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Nem as canções de Adoniran Barbosa, nem as de Rita Lee. A “mais completa tradução de
São Paulo” talvez se encontre numa obra mítica e irregular do Modernismo brasileiro,
muito citada e pouco lida: Paulicéia desvairada, de Mário de Andrade.
Apesar de alguns de seus poemas terem ficado datados e muitos versos completamente
obscuros, Paulicéia desvairada continua sendo para os leitores de hoje uma obra ousada e
inquietante. Se a compararmos aos textos líricos da década anterior, (Cinza das horas, de
Manuel Bandeira e Nós, de Guilherme de Almeida, por exemplo) parece que um século os
separa, tamanha a capacidade de inovação e invenção de Mário de Andrade. Paulicéia é,
com efeito, a primeira obra de vanguarda literária do país. Inúmeras experiências ousadas
são apresentadas ao leitor brasileiro: verso livre, transgressões sintáticas, colagem,
seqüência ininterrupta de imagens audaciosas e inesperadas, destruição da solenidade
poética, etc.
Contudo, a experimentação não deixa de ser perturbada por certos traços anacrônicos: um
vaga subjetividade romântica, um certo gosto retórico e uma tendência ao excesso verbal.
(Esta verbosidade impediu Mário de se tornar um grande poeta ou pelo menos um poeta do
primeiro time da lírica nacional). O mais estranho é que o esforço pela radicalidade
vanguardista entra em dissonância, às vezes, com a concepção de mundo do autor, que
oscila entre a adesão à vida moderna e a sua rejeição. Gera-se uma espécie de fissura:
forma e conteúdo muitas vezes não combinam. A forma atualíssima nem sempre está
adequada à desconfiança e as incertezas do poeta a respeito do sentido do progresso
paulistano.
Ao contrário dos futuristas europeus que celebram sem hesitar a cidade, a urbanização, as
máquinas e a tecnologia em geral, Mário se interroga sobre o significado desta nova
metrópole(1), problematizando-a indefinidamente. O dilaceramento do poeta resulta das
tensões sociais que o rodeiam. De um lado, sua linhagem social o compromete com um
passado hierárquico; por outro, ele compreende o valor do novo, o efeito espetacular da
industrialização, o papel empreendedor dos imigrantes, a democratização da vida urbana.
Muitos dos poemas de Paulicéia captam este paradoxo. Ora o poeta afirma que esta cidade
nova, que velozmente se modifica, é a “comoção de minha vida”; ora ele a vê como a
“grande boca de mil dentes...”, pronta a devorar os seus antigos senhores; ora ele ressalta
que a sua cidade é capaz de incorporar e sintetizar todas as etnias e todas as classes:
“Costureirinha (...) ítalo-franco-luso-brasílico-saxônica, / gosto dos teus ardores
crepusculares, / crepusculares e por isso mais ardentes, / bandeirantemente!” .
Por vezes, São Paulo é a cidade impassível e quase cruel que assiste sem derramar uma
gota de lágrima à derrota dos bandeirantes: “Aos aplausos do esfuziante clown, / heróico
sucessor da raça dos bandeirantes, / passa galhardo um filho de imigrante, / loiramente
domando um automóvel!”. Daí a metáfora contínua do arlequim e do uso imoderado do
neologismo arlequinal. O arlequim é o que restou da antiga elite que um dia teve grandeza e
audácia. É o clown (o palhaço) que mistura ironia e tristeza na tentativa de entendimento de
um mundo cambiante. “As primaveras de sarcasmo / intermitentes no meu coração
arlequinal...”, diz o poeta expressando o seu estado de ânimo frente às mudanças. Até
mesmo o traje do arlequim com seus losangos, seu contraste de cores, parece representar a
dualidade de uma metrópole feita de “cinza e ouro”, de “luz e bruma”, de tradição e
ruptura, do velho e do novo.
Apesar desta sensação conflituosa, o poeta não se esquiva (a não ser nos raros momentos
em que sonha com “primaveras eternas”) de buscar a alma de São Paulo através da bruma,
da garoa, do cinzento e do enevoado, esforçando-se em registrar o frêmito das ruas e a
criação da riqueza, como neste excerto de Paisagem n.4:
Apesar desta sensação conflituosa, o poeta não se esquiva (a não ser nos raros momentos
em que sonha com “primaveras eternas”) de buscar a alma de São Paulo através da bruma,
da garoa, do cinzento e do enevoado, esforçando-se em registrar o frêmito das ruas e a
criação da riqueza, como neste excerto de Paisagem n.4:
As casas adormecidas