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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS


Canção brasileira, tradições populares e mundialização da cultura

Análise da canção “Ismália” do rapper Emicida

Trabalho de aproveitamento da disciplina


Canção Brasileira, Tradições Populares e Mundialização da Cultura

São Paulo, 2020

Para Amailton Magno Azevedo e Salomão Jovino da Silva, no artigo “ Um


Raio X do movimento Hip Hop”, o rap enquanto estilo musical desenvolvido na
Periferia da grande São Paulo estruturou-se a partir de três atitudes de alto grau de
transgressão: estética, ideológica e comercial. Transgressão estética pois rompe em
caráter quase definitivo com as normas pré definidas do que era considerado a boa
música. Declama-se a poesia ao invés de se cantar. Transgressão ideológica
porque parte significativa das letras dos rappers tratava de temas pouco explorados
na música brasileira, isso quer dizer ao menos da maneira tão direta como acontece
com algumas letras que falam de racismo e violência policial contra os
afrodescendentes.Rompendo com o discurso macio e dúbio de alguns compositores
negros, tidos como engajados na luta contra a discriminação.
A canção Ismália (faixa do disco Amarelo,2019) do rapper Emicida insere-se
nesse contexto, não só por trazer como um dos temas principais, o racismo e a
violência policial que contibue para o genocídio do povo negro, mas também por
mesclar a sua poesia periférica falada, com a poesia canõnica escrita de Alphonsus
Guimaraes, com a qual ele traça de maneira explícita uma profunda
intertextualidade.

Em ambas produções, a personagem Ismália projeta uma representação de


uma personagem adoecida por transtornos mentais e comportamento suicida. Cada
representação reflete o seu contexto histórico-social e étnico-racial.
.A Ismália do poeta Alphonsus Guimarães, traduz o transtorno mental e
comportamento suicida de uma mulher branca do início do século XIX, motivado por
fatores passionais. Na canção do Emicida essa personagem é ressignificada,
transformada numa mulher negra do século XXI, que traz consigo os transtornos
mentais ocasionados pelo racismo estrutural. Essa outra Ismália, é a matáfora dos
52,9% da população brasileira que são negros e negras. A Ismália representa o
lugar social e o lugar simbólico da população negra no imaginário da sociedade
brasileira, esses dois lugares contribuem para a manutenção e reprodução do
racismo.

Com a fé de quem olha do banco a cena


Do gol que nós mais precisava na trave
A felicidade do branco é plena
A pé, trilha em brasa e barranco, que pena
Se até pra sonhar tem entrave
A felicidade do branco é plena
A felicidade do preto é quase

Essa primeira estrofe cantada por Larissa Luz , pode ser classificada como
um prólogo, a enunciação do que irá se desenrolar ao longo da narrativa. O prólogo
faz uma atenção à tragédia e veremos que, apesar da canção de Emicida
apresentar de maneira estilística um forte caráter lírico, ela possui também um
cunho trágico e dramático.
Nela o autor utiliza a metáfora do futebol, que é uma paixão coletiva , mas
que pode se transformar em uma grande tragédia, a medida que o gol tão esperado
não acontece, e faz isso trazendo uma ideia de unidade, pois todos os brasileiros
têm uma relação de afeto com o futebol. Ele reivindica uma solidariedade efetiva
que o futebol traz para a nação brasileira para dialogar com algo tão trágico que é a
narrativa que vai ser traçada na Ismália.
A chave deste prólogo é a ideia de que a felicidade do branco é plena, e a
felicidade do preto é quase. Esse “quase” vai acompanhar toda narrativa da canção,
representando uma realidade das pessoas pretas que vivem à margem, para quem
a felicidade plena é inalcançável. Há um telespectador que vê a cena acontecer e
que é passivo na história, essa cena é o “gol da humanidade”, que era o que ele
mais precisava, esse “gol” não é concretizado, há uma grande expectativa, o sonho
de realizá-lo, porém ele bate na trave.

Olhei no espelho, Ícaro me encarou


Cuidado, não voa tão perto do Sol
Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei
O abutre quer te ver de algema pra dizer: Ó, num falei?!

Na segunda estrofe, temos a auto imagem do narrador no espelho, e quem o


encara é Ícaro. Sabe-se que ícaro é um personagem da mitologia grega,
caracterizado como um sonhador, ele é filho do arquiteto Dédalo, no mito que conta
a história do minotauro, os dois, pai e filho acabam ficando presos no labirinto
construído para prender o monstro e para conseguirem fugir, Dédalo teve a ideia de
construir asas feitas com penas de gaivotas coladas com cera de abelhas. Os dois
saíram voando do labirinto e fugiram de Creta. Porém, ao sentir-se livre como um
pássaro, Ícaro começou a voar tão alto que o calor do sol fez suas asas derreterem,
e assim ele despencou das alturas e morreu. O eu lírico, assim como ícaro é alguém
que é avisado para não voar alto, esse sentido do voar alto pode ser entendido
como sonho, ou seja, a impossibilidade de sonhar do sujeito negro.
Ainda nessa estrofe ele trás a metáfora do abutre, um pássaro de mal
agouro, que come carniça e tem uma carga negativa simbólica em relação a ele. Ele
faz analogia desse abutre como um arquétipo que podemos pensar que é ocidente
em relação a humanidade plena desse sujeito negro, que na verdade é uma
realidade ‘’quase’.
O abutre quer ver o negro aljemado, depois drogado e por fim morto. Nota-se
que uma característica que vai seguir essa música, são as consequências do
genecício, a materialidade do genocidio.

No fim das conta é tudo Ismália, Ismália


Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Quis tocar o céu, mas terminou no chão
Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Quis tocar o céu, mas terminou no chão

O refrão da canção faz relação direta com o poema de Alphonsus


Guimarães. Ismália é a pessoa que procura a humanidade dentro da sua loucura,
causada pelo racismo estrutural, como foi dito anteriormente, o sonho de ser um
sujeito pleno que é interrompido, isto fica evidente nos versos seguintes:

Ela quis ser chamada de morena


Que isso camufla o abismo entre si e a humanidade plena

Na tentativa de recuperar essa humanidade ela busca o embranquecimento,


um lugar de pertença que não faz parte de sua realidade, pois existe um abismo
entre os negros e a humanidade ocidental. E aqui entra novamente a ideia de uma
felicidade “quase”.

Paisinho de bosta, a mídia gosta


Deixou a falha e quer medalha de quem corre com fratura exposta
Apunhalado pelas costa
Esquartejado pelo imposto imposta
E como analgésico nós posta que
Um dia vai tá nos conforme
Que um diploma é uma alforria
Minha cor não é um uniforme
Hashtags #PretoNoTopo, bravo!

Nesta estrofe Emicida enfatiza que os negros vivem em um país no qual a


mídia hegemônica cria uma narrativa distorcida sobre os fatos, e quer que essas
pessoas, vítimas dessas desgraças coletivas aplaudam e deem a medalha.
Ele faz uma construção imagética de enumeração: fratura exposta, apunhalado
pelas costa, esquartejado e por último ele vem com o analgésico de tudo isso que é
postar nas redes sociais.
“E como analgésico nós posta que/Um dia vai tá nos conforme”

Mais uma vez a ideia do sonho aparece aqui, o sonho de um dia estar nos
conformes, o sonho de ser livre das desgraças coletivas e mazelas sociais, à
medida que se conquista um diploma.

80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo


Quem disparou usava farda (mais uma vez)
Quem te acusou, nem lá num tava (banda de espírito de porco)
Porque um corpo preto morto é tipo os hit das parada
Todo mundo vê, mas essa porra não diz nada

Essa estrofe fala sobre a naturalização do genocídio do povo negro que


contribue para o adoecimento mental, físico e psiquico dessa população. O poeta
utiliza uma metáfora com assonãncia para dizer que esse genocídio está destinado
a quem tem pele preta, “pele alvo” e não a quem tem pele branca “pele alva”. Ainda
faz menção a tragédia ocorrida com a família que teve seu carro fuzilado com 80
tiros, por militares, no Rio de Janeiro.

Olhei no espelho, Ícaro me encarou


Cuidado, não voa tão perto do Sol
Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei
O abutre quer te ver drogado pra dizer: Ó, num falei?!
Aqui ele volta com a estrofe falando sobre Ícaro, mas diferente da primeira
parte, o abutre quer vê-lo drogado. E esse é um segundo processo de opressão e
de ação genocida contra os corpos pretos.

No verso “Ter pele escura é ser Ismália, Ismália”


Vemos a constatação dessa ideia do sonho que vai ser desumanizado sobre essa
lógica do Ícaro, que teve também um sonho de fugir do labirinto e alcançar o Sol
com as asas, Ismália e Ícaro tendo o sonho e a morte como um caminho traçado.

Primeiro, sequestra eles, rouba eles, mente sobre eles


Nega o Deus deles, ofende, separa eles
Se algum sonho ousa correr, cê para ele
E manda eles debater com a bala de vara eles, mano
Infelizmente onde se sente o Sol mais quente
O lacre ainda tá presente só no caixão dos adolescente
Quis ser estrela e virou medalha num boçal
Que coincidentemente tem a cor que matou seu ancestral

Nessa estrofe o rapper narra todo processo da escravidão e traz uma


metáfora do genocídio que ocorre na África, evidenciada pelos versos: “Infelizmente
onde se sente o Sol mais quente/O lacre ainda tá presente só no caixão dos
adolescente” . E o impedimento do sonho aparece novamente, tanto no verso “Se
algum sonho ousa correr, cê para ele”, mas também no penúltimo, que fala que o
indivíduo que “quis ser estrela, virou medalha” na mão do homem branco que matou
o seu ancestral. Também, o narrador reproduz o discurso da branquitude para
compreender o estado de coisas vivido por Ismália: "Primeiro sequestra eles /
Rouba eles / Mente sobre eles / Nega o Deus deles / Ofende / Separa eles / Se
algum sonho ousar correr, cê pára ele / E manda eles debater com a bala que vara
eles".
Há ecos aqui dos versos "A carne mais barata do mercado / É a carne negra /
Que vai de graça pro presídio / E pára debaixo do plástico / E vai de graça pro
sub-emprego / E pros hospitais psiquíatricos" ("A carne", de Marcelo Yuka, Seu
Jorge e Wilson Cappellette, defendida por Elza Soares no disco Do Cóccix até o
pescoço, 2002).
Um primeiro salário
Duas fardas policiais
Três no banco traseiro
Da cor dos quatro Racionais
Cinco vida interrompida
Moleques de ouro e bronze
Tiros e tiros e tiros
Os menino levou 111 (Ismália)
Quem disparou usava farda (meu crime é minha cor)
Quem te acusou nem lá num tava (eu sou um não lugar)
É a desunião dos preto, junto à visão sagaz
De quem tem tudo, menos cor, onde a cor importa demais

Essa estrofe faz referência à tragédia de Costa Barros, onde 5 jovens que
foram comemorar o primeiro salário de um deles, foram metralhados com 111 tiros
,dentro de um carro, por dois policiais.Ele faz a relação direta do racismo e da
criminalização do racismo, trazendo denuncia a branquitude e aos processos de
genocidio do povo negro.
Em seguida ele traz a leitura de Ismália, como se fizesse uma ponte, entre a
procura da humanidade com Ismália, a pessoa que vê na loucura o sonho como
forma de humanidade, Ícaro que vê no sonho, na engenhosidade das asas uma
forma de recuperação da sua humanidade ao sair do labirinto e por último com os
cinco jovens de Costa Barros, que veem a possibilidade de humanidade na
conquista de um emprego.
No final da canção Fernanda Montenegro performa o poema de Alphonsus
Guimarães, poema esse que é também sobre humanidade e sonho, e em sua
leitura vai dar voz e localizar Ismália.
Sendo a canção toda em tom menor, podemos sentir quase que de forma
sensorial a melancolia exposta na tragédia de Ismália, os acordes sustentados por
bastante tempo, (principalmente no início da canção) , faz com que toda atenção
seja voltada para a palavra dita e não para os acordes tocados. A harmonia da
canção segue em loop , assim como o refrão que sempre se repete “Ismália,
Ismália, Ismália" , essa anáfora traz uma ideia de continuidade, de algo que se
repete não só com o eu lírico, mas também com Ícaro, com a Ismália de Alphonsus
Guimarães e agora com a Ismália de Emicida.
Vemos que há uma tensão sensorial presente em toda canção, desde o
prólogo, interpretado pela cantora e compositora Larissa Luz, que utiliza de grandes
pausas, intensidade nas notas e de acordes , de tal forma que conseguimos sentir
de forma visceral a tragédia anunciada. Essa tensão segue, na voz de Emicida, em
tons mais baixos e graves, onde ele mimetiza a gravidade do narrado e também ao
final, quando a atriz Fernanda Montenegro performa a poesia de Alphonsus
Guimarães, utilizando-se de pausas dramáticas e respiração pesada, acompanhada
do ritmo e melodia intrínsecos na canção, logo após Emicida dizer que "Quem
disparou usava farda (meu crime é minha cor) / Quem te acusou nem lá num tava
(eu sou um não lugar) / É a desunião dos pretos / Junto com a visão sagaz de quem
/ Tem tudo menos cor onde a cor importa demais". Aqui podemos nos valer do que
nos diz Adélia Bezerra de Meneses, em uma entrevista para Revista Cult.

A palavra cantada apresenta uma dimensão mais sensorial: ela nos atinge,
ainda mais do que a poesia, no nível dos sentidos. Mais do que num poema
(sobretudo numa leitura silenciosa, de lábios fechados), na canção a palavra é
corpo: modulada pela voz humana, portanto carregada de marcas corporais; a
palavra cantada é um sopro que se deixa moldar pelos órgãos da fala, trazendo as
marcas cálidas de um corpo humano. (Palavra viva/ palavra com temperatura,/
palavra”, diz Chico em “Uma palavra”). A palavra cantada é isso: ligação de sema e
soma, de signo e corpo. E se é verdade que o ritmo é fundamental e
necessariamente presente em toda a poesia escrita, é verdade também que ele se
alardeia com mais intensidade na música. E o ritmo participa da ordem biológica.
Pois o ser humano é submetido a ritmos na vida de seu corpo: a respiração, com o
movimento de expansão/retração dos processos de inspirar e expirar; o pulsar do
coração, o latejar do sangue nas veias. É por isso que a música nos pega tão
visceralmente: o ritmo tem seu paradigma na esfera orgânica, remete a algo
visceral. (MENESES. 2003 p. 54-59)

É exatamente essa construção que Emicida faz em toda canção, em cada


camada da música é possível sentir a dimensão trágica de forma sensorial, a partir
da modulação da voz dos três intérpretes, de suas respirações e de suas pausas
com o intuito de narrar tragicamente a interdição do sonho, da liberdade.
Por fim, o que Emicida propõe é uma interpretação radicalmente nova e
pertinente ao poema de Alphonsus de Guimaraens. Fatos reais identificados pelo
ouvinte atento aos noticiários se misturam à história de Ismália. Essa remissão à
realidade concreta é um procedimento em que Emicida repara as lacunas deixadas
pela historiografia literária ao criar os possíveis motivos que levaram a Ismália de
Alphonsus à loucura, ao suicídio.

Bibliografia:

Adélia Bezerra de MENESES “Lirismo e resistência”. Entrevista a Manuel da


Costa Pinto. Cult, ano VI, nº 69. São Paulo, Editora 17, 2003. p. 54-59.

Anatol ROSENFELD, “A teoria dos gêneros”. In: O teatro épico. 4a ed. São Paulo:
Perspectiva, 2000. p. 13-36.
AZEVEDO. M. Amailton & SILVA. J. Salomão: Um raio X do movimento hip hop.
In: Revista da ABPN • v. 7, n. 15 • nov. 2014 – fev. 2015, p.212-239

EMICIDA. Amarelo. São Paulo: Laboratório Fantasma 2019. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=kjggvv0xM8Q&list=PL_N6VL1gm0aLlr0HQ6yl2lR
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