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Essa primeira estrofe cantada por Larissa Luz , pode ser classificada como
um prólogo, a enunciação do que irá se desenrolar ao longo da narrativa. O prólogo
faz uma atenção à tragédia e veremos que, apesar da canção de Emicida
apresentar de maneira estilística um forte caráter lírico, ela possui também um
cunho trágico e dramático.
Nela o autor utiliza a metáfora do futebol, que é uma paixão coletiva , mas
que pode se transformar em uma grande tragédia, a medida que o gol tão esperado
não acontece, e faz isso trazendo uma ideia de unidade, pois todos os brasileiros
têm uma relação de afeto com o futebol. Ele reivindica uma solidariedade efetiva
que o futebol traz para a nação brasileira para dialogar com algo tão trágico que é a
narrativa que vai ser traçada na Ismália.
A chave deste prólogo é a ideia de que a felicidade do branco é plena, e a
felicidade do preto é quase. Esse “quase” vai acompanhar toda narrativa da canção,
representando uma realidade das pessoas pretas que vivem à margem, para quem
a felicidade plena é inalcançável. Há um telespectador que vê a cena acontecer e
que é passivo na história, essa cena é o “gol da humanidade”, que era o que ele
mais precisava, esse “gol” não é concretizado, há uma grande expectativa, o sonho
de realizá-lo, porém ele bate na trave.
Mais uma vez a ideia do sonho aparece aqui, o sonho de um dia estar nos
conformes, o sonho de ser livre das desgraças coletivas e mazelas sociais, à
medida que se conquista um diploma.
Essa estrofe faz referência à tragédia de Costa Barros, onde 5 jovens que
foram comemorar o primeiro salário de um deles, foram metralhados com 111 tiros
,dentro de um carro, por dois policiais.Ele faz a relação direta do racismo e da
criminalização do racismo, trazendo denuncia a branquitude e aos processos de
genocidio do povo negro.
Em seguida ele traz a leitura de Ismália, como se fizesse uma ponte, entre a
procura da humanidade com Ismália, a pessoa que vê na loucura o sonho como
forma de humanidade, Ícaro que vê no sonho, na engenhosidade das asas uma
forma de recuperação da sua humanidade ao sair do labirinto e por último com os
cinco jovens de Costa Barros, que veem a possibilidade de humanidade na
conquista de um emprego.
No final da canção Fernanda Montenegro performa o poema de Alphonsus
Guimarães, poema esse que é também sobre humanidade e sonho, e em sua
leitura vai dar voz e localizar Ismália.
Sendo a canção toda em tom menor, podemos sentir quase que de forma
sensorial a melancolia exposta na tragédia de Ismália, os acordes sustentados por
bastante tempo, (principalmente no início da canção) , faz com que toda atenção
seja voltada para a palavra dita e não para os acordes tocados. A harmonia da
canção segue em loop , assim como o refrão que sempre se repete “Ismália,
Ismália, Ismália" , essa anáfora traz uma ideia de continuidade, de algo que se
repete não só com o eu lírico, mas também com Ícaro, com a Ismália de Alphonsus
Guimarães e agora com a Ismália de Emicida.
Vemos que há uma tensão sensorial presente em toda canção, desde o
prólogo, interpretado pela cantora e compositora Larissa Luz, que utiliza de grandes
pausas, intensidade nas notas e de acordes , de tal forma que conseguimos sentir
de forma visceral a tragédia anunciada. Essa tensão segue, na voz de Emicida, em
tons mais baixos e graves, onde ele mimetiza a gravidade do narrado e também ao
final, quando a atriz Fernanda Montenegro performa a poesia de Alphonsus
Guimarães, utilizando-se de pausas dramáticas e respiração pesada, acompanhada
do ritmo e melodia intrínsecos na canção, logo após Emicida dizer que "Quem
disparou usava farda (meu crime é minha cor) / Quem te acusou nem lá num tava
(eu sou um não lugar) / É a desunião dos pretos / Junto com a visão sagaz de quem
/ Tem tudo menos cor onde a cor importa demais". Aqui podemos nos valer do que
nos diz Adélia Bezerra de Meneses, em uma entrevista para Revista Cult.
A palavra cantada apresenta uma dimensão mais sensorial: ela nos atinge,
ainda mais do que a poesia, no nível dos sentidos. Mais do que num poema
(sobretudo numa leitura silenciosa, de lábios fechados), na canção a palavra é
corpo: modulada pela voz humana, portanto carregada de marcas corporais; a
palavra cantada é um sopro que se deixa moldar pelos órgãos da fala, trazendo as
marcas cálidas de um corpo humano. (Palavra viva/ palavra com temperatura,/
palavra”, diz Chico em “Uma palavra”). A palavra cantada é isso: ligação de sema e
soma, de signo e corpo. E se é verdade que o ritmo é fundamental e
necessariamente presente em toda a poesia escrita, é verdade também que ele se
alardeia com mais intensidade na música. E o ritmo participa da ordem biológica.
Pois o ser humano é submetido a ritmos na vida de seu corpo: a respiração, com o
movimento de expansão/retração dos processos de inspirar e expirar; o pulsar do
coração, o latejar do sangue nas veias. É por isso que a música nos pega tão
visceralmente: o ritmo tem seu paradigma na esfera orgânica, remete a algo
visceral. (MENESES. 2003 p. 54-59)
Bibliografia:
Anatol ROSENFELD, “A teoria dos gêneros”. In: O teatro épico. 4a ed. São Paulo:
Perspectiva, 2000. p. 13-36.
AZEVEDO. M. Amailton & SILVA. J. Salomão: Um raio X do movimento hip hop.
In: Revista da ABPN • v. 7, n. 15 • nov. 2014 – fev. 2015, p.212-239