Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
VIDA: João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, pequena cidade do interior mineiro,
próximo a uma região de fazendas de gado. Seu pai era comerciante na região. O futuro
escritor fez o curso primário em sua cidade natal e o secundário em Belo Horizonte, no
Colégio Arnaldo, onde revelou notável aptidão para o estudo de línguas. Ingressou na
Faculdade de Medicina, formando-se em 1930. Foi colega de personalidades importantes,
entre as quais Juscelino Kubitschek, futuro presidente da República,. Freqüentou ali os
círculos literários e publicou alguns contos inexpressivos em revistas do Rio de Janeiro. Em
1930, retornou ao interior mineiro para exercer a profissão em Itaguara, município de
Itaúna. Único médico da região, viajava muito a cavalo para atender aos pacientes que
moravam em locais ermos. Aproveitou esta época para recolher histórias e anotar, em
inúmeras cadernetas, o léxico arcaico da região. Em 1932, voltou a Belo Horizonte para
atuar como médico voluntário da Força Pública durante a Revolução Constitucionalista.
Posteriormente, entrou, por concurso, no quadro da Força Pública. Contudo, por sugestão
de um amigo, impressionado com seu extraordinário domínio de línguas, fez concurso para
o Itamarati e foi aprovado. Tornou-se diplomata e serviu em vários países, inclusive na
Alemanha nazista, onde ficou preso por alguns dias, após o rompimento de relações entre o
Brasil e o Terceiro Reich.
GRANDE SERTÃO:VEREDAS
ENREDO:
1. A juventude
O ex-jagunço Riobaldo resolve narrar sua vida a um doutor, que não fala, limitando-se
apenas a alguns gestos e risadas. Em ordem cronológica – já que a narração não é linear – a
história de Riobaldo começa quando ele tem quatorze anos e vai com a mãe pagar uma
promessa às margens do São Francisco. Ali se encontra com o Menino, que tem mais ou
menos sua idade e o impressiona profundamente. Pouco depois, a mãe morre e Riobaldo,
filho de pai desconhecido, é mandado para a fazenda de seu padrinho, Selorico Mendes,
que, por sua vez, o manda estudar com Mestre Lucas.
Certo dia, Riobaldo descobre ser filho natural do padrinho. Desgostoso, resolve partir e,
graças a uma indicação de Mestre Lucas, torna-se professor e depois secretário do
fazendeiro Zé Bebelo, que luta ao lado das forças do governo contra os bandos de jagunços
que infestam o sertão mineiro. Riobaldo testemunha várias batalhas e também a investida
de Zé Bebelo contra o bando de um fazendeiro e líder jagunço, Joca Ramiro.
Insatisfeito com o chefe, Riobaldo foge, vagando sem destino até reencontrar, por acaso, o
Menino, agora Reinaldo. A convite deste, que é jagunço de Joca Ramiro, Riobaldo decide
ingressar na vida da jagunçagem e seguir o amigo. Reinaldo revela-lhe então, em segredo,
que seu verdadeiro nome é Diadorim e lhe solicita que o chame assim quando estiverem
sozinhos. A afeição entre ambos começa a se tornar intensa.
2. A vida de jagunço
Nos dias calmos que se seguem, Riobaldo começa a se inquietar, pois se dá conta de que
seu afeto por Diadorim vai muito além da simples amizade. Depois de dois meses de
tranqüilidade, o bando recebe a notícia da morte de Joca Ramiro, assassinado à traição por
seus aliados, Hermógenes e Ricardão. Ao saber do fato, Diadorim desmaia. Riobaldo tenta
lhe abrir o jaleco de couro, mas ele volta a si repentinamente e o repele de forma violenta.
A partir de então, todos os bandos que integravam as forças de Joca Ramiro resolvem se
unir e planejar a vingança. O bando de que fazem parte Riobaldo e Diadorim se detém
numa fazenda, cujo proprietário é um aliado, Sô Amadeu. Este tem uma única filha,
Otacília, por quem Riobaldo se interessa, despertando fortes ciúmes em Diadorim, que
chega a ameaçá-lo com um punhal. Antes da partida, Otacília promete esperar Riobaldo
para casar-se com ele. Logo depois, em meio a outra crise de ciúmes, Diadorim revela que
Joca Ramiro era, na verdade, seu pai. Os dois amigos seguem caminho para reforçar o
bando do chefe Medeiro Vaz.
Medeiro Vaz, por sugestão de Diadorim, decide atravessar o Liso do Sussuarão para atacar
Ricardão e Hermógenes, que têm fazendas no sul da Bahia. A travessia, no entanto,
fracassa e o bando retorna com pesadas baixas. Medeiro Vaz decide então mandar dois
homens para entrar em contato com outros chefes que também desejam destruir os
traidores. Riobaldo apresenta-se como voluntário e escolhe o jagunço Sesfrêdo para
acompanhá-lo. Já na viagem, os dois recebem más notícias: Sô Candelário fora morto, os
bandos amigos estavam dispersos em função da perseguição das tropas do governo e
Hermógenes e Ricardão aproximavam-se com seus homens para destruir as forças de
Medeiro Vaz. Após muitas dificuldades, Riobaldo e Sesfrêdo conseguem retornar e
encontram Medeiro Vaz à beira da morte. Contudo, antes de morrer, ele virtualmente indica
Riobaldo como o novo chefe. Este não aceita e sugere Marcelino Pampa, o jagunço mais
velho para comandar o bando.
Marcelino Pampa fica pouco tempo na chefia dos jagunços, pois Zé Bebelo, sabedor do
assassinato de Joca Ramiro, retorna de Goiás e assume, com a concordância de todos, a
liderança do grupo. Contudo, o comando de Zé Bebelo não leva o bando à vitória desejada.
Riobaldo, por seu turno, entra novamente em crise devido à natureza proibida de um amor
que ele não admite como tal:
De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e
suas armas, espalhado rústico em suas ações?! Me franzi. Ele tinha a culpa? Eu tinha a
culpa. (...) O sertão não tem janelas nem portas.
Antes de sair para novas lutas, Riobaldo decide fazer o pacto. Caminha para a encruzilhada
das Veredas Mortas e invoca o Diabo. Este não aparece, mas Riobaldo presume que ele o
ouvira. Pela madrugada, retorna ao grupo e começa a contestar a autoridade de Zé Bebelo.
Logo em seguida, assume o comando dos jagunços. Zé Bebelo aceita a deposição e o
rebatiza de Urutu-Branco.
Depois disso, o novo chefe dirige-se ao arraial dos catrumanos (seres que vivem perdidos
nos grotões) e conscreve todos os homens válidos para a luta, além de tomar sob sua
proteção o menino Guirigó e o cego Borro-meu, que também são obrigados a acompanhá-
lo. Fora isso, Riobaldo toma uma decisão arriscada: atravessar o Liso do Sussuarão e atacar
a fazenda de Hermógenes, o que fora tentado, sem êxito, por Medeiro Vaz. A travessia é
realizada e a mulher de Hermógenes é presa para servir de isca. Travam-se as primeiras
batalhas entre os grupos inimigos e, numa delas, Ricardão é morto por Riobaldo.
Grande sertão: veredas - parte II
4. A revelação
Um pouco antes da batalha final, em um arraial chamado Paredão, Riobaldo faz uma
declaração explícita a Diadorim: “Meu bem, estivesse dia claro, e eu pudesse espiar a cor
de seus olhos...” Diadorim mostra-se surpreso e assustado, mas não chega a contestar a
declaração do amigo. Ao amanhecer, Riobaldo vai banhar-se num riacho próximo, quando
inesperadamente o bando de Hermógenes ataca o arraial. A luta é sangrenta. Grupos de
jagunços aliados de Riobaldo chegam ao arraial. Do alto de um sobrado, impotente,
Riobaldo assiste ao lance derradeiro da luta: os dois bandos inimigos entram em acordo e se
desafiam para um duelo a arma branca. A frente de cada um dos lados, vão Hermógenes e
Diadorim. A última visão de Riobaldo é o sangue que jorra do pescoço de Hermógenes,
esfaqueado por Diadorim. Em seguida, desmaia.
Horas depois, ainda tonto, Riobaldo ouve a voz da mulher de Hermógenes pedindo que
trouxessem o corpo do moço de olhos verdes. Vem então a grande revelação: o corpo é o de
Diadorim e é um corpo de mulher. Diadorim era, na verdade, Maria Deodorina da Fé
Bettancourt Marins. Desesperado, Riobaldo atira-se sobre o corpo pelo qual nutrira, durante
vários anos, profunda paixão: “Diadorim, Diadorim, oh, meus buritizais levados de
verdes... Buriti do ouro da flor... Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca.”
O QUE OBSERVAR
1. Estrutura narrativa-
Grande sertão: veredas é construído como um extenso e ininterrupto relato, feito pelo ex-
jagunço Riobaldo a um doutor – espécie de interlocutor oculto (J.H.Dacanal) – que o ouve,
anotando coisas, reagindo apenas através de risadas e movimentos de cabeça. Este “quase-
monólogo” dura três dias e começa assim:
- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem, não, Deus esteja. Alvejei
mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço; gosto,
desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro
branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu
não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava
rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão; determinaram – era o demo. Povo prascóvio.
Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho
abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada
pega a latir, instantaneamente – depois então se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto
é o sertão.
- Os eventos do passado – pelo menos até metade da obra – são rememorados sem ordem
cronológica, em ziguezague, numa espécie de vaivém, entremeados de reticências,
interrogações e idéias inconclusas. Assim, acontecimentos de fases diversas da vida do
narrador são apresentados parcialmente e de forma aparentemente caótica. Somem-se a isto
as contínuas especulações de Riobaldo – no tempo presente – a respeito do sentido oculto
de todos os gestos humanos e ter-se-á uma idéia da complexidade da narrativa na sua
primeira parte.
- Contudo, o ex-jagunço tem pleno domínio da técnica de narrar a sua história, atribuindo o
tumulto inicial de cenas, personagens e reflexões à própria diversidade e à riqueza da
existência: (“Contar seguido, alinhado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância”).
Inúmeras vezes, ele explica ao doutor que o seu “método” de narrar procede da força de
certos fatos e emoções do passado:
Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm
certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares.(...) A lembrança da
vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com
os outros acho que nem não misturam. (...) Tem horas antigas que ficaram muito mais perto
da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe; e se sabe, me entende.
- Ainda do ponto de vista narrativo, todas as experiências do passado são argüidas no
presente por Riobaldo através de um conjunto de angustiadas interrogações sobre o destino
individual e sobre a condição humana, sobre Deus e o diabo, sobre o amor e o ódio, sobre a
passagem do tempo e a morte, etc. Desta forma, passado e presente, em permanente
contraposição, formam a totalidade da obra.
Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem
não sobra mais nada. Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi
jagunço, por aí pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no comércio
vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje de gibão é feio e capiau.
Grande sertão: veredas - parte III
2. Ação, personagens e sentido da narrativa
- Ao afirmar que o Diabo existe e não existe, ao dizer que gosta de Diadorim e que não
gosta, ao celebrar e repudiar a jagunçagem, ao supor que “querer o bem com demais força,
de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar...”, Riobaldo constrói
um universo onde nada é fixo, onde tudo muda e se transforma e onde “as pessoas ainda
não foram terminadas”. Incapaz de abranger a totalidade do real, o protagonista-narrador
tenta, de maneira pungente, ordenar o informe, esclarecer o obscuro e colher, nas faces
encobertas e resvaladiças da realidade sertaneja, a essência verdadeira do humano, se é que
alguém pode encontrá-la: “A natureza da gente é muito segundas-e-sábado, tem dia e tem
noite, versáveis...”
Carregando em seu íntimo o bem e o mal, o ser humano escolhe – no intrincado cipoal da
existência – seus caminhos. Estes sim, muitas vezes, é que são confusos e obscuros. Daí a
frase lapidar de Riobaldo, tantas vezes por ele repetida: “Viver é muito perigoso.”
“Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das brasas. Quase que a gente não abria a
boca; mas era um delem que me tirava para ele – o irremediável extenso da vida.”
“Pois minha vida em amizade com Diadorim correu por muito tempo desse jeito. Foi
melhorando, foi. Ele gostava, destinado, de mim. E eu – como é que posso explicar ao
senhor o poder de amor que eu criei? Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio.
Eu ia com ele até o rio Jordão... Diadorim tomou conta de mim.”
“Se ele estava com as mangas arregaçadas, eu olhava para os braços dele – tão bonitos,
braços alvos, em bem feitos...”
“De um aceso, de mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às loucas,
gostasse de Diadorim, e também, recesso dum modo, a raiva incerta, por ponto de não ser
possível dele gostar como queria, no honrado e no final. Ouvido meu retorcia a voz dele.
Que mesmo no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar todas as folhagens, e
eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, as
muitas demais vezes, sempre.”
Fixa-se assim o destino trágico de Maria Deodorina que poderia revelar, pouco horas antes
de morrer no duelo com Hermógenes, sua condição feminina e, em decorrência disso,
buscar o amor de Riobaldo. Contudo, a necessidade de vingança, o ódio que nutre pelo
“judas” e a imposição de que fora vítima – ser mulher “que nasceu para o dever de guerrear
e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...” – arrastam-na para a
destruição.
Ao ver o corpo de Diadorim – ainda sem a revelação de sua nudez –, Riobaldo recusa
aceitar a morte do ser amado. Se a realidade é apenas o que pode ser nomeado pelas
palavras, ele emudecerá para sempre: “Não escrevo, não falo – para assim não ser: não foi,
não é, não fica sendo! Diadorim.”
Mas, logo em seguida, Riobaldo percebe estarrecido que Diadorim “era o corpo de uma
mulher, moça perfeita...” Então, numa das cenas de amor mais comoventes da ficção
ocidental, ele toca castamente as carnes ensangüentadas da mulher-guerreira:
Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás,
incendiável; abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas
aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com
tesoura de prata.... Cabelos que só, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu
não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:
-- “Meu amor!...”
Grande sertão: veredas - parte IV
3. As travessias de Riobaldo
A segunda é a travessia interior, que, nascida do fato de que “o sertão está em toda a parte,
o sertão está dentro da gente”, leva Riobaldo ao auto-conhecimento. A profunda percepção
de si mesmo e a própria formação de sua subjetividade surgem do contato com dois outros
indivíduos que sintetizam as noções difusas de bem e mal. Um abre para Riobaldo as
comportas íntimas do medo, do ódio e da ambição: Hermógenes. O outro, mulher
camuflada de homem, desencadeia a explosão do amor: Diadorim.
http://educaterra.terra.com.br/literatura/livrodomes/2004/09/24/000.htm