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AULA EXTRA

MISSA
DO GALO
MACHADO DE ASSIS

Sulamita Avelino Cardoso Marques - sulamarques@icloud.com - IP: 149.19.165.1


Introdução e comentários

Fala, meu povo, tudo bem?

Sejam bem-vindos à aula extra sobre o conto Missa do Galo, de Machado de


Assis!

Missa do Galo não é um conto curto, fácil de ler e extremamente sutil. É


maravilhosamente bem escrito sem possuir ideias filosóficas complexas ou
coisa do gênero.

Assim sendo, quero lhes perguntar: quem aí já tinha lido alguma coisa do
Machado antes desse conto?

“Já li A Cartomante.”
“Li Esaú e Jacó.”
“Nunca li Machado de Assis.”
“Nunca tinha lido Machadão ou qualquer outro clássico.”

São vocês, que nunca leram, que eu quero pescar!

Sem mais delongas, vamos à aula!

Início da aula

Eu reli o conto, pois o havia lido já há um tempo.

Nessa releitura apliquei um olhar mais apurado e, rapaz, percebi que devia tê-lo
lido, lá atrás, com esse mesmo olhar minucioso, pois Missa do Galo é um conto
extremamente bem construído e escrito.

Sua narrativa demonstra com maestria aquela mesma sutileza e poder de


ambiguidades que Machado viria a demonstrar em todo seu esplendor em Dom
Casmurro.

Inclusive, em Missa do Galo, Machado trata mais ou menos do mesmo tema


de Dom Casmurro, a saber, traição.

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Temos também um narrador que padece mais ou menos dos mesmos
problemas que Bentinho.

O conto

O conto é narrado por um tal sr. Nogueira. A ideia geral da narrativa é que este sr.
Nogueira, na noite de Natal, acaba tendo uma conversa “curiosa” com a dona da
casa.

E a primeira coisa interessante a se notar neste conto é que essa coisa de Natal
com árvores, Papai Noel, duendes, presentes, comilanças e toda essa imagem
que nos foi trazida sobretudo por Hollywood, não existia naquela época.

Inclusive, na noite de Natal em que ocorre a Missa do Galo não está havendo
nenhuma confraternização familiar, com um banquete e a família reunida.

O conto chama-se Missa do Galo justamente porque existe uma missa com
esse nome.

Por quê? Porque a tradição conta que um galo cantou.

Essa missa acontece na virada do dia 24 para 25 de dezembro. O sr. Nogueira


encontra-se na casa do escrivão, um parente seu. Esse escrivão, Meneses, tinha
se casado com uma prima do sr. Nogueira.

Por algum motivo essa união acabara e o escrivão casou-se com outra
mulher, a Conceição.

Essa relação de parentesco, ainda que bastante distante, acabara se mantendo,


e o Nogueira, que viera da roça, fora para a capital a fim de estudar.

Nogueira, um jovem de 17 anos ingênuo e livresco — apaixonado por leitura —,


com poucas relações, ou seja, sem uma vida social muito ativa, acaba ficando
hospedado na casa desse escrivão para estudar.

Nessa casa morava o escrivão, sua esposa, a mãe da esposa e duas escravas.

E agora vamos dar uma olhadinha em alguns pontos interessantes sobre o


conto.

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Narração

A narração de Missa do Galo é em primeira pessoa. Ou seja, é o próprio Nogueira


quem conta a história.

Só que essa é uma história do passado, portanto podemos supor que quem a
conta é um Nogueira já bem mais velho relatando algo que aconteceu há
muitos anos.

Logo, não é uma primeira pessoa sendo contada no ato; há uma distância aqui.

Ora, qualquer pessoa que tenha o mínimo de atenção sobre si mesma, vai
perceber que existe uma grande diferença entre contar algo que aconteceu,
digamos, no mesmo dia mais cedo, ou ontem ou há um mês, do que narrar algo
que ocorreu há vinte ou trinta anos.

A memória, mesmo que você não queira dissimular, seleciona os fatos,


colorindo-os de forma que nós não percebemos.

Em outras palavras, a memória nos engana.

Ambiguidade

Missa do Galo é repleto de ambiguidades, de coisas apenas sugeridas.

Além disso, são sugeridas de duas formas: porque ficam no ar ou porque a


pessoa disse aquilo com uma segunda intenção.

E assim que ler isso, você vai imaginar: “Ah! Ele está falando da Conceição!” Sim,
estou falando da Conceição… mas também estou falando do narrador.

Dê uma olhada na primeira frase do Nogueira:

“Eu nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora há muitos
anos.”

Nogueira quer nos fazer acreditar que ele, já maduro, ainda não tinha
entendido aquela conversa.

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Entre Nogueira e Conceição existem várias diferenças bastante significativas.
Conceição era mais velha, tinha 30 anos.

Qualquer homem que não seja um moleque de 12 anos de idade sabe que uma
mulher na casa dos 30 é uma mulher que, às vezes, está no ápice, pois já tem
maturidade suficiente para transmitir uma sensualidade muito mais sutil e
atraente, enquanto mantém parte de sua beleza e viço naturais.

Conceição, por morar na capital, supostamente tinha mais trejeitos sociais do


que Nogueira. Era a dona da casa e, obviamente, mais madura.

Com uns poucos anos a menos, Nogueira poderia até ser filho de Conceição.

Vamos dar uma olhada no texto:

“Ah! Eu nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao
Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões,
a sogra fazia uma careta e as escravas riam à socapa. Ele não respondia,
vestia-se, saia, e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube
que o teatro era um eufemismo em ação.”

Nogueira, todo inocente, pedia ao Meneses que o levasse consigo ao teatro, que
era como um cinema naquela época. Quando isso acontecia, Meneses não dizia
nada, a sogra fazia careta, e as escravas riam “à socapa”.

Quero fazer um parênteses aqui: “à socapa” significa “na moita”,


“sorrateiramente”, “furtivamente”. Trata-se de uma locução adverbial de modo,
ou seja, são palavras que traduzem o modo como alguém faz alguma coisa.

Trocando em miúdos, Nogueira quer dizer que as escravas riam às escondidas,


para que o patrão não visse. “À socapa” vem de “sob a capa”. Bem, quando li esse
conto pela primeira vez, o fiz rapidamente, sem atenção. Na ocasião imaginei
que “à socapa” significasse algo como rir abertamente, gargalhar.

E nessa releitura percebi que é o inverso: as escravas davam risadinhas


escondidas.

E por que estou dizendo tudo isso?

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Bem, volta e meia alguém me pergunta: “Raul, como eu aumento meu
vocabulário?”

Seu vocabulário é aumentado de forma orgânica, leitor. Você começa a ler algo e
se depara com alguma palavra que não conhece. Ao se interessar por aquilo,
você pesquisa o significado e o descobre.

É assim que se vai ganhando vocabulário.

E voltando ao texto, Nogueira descobriu:

“Meneses trazia amores com uma senhora separada do marido, e dormia fora
de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a
existência da comborça; mas afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou
achando que era muito direito.”

Neste trecho já temos um sinal de que o narrador não é uma pessoa lá muito
confiável.

No começo Conceição tinha sofrido com a amante. Depois se resignara, ou seja,


aceitara a contragosto a situação. Mais tarde se acostumou — se familiarizou —
com a situação. E no final ainda acabou achando que era até bom o que
acontecia.

Essa última parte é controversa. Mas sigamos:

“Boa Conceição, chamavam-lhe ‘a santa’, e fazia jus ao título, tão facilmente


suportava os esquecimentos do marido. O narrador diz que a chamavam de
“santa” porque Conceição suportava facilmente os esquecimentos do marido.
Em verdade, perceba que em nenhum momento Nogueira diz abertamente que
Conceição levava chifres.

Não há nenhum esculhambo; tudo é muito sutil, muito respeitoso. Porém,


sempre com uma alfinetada irônica e venenosa.

Continuemos:

“Em verdade era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes


lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana;
aceitaria um harém, com as aparências salvas.”

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Segundo Nogueira, o que importava para Conceição eram as aparências; con-
tanto estas estivessem salvas, ela aceitaria dúzias de amantes do marido.

“Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito
nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de nin-
guém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar.”

Aqui Nogueira está sendo completamente irônico quando diz que Conceição era
chamada de “santa”, pois sabe muito bem que não era assim.

Conceição não aceitava aquela condição por ser virtuosa; era, segundo ele,
porque Conceição tinha um “temperamento moderado”.

Conceição era passiva. Não conseguia se erguer a nenhuma grande comoção,


nem quando sistematicamente traída, com todos sabendo. Era uma mulher
passiva, fraca, segundo Nogueira. Não era santa e Nogueira sabe disso.

E então chegamos à parte em que Nogueira está esperando a hora da Missa do


Galo.

A noite de Natal

Nogueira se arruma e pretende ficar esperando dar meia-noite, que é a hora que
se inicia a missa.

Sua ideia é ficar sentado na sala, já arrumado, lendo um livro até dar a hora. Esse
livro era Os Três Mosqueteiros, e Nogueira lá estava, todo inocente a ler seu livro
sob a luz de velas, até que…

“Um pequeno rumor que ouvi dentro, veio acordar-me da leitura. Eram uns
passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo
depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição.”

Eu adoro a palavra “assomar”. Ela significa “principiar a manifestar-se, a deixar-


-se ver confusamente.”

Ou seja, Nogueira escuta os passos no corredor, levanta a cabeça e logo depois


avista um vulto que se deixa entrever na porta da sala.

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Conceição surge meio que se escondendo, meio que se mostrando.

Qualquer mulher sabe que essa é justamente a arte da sedução; é saber o que
esconder e o que mostrar nas horas certas.

Toda a ação de Conceição irá consistir nesse esconde-mostra, até um certo


momento em que vai ficar de saco cheio, botando um ponto final no jogo.

Porém, o jeito que Machado vai descrevendo o modus operandi da sedução dela
é um troço maravilhoso:

“— Ainda não foi? perguntou ela.


— Não fui, parece que ainda não é meia-noite.
— Que paciência!
Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar
de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o
livro, ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do
canapé.”

Nogueira lhe pergunta se fez algum barulho que a acordou. Conceição responde
com presteza:

“— Não! Que isso! Acordei por acordar!”

Nogueira fita Conceição — essa parte é maravilhosa — e duvida um pouco da


afirmativa porque “os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir;
pareciam não ter ainda pegado no sono.”

Conceição diz que acabara de acordar, mas Nogueira constata que ela não
estava com cara de sono, olhos inchados e tal. “Essa observação, porém, que
valeria alguma cousa em outro espírito, depressa a botei fora…”

Essa observação, de que Conceição tinha mentido valeria alguma coisa em


algum outro espírito, referendo-se a um espírito mais malicioso. Só que o
narrador, querendo manter esse ar de santinho, continua:

“…sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e
mentisse para me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito
boa.”

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Ou seja: Nogueira diz que saber que a mulher tinha mentido teria valido alguma
coisa em outro espírito mais malicioso, e ele descarta aquilo sem se dar conta de
que Conceição talvez não dormisse por sua causa.

O leitor, vendo isso, já vai entender que Nogueira sabia o que estava
acontecendo.

Só que com a conclusão, Nogueira quer nos fazer acreditar que ainda achava
hoje, depois de maduro e vivido, que ela tinha mentido mesmo só para não
afligi-lo e não porque, obviamente, a mulher estivesse enredando-o num
joguinho de sedução.

O narrador é um mentirosinho, no fim das contas.

Se Conceição mente para seduzir Nogueira, Nogueira no mínimo distorce um


pouco as coisas para nos fazer acreditar que até hoje, já velho, era a imagem da
ingenuidade.

E então começa o jogo da sedução.

“— Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E


esperar sozinho!”

Toda mulher sabe que, dependendo da inflexão da voz ao dizer “sozinho”, ela
quer… Bem, você sabe, não é, leitor?

“— Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse


quando me viu.”

Com isso, Conceição já dá duas entradas enormes para o sujeito. Como ele
estava sozinho, Conceição achou que ele iria “se assustar” quando visse seu
vulto. E Nogueira, idiotamente, responde que não, que só estranhou quando
ouviu os passos, mas que logo em seguida viu a mulher. Desse modo ele meio
que quebra o clima.

“— Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.
— Justamente: é muito bonito.
— Gosta de romances?
— Gosto.
— Já leu a Moreninha?”
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Caso você não saiba, leitor, A Moreninha é um romance de amor, de paixão.

Logo, Conceição puxa esse assunto porque quer introduzi-lo na conversa.

“— Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.”

Nogueira continua sem perceber nada. E então começam os jogos de corpo.

“Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos


por entre as pálpebras meio-cerradas…”

Repare no verbo que Machado utiliza aqui: enfiar. A imagem é a de que


Conceição está com os olhos meio fechados, e seu olhar se enfia por baixo das
pálpebras, como se fosse alguém espiando por baixo de uma porta.

Suas pálpebras estão escondendo alguma coisa, e por baixo o olhar se enfia.
Isso é escrita de alto nível, leitor.

“...sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para
umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim
alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e
sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo
sem desviar de mim os grandes olhos espertos.”

Depois todo mundo fica revoltado comigo quando falo que Cinquenta Tons de
Cinza é uma merda de livro! Vejam como sem usar nenhum verbo de natureza
explicitamente — ou mesmo vagamente — sexual, Machado vai criando uma
tensão sexual absolutamente palpável.

Você quase sente a atmosfera. É como se estivesse lá junto do Nogueira.

E aí a galera que assiste Masterchef fica falando que queria comer um prato de
R$1.500 do Alex Atala para sentir a explosão de sabores e a sutileza de sua
construção.

Olha, não que eu esteja diminuindo a gastronomia, mas quando você fala de
sutileza e de construção de imagens e sensações com a linguagem, que é uma
coisa mil vezes mais elevada do que a comida, as pessoas não querem pagar
nem R$20 num livro; não querem gastar 5 ou 10 minutinhos para ler um conto.

Dito isso, continuemos, leitor.


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Então, para quebrar a tensão:

“— D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu...


— Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio, são onze e meia. Tem
tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?”

Conceição de novo dá um jeito de entrar “naquele assunto”.

“— Já tenho feito isso.


— Eu, não, perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora
que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.”

Terceira entrada.

“— Que velha o que, D. Conceição?”

E assim que Nogueira dá essa ênfase, Conceição sorri.

“De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranqüilas; agora,


porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns
passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o
desalinho honesto que trazia…”

Desalinho aqui significa desafeto: Conceição estava se movendo de modo


natural e levemente perturbado. Ou seja, havia alguma comoção na mulher.

“...dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que
balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me
pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando
um trecho de cortina ou concertando a posição de algum objeto no
aparador…”

Conceição começa a vagar pela sala, arrumando uma coisa aqui, outra ali, com
seu look meio íntimo. Para quê?

Quem leu Orgulho e Preconceito vai saber!

O sr. Darcy diria que uma mulher que se levanta e fica andando na frente de
um homem, quer se mostrar para ele.

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“...afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo
das suas idéias…”

Ou seja, obviamente ela não estava afim de só conversar, porque voltou à


história de ficar espantada de ver Nogueira ainda acordado. A isso o rapaz repete
a mesma coisa sobre a missa etc. Então voltamos a mais um ato no jogo sexual:

“Pouco a pouco, tinha-se reclinado…”

A mulher estava em pé, com a mesa entre si e Nogueira; aos pouquinhos,


enquanto falava, Conceição se reclinou para ficar cara a cara com o rapaz.

“…fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos


espalmadas.”

Sim, leitor, literalmente olhando para Nogueira com as mãos emoldurando o


rosto. E como as mangas de seu roupão não estavam abotoadas, a manga cai e
Nogueira vê metade dos braços dela.

Naquela época, ver os braços de alguém era um troço muito sexualizado,


porque não se via NADA do corpo da mulher.

Lá em Dom Casmurro, por exemplo, Bentinho fica muito enciumado porque os


sujeitos não paravam de olhar os braços de Capitu. Só que no caso de Bentinho
estamos falando de uma mulher com o marido numa festa de gala, uma outra
situação.

“…eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se
poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse
comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande.”

Aqui Nogueira dá a entender que já tinha visto os braços de Conceição. Mas


naquele momento… rapaz! Naquele momento, no silêncio, à luz de velas, os dois
sozinhos, falando baixo para não acordar ninguém na casa…

É óbvio que um ambiente desses trazia uma nova aura para os braços de
Conceição.

“As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do
meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro.”

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Que livro que nada, não é? Então Nogueira começa a se empolgar:

“Falava emendando os assuntos, sem saber por que, variando deles ou


tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que
luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros,
mas escuros…”

E quando Nogueira se empolgava demais em suas histórias, Conceição pedia


para que ele falasse mais baixo para não acordar a mãe dela.

“E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as
nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido:
cochichávamos os dous, eu mais que ela, porque falava mais…”

Leitor, toda mulher do universo sempre irá falar mais do que o homem. Se,
numa situação dessas, estiver falando menos, é porque não quer falar.

“...ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida.
Afinal, cansou, trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se
do meu lado, no canapé.”

Conceição cansa de ficar lá, na frente de Nogueira, para ver se algo acontece. Ela
dá a volta na mesa e senta-se no canapé. Então Conceição diz, baixinho:

“— Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve, se acordasse agora,
coitada, tão cedo não pegava no sono.”

Repare na palavra-chave “longe” aqui. Conceição dá mais uma entrada.

E Nogueira, tonto:

“— Eu também sou assim.


— O quê? perguntou ela inclinando o corpo, para ouvir melhor.“

A mulher INCLINA o corpo na direção de Nogueira. E o que ele faz? Se levanta do


canapé e vai sentar-se na cadeira ao lado.

Nogueira estava, obviamente, sentindo a pressão da situação. Sabia o que estava


acontecendo. Por isso não confio nem que à época, Nogueira não soubesse
nada.

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Nogueira sente o cheiro de Conceição, sua respiração; ouve a voz da mulher
vibrando perto de seu ouvido. Isso faz com que ele, acuado, se levante.

“Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos
leves.
— Há ocasiões em que sou como mamãe, acordando, custa-me dormir outra
vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me
e nada.”

Nogueira responde que foi o que aconteceu hoje com Conceição, ao que ela
responde: “Não, não.”

Peraí… Conceição disse lá atrás que tinha acordado por acordar, tendo,
presume-se, tentado voltar a dormir; não conseguindo, tinha ido à sala.

Aqui Conceição diz que NÃO tinha acontecido isso. Em suma, ela estava
tentando deixar mais explícita a dissimulação do começo, para ver se
Nogueira se tocava.

“Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse.”

Não, senhor! Ele sabe que ela entendia muito bem. De novo o narrador dá um
migué! Nogueira, para de ser mentiroso, bicho! Ambos sabiam muito bem o que
estava acontecendo.

“Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos…”

Imagine a cena, leitor. A mulher já estava ficando impaciente. Ela cruza as


pernas, dando um sinal universal de “me possua”; Sharon Stone está aí para
comprovar o que digo.

“Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um


pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim
lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa.
Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra
pergunta ou outra matéria e eu pegava novamente na palavra. De quando em
quando, reprimia-me:
— Mais baixo, mais baixo...
Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via
dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono
nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor."

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De vez em quando havia uns silêncios, a mulher fecha os olhos e volta a abri-los,
despertíssima.

“Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa…”

Conceição percebeu que Nogueira estava completamente hipnotizado por ela.


Então voltou a fechar os olhos.

“Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas.”

Ah, tá! Até parece, Nogueira! Não é truncado nem confuso, não! Você sabia muito
bem o que tinha acontecido ali, seu safado!

“Uma das que ainda tenho frescas é que em certa ocasião, ela, que era apenas
simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu,
em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no
meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma cousa;
mas estremeceu…”

Quando Nogueira quis levantar, Conceição aplica pressão sobre seu ombro, para
que não o fizesse, ficando quase a ponto de dizer algo. Ela sente como que um
arrepio e volta a sentar-se na cadeira.

E aqui acaba a sedução.

O sinal óbvio do término da sedução é o seguinte: Conceição senta, relanceia a


vista pelo espelho e olha para cima, para duas gravuras que havia na parede.

“— Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar


outros. Chiquinho era o marido.”

Soltou o nome do marido, sabemos que acabou a brincadeira. Conceição faz


isso para jogar um balde de água fria na situação.

Então temos um vislumbre de como Conceição de boba não tinha nada.

Diz que não gostava dos dois quadros da sala pois eram figuras de mulheres, ao
que Nogueira retruca que os achava bonitos.

Conceição rebate:
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“— Bonitos são; mas estão manchados. E depois, francamente, eu preferia
duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de
barbeiro.
— De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.
— Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e
namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras
bonitas.”

Conceição não era estúpida. Por qualquer razão que fosse, ela fingia. Então, em
primeiro lugar, Conceição fala do marido; em segundo, de religião. Chega até a
dizer que tinha uma escultura religiosa em seu oratório. Com isso ela quebra
totalmente o encanto da sedução. Assim que ela menciona essas coisas,
Nogueira se lembra da missa e continua “empolgado”:

“Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela
contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha
alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina
e moça.”

Marido, religião, devoção, histórias aleatórias de bailes, passeios e lembranças;


histórias do passado, do presente… Em suma, a conversa muda totalmente de
tom.

“Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma
atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as
paredes.”

O olhar de Conceição não era mais o de antes, e agora permanecia parada, sem
mais se mover para lá e para cá. Então começa a falar consigo mesma.

“Concordei, para dizer alguma cousa, para sair da espécie de sono magnético,
ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria
acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela…”

A conversa ia morrendo; na rua, o silêncio era completo. Durante um tempo


ambos ficam completamente silenciosos, mas não é mais o mesmo silêncio de
antes; dessa vez é diferente.

Só se ouvia um rumor: o de um camundongo roendo alguma coisa no gabinete


do Meneses. Esse roer de camundongo no escritório do marido de Conceição é o
que faz Nogueira despertar daquela sonolência, quase como um símbolo do
final.
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E então, de súbito, alguém bate na janela e grita: “Missa do galo! Missa do galo!”

Nesse momento Conceição muda completamente o jeito de falar com Nogueira:

“— Aí está o companheiro — disse ela levantando-se. Tem graça; você é que


ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas;
adeus.
— Já serão horas? perguntei.
— Naturalmente
— Missa do galo! — repetiram de fora, batendo.
— Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus até amanhã. E com o
mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando
mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava.”

Nogueira então vai à missa. No dia seguinte ele conta a Conceição como foi a
experiência e ela é indiferente.

“Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse
lembrar a conversação da véspera.“

Ou seja, aquela Conceição que tinha se revelado para Nogueira na noite anterior
morrera, pelo menos para ele.

Após passado um tempo, Nogueira volta para o Rio de Janeiro e descobre que
Meneses morrera de apoplexia. A respeito de Conceição, só soubera:

“...mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.”

O escrivão — Meneses, no caso — é o chefe do escrevente. Dona Conceição


casou-se com um dos funcionários do falecido marido.

E aí vem a pergunta: será que Conceição começou a ter relações com esse
sujeito depois da morte do marido, ou será que Nogueira não fora o único a ver
aquele “outro lado” de Conceição?

O Bruxo

Isso nós não ficamos sabendo porque Machado era “o Bruxo”, o mestre da
ambiguidade.
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Pela interação que vimos no conto, fica claro que Conceição sabia como seduzir,
e talvez tivesse até uma certa experiência.

E o narrador, como não é trouxa, sabia muito bem de tudo isso. Seu cinismo e
jeito de se dirigir ao leitor é uma marca registrada de Machado de Assis, que
gostava de trazer o narrador para perto de quem está lendo.

A história vai te enredando e você é meio que seduzido pelo narrador.


Enfeitiçado pelo Bruxo.

Machado costumava dizer que sua escrita era “ébria” — bêbada. Em primeiro
lugar, Machado vai e volta. E um bêbado não anda em linha reta; você nunca sabe
se um bêbado está indo para esquerda ou para a direita. Além disso, o bêbado
tem uma característica de dissimulação.

Em suma, praticamente voltamos a Dom Casmurro com esse conto, pois temos
o mesmo tema: traiu ou não traiu?

Fica óbvio aqui que o marido traía; também, obviamente, Nogueira não “deu uns
pegas” em Conceição. Agora, se Conceição traía com um ou mais sujeitos, e se
aceitava passivamente ser traída porque também aprontava… Não saberemos.

Diferentemente de histórias como Cinquenta Tons de Cinza, aqui neste conto


você sente a sutileza da sedução feminina. É assim que se escreve algo para
durar até o fim dos tempos.

É por isso que Machado é um clássico, o maior escritor brasileiro de todos os


tempos.

Conclusão

Pessoal, me digam aí o que acharam dessa aula? Ela ajudou você a entender
melhor esse conto?

“Que aula maravilhosa, nem vi o tempo passar!”


“Aula incrível.”
“Gostamos e queremos mais.”
“Já valeu o preço do Clubão!”
“Muito boa essa aula, os detalhes fizeram toda a diferença.”

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E esse conto é “all about” os detalhes, as sutilezas. É uma narrativa meticulosa-
mente construída; Machado sabia muito bem o que estava fazendo, e nós perce-
bemos claramente a evolução da sedução.

Conceição vai aumentando o nível da sedução, ficando cada vez menos dissi-
mulada e mais explícita. Até o momento em que claramente se cansa, muda de
assunto.

E é assim que acontece na vida real.

“Li o conto tão rápido que acho que cometi um crime.”

É assim mesmo. Eu também li esse conto rápido demais da primeira vez.

Conforme for assistindo as aulas, você irá aprendendo a pegar esses detalhes
melhor. Seu olhar ficará mais treinado.

Inclusive, leiam de novo com tudo o que vimos durante a aula em mente, e
vocês vão perceber toda a construção da tensão sexual para, de uma vez só, a
coisa se esvaziar como uma bexiga murchando.

Encerramento da aula

Leitor, espero que você tenha gostado da aula.

Com isso você pôde ter um gostinho do que será o Clube Anual 2022.

Perceba que um escritor clássico, o é por algum motivo. Porque é alguém acima
da média, que escreveu com destreza, cuidado e atenção aos detalhes que
podem nos fazer gastar esse tempo maravilhoso e, com ele, prestarmos um
pouquinho mais de atenção à vida.

É assim que funciona a literatura.

A gente se vê na próxima aula!

Um forte abraço!

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