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A Hora da Estrela – Parte II

Professor Haroldo Prates


que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que a
DIVISÃO DA OBRA palavra é ação.

Último livro de Clarice Lispector, A Hora da Estrela (Evolar-se: elevar-se voando, ou como que voando,
(1977) é dotado de elementos bastante inusitados, que se desaparecer no espaço; desaparecer; desvanecer-se,
encaminham para a diluição do que é fixo, determinado, dissipar-se; desfazer-se; exalar-se; emanar)
rígido. Em primeiro lugar, pode-se notar a própria estrutura
narrativa, que conta com três histórias que se misturam e se C) O narrador conta como tece a narrativa:
tornam interdependentes:
Proponho-me a que não seja complexo o que
A de Macabéa, escreverei, embora obrigado a usar as palavras que vos
A do seu narrador (Rodrigo S. M.) e sustentam. A história - determino com falso livre arbítrio - vai
A da construção da própria narrativa. Ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes
deles, é claro. Eu , Rodrigo S.M. Relato antigo, este, pois não
O enredo de A hora da Estrela não segue uma ordem quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de
linear: há flashbacks iluminando o passado, há idas e vindas originalidade. Assim é que experimentarei contra os meus
do passado para o presente e vice-versa. hábitos uma história com começo, meio e "gran
Além da alinearidade, há pelo menos três histórias finale"seguido de silêncio e de chuva caindo. (...)
encaixadas que se revezam diante dos nossos olhos de leitor:
Aliás - descubro eu agora - também não faço a
a) Rodrigo S.M. conta a história de Macabéa: menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria. Um
outro escritor , sim, mas teria que ser homem porque
Esta é a narrativa central da obra: o escritor Rodrigo escritora mulher pode lacrimejar piegas.
S.M. conta a história de Macabéa, uma nordestina que ele
viu, de relance, na rua. Imaginações? Veja o trecho:
O NARRADOR E MACABÉA
"Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda
desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua o Rio de Outro elemento atípico está na postura de seu
Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no narrador, a começar por ser homem, deslocado em meio à
rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino fauna de narradoras criadas pela autora. O mais engraçado é
me criei no Nordeste. Também sei das coisas por estar que já no prefácio esse aspecto é desmascarado, pois é dito
vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. Assim que Rodrigo S. M. é a própria Clarice Lispector, em forma
é que os senhores sabem mais do que imaginam e estão heteronímica.
fingindo de sonsos. Ainda sobre esse narrador é interessante notar a
Proponho-me a que não seja complexo o que relação de amor e ódio que se estabelece com sua
escreverei, embora obrigado a usar as palavras que vos personagem, Macabéa. Humilha-a, considera-a reles,
sustentam. A história - determino com falso livre arbítrio - vai insignificante, da mais baixa espécie, mas fica tocado por
Ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes sua fragilidade, tem desejo, muitas vezes, de protegê-la,
deles, é claro. Eu , Rodrigo S.M. Relato antigo, este, pois não ampará-la. É também alguém que precisa de Macabéa,
quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de personagem que inventou para compensar sua situação
originalidade. Assim é que experimentarei contra os meus confortável – que sente ser uma injustiça diante de tanta
hábitos uma história com começo, meio e "gran pobreza. Ademais, a personagem acaba sustentando a vida
finale"seguido de silêncio e de chuva caindo. (...) do narrador, o que até nos faz entender o porquê de delongar
Como a nordestina, há milhares de moças a tratar da morte dela – seria também a sua.
espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de Personagem única em nossa literatura, mais um
balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são aspecto atípico é o seu final, em que Macabéa encontra sua
facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não hora de estrela, ou seja, o grande momento de sua vida, que
existiriam. Poucas se queixam e ao que eu saiba, nenhuma ocorre justo quando morre. É um desfecho irônico que
reclama por não saber a quem. Esse quem será que existe?" provoca uma imprecisão em sua qualificação: é cômico,
trágico ou tragicômico? Escrito às vésperas de sua morte, a
b) Rodrigo S.M. conta a história dele mesmo: obra pode ser entendida como resultado da epifania de
Clarice Lispector, descobrindo o mistério do existir. E para
Esta narrativa dá-se sob a forma do encaixe, falar dessa revelação, acaba criando Macabéa.
paralela à história de Macabéa. Está presente por toda a Eis aqui mais outro fato inusitado. Macabéa,
narrativa sob a forma de comentários e desvendamentos do instrumento que nos mostrará a explosão de viver, é a
narrador que se mostra, se oculta e se exibe diante dos personagem mais vazia de tudo que se possa imaginar,
nossos olhos: inclusive de vida. Não se lembra de seus pais, no sertão de
Alagoas; fora criada por uma tia religiosa, que lhe deu uma
"Pretendo, como já insinuei, escrever de modo cada educação castradora. Torna-se uma mulher sem charme,
vez mais simples. Aliás o material de que disponho é parco e expressividade, inteligência, sensualidade, carne, consciência.
singelo demais, as informações sobre os personagens são O conhecimento que tem do mundo é adquirido de forma
poucas e não muito elucidativas, informações essas que fragmentada – e, por isso, inútil –, enquanto se anunciam as
penosamente me vêm de mim para mim mesmo, é trabalho horas da madrugada (perdida nesse fluir do tempo e na
de carpintaria. insônia), reforça a inutilidade da existência da personagem.
Sim, mas não esquecer que para escrever não- A vida da protagonista, que sonha em ser estrela de
importa-o-quê o meu material básico é a palavra. Assim é cinema, mas que almoça cachorro quente para não gastar
que esta história será feita de palavras que se agrupam em dinheiro, que come em pé nos botecos, que coleciona
frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa propagandas, que sonha com o dia em que conseguirá
palavras e frases. É claro que, como todo escritor, tenho a comprar um pote de creme hidratante (que chegaria a comer,
tentação de usar termos suculentos: conheço adjetivos tal a sua paixão), começa a ganhar sentido no momento em
esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que conhece Olímpico. O relato desse encontro é o mais
despropositado possível. Rodrigo S. M. informa que o havia

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composto numa boa forma literária, mas a faxineira havia imaginando que seu sangue era estrela. É o seu grande
jogado fora seus escritos. Assim, passa a refazê-lo, dessa vez momento, proporcionado pela morte. Havia encontrado um
de forma atirada. Informa apenas que os dois nordestinos se motivo para o seu existir.
reconheceram como que no faro.
OS PERSONAGENS DE CLARICE
MACABÉA / OLÍMPIO / GLÓRIA
A resposta, certamente, era de que Clarice fazia a
A chegada de Olímpico, que se orgulha de ter linha intimista, o olhar para dentro ou cercando as criaturas,
matado um cabra no sertão, que sonha ser deputado e ter a revelando-lhes os desejos, a ausência deles, as paixões, a
boca cheia de dentes de ouro, que admira touradas e ignorância, os mistérios, o sofrimento, a dor de existir. Leia o
açougueiros, em suma, um arrivista que quer subir na vida a trecho:
todo custo, é importante, pois encorpa o caráter da "As histórias de Clarice Lispector não trazem grandes
protagonista. É quando ele diz seu nome – que indica seu acontecimentos; ao contrário, seus personagens são seres
caráter talhado para subir às alturas – que ficamos sabendo o imóveis, retidos em impasses que ultrapassam o cotidiano e
nome de Macabéa. Pode-se até pensar na relação tosca entre que ombreiam com suas bandas de linguagem. São seres
os dois, ela ausente de carisma amoroso – o namoro consiste retidos em teias ( como uma barata, o inseto de G.H., preso
em passeios e momentos em que ficam sentados em bancos numa armadilha), para quem as raízes de sua condição não
de praça –, ele grosseiro e autoritário, Macabéa é quem leva emergem do mundo, mas da própria palavra. Seres
vantagem, pois sua personalidade vai parcamente adoentados da palavra e que, como entre os homeopatas, na
enriquecendo. Isso se torna mais simbólico no dia em que palavra procuram a cura. Só que a língua é o território da
vai ao zoológico. A protagonista fica tão estarrecida quando dessemelhança, fato que os leva a se defrontar, por fim, com
vê a massa compacta que é o corpo de um rinoceronte que um abismo de perguntas.
acaba se urinando. Sua sexualização foi despertada. Por esta razão, Clarice é a escritora do Eu em
No entanto, foi trocada pela companheira de pedaços, da face explodida, condição afinal que define o
escritório, Glória, datilógrafa muito mais eficiente do que homem no século 21. Daí a fama de vidente que a cercava,
Macabéa (semi-analfabeta que emporcalha o serviço), além de mulher que, de fato, antevia um mundo quando, ainda
de mais encorpada. Para Olímpico, casar-se com uma loira inebriados pelas brisas do modernismo, todos acreditávamos
(oxigenada) e “carioca da gema” seria uma maneira de subir na claridade. Clarice é, em conseqüência, uma escritora para
na vida. Nossa heroína, ainda assim, não sofre, mas sua o futuro: talvez ainda seja preciso esperar muito tempo até
libido fica mais despertada. Sintomático é, nesse contexto, o que, enfim, venha a ser compreendida. Para que, enfim, sua
momento em que vai passar batom de forma desajeitada, literatura se mostre como o que, de fato, é: um tiro no
usando um espelho quebrado. Enfeitar-se já indica que está coração das palavras."
com desejo, que ainda se demonstra de forma primitiva,
grotesca e assustadora – mais espanta que atrai; não é à toa Foco narrativo
que a imagem que surge no espelho é retorcida.
O fato é que Macabéa está tendo atitudes inéditas – O foco narrativo escolhido é a primeira pessoa, quem
dando atenção a si mesma. Uma vez faltara ao serviço para narra a história é Rodrigo S.M., um escritor que se dá como
ficar só, enquanto suas companheiras de quarto iam trabalhar tarefa narrar a história de uma certa nordestina que viu na
nas Lojas Americanas. Em outra ocasião, tinha ido ao médico, rua, por um instante, numa esquina do Rio de Janeiro.
que lhe diagnostica tuberculose. Ela nem sequer percebeu o
que significava a doença. O narrador lança mão, como recurso, das digressões,
o que, aspectualmente parece dar à narrativa uma
MACABÉA E A CARTOMANTE característica alinear. Não se engane: ele foge para o passado
a fim de buscar informações.
Assim, aproveitando essa onda, Glória – talvez com
remorso por ter tomado o namorada da amiga – aconselha a Acrescente, ainda: Macabéa é indispensável ao foco
protagonista (até dinheiro empresta!) a ir a uma cartomante narrativo, mas o narrador se ocupa, ainda, em estabelecer
para tirar sua sorte. É a grande virada de sua vida, primeiro paralelos ( diferenças e igualdades) entre o fazer da prosa,
porque vai ganhar um destino, um futuro, algo que a sua existência,a existência de sua personagem Macabéa e a
impulsionasse para frente, que eliminasse de sua vida o da escritora Clarice Lispector ( volte outra vez para a
simplesmente existir. O crítico, porém, é que isso virá da introdução do livro).
boca de outro.
Realmente, muita mudança ocorre. Enquanto Há nele uma onisciência e onipotência ferozes, como
Macabéa espera ser atendida, numa sala decorada por meio se tudo pudesse ( e pode) conduzir e mudar. Há uma
de um gosto duvidoso, seu “eu” já se está alterando. profunda identificação entre o narrador e a sua personagem.
Novidade também é a forma como a cartomante, antiga Ele parece amá-la ( e nos diz isso) e odiá-la ( e nos diz isso
prostituta e cafetina, trata Macabéa: é carinhosa, gostando também):
até do nome dela. Adivinha perfeitamente a vida da
protagonista, qualificando-a como horrível. Mas promete "Por enquanto Macabéa não passava de um vago
muita coisa boa. É nesse instante que a heroína percebe sentimento nos paralelepípedos sujos. Eu poderia deixá-la na
como a existência era de fato rala. rua e simplesmente não acabar a história. Mas não: irei até
Então, a grande previsão. A cartomante vê um onde o ar termina, irei até onde a grande ventania se solta
estrangeiro, alemão, Hans, que encherá Macabéa de amor, uivando, irei até onde o vácuo faz uma curva, irei aonde me
riqueza, jóias, casacos. Passará a ser amada, a ser bonita. O fôlego me levar. Meu fôlego me leva a Deus? Estou tão puro
encontro com esse homem proporcionaria a Macabéa uma que nada sei. Só uma coisa eu sei : não preciso ter piedade
mudança radical em sua vida. de Deus. Ou preciso?"
Dotada de um destino, Macabéa até sorri. Sai tão
inebriada do lugar miserável em que ficava a profetisa que A ÉPOCA
atravessa distraída a rua. É ironicamente atropelada por um
Mercedes Benz (atropelada por uma estrela...) dirigido por Pelos indícios que o narrador nos oferece, o tempo é
um alemão, que nem pára para socorrê-la. época em que Marylin Monroe já morreu - possivelmente a
Nos seus últimos instantes, cabeça batida na guia, década de 60 em seu fim ou a de 70 em seus começos- mas
fala “Quanto ao futuro”. Está aparentemente realizada. Há faz ainda um grande sucesso como mito que povoa a cabeça
pessoas prestando atenção nela. É o centro das atenções. É e os sonhos de Macabéa.
uma estrela. Tanto é que, em meio à sensualidade que vai
sentindo, encolhendo-se como um feto, começa a delirar,

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Sua falta de percepção física acompanha a
psicológica. Começa com o fato de ela ser alvo fácil da
sociedade consumista e da indústria cultural: gosta de
colecionar anúncios; seus parcos conhecimentos são
extraídos da Rádio Relógio (informações ouvidas, mas nunca
entendidas); gosta de cachorro-quente e coca-cola. Aceita
tudo isso sem questionar, pois teme as conclusões a que
pode chegar (arrepende-se em Cristo por tudo, mesmo não
entendendo o que isso significa; não se vingava porque lhe
Como escreve o narrador? "Verifico que escrevo de disseram que isso é "coisa infernal"; apaixona-se pelo
ouvido assim como aprendi inglês e francês de ouvido. desconhecido, como no caso da palavra "efemérides", mas
Antecedentes meus do escrever? Sou um homem que tem nunca procurava, efetivamente, conhecer o incognoscível,
mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim pois era mais fácil aceitar aceitar-lhe a existência e admirá-lo
de algum modo um desonesto. (...) Que mais? Sim, não a distância).
tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me Conseqüentemente, torna-se personagem "torta", de
tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança tanto encaixar-se num meio que tanto a repele. O próprio
de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a emprego de datilógrafa é revelador: ela o era por acreditar
mim." que este lhe dava alguma dignidade. Buscava a dignidade,
Chegamos, aqui, ao ponto mais importante desse como se não tivesse direito a ela. Outro dado revelador é seu
trabalho de metalinguagem: a consciência do escritor como relacionamento com Olímpico, desculpando-se com ele todo o
um marginalizado. É aqui que o narrador se funde com sua tempo, chegando a dizer-lhe que não é muito gente, que só
personagem: ambos são marginalizados, num espaço que sabe ser impossível. Ela não se defende por seus próprios
não os aceita. Tal fusão se dá em todos os níveis - não valores, mas tenta adaptar-se aos valores do namorado,
apenas no desejo de simplicidade da linguagem despojada; nunca discutindo a validade deles.
para poder falar de Macabéa, o escritor torna-se um Olímpico representa o contraponto em relação a
trabalhador braçal, faz-se pobre, dorme pouco, adquire Macabéa. Seus valores em nada se relacionam aos dela:
olheiras fundas e escuras, deixa a barba por fazer, lidando metalúrgico, quer ser deputado, afastar-se de Macabéa e ficar
com uma personagem que insiste, com seus dezenove anos, com Glória, a loira oxigenada, colega de trabalho de
mesmo tendo "corpo cariado", comparada a uma "cadela Macabéa; afinal, o pai dela era açougueiro, o que lhe dava
vadia", "numa cidade toda feita contra ela", em viver. Assim, maiores perspectivas de vida.
personagem e narrador dão seu grito de resistência em busca E tudo isso é, literalmente, engolido, tão deglutido,
da vida. que ela não admite a idéia de vomitar; afinal, isso seria um
A resistência de Macabéa pode ser representada, por desperdício.
exemplo, nos momentos em que sorri na rua para pessoas Ao mesmo tempo, é sensual em seus pensamentos,
que sequer a vêem; a resistência do narrador, na busca da ou nos momentos de solidão, como quando viu o homem
palavra, cheia de sentidos secretos... a "coisa", que, quando bonito no botequim, ou ainda quando ficou em casa - ao
não existe, deve ser inventada (o narrador escritor como invés de ir trabalhar - vivendo a sensação de liberdade. O
senhor da criação). prazer em Macabéa é algo que sempre se alia à dor. Ao ver o
Tanto Macabéa como a palavra são pedras brutas a homem, por exemplo, apesar do prazer que tal visão lhe dá,
serem trabalhadas. A palavra será a mediadora entre o há o sofrimento por não o possuir e por ter a certeza de que
narrador e o leitor, e entre o leitor e Macabéa, pois é por alguém assim é mesmo só para ser visto. Macabéa já havia
meio dela que conheceremos a história da personagem, os experimentado essas sensações contraditórias com outra
fatos e, principalmente, o nascimento deles. O narrador, ao pessoa, a tia, que, ao bater na menina, sentia prazer ao vê-la
contar Macabéa, conta a si mesmo, não só pelas sucessivas sofrer: "... e ela era só ela", imune à vida, vida que era
identificações com a personagem, mas porque ela sai de morte, por tanta aceitação.
dentro de si, imanente que é a ele ("pois a datilógrafa não O instinto de vida, que está ligado ao prazer, vem
quer sair de meus ombros.") . sustentáa-la. Diz o narrador: "Penso no sexo de Macabéa (...)
Dessa união, nasce uma nordestina vinda de Alagoas seu sexo era a única marca veemente de sua existência."
para o Rio de Janeiro. Datilógrafa, "o que lhe dava alguma E ainda, mais adiante, ligando o prazer à morte: "Ela
dignidade", fazendo-a acreditar que tal profissão indicava que nada podia mas seu sexo exigia, como um nascido girassol
"era alguém na vida" (aqui, não lhe passa pela cabeça que é num túmulo."
uma péssima profissional, semi-analfabeta... ela não tem De que "relação sexual" se pode falar no caso de
consciência de nada disso). Macabéa? Da relação com a própria vida, que ela insiste em
Alguém com aparência bruta, capaz de enojar suas manter, no seu conceito tão particular de beleza: usava
quatro companheiras de quarto (na pensão onde morava), batom vermelho, queria ser atriz de cinema com Marylin
trabalhadoras das Lojas Americanas: Monroe, apreciava os ruídos, pois eram vida.
"... dormia de combinação de brim, com manchas Essas sensações se intensificam quando vai à
bastante suspeitas de sangue pálido (...) Dormia de boca cartomante Carlota (por recomendação de Glória), no
aberta por causa do nariz entupido. momento em que esta lhe revela: a felicidade viria de fora,
Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia do estrangeiro. A cartomante mostra-lhe a tragédia que é sua
uma filha de não-sei-o-quê com ar de se desculpar por vida (coisa de que, até o momento, não havia tomado
ocupar espaço. No espelho distraidamente examinou as consciência), mas, ao mesmo tempo, dá-lhe a esperança de
manchas do rosto. Em Alagoas chamavam-se ‘panos’, diziam acreditar que as coisas poderiam ser diferentes... a possível
que vinham do fígado. Disfarçava os panos com grossa felicidade.
camada de pó branco e se ficava meio caiada era melhor que Quando sai da casa da cartomante, é atropelada por
o pardacento. Ela toda era um pouco encardida pois Hans, que dirigia um automóvel Mercedes-Benz, momento
raramente se lavava. De dia usava saia e blusa, de noite em que a vida se torna "um soco no estômago":
dormia de combinação. Uma colega de quarto não sabia como "Por enquanto Macabéa não passava de um vago
avisar-lhe que seu cheiro era murrinhento. E como não sabia, sentimento nos paralelepípedos sujos. (...)
ficou por isso mesmo, pois tinha medo de ofendê-la. Nada Tanto estava viva que se mexeu devagar e
nela era iridescente, embora a pele do rosto entre as acomodou o corpo em posição fetal. Grotesca como sempre
manchas tivesse um leve brilho de opala. Mas não importava. fora. Aquela relutância em ceder, mas aquela vontade do
Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio. grande abraço. Ela se abraçava a si mesma com vontade do
Assoava o nariz na barra da combinação. Não tinha doce nada. Era uma maldita e não sabia. (...)"
aquela coisa delicada que se chama encanto. Só eu a vejo
encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela."

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A morte dela é o momento em que Eros (Amor) se espécie que se farejam. (...) mentiu ele porque tinha como
une a Tanatos (Morte), vida e morte, num momento doce, e sobrenome apenas o de Jesus, sobrenome dos que não têm
sensual: pai. (...) No Nordeste tinha juntado salários e salários para
"Então - ali deitada - teve uma úmida felicidade arrancar um canino perfeito e trocá-lo por um dente de ouro
suprema, pois ela nascera para o abraço da morte. (...) E faiscante. Este dente lhe dava posição na vida. Aliás, matar
havia certa sensualidade no modo como se encolhera. Ou é tinha feito dele um homem com letra maiúscula. Olímpio não
como a pré-morte se parece com a intensa ânsia sensual? É tinha vergonha, era o que se chamava no Nordeste de cabra
que o rosto dela lembrava um esgar de desejo. (...) safado. Mas não sabia que era artista: nas horas de folga
Se iria morrer, na morte passava de virgem a esculpia figuras de santos e eram tão bonitas que ele não as
mulher. Não, não era morte pois não a quero para a moça: só vendia. (...) vinha do sertão da Paraíba (...) nascera crestado
um atropelamento que não significava sequer um desastre. e duro que nem galho seco da árvore ou pedra ao sol. (...)
Seu esforço de viver parecia uma coisa que se nunca Ter matado e roubado faziam com que ele não fosse um
experimentara, virgem que era , ao menos intuíra, pois só simples acontecido qualquer, davam-lhe uma categoria,
agora entendia que mulher nasce mulher desde o primeiro faziam dele um homem com honra já lavada (...) seu destino
vagido. O destino de uma mulher é ser mulher. Intuíra o era o de subir para um dia entrar no mundo dos outros. Ele
instante quase dolorido e esfuziante do desmaio do amor. tinha fome de ser o outro.
Sim, doloroso reflorescimento tão difícil que ela empregava  Madama Carlota, prostituta e cartomante:
nele o corpo e a outra coisa que vós chamais de alma. (...) Eu sou fã de Jesus. Sou doidinha por ele. Ele sempre me
Nesta hora exata, Macabéa sente um fundo enjôo de ajudou. Olha, quando eu era mais moça tinha bastante
estômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é categoria para levar vida difícil de mulher. E era fácil mesmo,
corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas. graças a Deus. Depois, quando eu já não valia muito no
O que é que eu estou vendo agora é e que me mercado, Jesus, sem mais nem menos arranjou um jeito de
assusta? Vejo que ela vomitou um pouco de sangue, vasto eu fazer sociedade com uma coleguinha e abrimos uma casa
espasmo, enfim o âmago tocando no âmago: vitória!" de mulheres (...) a polícia não deixa por cartas, acha que eu
Sua boca, agora, vermelha como a de Marylin estou explorando os outros, mas, como eu já disse, nem a
Monroe, no apogeu orgásmico da morte, grita, pela primeira polícia consegue desbancar Jesus. (...) Eu tinha um homem
vez, depois de vomitar, à vida: de quem eu gostava de verdade e que eu sustentava porque
"E então - então o súbito grito estertorado de uma ele era fino e não queria se gastar em trabalho nenhum. Ele
gaivota, de repente a águia voraz erguendo para os altos ares era o meu luxo e eu até apanhava dele. Quando ele me dava
a ovelha tenra, o macio gato estraçalhando um rato sujo e uma surra e via que ele gostava de mim, eu gostava de
qualquer, a vida come a vida." apanhar. (...) Ouvi dizer que o Mangue está acabando, que a
Chegamos, afinal, ao momento da epifania do zona agora só tem uma meia dúzia de casas. Em meu tempo
narrador fundido à Macabéa: é a vida que grita por si mesma, havia umas duzentas. Eu ficava em pé encostada na porta
independente da opressão e da marginalização social. O vestindo só calcinha e sutiã de renda transparente.
momento, entremeado com silêncio, da consciência a que se
chega pelo ato de escrever: ENREDO
"(...) O instante é aquele átimo de tempo em que o
pneu do carro correndo em alta velocidade toca no chão e Macabéa nasceu em Alagoas, num ambiente de
depois não toca mais e depois toca de novo. Etc. , etc., etc. extrema pobreza. Órfã dos pais desde os dois anos de idade,
No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio foi criada por uma tia, única parenta sua no mundo, tão
desafinada. pobre quanto ela. Dessa tia a menina levou muitos cascudos
Eu vos pergunto: na cabeça, forma que empregava a mulher para educar a
- Qual é o peso da luz? sobrinha. Batia mas não era somente porque ao bater gozava
E agora - agora só me resta acender um cigarro e ir de grande prazer sensual ela que não se casara por nojo -
para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente como também porque achava seu dever.
morre. Mas - mas eu também?! Destituída de qualquer conforto, totalmente alienada
Não esquecer que por enquanto é tempo de do consumismo _o único desejo da menina era comer
morangos. goiabada com queijo, prazer que quase sempre lhe era
Sim." negado, por castigo.
Enfim, descobrimos, agora, que tudo começa e A medida que crescia, Macabéa aprendia que "vida é
acaba com um sim. Também é preciso coragem para morrer, assim: aperta-se o botão e a vida acende". Só que ela não
silêncio para ouvir o grito da vida. sabia qual era o botão de acender. Nem se dava conta de que
vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso
A hora da estrela – Parte IV dispensável. ( observe a atualidade da crítica feita pela autora
neste trecho ) .Mas uma coisa descobriu inquieta: já não
Personagens sabia mais ter tido pai e mãe, tinha esquecido o sabor. "Ela
 Macabéa, a protagonista: (...) vida falava sim, mas era extremamente muda".
primária que respira, respira, respira. (...) dormia de Não se sabe por que as duas vieram para o Rio de
combinação de brim com manchas bastante suspeitas de Janeiro, quando Macabéa tinha 19 anos. Um pouco antes de
sangue pálido. (...) ela era incompetente. Incompetente para morrer a tia arranjou-lhe emprego de datilógrafa no escritório
a vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. (...) Não sabia que de uma empresa de representante de roldanas ( observe que
era infeliz. (...) Assoava o nariz na barra da combinação. Não ironia existe aqui_ o parafuso dispensável vai trabalhar numa
tinha aquela coisa delicada que se chamava encanto. (...) A empresa que revende roldanas_ é a engrenagem perfeita!!!)
única coisa que queria era viver. Não sabia para que, não se A moça passou a morar numa vaga de quarto
indagava. (...) A mulherice só lhe nasceria mais tarde porque compartilhado com quatro balconistas das Lojas Americanas.
até no capim vagabundo há desejo de sol. (...) sonhava O quarto ficava numa região pouco nobre da cidade, próximo
estranhamente em sexo, ela que de aparência era assexuada. a prostitutas que serviam a marinheiros.
Quando acordava se sentia culpada sem saber por que, talvez O chefe da firma, Sr. Raimundo Silveira, um dia lhe
porque o que é bom devia ser proibido. (...) Não se tratava avisou com brutalidade que ia despedi-la porque ela errava
de uma idiota, mas tinha a felicidade pura dos idiotas. (...) demais na datilografia, além de sujar o papel. Com sua
Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era natural humildade ela respondeu se desculpando pelo
capim. aborrecimento causado. Surpreso com a reação, o chefe
 Olímpio de Jesus Moreira Chaves, o adiou a demissão, embora contrariado.
namorado: O rapaz e ela se olharam por entre a chuva e se Macabéa tinha um sono superficial porque estava
reconheceram como dois nordestinos, bichos da mesma resfriada havia um ano. Tinha acessos de tosse que sufocava
com o travesseiro para não acordar as colegas de quarto. Às
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vezes sentia fome antes de dormir e ficava meio alucinada Pensou, pensou e pensou! Chegou à conclusão que na
pensando em coxa de vaca. O remédio era mastigar e engolir verdade ninguém jamais a ofendera, tudo que acontecia era
papel. ( Noto aqui já um traço do realismo fantástico tão porque as coisas são assim mesmo e não havia luta possível,
comum aos escritores desta geração de 45 ). para que lutar?
Dessa forma defendia-se da morte por intermédio de Um dia em que quis descansar, inventou a mentira.
um viver de menos gastando pouco de sua vida para esta não Nunca se sentiu tão contente. Não devia nada a
acabar, (...). ninguém e ninguém lhe devia nada. "Até deu-se ao luxo de
Teria ela a sensação de que não vivia para ter tédio".
nada? No dia seguinte, 7 de maio, sob uma forte chuva de
Só uma vez se fez uma trágica pergunta: quem sou final de tarde, encontrou um namorado. "O rapaz e ela se
eu? olharam por entre a chuva e se reconheceram como dois
Assustou-se tanto que parou de pensar. (.. ) O luxo nordestinos, bichos da mesma espécie que se farejam. Ele a
que se dava era tomar um gole de café frio antes de dormir. olhara enxugando o rosto molhado com as mãos, E a moça,
Pagava o luxo tendo azia ao acordar. (...) Vivia em tanta bastou-lhe vê-lo para torná-lo imediatamente sua goiabada
mesmice que de noite não se lembrava do que acontecera de com queijo" ( observe como aqui a associação entre o desejo
manhã. (...) Quando dormia quase que sonhava que a tia lhe da gula e da luxúria se complementam )
batia na cabeça. Ou sonhava estranhamente em sexo, ela Ele a convidou para passear. O rapaz era do sertão
que de aparência era assexuada. da Paraíba e estranhou o nome dela, achando que parecia
Quando acordava se sentia culpada sem saber por nome de doença de pele.
que, talvez porque o que é bom devia ser proibido. Culpada e Na segunda e na terceira vez em que se
contente. Por via das dúvidas se sentia de propósito culpada encontraram também chovia. Perdendo a forçada educação
e rezava mecanicamente três ave-marias, amém, amém, que vinha mostrando, o rapaz disse para ela: "Você também
amém. Rezava mas sem Deus ela não sabia quem era Ele e só sabe é mesmo chover!" "Desculpe", acrescentou a moça
portanto Ele não existia. (...) que já o amava tanto que não sabia como se livrar dele.
Vez por outra ia para a Zona Sul e ficava olhando as Numa dessas vezes é que lhe perguntou seu nome e ficou
vitrinas faiscantes de jóias e roupas acetinadas - só para se sabendo ser Olímpico de Jesus (ele acrescentou Moreira
mortificar um pouco. É que ela sentia falta de encontrar-se Chaves, mentindo, porque tinha como sobrenome apenas o
consigo mesma e, sofrer um pouco é um encontro. Domingo nome de Jesus, sobrenome dos que não tem têm pai). Fora
ela "acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer criado por um padrasto.
nada’. Ele era operário de uma metalúrgica, transportava o
Ela era doída por soldado. "Quando via um, pensava dia inteiro barras de metal. Conseguia até economizar algum
com estremecimento de prazer: será que ele vai me matar?" dinheiro; dormia de graça numa guarita em obras de
Macabéa tinha um luxo, além de uma vez por mês ir demolição, por camaradagem do vigia.
ao cinema: pintava de vermelho grosseiramente escarlate as Olímpico gostaria de ser toureiro não tinha pena do
unhas das mãos. Gostava de filme de terror ou de musicais. touro, apreciava o sangue. Antes de vir para o Rio, tinha
Tinha predileção por mulher enforcada ou que levava tiro no ajuntado economias até conseguir arrancar um canino
coração. perfeito, substituindo-o por um dente de ouro faiscante.
"Quando acordava não sabia mais quem era. Só Mantinha a esperança de ser um homem rico, poderoso e até
depois é que pensava: sou datilógrafa e virgem, e gosto de deputado. Em sua terra fora o que se chama de "cabra
coca-cola. ( retrato atual e típico da literatura contemporânea safado", pois já havia matado um homem de que não
_ já neste livro a autora fez uma referência à rede de varejo gostava, nos cafundós do sertão, com um canivete.
Lojas Americanas e agora também salienta a marca Coca-cola Nas horas de folga esculpia figuras de santo, mas
de refrigerantes ). Só então vestia-se, passava o resto do dia não as vendia por achá-las bonitas. Olímpico era macho de
representando com obediência o papel de ser. briga. Mas fraquejava em relação a enterros: às vezes ia três
Todas as madrugadas ligava o rádio emprestado por vezes por semana a enterro de desconhecidos, cujos anúncios
uma colega de moradia. Deixava o som bem baixinho na saíam nos jornais. (...) Sempre que podia roubava alguma
Rádio Relógio, "que dava hora certa e cultura". No intervalo coisa, Matar e roubar davam-lhe certo "status". "Vingava-se
entre as "gotas de minutos", havia anúncios comerciais. Ela dos poderosos desenhando caricaturas de seus retratos nos
adorava anúncios. jornais".
A vida de Macabéa - ela possuía uma vida interior e "As poucas conversas entre os namorados versavam
não sabia disso - era cheia do vazio que enche a alma dos sobre farinha, carne de sol, carne-seca, rapadura e melado,
santos Ela era uma espécie de santa. "Não sabia que Pois esse era o passado de ambos e eles esqueciam o
meditava pois ignorava o que quer dizer a palavra. Mas sua amargor da infância. (...) Os dois não sabiam inventar
vida era uma longa meditação sobre o nada. ( Meditava acontecimentos’, Sentados no banco da praça, "nada os
enquanto batia à máquina, por isso errava ainda mais). distinguia do resto do nada. Em seus diálogos curtos e
Contudo a moça tinha seus prazeres: às noites inconsequentes. Macabéa relatava informações esparsas
costumava ler à luz da vela os anúncios que recortava de ouvidas na Rádio Relógio e Olímpico ou repetia seus sonhos
jornais velhos do escritório. Gostava especialmente de um de grandeza ou se irritava com ela. A única vez em que a
anúncio que mostrava um colorido pote aberto de creme para moça falou de si própria na vida foi quando respondeu ao
pele de mulheres. "O creme era tão apetitoso que se tivesse namorado que lhe perguntou se tinha preocupação: "Não,
dinheiro para comprá-lo não seria boba. Que pele, que nada, não tenho nenhuma. Acho que não preciso vencer na vida".
ela o comeria, isso sim, às colheradas no pote mesmo. Estava habituada a se esquecer de si mesma.
Faltava gordura ao seu organismo. "Tornava-se com o tempo Certa vez, para se mostrar forte, Olímpico levantou
apenas matéria vivente em sua forma primária. Macabéa com um braço só; mas não aguentou por muito
Talvez fosse assim para se defender da grande tempo. A moça caiu "de cara na lama, o nariz sangrando".
tentação de ser infeliz de uma vez e ter pena de si. ( Era Mas era delicada e foi logo dizendo: Não se
apenas fina matéria orgânica. Existia, só isto). incomode, foi uma queda pequena. Ele passou vários dias
Às vezes, ela sentia enjôo para comer. "Isso vinha sem procurá-la. Seu brio fora atingido. Depois retornou e
desde pequena quando soubera que havia comido gato frito. chegaram até a entrar num açougue: o cheiro de carne crua
Assustou-se para sempre. Perdeu o apetite, só tinha a grande a encantava e ele ficava fascinado com a faca amolada do
fome. ( Nunca havia jantado ou almoçado num restaurante. açougueiro".
Era de pé mesmo no botequim da esquina). Macabéa não dava nenhuma despesa a Olímpico a
Macabéa jamais havia ganho presentes. Um dia, viu não ser quando este lhe pagou um cafezinho pingado "que ela
um livro que o patrão, dado a literatura, deixara sobre a encheu de açúcar quase a ponto de vomitar mas controlou-se
mesa. "Humilhados e Ofendidos". Ficou pensativa. Talvez para não fazer vergonha. O açúcar ela botou muito para
tivesse se definido pela primeira vez numa classe social, aproveitar’.

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Certa feita, os dois foram ao zoológico, ‘ela pagando Esse médico não tinha objetivo nenhum. A medicina
a própria entrada. Teve muito espanto ao ver os bichos. era exatamente o que queria nada. Macabéa estava com
Quando Olímpico viu Glória, a colega de Macabéa. começo de tuberculose pulmonar (mas também ela só comia
apaixonou-se por ela. "Glória possuía no sangue um bom cachorro quente, tomava café e coca-cola). O doutor lhe
vinho português e também era amaneirada no bamboleio do aconselhou comer espaguete e evitar álcool.
caminhar por causa do sangue africano escondido. Apesar de Palavras do médico no final da consulta, quando ela
branca, tinha em si a força da mulatice. demonstrou não saber o que era espaguete e não entender o
Oxigenava em amarelo-ovo os cabelos crespos cujas que ele queria dizer com evitar álcool: "Sabe de uma coisa?
raízes estavam sempre pretas. Mas mesmo oxigenada ela era Vá para os raios que te partam!" A ninguém, nem a Glória
loura, o que significava um degrau a mais para Olímpico". contou acerca da consulta.
( Repare no nome do personagem_ representa a eterna A colega havia garantido a Macabéa que ficara com
loucura humana de alcançar os deuses ). Olímpico porque não queria desobedecer a cartomante, que
Além do mais, era carioca, pertencente ao era médium. Talvez por remorso, aconselhou à nordestina:
ambicionado clã do Sul do pais "Glória tinha mãe, pai e "Por que você não paga uma consulta e pede pra ela te pôr as
comida quente em hora certa. Isso tornava-a material de cartas?" E emprestou-lhe dinheiro.
primeira qualidade. Pela segunda vez, a moça tomou coragem, a
Olímpico caiu em êxtase quando soube que o pai pretexto de dor de dente conseguiu licença para faltar ao
dela trabalhava em um açougue. Pelos quadris adivinha-se serviço. Não lhe foi difícil descobrir o endereço da gorda e
que seria boa parideira. exageradamente gentil madama Carlota, ex-prostituta, ex-
Enquanto Macabéa lhe pareceu ter em si mesma seu cafetina, atual cartomante bem sucedida, moradora de
próprio fim’ apartamento próprio, fã de Jesus, "doidinha por Ele" que
Olímpico desmanchou o namoro com Macabéa para sempre a ajudou.
namorar Glória. "Diante da cara pouco inexpressiva demais Mais falando de si mesma do que de sua "cliente", a
de Macabéa, ele até que quis lhe dizer alguma gentileza cartomante concluiu: Mas, Macabeazinha. que vida horrível a
suavizante na hora do adeus para sempre. E ao se despedir sua! Que meu amigo Jesus tenha dó de você, filhinha! Mas
lhe disse. Você, Macabéa, é um cabelo na sopa. Não dá que horror!" Resolveu, então, animar a pobre coitada. "Tenho
vontade de comer. Me desculpe se eu lhe ofendi, mas sou grandes noticias para lhe dar:
sincero. Você está ofendida? - Não, não, não! Ah por favor Sua vida vai mudar completamente! (...) Até seu
quero Ir embora! Por favor me diga logo adeus! (... ) namorado vai voltar e propor casamento (...) e seu chefe não
A reação dela veio de repente inesperada: pôs-se vai mais lhe despedir! E tem mais! Um dinheiro grande vai
sem mais nem menos a rir. Ria por não ter se lembrado de lhe entrar pela porta adentro em horas da noite trazido por
chorar. (... ) Ficaram rindo os dois aí ele teve uma intuição um homem estrangeiro (...) Ele é alourado e tem olhos azuis
que finalmente era uma delicadeza perguntou-lhe se ela ou verdes ou castanhos ou pretos. (... ) Parece se chamar
estava rindo de nervoso Ela parou de rir e disse muito, muito Hans, e é ele quem vai se casar com você!
cansada: Não sei não..." "Num súbito ímpeto de vivo impulso, Macabéa, entre
Macabéa procurou permanecer como se nada tivesse feroz e desajeitada, deu um estalado beijo no mosto da
perdido. Não ficou triste nem desesperada: "ela era crônica". madama. (..) Só então vira que sua vida era uma miséria.
No dia seguinte ao final do namoro, ela resolveu se Teve vontade de chorar.
dar uma festa: comprou sem necessidade um batom novo Saiu da casa da cartomante mudada. "Até para
vermelho bem vivo. "No banheiro da firma pintou a boca até atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida
e até fora dos contornos para que seus lábios finos tivessem de futuro"
aquela coisa esquisita dos lábios de Marylin Monroe (mais Ao dar o passo para descer da calçada, Macabéa foi
uma referência ao mundo pop! ) atropelada por um luxuoso Mercedes amarelo, que fugiu, sem
Glória riu-se dela. Você endoidou, criatura?" que o motorista prestasse socorro. Ela bateu na quina do
"Depois tudo passou e Macabéa continuou a gostar meio-fio com a cabeça, que começou a sangrar. Tomada por
de não pensar em nada. Vazia, vazia" Glória lhe perguntou uma espécie de delírio oco, observou que havia capim na rua.
"Por que é que você me pede tanta aspirina? (... ) - É para eu "O Destino tinha escolhido para ela um beco no escuro e uma
não me doer tanto ! - Você se dói? - Eu me dôo o tempo todo sarjeta" como se ela fosse "uma galinha de pescoço mal
- Aonde? Dentro, não sei explicar. (. ) - Um dia a pílula te cortado que corre espavorida pingando sangue. Só que
cola na parede da garganta que nem galinha de pescoço meio Macabéa lutava muda. Então começou levemente a garoar_
cortado, correndo por ai" Olímpico tinha razão ela só sabia mesmo era chover!
Macabéa rezava indiferentemente e o misterioso Os curiosos que se aproximaram nada fizeram "como
Deus dos outros lhe dava, às vezes, um estado de graça. antes pessoas nada haviam feito por ela, só que agora pelo
‘Feliz, feliz, feliz. Ela de alma quase voando. E também vira o menos a espiavam. o que lhe dava uma existência"
disco-voador" "Ela se mexeu devagar b acomodou o corpo em
Às vezes a graça lhe pegava em pleno escritório. posição fetal. (. ) Era uma maldita e não sabia. Agarrava-se a
Então ela ia ao banheiro para ficar sozinha. De pé e sorrindo um fiapo de consciência e repetia mentalmente sem cessar eu
até passar; esse Deus era muito misericordioso com ela: sou, eu sou. eu sou. Teve uma úmida felicidade suprema,
dava-lhe o que lhe tirava" pois ela nascera para o abraço da morte. (.. ) Um gosto
Sua única conexão com o mundo restringiu-se a suave, arrepiante, gélido e agudo como no amor. Seria esta a
Glória, que não era amiga, só colega. Quando mais nova, graça a que vós chamais Deus? Sim? Se iria morrer, na morte
Macabéa se conectava com o retrato de Greta Garbo. "Mas o passava de virgem a mulher. Então ela pronunciou uma frase
que ela queria mesmo ser não era a altiva Greta Garbo cuja que ninguém entendeu: "Quanto ao futuro." Vomitou um
trágica sensualidade estava em pedestal solitário. Ela queria pouco de sangue’ Estava enfim livre de si e de nós. (...) Viver
parecer com Marylin. é um luxo. Pronto, passou."
O namoro de Olímpico e Glória ia bem. "Glória tinha COMENTÁRIO
um traseiro alegre e fumava cigarro mentolado para manter "A Hora da Estrela" é, basicamente, o relato das
um hálito bom nos seus beijos intermináveis com Olímpico" fracas aventuras de uma moça alagoana "numa cidade toda
Este não se arrependeu de ter rompido com Macabéa, pois feita contra ela":_ o Rio de Janeiro.
seu destino era subir na vida. Glória compensou a colega por Clarice Lispector usa o recurso de criar um narrador-
ter-lhe roubado o namorado convidando-a para uma refeição personagem: à medida que ele nos faz conhecer a
num domingo em sua casa, onde Macabéa se fartou de protagonista, também conhece sua própria identidade.
chocolate, biscoitos e bolo. No dia seguinte passou mal. Por que o narrador escreve? Para se
"Dias depois, recebendo o salário, teve a audácia de compreender. Enquanto eu tiver perguntas para fazer e
pela primeira vez na vida procurar o médico barato indicado não houver resposta continuarei a escrever". Sua
por Glória. (... ) tarefa é "a procura da palavra no escuro". Evita tratar

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da felicidade: ela "provoca aquela saudade demasiada Sua preocupação com o problema dos oprimidos
e lilás- (.) Eu não quero provocar porque dói.’ confirma-se na dedicatória do livro, na qual Clarice Lispector
O narrador não tem classe social, é um registrou "Esta história acontece em estado de emergência e
marginalizado "Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: de calamidade pública". Trata-se de livro inacabado porque
sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo lhe falta a resposta. Resposta esta que espero que alguém no
porque sou um desesperado e estou cansado e não suporto mundo ma-dê’
mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade
que é escrever, eu me morreria.- Considerações Gerais
Macabéa é, portanto. uma invenção do narrador que Este livro tem duas características fundamentais: a
com ela se identifica e com ela morre. originalidade do estilo e a profundidade psicológica no
Moída-a sobre o destino e a solidão dele mesmo. enfoque de temas aparentemente banais. A linha condutora é
Cria-a de forma onisciente (= que tudo sabe) e onipotente a estória de um imigrante nordestino deslocado e perdido na
( que tudo pode). Faz da vida dela uma aprendizagem da grande cidade do Rio de Janeiro. Através desse personagem,
morte, pois declara: "A morte que é nesta história o meu descortina-se a pobreza "feia e promíscua" e ao mesmo
personagem predileto’. Macabéa desejava ser estrela de tempo a singeleza de vidas tão pouco interessantes. A
cinema, admirava Greta Garbo e Marylin Monroe. narrativa, cheia de digressões (que fazem lembrar o estilo
A morte a fez atingir seu objetivo: essa foi a machadiano), vai além da descrição realista de um cotidiano
hora da estrela.. inexpressivo - questiona os valores da sociedade moderna, o
De qualquer maneira, e apesar dos pesares, ou papel social do artista contemporâneo e a própria existência
apesar do encontro marcado com o crepúsculo, a moça humana. A Hora da Estrela transita entre o lado trágico e o
experimentou a antevisão da aurora - "a cartomante lhe lado esplêndido da vida, entre a fragilidade e a grandeza do
decretara sentença de vida" e ela era ‘uma pessoa grávida de ser humano. O tema da solidão tem a função de dar destaque
futuro". às desigualdades sociais e ao enigma da vida, imprimindo
Ao ser colhida pelo Mercedes amarelo já havia novas perspectivas aos problemas e indagações que nos
assumido para sempre a felicidade impossível, num esforço cercam.
sobre-humano que consistiu em mitificar o pesadelo em
sonho". (Eduardo Portella). FICÇÃO A SERVIÇO DA REALIDADE
Junto ao sangue de sua cabeça, nas pedras do EM “A HORA DA ESTRELA” DE CLARICE LISPECTOR
esgoto, estava vivo um tufo de capim verde. Darcy Piva Dessimoni (UNINCOR)
Macabéa é um substantivo coletivo, "a resistente Aparecida Maria Nunes (UNINCOR)
raça anã teimosa", o Nordeste rural na sua difícil contracena
com a engrenagem urbana, a cidade inconquistável. Ela é o O que instiga a pesquisar esse assunto é a oportunidade de
grito no silêncio daqueles que estão marginalizados social e poder refletir e estabelecer parâmetros comparativos à
existencialmente. relação realidade/ficção.
"A Hora da Estrela’ apresenta dois núcleos de O objetivo maior seria delimitar como a ficção se faz
interesse a história de Macabéa e as reflexões do narrador. E, realidade na sociedade, denunciando as desigualdades
pois, um romance do tipo digressivo em que as opiniões do sociais, culturais, econômicas da sociedade contemporânea e
narrador fazem parte do enredo As páginas iniciais são a própria existência humana.
tomadas pelos comentários dele sobre a própria narrativa, é Por que se deseja tudo isso? Talvez por pensar que a
um texto de metalinguagem, isto é, muito preocupado com a sobrevivência depende de tais detalhes e, portanto, talvez os
investigação da natureza linguistica do próprio texto. homens sejam capazes de compreender que não podem ser,
O narrador assume três formas de presença: ao mesmo tempo, estúpidos e livres. Uma população que não
monólogo fio condutor da ação; relato puro e simples: possa ou não deseja pensar sobre os seus problemas não
palavras das personagens. ficará livre e independente por muito tempo. Daí pensar o
Na verdade, sofrendo de consciência culposa, Clarice paradigma ficção ou realidade para mudar o status quo da
Lispector se esconde na figura do narrador. Ele escreve no sociedade brasileira.
estilo que caracteriza a escritora: a palavra, material básico No desenvolver do trabalho, há necessidade para melhor
da narrativa "não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem compreensão do texto, delimitar criteriosamente o significado
que ser apenas ela". de ficção e realidade. Para tal questiona-se: O que significa
Sem retórica ( discursos eloquentes) e sem ficção? Criação da imaginação, da fantasia, coisa sem
melodramas ( impactos emocionais), o interior das existência real, apenas imaginário?
personagens vai aparecendo e sensibilizando ( é o que O texto de ficção expressa uma interpretação do real e do
chamamos de epifania ). imaginário, passando a ter uma forma real ou mística, ou
A consciência individual passa ao primeiro plano da mesmo arquetípica a essa interpretação. É transformando o
narração. revelada de forma simples, profunda e poética. real em mítico ou arquetípico que a ficção o torna mais real.
Embora possa parecer alienada dos problemas Judith Grossmann explica como o artista demonstra todo seu
sociais, Clarice Lispector neste livro denuncia todo o contexto desconforto com o real que se apresenta infeliz a seus olhos.
social brasileiro e, por extensão, a injustiça no mundo. Ela O ficcional significa, a quebra da ilusão em relação ao real, o
apresenta a estrutura interna do ser humano massacrado. descontentamento com as aparências, o eterno inverno desse
Com este processo, aparentemente de pura introspecção e de descontentamento, feito gloriosa estação pelo aparecer da
pura fabulação filosófica, ela questiona o mundo organizado e essência (GROSSMANN, 1982).
a cultura dominante, resgatando do preconceito os ofendidos Focalize, agora, o que é realidade, “o real”.
e humilhados. O que Luckman expõe, revela que a realidade deve ser
Em um de seus escritos ela deixou as seguintes considerada a partir dos enfoques a que está sujeita e são
palavras: determinantes da época. Cada vez que mudamos a nossa
"Desde que me conheço o fato social teve em mim perspectiva sobre o mundo, ele apresenta uma nova fase.
importância maior do que qualquer outro: em Recife os Conforme a nossa intenção ele se revela de um jeito.
mocambos foram a primeira verdade para mim. Muito antes O interesse sociológico nas questões da ‘realidade’ e do
de sentir "arte’, senti a beleza profunda da luta. Mas é que ‘conhecimento’ justifica-se assim inicialmente pelo fato de sua
tenho um modo simplório de me aproximar do fato social: eu relatividade social. O que é ‘real’ para um monge tibetano
queria era "fazer alguma coisa, como se escrever não fosse pode não ser ‘real’ para um homem de negócios americano. O
fazer. O que não consigo é usar o escrever para isso, por ‘conhecimento’ do criminoso é diferente do ‘conhecimento’ do
mais que a incapacidade me doa e me humilhe. O problema criminalista. (BERGER e LUCKMANN, 1990).
da justiça é em mim um sentimento tão óbvio e tão básico Toda construção humana seja na ciência, na arte, na filosofia
que não consigo me surpreender com ele - e, sem me ou na religião, trabalha com o real ou têm nele o seu
surpreender não consigo escrever". fundamento, seu ponto de partida ou de chegada. O melhor a

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ser feito é questionar o sentido da vida humana que, dotada Relacionando ficção com o ato de criar, torna-se criação e a
de um consciência reflexiva, construiu seus conceitos de sociedade industrializada, progressista, subordina-se a outra
realidade, a partir dos quais se exerce no mundo e se palavra que se opõe àquela: produção.
multiplica, alterando a cada momento sua visão de mundo. Criação e produção tornam-se, portanto, palavras opostas. Só
É importante saber que realidade não é algo oferecido de quem produz é valorizado.
graça, à disposição dos humanos. O homem não é um ser Portanto, vê-se que a produção se liga ao senso comum
passivo que apenas grava aquilo que o choca ou eleva, mas ditado pela ideologia dominante, e a criação poderia se
ele que constrói sua realidade; o estranho é que sendo o relacionar ao não senso e ameaçar a ordem instituída, o
construtor o homem não se apercebe assim, percebe-se como status quo. A sociedade teme tudo que é diferente e trata
estando submetido à realidade, conduzido por forças naturais logo de assimilar aquilo que a ameaça. A nossa sociedade
ou sociais sobre as quais ele não tem ou não pode ter privilegia quem tem respostas e marginaliza quem insiste nas
controle algum. perguntas.
A maneira de perceber, interpretar e de estabelecer relações Criar é propor novas ordens, novos sistemas de pensamentos
entre as forças naturais ou sociais são características apenas e novas maneiras de ver o mundo, logo a criação ameaça a
do ser humano. Daí a noção da verdade ligada à noção de ordem instituída, as bases em que a sociedade se apóia.
realidade, a realidade do cotidiano por excelência, na qual Segundo Freud, o id é regido pelo princípio do prazer, o
vivemos. domínio do inconsciente. O ego é o mediador entre o id e o
Platão, em o Mito da Caverna (PLATÃO, 1997: 7, 225-227) já mundo externo funcionando como proteção contra agressões
nos mostra que a visão de mundo das pessoas varia de exteriores. O ego que substitui o princípio do prazer pelo
acordo com o lugar que cada um ocupa no espaço geográfico, princípio da realidade. O superego desempenha o papel da
social, político, econômico, etc. “Não se pode falar de um real censura e repressão através da figura do poder. O ser
estático, pronto, pré-construído”. humano adapta-se à realidade através de se ego, sua
Clarice Lispector, em sua condição de mulher, demonstra sua máscara social, assimilando inconscientemente as normas
sensibilidade aos problemas das pessoas carentes. A marca que controlam seu modo de ser e sobreviver. A fantasia,
registrada de seus personagens é serem sem relevância aos então, funciona como reduto da liberdade e está livre do
olhos da sociedade (meninas, velhas, adolescentes...) mas princípio da realidade. Logo, a arte é a libertação do que foi
ricos em sua interioridade. Ela faz os personagens viverem o reprimido pelo poder e pelo princípio da realidade que se
processo chamado de epifania, ou seja, revelação, isto é, de subordina à ideologia dominante. Hoje, até os desejos e
repente, diante de ocorrências mínimas o personagem se sonhos são controlados e até produzidos pela sociedade em
descobre e vê revelada uma realidade mais profunda. Muitas que se vive.
vezes, ele mesmo não consegue perceber com clareza que A ficção a serviço da realidade torna-se corriqueira no mundo
realidade é essa, porém sua vida ou sua visão mudam. atual quando o trabalhador, através do merchandising, vê
Clarice Lispector não permite que a ficção esteja a serviço da entrar em sua casa os sonhos do capitalismo através da
realidade a não ser quando propositalmente assim o queira. televisão, das revistas, cinema, etc. Nesses casos, ao ver
No decorrer da leitura, cada personagem do livro A hora da uma telenovela, ele, juntamente com a ficção, recebe uma
estrela (LISPECTOR, 1993: 44, 48, 55, 68, 70, 79, 102, 103) dose maciça de realidade, vibrando com as atitudes do galã,
se reveste de instrumento canalizador denunciante dos as desventuras da mocinha, rindo das piadas, assimilando
problemas sociais gerados pelas desigualdades sociais, pelos todos os valores que interessam à ideologia dominante. O
interesses das classes dominantes em detrimento aos consumismo estimulado pelas propagandas da manutenção
interesses das classes populares, a imposição de preceitos de da ordem social regente.
vida e de valores, a solidão e o sofrimento do retirante na O merchandising é o exemplo maior da ideologia dominante.
grande metrópole e num país do 3º mundo. O anúncio é feito indiretamente durante a trama novelesca
Por centenas de milhares de anos, o objetivo fundamental do assistindo a um capítulo da novela, onde se idealiza a compra
homem foi sobreviver e a maior parte dos primeiros do carro do galã, da jóia da protagonista. Todos, crianças e
pensamentos humanos provavelmente servia a esse fim. E adultos, direta e indiretamente são atingidos por esse recurso
depois chegou o momento em que o homem não precisava utilizado pelos interesses da classe que detém o poder.
apenas pensar ou apenas viver - mas em viver melhor, e “A fantasia está a serviço da realidade”. Essa ficção mata
viver melhor hoje requer que se posicione entre o que é aquilo que deveria ser a sua essência, a magia, a poesia, a
ficção e o que é realidade. criação, e instaura o senso comum, o bom senso.
Platão, que acreditava no reino das idéias como modelo de Quando a ficção é ficção? Quando o ser humano associa arte
todas as coisas, dizia que o homem deveria ser educado para à criação e desliga-se dos critérios de avaliação e julgamento
sair da obscuridade para a luz. O real para Platão era o ideal - de valores. A ficção estaria a serviço não da realidade, mas
o mundo das idéias; a cópia seria o mundo em que vivemos - da realização do homem com a libertação do eu e sua
o mundo dos sentidos e o simulacro, a cópia da cópia, a reconciliação com o todo.
imitação inútil e perigosa. Ligado ao verbo fazer, ao verbo criar, a ficção tem na arte o
No livro O que é ficção (WALTY, 1985), Ivete Lara questiona: seu sentido original, como afirma Ivete Lara: A arte seria o
não seria pois, a existência da ficção que nos permitiria pôr veículo de libertação e, considerando o exposto, a ficção pode
em causa a realidade tal como nós a percebemos? E que uma ser mais real o que se quer realidade, e o real pode ser mais
boa forma de se pensar sobre isso é verificando o espaço ficcional que o que se quer ficcional.
concedido à ficção em nossa sociedade, seja em forma de Clarice Lispector em A hora da estrela olha o mito
arte ou de qualquer outra manifestação? Portanto, onde está Macabéia como uma leitura da realidade, através de sua
a ficção? Como convivemos com ela? própria leitura enquanto personagem, pode-se ler com nitidez
Se reparar bem, verá que ficção tem espaços bem a sociedade de que ela faz parte.
delimitados na sociedade em que vivemos - o cinema, a TV, É claro que como escritor, tenho a tentação de usar
os livros, as revistas em quadrinhos etc. - mas que ela termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos,
penetra até redutos “sagrados” como a escola, a igreja, a carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam
família e aí se questiona, por que ela não é temida e proibida, agudos o ar em vias de ação já que palavra é ação,
como acontecia na República de Platão? concordais? Mas não vou enfeitar a palavra pois se eu tocar
Ivete Lara considera que a sociedade está dividida em dois no pão da moça esse pão se tornará em ouro - e a jovem (ela
segmentos distintos: as coisas “sérias”, ligadas ao trabalho, à tem dezenove anos) e a jovem não poderia mordê-lo,
técnica, à ciência, ao progresso etc. - e as coisas não morrendo de fome. Tenho então que falar simples para captar
“sérias”, ligadas à diversão, ao lazer, ao riso, à fantasia, com a sua delicada e vaga existência. Limito-me a humildemente -
o cuidado de ambas conviver estabelecendo limites para que mas sem fazer estardalhaço de minha humildade que já não
a fantasia não ameace o real. seria humildade - limito-me a contar as fracas aventuras de
uma moça numa cidade toda feita contra ela. Ela que deveria
ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem

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nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o com objetivos pré-definidos, ou pode encontrar a outra saída:
terceiro ano primário. (LISPECTOR, 1985: 29). estar a serviço da arte, da criação.
Quando a escritora se questiona por que escreve, de forma Vivemos em uma sociedade capitalista globalizada, o que
simples responde que antes de tudo ela aplicou o espírito da torna quase impossível ignorar o poder do sistema
língua e assim, às vezes a forma é que faz o conteúdo. influenciando nossas condutas, opiniões, a vida, de modo
Escrevo e portanto não por causa da nordestina, mas por geral.
motivo de “força maior ", como se diz nos requerimentos Ivete Lara condensa com clareza esse pensamento:
oficiais, por “força de lei”. Já era a sua necessidade de Condenada ou consagrada, a ficção não foge ao controle
comparar-se a Macabéia, sozinha no mundo hostil como ela do sistema; quando escapa da censura explícita, encontra-se
mesma, pois eu também sou o escuro da noite. (LISPECTOR, sob outros mecanismos controladores velados, pois, como já
1993: 32) vimos, o sistema exclui ou assimila, modificando em proveito
Através de sua obra ficcional, critica a sociedade capitalista; a próprio, qualquer elemento que o ameace. Assim, um
reação de cada um de acordo com sua cultura ao pressentir discurso-denúncia pode ser esvaziado, neutralizado como se
“o diferente”! desativa uma bomba que pode destruir tudo o que se
... sou um homem que tem mais dinheiro do que os que encontra à sua volta.
passam fome, o que faz de mim de algum modo um E como você já viu, um dos mecanismos de desativação
desonesto. E só minto na hora exata da mentira. Mas quando da bomba é a restrição do espaço, é a difusão da crença de
escrevo não minto. Que mais? Sim, não tenho classe social, que ficção é coisa indigna de crédito, puro meio de lazer, de
marginalizado que sou. A classe alta me tem como um distração. Por isso você ouve, tantas vezes, alguém dizer que
monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu não gosta de ir ao cinema para pensar, pois acha que cinema
possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim. é para distrair, para esquecer dos problemas, O mesmo
(LISPECTOR, 1993: 55) ocorre em relação aos livros, à música, à TV.
Clarice Lispector, denuncia a forca do patrocinador, a forca da Não quero, com isso, negar a necessidade do lazer e até
ficção a serviço da realidade ao criticar o refrigerante mais da catarse, da liberação de sentimentos reprimidos, nem
popular do mundo. quero negar a ficção, a arte possam servir a tal objetivo, mas
Também esqueci de dizer que o registro que em breve vai não se pode reduzi-las a isso. A ficção é um discurso tão
ter que começar - pois já não agüento a pressão dos fatos - o digno de crédito como outro qualquer, porque, como qualquer
registro que em breve vai ter que começar é escrito sob o outro, ela faz uma leitura do real. Reduplicadora ou
patrocínio do refrigerante mais popular do mundo e que nem contestador, não importa, mas uma leitura não confiável
por isso me paga nada, refrigerante esse espalhado por todos tanto a da ciência ou a da história. Não se trata, é claro, de
os países. Aliás foi ele quem patrocinou o último terremoto checar os dados narrados com os acontecidos, mas de refletir
em Guatemala. Apesar de ter gosto do cheiro de esmalte de sobre a visão de mundo ali presente.
unhas, de sabão Aristolino e plástico mastigado. Tudo isso Narrativa verossímil ou absurda, não interessa, o que
não impede que todos o amem com servilidade e importa é o real re-velado por ela, e, mais ainda, a sua
sobrevivência. Também porque - e vou dizer agora uma coisa atitude crítica enquanto leitor, ouvinte ou espectador.
difícil que só eu entendo - porque essa bebida que tem coca é (WALTY, 1985: 79)
hoje. Ela é um meio da pessoa atualizar-se e pisar na hora A ficção como obra de arte é a pequena fresta que anuncia
presente. (Idem, p. 38) uma visão diferente da que é imposta. É através destas
A ficção como criação e arte denunciando a ficção a serviço frestas que o leitor poderá se instalar com seu próprio
da realidade. contexto de vida e de ser humano como membro de uma
Quando a criatura se volta contra o criador, o homem não sociedade.
tem consciência de que somente ele é capaz de mudar a Resta-nos coser para dentro (LISPECTOR, 1993: 5) como
realidade e chora diante de um drama na TV quando no aconselha Clarice Lispector, pois, mais uma vez citando-a, “a
cotidiano, vira o rosto e ignora o menino de rua que o vida é um soco no estômago.” (Idem, p. 102)
intercepta no trânsito.
“A moça é uma verdade da qual eu não queria saber. Não sei
a quem acusar mas deve haver um réu". (LISPECTOR, 1993:
55)
Os sonhos de Olímpio em ser deputado é a oportunidade da
escritora denunciar o despreparo com que muitos entram
para a política, afinal, quem era ele? A ficção como denúncia
da realidade:
– Sou muito inteligente, ainda vou ser deputado. E não é
que ele dava para fazer discursos? Tinha o tom cantado e o
palavreado seboso, próprio para quem abre a boca e fala
pedindo e ordenando os direitos do homem. No futuro, que
eu não digo nesta história, que ele terminou mesmo
deputado? E obrigando os outros a chamarem -no de doutor.
(Idem, p. 63)
Segundo Clarrisse Fukelman, na obra A hora da estrela,
através da ficção, Clarice Lispector denuncia a penúria do
nordestino e a incomunicabilidade que este se vê sujeito fora
de seus habitat sem, no entanto, roubar-lhe a identidade.
Consegue também provocar reflexão sobre o sentimento de
exílio que assalta o homem que se pergunta a que veio ao
mundo:
“O sertanejo é antes de tudo um ser paciente. Eu o perdôo”
(LISPECTOR, 1993: 83)
A ficção, como se pôde ver, pode estar a serviço do real
instituído pela classe dominante ou pode mostrar a saída para
clarear as idéias na edificação de um mundo diferente, que
margeia em uma terceira posição que não é policiada por
interesses redutores, lógicos, classificadores, mensuradores.
A ficção é uma forma de poder estar a serviço da realidade,
entrando em nossa vida de forma massificante, controladora,

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