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O mito do preconceito lingüístico

por José Maria e Silva em 14 de novembro de 2002

Resumo: É possível se conceber uma mente mais tacanha, mais abjeta, mais materialista,
mais obcecada em poder e dinheiro do que essa de Marcos Bagno? Por José Maria e Silva

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Parte I

Rodapé para um golpista da língua

Se houvesse um Código de Ética do Magistério, o sociolingüista Marcos Bagno, autor do


famigerado Preconceito Lingüístico, deveria ter sua licença de professor cassada em caráter
de urgência — ele mesmo confessa que engana seus alunos e discípulos

“Peço simplesmente aos leitores e leitoras que meditem


sobre essa situação que tanto me angustia: homenagear com um
livro pessoas que jamais poderão lê-lo. Isso explica, decerto,
a grande dose de indignação que em certos momentos passa
à frente da reflexão científica serena e me faz assumir o tom
apaixonado de quem não tolera nenhum tipo de intolerância.”

Da Cabeça de Bagno

O mitos da cabeça de Bagno

Mito nº 1: “A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente.”

Mito nº 2: “Brasileiro não sabe português. Só em Portugal se fala bem português.”

Mito nº 3: “Português é muito difícil.”

Mito nº 4: “As pessoas sem instrução falam tudo errado.”

Mito nº 5: “O lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão.”

Mito nº 6: “O certo é falar assim porque se escreve assim.”

Mito nº 7: “É preciso saber gramática para falar e escrever bem.”

Mito nº 8: “O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social.”


Por vezes, gostaria que minhas palavras fossem punhos e que delas saíssem socos. Mas
peço simplesmente aos leitores que meditem sobre essa situação que tanto me angustia:
usar a deferência dos argumentos contra pessoas que jamais poderão compreendê-los. Uns,
porque lhes falta inteligência. Outros, porque parece lhes faltar caráter. Isso explica,
decerto, a minha enorme, incendida, angustiada fúria, que, entretanto, jamais passa à frente
da reflexão --- apenas se deixa cavalgar por ela, em respeito às rédeas da inteligência. Essa
fúria volta e meia é desencadeada pelo excesso de tolices que leio nos jornais a respeito de
temas relativos à educação.

Há pouco tempo, matéria de um jornal local (O Popular) trazia o título “Melhora nível de
redações no vestibular”. Já no segundo parágrafo da referida matéria, percebi que ela não
merecia nenhum crédito. Uma das professoras entrevistadas, depois de dizer que “tem
havido uma melhora impressionante na produção textual” dos alunos, completava:
“Embora ainda exista muito clichê e casos em que o candidato se prende demasiadamente à
fórmula --- apresentação, desenvolvimento e conclusão ---, em detrimento do conteúdo”.
Ora, o que se pode esperar de um aluno que não se prende a essa fórmula eficaz e comum
de exposição de idéias? Que ele seja um paradigmático Guimarães Rosa? É óbvio que se
um aluno normal recusa o sintagmático princípio-meio-e-fim de um texto, ele deve ter a
raríssima genialidade de reinventá-lo, caso contrário irá incorrer no misto de puerilidade e
esquizofrenia da literatura que lhe é apresentada por modelo --- como o livro A Friagem, de
Augusta Faro, elogiado pelo jornalista pelo brilhante Roberto Pompeu de Toledo, mas
paradigma da subliteratura local que infesta os vestibulares goianos.

Entretanto, o absurdo da pedagogia moderna escancarado na reportagem não se limita a


essas sandices. Vai muito além. Outra professora ouvida na matéria afirmou: “A exigência
do domínio da língua culta é preconceituosa. Afinal, nem todos têm acesso a ela”. É
espantosa essa capacidade pueril que, hoje em dia, qualquer pessoa --- não só professores
primários mas até seus alunos --- tem de duvidar da civilização a que pertence, julgando-se
maior do que ela com um simples dar de ombros mental. Que obra-prima da humanidade
aquela professora escreveu para ter a ousadia de deitar por terra uma língua que ultrapassa
em séculos sua efêmera insignificância intelectual? Não sei se é o seu caso, mas muitos
professores que estampam a mesma arrogância em face do saber milenarmente acumulado,
mal conseguem escrever um bilhete para os pais de seus alunos. De onde vem essa
ignorância infinita que, de tão alijada do conhecimento, chega a imaginar que ele não
existe?

Infelizmente, não vem da pequena cabecinha dessas honradas professoras de escola


pública, dignas do respeito de todos nós, mas da doutrinação que recebem no ensino
inframental das faculdades de letras. Nessas usinas de diplomar analfabetos, a norma é ---
língua portuguesa cada qual tem a sua e Deus que se vire para entender a babel de todos.
Essa rebeldia sem causa, fruto da adolescência intelectual de nossos acadêmicos, que só
descobrem o caminho das bibliotecas quando ingressam na pós-graduação, já se tornou
uma seita, com apóstolos, discípulos e até profetas. Entre os profetas, está Marcos Bagno,
doutor em língua portuguesa pela USP, mestre em lingüística, poeta, contista e tradutor.
Bagno é autor do livro Preconceito Lingüístico: O Que É, Como se Faz, lançado pela
Editora Loyola em 1999 e já com quatro edições em menos de um ano. É essa Bíblia dos
sociolingüistas que se vai analisar agora.

A sociolingüística é um ramo da lingüística que estuda Marx. Muitos alunos de letras, por
deficiência cognitiva, aderem a ela. Incapazes de alcançar o rigor da ciência, contentam-se
em macaqueá-la. Daí o enorme sucesso que qualquer autor minimamente alfabetizado faz
entre essa gente da pseudolingüística --- que não é outra coisa a marxolingüística praticada
pela nova geração de professores das faculdades de letras. Pelo fato de escrever
inegavelmente bem, algo cada vez mais raro nas academias, o jovem Marcos Bagno tornou-
se uma Marilena Chauí de calças --- faz, em letras, o mesmo sucesso que ela faz em
filosofia. Os dois têm em comum a eloqüência, o confusionismo e uma indisfarçável
vocação para a charlatanice intelectual.

Preconceito Lingüístico, o pop-livro de Marcos Bagno, é falso em todas as suas premissas,


mesmo assim, ou por isso mesmo, o autor quer fazer dele o Manifesto Comunista do
idioma, enxergando em cada colocação de pronomes uma mais-valia intelectual a extorquir
de todo falante o direito de permanecer iletrado. Incapaz de derrubar o sistema e mudar o
governo, Bagno incorporou o marxismo desviante que grassa na educação do país e fez-se
cavaleiro andante da linguagem a brandir sua espada sociolingüística contra os moinhos de
vento da norma culta. Seu fervor pseudolingüístico, que acaba de dar outro manifesto ao
mundo, a Dramática da Língua Portuguesa, parece acreditar que a instauração do Reino de
Marx na Terra vai depender de se enforcar o último capitalista nas tripas do último
gramático.

Bíblico, Marcos Bagno inventou até um decálogo para sua religião, criativamente chamado
de “Dez Cisões”, e sustenta sua fé sociolingüística no combate a oito pecados capitais --- os
preconceitos lingüísticos, isto é, os baraços e cutelos com que a norma culta do idioma
tiraniza os falantes da língua portuguesa e contribui para a injusta divisão do mundo entre
milionários e miseráveis. Entre os oito mitos sobre a língua portuguesa que Marcos Bagno
combate, pelo menos três, o 2º, o 6º e o 7º, só existem na sua cabeça; outros dois, o 3º e o
4º, existem de fato, mas não pelas razões que ele imagina; e um deles, o 5º, é absolutamente
inócuo, sendo de admirar que alguém perca tempo em lhe dar combate. Restam dois
“mitos”, o 1º e o 8º, que não são mitos, mas constatações a respeito do português, por sinal,
benéficas para seus falantes.

Como se vê, Marcos Bagno, que se apresenta arrogantemente como cientista da língua, não
alcança sequer o nível da falácia, porque a falácia é apenas a contraface da lógica, não a sua
negação absoluta, como o obscurantismo e a irracionalidade que alicerçam o livro
Preconceito Lingüístico o são. A capa deste livro de Marcos Bagno traz uma fotografia de
seus sogros pobres, lavradores analfabetos a quem ele dedica a obra. É a partir deles que
Bagno justifica sua “grande dose de indignação” contra todas as formas de preconceito. E,
assumidamente de esquerda, começa por denunciar (citando Maurizzio Gnerre) um dos
mais graves “preconceitos” derivados do “mito da unidade lingüística do Brasil” --- o de
que a Constituição é redigida na língua-padrão, “que só uma parcela pequena de brasileiros
consegue entender”. Taxativamente furioso, Bagno denuncia: "A discriminação social
começa, portanto, já no texto da Constituição".
Segundo o próprio Bagno confessara na introdução do livro, a razão de sua vida intelectual
é a luta apaixonada contra as discriminações. Logo, a única coerência possível de sua parte
seria a exigência de que a Constituição do país abandonasse a língua-padrão e se
multiplicasse em tantas versões quantas fossem as necessidades particulares dos falantes da
língua portuguesa no Brasil. Entretanto, Bagno faz o contrário e, em vez de manter a
coerência, sai pela tangente: “É claro que Gnerre não está querendo dizer que a
Constituição deveria ser escrita em língua não-padrão”. Ora, de duas uma: ou Bagno,
contrariando o que dissera linhas antes, aceita que a Constituição deve continuar sendo
preconceituosa, discriminadora, excludente, ou, então, ele resolveu trair, um parágrafo
depois, a causa maior da sua vida declarada um parágrafo antes, deixando que a lei
continue discriminando.

À primeira vista, parece apenas um caso de inconsistência intelectual do “cientista”. Mas o


que se lê a seguir faz desconfiar de uma distorção proposital do militante. Intuitivamente,
Marcos Bagno sabe que romper com a objetividade necessária à lei para cingi-la à
subjetividade inevitável dos falantes seria soterrar a Justiça num tribunal de babel. Por isso,
ele escreve como quem desconversa, chegando a pensar que o leitor atento vai aceitar sua
ressalva frouxa como negação de uma afirmação taxativa. O sujeito é tão insidioso que, ao
dizer que ninguém está advogando que “a Constituição deveria ser escrita em língua não-
padrão”, começa essa ressalva com a expressão “é claro”, para desarmar de imediato o
leitor, levando-o pensar que o que se diz adiante é tão óbvio que sequer merece exame,
quando, na verdade, trata-se de um pensamento incompleto, que contradiz completamente
um pensamento anterior mas não apresenta suas razões, enquanto o outro apresentava as
dele. Com essa desconversa, típica de todo o livro, Bagno fica isento de explicar a grave
contradição em que incorre.

Apesar disso, Marcos Bagno se julga uma grande autoridade científica, tanto que não se
peja de citar-se a si mesmo: “Como costumo dizer, o que habitualmente chamamos de
português é um grande ‘balaio de gatos’, onde há gatos dos mais diversos tipos: machos,
fêmeas, brancos, pretos, malhados, grandes, pequenos, adultos, idosos, recém-nascidos,
gordos, magros, bem-nutridos, famintos etc. Cada um desses ‘gatos’ é uma variedade do
português brasileiro, com sua gramática específica, coerente, lógica, funcional”. Bagno
acaba de nos descrever o primeiro caso, na história da humanidade, de “recém-nascidos”
com “gramática específica, coerente, lógica e funcional”, falando igual ao Aurélio tão logo
responde à palmada do médico com um articulado “ai!”.

Depois dessa licenciosidade poética, inadmissível num sujeito que consumiu verbas
públicas na graduação, no mestrado e no doutorado, o contribuinte que sustentou Bagno por
esse tempo mínimo de oito anos ainda tem que aturar seu preconceito contra os pobres.
Segundo ele, são as “graves diferenças de status social que explicam a existência, em nosso
país, de um verdadeiro abismo lingüístico entre os falantes das variedades não-padrão do
português brasileiro — que são a maioria de nossa população --- e os falantes da (suposta)
variedade culta, em geral mal definida, que é a língua ensinada na escola”.

Ora, como é que Marcos Bagno explica a caudalosa tradição de pobres bem falantes (e bem
escreventes) no Brasil, que vai de Machado de Assis a Patativa do Açaré, ambos sem passar
pela escola formal? Será que Bagno nunca foi capaz de perceber que os nordestinos, apesar
da sua fome atávica, nunca tiveram problemas com a língua e é de lá que têm saído muitos
dos nossos maiores escritores? Não é entre os nordestinos famintos que viceja uma
literatura de cordel altamente sofisticada, com um padrão lingüístico muito mais elevado do
que o da maioria dos professores da UFG e da USP juntos? Os profetas bíblicos (homens
que precisavam da palavra como ninguém e a manejavam melhor que todos) não vinham
sempre das classes mais pobres do mundo hebraico, como vaqueiros, pastores,
trabalhadores rurais?

Cumpre ressaltar que o cordel nordestino, literatura de excluídos, sempre foi altamente
valorizado — tanto pelos próprios nordestinos, que viam em seus repentistas os verdadeiros
sábios da tribo, quanto pela gente das grandes cidades, inclusive os políticos, desejosos de
ver seu nome na boca dos cantadores. Essa gente esfomeada do Nordeste, grande parte
analfabeta, tendo que decorar seus decassílabos heróicos, à moda de Camões, são a prova
de que não existe abismo lingüístico determinado pelas diferenças de classe. E se por acaso
a miséria oprime a fala, abastardar a fala não erradica a miséria --- radica a desigualdade.

O Mito nº 2 atacado por Marcos Bagno, o de que “brasileiro não sabe português e que só se
fala bem português em Portugal”, é uma cantilena de Preconceito Lingüístico: O Que É,
Como se Faz. Bagno diz que a norma culta no Brasil “é presa a um ideal lingüístico
inspirado no português de Portugal, nas opções estilísticas do passado, nas regras sintáticas
que mais se aproximem dos modelos da gramática latina”. Deslavada mentira! Como
demonstrou Osman Lins, no insuperável Problemas Inculturais Brasileiros, desde a década
de 60 que clássicos como Machado de Assis já tinham desaparecido dos livros escolares,
dando lugar a autores estilisticamente simplistas, como Orígenes Lessa. E, na década de 70,
esse desaparecimento dos clássicos do século passado se acentua e eles passam a ser
substituídos pela quadrinização dos livros didáticos, magistralmente ridicularizada por
Osman Lins, quando ironiza as “Vírgulas Falantes”.

Há quem, obtusamente, possa não ver relação entre uma coisa e outra, alegando que Bagno
não é contra os clássicos, tanto que escreveu um Machado de Assis para Principiantes; mas
a relação é óbvia e só não a percebe quem é incapaz de um silogismo simples. Ora, se
houvesse mesmo os mitos de que só se fala português em Portugal, que os legítimos
representantes da norma culta são os escritores e que só se pode falar como eles escrevem,
é evidente que a escola não seria a primeira a abandonar os clássicos já nas décadas de 60 e
70, como fez, influenciada pelo advento da televisão. E a escola tem mudado para pior.
Substituindo a quadrinização denunciada por Osman Lins pelo compartimentalismo
inspirado na linguagem do CD-Rom, os livros didáticos aboliram de vez os clássicos e a
norma culta como padrões de linguagem, substituindo-os pelos piores textos modernistas
(como os de Oswald de Andrade) e por matérias de jornal. O Machado de Assis que ainda
se lê na escola não é o da linguagem castiça, mas o dos triângulos amorosos. Os livros
didáticos de maior sucesso na escola pública só costumam chamar a atenção do aluno para
a linguagem de uma obra literária quando ela segue o paradigma modernista da subversão
gramatical.

É no combate ao Mito nº 4 (“As pessoas sem instrução falam tudo errado”), que Marcos
Bagno começa a revelar, a partir de sua própria cabeça, os preconceitos lingüísticos que
projeta na sociedade. Depois de afirmar que a troca do “l” pelo “r” nos encontros
consonantais, como em Craudia, chicrete, praca, broco, pranta, é “tremendamente
estigmatizada”, o que o deixa possesso, o sociolingüista tenta provar, “cientificamente”,
inclusive com Camões, que essa pronúncia deve ser aceita pela escola, como uma variante
lingüística dos “brasileiros falantes das variedades não-padrão”, a “classe social
desprestigiada, marginalizada, que não tem acesso à educação formal e aos bens culturais
da elite”, para quem a fonética da norma culta é “estrangeira”.

Além do absurdo de achar que todo pobre ou analfabeto troca o l pelo r, o que é
absolutamente falso, Marcos Bagno ainda tem a desfaçatez de afirmar que, no caso dos
“falantes da norma culta urbana”, das “pessoas escolarizadas”, que enfrentam o mesmo
problema, “trata-se realmente de uma dificuldade física que pode ser resolvida com uma
terapia fonoaudiológica”. Quer dizer, se o filho do lavrador entra na escola e fala pranta, a
professora não deve corrigi-lo nem mandá-lo para a fonoaudióloga, caso não consiga
superar essa pronúncia --- ele deve continuar prantado na própria insuficiência lingüística.
Agora, se for o filho do Bagno ou outro privilegiado falante da elite que faça essa troca, aí,
sim, o governo deve pagar-lhe, correndo, um tratamento fonoaudiológico. Se as massas
tivessem a autonomia que os sociolingüistas lhes atribuem, mandariam Bagno prantar fava
com essa sua estranha igualdade.

Não é de estranhar que Marcos Bagno veja em todo pobre um limitado falante do idioma. O
Projeto Censo, uma das grandes pesquisas sociolingüísticas que ele julga referenciais,
“investiga o uso da língua no Rio de Janeiro nas classes sociais não-cultas (isto é, pessoas
que não cursaram uma universidade)”, segundo palavras textuais do próprio Bagno. Por
esse critério, o jornalista Paulo Francis, se fosse vivo, seria entrevistado para a pesquisa,
classificado como “não-culto” por só ter o 2º grau completo.

O explícito preconceito de Bagno contra a inteligência dos pobres se completa no seu Mito
nº 6 (“O certo é falar assim porque se escreve assim”). Diz Bagno que as escolas querem
“obrigar o aluno a pronunciar do jeito que se escreve” e ressalva: “Seria mais justo e
democrático dizer ao aluno que ele pode dizer bunito ou bonito, mas que só se pode
escrever bonito, porque é necessária uma ortografia única para toda a língua, para que todos
possam ler e compreender o que está escrito”. Por analogia, será também “justo e
democrático” que o professor diga ao menino da roça que ele pode dizer prantar, se quiser,
mas só pode escrever plantar devido à necessidade de que outros compreendam o que
escreveu. Com isso, mais uma letra passa a ter dois sons na língua, aumentando a
esquizofrenia fonética, que tanto preocupa Bagno.

Mas esse sexto “mito” de Bagno, a exemplo do quinto, sequer mereceria comentário --- é
absolutamente falso e só existe em sua cabeça. Nenhum professor cobra do aluno uma
pronúncia idêntica à escrita, contrariando a fala corrente em seu meio. Uma professorinha
goiana, mesmo se tiver a felicidade de nada saber de sociolingüística, jamais exigirá de um
aluno seu que fale ou leia “A casa dê Maria” em lugar de “A casa di Maria”; pelo contrário,
enquanto o aluno continuar lendo o de fechado, ela saberá que ele ainda não adquiriu
fluência na leitura, porque não se despregou das letras e as soletra em vez de lê-las.

Abundam no livro Preconceito Lingüístico falsidades do gênero. Ainda durante o combate


ao suposto Mito nº 6, Marcos Bagno afirma que “a gramática tradicional despreza
totalmente os fenômenos da língua oral, e quer impor a ferro e fogo a língua literária como
a única forma legítima de falar e escrever, como a única manifestação lingüística que
merece ser estudada”. E cita como exemplo a Nova Gramática do Português
Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra, um clássico do gênero, que abona seus
tópicos gramaticais com frases retiradas das obras literárias.

Para Marcos Bagno, essa obra de Celso Cunha “só pode ser consultada por quem tiver
dúvidas no momento de escrever um texto literário”, uma vez que, segundo seu tosco
julgamento, ela não aborda “fenômenos característicos de outras normas escritas, como a
jornalística ou a da produção científica, muito menos os fenômenos típicos da língua
falada”. Ora, se tiveres essa gramática em casa, leitor ou leitora, experimenta abri-la em
qualquer página. Verás que as frases retiradas dos livros literários para análise gramatical
não podem, em sua maioria, ser consideradas literárias.

O livro está cheio de frases como a que se segue: “Aqui não passa ninguém”. Trata-se de
uma frase do escritor português Fernando Namora, ilustrando uma lição sobre advérbio.
Mas o que ela tem em si de literária, de tão especificamente estética, que não possa ser útil
a quem queira escrever um recado para afixar numa porta em Goiânia, Lisboa ou Luanda?
Não é o fato de usar texto literário que fará uma gramática ser exclusiva de escritores. Se
fosse assim, deveria haver uma gramática específica para cada segmento social: uma para
advogados, outra para médicos, esta para engenheiros, aquela para historiadores.

Não há um fosso entre a língua dos escritores e a dos demais segmentos da elite intelectual,
muito menos entre a fala deles e a fala comum. Marcos Bagno comete mais uma mentira
deslavada quando diz que Celso Cunha não trabalha “outras normas escritas” nem com
“fenômenos típicos da língua falada”. Será cinismo ou idiotice o que impede esse
pseudolingüista de ver que as obras literárias --- mais do que qualquer outra manifestação
lingüística --- são as mais representativas dos vários registros de fala da sociedade? Por
exemplo: o estro de Euclides da Cunha dialoga de igual para igual com a tese científica; a
secante de Rubem Fonseca é um recorte do mais puro jornalismo; já a crônica de Carlos
Drummond tem o vívido sabor da língua falada.

Além disso, nos textos literários aproveitados por Celso Cunha há diálogos, e esses
diálogos reproduzem fenômenos típicos da linguagem oral. E são textos que vão de
clássicos do romantismo português e brasileiro a autores contemporâneos como Adonias
Filho ou Lins do Rego. Sem contar que o “tradicional” Celso Cunha é infinitamente mais
progressista do que o “revolucionário” Marcos Bagno --- em sua gramática, Cunha fez
questão de se utilizar de textos literários portugueses, brasileiros e africanos (grifo meu).
Ora, se dependesse do quixotesco marxolingüista da USP, os povos africanos, que muito
precisam do português como língua de cultura, seriam completamente abandonados por
nós. Os falantes lusófonos da África não cabem no brasileirês da sociolingüística, porque,
numérica e economicamente insignificantes, são desprezíveis para a cartografia lingüística
de Marcos Bagno.

O Mito nº 7 também não mereceria comentários se não fosse pelo fato de que é o próprio
Bagno quem o desmente, sem perceber. Depois de afirmar que “é difícil encontrar alguém
que não concorde” com a idéia de que é “preciso saber gramática para falar e escrever
bem”, ele mesmo aponta três escritores de grande sucesso que não concordam com ela ---
Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade e o próprio Machado de Assis. Aliás, o
próprio Bagno reconhece que “os escritores são os primeiros a dizer que gramática não é
com eles!”. Será que todos os escritores juntos, do passado e do presente, foram incapazes
de convencer uma só pessoa de que não é preciso saber gramática para falar e escrever bem
a ponto deixarem surgir esse preconceito? É claro que não. Eis, aí, mais uma confusão da
cabeça de Bagno.

O que todo mundo de fato acha --- e trata-se de fato, não de mito --- é que para falar e,
sobretudo, para escrever bem é preciso ler muito. A gramática como verdade já não existe
na maioria das escolas. Quando muito, o aluno é instado (mas não obrigado) a decorar
algumas inócuas regras gramaticais, que depois lhe são cobradas acriticamente, em provas
de marcar com X. Aprende-se o português nas escolas públicas de duas maneiras: ou
escrevendo-se como se quer, sem regra alguma, salvo a do umbigo; ou mediante a
reprodução de fórmulas esclerosadas, mas adredemente facilitadas para que o aluno não
seja reprovado depois. O primeiro modo, especialmente nos ciclos básicos da escola
pública, é o mais corrente, por força do construtivismo. O aluno é levado a produzir seus
próprios textos (e estudar segundo eles), mesmo quando não é capaz de assinar o nome,
porque se considera autoritarismo colocá-lo em contato com os bons autores do idioma.

Mas é no combate a um fato que toma por mito, o Mito nº 8 (“O domínio da norma culta é
um instrumento de ascensão social”), que o marxolingüista Marcos Bagno se revela por
inteiro. Bagno chega a ironizar essa verdade: “Se o domínio da norma culta fosse realmente
um instrumento de ascensão na sociedade, os professores de português ocupariam o topo da
pirâmide social, econômica e política do país, não é mesmo?” Pronto! Marcos Bagno
parece ter sido capaz de um silogismo: o domínio da norma culta é instrumento de ascensão
social; o professor de português domina a norma culta; logo, é ele quem deveria mandar na
sociedade.

Eis um primor da lógica construtivista, haurida na pedagogia-parangolê de uma Ester


Grossi, na filosofia charlatã de um Ernildo Stein ou na historiografia oligofrênica de uma
Ledonias Franco --- uma premissa rota e uma conclusão torta, ambas depondo contra o
labirinto mental da cabeça de Bagno. Porque qualquer pessoa sabe que professor de
português da escola pública não domina a norma culta satisfatoriamente. Basta examinar o
desempenho dos vestibulandos de letras e pedagogia para se constatar que eles obtêm as
piores notas, inclusive nas provas de redação e português. Por que será que Marcos Bagno
não foi capaz de perceber coisa tão óbvia quanto o sol num meio-dia sem nuvens? Talvez
por uma distorção do ambiente em que vive. Na carreira do magistério público, os
silogismos se escrevem por premissas tortas: se um professor de português é excelente, vai
preparar alunos para o vestibular de medicina; se é sofrível, vira doutor e vai formar
professores na graduação de letras.

Apesar de ter-se tornado um ídolo em muitas faculdades de humanas do país, inclusive na


Faculdade de Letras UFG, onde os alunos estão fazendo trabalho sobre o livro Preconceito
Lingüístico, Marcos Bagno é o avesso do que se pode esperar de um cientista, credencial
com que ele gosta de se apresentar ao leitor em suas obras. Recorrendo a um de seus
marxolingüistas preferidos, ele afirma taxativamente: “A propaganda da suposta
‘dificuldade’ da língua é, como diz Gnerre no livro já citado, ‘o arame farpado mais
poderoso para bloquear o acesso ao poder’”.

Notastes, leitor e leitora, a importância extrema que ele, corroborando Gnerre, concede à
língua? Ela --- sustenta Marcos Bagno --- é o mais poderoso bloqueio de acesso ao poder.
Entretanto, é o mesmo Marcos Bagno quem diz: “O domínio da norma culta de nada vai
adiantar a uma pessoa que não tenha todos os dentes, que não tenha casa decente para
morar, água encanada, luz elétrica e rede de esgoto”. E Bagno, como se estivesse num
palanque do MST, continua por um parágrafo inteiro falando que não adianta a norma culta
para quem não tem emprego, é cidadão pela metade ou vive acossado por senhores feudais
que lhe tiram a terra para morar. Ora, se “não dominar a norma culta é o mais poderoso
instrumento de exclusão do poder”, dominá-la tem que ser --- necessariamente --- o mais
poderoso instrumento de ascensão social.

Por outro lado, Bagno concebe “ascensão social” de um modo muito peculiar: para ele,
ascender é dominar --- só ascende aquele que alcança o topo. Ora, se uma mulher trabalha
como auxiliar de enfermagem num hospital e, com muito esforço, se forma em medicina, é
claro que ela ascendeu socialmente, mesmo que não tenha se tornado dona de hospital,
coisa que ciência alguma lhe vai garantir se ela não vier de um berço rico. Com a língua é a
mesma coisa. Eu, por exemplo, que passei de cozinheiro de hospital a editor de jornal, não
tenho dúvida de que ascendi socialmente. Mas, de acordo com Bagno, estou enganado. Eu
só poderia dizer que tive uma ascensão social se fosse o dono da Organização Jaime
Câmara (a maior empresa de comunicação do Centro-Oeste) e se o Júnior Câmara (seu
proprietário) fosse meu empregado, uma vez que creio escrever melhor do que ele.

É possível se conceber uma mente mais tacanha, mais abjeta, mais materialista, mais
obcecada em poder e dinheiro do que essa de Marcos Bagno? E pensar que é gente dessa
laia que dita a ética nas escolas públicas. Mas nem era preciso contra-argumentar tanto.
Basta examinar o mito que desespera Bagno: “O domínio da norma culta é um instrumento
de ascensão social” (grifo meu). Como ele próprio afirma, ela é um instrumento, não o
instrumento. Se as pessoas acreditassem que a norma culta é o instrumento de ascensão
social, aí, sim, seria o caso de Bagno combater o mito. E eu lhe daria razão.

Por fim, Marcos Bagno se desmascara de vez. É ele quem escreve, textualmente, na página
72 de Preconceito Lingüístico: “Valerá mesmo a pena promover a ‘ascensão social’ para
que alguém se enquadre dentro desta sociedade em que vivemos, tal como ela se apresenta
hoje?” (grifos dele próprio).

Por favor, leitores e leitoras, relede esta frase. Percebeis a extrema gravidade dela? Se
houvesse um Código de Ética do Magistério, o pseudolingüista Marcos Bagno (agora ele se
revela como tal) teria que ter a sua licença de professor sumariamente cassada. É o próprio
Bagno quem assume explicitamente --- e por escrito --- que, como professor, não está
interessado em ensinar nada a seus alunos, mesmo ganhando para isso, porque não é sua
intenção emancipá-los para que participem da sociedade que aí está. Ou seja, Bagno quer
vê-los na miséria, porque precisa da miséria para manter seu discurso contra o sistema. Já
pensaram se os médicos de esquerda, ferozes combatentes da indústria farmacêutica,
fossem adotar a ética da cabeça de Bagno? Deixariam morrer seus pacientes infartados para
não vê-lo dependente de medicamentos. Só nas ciências humanas se concede título de
doutor a um sujeito tão mal resolvido como intelectual e cidadão.

Marcos Bagno é tão confuso que chega a depor contra si mesmo. Eis o que ele diz sobre o
seu objeto de conhecimento: “Existe um mito ingênuo de que a linguagem humana tem a
finalidade de ‘comunicar’, de ‘transmitir idéias’ — mito que as modernas correntes da
lingüística vem tratando de demolir, provando que a linguagem é muitas vezes um
poderoso instrumento de ocultação da verdade, de manipulação do outro, de controle, de
intimidação, de opressão, de endurecimento”.

Só um doutorzinho da USP, aquele antro de cúmplices que arrastam até hoje um cadáver
insepulto com a cara de inocentes, é que tem o despudor, a presunção, a desfaçatez, de
chamar de “mito ingênuo” a idéia de que a linguagem humana tem a finalidade de
comunicar, de transmitir idéias. Tem cabimento Bagno não perceber que, até para
transmitir esse seu arremedo de idéia, esse lodaçal lingüístico que lhe vai pelo cérebro, ele
não teve outro recurso senão recorrer à linguagem? Se a tese de Marcos Bagno for
estendida a outras instâncias da realidade, será preciso considerar que é um mito ingênuo
supor que a água foi feita para saciar a sede, porque ela também afoga; que o alimento foi
feito para matar a fome, porque ele também dá indigestão; enfim, que o ânus foi feito para
defecar, porque dele também saem “idéias”. Aliás, chego a desconfiar da epígrafe que abre
este artigo. Será que Preconceito Lingüístico saiu mesmo da cabeça de Bagno?

--- Concordo, leitores e leitoras. Acabo de cometer um grave desrespeito contra Marcos
Bagno. No próximo artigo, quando vou demonstrar porque Bagno é um golpista da língua,
se tiver de usar os vocábulos ânus e defecar novamente, pedirei licença para substituí-los
por seus equivalentes populares. Não pretendo destratar ainda mais o lingüista Bagno,
obrigando-o a aturar essa ofensiva norma culta, que ele tanto detesta.

Parte II

Quando a língua se faz regougo

Disfarçando-se de vanguarda da ciência, a sociolingüística de Marcos Bagno não passa de


um panfleto pedagógico, que tenciona fazer da língua portuguesa um instrumento de
doutrinação política

Enganam-se os cristãos de língua portuguesa --- a Bíblia foi psicografada. Ao contrário do


que comumente se imagina, a versão portuguesa das Escrituras não foi traduzida pelo
protestante João Ferreira de Almeida, mas ditada por seu espírito, muito depois de sua
morte. Essa informação bombástica, que pode subverter todos os alicerces da cultura
ocidental, é revelada no livro Preconceito Lingüístico: O Que É, Como se Faz (Editora
Loyola), do sociolingüista Marcos Bagno, parcialmente analisado em artigo anterior.
Ficcionista, poeta, tradutor e doutor em lingüística pela USP, Marcos Bagno, quase de
passagem, sem perceber o profundo impacto de sua revelação, afirma, na página 134 do
livro: “A primeira tradução da Bíblia para o português, por exemplo, só aconteceu em
1719, por obra de um protestante, João Ferreira de Almeida”.
O espírito do médium Chico Xavier ainda nem sonhava com sua encarnação atual e
faltavam quase dois séculos para que o positivista francês Hipólite Leon Denizart Rivail
sistematizasse o espiritismo, com o nome de Alan Kardec. Talvez por isso, o trabalho
mediúnico de tradução da Bíblia para o português tenha passado despercebido. Mas não há
dúvida: só pode ter sido o espírito de João Ferreira de Almeida quem ditou essa tradução
para um médium em 1719. Porque João Ferreira de Almeida “desencarnara” 28 anos antes:
ele morreu em 1691, aos 63 anos. Como poderia traduzir a Bíblia --- fisicamente --- em
1719?

Em si, esse canhestro erro de Marcos Bagno não compromete a essência de Preconceito
Lingüístico, uma vez que o livro não trata de religiões, mas de línguas. Entretanto, ele é um
sintoma do labirinto mental da cabeça de Bagno. Se essa informação, em seu todo, é lateral
no contexto de Preconceito Lingüístico, o mesmo não se pode dizer da data, “1719”, em
relação à informação em si. Uma vez que Bagno tencionava realçar o quanto foi tardia a
tradução da Bíblia para o português, precisar uma data sem consultar quaisquer
enciclopédias, ou consultá-las de modo apressado, revela um certo despreparo didático-
pedagógico para separar o essencial do supérfluo; deficiência que fica evidente quanto ele
encrespa com Dad Squarisi, responsável por uma coluna sobre o idioma que é reproduzida
em vários jornais do país.

Squarisi utiliza-se de um truque muito usado por todos os professores de português quando
querem explicar a voz passiva. Mostra que há duas formas de construir a voz passiva: com
o verbo ser (passiva analítica) e com o pronome se (passiva sintética). E, na dúvida entre
vende-se casas ou vendem-se casas, ela sugere que se recorra à voz passiva analítica, com o
verbo ser (“casas são vendidas”), para se descobrir que, na voz passiva sintética, o correto é
vendem-se casas.

Quando vai contestá-la, Marcos Bagno confunde superfícies com profundezas e chama esse
recurso de “esfarrapado truque”, desvirtuando completamente o que sugere Squarisi. Ela e
as gramáticas normativas jamais disseram que vende-se pode ou deve ser substituído por é
vendido que, no fim, o emissor da mensagem terá o mesmo efeito --- algo que Marcos
Bagno as acusa de fazer. Pelo contrário, é exatamente por saberem do efeito muito maior da
voz sintética (vende-se... ou vendem-se...) que as gramáticas se valem do “truque” para
explicar como é que se deve escrever a frase. Ou seja, mandam o aluno pensar em “casas
são vendidas” apenas para que ele perceba porque deve escrever “vendem-se casas” e não
“vende-se casas”.

Para Bagno, essa exigência dos gramáticos é mais um preconceito lingüístico. Porém, que
mal existe em levar um falante do idioma a refletir sobre a referida construção, uma vez
que ela vai além do aspecto meramente formal do português? Preconceito não é pedir que o
aluno o faça, mas imaginá-lo incapaz de refletir sobre isso, deixando que continue
escrevendo como aprendeu nas tabuletas do comércio de seu bairro. Preconceito é impedi-
lo de estabelecer essas relações importantes entre a ação e seu objeto, algo que lhe vai
servir pela vida afora, quando for pensar sobre qualquer fenômeno mais abstrato.
É ainda nessa crítica a Dad Squarisi que o cientista da USP se deixa perder pelo militante
de esquerda. Marcos Bagno tenta aprofundar-se numa análise verdadeiramente lingüística e
não panfletária do idioma, mas acaba vítima de seu próprio veneno. Ele demonstra que a
posição dos elementos num enunciado muda a interpretação de seu significado e, numa
argumentação em crescendo, procura provar que, quando se quer dizer que “muitos
operários foram demitidos da Ford”, o correto é dizer --- na voz sintética --- “demitiu-se
muitos operários da Ford” e não “demitiram-se muitos operários da Ford”, como preconiza
a gramática normativa. Marcos Bagno sustenta que, se o verbo estiver no plural, como no
segundo caso, a frase perderá completamente seu impacto e não vai deixar claro que os
operários foram demitidos a contragosto --- parecerá que pediram demissão, o que
esconderia a crueldade de seus patrões.

Aparentemente, Marcos Bagno está coberto de razão. Entretanto, não é ele próprio quem
defende o critério pragmático como uma dimensão essencial da análise de um enunciado
lingüístico? Pois, sejamos pragmáticos: analisemos esse enunciado não de acordo com
esclerosadas normas gramaticais, como diria Bagno, mas segundo os efeitos que ela suscita
em seu contexto. Mesmo na linguagem culta de jornais ou universidades, jamais se fala ou
se escreve uma frase do gênero começando com o verbo. A ordem normal é sempre a
direta: “Muitos operários foram demitidos da Ford”. Se alguém inicia com verbo uma frase
assim é porque fala a partir da norma culta, para falantes da norma culta e, ainda por cima,
por escrito, muito provavelmente de forma literária e rebuscada. Ora, num contexto desses,
escrever demitir-se em lugar de demitiram-se como quer Marcos Bagno, é matar
completamente qualquer efeito da frase. Para ouvintes muito cultos e numa situação formal
(como esse público a quem obviamente se destina uma frase do gênero), o desvio
gramatical será um ruído na mensagem, o que reduzirá sensivelmente seus efeitos. A não
ser que Marcos Bagno, ao propor a extinção total dessa diferença, queira fazer o mesmo
com todo falante capaz de apreciá-la.

O autor de Preconceito Lingüístico também implica com o acadêmico Arnaldo Niskier por
conta de uma observação perfeitamente compreensível. Niskier escreveu: “O sujeito que
usa um termo em inglês no lugar do equivalente em português é, na minha opinião, um
idiota”. Marcos Bagno comenta: “Ora, se ele mesmo reconhece que o uso de
estrangeirismos é a ‘face mais irritante de um país colonizado culturalmente como o nosso’,
é injusto chamar de ‘idiota’ a pessoa que é, de fato, uma vítima dessa colonização cultural.
Se nosso comércio está repleto de nomes em inglês é porque os comerciantes e os
industriais sabem que isso atrai mais o público, que qualquer produto com aparência de
estrangeiro tem maior aceitação por parte do consumidor”.

É difícil ler uma coisa dessas sem um frêmito de indignação. O mesmo Bagno que submete
a língua ao determinismo econômico, agora submete a economia ao determinismo
lingüístico. Qualquer pessoa sabe que --- a despeito de outros fatores --- o que mais atrai o
consumidor é o preço baixo. Até o Carrefour, que tem um público de poder aquisitivo alto,
sabe muito bem disso e se um produto de marca não baixa a um preço que ele considera
satisfatório, esse produto fica fora das prateleiras. Isso já aconteceu lá com o arroz Cristal e
acontece freqüentemente com o Nescafé, uma marca tradicional de café solúvel. As
papelarias estão cheias de canetas importadas, com nomes em inglês, mesmo assim a velha
Bic continua sendo uma campeã de vendas, a despeito da Lei de Bagno. É que ela reúne
baixo preço e qualidade razoável. Das canetas de seu nível é a de mais resistência.

Entretanto, o problema mais grave é o “ético” Marcos Bagno distorcer, mais uma vez, a
fala alheia. Bagno sabe muito bem que Arnaldo Niskier não está se referindo aos
comerciantes quando diz que usar termo em inglês no lugar do português é ser idiota.
Obviamente, Niskier refere-se a jornalistas, economistas, professores universitários,
técnicos do governo e outras pessoas do mesmo nível social. Mas Bagno escamoteia esse
fato e faz de conta que Niskier está chamando de idiota uma Carolina qualquer do Vila
Finsocial que resolve botar na sua confecção o nome de Karollyne’s. Ora, isso é inglês?
Não. É língua bárbara, balbucio do escravo ante o senhor. Logicamente não é disso que
trata Arnaldo Niskier.

Essa Carolina da Vila Finsocial pode ser --- mas não necessariamente --- uma vítima da
colonização, passível de pena e não de crítica. Mas o que dizer daquele sujeitinho filho de
papai, que vai estudar economia em Chicago e volta de lá esnobando inglês com os colegas,
enquanto saqueia o Brasil descaradamente? Pode-se chamar de vítima da colonização
aquela gente do BNDES que ficava fazendo piadinhas em inglês enquanto leiloava o país?
Podem ser chamados de vítimas da colonização os doutores da UFMG, que, recentemente,
queriam proibir o uso do português num congresso realizado na própria universidade,
infringindo as leis do país? Pode-se chamar vítima da colonização o velho escritor e
professor universitário goiano Heleno Godoy, tardio doutorando da USP, que, ao traduzir
contos do inglês, exige que as aspas fiquem depois das vírgulas nas citações e diálogos,
como se essa forma de colocação das aspas fosse peculiar ao escritor traduzido e ele
precisasse evidenciar isso na tradução? Nada disso. Essa gente não é vítima de nada. Nós,
brasileiros, é que somos suas vítimas, uma vez que lhes pagamos as bolsas com que
estudam fora do país e nada ganhamos em retribuição. Serviçais, eles estão sempre de
costas para o Brasil, encarando de frente os Estados Unidos --- não como quem o enfrenta,
mas como quem se submete a uma espécie de felação cultural.

Um exemplo dessa submissão pode ser encontrado na revista Signótica (ano 7, 1985), do
curso de letras da Universidade Federal de Goiás. Nela há um artigo todo escrito em inglês
do professor Pedro Fonseca, doutor em literatura portuguesa pela Universidade do Novo
México e professor do curso de letras da UFG. O artigo examina textos da literatura
colonial em busca da representação da imagem feminina. E até mesmo um dos textos
estudados, Diálogo das Grandezas do Brasil, atribuído a Ambrósio Fernandes Brandão, o
Brandônio, é citado em inglês --- oito linhas de citação em inglês. Os autores franceses
citados, como Beauvoir e Derrida, também o são em inglês. Qual o sentido disso se esses
professores são os primeiros a dizer para o aluno que, de preferência, toda citação em texto
científico deve dar prioridade à língua de origem do autor citado? Logo, Beauvoir teria que
ser citada em francês e Brandônio em português.

Não por acaso Marcos Bagno é um ferrenho adversário do projeto de valorização da língua
portuguesa, apresentado pelo deputado Aldo Rebelo, e, em Preconceito Lingüístico, afirma,
taxativamente, que “não adianta bradar contra a ‘invasão’ de palavras [estrangeiras] na
língua portuguesa” sem analisar a dependência sócio-econômica do país. Segundo ele, “é
querer eliminar os efeitos sem atacar as verdadeiras causas” Entretanto, em todo o seu livro,
Marcos Bagno não faz outra coisa senão atacar o efeito (a dificuldade da norma culta) em
detrimento das causas dessa referida norma não ser bem aprendida nas escolas (entre elas,
as péssimas condições do ensino no país). Bagno usa dois pesos e duas medidas: em relação
a seu próprio idioma, prega a guerra contra os efeitos; em relação à invasão do inglês,
preconiza que se deixe como está até que o Brasil se liberte do jugo norte-americano.

Mais grave é que o mesmo Bagno que impreca contra a norma culta do português, sob o
pretexto de que ela é “elitista”, “branca” e “heterossexual”, louva descaradamente a
hegemonia cultural do inglês. Por acaso, o inglês que se impõe ao mundo não o faz por
intermédio de sua norma culta --- “branca”, “heterossexual” e “ultra-elitista”, porquanto
movida a dólar? Só a vesguice materialista explica essa verdadeira unção que Marcos
Bagno devota ao poder e ao dinheiro. Pouco depois de não conseguir disfarçar que julga o
inglês norte-americano melhor do que os outros porque os Estados Unidos são mais
poderosos, Bagno também julga que o português falado no Brasil é o melhor, porque o
Brasil é maior e mais forte economicamente do que Portugal. Segundo ele, “quando se trata
de língua se deve levar em conta a quantidade”. Ora, se em língua o que conta é a
quantidade, por que Bagno não sugere ao MEC que acabe com os programas voltados para
a pesquisa e o ensino das línguas indígenas, essas ilhotas perdidas no oceano do português?

Ao ver-se engasgado pela própria incoerência, talvez ocorra a Marcos Bagno desculpar-se
com a seguinte afirmação que faz em Preconceito Lingüistico: “Ninguém comete erros ao
falar sua própria língua materna, assim como ninguém comete erros ao andar ou respirar.
Só se erra naquilo que é aprendido, naquilo que constitui um saber secundário, obtido por
meio de treinamento, prática e memorização: erra-se ao tocar piano, erra-se ao dar um
comando num computador, erra-se ao falar/escrever uma língua estrangeira. A língua
materna não é um saber desse tipo: ela é adquirida pela criança desde o útero, é absorvida
junto com o leite materno”. Sob esse prisma, estaria explicada a ojeriza que devota à norma
culta de sua língua, enquanto aceita passivamente a do estrangeiro. Mas será que Marcos
Bagno está certo ao dizer que “ninguém comete erros ao falar sua própria língua materna”?
Se, como afirma Bagno, falar e escrever é como respirar e andar, então, o que faz no
currículo escolar a disciplina língua portuguesa se nunca foi necessário introduzir nas
escolas as disciplinas andamento e respiração?

Mas também nessa comparação Bagno erra. Até o respirar e o andar podem ser
aperfeiçoados, mediante exercícios; aliás, é para isso que existem a ioga e a educação
física. Se isso vale para atividades tão pouco modificáveis, como andar e correr (por mais
que uma pessoa seja elegante ela não anda de modo muito diferente de outra que não o é), o
que dizer da linguagem, que é muito mais artificial do que aqueles dois outros atos, tanto
que aparecem muito depois deles na história da espécie? Quando a língua é comparada à
respiração na cabeça de Bagno, processa-se, ali, uma redução do estatuto humano --- a
linguagem falada se torna uma característica animal e o homem volta à condição de símio.
E se a fala já é um elemento da cultura, o que dizer da escrita, completamente artificial?
Entretanto, Marcos Bagno sustenta que nenhum falante erra em sua língua materna, nem
mesmo ao escrever. Como ele classifica, então, a inscrição que se segue?

“NO DINA VIT DO DE ABINI D DONI COME KICNA DO NO BA BASINÚ TERÃ


MLAZSA”
A inscrição acima não é nenhum arremedo de língua eslava; foi extraída da revista
Educação, de julho 2000, e traz a seguinte legenda ao lado da foto do menino que a
escreveu: “Esta junção de letras foi escrita por Welton, 11 anos, aluno da quarta série, a
partir do ditado: ‘No dia 22 de abril, comemoramos os 500 anos do nosso Brasil, que é uma
terra maravilhosa’”.

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