Você está na página 1de 9

Grande sertão: veredas - parte I

JOÃO GUIMARÃES ROSA (1908-1967)

VIDA: João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, pequena cidade do interior mineiro,
próximo a uma região de fazendas de gado. Seu pai era comerciante na região. O futuro
escritor fez o curso primário em sua cidade natal e o secundário em Belo Horizonte, no
Colégio Arnaldo, onde revelou notável aptidão para o estudo de línguas. Ingressou na
Faculdade de Medicina, formando-se em 1930. Foi colega de personalidades importantes,
entre as quais Juscelino Kubitschek, futuro presidente da República,. Freqüentou ali os
círculos literários e publicou alguns contos inexpressivos em revistas do Rio de Janeiro. Em
1930, retornou ao interior mineiro para exercer a profissão em Itaguara, município de
Itaúna. Único médico da região, viajava muito a cavalo para atender aos pacientes que
moravam em locais ermos. Aproveitou esta época para recolher histórias e anotar, em
inúmeras cadernetas, o léxico arcaico da região. Em 1932, voltou a Belo Horizonte para
atuar como médico voluntário da Força Pública durante a Revolução Constitucionalista.
Posteriormente, entrou, por concurso, no quadro da Força Pública. Contudo, por sugestão
de um amigo, impressionado com seu extraordinário domínio de línguas, fez concurso para
o Itamarati e foi aprovado. Tornou-se diplomata e serviu em vários países, inclusive na
Alemanha nazista, onde ficou preso por alguns dias, após o rompimento de relações entre o
Brasil e o Terceiro Reich.

Apesar da dedicação à carreira diplomática, a paixão pela literatura continuou sendo


elemento essencial na vida de Guimarães Rosa. Em 1936, venceu um concurso de poemas
com a obra Magma, que se recusou a publicar. Em 1937 escreveu os contos de Sagarana,
obtendo o segundo lugar em um concurso nacional de contos. Mas só publicou o livro em
1946, bastante modificado e com dois contos a menos. Neste mesmo ano tornou-se chefe-
de-gabinete de João Neves da Fontoura (o “Tribuno da Revolução de 30”), mescla de
diplomata, político, intelectual e caudilho, com quem manteve profunda e duradoura
amizade. Em 1956, vieram à luz duas obras básicas, as novelas de Corpo de baile e o
romance Grande sertão: veredas. Em pouco tempo, sua fama correu mundo: obras suas
foram traduzidas de imediato para várias línguas. Foi aclamado como um dos grandes
ficcionistas do século XX. O sucesso não fez com que ele esquecesse o sertão mineiro:
continuamente retornava à terra natal, em longas viagens a cavalo, revendo a beleza rústica
da região. Em 1962, lançou um novo volume de contos, Primeiras estórias. Em 1967,
Tutaméia, com o subtítulo de Terceiras estórias. Em novembro de 1967, três dias após sua
posse na Academia Brasileira de Letras, faleceu no Rio de Janeiro, vítima de enfarto. “As
pessoas não morrem, ficam encantadas” – disse ele no discurso de posse na Academia,
profetizando o seu próprio futuro.

GRANDE SERTÃO:VEREDAS

ENREDO:

1. A juventude
O ex-jagunço Riobaldo resolve narrar sua vida a um doutor, que não fala, limitando-se
apenas a alguns gestos e risadas. Em ordem cronológica – já que a narração não é linear – a
história de Riobaldo começa quando ele tem quatorze anos e vai com a mãe pagar uma
promessa às margens do São Francisco. Ali se encontra com o Menino, que tem mais ou
menos sua idade e o impressiona profundamente. Pouco depois, a mãe morre e Riobaldo,
filho de pai desconhecido, é mandado para a fazenda de seu padrinho, Selorico Mendes,
que, por sua vez, o manda estudar com Mestre Lucas.

Certo dia, Riobaldo descobre ser filho natural do padrinho. Desgostoso, resolve partir e,
graças a uma indicação de Mestre Lucas, torna-se professor e depois secretário do
fazendeiro Zé Bebelo, que luta ao lado das forças do governo contra os bandos de jagunços
que infestam o sertão mineiro. Riobaldo testemunha várias batalhas e também a investida
de Zé Bebelo contra o bando de um fazendeiro e líder jagunço, Joca Ramiro.

Insatisfeito com o chefe, Riobaldo foge, vagando sem destino até reencontrar, por acaso, o
Menino, agora Reinaldo. A convite deste, que é jagunço de Joca Ramiro, Riobaldo decide
ingressar na vida da jagunçagem e seguir o amigo. Reinaldo revela-lhe então, em segredo,
que seu verdadeiro nome é Diadorim e lhe solicita que o chame assim quando estiverem
sozinhos. A afeição entre ambos começa a se tornar intensa.

2. A vida de jagunço

No primeiro combate de que participam juntos – contra as forças de Zé Bebelo – Diadorim


é ferido e desaparece alguns dias. Ao voltar, recusa revelar ao amigo o que fizera no
período em que estivera ausente. Algum tempo depois, Sô Candelário, que entrara naquela
vida porque sua família era portadora de lepra e ele receava contrair tal doença, assume o
comando do grupo. Sucedem-se batalhas e os jagunços vão sendo empurrados para o norte
pelas tropas do governo e de Zé Bebelo. Em determinada ocasião, o próprio Joca Ramiro
comanda o bando e derrota Zé Bebelo, que é preso e levado a julgamento. Na ocasião,
Hermógenes e Ricardão – lugar-tenentes de Joca Ramiro – pedem a morte do prisioneiro.
Outros chefes manifestam-se contra. Riobaldo fala, defendendo o seu antigo patrão. Mas
Joca Ramiro dá o veredicto final: Zé Bebelo pode partir para Goiás, com a condição de
jamais retornar.

Nos dias calmos que se seguem, Riobaldo começa a se inquietar, pois se dá conta de que
seu afeto por Diadorim vai muito além da simples amizade. Depois de dois meses de
tranqüilidade, o bando recebe a notícia da morte de Joca Ramiro, assassinado à traição por
seus aliados, Hermógenes e Ricardão. Ao saber do fato, Diadorim desmaia. Riobaldo tenta
lhe abrir o jaleco de couro, mas ele volta a si repentinamente e o repele de forma violenta.

A partir de então, todos os bandos que integravam as forças de Joca Ramiro resolvem se
unir e planejar a vingança. O bando de que fazem parte Riobaldo e Diadorim se detém
numa fazenda, cujo proprietário é um aliado, Sô Amadeu. Este tem uma única filha,
Otacília, por quem Riobaldo se interessa, despertando fortes ciúmes em Diadorim, que
chega a ameaçá-lo com um punhal. Antes da partida, Otacília promete esperar Riobaldo
para casar-se com ele. Logo depois, em meio a outra crise de ciúmes, Diadorim revela que
Joca Ramiro era, na verdade, seu pai. Os dois amigos seguem caminho para reforçar o
bando do chefe Medeiro Vaz.

Medeiro Vaz, por sugestão de Diadorim, decide atravessar o Liso do Sussuarão para atacar
Ricardão e Hermógenes, que têm fazendas no sul da Bahia. A travessia, no entanto,
fracassa e o bando retorna com pesadas baixas. Medeiro Vaz decide então mandar dois
homens para entrar em contato com outros chefes que também desejam destruir os
traidores. Riobaldo apresenta-se como voluntário e escolhe o jagunço Sesfrêdo para
acompanhá-lo. Já na viagem, os dois recebem más notícias: Sô Candelário fora morto, os
bandos amigos estavam dispersos em função da perseguição das tropas do governo e
Hermógenes e Ricardão aproximavam-se com seus homens para destruir as forças de
Medeiro Vaz. Após muitas dificuldades, Riobaldo e Sesfrêdo conseguem retornar e
encontram Medeiro Vaz à beira da morte. Contudo, antes de morrer, ele virtualmente indica
Riobaldo como o novo chefe. Este não aceita e sugere Marcelino Pampa, o jagunço mais
velho para comandar o bando.

Marcelino Pampa fica pouco tempo na chefia dos jagunços, pois Zé Bebelo, sabedor do
assassinato de Joca Ramiro, retorna de Goiás e assume, com a concordância de todos, a
liderança do grupo. Contudo, o comando de Zé Bebelo não leva o bando à vitória desejada.
Riobaldo, por seu turno, entra novamente em crise devido à natureza proibida de um amor
que ele não admite como tal:

De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e
suas armas, espalhado rústico em suas ações?! Me franzi. Ele tinha a culpa? Eu tinha a
culpa. (...) O sertão não tem janelas nem portas.

Em dado momento, os jagunços, fugindo dos inimigos, param numa encruzilhada


denominada Veredas Mortas. Ali o bando todo adoece de febres. Durante a estadia no local,
Riobaldo vem a saber que o segredo do sucesso de Hermógenes era o fato de que ele
vendera sua alma ao Diabo. E resolve fazer o mesmo.
3. O pacto com o Demônio

Antes de sair para novas lutas, Riobaldo decide fazer o pacto. Caminha para a encruzilhada
das Veredas Mortas e invoca o Diabo. Este não aparece, mas Riobaldo presume que ele o
ouvira. Pela madrugada, retorna ao grupo e começa a contestar a autoridade de Zé Bebelo.
Logo em seguida, assume o comando dos jagunços. Zé Bebelo aceita a deposição e o
rebatiza de Urutu-Branco.

Depois disso, o novo chefe dirige-se ao arraial dos catrumanos (seres que vivem perdidos
nos grotões) e conscreve todos os homens válidos para a luta, além de tomar sob sua
proteção o menino Guirigó e o cego Borro-meu, que também são obrigados a acompanhá-
lo. Fora isso, Riobaldo toma uma decisão arriscada: atravessar o Liso do Sussuarão e atacar
a fazenda de Hermógenes, o que fora tentado, sem êxito, por Medeiro Vaz. A travessia é
realizada e a mulher de Hermógenes é presa para servir de isca. Travam-se as primeiras
batalhas entre os grupos inimigos e, numa delas, Ricardão é morto por Riobaldo.
Grande sertão: veredas - parte II
4. A revelação

Um pouco antes da batalha final, em um arraial chamado Paredão, Riobaldo faz uma
declaração explícita a Diadorim: “Meu bem, estivesse dia claro, e eu pudesse espiar a cor
de seus olhos...” Diadorim mostra-se surpreso e assustado, mas não chega a contestar a
declaração do amigo. Ao amanhecer, Riobaldo vai banhar-se num riacho próximo, quando
inesperadamente o bando de Hermógenes ataca o arraial. A luta é sangrenta. Grupos de
jagunços aliados de Riobaldo chegam ao arraial. Do alto de um sobrado, impotente,
Riobaldo assiste ao lance derradeiro da luta: os dois bandos inimigos entram em acordo e se
desafiam para um duelo a arma branca. A frente de cada um dos lados, vão Hermógenes e
Diadorim. A última visão de Riobaldo é o sangue que jorra do pescoço de Hermógenes,
esfaqueado por Diadorim. Em seguida, desmaia.

Horas depois, ainda tonto, Riobaldo ouve a voz da mulher de Hermógenes pedindo que
trouxessem o corpo do moço de olhos verdes. Vem então a grande revelação: o corpo é o de
Diadorim e é um corpo de mulher. Diadorim era, na verdade, Maria Deodorina da Fé
Bettancourt Marins. Desesperado, Riobaldo atira-se sobre o corpo pelo qual nutrira, durante
vários anos, profunda paixão: “Diadorim, Diadorim, oh, meus buritizais levados de
verdes... Buriti do ouro da flor... Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca.”

Após o enterro de Diadorim, Riobaldo decide abandonar a jagunçagem e resolve levar de


volta à terra deles os catrumanos que haviam sobrevivido. Chegando às imediações das
Veredas Mortas, é novamente atacado por febres e fica sabendo que o nome verdadeiro do
local é Veredas Altas. Portanto, o lugar do Demônio não existe.
Em seguida, Riobaldo perde o conhecimento. Volta a si numa fazenda próxima, de gente
amiga. Lá é visitado por Otacília e a mãe desta que já querem marcar a data do casamento.
Riobaldo pede algum tempo, alegando o sofrimento causado pela perda de um amor
recente. Depois, ele recebe a informação de que Selorico Mendes morrera, deixando-lhe
como herança duas fazendas. Riobaldo casa então com Otacília e passa a residir numa das
fazendas que herdara, rodeado de vários antigos companheiros, que se tornaram seus
agregados. É ali que o doutor vai encontrá-lo e passa a ouvir seu relato.

O QUE OBSERVAR

1. Estrutura narrativa-

Grande sertão: veredas é construído como um extenso e ininterrupto relato, feito pelo ex-
jagunço Riobaldo a um doutor – espécie de interlocutor oculto (J.H.Dacanal) – que o ouve,
anotando coisas, reagindo apenas através de risadas e movimentos de cabeça. Este “quase-
monólogo” dura três dias e começa assim:

- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem, não, Deus esteja. Alvejei
mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço; gosto,
desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro
branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu
não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava
rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão; determinaram – era o demo. Povo prascóvio.
Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho
abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada
pega a latir, instantaneamente – depois então se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto
é o sertão.
- Os eventos do passado – pelo menos até metade da obra – são rememorados sem ordem
cronológica, em ziguezague, numa espécie de vaivém, entremeados de reticências,
interrogações e idéias inconclusas. Assim, acontecimentos de fases diversas da vida do
narrador são apresentados parcialmente e de forma aparentemente caótica. Somem-se a isto
as contínuas especulações de Riobaldo – no tempo presente – a respeito do sentido oculto
de todos os gestos humanos e ter-se-á uma idéia da complexidade da narrativa na sua
primeira parte.

- Contudo, o ex-jagunço tem pleno domínio da técnica de narrar a sua história, atribuindo o
tumulto inicial de cenas, personagens e reflexões à própria diversidade e à riqueza da
existência: (“Contar seguido, alinhado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância”).
Inúmeras vezes, ele explica ao doutor que o seu “método” de narrar procede da força de
certos fatos e emoções do passado:

Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm
certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares.(...) A lembrança da
vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com
os outros acho que nem não misturam. (...) Tem horas antigas que ficaram muito mais perto
da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe; e se sabe, me entende.
- Ainda do ponto de vista narrativo, todas as experiências do passado são argüidas no
presente por Riobaldo através de um conjunto de angustiadas interrogações sobre o destino
individual e sobre a condição humana, sobre Deus e o diabo, sobre o amor e o ódio, sobre a
passagem do tempo e a morte, etc. Desta forma, passado e presente, em permanente
contraposição, formam a totalidade da obra.

- Em termos de referências históricas, o romance não é totalmente explícito, mas a soma de


alusões indica que as ações narradas por Riobaldo ocorreram na época da República Velha
(1889-1930). No entanto, o relato de Riobaldo ao doutor deve ser situada em algum
momento posterior a meados da década de 1930, mais provavelmente já na década de 1940,
pois o próprio narrador registra o declínio da jagunçagem no sertão mineiro, fato que se
verifica após a Revolução de 30:

Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem
não sobra mais nada. Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi
jagunço, por aí pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no comércio
vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje de gibão é feio e capiau.
Grande sertão: veredas - parte III
2. Ação, personagens e sentido da narrativa

- Ao evocar o turbilhão de acontecimentos de que participara, Riobaldo transita de sua


infância até o momento em que deixa o mundo dos jagunços. Estas lembranças – muitas
vezes misturadas – revelam um ser diferente em relação a seus pares: ele tivera acesso à
escola, ainda que por pouco tempo, se tornara um sertanejo letrado e demonstra ter
capacidade e liberdade intelectual incomuns: “O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei
por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo o mundo...”

Esta autonomia leva-o, especialmente no presente, a questionar e refletir sobre o significado


de seus atos pretéritos. Entre as inquietações vitais que atormentam a consciência de
Riobaldo figuram:

a) a existência ou não do Demônio;


b) a natureza nebulosa das relações entre o Bem e o Mal;
c) o significado do sentimento que experimentou por Diadorim;
d) o sentido de sua vida como jagunço;
e) a busca de uma explicação para a condição humana.

- Apesar de Grande sertão: veredas apresentar uma primorosa reconstituição realista do


sertão mineiro e da vida dos jagunços, com passagens verdadeiramente épicas, os tormentos
individuais de Riobaldo, acima referidos, constituem o núcleo (psicológico, metafísico e
sócio-histórico) principal da obra. Como muitas das interrogações do narrador não
encontram respostas objetivas – a não ser no final do romance, e isso até certo ponto – o
clima geral da obra é de fascinante ambigüidade. A idéia que preside à narração de
Riobaldo é a fluidez de todas as coisas: “E estou contando não é uma vida de sertanejo, mas
a matéria vertente.”

- Ao afirmar que o Diabo existe e não existe, ao dizer que gosta de Diadorim e que não
gosta, ao celebrar e repudiar a jagunçagem, ao supor que “querer o bem com demais força,
de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar...”, Riobaldo constrói
um universo onde nada é fixo, onde tudo muda e se transforma e onde “as pessoas ainda
não foram terminadas”. Incapaz de abranger a totalidade do real, o protagonista-narrador
tenta, de maneira pungente, ordenar o informe, esclarecer o obscuro e colher, nas faces
encobertas e resvaladiças da realidade sertaneja, a essência verdadeira do humano, se é que
alguém pode encontrá-la: “A natureza da gente é muito segundas-e-sábado, tem dia e tem
noite, versáveis...”

- A presença (ou a ausência) do Demônio constitui o núcleo existencial, filosófico e


histórico-cultural do romance, cuja epígrafe já é reveladora: “O diabo na rua, no meio do
redemoinho...” Riobaldo evoca dezena de vezes a figura do Arrenegado, para
imediatamente negá-lo, embora, em sua fala, persista sempre uma dúvida: “Eu
pessoalmente quase que já perdi nele a crença, mercês a Deus.” A aflição do ex-jagunço
provém da possibilidade de ter feito com o pacto com Satanás, nas Veredas Mortas.
Enfermo numa região estranha e primitiva (a terras dos catrumanos), percebendo que
Hermógenes era indestrutível – pois “pactário” –, Riobaldo decide vender a alma em troca
de força e fúria. O Diabo não aparece, mas o certo é que Riobaldo retorna das Veredas
Mortas com uma energia terrível, que o endurece e o torna cruel, a ponto de desalojar Zé
Bebelo do comando do grupo, atravessar incólume com o bando o Liso do Suassurão,
seqüestrar a mulher de Hermógenes e, depois, atraí-lo para uma emboscada.

- Embora na obra o fluido e o ambíguo dominem e as sugestões poéticas que disso


decorrem sejam infinitas (“Tudo é e não é...”), embora Riobaldo,/i> se mostre ambivalente
e tenha dúvidas quanto à não-existência do Demônio, torna-se claro que ele não efetivou o
pacto, pelo menos a partir de uma perspectiva do presente da narração. Desta maneira, se
não houve o pacto, a responsabilidade pelos atos implacáveis e violentos cometidos durante
sua vida de jagunço não pode ser atribuída à possessão demoníaca. As “forças turvas”
nascem na própria alma do indivíduo:

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem


arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, é que não tem diabo nenhum...

Carregando em seu íntimo o bem e o mal, o ser humano escolhe – no intrincado cipoal da
existência – seus caminhos. Estes sim, muitas vezes, é que são confusos e obscuros. Daí a
frase lapidar de Riobaldo, tantas vezes por ele repetida: “Viver é muito perigoso.”

- Ao comprar a alma e não vendê-la – conforme a explicação do compadre Quelemém –


Riobaldo acaba olhando para o mundo com uma ótica positiva. Arrivista vitorioso, próspero
fazendeiro, o ex-jagunço, através de seu relato, liberta-se do medo do Diabo, elimina a
sensação de culpa (“Todo tormento. Comigo, as coisas não têm hoje ant’ontem amanhã: é
sempre. Tormentos. Sei que tenho culpas em aberto...”), reconhece a aprendizagem do
amor com Diadorim e afirma sua fé no “homem humano”, medida final de todas as coisas.
- A ambivalência que caracteriza os personagens do romance encontra sua expressão
acabada na figura de Diadorim e na paixão interdita que Riobaldo sente por ele (ela).
Arrastado por uma força instintiva desconcertante (ainda que no fundo correta), que o leva
a desejar ardentemente o companheiro de bando, Riobaldo não pode admitir – dentro dos
rígidos códigos morais sertanejos – o amor homossexual. Suas contradições interiores,
nascidas do conflito entre a paixão e a repressão, são genialmente mostradas por Guimarães
Rosa.

“Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das brasas. Quase que a gente não abria a
boca; mas era um delem que me tirava para ele – o irremediável extenso da vida.”

“Pois minha vida em amizade com Diadorim correu por muito tempo desse jeito. Foi
melhorando, foi. Ele gostava, destinado, de mim. E eu – como é que posso explicar ao
senhor o poder de amor que eu criei? Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio.
Eu ia com ele até o rio Jordão... Diadorim tomou conta de mim.”
“Se ele estava com as mangas arregaçadas, eu olhava para os braços dele – tão bonitos,
braços alvos, em bem feitos...”

“De um aceso, de mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às loucas,
gostasse de Diadorim, e também, recesso dum modo, a raiva incerta, por ponto de não ser
possível dele gostar como queria, no honrado e no final. Ouvido meu retorcia a voz dele.
Que mesmo no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar todas as folhagens, e
eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, as
muitas demais vezes, sempre.”

- Na véspera da batalha final entre os “riobaldos” e os “hermógenes”, o protagonista-


narrador deixa escapar uma declaração explícita de amor por Diadorim: “Meu bem,
estivesse dia claro, e eu pudesse espiar a cor de seus olhos...” Assustado, Diadorim
responde: “O senhor não fala a sério!” E o assunto termina com Riobaldo se recompondo:
“Não te ofendo, Mano. Sei que tu é corajoso...”

Fixa-se assim o destino trágico de Maria Deodorina que poderia revelar, pouco horas antes
de morrer no duelo com Hermógenes, sua condição feminina e, em decorrência disso,
buscar o amor de Riobaldo. Contudo, a necessidade de vingança, o ódio que nutre pelo
“judas” e a imposição de que fora vítima – ser mulher “que nasceu para o dever de guerrear
e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...” – arrastam-na para a
destruição.

Ao ver o corpo de Diadorim – ainda sem a revelação de sua nudez –, Riobaldo recusa
aceitar a morte do ser amado. Se a realidade é apenas o que pode ser nomeado pelas
palavras, ele emudecerá para sempre: “Não escrevo, não falo – para assim não ser: não foi,
não é, não fica sendo! Diadorim.”

Mas, logo em seguida, Riobaldo percebe estarrecido que Diadorim “era o corpo de uma
mulher, moça perfeita...” Então, numa das cenas de amor mais comoventes da ficção
ocidental, ele toca castamente as carnes ensangüentadas da mulher-guerreira:

Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás,
incendiável; abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas
aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com
tesoura de prata.... Cabelos que só, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu
não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:

-- “Meu amor!...”
Grande sertão: veredas - parte IV

3. As travessias de Riobaldo

- Riobaldo realiza três travessias básicas em Grande sertão:veredas:


A primeira é a travessia exterior, como jagunço em um sertão real, onde ele conhece a
natureza, os bichos e os limites extremos da condição humana cristalizada na selvageria e
nos gestos épicos dos companheiros de jagunçagem.

A segunda é a travessia interior, que, nascida do fato de que “o sertão está em toda a parte,
o sertão está dentro da gente”, leva Riobaldo ao auto-conhecimento. A profunda percepção
de si mesmo e a própria formação de sua subjetividade surgem do contato com dois outros
indivíduos que sintetizam as noções difusas de bem e mal. Um abre para Riobaldo as
comportas íntimas do medo, do ódio e da ambição: Hermógenes. O outro, mulher
camuflada de homem, desencadeia a explosão do amor: Diadorim.

A terceira travessia é a passagem de um tipo de consciência mítica-sacral (Riobaldo-


jagunço) para outra de estrutura lógico-racional (Riobaldo-fazendeiro). O primeiro tipo de
consciência – comum às sociedades indígenas e mestiças dos sertões brasileiros e latino-
americanos – explica o mundo pelo mito e pelo sagrado. Por isso, certos fenômenos são
atribuídos a poderes superiores à realidade objetiva: diabos, lobisomens, mortos, etc. O
segundo tipo – próprio da civilização racionalista moderna – vê o mundo de um ponto de
vista científico (José H. Dacanal).

À medida que a racionalidade das sociedades modernas avança, o pensamento mítico-


sacral, ou mágico, tende a se dissolver. Assim, em Grande sertão: veredas, o Diabo é um
protagonista fundamental, no plano do passado, dentro do universo sacral onde se movem
os jagunços. Já no plano do presente, quando conta sua vida ao doutor, Riobaldo tende a
recusar a visão da juventude, negando a existência do Diabo.

http://educaterra.terra.com.br/literatura/livrodomes/2004/09/24/000.htm

Você também pode gostar