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CAPITULO 23 - Psicologia e o Oculto.

Vario de fala, como de letra.


Agora tenho a sensação de que eu sempre soube disso.
A verdade ignota aos homens é o delírio de quem a anuncia.
Quando um fantoche fala, não é ele que fala, é alguém que está atrás.
A palavra foi criada para encobrir o pensamento e não para manifestá-lo.
Tu, psicólogo subtil, podes imaginar que ela queria convencer-se a si mesma.
Faltava-lhe o trato suficiente das mulheres para ler através de uma negativa.
Não há proporção entre a causa e o efeito.
Nós outras, as mulheres, somos as filhas da fantasia.
Es liegen einige gute Ideen in diesen Rocke.
La partisse est un don qui vient des immortels.

Hoje avental, amanhã luva (A Marmota no. 1144, 20 de março de 1860).

“Comédia em um ato imitada do francês por Machado de Assis”.


CENA I, em tradução de Machado:
DURVAL (sentando-se) – Como o Corcovado, enraizado como ele. Já me doíam saudades desta
boa cidade. A roça, não há coisa pior! Passei lá dois anos bem insípidos – em uma vida
uniforme e matemática como um ponteiro de relógio: jogava gamão, colhia café e plantava
batatas. Nem teatro lírico, nem rua do Ouvidor, nem Petalógica! Solidão e mais nada. Mas,
viva o amor! Um dia concebi o projeto de me safar e aqui estou. Sou agora a borboleta, deixei
a crisálida, e aqui me vou em busca de vergéis. (tenta um novo beijo)

CENA I, no original, em nova tradução1:


ROUVROY A vida no campo, o nascer e o pôr do sol, os bois, as lagoas, o canto dos pássaros,
etc., etc. É um recurso frutífero para os poetas que… pescam à linha; mas, infelizmente! é
terrivelmente monótono. Você me vê, eu, homem de imaginação fecunda, paixões vivas, de dia
falando de feno e trigo com meus lavradores; de noite a jogar o eterno piquet [um jogo de cartas
(baralho)]com o padre... em suma, um homem do campo. (levantando-se). Um homem do
campo é um ponteiro de relógio que realiza a mesma revolução todos os dias. Essa vida, regular
como uma operação aritmética, me pesava. Então, cansado dessa monotonia, desse silêncio,
volto a buscar as tempestades e os barulhos de Paris. Eu dormi por dois anos. Eu acordei. A
crisálida não existe mais; a borboleta voa. (ele vai pegar Florette pela cintura)

Fora da peça, antes que ela inicie, é anunciado “comédia em um ato imitada do francês
por Machado de Assis”, informa que é uma imitação; dentro da peça, o personagem
Durval emprega o termo Petalogia, da vida do autor.

É como se, logo após o anúncio, o escritor corresse para dentro do livro como ator,
conforme Alcides Maya: “o autor, na peça, transforma-se em ator, e este, entre os
personagens que imaginou e move ao seu arbítrio, é, de feito, o personagem central,
embora disfarçado” (Machado de Assis – Algumas notas sobre o humor, 1912, p.12).
Seria, então, um contador de histórias, dentro da história.

Machado cita frases “Es liegen einige gute Ideen in diesen Rocke”, “La partisse est un
don qui vient des immortels”, sem fornecer a fonte, o leitor vai procurar, não encontra,

1
https://play.google.com/books/reader?id=5eQizbmeEkQC&pg=GBS.PA8&hl=pt. Original obtido no
site. Tradução do professor de francês Jovanir Poleze (2022).
1
lembrando o assaltante que diz “olha lá no céu!”, e bate a carteira do distraído e sai
correndo, e somente depois o assaltado percebe o logro.
O casal passeando numa cidade, num metrô lotado, o marido, foi distraído por uma mulher lhe
mostrando um decote generoso enquanto o parceiro dela batia-lhe a carteira, chegando ao
hotel, ‘minha carteira foi roubada!’, a esposa, com um riso maroto, ‘eu estava vendo, preste
mais atenção da próxima vez!’

Nessas três situações, semelhantes, na primeira, o leitor procura a referência e não


encontra; na segunda, a pessoa foi lograda e perdeu a carteira; na terceira, a esposa
vingativa. Nos três casos fica um sentimento de frustração. São três casos de Petalogia.
Sugere o teste psicológico em Três tesouros perdidos (5 de janeiro de 1858):

O Sr. F... desmaiou.


Quando deu acordo de si estava louco... louco varrido!
Hoje, quando alguém o visita, diz ele com um tom lastimoso:
— Perdi três tesouros a um tempo: uma mulher sem igual, um amigo a toda prova, e uma linda
carteira cheia de encantadoras notas... que bem podiam aquecer-me as algibeiras!...
Neste último ponto, o doido tem razão, e parece ser um doido com juízo.

O Sr. F estava cego, até ver o que antes não via. E toma um choque quando vê. A ideia
ver o que não via é debatida com Joaquim Serra na polêmica de um mês depois, Os
Cegos (12 de fevereiro de 1858).

A questão gira em torno de como reagir ao fracasso, à perda, ao assalto à mão armada, à
reprovação, ao abandono, à morte, à separação, à traição, ao corte, como reagir à
castração, vinculados à revelação brusca de algo que aparece como se viesse do nada,
do Oculto, e causa surpresa incidindo sobre o psicológico. À pessoa atingida resta
retornar sobre o Acontecimento para reconsiderá-lo.

Na peça acima, indo ao original procurar o Oculto em Machado, “a crisálida não existe
mais; [ela] a borboleta voa”, nota-se a modificação “[eu] sou agora a borboleta,
deixei a crisálida”, ele traz da terceira para a primeira pessoa do discurso anunciando-
se como quem pode voar2. Não é comum essa atitude analítica de ir ao original. O
retorno ao original, às fontes.

Parece assinatura de Machado.


Nessa peça o autor quer mostrar
como o encanto leva no final ao
desencantamento.

Nesta primeira obra, uma peça de teatro, continua o jogo petalógico iniciado antes, que
irá mostrar no decorrer de sua produção.

CLARA - Faz mal em vir do deserto, só para recordar algumas palavras que me escaparam
há cinco anos.
LUIZ - Repeti-as como de autoridade. Não eram a sua opinião?
CLARA - Se quer que lhe minta, respondo afirmativamente.

2
Incluir Currier du Bresil e também em upload o arquivo de Jovanir Poleze.
2
Clara está sendo questionada pelo que havia dito “faz mal em vir do deserto, só para
recordar algumas palavras que me escaparam há cinco anos”, palavras haviam
escapado, palavras que Luiz havia tomado “como de autoridade”, e pergunta “não eram
a sua opinião?, e Clara continua o jogo de cinco anos antes, “se quer que lhe minta,
respondo afirmativamente”, se for para continuar mentindo ela diz que era verdade. Em
que momento Sara está falando a verdade, ela mantém oculto.
LUIZ - Então deveras vale alguma coisa elevar-se acima dos espíritos vulgares, e ver a
realidade das coisas pela porta da imaginação?
CLARA - Se vale! A vida fora bem prosaica se lhe não emprestássemos cores nossas e não a
vestíssemos à nossa maneira.
LUIZ - Perdão, mas...
CLARA - Pode averbar-me de suspeita, está no seu direito. Nós outras, as mulheres, somos as
filhas da fantasia; é preciso levar em conta que eu falo em defesa da mãe comum.

Luiz pergunta “vale alguma coisa elevar-se acima dos espíritos vulgares, e ver a
realidade das coisas pela porta da imaginação?”, tem algum valor fazer isso?, e Clara
“a vida fora bem prosaica se lhe não emprestássemos cores nossas e não a vestíssemos à
nossa maneira”, defendendo o iludir, “pode averbar-me de suspeita... nós outras, as
mulheres, somos as filhas da fantasia”, a mulher é filha da fantasia, “eu falo em
defesa da mãe comum”, Clara defende a mãe comum a todas as mulheres, o poder de
jogar com o oculto encobrindo com imagens. Ela joga por meio imagens, faz o jogo da
fantasia, para pescar o que lhe interessa.

AO PÉ DA CERCA
A primeira cousa que Estêvão pôde descobrir é que a vizinha era moça. Via-lhe o perfil, em cada
aberta que deixavam as árvores, um perfil correto e puro, como de escultura antiga. Via-lhe a
face cor de leite, sobre a qual se destacava a cor escura dos cabelos, não penteados de vez, mas
frouxamente atados no alto da cabeça, com aquele desleixo matinal que faz mais belas as
mulheres belas. O roupão - de musselina branca - finamente bordado, não deixava ver toda a
graça do talhe, que devia ser e era elegante, dessa elegância que nasce com a criatura ou se apura
com a educação, sem nada pedir, ou pedindo pouco à tesoura da costureira. Todo o colo ia
coberto até o pescoço, onde o roupão era preso por um pequeno broche de safira. Um botão,
do mesmo mineral, fechava em cada pulso as mangas estreitas e lisas, que rematavam em
folhos de renda.
Estêvão, da distância e na posição em que se achava, não podia ver todas estas minúcias que
aqui lhes aponto, em desempenho deste meu dever de contador de histórias
(A mão e a luva, 1874)

“... não podia ver todas estas minúcias que aqui lhes aponto”, na leitura de Machado de
Assis, o leitor corre o risco de terminar ficando com Ideias de canário (1895). A
história é uma manipulação na mente do leitor, que não enxerga o “contador de
histórias”, pois ele passa oculto por detrás do texto, por debaixo das palavras, a partir
de onde cria as imagens na mente do leitor. Da posição de contador de histórias
Machado mostra a manipulação doutrinária!
LUIZ - Está-me fazendo crer em milagres.
CLARA - Onde vê o milagre?
LUIZ - Na conversão de V. Excia.
CLARA - Não crê que eu esteja falando a verdade?
LUIZ - Creio que é tão verdadeira hoje, como foi há cinco anos, e é nisso que está o milagre
da conversão.

3
No retorno de Luiz, Clara teria passado por um “milagre da conversão”, mas ela
continua o jogo de quando analisava com qual ficaria entre Luiz e Pedro, tendo optado
por Pedro, e é pega de surpresa por Luiz, que se casa com a filha de Clara – que seria
esposa, será sogra!

A frase “é tão verdadeira hoje, como foi há cinco anos” se repete, modificada, em
Iaiá Garcia (1878), onde Valéria, conversando com Luís Garcia, queria que seu filho
Jorge fosse à guerra, para separá-lo de Estela, e pede a Luís que convença Jogre,
porque, assim, caso o rapaz venha a morrer na guerra, o responsável será Luis, e não sua
mãe! A mulher busca esse recurso de salvar sua imagem de ser a responsável.

LUIS - O obséquio que hoje exige de mim, quem sabe se mo não lançará em rosto um dia como
ato de leviandade?
VALERIA - Nunca.
LUIS - Nesse dia - observou Luís Garcia sorrindo levemente - há de ser tão sincera como hoje.

Luis pergunta “o obséquio que hoje exige de mim, quem sabe se mo não lançará em
rosto um dia como ato de leviandade?”, ao que Valeria responde “nunca”, ela nunca
faria isso, e Machado faz Luis duvidar da sinceridade de Valeria “nesse dia há de ser
tão sincera como hoje”, uma ironia, no futuro seria tão insincera quanto no momento
presente, e Valeria, petalogicamente, rebate:

VALERIA - Oh! O senhor está com ideias negras! Eu não creio na morte; creio só na vida e
na glória. A guerra começou há pouco e há já tanto herói! Meu filho será um deles.

Valeria adota o escape clássico “eu não creio na morte; creio só na vida e na glória”, ela
torce a rédea da conversação,3 “a guerra começou há pouco e há já tanto herói! Meu
filho será um deles”, o filho dela poderia morrer na guerra, mas ela não quer pensar
nisso, seu objetivo imediato é resolver o problema que a angustia, aqui e agora, mesmo
que crie outro pior ainda4.

Visitando uma amiga num sábado de 1994, e vendo seu filho de dois anos brincando ao redor
da piscina, ‘a bola pode cair na piscina, o menino distraído ir pegar...’, ‘da janela posso ver,
estou sempre atenta’, ‘mas uma distração momentânea...’, na segunda-feira, o telefonema ‘J. P.
caiu na piscina e afogou-se’, uma tragédia. Dois anos depois, voltando a visitar a amiga, foi
convidado a não mais voltar ‘éramos felizes, você trouxe mau-olhado’. Ou seja, a
responsabilidade pelo acidente foi transferida para quem, numa visita, fez o alerta. Se não
tivesse havido aquela visita, teria acontecido a morte? Foi devido ao alerta que o menino se
afogou?

Se a mulher evita assumir a responsabilidade, transferindo-a a outros, como é possível


que queira ocupar posição de poder? Parece que pesa sobre a mulher o mito da gravidez
divina de Maria, criando um problema, que Machado explora em Dom Casmurro: “Sei
a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-
se? É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus; eu creio... mas não falemos
nisto; não nos fica bem dizer mais nada”, o filho de Capitu tem o rosto de Escobar e “a
vontade de Deus explicará tudo”: para onde vai a responsabilidade? Seria de Deus?

3
Torcer a rédea da conversa é comentado no capítulo O Espelho.
4
Sobre torcer a rédea da conversação ver variações do verbo torcer no Capítulo O Espelho.
4
Machado ressalta a propriedade especular, argumentar sobre o argumento, vindo do
outro, e pela esquiva, fazer o giro pelo verso, a grande dificuldade na discussão de
relacionamento.

Valéria não respondeu.


— Sei o motivo, disse ele daí a um instante.
— Sabe? interrompeu Valéria como tocada por uma mola.
— Suspeito; e se me permite ser franco, direi que o acho singular, pelo menos não há
proporção entre a causa e o efeito. Seu filho ama. Trata-se de uma mulher de certa espécie?
São correrias da mocidade, e as dele não são tais que façam escândalo, creio eu. Trata-se de
alguma moça, cuja aliança lhe não pareça aceitável? Nada lhe direi a tal respeito; mas reflita
primeiro antes de o mandar ao Paraguai.

A frase “não há proporção entre a causa e o efeito” revela o perigo de inserir, entre a
causa e o efeito, dados imaginários, suposições fantasiosas, elementos de fantasia, que o
Uber esteja sendo lucrativo quando, na verdade, é operação deficitária.

Uma amiga pergunta à mãe ‘como está seu filho no Uber?’,‘vai muito bem’, em privado, com o
marido ‘este mês o prejuízo no Uber foi de cinco mil reais’ e queria que o marido dividisse o
prejuízo, ele se negando, depois de dois anos tomando prejuízo, ela desistiu do Uber, e o marido
colocou o rapaz em um empreendimento lucrativo. O rapaz engravidou uma funcionária de
padaria, a mãe, querendo salvar as aparências, tentou enviar o filho para a Irlanda, houve
objeção do marido, o filho assumiu o relacionamento, e o casal teve um neto.

A imagem pode de levar a tentar as mais extravagantes saídas, por isso, a necessidade
de um suporte externo, um agente vindo de fora, para proteger a imagem.

Valéria prendeu a mão direita de Luís Garcia entre as suas; refletiu longo tempo; depois
disse com voz sumida:
— Suponha... que se trata... de uma senhora casada?
Luís Garcia curvou a cabeça com um gesto de assentimento. Como seus olhos baixassem ao
chão, não pôde ver no rosto da viúva uma ligeira cor que avermelhou e desapareceu. Se lha
visse, se a fitasse imperiosamente, talvez a viúva baixasse os olhos envergonhada de haver
mentido. Luís Garcia não viu nada. Calou-se, aprovou a viúva, e prometeu auxiliá-la na obra
de poupar a seu nome a nódoa de uma felonia [perfídia, deslealdade, traição].
Era noite quando Luís Garcia saiu da casa de Valéria. Ia aborrecido de tudo, da mãe e do filho,
— de suas relações naquela casa, das circunstâncias em que se via posto. Galgando a ladeira
a pé, detendo-se de quando em quando a olhar para baixo, ia como apreensivo do futuro,
supersticioso, tomado de temores intermitentes e inexplicáveis. Não tardou a aparecer lhe a
luz da casa, e, daí a pouco, a ouvir a cantilena solitária do escravo e as notas rudimentais da
marimba. Eram as vozes da paz; ele apertou o passo e refugiou-se na solidão.

5
“Valéria prendeu a mão direita de Luís Garcia entre as suas”, envolvendo-o
afetivamente, pegar na mão é um recurso que independe de gênero em Machado
“Gonçalves, que é isso? — perguntou Quintanilha, pegando-lhe nas mãos, assustado”
(Pílades e Orestes, 1903)

Temos que ter firmeza em nossas opiniões, nossos modos e nossas certezas. Temos que impor
nosso modo de ser, mas impor interiormente, para que as pessoas recebam essas imposições
sem revolta. Não podemos vacilar, nem tão pouco nos deixar dominar.

Luís “ia aborrecido de tudo” sentindo na pele o peso da responsabilidade, lembrava


das “circunstâncias em que se via posto”, ele se via enredado nas tramoias de Valeria,
posto em uma situação embaraçosa, poderia ser culpado pela morte de um rapaz, parece
loucura cair nesse cilada deixando-se usar em benefício do outro, Luís, quando tinha
sido chamado por Valéria, não sabia das intenções ocultas dela, estava “apreensivo do
futuro, supersticioso, tomado de temores intermitentes e inexplicáveis”, o autor
mostra o princípio do que passou a ser denominado relacionamento tóxico, onde o
Narciso A, no amor por si mesmo, envolve no seu enredo o outro Narciso, B, fazendo
com que B, comovido, resolva por A uma questão na qual B fica responsável e A fica
isento,

‘Quem fala ao telefone com essa voz tão suave?’, ‘É a Josefina, meu amor!’, a esposa tinha
telefonado para o marido ir para casa solucionar um convite de casamento para a filha dele,
uma situação embaraçosa que a esposa chamou o pai para resolver, na verdade, era uma
cilada, a filha, sem convite para o namorado, estava nervosíssima, houve briga, como resultado,
o pai perdeu o relacionamento com a filha, a esposa tinha interesse em caracterizar atitude
machista do marido, para depois, usar contra ele, numa atitude de má-fé como no caso Chris
Rock contra Will Smith. As intenções ocultas irão aparecer a posteriori.

Machado advoga que “a culpa não foi dos gregos, mas dos troianos, que não souberam
guardar a integridade e independência da sua missão”, por esse princípio, a pessoa,
quando penetrada por trás, e cai em ciladas, a responsabilidade seria dela, o que
transfere a responsabilidade pelo assalto para o assaltado. Mas ainda cabe ao assaltado
denunciar o assaltante5.

Em Casa Velha (1885) Machado constrói uma situação onde o reverendo, um estranho à
família, entra na intimidade, fica ao lado da loucura que ali acontece, e termina
atormentado:

- As mães como eu não podem com os filhos. O meu foi criado com muito amor e bastante
fraqueza. Tenho-lhe pedido mais de uma vez; ele recusa sempre dizendo que não quer separar-
se de mim. Mentira! A verdade é que ele não quer sair daqui. Não tem ambições, faz estudos
incompletos, não lhe importa nada. Há uns parentes nossos em Portugal. Já lhe disse que fosse
visitá-los, que eles desejavam vê-lo, e que fosse depois à Espanha e França e outros lugares. José
Bonifácio lá esteve e contava coisas muito interessantes. Sabe o que ele me responde? Que tem
medo do mar; ou então repete que não quer separar-se de mim.
- E não acha que esta segunda razão é a verdadeira?
D. Antônia olhou para o chão, e disse com voz sumida:
- Pode ser.

5
Ver Capítulo O Fato, o Jornal e o Fiat.
6
Machado penetra pelo verso da cena social indo ao mais íntimo da cena familiar, e traz
ao leitor as tramoias ocultas da sociedade. D. Antônia, uma mulher da nobreza, esposa
de político de renome, não queria seu filho Felix casado com uma mulher de classe
baixa, e pretendia enviá-lo à Europa.

- Se é a verdadeira, haveria um meio de conciliar tudo: era irem ambos, e eu com ambos, e
para mim seria um imenso prazer.
- Eu?
- Pois então?
- Eu? Deixar esta casa? Vossa Reverendíssima está caçoando. Daqui para a cova. Não fui quando
era moça, e agora que estou velha é que hei de meter-me em folias... Ele sim, que é rapaz, - e
precisa. Tive uma suspeita súbita:
- Minha senhora, dar-se-á que ele padeça de alguma moléstia que...
- Não, não, graças a Deus! Digo que precisa, porque é rapaz, e meu avô dizia que, para ser
homem completo, é preciso ver aquelas coisas por lá. É só por isso. Não, não tem moléstia
nenhuma; é um rapaz forte.
Era impossível, ou, pelo menos, indelicado tentar obter a razão secreta deste pedido, se havia
alguma, como me pareceu. Pus termo à conversação dizendo que ia convidar o rapaz. D. Antônia
agradeceu-me, declarou que não me havia de arrepender do companheiro, e fez grandes elogios
do filho. Quis falar de outras coisas; ela, porém, teimava no assunto da viagem, para
familiarizar-nos com a idéia, e moralmente constranger-me a realizá-la. No dia seguinte
voltou à biblioteca, mas com outro pretexto: veio mostrar-me uma boceta de rapé, que fora do
marido, e que era, realmente, uma perfeição. Não tive dúvida em dizer-lhe isto mesmo, e ela
acabou pedindo-me que a aceitasse como lembrança do finado. Aceitei-a constrangido; falamos
ainda da viagem, duas palavras apenas, e fiquei só.

D. Antônia havia acolhido Cláudia, de apelido Lalau, que, por ser graciosa, despertou o
interesse de Félix, e agora, d. Antônia queria enviar Félix para longe, para que
esquecesse de Cláudia! Tu, psicólogo sutil6” sabe qual é a “razão secreta deste pedido”?
Psicólogo sutil é a função realizada por Machado, que vai ao mundo privado, e de lá
traz a loucura da psicologia. Por meio do Gira, ele mostra a loucura do que acontece na
família de d. Antônia:

Era curioso vê-los. Lalau perdia a inquietação; ficava séria e tranqüila, durante dez, quinze,
vinte minutos, a escutá-lo. O Gira (nunca lhe conheci outro nome) alegrava-se ao vê-la. Com a
razão, perdera a convivência dos mais. Vivia entregue aos pensamentos solitários,
mergulhado na inconsciência e na solidão. A moça representava aos olhos dele alguma
coisa mais do que uma simples criatura, era a sociedade humana, e uma sombra de sombra
da consciência antiga. Ela, que o sentia, dava-lhe essa curta emersão do abismo, e uma ou duas
vezes por semana ia conversar com ele.
D. Antônia parou. Não contava com a moça ali, ao pé da porta da sacristia, e queria falar-me em
particular, como se vai ver. Compreendi-o logo pelo desagrado do gesto, como já suspeitara
alguma coisa ao vê-la preocupada. No momento em que chegávamos, Lalau perguntou ao
Gira:
- E depois, e depois?
- Depois, o rei pegou gavião, e gavião cantou.
- Gavião canta?
- Gavião? Uê, gente! Gavião cantou: Calunga, mussanga, monandenguê... Calunga, mussanga,
monandenguê... Calunga...
E o preto dava ao corpo umas sacudidelas para acompanhar a toada africana. Olhei para Lalau.
Ela, que ria de tudo, não se ria daquilo, parecia ter no rosto uma expressão de grande
piedade. Voltei-me para D. Antônia; esta, depois de hesitar um pouco, deliberou entrar na
6
Invocatória feita por Machado em Uma senhora (1884)
7
sacristia, cuja porta estava aberta. Lalau tinha-nos visto, sorriu para nós e continuou a falar com
o Gira. D. Antônia e eu entramos.

Quem suporta a loucura do que uma mulher pode fabricar no arranjo familiar? Os
diálogos de Machado mostram a loucura do espaço privado, que, em público,
desconhecem.

“Não obstante, a mocinha referiu ainda o que se passara e as suas sensações alegres. Confessou
que não tinha medo de nada, e até que queria ver um desastre para compreender bem o que
era”

Cláudia viu o desastre, compreendeu bem o que era, e concluiu que não devia entrar
naquela família.

para compreender que não devia entrar nela.

mostram como ações que aparecem na vida pública podem ser praticadas por outra
pessoa isentando o solicitante, neste caso, d. Antônia, de responsabilidade, que, então,
pode auferir apenas o lado vantajoso da operação, e aparecendo socialmente como
superior a quem lhe deu suporte.

O reverendo ficou só, “fiquei só”, longe de quem queria que ele resolvesse os
problemas. Foi para a biblioteca.

Os livros, arranjados nas estantes, olhavam para mim, e talvez comentavam a minha
agitação com palavras de remoque, dizendo uns aos outros que eles eram a paz e a vida, e
que eu padecia agora as conseqüências de os haver deixado, para entrar no conflito das
coisas.

Os livros “olhavam para mim”. Por esse estilo, o autor indica a “situação esquerda”,
“até que o jantar veio pôr termo à situação esquerda em que se achavam os dois7”, a
posição deslocada, na qual se encontrava o reverendo, se vendo fora de lugar – o que eu
estou fazendo aqui, envolvido nessa confusão?, tanto quanto Luís Garcia, nas
“circunstâncias em que se via posto” – por Valeria. A pessoa pode se colocar onde
jamais deveria, quando seus próprios sentimentos a manipulam tentando socorrer quem
ama, pelo mito do herói, aquele que sente a dor do outro, e corre para socorrê-lo.

Por transferência afetiva, ofereceu-se para ajudar sua cunhada que se encontrava com
dificuldades em ocupar seu marido, trinta anos sem renda, despachou-o para a casa do pai na
Alemanha, que não o recebeu, nada conseguindo, retornou, foi feita uma reunião familiar para
acolhê-lo de volta, o socorro foi oferecido, ‘vamos então colocar o negócio que vínhamos
combinando na Alemanha?’, a cunhada passou uma reprimenda ‘não pedimos ajuda!, ele é
importante para mim como meu auxiliar’ humilhando o cunhado, colocando-o em situação
esquerda, fora de lugar, e a esposa, ao contrário de proteger sua irmã, se omitiu, dois anos
depois, a cunhada faleceu de câncer – é a doença das aparências.

Sobre ver-se fora de lugar, Jacques Lacan escreveu, no Seminário 11 (1964), escreveu:

7
“A chegada de D. Antônia salvou uma situação esquerda para Mendonça”, “Leandro não reparava que
isso mesmo era a conseqüência natural da situação esquerda em que se colocara depois de saber que o
filho amava Helena”
8
Esta estória é verdadeira. Data de alguma coisa como meus vinte anos - e nesse tempo,
certamente, jovem intelectual, eu não tinha outra preocupação senão a de ir a algum lugar, de
me banhar em alguma prática direta, rural, caçadora, e mesmo marinha. Um dia eu estava
num barquinho com algumas pessoas, membros de uma família de pescadores de um pequeno
porto. Nessa ocasião, nossa Bretanha ainda não estava nas condições de grande indústria, nem da
frota de pesca, o pescador pescava em sua casquinha de noz, com seus riscos e perigos. Eram
esses riscos e perigos que eu gostava de partilhar, mas não eram riscos e perigos o tempo todo,
havia também dias de bom tempo. Um dia, então, em que esperávamos o momento de puxar as
redes, o chamado Joãozinho, vamos chamá-lo assim ele desapareceu, como toda a sua família,
exatamente pela tuberculose, que era nessa época a doença verdadeiramente ambiente na qual
toda aquela camada social se deslocava - me mostra alguma coisa que boiava na superfície das
ondas. Era uma latinha, e mesmo precisamente, uma lata de sardinhas. Ela boiava ali ao sol,
testemunha da indústria de conserva, que estávamos, aliás, encarregados de alimentar. Ela
respelhava ao sol. E Joãozinho me diz - Tá vendo aquela lata? Tá vendo? Pois ela não tá te
vendo não!
Ele achava muito engraçado este episódio; eu achava menos. Procurei saber por que eu o
achava menos engraçado. É muito instrutivo.
Primeiro, se tem sentido Joãozinho me dizer que a lata não me via, é porque, num certo sentido,
de fato mesmo, ela me olhava. Ela me olha, quer dizer, ela tem algo a ver comigo, no nível
do ponto luminoso onde está tudo que me olha, e aqui não se trata de nenhuma metáfora.

“Tá vendo aquela lata? Tá vendo? Pois ela não tá te vendo não!”, o “jovem intelectual”
– Lacan se autodenomina assim – “alguma coisa como meus vinte anos”, em “uma
família de pescadores”, estava fora de lugar, e quem lhe chamou a atenção foi um
menino, seria alegoria criada por Lacan para a fábula O rei está nu, que necessitou um
menino para dizer uma verdade que todos viam, um menino mostrou que a lata devia
acusá-lo do fora-de-lugar em que se achava.

Esse sentimento de fora de lugar resulta do efeito reverso vindo de fora sobre o sujeito,
a marca da formação do Eu, que vem de fora para dentro, “meu pai ralhou comigo”,
marca a experiência trágica do ser humano que não vem ao mundo com um Eu
biológico, mas como conquista adquirida após ter vivido a experiência de sua formação.

Será por essa marca que a pessoa perceberá, après-coup, “eu pertenço a uma família de
profetas après coup, post factum, depois do gato morto” (Bons dias, 19 de maio de
1888), o après-coup instala um problema para o jogo do relacionamento, e Machado
compreende o efeito reverso da psicologia, que se produz por uma propriedade da
linguagem, pela qual a pessoa vai perceber, somente après-coup, que algo lhe passou
Oculto, que ela tinha trabalhado em em função de outra e em prejuízo de si mesma,
quer dizer, agiu como se fora um masoquista.

Fato que levou Freud ao tema do Narcisismo (1914) e posteriormente ao Problema


econômico do Narcisismo (1924).

Ainda não consigo te encontrar. Outro dia você citou sobre uma mulher no pilates, que estava
com dor na coluna, um sintoma, por estar gorda. Provavelmente um sintoma de uma coisa maior,
ansiedade ou depressão, tamponada com comida. Você disse para ela qual era a causa e ela se
melindrou. Você lembrou da fabula do menino que disse: ‘o rei está nu’. Nela, ao contrário da
mulher, o rei ouviu o menino, se deu conta da situação, teve sabedoria e humildade e tomou as
devidas providências. No caso da gorda, não, ela não aproveitou a coragem de quem disse a
causa. Ao invés de ouvir, pesquisar e se tratar, quis calar e se vingar de quem disse: você está
‘gorda’. Qualquer semelhança com sua situação é mera coincidência? Eu disse e acredito que
você está doente e precisa se tratar. Quem faz o que você está fazendo está gordo, digo,
‘doente’. E se as outras pessoas concordam ...a culpa é de quem fala? Veja o que você está
9
fazendo. Procure as pessoas que te querem bem e ouça em silêncio, sem revidar, para processar.
Como elas estão vendo as suas ações atuais?

Enviou essa mensagem para o marido, que havia relatado ter visto na fisioterapia uma
mulher obesa, com expressão de sofrimento insuportável, e aconselhado redução de
peso, a mulher entrou com processo por desrespeito à imagem, com isso, o marido
queria mostrar à esposa o quanto é difícil mostrar a ela as atitudes pelas quais ela está
destruindo sua família. Que é o que Machado mostra com as atitudes de Estela em Iaiá
Garcia (1878) e de d. Antônia em Casa Velha (1885).

Antes que case (1872)

A sua beleza era incontestável; reunia a graça brasileira à gravidade britânica, e em tudo
parecia destinada a dominar os homens; a voz, o olhar, as maneiras, tudo possuía um
misterioso condão fascinador. Além disto, era rica e ocupava uma invejável posição na
sociedade. Dizia-se à boca pequena que algumas paixões havia já inspirado a interessante moça;
mas não constava que ela as houvesse tido em sua vida.
Se isto era assim, escusado é dizer que a mesma Sara conhecia o jogo dos três rapazes, porque
em geral a mulher sabe que é amada por um homem, antes mesmo que ele o perceba.
Longe de parecer incomodada com o fogo dos três exércitos, Sara os tratava com tanta
bondade e graça que parecia indicar uma criatura coquete e frívola. Mas quem atentasse
alguns largos minutos, conheceria que ela era mais irônica que sincera, e, por isso mesmo que
os igualava, os desprezava a todos.
Tardaria muito que os três pretendentes se abrissem francamente e dissessem todas as suas idéias
a respeito de Sara.
Andrade auscultava o espírito da moça com perseverança e solicitude; nada lhe era
indiferente; um livro, uma frase, um gesto, uma opinião, tudo Andrade ouvia com atenção
religiosa, tudo examinava cuidadosamente.
Para Andrade foi um raio de luz, — ou pelo menos um indício veemente.
Notou ele que Sara ouvira a notícia com atenção profunda demais para o seu sexo, e depois
ficara algum tanto pensativa.
— Diga-me, perguntou James, este Pedro sobe sempre até ao fim?

Pedro é uma peça que havia sido comentada antes por Machado:
Acabo e assistir, há meia hora, à estréia do Sr. Furtado Coelho no teatro de S. Januário. O drama
escolhido foi o Pedro de Mendes Leal Junior.
É muito conhecido esse drama para que me ocupe em uma narração estéril do entrecho. Casa-se
perfeitamente ao meu espírito a idéia vigorosa dessa bela composição. Separo-me talvez em
alguns pontos na maneira de vestir o pensamento.
O que se nota sobretudo no Pedro é a tendência liberal que têm tornado recentemente os vultos
da literatura.

A pergunta que ficou foi “Pedro sobe sempre até ao fim?”

— Não o disse ele no primeiro ato? respondeu Andrade. Subir! subir! subir! Quando um
homem sente em si uma grande ambição, não pode deixar de realizá-la, porque justamente nesse
caso é que se deve aplicar o querer é poder.
— Tem razão, disse Sara.
— Pela minha parte, continuou Andrade, nunca deixei de admirar este caráter soberbo, natural,
grandioso, que me parece falar ao que há de mais íntimo em minha alma! Que é a vida sem uma
grande ambição?

10
Celebrado o pacto, cada um dos nossos heróis procurou descobrir o ponto vulnerável de
Sara.
Durante esta curta batalha, dada pelo jovem advogado, os outros pretendentes não estavam
ociosos, e cada qual por si procurava descobrir o ponto fraco na couraça de Sara.

Andrade estudava o caráter de Sara para descobrir seu ponto vulnerável.

Andrade estava satisfeito e feliz. Simulou enquanto pôde o caráter que não tinha; mas, le
naturel chassé, revenait au galop. A pouco e pouco iam manifestando-se as preferências do
rapaz por uma vida calma e pacífica, sem ambições, nem ruído.
Sara começou a notar que a política e todas as grandezas do Estado aborreciam sobremaneira o
marido. Lia alguns romances, alguns versos, e nada mais, aquele homem que, pouco antes de
casar, parecia destinado a mudar a face do globo. Política era para ele sinônimo de
dormideira.
Tarde conheceu Sara quanto se havia enganado. Grande foi a sua desilusão. Como ela
possuísse realmente uma alma ávida de grandeza e poderio, sentiu amargamente este
desengano.

Depois de casada, Sara veio a conhecer quem realmente era Andrade.

Quis disfarçá-lo, mas não pôde.


E um dia disse a Andrade:
— Por que razão a águia perdeu as asas?
— Qual águia? perguntou ele.
Andrade compreendeu a intenção dela.
— A águia era apenas uma pomba, disse ele, passando-lhe o braço à roda da cintura.
Sara recuou e foi encostar-se à janela.
Caía, então, a tarde; e tudo parecia convidar aos devaneios do coração.
— Suspiras? perguntou Andrade.
Não teve resposta.
Houve longo silêncio, interrompido apenas pelo tacão de Andrade que batia compassadamente
no chão.
Afinal, levantou-se o rapaz.
— Olha, Sara, disse ele, vês este céu dourado e esta natureza tranqüila?
A moça não respondeu.
— Isto é a vida, isto é a verdadeira glória, continuou o marido. Tudo mais é manjar de almas
doentias. Gozemos isto, que deste mundo é o melhor.
Deu-lhe um beijo na testa e saiu.
Sara ficou longo tempo pensativa, à janela; e não sei se a leitora achará ridículo que ela vertesse
alguma lágrima.
Verteu duas.
Uma pelas ambições abatidas e desfeitas.
Outra pelo erro em que estivera até então.
Porquanto, se o espírito parecia magoado e entorpecido com o desenlace de tantas ilusões,
dizia-lhe o coração que a verdadeira felicidade de uma mulher está na paz doméstica.
Que mais lhe direi para completar a narrativa?
Sara disse adeus às ambições dos primeiros anos, e voltou-se toda para outra ordem de desejos.
Quis Deus que ela os realizasse. Quando morrer não terá página na história; mas o marido poderá
escrever-lhe na sepultura: Foi boa esposa e teve muitos filhos.

11
O caso parece ficção, mas é real, Machado retratava na época uma história de uma
cirurgiã-dentista que havia recebido várias propostas de casamento, equivocadamente
estimulada viajou para a terra de seu pai, lá casou com um homem cuja procedência não
conhecia, que dava a impressão de ser uma águia, “a águia era apenas uma pomba”,
havia se equivocado, a águia era um bon-vivant, “tarde conheceu Sara quanto se
havia enganado. Grande foi a sua desilusão”, viveu desiludida “sentiu amargamente
este desengano”, viveu uma vida de desengano com o marido, teve filhos, trinta anos
depois a tristeza corroeu por dentro contraiu um câncer e veio a óbito.

Psicologia e o Oculto, título deste capítulo, foi tirado do livro Psychology and the
Occult8 (1902). Jung, aos vinte e sete anos de idade, médico psiquiatra, pretendia tratar a
loucura humana pelo Ocultismo, e foi estruturando melhor essa ideia absorvendo
conhecimentos aproximando-se de Freud, o oculto não seria o misticismo, mas estaria
no inconsciente, que ele transportou para o inconsciente coletivo, e foi transformando
as cartas e os textos que lia em Freud na teoria que lhe interessava, desviando a
psicanálise, e Freud o excluiu do movimento psicanalítico, publicou o artigo O
Narcisismo: uma introdução (1914), além de outros referentes ao ver para trás.

Entre Jung e Freud aconteceu uma relação Pílades e Orestes, a penetração pelo verso,
que pode ser comprovado pela carta de Freud a Jung de 12 de novembro de 1911,
sobre a Primeira Parte de Transformações e símbolos da libido, de Jung, publicado em
junho/1911:

“Uma das melhores obras que li (novamente) foi a de um famoso autor sobre ‘Transformações
e Símbolos da Libido’. Nessa obra, muitas coisas são tão bem expressas que pareçam assumir
forma definitiva e, sob essa forma, imprimem-se na memória”
“Às vezes tenho a impressão de que o seu horizonte tem sido por demais limitado pelo
Cristianismo. E, por vezes, o autor parece estar mais por cima do material do que por
dentro dele. Mas é a melhor coisa que esse promissor ensaísta escreveu até agora, embora
possa vir a fazê-lo ainda muito melhor” (A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl
G. Jung, William McGuire, Rio de Janeiro: Imago Ed, 1993, carta 280F, p. 466).

Freud agora usa de ironia com o amigo falando na terceira pessoa, enfatiza que leu
novamente – leu uma segunda vez, prestando mais atenção – a obra referindo-se ao
autor como “famoso autor... promissor ensaísta) que poderá escrever “muito melhor”.
“Na parte referente aos dois modos de pensamento, deploro a sua extensa leitura. Gostaria que
tivesse dito tudo com suas próprias palavras. Cada pensador tem o seu próprio jargão e
todas aquelas traduções tornam-se tediosas. Por outro lado, sinto-me satisfeito com os muitos
pontos que estão de acordo com coisas que eu já disse ou gostaria de dizer” (Idem).

“Dois modos de pensamento” é o artigo Dois princípios de funcionamento mental


publicado junto com o artigo de Schreber, em junho/1911: modo privado de pensar
(princípio do prazer) e modo público de se apresentar (princípio da realidade). “Gostaria
que tivesse dito tudo com suas próprias palavras”. Mas Jung usava palavras e ideias
tiradas das cartas que recebia de Freud.

“Uma vez que esse autor é o senhor mesmo, continuarei mais diretamente e admito: para mim
é um tormento pensar, quando concebo aqui e ali uma ideia, que possa estar tirando algo do
senhor ou apropriando-me de algo que poderia muito bem ter sido adquirido pelo senhor.
Quando isso acontece, sinto uma perda; comecei diversas cartas oferecendo-lhe várias ideias e
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Disponível em https://blog.umamaya.com/wp-content/gold/Jung/Psychology_and_The_Occult.pdf.
12
observações para seu próprio uso, mas nunca chego a terminá-las porque isso me parece
ainda mais indiscreto e indesejável do que o procedimento contrário. Por que, meu Deus, me
permito segui-lo nesse campo?” (Idem).

Freud remove a máscara do autor revelando o Oculto “esse autor é o senhor mesmo,
continuarei mais diretamente”, um sentimento de decepção e de raiva se apossando de
Freud a partir de novembro de 1911. A ironia aparece do princípio ao fim nessa carta.
Sobre a ironia, Jacques Lacan escreveu “somente temos o equívoco – a ironia – como
arma contra o sinthome. Com efeito, é somente pelo equívoco que a interpretação
opera”, equivocar traz benefícios, no caso, Freud fazendo notar a Jung que estava
percebendo as manobras ocultas dele.

Diz que o autor é famoso e que “é a melhor coisa que esse promissor ensaísta escreveu
até agora, embora possa vir a fazê-lo ainda muito melhor”. Parece estar prevendo o
futuro quando escreve isso. De fato, em breve “futuro”, junho de 1912, o famoso autor
usou melhor ainda as palavras de Freud quando publicou a Segunda Parte, desta vez,
inclusive, citando Freud contra Freud, e para um futuro mais adiante depois da ruptura
Jung melhorou muito sua obra adulterando conceitos criados Freud.

Freud tinha em Jung seu príncipe herdeiro (1909), mas ao ler Transformações e
Símbolos da Libido, Primeira Parte, de junho de 1911, sua confiança começa a vacilar.

“Comecei diversas cartas oferecendo-lhe várias ideias e observações para seu próprio uso,
mas nunca chego a terminá-las porque isso me parece ainda mais indiscreto e indesejável do que
o procedimento contrário” (Idem).

Agora Freud “nunca chega a terminar” as “diversas cartas” que escreve a Jung onde
ofereceria a ele “várias ideias e observações para seu próprio uso”. A partir de agora,
fornecer ideias a Jung seria “indiscreto e indesejável” porque estaria fornecendo ideias
para serem usadas contra o fornecedor. O discípulo segue um rumo cujo “horizonte
tem sido por demais limitado pelo Cristianismo”. Freud era avesso à religião. Assim
como Machado. Ele estava iniciando o artigo Totem e tabu (1913) justamente para
desmistificar a religião. Freud se pergunta “por que, meu Deus, me permito segui-lo
nesse campo?”

A ironia desta carta será combustível para a desconfiança que começará a aparecer em
Jung. Mesmo assim, um mês depois, em 11 de dezembro de 1911, Jung escreve:

“Na medida do possível anotarei as suas objeções ao meu método de tratar da mitologia. Ficaria
grato por algumas observações detalhadas, de modo que eu pudesse levar em conta as suas
críticas na segunda parte” (A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung,
William McGuire, Rio de Janeiro: Imago Ed, 1993, carta 287J, p. 477).

Freud havia reclamado “gostaria que tivesse dito tudo com suas próprias palavras”,
mesmo sabendo disso, Jung não desiste de pedir a colaboração de Freud: “ficaria grato
por algumas observações detalhadas... levar em conta suas críticas na Segunda Parte”.

Freud ainda passou todo o ano de 1912 trocando cartas com Jung. Começa, porém, em
junho/1912, a se preparar estudando o Rei Lear e o tema da transmissão da herança.
Jung não teria percebido a mudança de posição subjetiva que ocorreu em Freud. O
uso da ironia revela uma queda do romantismo em direção ao realismo. O emprego da
13
ironia por Freud demonstra que a confiança começa a se deteriorar. Jung não é mais
uma pessoa confiável, e passa a ser suspeito.

O relacionamento de confiança em estilo Pílades e Orestes que se criou entre Freud e


Jung foi de tal sorte que Freud não se dava conta do interesse Oculto de Jung,
posteriormente descoberto, o que deixou perturbado tanto Jung quanto Freud. Jung
ficou doente.

“Jung passou pela sua própria ‘doença criativa’ depois de sua ruptura com Freud... passou por
severas crises psicológicas pelos próximos cinco anos que começou a reduzir somente em
1916 e finalmente terminou em 1920. Em sua autobiografia, Jung nomeia ‘período de
incertezas internas... um estado de desorientação’. Outros nomearam um período perto de um
colapso, ou no mínimo um estado denominado ‘psychoticlike processes’... considera que Jung
se conectou com seu forte Narcisismo e gradualmente aceitou-o; ... o vê como uma bem-
sucedida luta de Jung contra a esquizofrenia” (Christine Gallant, Tabooed Jung: marginality
as power, New York: New York University Press, 1996, p. 81).

A feminista norte-americana Christine Gallant em seu livro Tabooed Jung: marginality


as power escreveu “Banned Voice”, “Jung for feminists”, estabelecendo uma associação
entre a voz banida da mulher e a voz banida de Jung, uma falsa correlação, a menos
que se admita que a mulher tenha provocado o banimento dela, que foi o que fez Jung.

A psicologia reversa de Freud – pelo uso da ironia – tirou Jung de sua posição Oculta
deixando-o exposto, o que o levou à Metanoia – um tipo de loucura. A intenção Oculta
de Jung foi revelada e retornou sobre ele em efeito contrário.

Sobre esse retorno invertido, em O seminário, livro 3, As psicoses (1954), Jacques


Lacan escreveu:

“O sujeito recebe sua mensagem do outro sob uma forma invertida. O que o sujeito me diz está
sempre numa relação fundamental a um fingimento possível, aonde ele me remete e onde eu
recebo a mensagem sob uma forma invertida.

A frase falada, quando repetida pelo outro em Espelho, parece vir de forma invertida.
A noção veio, desde algum tempo, para o primeiro plano das preocupações da ciência, do que
seria uma mensagem. Para nós, a estrutura da fala, eu lhes disse a cada vez que tivemos aqui de
empregar esse termo no seu sentido próprio, é que o sujeito recebe sua mensagem do outro sob
uma forma invertida.

“A estrutura da fala... é que o sujeito recebe sua mensagem do outro sob uma forma
invertida”. Pode-se provocar o outro, e vencê-lo usando as palavras dele contra ele
acusando-o pelo que falou! Parece o mais extremo da loucura. Mas é possível, “venço-
te com as tuas armas!”, depois retornar fazendo o outro perceber que era percebido, que
consentiu porque confiava, e revelar toda a estratégia que usou mostrando em sua
própria face o horror do que fez.
Nós nos limitaremos a constatar a alienação invertida. Detenhamo-nos um instantinho nisto. -
Ei-lo bem contente, vocês estão dizendo para si mesmos, é o que ele nos ensina - na fala, o
sujeito recebe sua mensagem sob uma forma invertida. Não se iludam, não é bem isso. A
mensagem de que se trata não é idêntica, bem longe disso, à fala, ao menos no sentido em que
articulo para vocês esta forma de mediação em que o sujeito recebe sua mensagem do outro
sob uma forma invertida.

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“Alienação invertida”. Lacan repete a ideia várias vezes no seminário sobre a Psicose.

A injúria será o modo de defesa que volta de alguma forma por reflexão na relação delas,
relação que só é compreensível a partir do momento em que ela está estabelecida, se estende
a todas as outras enquanto tais, quaisquer que sejam? Isso é concebível, e já deixa entender que
se trata realmente da própria mensagem do sujeito, e não da mensagem recebida na sua
forma invertida.

A injúria como modo de defesa. Injúria: “injustiça, aquilo que é injusto; tudo o que é
contrário ao direito”, do início ao fim Machado vai mostrar o sujeito injuriado, a fala
podendo passar pelo verso reaparecendo do outro lado como fala invertida, e a pessoa,
parecendo louca, ainda nega, ‘você tinha me pedido ajuda’, ‘eu nunca te pedi nada!’.

Em outros termos, quando um fantoche fala, não é ele que fala, é alguém que está atrás. A
questão é saber qual é a função da personagem que se encontra nessa circunstância. O que
podemos dizer é que, para o sujeito, é manifestamente alguma coisa de real que fala. Nossa
paciente não diz que é um outro qualquer atrás dela que fala, ela recebe dele sua própria fala,
mas não invertida, sua própria fala está no outro que é ela mesma, o outro com minúscula,
seu reflexo no seu espelho, seu semelhante.

“Quando um fantoche fala, não é ele que fala, é alguém que está atrás”, alguém
atrás da pessoa, dando-lhe ideias, ‘amor, faz isso por mim!’, manipulando, incutindo
ideias de canário, a fada madrinha, o tema do ventríloco, o Oráculo, Machado recebeu
de Sílvio Romero sua fala de modo invertido9.

O que perturba a mente humana, que está sendo mostrado neste livro pelo estudo de
Machado, é o chamado Caiporismo como retorno do inesperado, o retorno do golpe, que
pode causar um choque na estrutura psicológica destronando o Eu do seu domínio.

Tem aparecido muito material sobre o Narcisismo, que mais oculta do que mostra o
Narcisismo, e isso ocorre porque Acontecimento é transformado em conceito, quer
dizer, diferente de Machado, que mostra o Narciso penetrando por trás em ato, e não em
conceito. Mas o conceito é também uma maneira que o palestrante tem de penetrar por
trás de quem quer fazer curso e obter certificado. Conceituar é um modo de ocultar.

Não é novidade que a linguagem é o drama da psicologia humana, não é tema novo de
pesquisa, vem da antiguidade, desde Homero, com a ideia do Cavalo de Troia, a pessoa
vai ver apenas em sua própria realidade quando o choque lhe acontecer, pegando-o de
surpresa e ele ficar perdido sem saber o que fazer, nem por onde recomeçar.

Em 2003 meu marido estava muito agressivo, gritando, sentando cadeira na parede, fazendo
buraco no armário, dando soco em mesa, e eu resolvi me separar. Comuniquei à minha mãe,
comuniquei à família dele. Ele veio então pedir para tentarmos nos ajustar. Muito tempo
fizemos terapia com uma psicóloga. E eu pedia para fazermos de novo. Ele não achava
necessário. Então, com a minha decisão de separação ele propôs fazermos terapia de casal.
Iniciamos com Ana. E ele lá era bonzinho, não tinha nada, era eu então? Comecei a falar, na
minha opinião, quem era ele, com fatos e dados. O que ele estava fazendo comigo, o que tinha
feito com minha mãe. DE REPENTE fui chamada pelo terapeuta dele: “seu marido está se

9
A fada madrinha aparece comentada no Capítulo O Oráculo.
15
desestruturando, possível suicídio, surto... parar imediatamente com terapia de casal”. Tomei
um susto. Meu chão se abriu. Ele, meu marido, não tinha estrutura10.

O uso de segredos íntimos em um ataque surpresa, e direto à imagem, pela esposa,


pessoa sua confidente e da mais alta confiança, mostrar quem o outro é, foi suficiente
para a estrutura psicológica estremecer. Como em Bauman, e muitos outros. A vida é
esse permanente teste psiquiátrico, vem testar a estrutura da pessoa, se ela consegue se
reequilibrar e voltar a caminhar na corda bamba tendo ao seu lado permanentemente um
abismo sempre. O ataque psicológico é uma estratégia de modificação da subjetividade.
Não é recomendável. Pode ser fatal. Não se sabe o que advirá depois do abalo.

O capítulo tentou trazer para o leitor a psicanálise que existe na literatura de Machado
de Assis. O autor havia criado o método psicanalítico antes de Freud, não foi
compreendido ao modo como ele escreveu, mesmo tendo informado que havia criado
uma Psicologia nova, que seria descoberta no futuro, em 2222.

Nesse dia - cuido que por volta de 2222 - o paradoxo despirá as asas para vestir a japona de uma
verdade comum. Então esta página merecerá, mais que favor, apoteose. Hão de traduzi-la em
todas as línguas. As academias e institutos farão dela um pequeno livro, para uso dos séculos,
papel de bronze, corte dourado, letras de opala embutidas, e capa de prata fosca. Os governos
decretarão que ela seja ensinada nos ginásios e liceus. As filosofias queimarão todas as
doutrinas anteriores, ainda as mais definitivas, e abraçarão esta psicologia nova, única
verdadeira, e tudo estará acabado. Até lá passarei por tonto, como se vai ver.

É possível que este livro esteja contribuindo para que Machado seja reconhecido como
o criador, antes de Freud, de um método psicanalítico sob a forma de literatura, não
tendo sido compreendido por exigir um elevado nível de compreensão por parte do
leitor.

10
953-2020-21 de julho - MIDIA SOCIAL-Se você não teve ainda uma psicose, não sabe o que está
perdendo. Parece ter se esquecido que justamente devido a isso seu marido era agora psicanalista.
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