
rem pesquisa sobre a pré-história, até então um período renegado pela Escola Metódica e Positivista.

Segundo Bloch (2001), após realizar a crítica documental, o historiador tem o


dever de procurar compreender os homens do passado, situando-os no seu
tempo e espaço, evitando realizar juízos de valor e também o erro mais grave
que um estudioso de história pode cometer: o anacronismo.

Além disso, em seu ofício, os historiadores têm a obrigação de interrogar os


documentos levantados para o desenvolvimento de seu estudo, pois esses não
falam por si. As fontes históricas somente dizem alguma coisa quando inter-
rogadas corretamente. Você deve ter percebido, nesse momento, novamente
uma outra crítica às escolas metódica e positivista, especialmente, a dois de
seus aspectos básicos: a passividade do historiador perante a sua documenta-
ção e a idéia de que as fontes escritas representam o próprio passado.

Lucien Febvre, que cursou História em Nancy e depois em Paris, na Escola


Normal Superior e na Sorbonne, foi outro grande renovador da historiogra�a
contemporânea. No seu livro Combates pela História, problematizou o próprio
fazer histórico ao a�rmar que “a história era �lha de seu tempo”. É somente a
partir do presente que as questões referentes ao passado podem ser aborda-
das.

Na concepção desse historiador, cada época seleciona seus temas, que falam
mais das inquietações de seu próprio momento do que do passado propria-
mente dito. Em outras palavras, cada época constrói a representação do pas-
sado à sua maneira. O historiador vive em um mundo que coloca seus proble-
mas particulares. O que o historiador faz é tentar veri�car se esses problemas
colocados pelo presente existiram no passado; se existiram como foi vivido
pelos homens da época. Em última análise, o que o historiador quer compre-
ender é a diferença entre os homens de ontem e os de hoje (FEBVRE, 1989).

É importante mencionarmos que Febvre de�ne a História de uma maneira


distinta daquela apresentada por Marc Bloch. Vejamos o que Fontana (1998, p.
206) diz a esse respeito:
Se Bloch falava sem vacilação da História como ‘ciência dos homens no tempo’,
Febvre lhe nega essa condição e a de�ne como ‘o estudo cienti�camente elaborado
das diversas atividades e das diversas criações dos homens de outros tempos’. A
diferença que haja entre ‘ciência’ e ‘estudo cienti�camente elaborado’ ilumina-se
quando percebemos que Febvre desvia sempre o problema para o da utilização por
parte do historiador dos métodos de outras disciplinas “cientí�cas”. O que importa é
o instrumento, não o projeto em que este será empregado.

De acordo com Reis (2000), Febvre deixou a história econômico-social a cargo


de Bloch e dedicou-se ao estudo da história das mentalidades coletivas. Seu
tema preferido foi o das relações entre os modos de pensar e sentir com os
modos de produzir. Além disso, em sua famosa obra, O problema da descrença
no século XVI: a religião de Rabelais (http://pt.wikipedia.org/w/index.php?ti-
tle=O_Problema_da_Descren%C3%A7a_no_s%C3%A9culo_XVI:_A_Religi
%C3%A3o_de_Rabelais&action=editredlink), publicada em 1942, inaugurou-se
um novo campo de investigação histórica – a antropologia histórica.

A supervalorização dos documentos escritos por parte dos historiadores metódicos e positivistas serviu
como ponto de partida para a divisão do tempo histórico em pré-história e história? A primeira passou a
se referir ao período em que não havia registros escritos e a segunda iniciou-se com a invenção da escrita.

No seu entender, o pesquisador que estuda o período anterior à invenção da escrita real-
mente não faz história?

11. Segunda geração (1946–1968): os anos de


Fernand Braudel
A segunda geração dos Annales teve como grande nome .
Discípulo de Lucien Febvre, o sucedeu na direção desse movimento após sua
morte em 1956 e presidiu a VI seção da École pratique des hautes études - cen-
tro de pesquisa fundado em Paris. A revista, que já havia mudado de nome du-
as vezes, adquiriu um novo título: Annales: Économies, Sociétés, Civilisations,
o que acabou alargando a área de ação do historiador com a introdução de um
novo campo de pesquisa: a civilização.
Figura 3 Fernand Braudel (1902-1985)

Esse foi o período da consolidação institucional dos Annales, da disseminação


de seus métodos para várias partes do mundo, do aprofundamento do diálogo
com as demais ciências sociais e do predomínio dos estudos de dimensões
econômicas diante de outros temas como a história cultural, o estudo das
mentalidades e a psico-história, que foram tratados em grande medida por
Bloch e Febvre. Nessa época houve também o confronto entre a História e o
da antropologia de .

Para as ciências sociais, o grande teórico do Estruturalismo foi o francês , nascido em


1908 e autor da obra Tristes Trópicos (1955). Sua grande preocupação foi estudar as bases que moldam a
organização social do ser humano. Essa base seria o sistema mental que não se apresentava como um
processo consciente no agir humano e, além disso, tinha uma característica universal, ou seja, a estrutura
mental seria a mesma em qualquer parte do mundo. O movimento estruturalista foi muito forte, sobretudo,
nas décadas de 1960 e 1970 ao apresentar uma metodologia inovadora que visava examinar todas as rela-
ções e funções estabelecidas entre os elementos que constituem um determinado sistema.

Os historiadores eram criticados pela linha estruturalista por permanecerem


no plano empírico e do observável, sendo incapazes de modelar e ter acesso às
estruturas profundas da sociedade. Para o antropólogo Lévi-Strauss, não havia
relação entre realidade empírica e a estrutura, já que essa última era o modelo
construído para apreender a realidade empírica.

Assim, para estudar a sociedade não era necessário realizar uma incursão à
história. Embora a História e a Etnologia estivessem próximas em seu objeto,
método e o objetivo, havia uma distinção essencial que opunha essas duas
disciplinas.

Conforme salientava Lévi-Strauss, essa distinção se dava “sobretudo pela es-


colha de perspectivas complementares: a história organizando seus dados em
relação às expressões conscientes, a etnologia em relação às condições in-
conscientes da vida social” (in DOSSE, 1992, p. 109). Isso signi�ca que, em seu
estudo sobre as várias sociedades tribais, o antropólogo chegou à conclusão
de que as estruturas fundamentais da sociedade são as estruturas da mente
humana, que, por sua vez, não se apresenta como um processo consciente.

Podemos exempli�car a distinção comentada anteriormente utilizando a famosa frase de


Karl Marx: “os homens fazem sua própria história, mas não sabem que a fazem”. A primeira
parte da frase seria o campo de ação da História e a segunda parte, da Etnologia.

Lévi-Strauss, a partir do seu ataque ao caráter voltado para as expressões


conscientes do homem, narrativo, factual, cronológico, singular e não-
cientí�co da História, queria fazer com que a Etnologia se a�rmasse perante as
demais ciências sociais. Apesar do grande sucesso do movimento estrutura-
lista, sobretudo nas décadas de 1960 e 1970, a História se manteve �rme como
articuladora entre as ciências sociais. Em resposta à crítica estruturalista,
Fernand Braudel a�rmou que “a escola dos Annales se empenhou em compre-
ender os fatos de repetição tanto como os singulares; as realidades conscien-
tes tanto como os inconscientes” (BOURDÉ; MARTIN, 1990, p. 131).

Na verdade, a crítica de Lévi-Strauss caberia mais aos positivistas e metódi-


cos do que aos Annales, pois esta escola desde seus primeiros tempos, como já
vimos, trouxe uma nova concepção do tempo histórico, capaz de observar as
permanências, sem, no entanto, abandonar a compreensão das mudanças hu-
manas em sua duração. O estudo das épocas fora abandonado em prol da aná-
lise das estruturas. Seguindo os passos dos fundadores dos Annales, Braudel
deu uma formalização mais rigorosa à temporalidade histórica. Para tanto, pe-
gou emprestado da antropologia o termo estrutura e o rede�niu, para melhor
resistir aos ataques do estruturalismo.

A perspectiva temporal de Braudel é apresentada pela primeira vez na obra O


mediterrâneo, um livro de grandes dimensões publicado em 1949, que trouxe
em suas páginas uma visão diferente do passado.

Conforme salienta Burke (1997, p. 46) “primeiramente, há a história ‘quase sem


tempo’ da relação entre o ‘homem’ e o ambiente; surge então, gradativamente,
a história mutante da estrutura econômica, social e política e, �nalmente, a
trepidante história dos acontecimentos”.

Entretanto, foi somente em 1958, com a publicação do artigo La Longue Dureé,


que o esquema “teórico” referente à questão do tempo histórico teve melhor
desenvolvimento. Nesse texto, o conceito de estrutura foi reinterpretado e
apresentado em uma dimensão temporal em que as permanências davam
sentido aos eventos. A ênfase deslocou-se da exceção para o regular, dos fatos
singulares para os de massa. Assim, o historiador irá enfatizar o que se repete,
o que permanece constante em um longo período de tempo. Nesse ponto, po-
demos notar a novidade do pensamento de Braudel: o descentramento do ho-
mem dos estudos históricos, tornando-o elemento seriável e não evento singu-
lar (REIS, 2000).

Preocupado em analisar as estruturas, Braudel apresentou o conceito de longa


duração, o qual pudemos ver anteriormente. Dessa forma, ao mostrar que o
pensamento humano e as condições inconscientes integram as estruturas
que mudam lentamente e de maneira gradual, o historiador anula a ofensiva
estruturalista.

É importante ressaltar que a História segue tempos distintos, conforme pode-


mos ver a seguir:

• Estrutural: vincula-se à longa duração, um tempo quase imóvel da rela-


ção do homem com seu espaço geográ�co.
• Conjuntural: corresponde à média duração, marcada por mudanças len-
tas associadas à economia e à sociedade.
• Acontecimental: ligado à curta duração, ao tempo breve, preocupado com
a dimensão da vida do homem e que segue a linha da história tradicional.

O emprego da longa duração abriu novas possibilidades de estudos, como, por


exemplo, a história comparada, já que era possível observar uma história que
se transformava muito lentamente. Essa atitude era impensável aos historia-
dores que se limitavam às visões da história tradicional, uma vez que ela valo-
rizava o acontecimento. Se o historiador, por exemplo, comparasse um aconte-
cimento da Revolução Russa com um da Revolução Francesa ele estaria co-
metendo um anacronismo. Para Braudel, não haveria possibilidade de se fazer
uma história cientí�ca se não se empregasse o método comparativo.

Em 1935, Braudel veio para o Brasil, juntamente com outros intelectuais franceses como Lévi-Strauss, para
colaborar com a organização da recém-fundada Faculdade de Filoso�a, Ciências e Letras da Universidade
de São Paulo (USP). Aqui permaneceu até 1937 e a�rmou que esse foi um dos períodos mais felizes de sua
vida.

Com a nova compreensão da temporalidade histórica, surgiram novas meto-


dologias de investigação integrada ao conceito de estrutura dos Annales, e a
história quantitativa, a história demográ�ca e as histórias regional e serial ga-
nharam destaque nesse período. No tocante às fontes, surgiu a utilização de
dados contábeis, balanços �nanceiros, livros de entradas e saídas de receita,
arquivos paroquiais, judiciais, dentre outros. Esses tipos de documentos per-
mitiam a elaboração de séries que mostravam tendências e oscilações cícli-
cas.

É possível fazer História sem levar em consideração a mudança?

A �m de sintetizar e aprofundar tais debates acerca da Escola dos Annales, as-


sista, agora, ao vídeo "O que é a Escola dos Annales?", de Icles Rodrigues, pu-
blicado pelo canal Leitura Obriga História. Neste vídeo, o historiador apresen-
ta, de forma didática, a Escola dos Annales, caracterizando cada uma de suas
gerações, nos dando, assim, uma visão ampla sobre a evolução dos debates e
métodos que envolvem a produção dessa corrente historiográ�ca em suas três
gerações.

Por �m, a última leitura deste ciclo é o artigo de Fernando Silva, que explora a
tônica das propostas dos Annales ao abordar a relação da História com as de-
mais ciências humanas. Nessa direção, o autor busca compreender a identi-
dade do ofício do historiador em relação à abertura da história para com as de-
mais ciências humanas, por meio de novos temas, métodos e fontes de pes-
quisa.

SILVA, Fernando Teixeira da. História e Ciências Sociais: zona de fronteiras


(https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-90742005000100006). In:
Debates Historiográ�cos, v. 24, n. 1, Franca, 2005.

Sugerimos, agora, que você dê uma pausa na sua leitura e re�ita sobre sua
aprendizagem realizando a questão a seguir.

12. Considerações
Neste quarto ciclo de estudos, demos seguimento à compreensão da história
da Historiogra�a, enfatizando, neste momento, o materialismo histórico de
Marx e as propostas da Escola dos Annales em suas três distintas gerações.
Assim, destaca-se a importância dessas duas correntes para a construção do
discurso da historiogra�a atual, uma vez que tais re�exões ainda balizam o
ofício do historiador nos dias hoje, seja na historiogra�a brasileira seja ociden-
tal.

Tendo em vista a caracterização dessas distintas correntes em uma espécie


de linha do tempo da Historiogra�a, já podemos perceber que existe um amplo
e recorrente diálogo entre as diversas propostas/correntes de pensamento.
Também podemos perceber que essas diferentes propostas não se invalidam,
mas sim podem ser compreendidas como complementares e/ou agregadoras
para a construção do discurso historiográ�co. Não podemos perder de vista
essa perspectiva agregadora de diversas correntes historiográ�cas, uma vez
que uma "nova corrente" não põe �m a outras correntes já existentes, mas sim
contribui no amadurecimento do ofício do historiador, abrindo e/ou revendo
novas possibilidades metodológicas, temáticas e de fontes de pesquisa.
(https://md.claretiano.edu.br/his-gs0009-

fev-2022-grad-ead/)

Ciclo 5 – A Nova História Cultural e a Crise de


Paradigmas no Século XXI por meio da Proposta Pós-
moderna

Renata Cardoso Belleboni Rodrigues

Objetivos
• Caracterizar a e a Nova História Cultural.
• Contextualizar a crise dos paradigmas historiográ�cos.
• Compreender a história como discurso, prática e representação.
• Identi�car a história entre a narrativa e a �cção.
• Perceber as críticas à Pós-moderna.

Conteúdos
• A Micro-história e a Nova História Cultural como novos paradigmas his-
toriográ�cos.
• A historiogra�a como discurso, prática e representação de acordo com
as novas propostas paradigmáticas.
• A produção historiográ�ca entre a narrativa e a �cção.
• A historiogra�a pós-moderna entre a crítica e a renovação metodológi-
ca.

Problematização
Quais as características da Micro-história e da Nova História Cultural? Como
conceitos como discurso, prática e representação in�uíram as novas propos-
tas paradigmáticas para a historiogra�a? De que forma a produção historio-
grá�ca pode ser pensada entre a narrativa e a �cção? Quais as críticas e a re-
novação metodológica propostas na historiogra�a pós-moderna?

Orientações para o estudo


Chegando em nosso quinto e último ciclo de aprendizagem, vamos abordar
os mais atuais debates historiográ�cos, contemplando o �m do século XX e o
início do XXI. Estudaremos, incialmente, a Micro-história e a Nova História
Cultural como novos paradigmas historiográ�cos. Posteriormente, também
trataremos da historiogra�a pós-moderna e sua crítica para com os paradig-
mas anteriores, bem como a sua proposta de renovação metodológica.
Buscaremos, assim, compreender a história como discurso, prática e repre-
sentação. Nesse sentido, visamos entender a história como uma construção
discursiva entre a narrativa e a �cção.

1. Introdução
Já no �m do século XX, a Escola dos Annales foi perdendo espaço nos debates
epistemológicos da história, diante de novos referenciais, a exemplo das pro-
postas da Micro-história, da Nova História Cultural e do . Por
óbvio, essas novas propostas dialogam com a historiogra�a dos Annales; en-
tretanto, várias críticas e novas propostas foram apresentadas.

Tanto a Micro-história como a Nova História Cultural carregam em si muito


do que a escola francesa propunha, sobretudo, no que se refere ao imaginário,
às representações, entre outros aspectos entendidos como ligados à cultura.
Entretanto, o Pós-modernismo já apresenta uma crítica mais incisiva sobre a
produção historiográ�ca, sobretudo, diante da comparação do discurso histo-
riográ�co com uma espécie de narrativa �ccional.

2. A Micro-história e a Nova História Cultural


Ainda antes de adentrar as correntes historiográ�cas que serão tratadas neste
ciclo, veremos uma breve linha do tempo da historiogra�a, a �m de criar uma
visão mais ampla do desenvolvimento da disciplina nessa virada do século
XX para o XXI. Para isso, assista ao vídeo a seguir:

Após conhecer sobre a Micro-história e a Nova História Cultural, agora, vere-


mos um pouco mais a respeito das características da Micro-história, ressal-
tando sua preocupação com as práticas culturais especí�cas por meio de fa-
tos, indivíduos, lugares e famílias, bem como as relações interpretativas que
relacionam o micro ao macro, diante da redução da escala de observação por
parte do historiador, a �m de buscar compreender o processo histórico. vere-
mos ainda sobre a Nova História Cultural, partindo do conceito de cultura,
chegando nas relações entre a história e a antropologia, que direcionou seu fo-
co ao mundo simbólico criado por determinado grupo ou sociedade.

3. A crise dos paradigmas historiográ�cos


De acordo com Margareth Rago (2000):

Já faz algum tempo que os historiadores perceberam as di�culdades do seu ofício,


não apenas pelos obstáculos de acesso aos documentos, mas porque sua atividade
não é neutra e nem o passado existe enquanto coisa organizada e pronta, à espera
de ser desvelado. O historiador produz o passado de que fala a partir das fontes do-
cumentais que seleciona e recorta, compõe uma trama dentre várias outras possí-
veis e constrói uma interpretação do acontecimento. Há múltiplas histórias a se-
rem contadas já que os grupos sociais, étnicos, sexuais, generacionais, de baixo ou
de cima, se constituem de maneiras diversas, mas têm diferentes modos de narrá-
las.

A historiadora Rago (2000), em sua assertiva, aponta alguns obstáculos para o


ofício do historiador: nem todas as fontes são facilmente acessíveis (ora de-
pendem de escavações arqueológicas, ora de uma boa organização e conser-
vação em museus e arquivos, ora da disponibilização por particulares, além de
fontes em línguas mortas ou não muito familiares e da possível distância geo-
grá�ca em que se encontram, entre tantos outros obstáculos). Chegando até os
documentos, ainda será preciso fazer um levantamento, selecionar e, após se-
leção, fazer recortes ainda menores. Mas as fontes não são o passado e, por ve-
zes, deturpam-no, dissimulam-no ou não o representam por completo. E ainda
tem mais, o que as fontes nos falam depende das perguntas que elaboramos.
Por este motivo, há várias histórias a serem contadas de acordo com acesso às
fontes, seleção das mesmas e perguntas dirigidas.

O passado não está pronto. Tudo isso foi veri�cado, analisado e discutido no
decorrer, especialmente, do século 20. O grupo da Nova História apresentou
uma grande produção a respeito do ofício do historiador. E, não bastassem to-
das essas mudanças e mais aquelas que afetaram os conceitos de História e
historiogra�a desde a Antiguidade, a partir dos anos 1960 e 1970, um novo
conceito vem contribuir com os debates sobre a “queda” dos tradicionais para-
digmas historiográ�cos. Trata-se do conceito de pós-modernismo. Essa ideia
não é fruto desse período, mas ganha força com a publicação do livro A condi-
ção pós-moderna, do �lósofo francês Jean-François Lyotard, em 1979.

Entretanto, antes mesmo de nos aprofundarmos nas querelas pós-


modernistas, um questionamento deve ser feito: o que foi o modernismo ou a
modernidade contra a qual se travou uma guerra? Você, aluno de História, sa-
beria explicar ou apontar alguma característica desse período? Então, veja-
mos, brevemente, os pontos centrais.

Com o Renascimento, a humanidade foi promovida, alçada ao centro da reali-


dade. No re�exo desse movimento, o Iluminismo elevou o indivíduo ao centro
do mundo e buscou explicações racionais para toda e qualquer questão relaci-
onada à sociedade. Igualmente, pregava a con�ança no progresso humano por
meio de realizações cientí�cas e tecnológicas. E a escrita da História ganhava
forma nas metanarrativas. Resumindo e �nalizando, na modernidade “[...] a
história está dominada pelos conceitos de razão, consciência, sujeito, verdade
e universal” (DILMANN, 2006, p. 568).

Esses conceitos, tomados isoladamente ou em conjunto, contribuíram com a


formação de expressões que, por muito tempo, habitaram os livros e foram
proferidas ao público ouvinte: sujeito universal, consciência universal, razão e
verdade; tratava-se da divulgação da ideia de que o conhecimento é objetivo,
que a verdade é exata, única, que o mundo é único, que as explicações são uni-
versais.

Contra todo esse aparato surge, na França, como você já estudou, os Annales,
que, nos anos 1970, mais especi�camente, com a Nova História, irá de�nitiva-
mente divulgar a ideia de que o conhecimento não é objetivo, que é, ao contrá-
rio, subjetivo, que a verdade é relativa, que há mundos e passados diferentes e
que as explicações são, de fato, interpretações. O determinismo e o reducionis-
mo são rejeitados e a história global e a história universal são descartadas.

Mas se tanto já foi modi�cado e readequado, por que há as contínuas e novas


discussões e os embates no meio acadêmico? Por que o desconforto com o
conceito de pós-modernismo? As respostas são múltiplas; consideremos algu-
mas:

1. História imóvel das mentalidades: não respondia à dinâmica do mundo


pós-moderno.
2. Abordagem quantitativa da História: encarada como reducionista.
3. Abordagem marxista da História: o escolasticismo dogmático é criticado.
4. Diferentes conceitos de História e historiogra�a sendo debatidos – não
havia um consenso.
5. Questionamentos sobre a verdade histórica: se é relativa, a História não é
ciência.
6. Questionamentos sobre os estilos de escrita da História: a querela da nar-
rativa.

Em resumo, no pós-modernismo, o relativismo dominou. Toda e qualquer fon-


te deve ser pensada como um texto a ser lido, em que os signi�cados estão aí
para ser decodi�cados ou desconstruídos; portanto, não resta dúvida de que o
real ou a realidade não podem ser atingidos e, em outras palavras, que a
História se tornou um discurso verossímil.

Concluindo a história: nessa época que se poderia denominar “pós-tudo” (pós-


liberal, pós-ocidental, pós-indústria pesada, pós-marxista), os velhos centros mal
se agüentam, e as velhas metanarrativas já não soam reais e promissoras, vindo a
parecer inverossímeis dos pontos de vista céticos do �m do século XX (JENKINS,
2004, p. 98).

Tantos questionamentos levaram a uma reação:


Três campos historiográ�cos podem servir de exemplo dessa busca renovada de
recentrar o objeto e o modo de trabalhá-lo. Um é o da chamada Micro-História, cujo
objetivo, entre outros, foi o de promover a volta do sujeito individual. Outro é o da
nova história cultural, que incorpora as questões da representação e das formas
lingüísticas de apreensão do mundo pelo sujeito individual ou coletivo. Um terceiro
corresponde a uma forma de ressurgimento da história social e da sociologia histó-
rica, que se rotula de ciência histórica sócio-estrutural (MARTINS, 2004).

4. A micro-história
A proposta da Micro-história é reduzir a escala de observação do historiador
(incluindo espacialidade e temporalidade) na tentativa de buscar elementos
que, analisando em escala maior, passariam despercebidos. Seus objetos ge-
ralmente são práticas culturais especí�cas (festas religiosas, por exemplo),
ocorrências (um determinado crime, um julgamento especí�co, suicídios), ci-
dades, indivíduos, famílias ou lugares determinados. Entende-se que uma
micro-ocorrência fornece dados para a compreensão de uma característica
cultural maior.

De acordo com Peter Burke (2005, p. 60-64), a Micro-história foi uma reação
contra:

1. o estilo de história social que empregava métodos quantitativos e descrevia


tendências gerais;
2. a relação entre a História e a ;
3. a grande narrativa (história triunfalista) que se interessava, quase que exclu-
sivamente, pelos nomes e fatos ocidentais, ou seja, Cristandade, Renascença,
Revolução Francesa etc.;

A novidade da Micro-história não está somente na escala de observação, mas


do mesmo modo, na forma de contextualizar. Enquanto na perspectiva macro-
historiográ�ca podemos encontrar uma contextualização que parte de uma vi-
são panorâmica para depois afunilar numa temática mais especí�ca, os
micro-historiadores, por vezes, desprezam a contextualização ou realizam-na
de modo bem diverso: eles partem da especi�cidade e, quando se achar neces-
sário, apontam para um contexto maior.
Observemos as Figuras 1 e 2:

Figura 1 Contextualização tradicional.

Repare que a numeração indica um movimento de fora para dentro. Esse seria
o modelo convencional. Já aquele seguido pela Micro-história pode ser repre-
sentado da seguinte maneira:

Figura 2 Contextualização da Micro-história.

O asterisco representa o tema: a partir dele, é feita a referência ao contexto


maior.

Um dos exemplos mais conhecidos desse tipo de abordagem é o livro O queijo


e os vermes, do historiador italiano Carlo Ginzburg. Nessa obra, encontramos
narrada a história do moleiro Domenico Scandella, conhecido por Menocchio,
perseguido e julgado pela inquisição papal. Os elementos de Micro-história
que observamos no livro são de�nidos pela exposição da história pessoal de
um homem e uma vila especí�ca, Montereale, em uma época determinada, o
século 16.

Outro exemplo é o livro de Emmanuel Le Roy Ladurie, Montaillou, que versa


sobre uma pequena aldeia da França, localizada nos Pireneus, à época do iní-
cio do século 14. O autor usou registros da inquisição para retratar a vida coti-
diana dos cerca de 200 habitantes da comunidade.

Finalizando essa breve exposição sobre a Micro-história, faremos uso de uma


assertiva um tanto importante:

[...] a Micro-história deve ser de�nida como ‘campo’ e não como uma ‘corrente’ loca-
lizada de historiadores. E também não deve ser vista como restrita a uma determi-
nada temática. Na verdade, a princípio qualquer tema seria passível de ser aborda-
do a partir de um olhar micro-historiográ�co (BARROS, 2004, p. 167-168).

5. A nova história cultural


Esse novo campo historiográ�co (Nova História Cultural) é o que particular-
mente nos interessa. Foram alguns de seus representantes que alçaram voos
mais altos nessas contendas contra os tradicionais paradigmas da historio-
gra�a. Dentre eles, citamos: Lyn Hunt, Michel de Certeau, Roger Chartier,
Michel Foucault, Hayden White, entre tantos outros. A partir dos estudos des-
ses autores, a História foi repensada no contexto do pós-modernismo.

Mas o que caracteriza a Nova História Cultural? O que ela apresenta de novo
ou repensado? Quais suas contribuições para a difícil tarefa do historiador di-
ante do passado que não se revela, mas que clama por olhares?

Aqui, vale ressaltar que esse movimento não foi exclusivo no meio acadêmico
francês; pelo contrário, trata-se de um movimento internacional que encon-
trou eco na Inglaterra, Estados Unidos, Itália, Rússia, Alemanha, Holanda e
mesmo no Brasil.

O que é cultura?
Como compreender o que é a Nova História Cultural sem entendermos o que é
cultura? Não há como. Você já parou para pensar qual conceito de cultura uti-
liza no dia a dia, em seus estudos? Mas é possível entender o que é cultura?
Cardoso (2005) surpreende-nos ao divulgar uma pesquisa em que apontou a
existência de, aproximadamente, 164 conceituações diferentes para esse ter-
mo.

Portanto, mais uma vez, deparamo-nos com um conceito polissêmico. E, mais


uma vez, somos chamados a optar por apenas um deles, pois disso depende a
nossa abordagem às fontes. Mas, ao menos, uma certeza vem nos acalantar:
podemos descartar todos aqueles julgamentos que localizam a cultura no cer-
ne da elite, ou seja, que apregoam que as camadas sociais menos favorecidas
(�nanceira e intelectualmente) não são detentoras nem produtoras de cultura.
Esse preconceito já não é mais aceito no meio acadêmico.

Vejamos exemplos de signi�cações de cultura que alguns estudiosos nos dei-


xaram como legado para serem seguidas, criticadas ou, ao menos, re�etidas:

1. Para Bronislaw Malinowski (in BURKE, 2005, p. 43), cultura abrange “as
heranças de artefatos, bens, processos técnicos, idéias, hábitos e valores”.
2. Segundo Edward Tylor (in BURKE 2005, p. 43), cultura “é o todo complexo
que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e outras apti-
dões e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade”
(BURKE, 2005, p. 43).
3. De acordo com Clifford Geertz (in BURKE, 2005, p. 52), cultura:

[...] é um padrão, historicamente transmitido, de signi�cados incorporados em sím-


bolos, um sistema de concepções herdadas, expressas em formas simbólicas, por
meio das quais os homens se comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conheci-
mento e suas atitudes acerca da vida.

Observe que as de�nições de Malinowski e Tylor são aproximadas. Entretanto,


a de�nição de Geertz apoia-se no simbólico. É esse o rumo que irá tomar a
Nova História Cultural.

A viragem antropológica
Na historiogra�a, encontramos a expressão inglesa “cultural turn”, que tam-
bém faz referência à viragem antropológica.

A viragem antropológica: assim foi de�nido esse encontro – que se iniciou na


década de 1960, mas que se �rmou na década de 1990 – entre a História e a
Antropologia. Dentre os primeiros resultados dessa junção, temos o apareci-
mento de expressões como “história antropológica”, “antropologia histórica” e
“etno-história”. De qualquer modo, seja qual for a acepção escolhida pelo histo-
riador, dentre essas três, ela revela o campo de interesse e as possibilidades
interpretativas das fontes e das histórias, melhor ainda, das culturas. Outro
efeito foi a de�nição da abordagem às fontes, ou seja, a grande preocupação da
Nova História Cultural passou a ser o simbólico e suas interpretações e não
necessariamente a inclusão de novas fontes. A�nal, como a�rmou, de modo
enfático, Ernest Cassirer (1975, p. 45), “o homem não é outro senão o animal
symbolicum”.

Além de Geertz, os antropólogos Marcel Mauss e Claude Lévi-Strauss foram


igualmente retomados, mesmo com propostas diferentes. Porém, Benatte
(2007, p. 3-4) de�ne bem esse passeio dos historiadores pela Antropologia:

De modo geral, o olhar histórico-antropológico dos praticantes da nouvelle histoire


é bastante variado em suas inspirações. Eles não observam uma �delidade estrita a
um determinado “clã” ou escola do pensamento antropológico; antes praticam um
certo ecletismo vagabundo adaptado a seus interesses especí�cos de pesquisa. O
que eles parecem buscar na ciência social vizinha não é um corpus conceitual sis-
têmico ou uma teoria geral da cultura, mas sim um aguçar da sensibilidade para a
diferença e alteridade do passado empiricamente cognoscível.

Essa viragem antropológica signi�cou para os historiadores culturais do �nal


do século 20 a “[...] busca de uma maneira alternativa de vincular cultura e so-
ciedade, uma forma que não reduzisse a primeira a um re�exo da segunda ou
a uma superestrutura [...]” (BURKE, 2005, p. 56).

Uma última citação tem o objetivo de situá-lo, ainda mais, no contexto pós-
moderno:

O que os críticos da modernidade, os pós-modernos, elegeram em troca da raciona-


lidade moderna e seus grandes temas, o progresso, a ciência, a revolução, a verdade
en�m... foi a valorização do particular, do fragmentário, do efêmero, do microscópi-
co, do sensual, do corpóreo, do prazer. A pós-modernidade rejeita decididamente a
predileção pelas grandes sínteses, pelo conhecimento das causas primeiras, pela
busca do sentido da História. Desse modo, o processo histórico passa a ser o domí-
nio da indeterminação, do sujeito constituinte, da criação absoluta (ALMEIDA, 2003,
p. 75).

Ninguém melhor do que o próprio autor para falar dele mesmo. Num bate-papo quase informal, Carlo
Ginzburg apresenta-se. Vejamos o que o estudioso da Micro-história tem a nos dizer sobre suas in�uênci-
as e contribuições. A entrevista completa encontra-se na revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 3, n.
6, 1990, p. 254 -263.

O historiador italiano Carlo Ginzburg, especialista na análise dos processos da


Inquisição nos séculos XVI e XVII, é conhecido do público brasileiro por seus li-
vros O queijoe os vermes (1987), Os andarilhos do bem (1988) e Mitos, emblemas,
sinais (1989), todos traduzidos e publicados pela Companhia das Letras. Professor
da Universidade de Bolonha e da Universidade da California em Los Angeles, este-
ve no Brasil em setembro de 1989, onde proferiu palestras a convite da USP, da
Unicamp e do PPGAS do Museu Nacional (UFRJ). Nesta entrevista concedida a
Alzira Alves de Abreu, Ângela de Castro Gomes e Lucia Lippi Oliveira, discorre so-
bre sua formação, as in�uências que sofreu e sua própria obra, contribuindo para o
debate sobre a relevância dos temas históricos.

A.A – Poderia nos falar sobre suas origens, familiares e culturais?

Nasci em Turim em 1939, numa família de judeus assimilados e intelectuais, tanto


do lado paterno quanto materno. Meu pai, Leone Ginzburg, nasceu em Odessa e foi
para a Itália criança. Viveu em Turim e foi colega de colégio e amigo de Bobbio,
que depois escreveu a introdução da coletânea póstuma de seus escritos, um texto
muito bonito e comovente. Meu pai era professor de literatura russa, mas em 1932,
quando os fascistas exigiram que os professores jurassem �delidade ao regime,
pediu demissão. Em 1934 entrou na conspiração antifascista e tomou-se líder de
um grupo em Turim que tinha ligações com a França. Foi preso e passou dois
anos na cadeia. Quando saiu, foi um dos fundadores da Editora Einaudi, junto com
Cesare Pavese. Logo depois que começou a guerra, em 1940, como era muito vigia-
do, foi con�nado numa cidadezinha nos Abruzzi. A família foi junto, e passei mi-
nha primeira infância, até 1943, nesse lugarejo. Nesse ano o rei destituiu
Mussolini, e meu pai voltou para Roma, que estava ocupada pelos alemães.
Sempre ligado à conspiração antifascista, foi preso e morreu na prisão alemã em
Roma em 1944.

Minha mãe, Natalia Ginzburg, Levi em solteira, era �lha de um histologista muito
conhecido e importante, professor da Universidade de Turim. Três dos alunos de
meu avô receberam o prêmio Nobel [...]

Depois da guerra, minha mãe recomeçou a escrever. É uma romancista muito co-
nhecida, e seus livros foram traduzidos em vários países, inclusive no Brasil. [...]

Nasci portanto nessa família de intelectuais, o que sem dúvida representou um


privilégio cultural. Ao mesmo tempo, há o fato de que éramos judeus e de que, um
pouco devido à guerra, conservei uma lembrança muito nítida da perseguição so-
frida. [...]

Observe como o percurso pessoal do autor in�uenciou seus escritos. Uma de


suas obras mais importantes trata de um processo inquisitório. Por esse e ou-
tros motivos é que, na atualidade, se considera a subjetividade do autor.

L.O.- Por que história?

Quando eu era criança, sonhava em ser escritor, o que era até previsível já que mi-
nha mãe escrevia. Depois, pensei em ser pintor. Pintei na adolescência, cheguei a
estudar um pouco de pintura, mas, num determinado momento, percebi que não
era pintor. E o curioso é que tanto a literatura como a pintura têm a ver com o que
faço hoje. Existe uma dimensão literária no trabalho do historiador e tenho muita
consciência desse elemento. [...]

[...]
Mas há ainda um outro fato ligado a essa escolha. Havia na Scuola Normale um
historiador medievalista chamado Arsenio Frugoni, não tão importante como
Cantimori, mas muito bom professor, autor de um livro sutil e inteligente sobre um
herege queimado pela Igreja Romana no século XII. Assim que entrei para a uni-
versidade, ainda interessado em literatura, Frugoni tentou convencer-me a estu-
dar história e me deu um ensaio de Croce para ler. E o fato é que o primeiro livro
de história que eu havia lido era justamente a História da Europa, de Croce, um
pouco por in�uência familiar. Meu pai havia sido um discípulo de Croce [...] Aliás,
faço parte da última geração na Itália que leu realmente Croce. Depois disso, não
se leu mais. E isso foi importante para mim, mesmo que eu não goste de Croce. Há
coisas boas nele, mas faço uma história totalmente diferente da que ele propõe.

Voltando ao meu tempo de escola, Frugoni me deu o ensaio de Croce para ler, um
célebre ensaio sobre um marquês napolitano que abraçou o protestantismo no sé-
culo XVI. Comecei a lê-lo e percebi que não me interessava nem um pouco. Disse a
Frugoni que não ia estudar história, porque era uma disciplina que não me desper-
tava interesse. Depois de ter ouvido Cantimori e ter mudado de idéia, voltei a
Frugoni. Eu tinha que escolher um tema de estudo, e ele me sugeriu que trabalhas-
se com os Annales. Perguntei: “O que é isto?” É interessante que naquela época,
1958, houvesse alguém na Itália propondo os Annales como tema a um estudante
que não sabia do que se tratava. De toda forma, havia a coleção completa dos
Annales numa biblioteca de Pisa, o que prova que as ligações eram mais antigas.
Hoje existe na Itália uma idéia equivocada de que a in�uência dos Annales teria
começado nos anos 70, quando na verdade se iniciou muito antes.

O despertar para a História não é um caminho livre. Nem sempre o que estu-
damos nos chama a atenção. Mas neste processo de escolhas, as leituras são
imprescindíveis. Não é necessário um Croce, mas as obras dos estudiosos li-
gados aos Annales, são um belo começo.

Comecei então a ler os Annales desde os primeiros números. Li Marc Bloch e �-


quei muito impressionado, sobretudo com Les rois taumaturges, que na época não
era visto como um livro importante [...]

Além desse encontro com Marc Bloch, houve outro fato fundamental. Li o livro de
um historiador italiano muito importante, Federico Chabod, sobre a história religi-
osa do Estado de Milão no século XVI e as primeiras reações à Reforma
Protestante. [...] Chabod havia trabalhado intensamente com os arquivos milane-
ses, e tinha encontrado uma minuta de documento o�cial em cujo verso havia al-
gumas frases sobre a predestinação que haviam sido riscadas. E Chabod fazia
uma análise maravilhosa desse documento esquecido, riscado, quase destruído,
[...] A análise de Chabod era realmente extraordinária, sobretudo sua idéia de recu-
perar um documento como aquele para a história. Hoje, pensando retrospectiva-
mente, acho que naquele momento, mesmo de uma forma obscura, compreendi o
que se podia fazer com a história.

Penso que não se deve ter medo de ser ignorante... Considero que o verdadei-
ro perigo está em nos tomarmos competentes”. Essas são assertivas de impac-
to. Procurar saber, não aceitar os fatos como dados, conhecer as diferentes re-
presentações de um mesmo tema é essencial ao historiador e ao professor de
História. Quando cremos que já sabemos muito ou que somos possuidores de
uma verdade inquestionável, adentramos no perigoso terreno de usos inade-
quados do passado.

A.A.- E assim o senhor decidiu ser historiador.

Sim. No ano seguinte eu devia escolher um outro tema de estudo, e lembro que es-
tava passeando quando pensei: “Vou estudar as feiticeiras.” Eu não sabia nada so-
bre o

assunto, mas de uma forma totalmente imediata soube que o que me interessava
eram as

feiticeiras ou feiticeiros, e não a perseguição que sofreram. [...] Como eu não co-
nhecia nada, fui para a biblioteca e comecei a ler o verbete stregholeria na
Enciclopédia Italiana. [...] gosto muito de começar trabalhos completamente no-
vos, sobre coisas a respeito das quais não conheço nada. Sempre tento explicar
aos meus alunos que o que existe de realmente excitante na pesquisa é o momen-
to da ignorância absoluta. Penso que não se deve ter medo de ser ignorante, e sim
procurar multiplicar esses momentos de ignorância, porque o que interessa é jus-
tamente a passagem da ignorância absoluta para a descoberta de algo novo.
Considero que o verdadeiro perigo está em nos tomarmos competentes.

Mais do que os próprios fatos, a análise deles é o que compreendemos, hoje,


por história. As interpretações apresentam-nos um passado intangível, mas
que deixou materialidades.
A.G. - Por que a escolha das feiticeiras como tema de estudo?

Certamente pesou nessa escolha a idéia de que os fenômenos religiosos são im-
portantes. Mas havia outra coisa também, que na época me escapou de uma ma-
neira surpreendente: a idéia de trabalhar com marginais, com hereges, podia estar
ligada ao fato de eu ser judeu. Reprimi completamente essa associação, e foi um
amigo que me alertou para ela numa conversa, como algo evidente. Havia ainda
outro elemento muito profundo em meu interesse pelas feiticeiras: a fascinação
pelos contos de fadas que minha mãe lia quando eu era criança. [...]

A sua condição de excluído da História levou-o a estudar os personagens mar-


ginais. Sobre essa temática, as obras de Michele Perrot são fundamentais.
Sugerimos a leitura de Os excluídos da História: operários, mulheres e prisio-
neiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.

L.O. - O senhor falou em Croce. Vico também foi uma in�uência em seus anos de
formação?

Vico é realmente um grande clássico. Foi redescoberto no começo do século XIX,


mas sobretudo foi redescoberto por Croce. [...] Mas essa questão de in�uências é
complicada, porque no início temos uma certa porosidade intelectual que depois
vai desaparecendo. E acho que esse período de porosidade é crucial, porque é en-
tão que se forma um arcabouço cultural, assim como antes já se formou um arca-
bouço psicológico. Alguns dos livros mais importantes que li, li antes dos 22 anos.
Até essa época eu não havia lido Vico, mas tinha lido o diário de Pavese. E Pavese
re�etiu muito sobre Vico [...]

[...] Também através de Pavese li outras coisas importantes. [...]

Acredito que no fundo os livros de história talvez não tenham sido a coisa mais
importante que li. Acho que Guerra e paz de Tolstoi, por exemplo, me marcou mui-
to mais profundamente do que qualquer livro de história, inclusive os de Marc
Bloch. Assim também Dostoievski. Ou seja, os romances foram os livros que mais
me tocaram.

Devo mencionar ainda outra grande descoberta que �z em minha vida: o Warburg
Institute, em Londres. [...]
Uma ocasião, quando eu ainda estudava em Pisa, fui a Londres visitar minha mãe,
[...] Cantimori também estava lá, e me levou para conhecer o Warburg Institute.
Fiquei fascinado pelo instituto, pela história da arte, pela possibilidade de traba-
lhar com história da arte numa perspectiva mais ampla. Em 1964, quando estava
preparando meu livro Os andarilhos do bem, ganhei uma bolsa de um mês e fui
para Londres. Trabalhei como um louco, descobri a obra de Gombrich, sobretudo
Art and illusion, comprei os livros de Saxl, voltei para a Itália com uma mala cheia
de livros. Comecei a ler Gombrich, e foi uma experiência extraordinária, algo que
me marcou muito. Escrevi então um artigo sobre a tradição da Biblioteca Warburg,
que depois foi publicado na coletânea Mitos, emblemas, sinais. Enviei o artigo a
Gombrich, e a seu convite voltei a Londres por um ano. E isso para mim foi muito
importante.

Na Itália como no Brasil, as pessoas perceberam meu trabalho através da tradição


dos Annales. Sem dúvida os Annales foram importantes para mim. Nos últimos
15 anos tenho sido regularmente convidado a ir a Paris para discutir com o grupo
dos Annales. Mas acho que meu arcabouço intelectual é mais heterogêneo. Houve
outras coisas que me marcaram.

A.A.- O senhor também sofreu in�uência do marxismo?

Realmente, como todos sabem, a vida intelectual na Itália foi impregnada pelo
marxismo. Meu encontro com Gramsci sem dúvida foi muito importante. [...] Li
Hegel e Marx no curso de um intelectual comunista chamado Cesare Luporini, [...]

As in�uências intelectuais são visíveis nas obras dos historiadores, mesmo


naquelas ocasiões em que a relação se dá por meio da crítica. A in�uência da
História da Arte nas obras de Ginzburg podem ser evidenciadas até mesmo
nos títulos, Os andarilhos do bem e História noturna. São essas “marcas” que
possibilitam uma verdade histórica relativa, ou seja, de acordo com as leituras
que fazemos, dirigimos nossos olhares de uma determinada maneira aos te-
mas, às fontes e às abordagens teóricas.

L.O. - O senhor é um historiador italiano internacionalmente conhecido. Como se


deu sua inserção nos meios intelectuais internacionais?

Acho que esta é uma pergunta importante porque tem implicações que vão muito
além do meu caso pessoal. Publiquei Os andarilhos do bem em 1966, e tive uma re-
senha anônima no Times Literary Supplement - era o texto de Hobsbawm, que
não o assinou. Alguns anos mais tarde, saiu outra resenha bastante elogiosa na
Bibliothèque de I'Humanisme et Renaissance. Era um texto de Bill Monter, um
historiador americano que trabalhou com feitiçaria, história espanhola, Inquisição
etc. [...] em 1973 fui para Princeton.

Quando cheguei aos Estados Unidos, descobri que havia pesquisadores que co-
nheciam Os andarilhos do bem. [...] Mas só no �nal dos anos 70, quando O queijo e
os vermes começou a ser traduzido, o caminho foi aberto. [...] O momento era pro-
pício, havia uma conjuntura internacional favorável, Braudel escreveu dizendo
que era um livro muito. bom, que devia ser traduzido...

Penso que a traduzibilidade de meus livros está ligada ainda a outro elemento.
Entre os historiadores italianos sempre prevaleceu, e prevalece até hoje, com raras
exceções, a tendência a escrever para pro�ssionais. Há muito de implícito no que
se escreve, e isso di�culta a tradução. [...] mas desde muito cedo decidi que gosta-
ria de trabalhar de maneira diferente, de escrever tanto para pro�ssionais quanto
para um público mais amplo. E foi o que �z em Os andarilhos do bem e O queijo e
os vermes. [...]

Tornar-se conhecido por suas pesquisas no meio acadêmico não é tarefa fácil.
Para além dos elogios, há inúmeros casos de obras importantes que caíram no
esquecimento em virtude das ferrenhas críticas recebidas. Também há o pro-
blema da tradução: se não se conhece bem a língua e os termos técnicos pró-
prios de cada teoria, corre-se o risco de se ter uma versão, e não uma tradução.
Isso implica uma leitura muito diferente daquela proposta pelo autor. Eni
Puccinelli Orlandi, em seu livro Interpretação (São Paulo: Pontes, 2004), fala
em “deslizamento de sentidos”. Porém, não podemos negar que, devido às tra-
duções, temos acesso às diferentes produções acadêmicas mundiais.

A.A.- Poderia nos falar um pouco sobre seu último livro, Storia noturna?

É o livro mais longo que escrevi, e no qual trabalhei mais de 15 anos, com longos
intervalos [...] Storia noturna foi um livro muito difícil de escrever, embora eu esti-
vesse muito apaixonado pela pesquisa. Durante muito tempo achei que não seria
capaz de terminá-lo. Publiquei-o em abril de 1989, mas mesmo agora tenho a im-
pressão de que foi escrito por alguém que não eu. É claro que quando penso no li-
vro, lembro de quando o escrevi, mas relendo alguns trechos sempre tenho senti-
mentos de surpresa. [...]
Storia noturna aborda o problema do sabá numa perspectiva ao mesmo tempo
histórica e morfológica. A primeira parte é histórica, a segunda é morfológica, e há
ainda uma terceira parte em que faço uma comparação entre as duas perspectivas
e tento operar uma convergência. Há uma conclusão e uma introdução teórica
bastante longa. Na primeira parte, começo com o sabá, ou seja, a reunião das feiti-
ceiras, vista pelos inquisidores, pelos juízes. Analiso a idéia de complô, que é algo
muito importante. Há um pequeno trecho na introdução em que falo do papel do
terrorismo, porque penso que há uma relação entre a percepção que tive dessa
idéia do complô e o terrorismo na Itália a partir de 1969. [...]

Na segunda parte, tento compreender aquilo que considero ser o núcleo folclórico
do sabá, ou seja, o vôo mágico e a metamorfose em animais. Coloquei-me o proble-
ma do núcleo folclórico e procurei recolher fenômenos com uma preocupação pu-
ramente formal, alheia a qualquer consideração de ordem histórica, cronológica
ou geográ�ca. Reconstituí séries de fenômenos ligados entre si do ponto de vista
estrutural, no nível da morfologia profunda, dispersos pelo continente eurasiano.

Na terceira parte, há um capítulo que se chama justamente “Conjecturas eurasiáti-


cas”, em que tento propor uma série histórica, apresentar relações históricas docu-
mentadas que poderiam explicar essa dispersão de dados. Nesse momento, po-
rém, achei que isso não era su�ciente e utilizei Lévi-Strauss, que é o interlocutor
mais importante do livro. [...] o que mais me impressionou foi a discussão de Lévi-
Strauss, ao dizer que a explicação histórica não bastava. E o que tentei fazer nesse
terceiro capítulo, que é o mais longo e talvez o mais audacioso do livro, foi combi-
nar as duas abordagens.

Disponível em: <http://virtualbib.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/viewFile


/2300/1439 (http://virtualbib.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/viewFile
/2300/1439)>. Acesso em: 10 maio 2010).

“A explicação histórica não basta”. A Nova História Cultural propõe essa leitu-
ra com a�nco. Daí o incentivo à interdisciplinaridade, à união e à justaposição
entre as Ciências Humanas. De modo mais especí�co, a defesa da estreita re-
lação entre a História e a Antropologia.

6. História: discursos, práticas e representa-


ções
Prosseguindo com nossos estudos, veremos, neste tópico, as críticas e propos-
tas do Pós-modernismo. Para tanto, assistiremos ao vídeo a seguir, no qual, a
historiadora Renata Rodrigues explora o contexto de surgimento dessa corren-
te, bem como caracteriza suas diversas propostas metodológicas, estabelecen-
do um panorama geral sobre estas produções.

A proposta historiográ�ca pós-moderna foi pautada na análise de discursos,


práticas e representações. A �m de re�etir sobre tais conceitos e perspectivas
metodológicas, vamos estudar a história como uma construção discursiva que
mantém uma relação no mínimo problemática com a busca de "uma verdade
histórica". Trataremos dos conceitos de práticas e representações que são de
fundamental importância para essa corrente historiográ�ca, mas que ainda
guardam uma relação muito próxima com as propostas de uma história de ca-
ráter eminentemente cultural.

7. História e discurso
Para iniciar nossa discussão, retomaremos, a princípio, um fragmento da cita-
ção a seguir, quando Carbonell responde o que é historiogra�a. Na sequência,
veremos alguns autores de�nindo o que é a História.

“O que é historiogra�a? Nada mais que a – um discurso


escrito e que se a�rma verdadeiro – que os homens têm sustentado sobre seu
passado [...]” (CARBONELL, 1987, p. 6, grifo nosso).

De acordo com Jenkins (2004, p. 52, grifo nosso):

A cambiante e problemático, tendo como pretexto um as-


pecto do mundo, o passado, que é produzido por um grupo de trabalhadores cuja ca-
beça está no presente [...], que tocam seu ofício de maneiras reconhecíveis uns para
os outros [...] e cujos produtos, uma vez colocados em circulação, vêem-se sujeitos a
uma série de usos e abusos.

Para Chartier (1994, p. 102, grifo nosso):


que aciona construções, composições e �guras que são as
mesmas da escrita narrativa, portanto da �cção, mas é um discurso que, ao mesmo
tempo, produz um corpo de enunciados cientí�co.

“[...] essa prática [uma ‘disciplina’], [


] ou a relação de ambos sob a forma de uma produção” (DE
CERTEAU, 2000, p. 32, grifo nosso).

Foucault (apud Rago 1995, p. 93, grifo nosso) “a�rmou que a


[...]”.

“[...] [ ] e uma prática ao mesmo tempo soci-


al e individual” (DUBY apud REIS, 2003, p. 171, grifo nosso).

Santos (2006, p. 106, grifo nosso) a�rma que:

[...] que se associa mais rigorosamente a um regime dis-


cursivo da interpretação do que a um regime discursivo do fato [...]. Sob pena de
projetar sobre o passado todo o peso de uma visão constituída aprioristicamente, a
história constitui-se mais como exegese de séries discursivas, a serem recomeça-
das, do que como estabelecimento de um sentido de�nitivo do real.

Para você re�etir, foram selecionadas algumas de�nições de História que vie-
ram corroborar com uma das temáticas já discutidas: História enquanto dis-
curso. Nessa mesma linha, ainda encontramos conceituações que dizem ser a
História uma prática discursiva. O que tudo isso implica? Quais os resultados
dessa a�rmação? Uma primeira resposta já foi trabalhada anteriormente: se
História é um discurso e se o discurso é uma produção do tempo presente so-
bre o passado, então, História é a construção desse passado e não a sua descri-
ção. E, se o discurso traz em si a característica de ser algo criado por um histo-
riador (com uma história de vida e acadêmica próprias, com ideologias própri-
as), a História é interpretação e não a apresentação do real.

Mas se a História é um discurso, o que é discurso? Mais uma vez (e isso ocorre
demasiadamente em estudos historiográ�cos), estamos diante de um conceito
polissêmico. E, mais uma vez, você terá acesso a algumas de�nições que vêm
ao encontro de nossa temática. Assim, o discurso pode ser entendido como:

[...] a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos; [...] o
discurso nada mais é do que um jogo, de escritura, no primeiro caso, de leitura, no
segundo, de troca, no terceiro, e essa troca, essa leitura e essa escritura jamais
põem em jogo senão os signos (FOUCAULT, 1996, p. 49).

E ainda de acordo com White (1994, p. 16-17 e 34):

[...] quintessencialmente um empreendimento mediador. Como tal, é ao mesmo


tempo interpretativo e pré-interpretativo; [...] na medida em que lidamos com o dis-
curso, estamos lidando com o que são, a�nal, artefatos verbais.

Para Silva e Silva (2006, verbete “discurso”, p. 101):

[...] a forma por meio da qual os indivíduos proferem e apreendem a linguagem co-
mo uma atividade produzida historicamente determinada [...] o discurso é a prática
da linguagem.

“[...] prática instituinte, criadora de acontecimentos, imagens e referenciais de


comportamento” (LOPES, 2000, p. 292).

Se o discurso constrói a História e se esta tem sua signi�cação modi�cada a


partir da compreensão do que é discurso, o que é História para esses historia-
dores? A partir daqui, você será convocado a se destituir por completo de algu-
mas de�nições (consideradas por alguns estudiosos como simplistas) do tipo:
“é o estudo do passado”, pois o passado ganhou novos sentidos – já passou,
não volta; “é o estudo do Homem”, pois agora não existe mais o sujeito univer-
sal – temos homens, mulheres, crianças, escravos, homossexuais etc.

Se todos esses posicionamentos são válidos aos pós-modernos, então, o que


está em jogo é a noção de verdade, de real, de realidade, do concreto da
História. Assim, só podemos pensar, neste contexto, que a verdade da História
é relativa, é verossímil (por mais que isso nos pareça um paradoxo).

História e Verdade
Segundo Schaff (1978, p. 92), a de�nição clássica de verdade é a seguinte: “é
verdadeiro um juízo do qual se pode dizer que o que ele enuncia é na realidade
tal como o enuncia”.

Na historiogra�a anterior aos Annales, houve uma preocupação entre um


grande grupo de estudiosos de apontar a verdade histórica: o que realmente
aconteceu e como aconteceu. As fontes falavam por elas mesmas. Mas essas
mesmas fontes passaram a ser compreendidas como fragmentos do passado;
então, só sabemos parte desse passado. Se sabemos parte, não conhecemos o
todo e, sem o todo, não temos o real ou a verdade. En�m, “não há lugar em que
o real se dê” (BOURDÉ, 1990, p. 206). Finalmente, só podemos concluir que apli-
car o conceito de verdade objetiva ao passado histórico é algo bem problemáti-
co.

Mas há uma ressalva a ser feita: o que ocorre nesse ambiente pós-moderno
não é o abandono da verdade ou do real em troca da �cção, da mentira, do ilu-
sório ou da pura imaginação. O que ocorre é um afastamento da noção de ver-
dade absoluta rumo à compreensão de que, na História, as verdades são histó-
ricas, constituídas pelo e no discurso, a partir da análise de documentos.
Entretanto,

[...] já não é apenas a relação que os documentos mantêm com o real que importa
[...] por meio deles, o historiador já não pretende evocar toda a realidade, mas ape-
nas fornecer uma interpretação do ou dos subsistemas que distinguiu no seu seio
(BOURDÉ, 1990, p. 210).

Em outras palavras, não se trata de saber o que foi a Grécia, a Inquisição ou a


Revolução de 1917, mas do que ainda podemos tomar conhecimento de todos
eles. A�nal, como já indicado algumas vezes (não de forma direta, necessaria-
mente), os mesmos acontecimentos ou temas são abordados e interpretados
de formas distintas por diferentes historiadores. Assim, a verdade relativiza-
se.
Uma última observação acerca da verdade. Vamos re�etir juntos. A palavra
“historiogra�a” é composta pela justaposição das palavras “História” e “escri-
ta”. Se entendermos que História é verdade e escrita é discurso, então temos
um paradoxo ou quase um oximoro: apresentar a verdade a partir de uma in-
terpretação; mas se há interpretação, há UMA verdade e não A verdade (cf.
CHARTIER, 2001, p. 140).

De acordo com Veyne (1983, p. 54-55):

[...] o essencial não é pensar em formular a questão? Em outras palavras, é mais im-
portante ter idéias do que conhecer verdades; [...] Ora, ter idéias signi�ca também
dispor de uma tópica, tomar consciência do que existe, explicitá-lo, conceituá-lo,
arrancá-lo à mesmice [...] É deixar de ser inocente, e perceber que o que é poderia
não ser. O real está envolto numa zona inde�nida de compossíveis não realizados; a
verdade não é o mais elevado dos valores do conhecimento.

8. História: práticas e representações


Se a verdade histórica é relativa, segundo a ótica dos pós-modernos, uma das
causas é porque a própria História é uma prática discursiva. Essa característi-
ca da verdade também está associada ao fato de que o mundo é uma represen-
tação (produzida pelos outros – pesquisadores, por exemplo – e pelos mesmos
– os habitantes de uma comunidade).

Dois autores que representam bem esse tipo de História e que são os responsá-
veis pelo uso cuidadoso e pela divulgação dos conceitos de prática e represen-
tação são Michel de Certeau e Roger Chartier. Para além das familiaridades
teóricas entre ambos, eles analisaram a importância do livro como compo-
nente de diferenciação social e cultural no Ocidente.

Vamos conhecer um pouco mais sobre os problemas levantados por esses au-
tores e suas contribuições para a História Cultural? Então, caminhemos jun-
tos.

O jesuíta especialista em História da Religião, Michel de Certeau, foi um dos


responsáveis pela divulgação do conceito de prática no meio historiográ�co.
Com formação pluridisciplinar (de �lósofo, historiador, psicanalista e semióti-
co), contribuiu, igualmente, com a história do misticismo, da historiogra�a e
da linguagem e apresentou uma noção diferenciada de cultura popular.
Algumas de suas obras são: La possesion de Loudun, A Escrita da História, A
Cultura no plural e A invenção do cotidiano.

Os dois últimos títulos sugerem uma postura de De Certeau: ele criticava as vi-
sões monolíticas da Cultura. Para provar que esse conceito é mais valioso no
plural, procurou interpretar normas culturais por meio do cotidiano. Assim,
analisou as práticas das pessoas comuns. Tais práticas eram chamadas pelos
sociólogos que o antecederam de “comportamento” (de grupos, como eleitores,
por exemplo). Esses mesmos sociólogos consideravam as pessoas comuns
consumidoras inertes de artigos produzidos em grande escala. Porém, De
Certeau ressaltou a criatividade, a inventividade de determinados grupos po-
pulares diante dos “usos”, a “apropriação” e, especialmente, a “utilização” (re-
emploi) das obras (BURKE, 2005, p. 103).

Mas o cotidiano que interessou a De Certeau não é aquele aparente, pois “[...] o
que interessa ao historiador do cotidiano é o Invisível [...]” (DE CERTEAU, 1996,
p. 31). Ele desconsiderou a ideia de que as pessoas se deixam passivamente
ser levadas a ocupar um lugar, desempenhar um papel e consumir produtos
massi�cados. De Certeau, de outro modo, esclareceu-nos que o homem co-
mum, ordinário, reinventa o cotidiano de mil maneiras e não se permite cair
na conformação. Às essas manobras, en�m, à invenção do cotidiano, ele deu o
nome de táticas de resistência, artes de fazer, astúcias sutis, que, alterando os
usos dos objetos e seus códigos, estabelecem uma (re)apropriação do espaço.
De Certeau buscou, então, descobrir os meios para abalizar maneiras de fazer,
estilos de ação, em outras palavras, elaborar a teoria das práticas.

De um modo mais simpli�cado, os leitores de De Certeau (e também de


Chartier e outros historiadores da Cultura) devem compreender as práticas
culturais não só como a forma que um quadro é pintado, um ensino é transmi-
tido, mas como os homens crescem, adoecem, curam-se, morrem, andam,
dançam, falam, cantam, debatem, enamoram-se, en�m, como vivem.

Resumindo, segundo De Certeau, para buscar a compreensão das práticas da


cultura popular, é preciso se posicionar num ambiente de enfrentamentos: de
um lado, os que acreditam ser detentores de um saber maior, proprietários dos
mecanismos de dominação simbólica que desquali�cam a cultura popular co-
mo inferior e ilegítima, e, de outro, os usos e os modos de apropriação do que é
imposto; nas palavras do autor, de um lado, as estratégias e, de outro, as táti-
cas.

As estratégias supõem a existência de lugares e instituições, produzem objetos,


normas e modelos, acumulam e capitalizam. As táticas, desprovidas de lugar pró-
prio e de domínio do tempo, são "modos de fazer" ou, melhor dito, de "fazer com". As
formas "populares" da cultura, desde as práticas do quotidiano até as formas de
consumo cultural, podem ser pensadas como táticas produtoras de sentido, embora
de um sentido possivelmente estranho àquele visado pelos produtores [...]
(CHARTIER, 1995. Disponível em: <www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/172.pdf>. Acesso
em: 19 mar. 2009).

Pormenorizando, a uma produção racionalizada contrapõe-se uma outra pro-


dução, o consumo, invisível, pois manifesta-se somente nos modos de usar os
produtos impostos pela(s) ordem(ns) econômica, política ou cultural domi-
nante(s).

Como exemplo do uso dessas contribuições, tomamos emprestados os seus es-


tudos de teoria cultural que enfatizaram um novo foco a respeito do papel do
leitor, das mudanças nas práticas de leitura e nos usos culturais da imprensa,
que evidenciam um interesse pelo público de artistas, escritores ou composi-
tores, ou seja, suas reações e recepções das obras vistas, ouvidas ou lidas.
Nesse contexto, a leitura é inventiva e criadora porque produz sentido. Não é
indiferente e vassala, porque o leitor se reapropria do que está sendo lido (tex-
to ou imagem). “[O leitor] insinua as manhas do prazer e de uma reapropriação
no texto do outro: invade a propriedade alheia, transporta-se para ela, torna-se
nela plural como os barulhos do corpo" (DE CERTEAU, 1990, p. 49).

Com base no que foi exposto, propomos que re�ita sobre a seguinte questão:
será que, atualmente, a mídia é tão poderosa a ponto de destruir uma identida-
de popular (utilizando a estratégia da imposição forçada de modelos culturais)
e extinguir ou invalidar os espaços da recepção, do uso e da interpretação das
obras (sejam quais forem)?
As contribuições para as discussões historiográ�cas
Michel de Certeau pensava a história como produção do historiador, como um
discurso que insurge de uma prática e de um lugar institucional e social. Em
suas próprias palavras, a produção do historiador deveria ser considerada

[...] como a relação entre um lugar [...], procedimentos de análise (uma disciplina) e
a construção de um texto (uma literatura). É admitir que ela faz parte da ‘realidade’
de que trata, e essa realidade pode ser compreendida ‘como atividade humana’, ‘co-
mo prática’. Nessa perspectiva, [...] a operação histórica se refere à combinação de
um lugar social, de práticas “cientí�cas” e de uma escrita” (DE CERTEAU, 2000, p.
66).

No que diz respeito à escrita da História, vemos, em De Certeau, um interesse


em relação à Linguística. Para ele, a história enquanto prática discursiva é
produzida considerando-se que o passado não pode ser abrangido de modo
pleno, primeiro em virtude dos limites dos métodos historiográ�cos (levanta-
mento – pré-escolhas – e seleção – corte – de fontes), e, especialmente, em
decorrência do lugar de onde fala o historiador. Em relação a esse lugar, ou se-
ja, o tempo presente, De Certeau alerta para o fato de que os historiadores pro-
duzem um discurso particularizado que re�ete as preocupações de sua reali-
dade. Em suma, a partir dessa re�exão, ponderou que não se pode falar de
uma verdade, mas de verdades (no plural). E se há verdades a serem analisa-
das, a multidisciplinaridade permitiria apreender o momento histórico de mo-
do mais abrangente (cf. DE CERTEAU, 1995).

A objetividade do discurso do historiador não estaria, portanto, mais relacionada


com visões acabadas, de�nitivas ou fechadas; o trabalho do historiador residiria na
busca de possibilidades, hipóteses de abordagem ligadas às suas preocupações es-
pecí�cas, daí a existência de verdades. Essa mudança de perspectiva introduziria a
utilização da imaginação (não-�ccional) frente ao discurso homogêneo e seu uso
mais profundo na construção da linguagem histórica (DE CERTEAU, 1995, p.
225-226).

Uma última assertiva de De Certeau vem contribuir com nossa compreensão


do real e sua relação com a História:
[...] a situação da historiogra�a faz surgir a interrogação sobre o real em duas posi-
ções bem diferentes do procedimento cientí�co: o real enquanto é o conhecido
(aquilo que o historiador estuda...) e o real enquanto implicado pela operação cientí-
�ca (a sociedade presente a qual se refere a problemática do historiador, seus pro-
cedimentos, seus modos de compreensão e, �nalmente, uma prática do sentido). De
um lado é o resultado da análise e, de outro, é o seu postulado (DE CERTEAU, 2000,
p. 45).

Grande parte do que foi discutido aqui sobre as teorias de Michel de Certeau
compõem os questionamentos da atual historiogra�a: a historiogra�a pós-
moderna. As contribuições prestadas pelo autor podem ser observadas, em
maior ou menor medida, nas produções de diferentes historiadores vincula-
dos à História Cultural, dentre eles, Roger Chartier, a quem você está sendo
acenado a conhecer nas linhas a seguir.

Roger Chartier é professor e diretor do Centro de Pesquisas Históricas na Ecole


des Hautes Etudes em Ciências Sociais na França (Paris). Suas pesquisas pri-
vilegiam a compreensão e a importância da leitura na Europa moderna. No
entanto, igualmente analisa a relação entre o texto e o leitor também na era da
informática. Podemos citar alguns de seus livros como parte de sua vasta con-
tribuição aos estudos de História: da leitura, Aventura do livro: do lei-
tor ao navegador, História da leitura no mundo ocidental, A ordem dos livros e
Formas e sentido - Cultura escrita: entre distinção e apropriação e o mais co-
nhecido entre o público acadêmico brasileiro História cultural, entre práticas e
representações.

Seus ensaios exempli�cam e discutem uma história cultural da sociedade, ou


seja, compreende que as estruturas ditas objetivas são, na verdade, cultural-
mente constituídas ou construídas. Assim, ele entende que a sociedade em si
mesma é uma representação coletiva (cf. BURKE, 1991, p. 98). Resumindo, para
esse estudioso, a História Cultural deve voltar seus interesses para a identi�-
cação da maneira como em distintos lugares e ocasiões uma determinada re-
alidade cultural é construída, pensada, dada a ler.

De modo mais especí�co, suas pesquisas, assumidas como uma prática histó-
rica particular, giram em volta de três polos:
[...] de um lado, o estudo crítico dos textos, literários ou não, canônicos ou esqueci-
dos, decifrados nos seus agenciamentos e estratégias; de outro lado, a historia dos
livros e, para além, de todos os objetos que contém a comunicação do escrito; por
�m, a análise das práticas que, diversamente, se apreendem dos bens simbólicos,
produzindo assim usos e signi�cações diferenciadas (CHARTIER, 1991, p. 178).

Como você deve ter percebido, o próprio Chartier faz uso de um dos conceitos
trabalhados por De Certeau: “práticas”. O que podemos aferir desse uso? Que
Chartier tomou essa noção como um fato dado? Não. Para ele, “práticas” dife-
rentes resultam em “apropriações” diversas, em representações múltiplas.
Vamos compreender um pouco mais sobre sua produção?

O conceito de representação
No interior da História Cultural, mais precisamente na Nova História Cultural,
o conceito de representação ganhou espaço juntamente com os conceitos de
mito, imaginário, memória etc. No entanto, quando esse conceito ou noção
(uma vez que o termo ainda é analisado) é lido, é a Chartier que ele nos remete.
Mas o que signi�ca e como ele utiliza essa ideia?

Em primeiro lugar, é preciso conhecer quais signi�cados tradicionais são am-


plamente utilizados para explicar a representação:

• primeiro, a representação apresentando uma coisa ausente (o que se re-


presenta é diferente daquilo que é representado);
• segundo, a representação como exposição de uma presença;

Para Chartier, seja qual for o uso, a representação deve ser compreendida co-
mo:
[...] o produto do resultado de uma prática. A literatura, por exemplo, é representa-
ção, porque é o produto de uma prática simbólica que se transforma em outras re-
presentações [...] Então, um fato nunca é o fato. Seja qual for o discurso ou meio, o
que temos é a representação do fato. A representação é uma referência e temos que
nos aproximar dela, para nos aproximarmos do fato. A representação do real, ou o
imaginário é, em si, elemento de transformação do real e de atribuição de sentido
ao mundo (MAKOWIECKY, 2003, p. 4).

Nesse contexto, uma pergunta apresenta-se aos nossos olhos: se o fato não
existe enquanto instância concreta, pois ele é produzido, como, tomando um
livro de História como exemplo, devemos encarar as representações ofereci-
das? Nas palavras de Chartier, como nos apropriar da obra? Ou: qual o uso que
fazemos do conhecimento adquirido? Aqui, entramos com o conceito de apro-
priação de Chartier (1991, p. 180):

a apropriação, a nosso ver, visa uma história social dos usos e das interpretações,
referidas as suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas especí�cas
que as produzem.

Explicando um pouco mais, para esse historiador cultural, o que mais interes-
sa não é necessariamente a apropriação, mas o uso que fazemos dela.

Vejamos um exemplo concreto dessa estreita relação entre representações e


práticas produzidas pelas apropriações no Quadro 1. Sugerimos que você con-
�ra mais detalhes sobre as informações contidas no quadro lendo a seguinte
obra: José D’Assunção Barros: a História Cultural e a contribuição de Roger
Chartier, 2005.

Exemplo de relação entre representações e práticas produzidas pelas


apropriações.

REPRESENTAÇÃO
O MENDIGO PRÁTICA CULTURAL
CULTURAL
O mendigo conhecido
O mendigo é visto como
FINAL DO SÉULO 11 é bem acolhido na co-
instrumento de salvação
ATÉ INÍCIO DO 13 munidade ou no mos-
para o rico.
teiro.

Criação de institui-
ções hospitalares, ca-
SÉCULO 13 ORDENS O mendigo deve ser estima-
ridades paroquiais,
MENDICANTES do por seu valor humano.
esmolas de príncipes,
projetos de educação.

SÉCULO 16 Marginalização do mendigo Descon�ança

Exclusão (representada pela Açoitamentos, conde-


SÉCULO 17
cabeça raspada) nações

Reeducação e, em ca-
Passa a ser visto como um
sos mais extremos,
CAPITALISMO vagabundo, um criminoso,
punições exemplares
um perigo para o sistema.
(incluindo a prisão).
Vamos, agora, buscar compreender um pouco mais sobre esses conceitos usa-
dos por Chartier tomando como suporte suas pesquisas sobre a história da lei-
tura ou, mais precisamente, sobre a “recepção” das obras (de literatura ou não)
(cf. BURKE, 2005).

Imagine a seguinte cena: em um escritório, um determinado autor escreve su-


as memórias. A priori, elas se encontram em sua mente e, na sequência, são
pintadas no papel. Esse texto é entregue em uma editora: lá, há correções, re-
visões, formatação e impressão. A obra é encaminhada à livraria. De lá, ela se-
gue para as mãos de um leitor que a leva para sua casa e inicia uma leitura so-
litária, em silêncio, com a ajuda de uma luminária. Mas esse leitor é, também,
um professor que se interessa em divulgar o conhecimento. Então, ele propõe
a leitura de fragmentos desse livro em classe. Um ou mais alunos
encarregam-se de ler os trechos selecionados em voz alta para toda a turma.
Há entonações, pausas, retornos (pois a palavra foi lida erroneamente) e inter-
venções do professor. A aula termina. Contudo, no bar da esquina, onde os alu-
nos se reencontraram, a discussão foi retomada, o livro foi reaberto e frases
relidas. Ao lado do livro, sobre a mesa, um copo de cerveja, uma porção de fri-
tas, um cinzeiro amparando cigarros, atentos ouvintes do bate-papo.
Você acredita que todos os leitores (propriamente dito ou ouvintes) receberam
a obra da mesma maneira? Todas as situações produziram signi�cados ou
sentidos análogos? Observemos alguns questionamentos levantados por
Fernando de Rojas e citado por Chartier (2001, p. 211):

A questão é simples: como é que um texto, que é o mesmo para todos que o lêem,
pode transformar-se em instrumento de discórdia e de brigas entre seus leitores,
criando divergências entre eles e levando cada um, dependendo do seu gosto pes-
soal, a ter uma opinião diferente?

Primeiro ponto a ser considerado: Chartier não acredita na possibilidade de


que há um sentido estável, universal ou congelado nas obras, pois aceita a
condição de que elas possuem signi�cações plurais e móveis, de acordo com a
relação estabelecida no momento do oferecimento e recepção das mesmas.
Dito de outra forma: as autoridades por trás do livro (autores, editores etc.) in-
tencionam estabelecer, de�nir o sentido e a interpretação da leitura, ou seja, há
um esforço em violentar as interpretações do leitor. Em contrapartida, esse
mesmo leitor burla as regras, inventa, desloca, distorce os sentidos (cf.
CHARTIER, 1994). É aqui que entra a noção de apropriação.

Não obstante, a experiência mostra que ler não signi�ca apenas submissão ao me-
canismo textual. Seja lá o que for, ler é uma prática criativa que inventa signi�ca-
dos e conteúdos singulares, não redutíveis às intenções dos autores dos textos ou
dos produtores dos livros. Ler é uma resposta, um trabalho, ou, como diz Michel de
Certeau, um ato de “caçar em propriedade alheia” (CHARTIER, 2001, p. 214).

Resumindo, faz-se necessário ponderar que a leitura é sempre uma prática re-
pleta de gestos, espaços e hábitos. Essas práticas diferentes distinguem as co-
munidades de leitores e as tradições de leitura. Podemos, então, concluir que
“os autores não escrevem livros: não, escrevem textos que outros transformam
em objetos impressos” (CHARTIER, 1991, p. 182). “[...] a transformação das for-
mas através das quais um texto é proposto autoriza recepções inéditas, logo
cria novos públicos e novos usos” (CHARTIER, 1991, p. 186-187). Mas uma nova
ressalva deve ser feita: as “intenções” dos autores ou editores são fortes o su�-
ciente para sufocar as recepções que diferem do que foi proposto e, em contra-
partida, não é sempre que o leitor se propõe às novidades criativas. O que deve
ser considerado na análise dessa relação é, desse modo, como se dão o contro-
le e a criatividade. “É preciso, portanto, substituir as representações rígidas e
simplistas de dominação social ou difusão cultural” (CHARTIER, 2001, p.
236-237).

Assim, a difusão cultural exige um julgamento da relação entre três polos: o


texto, o objeto que o comunica e a recepção. “As variações dessa relação trian-
gular produzem, com efeito, mudanças de signi�cado [...]” (CHARTIER, 2001, p.
221).

Finalmente, para Roger Chartier, a História Cultural deve “[...] compreender as


práticas, complexas, múltiplas, diferenciadas, que constroem o mundo como
representação” (CHARTIER, 1990, p. 28).

A seguir, você poderá ler fragmentos de uma entrevista concedida por Roger
Chartier, em 16 de setembro de 2004, à cientista política Isabel Lustosa quando
de sua vinda ao Brasil por ocasião do Seminário de História Cultural realizado
na Casa Rui Barbosa – Rio de Janeiro. Nessa entrevista, Chartier fala de sua
noção de História, de sua produção e de autores e temas diversos. Por meio
dessa leitura, você poderá conhecer um pouco mais desse historiador e com-
preender mais afundo alguns conceitos utilizados pela historiogra�a.

Por Isabel Lustosa

"Não posso aceitar a idéia que está identi�cada com o pós-modernismo de que to-
dos os discursos são possíveis porque remetem sempre à posição de quem o enun-
cia e nunca ao objeto", a�rma o historiador em entrevista exclusiva.

Quem é Roger Chartier? Como a sua obra se relaciona com a sua história de vida?
Roger Chartier: Tenho sempre uma certa prudência com questões pessoais. Acho
que, quando a gente fala de si, constrói algo impossível de ser sincero, uma repre-
sentação de si para os que vão ler ou para si mesmo. Gostaria de lembrar, a este
propósito, o texto de Pierre Bourdieu sobre a ilusão biográ�ca ou a ilusão autobio-
grá�ca. Bourdieu critica este tipo de narrativa em que uma vida é tratada como
uma trajetória de coerência, como um �o único, quando sabemos que, na existên-
cia de qualquer pessoa, multiplicam-se os azares, as causalidades, as oportunida-
des. Outro aspecto da ilusão biográ�ca ou autobiográ�ca é pensar que as coisas
são muito originais, singulares, pessoais [...] Ao fazer um relato autobiográ�co é
quase impossível evitar cair nesta dupla ilusão: ou a ilusão da singularidade das
pessoas frente às experiências compartilhadas ou a ilusão da coerência perfeita
numa trajetória de vida [...] Pierre Nora lançou a idéia de “ego-história” numa cole-
tânea de ensaios onde estão reunidas oito autobiogra�as: George Duby, Jacques Le
Goff, Pierre Duby, dentre outros. Eram autores conhecidos falando sobre sua traje-
tória pessoal ou relacionando-a com a escolha de determinado período ou campo
histórico. Mas pessoalmente considero muito difícil evitar o anedótico ou o dema-
siado pessoal nesse tipo de relato. Como pensar em si, objetivando entender seu
próprio destino social? Acho que é preciso primeiro situar-se dentro do mundo so-
cial e daí fazer um esforço de dissociação da personagem: a personagem que fala
e a personagem sobre a qual se fala, que é o mesmo indivíduo. Isto posto, podemos
entrar, com uma certa cautela, na resposta à sua pergunta. Nasci em Lyon e per-
tenço a um estrato social fora do mundo dos dominantes, sem tradição no meio
acadêmico. Minha trajetória escolar e universitária foi conseqüência desta origem
[...] Para entendê-la é preciso um certo conhecimento da realidade social do pós-
guerra na França, entre os anos 1950 e 60, quando predominava o sistema de re-
produção, mas onde havia também alguma possibilidade de ascensão para gente
de outra origem social. Acho, no entanto, que quando há este tipo de tensão entre
uma forma dominante de escola e uma individualidade de origem diferente que
consegue furar este sistema sempre se mantém algo dessa tensão, dessa di�cul-
dade.

Biogra�as e autobiogra�as. Alguém falando de outrem e alguém falando de si


mesmo. Como de�nir verdades nesses discursos? A imagem que você tem de
si próprio é a mesma que seus pais, irmãos, amigos e colegas têm sobre você?
Possivelmente não – não no todo. Diferenças singelas ou radicais podem apa-
recer. Em relação às autobiogra�as de estudiosos, especialmente historiado-
res, os contextos são mais complicados. Ao falar de si, consideram a história à
qual pertencem, os grupos que se relacionam e mesmo as leituras que �zeram.
A quem deseja trabalhar com uma historiogra�a que considera as biogra�as e
autobiogra�as �ca o recado de Chartier: atente-se à ilusão biográ�ca ou à ilu-
são autobiográ�ca.

A minha geração foi, no Brasil, talvez a última em que a leitura dos clássicos da li-
teratura universal era um hábito. Acho que isso criou um universo de referência
para a nossa geração que é diferente dos jovens de hoje. De que maneira esse uni-
verso de referências culturais originadas da leitura dos clássicos está na base da
visão de mundo do historiador de hoje em dia? Por outro lado, de que maneira esse
universo de referência cultural mais ampliado contribuiu para a aceitação de
abordagens interdisciplinares?

Chartier: Não devemos pensar que o passado era necessariamente melhor [...]
Acho, ao contrário, que hoje se lê mais do que nos anos 1950. Inclusive porque o
computador não é apenas um novo veículo para imagens ou jogos. Ele é responsá-
vel também pela multiplicação da presença do escritor nas sociedades contempo-
râneas [...] Podem não ser necessariamente leituras fundamentais, enriquecedo-
ras, mas são leituras. Não se pode dizer, portanto, que estejamos assistindo ao de-
saparecimento da cultura escrita. O problema é qual cultura escrita persiste [...] O
fato de que os textos lidos pelos adolescentes no computador, suas leituras predi-
letas, não pertençam àquele repertório de�nido como literário não é necessaria-
mente algo ruim. O problema está numa certa discrepância entre essa nova cultu-
ra e os modelos de referência que, a nosso ver, seriam mais consistentes e forne-
ceriam mais recursos para a compreensão do mundo social, a compreensão de si
mesmo e a representação do outro. Para isto não tenho resposta, mas me parece
que há duas posições que se deve evitar. Uma é a que considera que essa presença
da literatura na realidade cotidiana pertence a um mundo de�nitivamente desa-
parecido. Não me parece um diagnóstico adequado, pois há, na atualidade, um es-
forço dentro da escola e fora da escola para preservar a cultura literária [...] A outra
posição é a dos que pensam que não há nada de proveitoso, útil ou fundamental
nesse novo mundo. Postura que me parece muito inadequada quando pensamos
nas possibilidades educativas criadas pelas novas tecnologias, nas diversas expe-
riências para a alfabetização, para a transmissão do saber à distância. Acho que é
responsabilidade dos intelectuais, dos meios de comunicação, dos editores, asse-
gurar a transmissão de um saber sobre o mundo, através de projetos que vinculem
a dimensão estética ou a dimensão cientí�ca com a existência cotidiana. Para que
as pessoas não sejam totalmente submetidas às leis do mercado, à incerteza ou à
inquietude, o essencial é dar a cada um instrumentos que lhe permita decifrar o
mundo em que vive e a sua própria situação neste mundo. Esse saber que pode vir
da sociologia, da literatura, da história, possibilitaria a resistência às imposições
dominantes que vêm de todas as partes: dos discursos ideológicos, das mensa-
gens dos veículos de comunicação, da cultura de massa etc [...] Mas me parece
que, se há um caminho não literário para se adquirir saber sobre o mundo social,
por que procurar os instrumentos mais vulneráveis para decifrar esse mundo?

Livros impressos ou e-books? Conhecimento ou informação? O autor faz-nos


asseverar que essas perguntas não são mais viáveis ou, ao menos, estão des-
contextualizadas. Na atualidade, os dois universos literários (impresso e mi-
diático) podem e devem ser utilizados para a compreensão das culturas. Eles
próprios são elementos distintos de uma mesma cultura ou ajudam a compor
um universo cultural paralelo. A questão não é usar ou deixar de usar esses
recursos, mas saber fazer um uso adequado.

Apesar da valorização teórica que a moderna historiogra�a tem promovido da


narrativa sempre vejo os historiadores a trabalharem ainda com um certo pudor,
acompanhando cada fato narrado de uma análise minuciosa daquele aspecto ou
então recorrendo ao chamado argumento de autoridade. Parece-me que isso preju-
dica o resultado do ponto de vista da narrativa, pois, em geral, a torna fragmenta-
da e desinteressante. O que você acha?

Chartier: Entre os anos 1950 e 60, os historiadores buscavam uma forma de saber
controlado, apoiado sobre técnicas de investigação, de medidas estatísticas, con-
ceitos teóricos etc. Acreditavam que o saber inerente à história devia se sobrepor à
narrativa, pois achavam que o mundo da narrativa era o mundo da �cção, do ima-
ginário, da fábula. Desta perspectiva os historiadores rechaçaram a narrativa e
desprezaram os historiadores pro�ssionais que seguiam escrevendo biogra�as,
história factual e tudo isso. A tradição francesa dos Annales foi uma das que levou
mais longe essa tendência. Hoje, no entanto, a situação tornou-se muito mais
complicada. Uma das razões é que autores como Hayden White e Paul Ricoeur
mostraram que, mesmo quando os historiadores utilizam estatísticas ou qualquer
outro método estruturalista, produzem uma narrativa. Quer dizer: quando dizem
que tal coisa é conseqüência ou causa de outra, estabelecem uma ordem seqüen-
cial, se valem de uma concepção da temporalidade, que é a mesma de uma novela
e de um relato historiográ�co.
Ao mesmo tempo, entidades abstratas, como classes, valores e conceitos, atuam
no discurso dos historiadores quase como personagens, havendo toda uma forma
de personi�cação das entidades coletivas ou abstratas. Dessa forma o historiador
não pode evitar a narração, inclusive quando a rechaça conscientemente. Pois a
escrita da história por si mesma, pela maneira de articular dos eventos, pela utili-
zação da noção de causalidade, trabalharia sempre com as mesmas estruturas e
com as mesmas �guras de uma narrativa de �cção. É a partir desse parentesco
entre a narrativa de �cção e a narrativa histórica que se coloca a questão: onde es-
tá a diferença? Alguns críticos pós-modernos adotaram um relativismo radical e
decidiram que não havia diferença e que a história era �ccional não apenas no
sentido da forma. Ou seja: não diziam que não há verdade na história, mas que a
verdade do saber histórico era absolutamente semelhante à verdade de uma nove-
la. Outros historiadores, dentre os quais eu me insiro, acreditam que há algo espe-
cí�co no discurso histórico, pois este é construído a partir de técnicas especí�cas.
Pode ser uma história de eventos políticos ou a descrição de uma sociedade ou
uma prática de história cultural, para produzi-la o historiador deve ler os docu-
mentos, organizar suas fontes, manejar técnicas de análise, utilizar critérios de
prova. Coisas com as quais um novelista não deve se preocupar. Portanto, se é pre-
ciso adotar essas técnicas em particular, é porque há uma intenção diferente no
fazer história: que é restabelecer a verdade entre o relato e o que é o objeto deste
relato. O historiador hoje precisa achar uma forma de atender a essa exigência de
cienti�cidade que supõe o aprendizado da técnica, a busca de provas particulares,
sabendo que seja qual for a sua forma de escrita esta pertencerá sempre à catego-
ria dos relatos, da narrativa. Alguns historiadores decidiram então que não valia à
pena lutar contra algo inevitável e passaram a utilizar-se dos recursos mais per-
suasivos da narrativa a serviço de uma demonstração histórica [...] Acho que a si-
tuação atual não é a de uma oposição absoluta entre a narrativa como �cção e a
história como saber, mas de um saber que se escreve através da narrativa e daí ser
necessária uma re�exão sobre que tipo de narrativa adotar. Uma narrativa onde
se respeite o discurso do saber, mas que, ao mesmo tempo, seja atrativa para um
público de leitores. Não é uma tarefa fácil, mas há exemplos que demonstram que
pode ser feito.

Há algum tempo �z a resenha de um livro de ensaios do antropólogo James


Clifford. Tive uma certa sensação de desconforto diante de leitura pós-moderna e
desconstrutivista que ele faz da tradição etnográ�ca. A etnogra�a foi um instru-
mento criado pela cultura ocidental para entender pessoas de outras culturas, não
signi�cando que aquelas pessoas tivessem a mesma ânsia de nos entender ou de
entenderem a si mesmas, ou, ainda, que achassem que a etnogra�a seria a ferra-
menta adequada para isto. Cada cultura tem os seus próprios meios de se relacio-
nar com o mundo. A meu ver, sempre se parte de uma base histórica, ideológica
ou cultural para fazer alguma coisa, para pensar ou para agir. O pós-modernismo
foi um exercício de desconstrução da cultura ocidental, e nossa base é o universo
de informações que compõem a cultura ocidental. Ela é que nos fornece os instru-
mentos e a motivação para pensarmos sobre nós e sobre o mundo. E até para fazer
a crítica dessa maneira de pensar.

Chartier: Penso que, em certo sentido, o trabalho de James Clifford está em parale-
lo ao de Hayden White. Acho que é algo legitimo fazer historiadores e antropólo-
gos re�etirem sobre a própria escrita. Durante muito tempo a escrita foi vista co-
mo um meio neutro para falar sobre o passado ou para descrever o outro. Daí ter
sido fundamental fazer dela um objeto de re�exão, tal como fez White, ao pensar
sobre o papel, na escrita do historiador, de elementos como a retórica e as �guras
que se manejam para escrever sobre o passado. O mesmo fez James Clifford com
relação aos dispositivos que os antropólogos utilizam em seu trabalho. Outra con-
tribuição fundamental dessa corrente foi a idéia de que há uma descontinuidade
necessária entre o presente e o passado [...] a qual não pode ser anulada pela idéia
de universalidade e de compreensão de si próprio [...] Mas tanto no texto de White
quanto no de Clifford há um relativismo absoluto. Não posso aceitar a idéia que
está identi�cada com o pós-modernismo de que todos os discursos são possíveis
porque remetem sempre à posição de quem o enuncia e nunca ao objeto. De acor-
do com essa visão, o discurso é sempre autoproduzido: não diz nada sobre o objeto
e diz tudo sobre quem o escreveu. Parece-me uma conclusão equivocada [...] ,por-
que, tanto no caso da história quanto no da antropologia, uma produção de saber é
possível e necessária [...] Esta justaposição de situações históricas ou situações
antropológicas onde não existe nenhuma comunicação, nenhum intercâmbio,
nem sequer de saberes, parece uma forma terrivelmente reducionista daquilo que
poderia ser um projeto de conhecimento compartilhado. Razão pela qual estou
completamente em desacordo com essa postura pós-moderna, essa idéia de que
não há nenhuma possibilidade de conhecimento. É diferente dizer que esse co-
nhecimento sempre esteve organizado a partir dos esquemas de percepção, de
classi�cação e compreensão do observador. E que, se existem formas de desconti-
nuidade culturais, é preciso, assim mesmo, fazer um esforço para entender o pas-
sado e o outro. Pois foi a partir dessa dupla perspectiva que se construiu um saber,
e me parece que os trabalhos fundamentais da história e da antropologia demons-
tram que este saber não só é possível como também pode ser oferecido ao outro
para conhecimento de si mesmo [...] Parece-me que, assim, temos a circulação da
força crítica do saber. Se isso for destruído, cai-se num relativismo absoluto. O que
me parece seria uma conclusão trágica e ao mesmo tempo muito ideológica.

Chartier faz uma importante ressalva nesse fragmento de sua assertiva:

[...] Outros historiadores, dentre os quais eu me insiro, acreditam que há algo espe-
cí�co no discurso histórico, pois este é construído a partir de técnicas especí�cas.
Pode ser uma história de eventos políticos ou a descrição de uma sociedade ou
uma prática de história cultural, para produzi-la o historiador deve ler os documen-
tos, organizar suas fontes, manejar técnicas de análise, utilizar critérios de prova
[...].

O que ele vem enfatizar é que, a despeito de a história se utilizar do estilo “nar-
rativo” ao modo de uma �cção, o historiador não produz uma história mentiro-
sa. A verdade relativa que ele defende é aquela que segue o passo a passo da
pesquisa: levantamento e seleção de fontes, análise criteriosa destas, uso de
um arcabouço teórico. Não se trata de “inventar” a história, mas de apresentar
uma “representação” dela.

O autor é contra o relativismo absoluto, assim como é contrário à verdade ab-


soluta. O que ele propõe é a construção de um conhecimento que considere
não só os fatos, mas também quem os escreveu, e não um desses elementos
isoladamente.

Neste momento temos a sensação de que tudo se tornou possível: práticas que ha-
viam sido banidas por um conjunto de acordos internacionais no pós-guerra vêm
sendo implementadas pelos EUA na guerra no Iraque ou ao manterem pessoas
presas sem julgamento em Guantânamo. Ao mesmo tempo, ocorre a perda de for-
ça de organismos internacionais, como a ONU. Na medida em que sabemos que as
grandes idéias são �ltradas e incorporadas à agenda do senso comum, a perspec-
tiva radicalmente relativista do pós-moderno não teria in�uído de alguma forma
nesse tipo de política, esvaziando a con�ança em algumas conquistas do huma-
nismo e da cultura do Ocidente?

Chartier: O maior paradoxo do pós-modernismo é que nasce de uma perspectiva


crítica das autoridades, das hierarquias e dos elementos dominantes, mas, com a
introdução da dimensão epistemológica do relativismo, a análise �ca sem ne-
nhum recurso para fundamentar esta postura crítica. Pois, se tudo é possível, to-
dos os discursos podem ser diferentes por sua competência retórica, por sua arte
de expressão, mas em termos de saber e como instrumento crítico não há diferen-
ça entre eles. Cria-se uma tensão fundamental. Hayden White, por exemplo, é um
humanista que compartilha os valores morais do humanismo. Mas a aplicação de
sua perspectiva não dá à história instrumentos para produzir um conhecimento
crítico, desmentir as falsi�cações e estabelecer um saber verdadeiro. Porque, se
não há nenhum critério para estabelecer diferenças entre os discursos dos histori-
adores, torna-se muito difícil criticar os discursos enganosos, as falsi�cações e as
tentativas de reescrita do passado. Este é, me parece, o grande limite do pós-
modernismo: a contradição entre sua intenção e a sua epistemologia.

Se não nos é possível “[...] desmentir as falsi�cações e estabelecer um saber


verdadeiro [...]”, como lutar contra os maus usos do passado, aqueles que, com
�nalidades político-ideológicas, modi�caram a história em favor próprio (co-
mo o governo de Vichy, na França, que interpretou, a seu modo, a história gau-
lesa para justi�car o apoio às forças nazistas)? Nicole Loraux (1993) alerta-nos:
os que falsi�cam o passado são os mesmos que falsi�cam a história contem-
porânea.

Em seu livro “O grande massacre dos gatos”, Robert Darnton adota as idéias e os
métodos de Clifford Gertz, dando tratamento etnográ�co a um objeto de estudo
histórico. Esse foco ampliado sobre um detalhe me parece produzir uma visão dis-
torcida do objeto. De que forma você vê esse tipo de investigação?

Chartier: Houve um grande debate depois da publicação do livro de Darnton. Uma


das críticas mais fortes feitas a ele tem a ver com a sua identi�cação com as idéi-
as de Geertz e de sua tendência à textualização das estruturas, das práticas rituais
e de toda a cultura. O ponto de partida de Darnton, utilizando a idéia de Geertz de
que um rito pode ser lido como um texto, era que se podia pensar as práticas soci-
ais como se fossem textos [...] Os historiadores que trabalham com textos desen-
volvem, em primeiro lugar, uma análise crítica do texto. No entanto, Darnton qua-
se não avança nessa direção [...] Ele menciona o texto de um artesão, mas não lhe
dá maior importância, porque pretende se colocar imediatamente na situação de
um espectador do massacre. Como Geertz em Bali. Não podemos pensar que há
uma identidade necessária entre a lógica propriamente textual e as estratégias
das práticas [...] O mais complicado para o historiador é que essas práticas não-
textuais, em geral, se encontram através de textos. O desa�o fundamental para o
historiador é entender a relação entre os textos disponíveis e as práticas que estes
textos proíbem, prescrevem, condenam, representam, designam, criticam etc [...]
As práticas do passado são acessíveis a nós, em geral, através de textos escritos. E
o historiador escreve sobre essas práticas [...] O desa�o fundamental é pensar con-
ceitual e metodologicamente a articulação e a distância entre as práticas e os dis-
cursos e evitar a repetição daquele momento, entre os anos 1950-60, em que a me-
táfora do texto se aplicava a tudo: aos ritos, à sociedade etc. Era muito cômodo.

O autor direciona nosso olhar para uma questão crucial ao historiador: grande
parte de suas fontes são escritas, textuais. Mas quem as escreveu? A mando
de quem? Com que �nalidade? Em que contexto? E, ainda, podemos nos per-
guntar sobre a materialidade do texto: papiros? Pergaminho? Tablete de bron-
ze ou terracota? Num vaso ou escudo? Na parede de um templo ou de um bor-
del? O pesquisador deve considerar todas essas questões e muitas outras an-
tes de narrar a história. É essencial que ele, como diz Chartier, pense a articu-
lação e a distância entre práticas e representações (ou discursos) conceitual e
metodologicamente.

Você já orientou muitos brasileiros. Ao longo desse tempo você leu muito sobre o
Brasil nas teses desses orientandos. A partir dessas leituras como você vê o
Brasil?

Chartier: Acho que há aqui uma circulação entre os campos disciplinares da an-
tropologia, da história e da sociologia cultural mais forte que em outros lugares. O
campo da educação, por exemplo, que em muitos países é muito especializado,
aqui me parece estar bastante integrado ao mundo das ciências sociais. A maior
parte dos trabalhos que orientei tratam de uma forma ou de outra do mundo das
práticas culturais, da história da publicação e da circulação dos textos e um pouco
também do mundo social, da história da vida privada, das estruturas sociais do
Brasil colônia. Há uma vitalidade impressionante nesse tipo de investigação. O
problema é que na Europa ou nos Estados Unidos existe uma total falta de interes-
se por outros territórios. Todo mundo está muito preso a seu próprio campo de in-
vestigação e não se dá conta de que é possível aprender muito com estudos sobre
temas que não são os seus. Isso impede que circulem numerosos trabalhos que
mereceriam ter um reconhecimento mais forte. Para divulgar esses trabalhos que
têm uma força metodológica ou teórica inspiradora, seria preciso fazer com que
editoras norte-americanas traduzissem obras latino-americanas para o público
que não lê em espanhol [...] Tradução de Ana Carolina Delmas
Isabel Lustosa
É cientista política, pesquisadora da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e au-
tora de Insultos Impressos: a guerra dos jornalistas na Independência (Companhia
das Letras, 2000). Disponível em <http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos
/2479,3.shl (http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2479,3.shl)>. Acesso em:
28 maio 2009.

Chartier coloca-nos o problema do con�ito de interesses no meio acadêmico.


Infelizmente, o quadro que ele pintou não se refere apenas ao exterior.
Inúmeros trabalhos nacionais não são conhecidos ou reconhecidos em dife-
rentes regiões. As produções historiográ�cas nordestinas quase não são di-
vulgadas no sudeste ou sul. Cabe a nós, interessados na construção de nossa
memória e identidade (inclusive intelectual), procurarmos nos informar e co-
nhecer os nossos pesquisadores, sejam eles latinistas, helenistas, americanis-
tas, brasilianistas ou medievalistas etc. A historiogra�a nacional tem muito a
nos oferecer. Vamos, então, a ela!

9. História e narrativa
Quanto às considerações sobre a História como narrativa, neste momento,
abordaremos as possibilidades e di�culdades de construção narrativa do dis-
curso histográ�co, sobretudo, em relação à �cção e literatura, que se apresen-
tam como o cerne da crítica pós-moderna para com as correntes historiográ�-
cas anteriores.
Os debates sobre os campos de atuação da História e demais Ciências Sociais
acabaram por discutir a inter, multi e transdisciplinaridade. Com isso, a rela-
ção da História e da Literatura entrou na pauta. Do mesmo modo, essa relação
também se inseriu no contexto da discussão sobre a verdade histórica. Ora,
quem produz a verdade? Ela pode ser objetiva? Como você já estudou ao longo
da disciplina, o pós-modernismo não acredita nessa objetividade da verdade;
assim, a História deve rever suas pretensões a um lugar entre as ciências
(contribuições para essa temática já foram dadas por Valéry, Heidegger, Sartre,
Lévi-Strauss e Michel Foucault). Entretanto, não é fácil “descer o degrau”, ou
se deslocar dele rumo à plataforma da Literatura ou da Arte. Estas são o fardo
da História: suas tentativas de justi�car o seu ofício. Aos que criticam suas
ambiguidades, ela (a História) responde que nunca quis ser ciência. Aos que a
criticam por não utilizar a representação literária, ela se posiciona como se-
miciência.

E como se libertar desse fardo?

Antes de mais nada, os historiadores precisam admitir a justi�cativa da revolta


atual contra o passado [...] O historiador contemporâneo precisa estabelecer o valor
do estudo do passado, não como um �m em si, mas como um meio de fornecer
perspectivas sobre o presente que contribuam para a solução dos problemas pecu-
liares ao nosso tempo (WHITE, 1994, p. 53).

De�nitivamente, faz-se necessário, nesse contexto da relação entre a História


e a Literatura, que os fatos deixem de ser tratados como dados descobertos e
passem a ser vistos como construções que se evidenciam a partir dos tipos de
pergunta que o pesquisador faz acerca dos fenômenos que tem diante de si
(WHITE, 1994).

10. A questão da narrativa


Entre as décadas de 1970 e 1980, a temática da narrativa voltou a ser destaque
em meio aos historiadores e outros pesquisadores das Ciências Sociais, essen-
cialmente a partir da publicação do artigo The revival of narrative (O retorno
da Narrativa – 1979), do historiador Lawrence Stone. Nesse artigo, além de
a�rmar que os três grandes paradigmas da história cientí�ca (o modelo
econômico marxista, o modelo ecológico-demográ�co francês e a metodologia
“cliométrica” americana) apresentavam resultados ine�cientes, anunciou que
estava ocorrendo uma nova valorização e retomada da narrativa. Destarte,

Disseminava-se, no entender de Stone, a percepção de que não bastava ao historia-


dor o rigor metodológico; era preciso que ele conferisse um determinado estilo a
sua escrita, isto é, que ele soubesse não apenas contar, mas também saber como
fazê-lo (OLIVEIRA, 2009. Disponível em <http://hid0141.blogspot.com/2009/02
/narrativa-e-conhecimento-historico.html (http://hid0141.blogspot.com/2009/02
/narrativa-e-conhecimento-historico.html)>. Acesso em: 24 jun. 2010).

Admitia-se, dessa forma, que, para além do conteúdo, a forma era importante
na escrita da história. Essa forma proposta era a narrativa, mesmo que esta le-
vantasse questionamentos sobre a cienti�cidade da História. A�nal, escrever
uma narrativa é também escrever uma �cção.

Mas o medo da �cção não era o único que vagava pelos escritórios das univer-
sidades; havia, também, o receio do retorno da narrativa histórica tradicional
que enfatizava os grandes feitos dos grandes homens em grandes aconteci-
mentos, a qual custou a ser negligenciada. No entanto, o que vimos foi uma
nova narrativa que considerou o cotidiano das pessoas comuns e os aconteci-
mentos triviais. Passamos, então, a observar um interesse nas “práticas narra-
tivas” de uma cultura: “[...] as histórias que as pessoas naquela cultura ‘contam
a si mesmas sobre si mesmas’” (BURKE, 2005, p. 158).

Entra em cena, nessa ocasião, a narrativa de curtíssima duração, absorta num


acontecimento, e não mais a velha narrativa explicativa à procura de causas e
efeitos (WEINSTEIN, 2003).

Contudo, discutir a narrativa signi�ca responder sobre o que narrar, o que é


narrar e como narrar; e, ainda, como fugir dos perigos da história narrativa,
entre eles a tentação em retomar o “contar estória por contar estória”?

Aqui a gra�a de “estória” está se referindo à narrativa de �cção, a um tipo de


apresentação romanceada de fatos e episódios, diferente da história, baseada
em documentos.

En�m,

[...] as narrativas são traduções e leituras diferentes do passado que, dependendo


das combinações e ênfases variadas, possibilitam as mais diferenciadas leituras
interpretativas do passado. Porém, todas as possíveis tradições possuem algo em
comum. Todas elas demonstram ser incompletas e transitórias, mesmo que bus-
quem a perfeição do passado (DIEHL, 2002, p. 102).

Após as assertivas discutidas neste tópico, re�ita sobre a seguinte questão:


existe uma forma de se escrever a História que não seja a da narrativa?
Segundo Hayden White, não.

11. Hayden White: história e �cção


O crítico literário Hayden White foi um dos responsáveis pelo debate que vee-
mentemente foi travado em torno da não distinção entre História e �cção.
Segundo White (1995, p. 17), perguntas como “Que signi�ca pensar historica-
mente e quais são as características inconfundíveis de um método especi�ca-
mente histórico de investigação?” e “quais as formas por meio das quais é pro-
duzido o discurso da história?” fazem parte de seu questionário dirigido à
História. Não é uma tarefa tola essa de entender os discursos, pois,

Quando procuramos explicar tópicos problemáticos como natureza humana, cultu-


ra, sociedade e história, nunca dizemos com precisão o que queremos dizer, nem
expressamos o sentido exato do que dizemos. Nosso discurso sempre tende a esca-
par dos nossos dados e voltar-se para as estruturas de consciência com que esta-
mos tentando apreendê-los; ou, o que dá no mesmo, os dados sempre obstam a coe-
rência da imagem que estamos tentando formar deles. Ademais, em tópicos como
esses, sempre existem razões legítimas para diferenças de opinião quanto ao que
eles são, ao modo como se deveria falar deles e aos tipos de conhecimento que de-
les podemos ter (WHITE, 1994, p. 13).

Em resumo, para White (2006), o que ocorre é que há uma inabalável relativi-
dade na representação do fenômeno histórico e, por isso, também, ele trata a
produção dos historiadores como “[...] uma estrutura verbal na forma de um
discurso narrativo em prosa” (WHITE, 1995, p. 11); dito de outra forma, esse crí-
tico literário não reluta em considerar as narrativas históricas como �cções
verbais, cujos conteúdos são tão inventados como achados, e cujas formas
apresentam muito em comum com as narrativas literárias (WHITE, 1994).

Enfatizando, segundo White, o próprio passado é uma construção (que se for-


ma durante a escrita da narrativa), e os textos e as interpretações dos historia-
dores consideram diferentes formas de imaginação. Assim, a história narrati-
va e a história cientí�ca tornam-se incompatíveis.

A característica marcante desse crítico literário é o fato de ter atenuado o con-


traste aristotélico entre poesia e História e, com essa ideia em vista, procurou,
em Meta-História, a�rmar que os textos históricos recebem uma forma segun-
do o tipo de historia que o autor quer contar. Portanto, no livro citado anterior-
mente, ele apresentou uma análise formalista de textos históricos do século 19
e concluiu que Jules Michelet construiu o enredo de suas histórias na forma
de romance, Leopold Von Ranke, na forma de comédia, Alexis de Tocqueville,
na forma de tragédia e Jacob Burckhardt, na forma de sátira. Conclui o autor,
então, que há uma relação constitutiva entre forma e conteúdo.

Mas, se há essa estreita relação, é preciso que o historiador levante algumas


questões: qual o tipo de modelo linguístico utilizar? Dentre os tropos do discur-
so, qual empregar? (WHITE, 1995). “Seria, assim, uma decisão por parte do his-
toriador entre os modos de urdir o enredo que melhor caberia em seu tipo par-
ticular de história” (LOPES, 2000, p. 301).

White explica, no artigo Enredo e verdade na escrita da História (2006), que o


tema do conteúdo a ser trabalhado exige ou aponta para uma possível forma
do texto. Desse modo, se tomarmos como exemplo o mesmo tema citado pelo
autor, o Holocausto seria melhor apreendido se a narrativa tomasse a forma de
um épico ou de uma tragédia. No entanto, as possibilidades formais também
respondem ao interesse do autor. Vejamos o exemplo de White (2006, p. 196,
grifo nosso):
Essa é a questão colocada por Maus: o conto de um sobrevivente, de Art
Spiegelman, que apresenta os eventos do Holocausto por meio da escrita em qua-
drinhos (preto e branco) e em uma forma de , com alemães colocados
como gatos, judeus como ratos e polacos como porcos. O conteúdo manifesto da es-
tória em quadrinhos de Spiegelman é a história do esforço do artista em extrair de
seu pai a estória da experiência de seus pais com os eventos do Holocausto. Dessa
forma, a estória do Holocausto contada no livro é estruturada pela estória de como
essa estória foi contada [...] Maus representa uma visão particularmente irônica e
aturdida do Holocausto, mas é, ao mesmo tempo, um dos mais tocantes relatos nar-
rativos dele que conheço [...] essa comédia é uma obra-prima de estilização, �gura-
ção e alegorização.

Ainda de acordo com White, o exemplo citado e toda e qualquer decisão por
este ou aquele tipo de elaboração de enredo permite que se justi�que que cer-
tos eventos, agentes, ações, agências e resignações que ocupem um dado ce-
nário histórico ou seu contexto serão ignorados (WHITE, 2006).

Os tropos linguísticos
Para Hayden White, o historiador não tem de pensar apenas na escolha do ti-
po de enredo, mas, igualmente, na escolha de um dos quatro tropos linguísti-
cos: metáfora, metonímia, sinédoque e a ironia (as três últimas entendidas co-
mo espécies da primeira). Se assim o historiador faz (utiliza-se de tropos), en-
tão a distinção que existe entre a História e a �cção é de forma e não de con-
teúdo, ou seja, tanto a História quanto a Literatura produzem uma narrativa
�ccional.

Para você compreender melhor: os tropos são desvios do uso literal da lingua-
gem que geram �guras de linguagem, ou seja, as �guras de linguagem são táti-
cas literárias que o historiador pode utilizar no texto para conseguir um efeito
determinado na interpretação do leitor.

Para aprofundar seus conhecimentos acerca do debate entre História e Literatura, o texto a seguir
mostrou-se um importante instrumento de re�exão; por isso, há a sua disponibilização na íntegra. Ele é
encontrado, em sua versão eletrônica, em Nuevo Mundo Mundos Nuevos (http://nuevomundo.revues.org
/1560), Debates, 2006.
velha-nova

Sandra Jatahy Pesavento

Por vezes, esta aproximação da história com a literatura tem um sabor de dejà vu,
dando a impressão de que tudo o que se apregoa como novo já foi dito e de que se
está “reinventando a roda”. A sociologia da literatura desde há muitos anos cir-
cunscrevia o texto �ccional no seu tempo, compondo o quadro histórico no qual o
autor vivera e escrevera sua obra. A história, por seu lado, enriquecia por vezes
seu campo de análise com uma dimensão “cultural”, na qual a narrativa literária
era ilustrativa de sua época. Neste caso, a literatura cumpria face à história um
papel de descontração, de leveza, de evasão, “quase” na trilha da concepção bele-
trista de ser um sorriso da sociedade[...]

Entendemos que, atualmente, estas posturas foram ultrapassadas, não porque não
tenham valor em si – no caso da contextualização histórica da narrativa literária
- ou porque sejam consideradas erradas – caso de enfocar a literatura somente co-
mo passatempo. Tais posturas se tornam ultrapassadas pelas novas questões que
se colocam aos intelectuais neste limiar do novo século e milênio. Chamemos
nosso tempo pela já desgastada fórmula da “crise dos paradigmas”, que questio-
nou as verdades e os modelos explicativos do real, ou entendamos nosso mundo
pelo recente enfoque da globalização, dotado hoje de forte apelo, o que parece evi-
dente é que nos situamos no meio de uma complexi�cação e estilhaçamento da
realidade, onde é preciso encontrar novas formas de acesso para compreendê-la.
A rigor, cada geração se coloca problemas e ensaia respostas para respondê-los,
valendo-se para isso de um arsenal de conceitos que se renova no tempo.

A discussão em torno da relação entre história e literatura não é nova. O que


vem mudando são os novos problemas que se colocam a essa relação.

Se os conceitos são artifícios mentais que se propõem a interrogar e explicar o


mundo e que, articulados, resultam em constelações teóricas, ousaríamos dizer
que o desa�o atual é o e assumir que as ciências humanas se voltam, “grosso mo-
do”, para uma postura epistemológica diferenciada. Não se trata, aqui no caso, de
desenvolver toda a gama de conceitos e de rede�nições teóricas orientadoras das
diferentes correntes que estudam a cultura nestas décadas �nais do século e do
milênio. Apenas caberia assinalar que tais mudanças passam, com freqüência,
pelos caminhos da representação e do simbólico, assim como da preocupação
com a escrita da história e sua recepção.
O que a autora quis nos dizer é que não estão sendo propostas mudanças no
interior das teorias, mas, sim, que as teorias passam periodicamente por re�e-
xões.

Preferimos concentrar nosso enfoque numa perspectiva que, a nosso ver, tem se
revelado profícua neste giro do olhar sobre o mundo e que redimensiona, por sua
vez, as relações entre a história e a literatura. Referimo-nos aos estudos sobre o
imaginário, que abriram uma janela para a recuperação das formas de ver, sentir e
expressar o real dos tempos passados.

Atividade do espírito que extrapola as percepções sensíveis da realidade concreta,


de�nindo e quali�cando espaços, temporalidades, práticas e atores, o imaginário
representa também o abstrato, o não-visto e não-experimentado. É elemento orga-
nizador do mundo, que dá coerência, legitimidade e identidade. É sistema de iden-
ti�cação, classi�cação e valorização do real, pautando condutas e inspirando
ações. É, podemos dizer, um real mais real que o real concreto[...]

O imaginário é sistema produtor de idéias e imagens que suporta, na sua feitura,


as duas formas de apreensão do mundo: a racional e conceitual, que forma o co-
nhecimento cientí�co, e a das sensibilidades e emoções, que correspondem ao co-
nhecimento sensível.

O estudo sobre o imaginário é bem mais amplo do que tentar buscar a “menta-
lidade” de uma época, ao mesmo tempo, é a busca por marcas mentais (sensi-
bilidades e emoções). Neste contexto, a narrativa contribuiu muito para a es-
crita da história. A�nal, como falar de emoções que não de uma forma literá-
ria? O óbvio mostrou-se criticável, porém.

1
Conceito amplo e discutido , o imaginário encontra a sua base de entendimento
na idéia da representação. Neste ponto, as diferentes posturas convergem: o ima-
ginário é sempre um sistema de representações sobre o mundo, que se coloca no
lugar da realidade, sem com ela se confundir, mas tendo nela o seu referente.
Mesmo que os seguidores da História Cultural sejam freqüentemente atacados por
negarem a realidade, acusação absurda e mesmo ridícula, nenhum pesquisador,
em sã consciência, poderia desconsiderar presença do real.

Apenas – e este apenas é toda a diferença – parte-se do pressuposto de que este


real é construído pelo olhar enquanto signi�cado, o que permite que ele seja visua-
lizado, vivenciado e sentido de forma diferente, no tempo e no espaço. O enuncia-
do é simples, mas tem incomodado [...]

A História Cultural nunca negou a possibilidade de uma realidade, e, sim, de


uma verdade absoluta para essa realidade. Não se tem um real, mas a repre-
sentação dele. Pesavento (2006) vem nos dizer que é justamente essa postura
que incomoda os contrários a esse viés cultural.

Ao construir uma representação social da realidade, o imaginário passa a


substituir-se a ela, tomando o seu lugar. O mundo passa a ser tal como nós o con-
cebemos, sentimos e avaliamos. Ou, como diria Castoriadis, a sociedade, tal como
tal é enunciada, existe porque eu penso nela, porque eu lhe dou existência – ou se-
ja, signi�cação – através do pensamento. Os recentes estudos de Lucian Boia2 ,
historiador romeno, acenam para a possibilidade de estabelecer estratégias meto-
dológicas de acesso a este mundo do imaginário, crème de La crème da historio-
gra�a atual.

Por um lado, há uma tentativa de viés antropológico (Gilbert Durand, Yves


Durand), que se baseia na idéia da possibilidade de divisar traços e rasgos de per-
manência na construção imaginária do mundo, [...] Por outro lado, em uma versão
historicizada (Le Goff), articula-se o entendimento de que os imaginários são
construções sociais e, portanto, históricas e datadas, que guardam as suas especi-
�cidades e assumem con�gurações e sentidos diferentes ao longo do tempo e
através do espaço.

Admitindo, como propõe Boia, a possibilidade de conjugar, estrategicamente, as


duas posturas, que combinadas associariam os traços de permanência de estrutu-
ras mentais com as con�gurações especí�cas de cada temporalidade, desemboca-
mos na redescoberta da literatura pela história.

Clío se aproxima de Calíope, sem com ela se confundir. História e literatura cor-
respondem a narrativas explicativas do real que se renovam no tempo e no espa-
ço, mas que são dotadas de um traço de permanência ancestral: os homens, desde
sempre, expressaram pela linguagem o mundo do visto e do não visto, através das
suas diferentes formas: a oralidade, a escrita, a imagem, a música.

Se a História e a Literatura se aproximam na forma de apresentarem o mundo,


como trabalhar com a ideia de estrutura? Antropologicamente ou historica-
mente? Em outras palavras, como buscar as permanências ou rupturas nessa
história construída?

O que nos interessa, [...], é discutir o diálogo da história com a literatura, como um
caminho que se percorre nas trilhas do imaginário, [...]

Para enfrentar esta aproximação entre estas formas de conhecimento ou discur-


sos sobre o mundo, é preciso assumir, em uma primeira instância, posturas episte-
mológicas que diluam fronteiras e que, em parte, relativizem a dualidade verda-
de/�cção, ou a suposta oposição real/não-real, ciência ou arte3. Nesta primeira
abordagem re�exiva, é o caráter das duas formas de apreensão do mundo que se
coloca em jogo, face a face, em relações de aproximação e distanciamento.

Assim, literatura e história são narrativas que tem o real como referente, para
con�rmá-lo ou negá-lo, construindo sobre ele toda uma outra versão, ou ainda pa-
ra ultrapassá-lo. Como narrativas, são representações que se referem à vida e que
a explicam. Mas, dito isto, que parece aproximar os discursos, onde está a diferen-
ça? Quem trabalha com história cultural sabe que uma das heresias atribuídas a
esta abordagem é a de a�rmar que a literatura é igual à história [...]

Nesse fragmento, a autora coloca-nos os binômios contrários conforme o sen-


so comum: História = verdade, real, ciência x literatura = �cção, não real, arte.
Mas não é bem assim que essa relação se dá na escrita da História. Essas
fronteiras são tênues, mas isso não signi�ca dizer que as duas áreas são sinô-
nimas. Isso também é fruto do senso comum.

A literatura é, no caso, um discurso privilegiado de acesso ao imaginário das dife-


rentes épocas. No enunciado célebre de Aristóteles, em sua “Poética”, ela é o dis-
curso sobre o que poderia ter acontecido, �cando a história como a narrativa dos
fatos verídicos. Mas o que vemos hoje, nesta nossa contemporaneidade, são histo-
riadores que trabalham com o imaginário e que discutem não só o uso da literatu-
ra como acesso privilegiado ao passado — logo, tomando o não-acontecido para
recuperar o que aconteceu! — como colocam em pauta a discussão do próprio ca-
ráter da história como uma forma de literatura, ou seja, como narrativa portadora
de �cção!4

Tomemos a faceta do não acontecido, elemento perturbante para um historiador


que tem como exigência o fato de algo ter ocorrido um dia. Mas, a rigor, de qual
acontecido falamos? Se estamos em busca de personagens da história, de aconte-
cimentos e datas sobre algo que se deu no passado, sem dúvida a literatura não se-
rá a melhor fonte a ser utilizada. Falamos em fonte? A coisa se complica: como a
literatura, relato de um poderia ter sido, pode servir de traço, rastro, indício, marca
de historicidade, fonte, en�m, para algo que aconteceu?

A sintonia �na de uma época, fornecendo uma leitura do presente da escrita, pode
ser encontrada em um Balzac ou em um Machado, sem que nos preocupemos
com o fato de Capitu, ou do Tio Goriot e de Eugène de Rastignac, terem existido ou
não. Existiram enquanto possibilidades, como per�s que retraçam sensibilidades.
Foram reais na “verdade do simbólico” que expressam, não no acontecer da vida.
São dotados de realidade porque encarnam defeitos e virtudes dos humanos, por-
que nos falam do absurdo da existência, das misérias e das conquistas grati�can-
tes da vida. Porque falam das coisas para além da moral e das normas, para além
do confessável, por exemplo.

Mas, sem dúvida, dirá alguém, no delineamento de tais personagens e na articula-


ção de tais intrigas, houve um Honoré de Balzac e um Joaquim Maria Machado de
Assis, o que não é pouca coisa [...] Sim, por certo, longe de negar a genialidade dos
autores, ressaltamos a existência imprescindível dos narradores de uma trama,
que mediatizam o mundo do texto e o do leitor. E não esqueçamos, como alerta
Paul Ricoeur5, que os fatos narrados na trama literária, existiram de fato para a
voz narrativa!

Neste momento, a autora coloca-nos um questionamento interessante: se a li-


teratura fala de �cção, como os historiadores continuam a se utilizar dela co-
mo fonte histórica? Em contrapartida, como desconsiderar como fonte um
texto de Homero, uma lenda medieval ou livro infantil? Não são obras repre-
sentativas de um lugar e de um tempo?

Mas, a rigor, o processo acima descrito para o âmbito da literatura não será o mes-
mo nos domínios da História?

Neste campo temos também um narrador – o historiador – que tem também tare-
fas narrativas a cumprir: ele reúne os dados, seleciona, estabelece conexões e cru-
zamentos entre eles, elabora uma trama, apresenta soluções para decifrar a intri-
ga montada e se vale das estratégias de retórica para convencer o leitor, com vis-
tas a oferecer uma versão o mais possível aproximada do real acontecido.

O historiador não cria personagens nem fatos. No máximo, os “descobre”, fazendo-


os sair da sua invisibilidade. A título de exemplo, temos o caso do negro, recupera-
do como ator e agente da história desde algumas décadas, embora sempre tenha
estado presente. Apenas não era visto ou considerado, tal como as mulheres ou
outras tantas ditas “minorias”.

A diferença entre História e literatura então é apresentada. A História não “in-


venta”, descobre ou redescobre e apresenta uma representação do ocorrido,
dos personagens etc.

Historiadores também mediatizam mundos, conectando escrita e leitura. Dele


também se espera performance exemplar, genial, talvez [...] E ele também não tem,
admitamos, certezas absolutas de chegar lá, na tal temporalidade já escoada, irre-
mediavelmente perdida e não recuperável, do acontecido.

Na recon�guração de um tempo - nem passado nem presente, mas tempo históri-


co reconstruído pela narrativa -, face à impossibilidade de repetir a experiência do
vivido, os historiadores elaboram versões. Versões plausíveis, possíveis, aproxi-
madas, daquilo que teria se passado um dia. O historiador atinge pois a verossimi-
lhança, não a veracidade. Ora, o verossímil não é a verdade, mas algo que com ela
se aparenta. O verossímil é o provável, o que poderia ter sido e que é tomado como
tal. Passível de aceitação, portanto.

A História Cultural defende essa verossimilhança, esse provável, esse plausí-


vel, pois crê num passado inatingível, por que passou.

Registramos, com isto, a mudança deliberada do tempo verbal: o poderia, o teria


sido, com o que a narrativa histórica, representação do passado, se aproximaria,
perigosamente, da de�nição aristotélica da poesia, pertencente ao campo da �c-
ção. Ou seja, as versões do acontecido são, de forma incontornável, um poderia ter
sido. A representação do passado feita pelo historiador seria marcada por esta
preocupação ou meta: a da de vontade de chegar lá e não da certeza de oferecer a
resposta certa e única para o enigma do passado.

Assim, a noção proposta por Paul Ricoeur de “representância” vem ao encontro


desta propriedade do trabalho do historiador: mais do que construir uma represen-
tação, que se coloca no lugar do passado, ele é marcado pela vontade de atingir es-
te passado. Trata-se de uma militância no sentido de atingir o inatingível, ou seja,
o que um dia se passou, no tempo físico já escoado.
O segredo semântico de aproximação dos discursos se encerra neste tempo ver-
bal: “teria acontecido”. O historiador se aproxima do real passado, recuperando
com o seu texto que recolhe, cruza e compõe, evidências e provas, na busca da ver-
dade daquilo que foi um dia. Mas sua tarefa é sempre a de representação daquela
temporalidade passada. Ele também constrói uma possibilidade de acontecimen-
to, num tempo onde não esteve presente e que ele recon�gura pela narrativa.
Nesta medida, a narrativa histórica mobiliza os recursos da imaginação, dando a
ver e ler uma realidade passada que só pode chegar até o leitor pelo esforço do
pensamento.

Embora seja nesse ponto que as tradições literária e historiográ�ca se conver-


gem (falar de uma possibilidade), a semelhança para por aqui. A história usa
de fontes, e a literatura, não (ou não necessariamente). O uso da fonte e a aná-
lise desta fazem e trazem a diferença entre os campos.

Por outro lado, no aprofundamento destas questões, constata-se que tem sido tra-
dicional reservar à literatura o atributo da �cção, negando esta condição ou práti-
ca ao campo da história6.

Num giro de análise, poderíamos também acrescentar que o fato histórico é, em si,
também criação pelo historiador, mas na base de documentos “reais” que falam
daquilo que teria acontecido. Como diz Jauss, não é possível manter ainda uma
7
distinção ingênua e radical entre res factae e res �ctae , como se fosse possível
chegar, por meio de documentos reais, a uma verdade incontestável e, por outro
lado, por meio de artifícios, �car no mundo da fantasia ou pura invenção.

No contra�uxo da �cção, o que teríamos, a verdade? Se esta for, como propõe


Aristóteles, a correspondência do discurso com o real, já vimos que, nos caminhos
do resgate do real passado, a história se baseia mais em versões e possibilidades
do que certezas. O distante passado, como atingi-lo na sua integridade? E mesmo
que, por um passe de mágica, para um outro tempo fôssemos transportados, na
posição de testemunha ocular dos fatos, o que veríamos? Sem duvida, nossa visão
seria diferente da do companheiro que nos acompanhasse nesta viagem fantásti-
ca no túnel do tempo. E, ao retornar ao nosso tempo, teríamos múltiplas versões
do acontecido!

É incontestável o fato de que cada observador vê um determinado fato a seu


modo. Não há como diferentes olhares enxergarem um ocorrido de forma
idêntica. Todos nós trazemos conhecimentos e dados acumulados anterior-
mente. Essa “experiência” faz diferença.

Os historiadores do tempo presente ou da história oral que o digam quão difícil é


lidar com os testemunhos dos diferentes protagonistas de um mesmo incidente
ou fato histórico. Quantos relatos e versões se tecem em cima de um mesmo fato!

Para construir a sua representação sobre o passado a partir das fontes ou rastros,
o caminho do historiador é montado através de estratégias que se aproximam das
dos escritores de �cção, através de escolhas, seleções, organização de tramas, de-
cifração de enredo, uso e escolha de palavras e conceitos.

Mas então, poderíamos nos perguntar, os historiadores, tal como os escritores de


literatura, produziriam versões imaginárias do real? A narrativa histórica seria
uma espécie de �cção?

Há, sem dúvida, uma de�nição corrente, explícita no conhecido dicionário Aurélio,
que afasta da história a �cção: em uma primeira acepção, �cção é o ato de �ngir,
simular, e em outra, signi�ca coisa imaginária, fantasia, invenção, criação. Tal de-
�nição corresponde a um estatuto reconhecido, a um senso comum que chega até
a academia: a história é diferente, é a narrativa organizada dos fatos acontecidos,
logo, não é �ngimento ou engodo, delírio ou fantasia.

8
Preferimos de�nir a �cção na sua acepção que, como diz Natalie Davis estava
ainda presente no século XVI, antes do cienti�cismo do século XIX converter a
história na “rainha das ciências” e de colocar, não no seu horizonte mas no seu
campo efetivo de chegada, a verdade verdadeira do acontecido. Este posiciona-
mento antigo nos fala da �cção/�ngere como uma criação a partir do que existe,
como construção que se dá a partir de algo que deixou indícios. A palavra �ctio,
corrobora Ginzburg, está ligada a �gulus, oleiro9, ou seja, aquele que cria a partir
de algo. No caso do historiador, este algo que existiu seriam as fontes, traços da
evidência de um acontecido, espécie de provas para a construção do passado. Na
complementação deste entendimento, que afasta a �cção da pura fantasia, Carlo
Ginzburg cita Isidoro de Sevilha, quando este escreveu dizendo que falso era o não
10
verdadeiro, �ctio [�ctum] era o verossímil.

Nos trechos anteriores, a autora coloca-nos, muito claramente, o distancia-


mento entre história e �cção. Vale a pena fazer alguns apontamentos acerca
das assertivas apresentadas.
Bem sabemos que o historiador está preso às fontes e à condição de que tudo te-
nha acontecido. O historiador não cria o traço no seu sentido absoluto, eles os des-
cobre, os converte em fonte e lhes atribui signi�cado. Há que considerar ainda que
estas fontes não são o acontecido, mas rastros para chegar a este. Se são discur-
sos, são representações discursivas sobre o que se passou; se são imagens, são
também construções, grá�cas ou pictóricas, por exemplo, sobre o real. Assim, os
traços que chegam do passado suportam esta condição dupla: por um lado, são
restos, marcas de historicidade; por outro, são representações de algo que teve lu-
gar no tempo.

Fontes como “restos” e como representações. Esse passado que ganha signi�-
cado não pode ser compreendido como único. Essa é uma das ênfases que
vêm sendo trabalhadas neste artigo. Essa é uma re�exão que deverá fazer par-
te de seu cotidiano de professor e pesquisador em História.

Mas, a rigor, é o historiador que transforma estes traços em fontes, através das
perguntas que ele faz ao passado. Atribuindo ao traço a condição de documento ou
fonte, portador de um signi�cado e de um indício de resposta às suas indagações,
o historiador transforma a natureza do traço. Transforma o velho em antigo, ou
seja, rastro portador de tempo acumulado e, por extensão de signi�cações. Como
fonte, o traço revela, desvela sentidos.

A rigor, o historiador tem o mundo à sua disposição. Tudo para ele pode se conver-
ter em fonte, basta que ele tenha um tema e uma pergunta, formulada a partir de
conceitos, que problematizam este tema e o constroem como objeto. É a partir daí
que ele enxergará, descobrirá, coletará documentos, amealhando indícios para a
decifração de um problema. Cabe ao historiador, a partir de tais elementos, expli-
car o como daquele ocorrido, inventando o passado.

Mas, se ele inventa o passado, esta é uma �cção controlada, o que se dá em primei-
ro lugar pela sua tarefa de historiador no âmbito do arquivo, no trato das fontes.

Em segundo lugar, há um condicionamento a esta liberdade �ccional imposta pe-


lo compromisso do historiador com relação ao seu ofício. O historiador quer e se
empenha em atingir o real acontecido, uma verdade possível, aproximada do real
tanto quanto lhe for permitido. Esta é a sua meta, a razão de seu trabalho e este de-
sejo de verdade impõe limites à criação.

Entre a invenção livre e a “invenção” pautada em documentos, há o limite da


criação. É justamente esse limite que impede os historiadores da Nova
História Cultural de acreditar que todas as interpretações são possíveis.
Apenas as interpretações pautadas nesses limites (pesquisa aprofundada das
fontes, utilização de preceitos teóricos etc.) e descompromissadas com o jogo
da falsi�cação é que são reconhecidas.

Em terceiro lugar, a �cção na história é controlada pelas estratégias de argumen-


tação – a retórica - e pelos rigores do método – testagem, comparação e cruza-
mento -, na sua busca de reconstituir uma temporalidade que se passou por fora
da experiência do vivido. Sua versão do passado deve, hipoteticamente, poder
“comprovar-se” e ser submetida à testagem, pela exibição das fontes, bibliogra�a,
citações e notas de rodapé, como que a convidar o leitor a refazer o caminho da
pesquisa se duvidar dos resultados apresentados. O texto, por sua vez, deve con-
vencer o público leitor. O uso dos conceitos, das palavras, a construção de argu-
mentos devem ser aceitos, colocando-se no lugar do ocorrido, em explicação satis-
fatória.

Mas – e esta parece ser uma especi�cidade muito importante – a reconstituição


do passado vivido pela narrativa histórica dá a ver uma temporalidade que só po-
de existir pela força da imaginação, como já foi apontado. Ficção, pois? Ficção
controlada? Ficção histórica, possível dentre de certos princípios? E este, no caso,
se apoiariam em desejo de veracidade e resultado de verossimilhança?

A história é um romance verdadeiro, disse o iconoclasta Paul Veyne no início da


década de 70. Verdadeiro porque aconteceu, mas romance porque cabe ao histori-
ador explicar o como. E, nesta instância, na urdidura do texto e da argumentação,
na seleção dos argumentos e das próprias marcas do passado erigidas em fontes é
que se coloca a atuação �ccional do historiador. Como diz Jans Robert Jauss, o
historiador faz sempre uma �cção perspectivista da história. Não há só um “reco-
lhimento do passado” nos arquivos. A história é sempre construção de uma expe-
riência, que reconstrói uma temporalidade e a transpõe em narrativa. Chamamos
a isto de estetização da História, ou seja, a colocação em �cção – ou narrativização
– da experiência da história.

Mesmo os limites sendo estabelecidos e seguidos à risca, ainda assim, ocorre


a narrativização da experiência histórica. Por esse e outros motivos já discor-
ridos aqui, �ca realmente difícil, para alguns autores, aceitar a separação total
entre História e Literatura. Como pode observar, há inúmeros pontos a serem
re�etidos nessa relação.
Mas nos voltemos agora para uma segunda instância de análise, que é a do uso da
literatura pela história, sem que com isso estabeleçamos hierarquias de valor so-
bre os modos de dizer o real. Quando nos referimos ao uso da literatura pela histó-
ria, nos reportamos ao lugar de onde se enuncia o problema e a pergunta que, no
caso, é o campo da história.

Sob esta segunda ótica, aí sim, podemos dizer que o diálogo se estabelece a partir
de uma hierarquização entre os campos, a partir do lugar onde são colocadas as
questões ou problemas. E, neste caso, a partir deste particular e especí�co ponto
de vista, podemos dizer que, quando a história coloca determinadas perguntas, ela
se debruça sobre a literatura como fonte.

Nesta medida, um diálogo se estabelece no jogo transdisciplinar e interdiscursivo


das formas de conhecimento sobre o mundo, onde a história pergunta, e a literatu-
ra responde. É preciso ter em conta, contudo, que os discursos literário e histórico
são formas diferentes de dizer o real. Ambos são representações construídas sobre
o mundo e que traduzem, ambos, sentidos e signi�cados inscritos no tempo.
Entretanto, as narrativas histórica e a literária guardam com a realidade distintos
níveis de aproximação.

A recorrência do “uso” de um campo pelo outro é, pois, possível, a partir de uma


postura epistemológica que confronta as tais narrativas, aproximando-as num
mesmo patamar, mas que leva em conta a existência de um diferencial.
Historiadores trabalham com as tais marcas de historicidade e desejam chegar lá.
Logo, freqüentam arquivos e arrecadam fontes, se valem de um método de análise
e pesquisa, na busca de proximidade com o real acontecido. Escritores de literatu-
ra não tem este compromisso com o resgate das marcas de veracidade que funcio-
nam como provas de que algo deva ter existido. Mas, em princípio, o texto literário
precisa, ele também, ser convincente e articulado, estabelecendo uma coerência e
dando impressão de verdade. Escritores de �cção também contextualizam seus
personagens, ambientes e acontecimentos para que recebam aval do público lei-
tor.

O compromisso com o verossímil torna o texto do historiador algo veri�cável


pelas fontes. A literatura aqui (como narrativa e como texto construído) é im-
portante na problematização histórica. A relação estreita-se, mas continua
sem que ambas se tornem uma só, ou seja, �cção.

Mas se a literatura pode ser fonte para a história, uma terceira instância de análi-
se se introduz, que é a da especi�cidade e riqueza do texto �ccional.

Sem dúvida, sabemos do potencial mágico da palavra e da sua força em atribuir


sentido ao mundo. O discurso cria a realidade e faz ver o social a partir da lingua-
gem que o designa e o quali�ca. Já o texto de �cção literária é enriquecido pela
propriedade de ser o campo por excelência da metáfora. Esta �gura de linguagem,
pela qual se fala de coisas que apontam para outras coisas, é uma forma da inter-
pretação do mundo que se revela cifrada. Mas talvez aí esteja a forma mais desa�-
adora de expressão das sensibilidades diante do real, porque encerra aquelas coi-
sas “não-tangíveis” que passam pela ironia, pelo humor, pelo desdém, pelo desejo e
sonhos, pela utopia, pelos medos e angústias, pelas normas e regras, por um lado,
e pelas suas infrações, por outro. Neste sentido, o texto literário atinge a dimensão
da “verdade do simbólico”, que se expressa de forma cifrada e metafórica, como
uma forma outra de dizer a mesma coisa.

A literatura é, pois, uma fonte para o historiador, mas privilegiada, porque lhe dará
acesso especial ao imaginário, permitindo-lhe enxergar traços e pistas que outras
fontes não lhe dariam. Fonte especialíssima, porque lhe dá a ver, de forma por ve-
zes cifrada, as imagens sensíveis do mundo. A literatura é narrativa que, de modo
ancestral, pelo mito, pela poesia ou pela prosa romanesca fala do mundo de forma
indireta, metafórica e alegórica. Por vezes, a coerência de sentido que o texto lite-
rário apresenta é o suporte necessário para que o olhar do historiador se oriente
para outras tantas fontes e nelas consiga enxergar aquilo que ainda não viu

“A literatura dá acesso ao imaginário” e, de forma indireta, fala do mundo. O


mito, neste contexto, é um exemplo importante. Um estudo mitográ�co, por
exemplo, pode nos indicar as diferentes interpretações que um mesmo mito
recebeu (algumas delas respeitando os limites da �cção e outras não). Para sa-
ber mais a esse respeito, indicamos a obra de Marcel Detienne, A invenção da
Mitologia (Tradução de André Telles e Gilza Martins Saldanha da Gama. Rio
de Janeiro: José Olympio; Brasília: UnB, 1992).

A literatura cumpre, assim, um efeito multiplicador de possibilidades de leitura.


Estaríamos diante do “efeito de real” fornecido pelo texto literário que consegue fa-
zer seu leitor privilegiado — no caso, o historiador, com o seu capital especí�co de
conhecimento — divisar sob nova luz o seu objeto de análise, numa temporalidade
passada. Nesta dimensão, o texto literário inaugura um plus como possibilidade
de conhecimento do mundo.
O mundo da �cção literária — este mundo verdadeiro das coisas de mentira11 — dá
acesso para nós, historiadores, às sensibilidades e ás formas de ver a realidade de
um outro tempo, fornecendo pistas e traços daquilo que poderia ter sido ou acon-
tecido no passado e que os historiadores buscam. Isto implicaria não mais buscar
o fato em si, o documento entendido na sua dimensão tradicional, na sua concre-
tude de “real acontecido”, mas de resgatar possibilidades verossímeis que expres-
sam como as pessoas agiam, pensavam, o que temiam, o que desejavam.

A verdade da �cção literária não está, pois, em revelar a existência real de perso-
nagens e fatos narrados, mas em possibilitar a leitura das questões em jogo numa
temporalidade dada. Ou seja, houve uma troca substantiva, pois para o historiador
que se volta para a literatura o que conta na leitura do texto não é o seu valor de
documento, testemunho de verdade ou autenticidade do fato, mas o seu valor de
problema. O texto literário revela e insinua as verdades da representação ou do
simbólico através de fatos criados pela �cção.

Mais do que isso, o texto literário é expressão ou sintoma de formas de pensar e


agir. Tais fatos narrados não se apresentam como dados acontecidos, mas como
possibilidades, como posturas de comportamento e sensibilidade, dotadas de cre-
dibilidade e signi�cância.

“[...] o texto literário é expressão ou sintoma de formas de pensar e agir”. Não é


à toa que a história das mentalidades e a Nova História Cultural �zeram uso
contínuo de fontes literárias. Elas dão acesso a um universo todo particular
que outras categorias de fontes não dão indícios. A pesquisa acerca do pensar
e do agir é cara aos historiadores.

Nesta última dimensão de análise que pensa a especi�cidade da literatura como


fonte, cabe retomar a já mencionada recon�guração temporal. O conceito, desen-
volvido por Ricoeur de maneira exemplar, nos coloca diante da possibilidade de
pensar a literatura na relação com a história como um inegável e recorrente teste-
munho de seu tempo.

Admitimos que a literatura é fonte de si mesma enquanto escrita de uma sensibi-


lidade, enquanto registro, no tempo, das razões e sensibilidades dos homens em
um certo momento da história. Dos seus sonhos, medos, angústias, pecados e vir-
tudes, da regra e da contravenção, da ordem e da contramão da vida. A literatura
registra a vida. Literatura é, sobretudo, impressão de vida. E, com isto, chegamos a
uma das metas mais buscadas nos domínios da História Cultural: capturar a im-
pressão de vida, a energia vital, a enargheia presente no passado, na raiz da expli-
cação de seus atos e da sua forma de quali�car o mundo. E estes traços, eles po-
dem ser resgatados na narrativa literária, muito mais do que em outro tipo de do-
cumento. Como a�rma Ginzburg, a poesia- ou literatura – constitui uma realidade
que é verdadeira para todos os efeitos, mas não no sentido literal.12

Sem dúvida que esta dimensão poderá ser contestada, sob o argumento de que só
a “literatura realista”, na linha de Balzac ou Zola, poderia ser alternativa ao histori-
ador para recuperar as sensibilidades de uma temporalidade determinada, atuan-
do como aquele plus documental de que se falou. Mas o que queremos a�rmar é
que mesmo a literatura que reinstala o tempo de um passado remoto ou aquela
que projeta, �ccionalmente, a narrativa para o futuro são, também, testemunhos
do seu tempo.

Romances da Cavalaria no século XIX dão a ver o imaginário que o mundo nove-
centista construía sobre a Idade Média, assim como a �cção cienti�ca de um Jules
Verne possibilita a leitura das utopias do progresso que embalavam os sonhos e
desejos dos homens do século passado. Deste ponto de vista, tudo é, sob o olhar do
historiador, matéria “histórica” para a sua análise.

Em suma, entendemos que todas estas questões enunciadas que, pensamos, reve-
la a riqueza de uma velha-nova história, se encontram ao abrigo da postura que se
convencionou chamar de história cultural. Esta, a partir de seus pressupostos e
preocupações, proporciona uma abertura dos campos de pesquisa para a utiliza-
ção de novas fontes e objetos, entre as quais se encontra o texto literário.

1 Consulte-se, a propósito do tema:

2 Boia, Lucian. Pour une histoire de l’imaginaire. Paris, Belles Lettres, 1998.

3 Ver, por exemplo, o nº 47 da revista Traverses. Ni vrai ni faux (Traverses, Révue


du Centre Georges Pompidou, Paris, n.47, 1989).

4 Só como exemplo, podemos citar a polêmica em torno da obra de Hayden White,


Metahistória (São Paulo: Edit. da Universidade de São Paulo, 1992).

5 Ricoeur, Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 1983/5. 3v

6 Consultar, a propósito da literatura na sua aproximação com a história, envol-


vendo a questão da �cção, os números 54, 56 e 86 da revista Le Débat.

7 Jauss, Hans Robert. L’usage de la �ction en histoire. Le Débat, Paris, Gallimard,


n.54, mars/avril 1989. p.81.

8 Davis, Natalie. Du conte et de l’histoire.Le Debat. Paris, Gallimard, nº 54, mars-


avril 1989, p. 140.

9 Ginzburg, Carlo. Olhos de madeira. Nove re�exões sobre a distância. São Paulo,
Companhia das Letras, 2001, p. 55.

10 Ginzburg, Carlo. op.cit., p. 57.

11 Expresso por mim utilizada para um artigo que discutir imagens pictóricas e li-
terárias e o seu uso pela história: Pesavento, Sandra Jatahy. Este mundo verdadei-
ro das coisas de mentira: entre a arte e a história. Estudos históricos. Arte e histó-
ria. Rio de Janeiro, FGV, nº30, p. 56-75.

12 Ginzburg, Carlo. Olhos de madeira. Op.cit, p. 55.

Ao �nalizar essa leitura, talvez uma pergunta seja colocada: e a Bíblia? Se ela é
um texto narrativo que busca apresentar um ocorrido verossímil, é uma fonte
literária de que a História pode fazer uso ou é uma fonte histórica que traz ele-
mentos da Literatura. Ou, ainda, o texto bíblico é �cção ou verdade (mesmo
que relativa)? Para saber mais, sugerimos a leitura do livro As Origens da
Bíblia e os Manuscritos do Mar Morto, de Edgard Leite. São Paulo: Centro de
História e Cultura Judaica, 2009.

12. Pós-modernismo: paradigmas e crise


Por �m, vamos sintetizar a crítica pós-moderna, perpassando a hipervaloriza-
ção da cultura, questionando a cienti�cidade da História e rea�rmando o rela-
tivismo diante dos diferentes discursos historiográ�cos acerca de um mesmo
tema, entendendo que todos são possíveis. Além disso, vamos caracterizar a
produção historiográ�ca pós-moderna destacando seus principais autores e
obras.
Quando questionamentos são levantados acerca da História, da historiogra�a
e dos conceitos utilizados pelos historiadores, outras perguntas devem ser so-
madas às primeiras:

[...] de que lugar social ou institucional fala o autor? Quais são as motivações pro-
fundas, as suas escolhas metodológicas, até mesmo as suas opções políticas ou �-
losó�cas? Procedendo deste modo, evitam-se muitos erros de interpretação e per-
das de tempo (BOURDÉ, 1990, p. 215).

O termo “pós-modernismo” veio para chacoalhar as estruturas historiográ�-


cas, mas, em contrapartida, auxiliou no planejamento de novas estratégias de
defesa e ataque da História, da historiogra�a e dos historiadores. Mas será
mesmo que estamos na pós-modernidade? Esse conceito é real ou é uma mis-
ti�cação?

13. Características da história pós-moderna


No seio da História e da historiogra�a, surge mais um conceito: pós-moderno.
De um modo breve, para além de todas as indicações já realizadas durante a
disciplina, podemos de�nir pós-modernismo como aquela teoria que não acei-
ta a cosmovisão ou, nas palavras de Lyotard (1986), tal palavra designa o esta-
do da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ci-
ência, da literatura e das artes a partir do �nal do século 19. Mas ele não vem
sozinho, pois encarar as práticas dos historiadores requer a força de um exér-
cito. Assim, ele trouxe consigo o relativismo, o discurso, as práticas, as repre-
sentações, a desconstrução, a descontinuidade, a narrativa e a �cção.
Invertem-se e rejeitam-se, assim, geral e cotidianamente, os paradigmas tradi-
cionais (MARTINS, 2007).

Com base no exposto, tomando a Nova História Cultural como uma forte re-
presentante pós-moderna, vemos que suas contribuições permitiram que hou-
vesse uma nova construção e uma interpretação do real, que a linguagem ga-
nhasse em importância, que o imaginário fosse revisitado e que a função her-
menêutica da interpretação e a problemática do discurso-texto-contexto en-
trassem em cena (ARAÚJO, 2007).
Entretanto, como você pôde perceber, não é de hoje que sabemos que as histó-
rias sempre são escritas e reescritas, considerando-se os diferentes contextos
(dos historiadores e seu público). As novas fontes e os novos métodos permiti-
ram que essas mesmas histórias fossem mais bem escritas, do mesmo modo
que viabilizaram os debates, no pensamento ocidental, em torno de binômios
como “[...] razão e vida, experiência imediata e abstração, atualidade e
História” (ALMEIDA, 2003, p. 81-82).

Mas a reescrita não cobrou a verdade absoluta ou objetiva, as fontes, agora


compreendidas como construção, nem mesmo permitiam essa postura. Como
escreveu White (1994, p. 59-60):

[...] não se espera que Constable e Cézanne tenham procurado a mesma coisa numa
dada paisagem e, quando se compara suas respectivas representações de uma pai-
sagem, não se espera ser necessário fazer uma escolha entre elas e determinar que
é a mais correta. [...] Aplicado à escrita da História, o cosmopolitismo metodológico
e estilístico [...] obrigaria os historiadores a abandonarem a tentativa de retratar
uma parcela particular da vida, do ângulo correto e na perspectiva verdadeira [...] e
a reconhecer que não há essa coisa de visão única e correta... Pois deveríamos re-
conhecer que o que constitui os próprios fatos é o problema que o historiador apre-
senta às fontes [...]

Porém, uma outra contribuição do relativismo cultural foi sua crença de que
não há uma única história: a do Ocidente civilizado. O etnocentrismo da histo-
riogra�a ocidental abriu as portas para o reconhecimento e valorização das
histórias dos povos conquistados. Entre aqueles que discutirão as novidades
do pós-guerra, estão alguns dos historiadores presentistas. “O historiador pre-
sentista é um relativista porque acredita que um dos elementos principais no
trabalho de interpretação das fontes é o próprio cotidiano do historiador”
(SILVA, 2006, p. 352).

14. Críticas à história pós-moderna


“[...] Diz-se que um saber está aberto às críticas, quando pode ser veri�cado, in-
crementado, contestado, corroborado, refutado, aplicado [...]” (ALMEIDA, 2003,
p. 57). Partindo dessa assertiva, observe as considerações tópicas a seguir so-
bre a História pós-moderna, de um modo geral, e sobre a Nova História
Cultural, mais especi�camente:

• os diferentes discursos historiográ�cos acerca de um mesmo tema são


todos possíveis (relativismo) – valorização acentuada do representacio-
nalismo;
• questionamento da cienti�cidade da História;
• hipervalorização do cultural;

Pois bem, como não criticar uma História que considera tudo como verdade
relativa? Ou seja, se nenhuma verdade pode ser refutada, então tudo (todas as
teorias) é possível? E, se toda verdade é relativa e, por conseguinte, não objeti-
va, a História não é ciência? Então, qual o lugar dela, uma vez que também se
rejeitou o adjetivo de �cção? Se brigaram tanto pelo distanciamento da velha
história política, por que enfatizar demasiadamente o cultural? Não é um re-
torno do absolutismo de um conceito? Não lhe parece que, em última análise,
está ocorrendo a “dissolução da própria história?” (cf. MÜLLER, 2007, p. 69)

Por todos esses questionamentos, Cardoso (2005) acredita que o movimento da


História Cultural entrou em estágio de superação, tanto por suas debilidades
intrínsecas quanto pela ação da História que tem brecado seu fortalecimento e
entrevado a sua persistência.

O próprio Peter Burke, ao �nal de seu livro O que é História Cultural?, a�rma
que não defendeu e não acredita que a história cultural seja a melhor forma de
história. Segundo ele, é imperativo um empreendimento histórico coletivo, ou
seja, a união das histórias econômica, política, intelectual e social para uma
visão da história como um todo, pois, mais cedo ou mais tarde, acontecerá
uma reação contra a “cultura” (cf. BURKE, 2005, p. 163).

A restauração é sempre incompleta.

Por mais que inúmeros detalhes fossem recuperados, o passado já passou, as


fontes só respondem de acordo com as perguntas que fazemos a elas, e o texto
ganha forma para além de nossas mentes. Tantos são os problemas e/ou ca-
minhos para se atrever a garantir que o que o historiador faz é o resgate do
passado, como escutamos inúmeras vezes no decorrer de nossa vida escolar.
No momento, enquanto o diálogo de surdos (racionalistas versus pós-
modernos) é transmitido, esperemos pelas marcas que serão deixadas; vamos
nos propor que nossa humana condição seja provisória e, por esse motivo, que
somos “[...] advogados de idéias e não donos de idéias” (RIEDEL, 1988, p. 61).

De qualquer modo, não é possível desconsiderar os pressupostos do pós-


modernismo e negar veementemente sua relevância, pois suscitou e ainda
provoca interrogações.

Finalizando nossas discussões, �ca uma re�exão. Foucault (apud O’brien 2001,
p. 37) teria dito: “Não me perguntem quem sou e não me peçam que continue
sendo o mesmo”. Tomando suas palavras como uma espécie de verdade obje-
tiva (se é que ela existe), podemos, ao �nal desta disciplina, concluir que: não
perguntem o que é a História ou a sua escrita, nem mesmo peçam que conti-
nuem sendo as mesmas!

O texto a seguir é um discurso acerca da religiosidade na Grécia Clássica. Ele é


um exercício de História Cultural que pretende evidenciar algumas práticas
verossímeis na Antiguidade defendidas pelos historiadores �liados à Escola
dos Annales e à História Cultural. Ele se apresenta, portanto, como uma das
verdades possíveis sobre a prática religiosa grega.

Tentar esboçar o quadro da religião ou religiosidade de uma dada sociedade não é uma tarefa das
mais simples. Muitas di�culdades surgem, objeções nos assaltam e pré-conceitos nos acompanham.
Nesse sentido, ainda mais complicado torna-se o estudo de uma religiosidade já morta, como é o ca-
so daquela grega e a aplicação para aquela sociedade, do sentido de religião ou religiosidade tais
quais entendemos hoje, pois tratava-se de uma prática religiosa sem deus único, sem igreja, sem cle-
ro, sem dogmas, sem promessa de imortalidade, como é o caso do Cristianismo, ao qual estamos to-
dos nós inseridos (de maneira direta ou indireta). Portanto, nossas referências religiosas devem ser
deixadas de lado ao analisar aquele contexto.

Essas diferenças são compreendidas somente quando comparamos as mais diversas religiões e suas
práticas. Mas, em um sentido particularmente importante, todas as sociedades, sejam elas antigas,
sejam elas contemporâneas, encontraram-se sempre diante de realidades incontroláveis e não hu-
manas, ou seja, privadas de signi�cação. A religião, nesses momentos, foi uma das respostas possí-
veis para explicação dessas realidades incontroláveis, que surgiam perante os homens sem uma
causa aparente. Diferentemente da Física, a História da Humanidade e da Cultura não conhece rígi-
das leis de causalidade, mas apenas relações elásticas de probabilidade entre certos tipos de situa-
ções e certos tipos de reações por parte das sociedades humanas; por esse motivo, explicar racional-
mente não satisfazia o espírito daqueles que buscavam entender o mundo.

Sabendo que a religião é uma das respostas aplicadas pelo homem aos seus grandes questionamen-
tos, uma pergunta apresenta-se: a religião em si mesma constitui um fenômeno autônomo, ou seja,
posso estudá-la em detrimento de outros setores da sociedade em questão? E a prática religiosa, ou
seja, podemos desvincular a religiosidade dos setores social e artístico, por exemplo? Portanto, a reli-
gião não existe em si e para si, mas em função de fatos sociais, políticos, econômicos etc. Nesse sen-
tido, alguns autores dizem que o estudo da História da Religião não é mais que um caso particular da
História da Civilização ou, simplesmente, da História, e outros a�rmam que o aspecto religioso da vi-
da social contribui a compor, juntamente com os demais aspectos (econômico, técnico, político, jurí-
dico, estético etc.), um conjunto signi�cativo no qual um fator somente é compreendido se tomado
em relação aos outros.

Esse fato leva-nos a crer que não existe nenhuma religião individual, mas apenas religiões de grupos
humanos. Nestas, os indivíduos podem aderir-se total, parcialmente ou de uma maneira particulari-
zada, assim como também não se inserirem. O que é individual é a "religiosidade", ou seja, o modo
particular de participar na religião. Com base nesse dado, o historiador não deve aceitar a pressupo-
sição de que religião ou a religiosidade é inata ao homem (não estamos aqui questionando se o ho-
mem é um ser religioso por natureza ou não, mas considerando que aquela religião ou religiosidade
praticada por ele lhe foi apresentada, portanto, teve sua construção particular para cada homem).

Qual seria, então, a tarefa da História das Religiões? As respostas apontam que não é das mais fáceis:
reconstituir conjuntos de doutrinas, crenças, práticas e instituições historicamente atestadas ou po-
sitivamente veri�cáveis; examinar as religiões em suas complexidades e singularidade, em meio e
épocas determinados; reconstrução da gênese, genealogia e destino das religiões; explicar a religião
levando em consideração seu relacionamento com outros aspectos da vida em sociedade, circuns-
tâncias e condições históricas, in�uências recebidas ou experimentadas, que poderiam conduzir sua
religião a uma evolução ou série cronológica de estágios onde cada um está relacionado com o pre-
cedente.
Por ser tão complexa a sua função, a História das Religiões pode e deve ser relacionada a qualquer
outra disciplina das Ciências Humanas, podendo, assim, proporcionar matéria a essas disciplinas,
como também tomar emprestado delas seus dados, teorias e métodos.

Mas falar em História das Religiões implica de�nirmos o conceito de religião. Mais uma tarefa arris-
cada, a�nal, nenhuma civilização arcaica ou clássica possuía um termo que correspondia à religião,
como, hoje, concebemos daquela derivada do latim “religio”, “relegere” ou “religare”. O próprio termo
latino, em tempos antigos, não possuía a acepção moderna de religião: indicava um conjunto de obe-
diências, advertências, regras e interdições que não faziam referência à adoração da divindade, às
tradições míticas ou às celebrações das festas nem às outras manifestações consideradas, na atuali-
dade, religiosas. Portanto, apontamos um paradoxo aqui: pode se ter uma religião sem possuir o con-
ceito; em outras palavras, nosso conceito é aplicado a vários fenômenos que, nessas civilizações, não
se distinguiam entre religiosos ou não.

Querer de�nir religião é querer dar um signi�cado preciso a um termo por natureza polissêmico, for-
jado por nós e que empregamos com as mais vagas e imprecisas signi�cações. No entanto, há duas
vantagens nas mais diferentes de�nições pré-fabricadas desse conceito: por um lado, por ser aberto
demais, o conceito abarca a totalidade dos fenômenos que consideramos religiosos; por outro, a au-
sência de uma de�nição fechada do termo evita a redução a uma ordem sistemática dos mais varia-
dos fenômenos. Nós, historiadores, devemos dar a devida importância ao fato de que os fenômenos
religiosos tomam formas diversas, apresentando-se modi�cadas em seu detalhe ou em sua composi-
ção, segundo as particularidades do sistema religioso do qual dependem, segundo a época e os indi-
víduos. Devemos relevar, ainda, o fato de que esses fenômenos não são puramente históricos; dessa
forma, não podem ser considerados, pelo historiador, como puros acontecimentos, mas, ao contrário,
este deve buscar compreendê-los, experimentá-los e penetrar em seus sentidos. Para tanto, para que
tal tarefa se realize, é necessário ter em mãos dados que comprovem nossas teses; a�nal, o historia-
dor pode constatar e interpretar fatos comprovados, mas não formular juízos sobre épocas remotas e
não documentadas.

Mas onde podemos encontrar a manifestação da religião? Nas civilizações ditas primitivas, a reli-
gião manifesta-se nos detalhes: alimentação, vestuário, disposição das habitações, relações com pa-
rentes e estranhos, atividades econômicas e divertimento. A religião forma parte de sua vida e não
há motivo para que a distinga dos outros aspectos de sua existência. E, dentro de uma ótica religiosa,
podemos de�nir como sagrado as ideias, as doutrinas, as convicções, as crenças, os relatos, as ações
individuais, as normas, as proibições, as relações, as pessoas, os animais, as plantas, os materiais, os
objetos naturais ou fabricados, de lugares ou épocas diferentes. Mesmo com toda essa diversidade de
documentos em mãos, muitos estudiosos �zeram do complexo algo simples, ou seja, com teorias re-
ducionistas ou generalizantes, �zeram do universo religioso uma mera fabulação, pura imaginação
humana.

O primeiro ponto a ser analisado é o que se refere a algumas abordagens que foram aplicadas ao es-
tudo da religiosidade grega. Desde o século 19 até o meado do nosso século, esses estudos eram, em
sua maioria, comparativistas. Seus autores elaboravam a análise partindo do ponto de vista do
Cristianismo, que tornava o politeísmo uma prática herege, incorreta, maliciosa e até mesmo insana.
O Cristianismo era colocado como superior, a prática correta, a maneira mais e�caz de contato entre
homens e deuses – nesse caso, entre o homem pecador e o Deus único. Alguns historiadores do sé-
culo 19, principalmente, iniciavam suas pesquisas com a conclusão já formulada: houve uma religião
grega, politeísta, mas, em todos os seus aspectos, inferior à religião cristã, que promove a salvação
das almas. Já no século 20, as conclusões foram um pouco diferentes. O mito passa a ser visto como
verdade essencial, construção regrada, estrutura elementar do pensamento humano. Porém, mais
uma vez, a comparação, dessa vez em relação aos selvagens da América, da Austrália, em alguns ca-
sos, torna-os linguagem de um povo infantil, ainda em processo de evolução. Assim, por mais racio-
nal que seja, qualquer classi�cação das religiões resulta �ctícia ou incompleta. Desse modo, podemos
excluir o postulado evolucionista, pois não é simples conceber a ideia de que todas as religiões teri-
am partido do simples ao complexo, da inferior ao superior, tendo um mesmo estado inicial.
Igualmente, é complicado aceitar uma classi�cação segundo uma linha contínua de evolução que
classi�ca tipologicamente: religiões da natureza ou religiões de civilização.

Algumas destas abordagens implicavam três tipos de atitudes acerca da religião: separação da reli-
gião cristã das outras religiões tidas como falsas, pagãs ou supersticiosas, subordinação da religião
cristã a todo o resto ou, ainda, a união de todas as religiões num mesmo grupo.

Com o estruturalismo de Lévi-Strauss e a comparação de Dumézil, na metade do século 20, foi alcan-
çada a ideia de que uma religião é um sistema, um pensamento articulado, uma explicação do mun-
do. Esta conclusão foi possível após observar as estruturas, os mecanismos, os equilíbrios constituti-
vos da religião e da religiosidade de�nidos discursiva ou simbolicamente.

No entanto, nosso propósito é o de evidenciar a religiosidade da sociedade grega e, nesse caso, não
temos como deixar de citar os estudos acerca da mitologia, uma das componentes desse estilo religi-
oso. Esses mesmos estudiosos anteriormente citados, na sua maioria, entendiam o mito ou a mitolo-
gia de forma mais abrangente, como engano, fabulação natural, espontânea, aberração da linguagem
primitiva, escândalo, histórias selvagens e absurdas, ou, ainda, aventuras infames e ridículas
(DETIENNE, 1992).
Jean-Pierre Vernant cita, como exemplo de estudos realizados dentro de uma perspectiva cristã, o
trabalho de A.-J. Festugière, que a�rma que só o culto diz respeito ao religioso, e, por esse motivo, a
mitologia deve ser excluída desse campo. Não concordando com essa postura, Vernant escreve que,
sem a mitologia "[...] ser-nos-ia bem difícil conceber os deuses gregos" (VERNANT, 1992, p. 10). E
completa: o historiador da religião grega deve guardar-se de cristianizar a religião antiga, que não é
menos rica ou complexa e organizada intelectualmente que as de hoje; são diferentes.

A tarefa do historiador é assinalar o que pode ter de especí�co na religiosidade dos gre-
gos, nos seus contrastes e suas analogias com os outros grandes sistemas, politeístas e
monoteístas, que regulamentam as relações dos homens com o além (VERNANT, 1992, p.
11).

E essa posição é observada em suas obras referentes à mitologia e religião gregas. Vernant, embora
tenha comparado, em alguns momentos, as duas formas religiosas, não o fez como um etnólogo que
superestima uma cultura em detrimento da outra; ele analisou o politeísmo grego por ele mesmo,
não fez pré-julgamentos, não iniciou seus estudos com ressalvas. O autor buscou respostas que es-
clareçam o "estilo religioso grego", como ele mesmo denominou. O politeísmo e o mito grego, para o
autor, não eram entendidos como erros que se opõem à verdade cristã.

Vernant observou que o que o grego tinha de especí�co nas relações com o sobrenatural é que ele
estabelecia contato com "potências". O mundo era constituído por entidades divinas que exerciam
seus poderes em domínios de�nidos, cada qual com seus poderes, segundo modalidades de ação que
lhes eram próprias. Podemos citar alguns casos. Zeus, por exemplo, era especialmente o deus da luz,
que encarnava o céu e comandava os seus movimentos regulares, como os dias e as estações. Zeus
signi�cava uma soberania justa e ordenada. Era respeitado por todos os outros deuses e, especial-
mente, pelos homens. Hades, o deus do Inferno, rei dos mortos, tinha o poder de tornar os homens in-
visíveis, recebendo-os após a morte. Afrodite, deusa do amor e da fertilidade, podia interferir na vida
sentimental dos humanos pelo prazer de lhes ver sob seu domínio. No entanto, essas divindades do
politeísmo grego

[...] não eram eternas, perfeitas, oniscientes ou onipotentes; não criaram o mundo, nasce-
ram nele e dele [...] A Lua, o Sol, a luz do dia, a noite, ou uma montanha, uma gruta, uma
nascente, um rio ou um bosque podiam ser interpretados e sentidos como qualquer uma
das divindades do panteão (VERNANT, 1994, p. 10).
A relação não se estabelecia entre sujeitos (Criador e criação). O homem grego não buscava a
salvação pessoal e não pensava no bem individual. Era uma busca pelo bem-estar da cidade, dos ci-
dadãos, do homem grego em geral. Por essa preocupação coletiva e pelo fato de a religiosidade estar
mesclada ao social, percebemos, na Grécia, uma espécie de “religião cívica”.

Essa relação entre pessoas e potências, que se dava no plano cívico-religioso, permitiu uma
consideração de Vernant:

se os deuses são os da cidade e se não há cidade sem divindades protetoras velando por
sua proteção [...] é a assembléia do povo que tem o poder sobre as coisas sagradas, os as-
suntos dos deuses. Ela �xa os calendários religiosos, edita as leis sagradas [...] Dado que
não há cidades sem deuses, os deuses cívicos têm, em troca, necessidade de cidades que
os reconheçam, adotem e os façam seus (VERNANT, 1994, p. 15).

De um certo modo, é-lhes necessário, como escreve Marcel Detienne, “tornar-se cidadãos para ser in-
teiramente deuses” (VERNANT, 1996, p.16)

O que se pode notar, na religiosidade grega, era que as atividades políticas, ou seja, as magistraturas,
tinham algo de divino e que as festividades em honra aos deuses tinham algo de mundano, como
por exemplo, as festas à Dioniso, onde o deus era celebrado em meio a embriaguez e orgias.

Mas como era possível esta relação homem-Potência? Se colocada de maneira bem clara, a resposta
é: basta cumprir os rituais e acreditar nos discursos mitológicos. Mas o mundo grego não era tão
simples assim. Para comunicar-se com as Potências, os homens utilizavam-se de três recursos es-
pecí�cos que constituíam a linguagem religiosa: mito, rito e representação �gurada, melhor dizendo,
o contato dava-se por meio das expressões verbal, gestual e �gurada.

A expressão verbal, ou oral, é a própria transmissão e perpetuação dos mitos, que ocorria, inicial-
mente, por intermédio das mulheres, que agiam como "nossas avós", contando as lendas antigas e,
em um outro momento, por intermédio dos poetas, que passaram essa tradição oral para a forma es-
crita, garantindo, de maneira mais e�caz, o prolongamento da tradição. O discurso mitológico era
formado por relatos da criação do mundo, de lutas entre as potências e de feitos heroicos. Todo mito,
analisado sob a perspectiva do estruturalismo, possui uma composição própria e uma coerência in-
terna que explicam fatos humanos, que justi�cam atitudes, usos e costumes. Era pelo e com o mito
que a divindade se tornava personagem viva, presente e atuante entre os humanos. Manter os mitos
na vida do homem grego era garantir-lhe a tradição, o aperfeiçoamento da técnica de memorização
que, por suas etapas (controle da respiração e da mente), já era uma comunhão com os deuses. Mas
por que, nas civilizações onde estes existiam, se criam os mitos? Os pensadores gregos já se pergun-
tavam e, para dar uma justi�cativa à crença tão difundida em seu mundo cultural, sustentavam que
os mitos, absurdos do ponto de vista racional, escondiam verdades profundas sob a aparência de
contos fantásticos, ou que continham um fundo histórico real deformado pela imaginação popular,
além de garantir a estabilidade da realidade existente.

Mas lembremos que, nos séculos 6º e 5º a.C, Hecateu de Mileto, Anaximandro, Heródoto, Platão, entre
outros, estavam questionando fortemente estes discursos míticos que passaram a ser repensados e,
por vezes, negados. No entanto, mesmo se rejeitados, estes relatos eram os únicos instrumentos de
informação sobre o além. Eram os mitos que permitiam uma lucidez maior sobre como o homem de-
via agir para não tornar-se um cidadão sem história, uma vez que, eram estes mitos que revelam sua
origem, sua estirpe, sua tradição familiar e cívica.

Mais um fator de relevância que deve ser observado: por fazer parte de uma tradição oral, os mitos
ganharam inúmeras versões. Transmiti-lo somente era possível por meio da técnica de memoriza-
ção já citada anteriormente. Assim, temos de aceitar o fato de que uma nova versão poderia apagar
ou recobrir alguns pontos da versão precedente, uma vez que a materialidade desta última residia na
voz do intérprete, do aedo que a apresentava ao seu público. No entanto, mesmo com algumas modi-
�cações, os mitos passavam pela aprovação dos ouvintes que os recebiam como sendo um pequeno
trecho de sua história passada (a memória, considerada por Vernant como uma categoria psicológi-
ca de extrema importância para os gregos, uma vez que torna possível a perpetuação da tradição, foi
também estudada por Marcel Detienne, 1992).

Em relação aos ritos, eles representavam a forma mais estável e completa da relação entre homens e
seres sobre-humanos. Dirigir preces a um ser sobre-humano signi�cava, antes de tudo, atribuir-lhe
uma existência. Os ritos eram menos explícitos e didáticos que os mitos, pois, cada gesto, cada pala-
vra tinha um sentido especí�co, simbólico. Toda cerimônia ritual, na sua grande maioria, contava
com sacrifícios, que podiam ser oferecidos às divindades celestes ou infernais. Em cada caso, havia
particularidades que diferenciavam o ritual de maneira marcante. Esses ritos podiam, por um lado,
ser realizados em forma de festas solenes, onde os deuses convidados estavam presentes, estabele-
cendo a comunicação entre a terra e o céu. Por outro, podiam ser vistos como uma carni�cina, uma
cozinha ritualizada. Faz-se necessário esclarecer que os sacrifícios ocorriam fora do templo, residên-
cia permanente dos deuses, e eram realizados em altares externos, no bomos, que era um bloco de al-
venaria quadrangular. Vernant descreve o sacrifício de um animal oferecido a uma divindade celes-
te. Vejamos os passos que, necessariamente deviam ser seguidos:
[...] um animal doméstico, enfeitado, [...] é conduzido em procissão ao som de �autas até o
altar, aspergido com água lustral e com um punhado de grãos de cevada [...]. A cabeça da
vítima é arrancada então; corta-se-lhe a garganta. O sangue que jorra sobre o altar é reco-
lhido num recipiente. O animal é aberto: extraem-lhe as entranhas, especialmente o fíga-
do, que se examina para saber se os deuses aceitam o sacrifício. Nesse caso, a vítima é
imediatamente esquartejada. Os ossos longos, [...], são colocados sobre o altar [...]. Certos
pedaços, internos, são postos para grelhar sobre o altar no mesmo fogo que expede à di-
vindade a parte que lhe cabe, estabelecendo assim o contato entre a Potência sagrada
destinatária do sacrifício e os executantes do rito [...] (VERNANT, 1996, p. 62).

Nos casos de sacrifícios a deuses infernais, os homens não podiam tocar na vítima, não comiam de
maneira alguma sua carne, sendo o sangue derramado diretamente em fendas na terra que o levava
aos deuses. Nesse caso, a vítima devia desaparecer, ser totalmente queimada.

No entanto, faz-se necessário dizer que esses sacrifícios não deviam ser compreendidos como uma
comunhão com os deuses. Não se partilhava do corpo ou sangue da divindade, mas da vítima. O sa-
crifício tinha a função de estabelecer contatos, e não experiências sobrenaturais, e, ainda, con�rma-
vam a distância entre homens e deuses.

Trata-se, como vimos, de práticas bem complexas. Por meio delas, a relação homem-deus
estabelecia-se. Se aceito o sacrifício, a guerra poderá ser travada, a colheita realizada, o adolescente
poderá adentrar na vida adulta, um novo templo construído, en�m, aceita-se a imolação de uma víti-
ma, a vida social e política poderá tomar seu rumo. Eis o que signi�cava religião cívica.

En�m, o último recurso para se estabelecer o contato com as potências: a representação �gurada.
Sabe-se que os gregos conheceram todas as formas de expressão simbólica das divindades, a saber,
pedra bruta, máscara, �guras de animais, monstros ou mesmo �guras humanas. Conforme o mo-
mento, os gregos privilegiavam o uso desta ou daquela representação. Do 8º a.C ao 7º século a.C, o
formato dessas representações não tinha relação direta com a ideia do divino. Foram nos séculos 5º
a.C e 4º a.C que esses símbolos �gurados se transformaram em imagens. Nestas,

[...] estão imbuídos valores religiosos que exprimem certas forças: beleza, graça, esplen-
dor, juventude, saúde, vigor, vida, movimento, [...], que pertencem particularmente à di-
vindade e que o corpo humano, mais do que outro, re�ete na �or da idade [...] (VERNANT,
1973, p. 286).
Essa representação humanizada do divino foi sentida, principalmente, a partir das apresentações
das tragédias ao grande público grego. Os tragediógrafos foram uns dos primeiros a elaborar a ideia
do deus-homem. Para encenar suas peças, era preciso criar um �gurino apropriado para representar
os deuses. Dessa forma, alguns atributos foram criados, como asas, máscaras e tridentes, entre ou-
tros. E é por meio desses atributos que identi�camos os deuses expressos nos vasos, nas ânforas e
nos lécitos gregos. A esse respeito, Sarian (1987), no artigo A expressão imagética do mito e da reli-
gião nos vasos gregos e de tradição grega está de acordo. Ao analisar a iconogra�a do teatro trágico,
no tocante ao ciclo de Orestes (trilogia de Ésquilo), Agamenon, Coéforas e Eumênides, a autora obser-
va que deve ser ressaltado o papel que o teatro desempenhou em relação à representação �gurada: ao
ser encenada, a peça sugeriu imagens e formas (humanas ou bestiais) aos pintores dos vasos. Nesse
artigo, Sarian cita o caso das Erínias, deusas infernais que perseguiam Orestes pelo matricídio que
este cometeu. Foi a partir da representação teatral que as Erínias ganharam formas humanas na ce-
râmica. É a religiosidade presente na arte. É a perpetuação dos mitos que estava sendo garantida.
Mas há uma ressalva a ser feita:

Todas essas �guras não são equivalentes nem convêm indiferentemente a todos os deu-
ses ou todos os aspectos de um mesmo deus. Cada uma delas tem seu modo próprio de
traduzir no divino certos aspectos, de presenti�car o além, de inscrever e localizar o sa-
grado no espaço aqui na terra [...]. Cada forma de representação implica, para a divindade
�gurada, um modo particular de manifestar-se aos humanos e de exercer, através de suas
imagens, o tipo de poder sobrenatural do qual possui o domínio (VERNANT, 1992, p.
32-33).

Muitos outros exemplos poderiam ser citados aqui, que testemunhariam a religiosidade grega. Os
gregos acreditavam em seus deuses, em suas manifestações, em seus auxílios. O grande número de
discursos míticos, o riquíssimo vocabulário sobre a representação �gurada, a abundância de estátuas
divinas evidenciam que o grego era um homem religioso, que vivenciava sua crença, que respeitava
as tradições, en�m, que olhava para a Lua e via Selene, assim como a noite era Nix, olhava para o Sol
e via Hélios, assim como o dia era Hemera. Mais do que simples nomes daquilo que, para nós, mo-
dernos, são astros, em grego, eram nomes de divindades.

Concluindo, a religiosidade grega foi algo real, vivido e sentido. Os mitos, os ritos e a representação
�gurada �zeram parte da rede religiosa de um povo que construiu sua religiosidade que a presenteou
com santuários independentes, separados do espaço profano (e também neste), ou seja, os gregos cri-
aram seus locais sagrados, organizaram seu calendário religioso, cantaram e pintaram seus deuses e
heróis. A religiosidade grega é uma construção histórica. Vernant objetivou em suas análises com-
preender e nos fazer compreender esse estilo religioso, tão particularizado, do homem grego (saben-
do da multiplicidade dele). Suas metas foram alcançadas. Ele deixou evidente essa religiosidade e
expôs pormenores e especi�cidades de uma crença apoiada numa tradição que englobava a língua, o
estilo de vida doméstico, o gestual, os sistemas de valores, as normas da vida em sociedade, o sentir
e o pensar.

Neste momento, re�ita sobre sua aprendizagem respondendo à questão a se-


guir.

15. Considerações
Neste quinto ciclo de estudos, pudemos compreender o atual estado do debate
historiográ�co, desde o �m do século XX até os dias atuais. Passamos pela
Micro-história, pela Nova História Cultural e pelo Pós-modernismo, percebe-
mos que os aspectos culturais passaram a ter primazia diante de uma percep-
ção eminentemente política ou social, trabalhando com renovadas interpreta-
ções e conceitos.

Ressalta-se, também, a retomada de algumas preocupações que já haviam si-


do debatidas anteriormente por outras correntes, a exemplo da busca da ver-
dade e da contestação sobre a cienti�cidade da História. Nesse sentido é que
podemos perceber a constante renovação da historiogra�a, que, ao mesmo
tempo em que avança sobre novos temas, objetos, métodos e fontes, também
retoma discussões anteriores por meio de novos focos e perspectivas.

16. Considerações Finais


No decorrer dos estudos desta disciplina, pudemos compreender que a histó-
ria pode possuir diversos usos e signi�cados em decorrência de cada contexto
em que foi produzida, sendo que cada um desses contextos acaba por rever as
temáticas, métodos e fontes de pesquisa, elementos fundamentais da constru-
ção historiográ�ca. Assim, tais visões historiográ�cas possuem suas caracte-
rísticas próprias, e é nessa direção que se apresenta como fundamental para o
historiador a compreensão do que podemos chamar de uma história da
Historiogra�a. Somente uma visão de longa duração desse processo pode fa-
zer com que o historiador se perceba e contribua nessa área quando do estudo
e/ou produção do conhecimento. Nesse sentido, devemos ter em mente que é a
compreensão da construção do discurso historiográ�co ao longo do tempo que
nos trará um melhor entendimento do que é a disciplina hoje.

Outro ponto fundamental de nossos estudos foi a percepção de que existe um


amplo e recorrente diálogo entre as diversas propostas/correntes de pensa-
mento, assim como uma destacada relação da História com as demais ciênci-
as humanas. Assim, pudemos perceber que essas diferentes propostas não se
invalidam, mas sim podem ser compreendidas como complementares e/ou
agregadoras para a construção do discurso historiográ�co. Não podemos per-
der de vista essa visão agregadora de diversas correntes historiográ�cas, uma
vez que uma "nova corrente" não põe �m a outras correntes já existentes, mas
sim contribui no amadurecimento do ofício do historiador abrindo e/ou reven-
do novas possibilidades metodológicas, temáticas e de fontes de pesquisa.
Nesse sentido, podemos perceber a constante renovação da historiogra�a,
pois, ao mesmo tempo em que avança sobre novos temas, objetos, métodos e
fontes, também retoma problemáticas anteriores por meio de novos focos. A
construção do conhecimento só é possível por meio do constante repensar
epistemológico, motivo pelo qual, por muitas vezes, temos a impressão de que
a historiogra�a sempre está passando por um momento de "crise".

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