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Mário de Andrade - Paulicéia desvairada - parte I

PAULICÉIA DESVAIRADA: O GRANDE CALEIDOSCÓPIO DE SÃO PAULO

Nem as canções de Adoniran Barbosa, nem as de Rita Lee. A “mais completa tradução de
São Paulo” talvez se encontre numa obra mítica e irregular do Modernismo brasileiro,
muito citada e pouco lida: Paulicéia desvairada, de Mário de Andrade.

Publicada em 1922 e referência obrigatória em qualquer manual de literatura, a obra sempre


é examinada a partir de seu célebre prefácio (Prefácio interessantíssimo), em que o autor
deslinda as diferenças entre a poesia futurista e a poesia moderna. É também o livro em que
se insere Ode ao burguês, poema sarcástico lido durante a Semana, e que se tornou a
expressão mais conhecida da iconoclastia do grupo renovador paulista. Este poema, por
sinal, nem sempre foi bem entendido em seus fundamentos ideológicos, mais
conservadores do que revolucionários, porque o ódio que Mário vota à figura emblemática
do burguês nasce de um espírito aristocrático, chocado com a vulgaridade e o caráter
filisteu dos novos ricos que tomavam conta da cidade.

Apesar de alguns de seus poemas terem ficado datados e muitos versos completamente
obscuros, Paulicéia desvairada continua sendo para os leitores de hoje uma obra ousada e
inquietante. Se a compararmos aos textos líricos da década anterior, (Cinza das horas, de
Manuel Bandeira e Nós, de Guilherme de Almeida, por exemplo) parece que um século os
separa, tamanha a capacidade de inovação e invenção de Mário de Andrade. Paulicéia é,
com efeito, a primeira obra de vanguarda literária do país. Inúmeras experiências ousadas
são apresentadas ao leitor brasileiro: verso livre, transgressões sintáticas, colagem,
seqüência ininterrupta de imagens audaciosas e inesperadas, destruição da solenidade
poética, etc.

Contudo, a experimentação não deixa de ser perturbada por certos traços anacrônicos: um
vaga subjetividade romântica, um certo gosto retórico e uma tendência ao excesso verbal.
(Esta verbosidade impediu Mário de se tornar um grande poeta ou pelo menos um poeta do
primeiro time da lírica nacional). O mais estranho é que o esforço pela radicalidade
vanguardista entra em dissonância, às vezes, com a concepção de mundo do autor, que
oscila entre a adesão à vida moderna e a sua rejeição. Gera-se uma espécie de fissura:
forma e conteúdo muitas vezes não combinam. A forma atualíssima nem sempre está
adequada à desconfiança e as incertezas do poeta a respeito do sentido do progresso
paulistano.

Ao contrário dos futuristas europeus que celebram sem hesitar a cidade, a urbanização, as
máquinas e a tecnologia em geral, Mário se interroga sobre o significado desta nova
metrópole(1), problematizando-a indefinidamente. O dilaceramento do poeta resulta das
tensões sociais que o rodeiam. De um lado, sua linhagem social o compromete com um
passado hierárquico; por outro, ele compreende o valor do novo, o efeito espetacular da
industrialização, o papel empreendedor dos imigrantes, a democratização da vida urbana.
Muitos dos poemas de Paulicéia captam este paradoxo. Ora o poeta afirma que esta cidade
nova, que velozmente se modifica, é a “comoção de minha vida”; ora ele a vê como a
“grande boca de mil dentes...”, pronta a devorar os seus antigos senhores; ora ele ressalta
que a sua cidade é capaz de incorporar e sintetizar todas as etnias e todas as classes:
“Costureirinha (...) ítalo-franco-luso-brasílico-saxônica, / gosto dos teus ardores
crepusculares, / crepusculares e por isso mais ardentes, / bandeirantemente!” .

Por vezes, São Paulo é a cidade impassível e quase cruel que assiste sem derramar uma
gota de lágrima à derrota dos bandeirantes: “Aos aplausos do esfuziante clown, / heróico
sucessor da raça dos bandeirantes, / passa galhardo um filho de imigrante, / loiramente
domando um automóvel!”. Daí a metáfora contínua do arlequim e do uso imoderado do
neologismo arlequinal. O arlequim é o que restou da antiga elite que um dia teve grandeza e
audácia. É o clown (o palhaço) que mistura ironia e tristeza na tentativa de entendimento de
um mundo cambiante. “As primaveras de sarcasmo / intermitentes no meu coração
arlequinal...”, diz o poeta expressando o seu estado de ânimo frente às mudanças. Até
mesmo o traje do arlequim com seus losangos, seu contraste de cores, parece representar a
dualidade de uma metrópole feita de “cinza e ouro”, de “luz e bruma”, de tradição e
ruptura, do velho e do novo.

Apesar desta sensação conflituosa, o poeta não se esquiva (a não ser nos raros momentos
em que sonha com “primaveras eternas”) de buscar a alma de São Paulo através da bruma,
da garoa, do cinzento e do enevoado, esforçando-se em registrar o frêmito das ruas e a
criação da riqueza, como neste excerto de Paisagem n.4:

Os caminhões rodando, as carroças rodando,

rápidas as ruas se desenrolando,

rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos...

E o largo coro de ouro das sacas de café!... (...)

Oh! este orgulho máximo de ser paulistanamente!!!

Mário de Andrade - Paulicéia desvairada - parte II


Por vezes, São Paulo é a cidade impassível e quase cruel que assiste sem derramar uma
gota de lágrima à derrota dos bandeirantes: “Aos aplausos do esfuziante clown, / heróico
sucessor da raça dos bandeirantes, / passa galhardo um filho de imigrante, / loiramente
domando um automóvel!”. Daí a metáfora contínua do arlequim e do uso imoderado do
neologismo arlequinal. O arlequim é o que restou da antiga elite que um dia teve grandeza e
audácia. É o clown (o palhaço) que mistura ironia e tristeza na tentativa de entendimento de
um mundo cambiante. “As primaveras de sarcasmo / intermitentes no meu coração
arlequinal...”, diz o poeta expressando o seu estado de ânimo frente às mudanças. Até
mesmo o traje do arlequim com seus losangos, seu contraste de cores, parece representar a
dualidade de uma metrópole feita de “cinza e ouro”, de “luz e bruma”, de tradição e
ruptura, do velho e do novo.

Apesar desta sensação conflituosa, o poeta não se esquiva (a não ser nos raros momentos
em que sonha com “primaveras eternas”) de buscar a alma de São Paulo através da bruma,
da garoa, do cinzento e do enevoado, esforçando-se em registrar o frêmito das ruas e a
criação da riqueza, como neste excerto de Paisagem n.4:

Os caminhões rodando, as carroças rodando,

rápidas as ruas se desenrolando,

rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos...

E o largo coro de ouro das sacas de café!... (...)

Oh! este orgulho máximo de ser paulistanamente!!!

As contradições de Mário de Andrade acabam por constituir uma notável multiplicação de


olhares e de perspectivas a respeito de São Paulo. A fascinação e o horror do moderno
confundem-se, produzindo esta variedade de enfoques sobre a cidade. Nenhuma destas
visões é a definitiva, não há uma conclusão, não temos a última palavra do poeta, aquela
que consagraria ou impugnaria a modernidade paulistana. Tudo é ambivalente e movediço.
E é exatamente por causa desta indefinição entre o amor e a repulsa, entre a ironia e a
percepção do novo que alguns poemas de Paulicéia desvairada traduzem – paradoxalmente
– a essência calidoscópica, complexa e cheia de metamorfoses da mais importante
metrópole do país, “galicismo a berrar nos desertos da América”!

Um dos exemplos de melhor realização da obra é Paisagem n.2

Escuridão dum meio-dia de invernia...

Marasmos... Estremeções... Brancos...

O céu é toda uma batalha convencional de confetti brancos;


e as onças pardas das montanhas no longe...

Oh! para além vivem as primaveras eternas!

As casas adormecidas

parecem teatrais gestos dum explorador do polo

que o gelo parou no frio.

Lá para as bandas do Ipiranga as oficinas tossem...

Todos os estiolados são muito brancos.

Os invernos de Paulicea são como enterros de virgem...

Italianinha, torna al tuo paese! (...)

Deus recortou a alma de Paulicéia

num cor de cinza sem odor...

Oh! Para além vivem as primaveras eternas!...

Mas os homens passam sonambulando...

E rodando num bando nefário,

vestidas de eletricidade e gasolina,

as doenças jocotam em redor... (...)

São Paulo é um palco de bailados russos.

Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os crimes

e também as apoteoses de ilusão...


(1) De 1900 a 1922 a população de São Paulo quase triplicou passando de duzentos e
cinqüenta mil a mais de seiscentos mil habitantes

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