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RESUMO: Neste trabalho trazemos algumas reflexões acerca do livro de imagem da artista plástica mineira Angela-Lago,
denominado Cena de Rua. Em sua narrativa visual, a artista trata poeticamente da questão de crianças em situação de rua. A
composição imagética, o domínio técnico, o projeto gráfico e o apurado senso estético da artista foram elementos essenciais
na construção de uma das obras de literatura infantil mais premiada no mundo. Pautada na imagem, a artista retoma antigas
questões da realidade urbana e nos conduz em sua narrativa visual e faz-nos olhar de outro modo, pelo viés da infância.
PALAVRAS-CHAVE: Livro-de-imagem; literatura infantil; Angela-Lago; narrativa visual
Introdução
A presença de imagens em livros de literatura infanto-juvenil tem papel importante na constitui-
ção de significados entre a literatura e o leitor. A imagem convida o leitor a manusear um livro, assim
como um título inusitado de um livro também pode fazê-lo. A imagem nos comunica, ainda que não
tenhamos a intenção de sabê-lo. Ao contrário de um texto literário, que exige conhecimento prévio de
uma língua para sua leitura, a imagem pode ser apreendida apenas com um passar de olhos e mesmo
assim fixar-se na mente de quem vê.
Tratamos da imagem presente nas obras de literatura infantil. Nosso escopo consiste na elabo-
ração do chamado Livro de Imagem, gênero no qual sua narrativa se dá, sobretudo, a partir da compo-
sição de imagens em sequência narrativa.
Este trabalho representa um recorte da pesquisa desenvolvida no mestrado junto ao Instituto de
Artes da Unicamp, na área das artes visuais, fomentada pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo). Nesta pesquisa buscamos compreender os modos de criação de narrativas
visuais, a partir do relato de três artistas plásticos brasileiros que produzem livros de imagem. Para esta
apresentação trazemos um dos livros o qual estudamos seu processo de criação: Cena de Rua.
graduação em Artes Visuais, onde desenvolve pesquisa de mestrado, estudando o processo de criação dos artistas autores de livros de
imagem, junto ao Instituto de Artes da Unicamp, sob orientação da Profa. Dra. Lucia Reily. É bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (FAPESP).
A artista e seu processo de criação
Angela-Lago é, no cenário da literatura infantil, uma das autoras mais respeitadas, tendo como
especificidade o fato de ser uma exímia ilustradora. Tendo trinta anos de experiência como autora/ilus-
tradora, Angela-Lago recebeu diversos prêmios na área, tendo seus livros publicados em diversos países.
Por três vezes, foi candidata brasileira ao prêmio Hans Christian Andersen de Ilustração, promovido pelo
International Board on Books for Young People (IBBY).
Realizamos entrevista com a artista na qual ela discorreu sobre seus processos de criação e sua
concepção de literatura infantil. Todos os demais ilustradores entrevistados se referem à Angela-Lago
como alguém com muito conhecimento, tomando-a como referência na luta pela valorização da catego-
ria, seja em questões de qualidade artística e estética, seja pela luta por melhores remunerações dos
ilustradores, por questões de qualidade de impressão, tempo de criação, etc.3
Sua narrativa sobre seus processos criativos mostraram-nos uma artista inquieta, que busca,
através de sua experienciação artística, dialogar com questões concernentes ao universo do ser humano,
como sentimento do amor, do envelhecimento, amizade, etc., bem como de reescrever contos tradicio-
nais. Angela explora os temas assim como o faz com as técnicas. Aquarela, acrílica, óleo, photoshop,
tablet, fotografia são algumas das estratégias da artista na construção de suas imagens, nas quais fica
evidente o domínio da técnica na composição dessa imagem. Conforme o artista percorre sua trajetória
artística percebe que a técnica corresponde ao fazer manual, que pode ser aprendido por qualquer pes-
soa, na cultura em que vive, expressando, assim, certas vivências pessoais que se tornaram possíveis em
determinado contexto cultural.
Para Ostrower, a técnica representa um instrumento de trabalho, que o artista precisa conhecer
e dominar com plena soberania, mas nas obras de arte, as técnicas acabam se tornando invisíveis sendo
absorvidas inteiramente pelas formas expressivas. (1990:18).
Outro ponto relevante no processo de criação da artista é a compreensão do livro enquanto su-
porte, enquanto substrato da imagem. Angela se apropria do projeto gráfico na construção dos signifi-
cados de seus livros, ampliando as possibilidades de criação de sentidos com a literatura.
3Entrevista realizada em Belo Horizonte em 05/12/2008, coletada por áudio e vídeo. Os demais artistas os quais seus processos de criação
são nosso objeto de estudo são Graça Lima e André Neves.
A composição de elementos que desencadeiam uma narrativa exige um conhecimento prévio
das estruturas plásticas necessárias, como domínio técnico do fazer artístico, forçosamente. Não obs-
tante, a complexidade da estruturação narrativa, pensando em imagens em sequência narrativa, con-
siste em um complicado trabalho de artista, detentor de um planejamento espacial, um apurado senso
estético, um humor refinado, consciência de seus propósitos educativos, etc.
O uso intencional da cor é empregado como recurso narrativo na caracterização dos personagens
e na ambientação do espaço da cena, como pode ser observado no início da narrativa. O menino é verde
e usa roupas em tons de azul. Tem as pernas tortas e o pescoço inclinado. Não existem delimitações
claras entre os elementos da composição, de modo que se mesclam as fronteiras entre o menino e os
carros e o escuro da noite. A imagem sem contorno nos remete à falta de visibilidade própria da noite.
Nesta primeira imagem, composta por página dupla, pode-se observar que a artista se apropria da dobra
do meio da folha utilizando-a como um suporte para a narrativa. Esta dobra representa, normalmente,
um empecilho para o ilustrador, já que a imagem será cortada ao meio. Angela estrutura a imagem de
modo que a dobra coincida com as articulações do menino, as quais, no movimento de leitura do livro,
a imagem plana desloca-se dando vida ao menino e contribui com a sua atuação na história.
Embora ambos os personagens sejam proporcionais o homem, por ser vermelho, é sobressalente e toma
o foco da imagem. O olhar entre os dois é ponto alto da imagem, entre a acusação e o medo, o de dentro
e o de fora, o motorista e o pedestre, o adulto e a criança.
Assumindo esta dobra da página, a artista a utiliza como recurso de identificação com o leitor,
como pode ser observado, também, na imagem abaixo (ilustração 2). No movimento de leitura, as late-
rais se fecham e encurralam, ainda mais, o menino entre os carros. Do mesmo modo que aproxima os
personagens do leitor, levando à ideia de identificação, como se o leitor estivesse ao lado os demais
personagens, entre o motorista e seus cães.
O uso da cor nesta imagem (ilustração 2) nos remete a constituição dos personagens. A motorista
tem a mesma cor que os cães, seus dentes são pontiagudos, recursos estes empregados como uma
forma de aproximação da condição de animalidade; ela é um animal agressivo, assim como os cães. Os
carros nesta imagem se diferem da anterior, sendo amarelos.
No decorrer da narrativa confrontamo-nos com algumas situações as quais o menino vive em seu
cotidiano, na situação suscetível a que se encontra. Na sequência da narrativa visual, uma mulher rouba
um dos objetos os quais o menino vende na rua. Em nenhuma das imagens a artista colocou a presença
de um semáforo para localizar a história. No entanto, no uso das cores, a artista emprega nos objetos
que o menino vende as cores referentes à convenção das cores do trânsito.
O emprego da cor nas imagens seguintes representa os sentimentos que permeiam a situação.
Se nas imagens anteriores (ilustrações 1 e 2) as matizes avermelhadas eram utilizadas nos momentos
negativos, nos personagens ‘maus’, vemos na próxima imagem (ilustração 3) que a personagem da vez
tem traços dessa matiz, mas também tem variações de cor entre azul e verde - que são as cores do
menino. O uso da dobra da página é utilizado nesta página que, no movimento da leitura, estabelece o
que é dentro e o que é fora do carro. Vemos uma senhora avermelhada, com roupa azul, com colar de
pérolas, anéis, brincos e de posse de uma bolsa a qual segura firme junto ao corpo. Ela olha de lado para
o menino, desconfiada. O medo de ser assaltada, o preconceito, a ostentação, a riqueza, estão do lado
de dentro, no canto esquerdo, enquanto a curiosidade, o espanto, a pobreza, estão na rua, do lado de
fora do carro.
No desenvolvimento da narrativa nos encontramos imersos nesta dura realidade a qual nos iden-
tificamos e nos projetamos na intenção de supor os sentimentos que perpassam a vida desta criança.
Cansado, com fome, o menino pausa seu ‘trabalho’ e se vê forçado a comer aquilo que lhe daria dinheiro
(ilustração 6). À esquerda da imagem, podemos visualizar a vitrine de uma confeitaria e o menino co-
mendo uma das frutas que tentava vender. Seu rosto não demonstra alegria em comer, ou não demons-
tra alegria em comer o que está comendo. Teria ele querido comer um dos bolos? A composição da
imagem sugere que sim.
No canto esquerdo da imagem o menino sentado no meio fio, em uma esquina, à frente de uma
confeitaria. Na lateral direita, um carro com dois ocupantes observam o ocorrido. Um deles, com a mão
na boca, olha pra cima, fugindo o olhar. O outro olha para o cachorro do centro da imagem que atravessa
a rua, de encontro ao menino. Toda a atmosfera que os circundam tem tons avermelhados, assim como
os carros e seus ocupantes.
O cachorro que se aproxima do menino em nada se assemelha aos demais cachorros da narrativa.
O cachorro tem as cores do menino e seus dentes não estão protuberantes. As cores semelhantes bus-
cam comparar menino e cachorro? Estaria o menino na condição de animalidade, de abandono tal qual
um cachorro de rua? Suas ações demonstram que seus sentimentos são elevados, já que na continuidade
da narrativa ele compartilha com o cão aquilo que é seu (único?) sustento, suas frutas.
Sintetizando a sequência desta narrativa visual, o menino rouba um embrulho de um carro. Suas
condições de vida o levam a roubar? Talvez lhe pareça o único modo de sobreviver na rua em uma grande
cidade. Os passageiros do veículo, apavorados diante da ameaça que representa o menino, sentem-se
acuados, embora tenham muitos pacotes os quais o menino rouba um para si: um presente embrulhado;
seria de aniversário? Saberia o menino o que é ganhar um presente de aniversário? Num beco escuro e
escondido, no vão de qualquer prédio, de qualquer cidade, o menino abre "seu presente" e o mesmo
cotidiano lhe é presenteado novamente, uma caixa semelhante à que ele tinha em mãos no início da
narrativa.
Finalizando a sequência narrativa, a artista nos brinda com a mesma imagem que esta história
iniciou. O ciclo se encerra, mas ele nos diz que tudo será iniciado novamente. O cotidiano do menino
não será alterado substancialmente. Amanhã estará ele suscetível às mesmas situações as quais ele se
defronta em sua rotina na rua.