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Parte 1
Introdução
Realizada a Semana de Arte Moderna e ainda sob os ecos das vaias e gritarias, tem início
uma primeira fase modernista, que se estende de 1922 a 1930, caracterizada pela tentativa
de definir e marcar posições. Constitui, portanto, um período rico em manifestos e revistas
de vida efêmera: são grupos em busca de definição.
Nessa década, a economia mundial caminha para um colapso, que se concretizaria na
quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929. O Brasil vive os últimos anos da
chamada República Velha, ou seja, o período de domínio político das oligarquias ligadas
aos grandes proprietários rurais. Não por mera coincidência, a partir de 1922, com a revolta
militar do Forte de Copacabana, o Brasil passa por um momento realmente revolucionário,
que culminaria com a Revolução de 1930 e a ascensão de Getúlio Vargas.
Assim é que, de 1930 a 1945, o movimento modernista vive uma segunda fase, refletindo
as transformações por que passou o país. Tem início uma outra etapa de sua vida
republicana, levando os artistas nacionais a se posicionarem diante dessa nova realidade.
Características
O período de 1922 a 1930 é o mais radical do movimento modernista, justamente em
conseqüência da necessidade de definições e do rompimento com todas as estruturas do
passado. Daí o caráter anárquico dessa primeira fase modernista e seu forte sentido
destruidor.
Ao mesmo tempo que se procura o moderno, o original e o polêmico, o nacionalismo se
manifesta em suas múltiplas facetas: volta às origens, pesquisa de fontes quinhentistas,
busca de uma "língua brasileira" (a língua falada pelo povo nas ruas), paródias, numa
tentativa de repensar a história e a literatura brasileiras, e valorização do índio
verdadeiramente brasileiro. É o tempo dos manifestos nacionalistas do Pau-Brasil e da
Antropofagia, dentro da linha comandada por Oswald de Andrade, e dos manifestos do
Verde-Amarelismo e do grupo da Anta, que já trazem as sementes do nacionalismo fascista
comandado por Plínio Salgado.
Como se percebe já ao final da década de 1920, a postura nacionalista apresenta duas
vertentes distintas: de um lado, um nacionalismo crítico, consciente, de denúncia da
realidade brasileira, identificado politicamente com as esquerdas; de outro, um
nacionalismo ufanista, utópico, exagerado, identificado com as correntes políticas de
extrema direita.
Entre os principais nomes dessa primeira fase do Modernismo e que continuariam a
produzir nas décadas seguintes destacam-se Mário de Andrade, Oswald de Andrade,
Manuel Bandeira, Antônio de Alcântara Machado, Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo,
Guilherme de Almeida e Plínio Salgado.
AS REVOLTAS MODERNAS
ORIGENS
Nas três primeiras décadas do século XX, as principais nações européias vivem uma
impressionante revolução artística, atingindo todos os setores criativos, e que - a grosso
modo - recebe o nome de Arte Moderna ou Modernismo. Esta revolução se expande
rapidamente e alcança um incontável número de países extra-europeus, entre os quais o
Brasil. O crítico Otto Maria Carpeaux delimita a cronologia dessas transformações:
Aquilo que entendemos por "arte moderna" já se presentificara na primeira década do
século XX, mas sua expansão e vitalidade deu-se na segunda década, quando a guerra, as
crises sociais e existenciais, a Revolução na Rússia, o fim do grande ciclo burguês,
favoreceram o desenvolvimento de uma arte polêmica e destruidora. Por romper com uma
série de cânones, essa arte recebeu o nome de vanguarda, a que está a frente de seu tempo.
Podemos especular que as vanguardas teriam acontecido de qualquer maneira,
independentemente das circunstâncias históricas, mas os vertiginosos acontecimentos da
Primeira Guerra Mundial e da Revolução Soviética aceleram, com certeza, a ruptura e a
radicalização, tanto ideológica quanto estética, de uma série de movimentos inovadores.
A Primeira Guerra Mundial
Entre 1914 e 1918, as grandes potências européias envolvem-se numa carnificina sem
pretendentes, causada pela ambição imperialista, pela manipulação de um nacionalismo
selvagem e pelo militarismo. Concebido como uma aventura épica, onde a avultariam a
audácia e a glória dos soldados ( e porque não dizer a humilhação dos inimigos), o
confronto é saudado, em seu início, por multidões que correm enlouquecidas às ruas. Pais e
mães alistam seus próprios filhos, professores apelam aos alunos, reservistas afluem aos
postos de recrutamento voluntário.
A euforia dura pouco: a estratégia militar não evoluíra tanto quanto os armamentos.
Batalhões inteiros são dizimados no front, durante os primeiros combates. Estabelece-se
então uma guerra de trincheiras. Frente a frente - muitas vezes com uma distância de
poucas dezenas de metros - milhões de soldados afundam em buracos enlameados e dali
partem para a conquista das trincheiras adversárias, debaixo do fogo cerrado da metralha e
da artilharia pesada. Se a tropa alcançar um desses pontos inimigos, é preciso usar a
baioneta ou o punhal ou ainda a pá para destruir os resistentes. Espetáculo terrível é
oferecido por membros humanos espalhados por toda a parte, vísceras expostas, sem contar
o uivo lancinante dos feridos que jazem, sem atendimento, no campo de batalha.
Para aterrorizar ainda mais os soldados, cientistas alemães inventam o ataque químico com
um gás a base de mostarda, que cega as vítimas e queima seus pulmões. Lançadas por
morteiros, essas bombas de gás geram imediatamente milhares de baixas. Ingleses e
franceses copiam o invento alemão e a guerra química só não se torna mais horrenda,
porque a simples mudança da direção dos ventos fazia o gás atingir os próprios atacantes.
Ao gás, à sofisticação dos canhões, aos primeiros ataques de aviões, às cercas de arame
farpado, à utilização indiscriminada de minas, à brutalidade dos oficiais, à contínua falta de
mantimentos, somam-se o frio e o calor, as epidemias, os piolhos, os percevejos e os ratos.
Naqueles buracos, os homens perdem, pouco a pouco, sua humanidade. Muitos
enlouquecem, outros apenas se transformam em animais querendo sobreviver, mas suas
vidas valem menos do que a de uma barata. Antes de morrer em combate, um sargento
francês escreve a sua mãe:
Tu não podes saber, minha mãe adorada, o que o homem pode fazer contra o homem. Há
cinco dias as minhas botas estão imundas de pedaços de cérebros humanos, e eu esmago
tórax, e a todo momento piso em tripas.
Em Nada de novo no front, romance definitivo sobre a Primeira Guerra, o ex-combatente
Erich Marie Remarque revela o horror e a selvageria do confronto:
Tornamo-nos animais selvagens. Não combatemos, nos defendemos da destruição.
Sabemos que não lançamos as granadas contra os homens, mas contra a Morte.
Escondemo-nos, abaixados, atrás de cada defesa de arame farpado, e antes de corrermos
atiramos montes de granadas aos pés dos inimigos que avançam. Corremos agachados
como gatos submersos por essa onda que nos arrasta, que nos torna cruéis, bandidos,
assassinos, até demônios; essa onda que aumenta a nossa força pelo medo, pela fúria e pela
avidez de vida, e que é apenas a luta pela nossa salvação. Se seu próprio pai viesse com os
do outro lado, você não hesitaria em lhe atirar uma granada em pleno peito. (...)
Vemos homens ainda vivos que não têm mais cabeça; vemos soldados que tiveram os dois
pés arrancados, andarem, tropeçando nos cotos lascados, até o próximo buraco; um cabo
percorre dois quilômetros apoiando-se apenas nas mãos, arrastando atrás de si os joelhos
esmagados; outro, chega até o posto de primeiros socorros e, por sobre as mãos que os
seguram, saltam os seus intestinos. Vemos homens sem boca, sem queixo, sem rosto;
encontramos um soldado que durante duas horas aperta com os dentes a artéria de um braço
para não ficar exangue. O sol se põe, vem a noite e as granadas continuam assobiando...
A derrocada da tradição
O morticínio, com o sacrifício inútil de milhões de vidas, leva à bancarrota a Belle Èpoque
européia. A euforia e a autoconfiança cedem lugar ao desespero e à crise generalizada dos
valores. Os códigos dominantes, a moral, a filosofia e a religião não conseguem explicar
essa descida aos infernos. A Europa deixa de ser o modelo de civilização e passa a ser a
barbárie.
"A grande síntese burguesa", na expressão do historiador G. Barraclough, com seu conjunto
de formas de pensamento, concepções de existência e de arte, sentimentos e ilusões, -
conjunto centrado no liberalismo e na convicção da estabilidade e do progresso infinito -
desintegra-se na tragédia de 1914. O filósofo espanhol Ortega y Gasset escreve sobre os
anos difíceis, que se sucederiam à Primeira Guerra:
Sentimos que nós, homens atuais, fomos subitamente deixados sozinhos sobre a Terra...
Evaporaram-se quaisquer remanescentes do espírito tradicional. Modelos, normas, padrões,
nada disso tem atualidade. Temos de resolver nossos problemas sem qualquer colaboração
ativa do passado.
É óbvio que também as formas artísticas do passado (e que, em geral, traduziam o vitorioso
modo de ser da burguesia européia) entram em colapso e se desintegram. "Destruir o
passado"- eis a palavra de ordem de toda uma nova arte, produzida por jovens que se
arremetem contra o "bom gosto", o "equilíbrio" e a "tradição", como quem se arremetesse
contra uma trincheira inimiga. A idéia de abolição do passado encontra eco na luta política.
É em nome do "novo" que uma auto-intitulada "vanguarda social"- a facção bolchevista -
desencadeia o processo revolucionário na Rússia. A adesão dos artistas rebeldes é imediata
e quase total. Revolução na arte e na sociedade, eis a fórmula que exerce notável sedução
no final dos anos 10.
A Revolução Soviética
Os desastres dos exércitos russos na Primeira Guerra levam ao colapso do tzarismo.
Nicolau II é deposto em fevereiro de 1917 e um governo republicano de coalizão assume o
país. O prosseguimento da Guerra, entretanto, gera grande descontentamento popular.
Revoltas de soldados irrompem e o pequeno partido bolchevique - composto basicamente
por intelectuais e algumas lideranças proletárias - aproveita-se da crise e, em outubro de
1917, intenta com sucesso um golpe contra a frágil democracia russa.
A ousadia, a disciplina e a organização dos comunistas, sob o comando de Wladimir Ilich
Ulyanov (Lênin), e subsidiariamente de Léon Trotsky, lhes garantem a hegemonia em meio
ao caos social e político. Bandeiras vermelhas são desfraldadas em todo o país e, em muitas
delas, lê-se a principal insígnia socialista: "Pão, Terra e Liberdade".
O levante bolchevista encontra eco na soldadesca, nas camadas médias e pobres da
população. Lênin grita: "Todo poder aos sovietes". Os sovietes são conselhos de
trabalhadores que tomam fábricas, fazendas, quartéis e repartições. Através deles, a chama
revolucionária atravessa toda a Rússia, transformada agora em URSS (União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas). Trotsky negocia um acordo em separado com a
Alemanha, retirando seu país da guerra para concentrar todos os esforços na construção do
socialismo.
Os anos subseqüentes são terríveis. Os conservadores (nobreza, latifundiários, burgueses)
reagem militarmente, deflagrando uma guerra civil que durará três anos. Terminada a
Guerra Mundial, em 1918, os países vencedores criam um "cordão sanitário" em torno da
URSS, e apoiam abertamente os contra-revolucionários e procurando asfixiar o novo
regime.
Em condições exasperantes, Lênin e Trotsky, com o apoio majoritário da população, batem
os inimigos internos e externos. Talvez isso não fosse possível sem a grande solidariedade
internacional em torno da nascente sociedade soviética. E cabe aos artistas (sobremodo aos
artistas das vanguardas) a linha de frente desse apoio. A Revolução traz a esperança da
criação de uma nova humanidade e sua mensagem igualitária espalha-se pelo mundo.
Em muitos países capitalistas, a "ameaça vermelha" desencadeia tanto a perseguição
intensa aos comunistas quanto a aprovação de reformas sociais, visando a neutralizar os
setores operários mais combativos. No entanto, após a morte de Lênin, em 1924, Josef
Stálin - que já controlava a máquina partidária do PCUS - toma o poder e inicia um
implacável processo de perseguição às outras lideranças bolcheviques. A maioria desses
velhos revolucionários será assassinada após processos sumários e descabidos. Trotsky
morre no México, onde se exilara, atacado a golpes de picareta por um agente de Stálin.
A repressão estalinista logo atingiria toda a população: milhões de indivíduos são
exterminados, durante a década de 1930, geralmente na Sibéria. Os que conseguem retornar
vivos, mantém um silêncio aterrorizado. A delação e o medo tornam-se os aspectos
dominantes da vida cotidiana. Entre as vítimas, figuram milhares de artistas. Por isso a arte
soviética, rica em experiências e criatividade, nos anos de 1920, perderá na década
subseqüente toda a vitalidade.
Como um símbolo da recusa à "nova era" proposta por Stálin, o poeta futurista Maiakovski,
militante radical da causa revolucionária, suicida-se em 1930. Muitos anos depois, o poeta
mexicano Octávio Paz sintetizaria estes acontecimentos assim: "O século XX tem sido com
freqüência a história de utopias que acabam em campos de concentração."
O TRIUNFO DAS VANGUARDAS
Entre os inúmeros movimentos inovadores, surgidos nas primeiras décadas do século XX, e
que contribuíram decisivamente para a constituição da chamada modernidade artística,
devemos destacar:
FUTURISMO
A história do Futurismo é também a de seu líder, o italiano Marinetti (1867-1944). Desde o
primeiro manifesto futurista, publicado em Paris, 1909, passando pelo grande número de
manifestos da década de 10, até a adesão de Marinetti ao Fascismo no início dos anos 20,
percebe-se o movimento centrado numa figura, ao mesmo tempo líder teórico e prático,
divulgador e defensor da nova estética. Marinetti assume os aspectos positivos e negativos
de suas proposições e leva-as até o fim. O fim natural é o Fascismo.
Glorificando a audácia, o amor ao perigo, a energia, a guerra, a tecnologia, as luzes feéricas
das cidades, o cinematógrafo, a velocidade dos automóveis, das locomotivas e dos
aeroplanos, o Futurismo exalta a imagem de um novo mundo, dominado por homens
superiores. Homens-máquinas que desprezam o passado com seus acervos inúteis:
Nós queremos demolir os museus, as bibliotecas, combater o moralismo, o feminismo e
todas as covardias oportunistas e utilitárias.
Que exigem da literatura o imprevisto e a revolta:
Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito à energia e à temeridade.
Tendo a literatura até aqui enaltecido a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono, nós
queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo ginástico, o salto mortal,
a bofetada e o soco.
Nós declaramos que o esplendor do mundo se enriqueceu com uma beleza nova: a beleza
da velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre adornado de grossos tubos como
serpentes de fôlego explosivo... um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha,
é mais belo que a Vitória de Somotrácia.
Homens que celebram o caráter "higiênico" das guerras até porque o primeiro manifesto
futurista é anterior à catástrofe de 1914:
Nós queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo - o militarismo, o patriotismo, o
gesto destruidor dos anarquistas e as belas idéias que matam.
Esta proposta anárquica de destruição do passado e de construção de uma nova ordem,
centrada nos avanços tecnológicos, tem sua correspondência na idéia de uma grande
revolução na linguagem. Especialmente na linguagem literária. E é enquanto projeto
estético renovador - e não enquanto ideologia - que o Futurismo torna-se importante. Seu
criador e os futuros seguidores arrasarão com a velha retórica, com o discurso literário
tradicional, fascinados pela aventura de uma linguagem jovem e contestadora das
convenções.
Em 1912, Marinetti lança o Manifesto técnico da literatura futurista:
É preciso destruir a sintaxe, dispondo os substantivos ao acaso, como nascem. Deve-se usar
o verbo no infinito (...)
Deve-se abolir o adjetivo para que o substantivo desnudo conserve a sua cor essencial. O
adjetivo é incompatível com nossa visão dinâmica uma vez que supõe uma parada, uma
meditação.
Deve-se abolir o advérbio (...)
Cada substantivo deve ter o seu duplo. Exemplo: homem-torpedeiro, mulher-golfo,
multidão-ressaca, praça-funil
Abolir também a pontuação (...)
A poesia deve ser uma seqüência ininterrupta de imagens novas (...)
Destruir na literatura o "eu"
Façamos corajosamente o "feio" em literatura e matemos de qualquer maneira a solenidade.
Além disso, o criador do Futurismo vai defender o emprego de símbolos matemáticos no
texto e também o uso da impressão tipográfica, até então neutra, para obter efeitos
especiais: páginas impressas em linhas verticais, circulares e oblíquas, multiplicidade de
tipos, cores,etc.
Pode-se afirmar que o movimento futurista impulsiona decisivamente toda a arte de
vanguarda, tanto a européia como a não-européia. No Brasil, ele é o principal estímulo
artístico e intelectual para os jovens renovadores de São Paulo, a tal ponto que os mesmos
são conhecidos -durante os primeiros anos da década de 20 - como "futuristas" mais do que
como "modernistas".
Um exemplo de texto formalmente vinculado ao Futurismo, é este poema de Maiakovski,
Balalaica, na espetacular tradução (recriação) de Augusto de Campos. Além das inovações
formais, ressalte-se o caráter revolucionário da balalaica - instrumento popular russo - que
impugna o baile de gala, símbolo da decrépita aristocracia do país:
(como um balido abala
a balada do baile
de gala)
com um balido abala
abala (com balido)
(a gala do baile)
louca a bala
laica*
* laica: leiga, no sentido de popular.
Fim da parte 1
Referências bibliográficas
http://www.terra.com.br/literatura/modernismo/indice.htm
http://www.netliteratura.hpg.ig/index2.htm
Modernismo (parte 2)
Fim da parte 2
Referências bibliográficas
http://www.terra.com.br/literatura/modernismo/indice.htm
http://www.netliteratura.hpg.ig/index2.htm
Modernismo (parte 3)
AMBIGÜIDADE
O discurso literário perde o sentido fechado que geralmente possuía no século passado. Ou
seja, ele oferecia ao leitor apenas um sentido, uma interpretação. Agora, ele tem um caráter
variado e polissêmico. Uma rede de significações, que permite múltiplos níveis de leitura. É
a chamada obra aberta, obra que não apresenta univocidade, ou seja, que não se esgota
numa única interpretação. Daí a impressão de modernidade que um romance como Dom
Casmurro, ou um conto como Missa do galo, nos transmitem até hoje.
Estrela da manhã, de Manuel Bandeira, por exemplo, é um poema representativo do
polissenso da literatura contemporânea. No final da leitura, não sabemos com absoluta
convicção o que essa estrela simboliza. Uma mulher experiente que o poeta deseja? Uma
prostituta? A própria vida a que Bandeira pela doença foi obrigado a abdicar?
Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã ?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã
Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda a parte
Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa?
Eu quero a estrela da manhã
Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e os troianos
Com o padre e o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto
Depois pecai comigo
Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas
comerei terra e direi coisas de uma
ternura tão simples
que tu desfalecerás
Procurem por toda a parte
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.
PARÓDIA
Os modernistas realizam, em todas as artes, uma aproximação crítica das obras do passado.
No universo literário, a releitura de textos famosos das escolas anteriores torna-se uma
forma de rejeição ou de admiração. Com freqüência, os modernos terminar por reescrever
alguns dos textos consagrados sob uma perspectiva de humor: é a paródia.
Um dos livros de crítica literária de Mário de Andrade chama-se A escrava que não é
Isaura, numa evidente alusão ao romance de Bernardo Guimarães. Poucos poetas resistiram
à chance de parodiar a antológica Canção do exílio, de Gonçalves Dias, conforme podemos
verificar num conjunto de excertos, como o de Oswald de Andrade, Canto do regresso à
pátria:
Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos aqui
Não cantam como os de lá
Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra (...)
Não permita Deus que eu morra
Sem que eu volte para são Paulo
Sem que eu veja a rua 15
E o progresso de São Paulo
Em Canção, Mário Quintana parece fazer um protesto ecológico:
Minha terra não tem palmeiras...
E em vez de um mero sabiá,
Cantam aves invisíveis
Nas palmeiras que não há.
Carlos Drummond, mais filosófico, reflete sobre a distância da felicidade em Nova canção
do exílio:
Um sabiá
na palmeira, longe.
Estas aves cantam
um outro canto. (...)
Onde tudo é belo
e fantástico,
só, na noite,
seria feliz.
(Um sabiá,
na palmeira, longe.)
Também Murilo Mendes mostra-se irreverente com o célebre poema romântico:
Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza. (...)
Eu morro sufocado em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas são mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.
Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!
É, no entanto, de Carlos Drummond uma das mais perfeitas paródias de toda a nossa
literatura: Sentimental. Partindo de um conhecido poema de Fagundes Varela, onde o
mesmo expressa, com muita propriedade e encanto, a aspiração do amor romântico à
eternidade - traduzido na gravação do nome da amada num arbusto - o poeta mineiro vale-
se, ao inverso, de letrinhas de sopa de macarrão para registrar o seu afeto. Com isso, não
apenas satiriza as grandes paixões do Romantismo, como revela o caráter efêmero de todas
as relações de nosso tempo.
Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.
Desgraçadamente falta uma letra
Uma letra somente
para acabar teu nome!
- Está sonhando? Olhe que a sopa esfria.
Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências este cartaz amarelo:
"Neste país é proibido sonhar."
Referências bibliográficas:
http://www.terra./literatura/modernismo/modernismo_19.htm
Introdução
Nas noites de 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, abriu-se ao público o saguão do Teatro
Municipal de São Paulo, onde vários artistas mostravam obras com uma linguagem nova,
afinada com as correntes estéticas do começo do século. É bom lembrar que a Europa,
nessa altura, já vivia o derradeiro movimento de vanguarda, o Surrealismo.
A abertura da Semana esteve a cargo de Graça Aranha, escritor pré-modernista que aderiu
ao movimento dos modernos. Sua conferência. A emoção estética na arte moderna foi
ilustrada com declamação de poemas. Seguiu-se execução de peças de Villa-Lobos.
Na segunda noite, Ronald de Carvalho declamou o hoje conhecidíssimo poema "Os sapos",
de Manuel Bandeira, em que se ridicularizava o Parnasianismo.
Foi a noite mais agitada da Semana. Gritos e vaias do público acompanhavam a
declamação. No intervalo, Mário de Andrade fez uma palestra no saguão do teatro. Na
segunda parte do programa apresenta-se ma pianista já consagrada: Guiomar Novaes.
Na terceira noite, dedicada à música, houve um incidente: Villa-Lobos apresentou-se de
casaca e chinelos. Mas não era uma agressão; o compositor estava com um pé machucado.
A Semana de Arte Moderna só foi possível graças ao apoio financeiro dos fazendeiros de
café. E aí reside uma contradição, pois um dos objetivos declarados dos organizadores do
acontecimento era "assustar a burguesia que cochila na glória de seus lucros". Proposta
feita, proposta alcançada: assobios, vaias e, segundo alguns, até agressões assinalaram a
reação do público.
Foi esse o clima que marcou a ruptura com o tradicionalismo. Nossos modernistas de
primeiro momento apresentavam uma arte que estava em consonância com o grande
movimento internacional de renovação de idéias.
Além de empregar uma nova linguagem, os artistas da Semana atacavam abertamente o
passado, sobretudo o Parnasianismo. Por que o Parnasianismo? Primeiro, porque era o
estilo que antecedia de perto o Modernismo; segundo, porque foi um estilo muito apegado a
regras e modelos; terceiro, porque era ainda o que valia como referência artística para a
classe dominante, justamente aquela que se queria chocar.
Obviamente, se tivesse permanecido restrita a São Paulo, a Semana não teria tido tão
grande importância renovadora.
A partir dos acontecimentos do Teatro Municipal, divulgados pela imprensa da época, as
novas idéias encontraram adeptos em todo o país, ora adeptos mais serenos, ora mais
radicais. No período compreendido entre 1922 e 1930 primeira fase do Modernismo
manifestos, revistas, grupos recém-formados difundiram-se por nosso cenário cultural
como nunca havia acontecido antes.
Obviamente, havia discordâncias entre os grupos. Às vezes, até oposições fortes. O que
havia de comum em todos, no entanto, era a certeza da urgente necessidade de renovar
nossa cultura.
Antecedentes da Semana
Desde o início da segunda década do século, atividades culturais diversas deram início ao
processo de corrosão da arte acadêmica brasileira. Vejamos alguns desses episódios:
Oswald de Andrade e Emílio Menezes fundaram, em 1911, a revista de arte Pirralho, cujos
princípios questionavam a arte brasileira. Nesse jornal divulgaram-se as composições de
Juó Bananere pseudônimo de Alexandre Marcondes Machado, sátiras de textos
consagrados de nossa literatura, considerados até então como intocáveis. As sátiras eram
bastante irreverentes e divertidas, principalmente porque o autor utilizava um italiano
"macarrônico" para expressar-se. Aliás, tratava-se de uma língua comum nos bairros de São
Paulo onde os imigrantes italianos tinham-se fixado.
A irreverência seria uma das marcas registradas da primeira fase modernista. Bananere
antecipava-se.
Em 1912, Oswald de Andrade voltou de sua primeira viagem à Europa e divulgou idéias
cubistas e futuristas, entre elas a do verso livre.
No ano seguinte, um pintor russo que se fixara no Brasil Lasar Segall fez uma exposição
de pintura expressionista. Em 1914 foi a vez de Anita Malfatti mostrar quadros
expressionistas, resultado de seu estágio na Alemanha.
O ano de 1917 é especialmente marcante na gestação da Semana. Primeiro, porque alguns
escritores que futuramente produziriam obras modernistas publicaram textos com tímidas
inovações de linguagem. Tímidas, mas inovações. É o caso de Mário de Andrade, que sob o
pseudônimo de Mário Sobral, publicou Há uma gota de sangue em cada poema. Manuel
Bandeira, Menotti del Picchia e Guilherme de Almeida também publicaram novidades.
Segundo, porque Anita Malfatti fez uma exposição de pintura com tendência cubista, dando
motivo a uma violenta crítica do escritor Monteiro Lobato, que, num artigo intitulado
"Paranóia ou mistificação?", reagiu violentamente à obra de Anita. O artigo dividiu artistas
e público, simbolizando o primeiro confronto aberto entre o velho e o novo.
Lobato radicalizou:
"Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem normalmente as coisas e em
conseqüência fazem arte pura (...) A outra espécie é formada dos que vêem anormalmente a
natureza e a interpretam à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica excessiva. São
produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência; são frutos de fim de
estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes brilham um instante, as mais das vezes
com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento... "
Ora, Lobato, além de ser, um pré-modernista, com idéias avançadas, era respeitadíssimo
por toda a intelectualidade, conservadora ou não. Sua crítica pesou muito. Mais tarde,
Lobato reconheceu que entendia pouco de artes plásticas para ter escrito tudo aquilo.
Em 1921, Oswald de Andrade publicou um artigo chamando Mário de Andrade de "meu
poeta futurista". Ocorre que Oswald tinha lido os originais de Paulicéia desvairada livro
que seria publicado em 1922 e representaria o primeiro livro de poemas modernistas. Mário
respondeu negando sua condição de futurista.
Explica-se a atitude de Mário: nessa altura, o Futurismo italiano estava associado ao nazi-
fascismo, ideologia rejeitada pelo escritor.
Nesse mesmo ano, Di Cavalcanti fez uma exposição em São Paulo e, segundo consta,
lançou a idéia: por que não realizar uma "semana" de arte moderna?
Em resumo, enquanto não tinham um programa ideológico e estético pronto, os
modernistas iam tomando contato com os ismos europeus, através de livros e revistas.
A Poesia Moderna no Brasil
Na década de 1930 a poesia moderna brasileira consolida-se. As ousadias, por vezes
excessivas, da geração de 1922 vão se abrandando. O resultado é o nascimento de uma
lírica pujante, elaborada por um excepcional conjunto de criadores. Poucos países do
mundo podem se orgulhar de possuir um grupo tão expressivo quanto este. A legítima
idade de ouro do gênero poético, no país, ocorre em mais ou menos cinqüenta anos, até a
década de 80, - quando morre Drummond e João Cabral se aposenta - fechando um ciclo de
incomum grandeza. Didaticamente, podemos dividir estas brilhantes vozes poéticas em
duas linhas:
a) O grupo da tradição lírica: Resulta da síntese entre as inovações modernistas e o melhor
da poesia ocidental do passado, fundindo a linguagem renovadora com temas clássicos e
universais. Predomina a subjetividade e reafirma-se o velho poder da inspiração, nos
moldes românticos. Seu maior expoente é Manuel Bandeira, mas enquadram-se neste bloco
Cecília Meireles, Vinícius de Moraes e Mário Quintana.
b) O grupo da modernidade radical: Estrutura-se em oposição ao confessionalismo e ao
subjetivismo da poesia tradicional, mesmo aquela produzida por autores contemporâneos.
O mundo torna-se mais importante do que o eu-lírico. Há uma grande desconfiança a
respeito das possibilidades comunicativas da linguagem e rejeita-se a inspiração,
privilegiando-se a técnica e a carpintaria poética. O nome principal é o de Carlos
Drummond de Andrade. Outros representantes seriam Murilo Mendes, João Cabral de
Mello Neto e os concretistas de São Paulo.
Não é errado falar também um grupo (ou subgrupo) que opta pela poesia engajada. Este
tipo especial de lírica origina-se dos compromissos sociais, políticos e religiosos dos
escritores, para quem a arte se identifica com a manifestação de princípios nacionalistas,
católicos ou marxistas. Geralmente correspondem à fases transitórias dos poetas, como a do
socialismo de Drummond, a da religiosidade popular de Jorge de Lima, ou a do catolicismo
conservador de Vinícius de Moraes, no início de carreira, etc. Do ponto de vista da
linguagem, seus adeptos fogem do experimentalismo e buscam um estilo mais
convencional, e por vezes discursivo. Mais próximos de nós, encontramos, nesta vertente
engajada, boa parte das obras de Ferreira Gullar e Afonso Romano de Sant´Anna .
Referências bibliográficas:
http://www.terra./literatura/modernismo/modernismo_19.htm
http://www.netliteratura.hpg.ig/index2.htm
PRINCIPAIS POETAS
O poeta debruça-se sobre o mundo concreto, porém na sua fala sobre o real pode-se
pressentir o traço biográfico, como no já antológico Irene:
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor
Imagino Irene entrando no céu:
- Com licença, meu branco.
E São Pedro, bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
O gosto pelo poema-piada prosseguirá em seu segundo livro História do Brasil, porém a
crise metafísica - vivenciada em 1934 - leva-o, no ano seguinte, a buscar a amizade
religiosa e a parceria de outro escritor cristão, Jorge de Lima, com quem escreverá Tempo e
eternidade. O objetivo de ambos é "restaurar a poesia em Cristo". Mas se, no caso do poeta
alagoano, a religiosidade sempre se reveste de certo apelo tradicional e popular, em Murilo
Mendes, ela é muito mais filosófica, com um requinte espiritual que, contraditoriamente, a
aproxima dos dilemas mais concretos de nosso tempo. O cristianismo surge como resposta
para um mundo sanguinário e sem sentido, como se observa em O filho do século:
"Cairei no chão do século vinte
Aguardam-me lá fora
As multidões famintas justiceiras
Sujeitos com gases venenosos (...)
É a hora das barricadas, dos fuzilamentos
Fomes desejos ânsias sonhos perdidos
Miséria der todos os países uni-vos
Fogem a galope os anjos-aviões
Carregando o cálice da esperança "
Poesia Moderna
O cristianismo é, para o escritor mineiro, "um desafio ético à sociedade planetária", um
caminho contra a guerra, contra as ditaduras de direita e de esquerda e contra todas as
forças que aviltam a dignidade humana. A caridade cristã torna-se a única alternativa de
justiça social que não passa pela militância política, geralmente sectária. Porém, o
cristianismo é, sobretudo uma tentativa de compreender a existência, ordenar o seu caos,
retirar-lhe o caráter de gratuidade e de absurdo, ainda que nem sempre este consolo
religioso se ofereça aos homens.. Exemplo de poesia, que nasce no cotidiano e se impregna
de metafísica, encontramos em "Canto do noivo":
"Eu verei tuas formas crescerem pouco a pouco
verei tuas formas mudarem a cor, o peso, o ritmo,
teus seios se dilatarem na noite quente,
os olhos se transformarem quando brotar a idéia do primeiro filho.
Assistirei ao desenvolver das tuas idades,
guardando todos os teus movimentos.
Já está na minha memória a menina mãe de bonecas,
depois a que ficava de tarde na janela,
e a que se alterou quando me conheceu,
e a que está perto da união das almas e dos corpos.
As outras virão. Tuas ancas hão de se alargar,
e os seios caídos, o olhar apagado, os cabelos sem brilho
hão de te arrastar pra mais perto do sentido do amor,
ó minha mártir, forma que eu destruí, integrada em mim."
O que torna Murilo Mendes um poeta difícil para alguns leitores é também o seu código
verbal. A expressão de suas inquietações e postulados cristãos dá-se em linguagem áspera,
despida de musicalidade, mais próxima do substantivo que do adjetivo. Além disso, ele
atinge intencionalmente uma espécie de supra-realismo, definido por imagens
desconcertantes, alucinações, uso de símbolos e, por vezes, acentuada abstração. Vários
críticos já rotularam sua poética de surrealista. Neste Poema barroco as metáforas
aproximam-se da irrealidade e do sonho:
"Os cavalos da aurora derrubando pianos
Avançam furisoamente pelas portas da noite.
Dormem na penumbra antigos antos com os pés feridos,
Dormem relógios e cristais de outro tempo, esqueletos de atrizes.
O poeta calça nuvens ornadas de cabeças gregas (...)
O constante apelo à alegoria; o celebralismo que se confunde com a fé; a busca de
significado religioso tanto para o drama individual quanto para o drama histórico; e os
inúmeros recursos técnicos e estilísticos, garantem à poesia de Murilo Mendes uma
permanência que análises de especialistas deverão confirmar, nos próximos anos.
Referência bibliográfica:
http://terra.com.br/literatura/poesiamoderna/poesiamoderna_11htm