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Intertextualidade: um rio com discurso*

(Hélio Consolaro** )
A palavra intertextualidade significa interação entre textos, um diálogo entre eles. E
texto no sentido amplo: um conjunto de signos organizados para transmitir uma mensagem,
portanto, no mundo atual da multimídia, ela acontece entre textos de signos diferentes.

Veja um exemplo de intertextualidade que foi explorado por exame vestibular da Unesp
(Universidade Paulista Júlio Mesquita Filho)

Para que mentir?

Para que mentir

tu ainda não tens

Esse dom de saber iludir?

Pra quê? Pra que mentir,

Se não há necessidade

De me trair?

Pra que mentir

Se tu ainda não tens

A malícia de toda mulher?

Pra que mentir, se eu sei

Que gostas de outro

Que te diz que não te quer?

Pra que mentir tanto assim

Se tu sabes que eu sei

Que tu não gostas de mim?

Se tu sabes que eu te quero

Apesar de ser traído

Pelo teu ódio sincero


Ou por teu amor fingido?

(Vadico e Noel Rosa, 1934)

Dom de Iludir

Não me venha falar na malícia

de toda mulher

Cada um sabe a dor e a delícia

de ser o que é.

Não me olhe como se a polícia

andasse atrás de mim.

Cale a boca, e não cale na boca

notícia ruim.

Você sabe explicar

Você sabe entender, tudo bem.

Você está, você é, você faz.

Você quer, você tem.

Você diz a verdade, a verdade

é seu dom de iludir.

Como pode querer que a mulher

vá viver sem mentir.

(Caetano Veloso, 1982)

O poema-canção Pra que mentir? foi escrito por Noel Rosa em 1934, em parceria com o
compositor paulista Osvaldo Glogliano, o Vadico. Caetano, em 1982, compôs Dom de
Iludir, estabelecendo uma imaginária correlação dialogal com o poema de Noel.

A música Caetano Veloso mantém um diálogo explícito com a de Vadico/Noel Rosa,


como muitos poemas mantêm interação com a Canção de Exílio, de Gonçalves Dias,
inclusive a letra do Hino Nacional:
Canção do Exílio

“Kennst du das Land, wo die Citronen blühn,

Im dunkeln Laub die Gold-Orangen glühn,

Kennst du es woh? – Dahin, dahin!

Möcht’ich... Ziehn.” Goethe

Minha terra tem palmeiras

Onde canta o Sabiá;

As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossas vidas mais amores.

Em cismar, sozinho à noite,

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,

Que tais não encontro eu cá;

Em cismar – sozinho, à noite –

Mais prazer encontro eu lá;

Minha tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.


Não permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem qu’inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Mário Quintana

Minha terra não tem palmeiras...

E em vez de um mero sabiá,

Cantam aves invisíveis

Nas palmeiras que não há.

Oswald de Andrade

Não permita Deus que eu morra

Sem que volte pra São Paulo

Sem que veja a Rua 15

E o progresso de São Paulo.

Murilo Mendes

Minha tem macieiras da Califórnia

Onde cantam gaturamos de Veneza

(...)

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade

E ouvir um sabiá com certidão de idade!

Casimiro de Abreu

Eu nasci além dos mares:


Os meus lares,

Meus amores ficam lá!

- Onde canta nos retiros

Seus suspiros,

Suspiros o sabiá!

Tom Jobim e Chico Buarque

Vou voltar, sei que ainda

Vou voltar para o meu lugar

Foi lá e ainda lá

Que eu hei de ouvir cantar

Uma sabiá, cantar uma sabiá.

Carlos Drummond de Andrade:

Um sabiá

Na palmeira, longe.

Estas aves cantam

Um outro canto

(...)

Só, na noite,

Seria feliz:

Um sabiá

Na palmeira, longe.

Joaquim Osório Duque Estrada

Do que a terra mais garrida


Teus risonhos, lindos campos têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida

Nossa vida, no teu seio, mais amores.

Duas intertextualidades

Dentre a intertextualidade explícita, te-mos vários gêneros, como: epígrafe, citação,


referência, alusão, paráfrase, paródia, pastiche e tradução.

Epígrafe

Epígrafe ( do grego epi = em posição su-perior + graphé = escrita) constitui uma escrita
introdutória de outra.

A Canção de Exílio, de Gonçalves Dias, apresenta versos introdutórios de Goethe, com


a seguinte tradução: “Conheces o país onde florescem as laranjeiras? Ardem na escura
fronde os frutos de ouro... Conhecê-lo? Para lá , para lá quisera eu ir!”

A epígrafe e o poema mantêm um diálo-go, pois os dois têm características românticas,


pertencem ao gênero lírico e possuem caráter nacionalista.

Citação

É uma transcrição de texto alheio, marcada por aspas. A música Cinema Novo, de
Caeta-no Veloso, faz citações:

O filme quis dizer ‘Eu sou o samba’

A voz do morro rasgou a tela do cinema

E começaram a se configurar

Visões das coisas grandes pequenas

Que nos formaram e estão a nos formar

Todos e muitos: Deus e o Diabo, Vidas Secas, os Fuzis,

Os Cafajestes, o Padre e a Moça, a Grande Feira, o Desafio

Outras conversas, outras conversas sobre os jeitos do Brasil.

Na citação sobre o samba, Caetano Veloso diz que o Cinema Novo quer repre-sentar o
Brasil, como fez o samba da época de Carmen Miranda.
Referência e Alusão

Machado de Assis é mestre nesse tipo de intertextualidade. Ele foi um escritor que
visualizou o valor desse artifício no romance bem antes do Modernismo. No romance Dom
Casmurro, ele cita Otelo, personagem de Shakespeare, para que o leitor analise o drama de
Bentinho.

Paráfrase

A paráfrase é a reprodução do texto de outrem com as palavras do autor. Ela não con-
funde com o plágio porque seu autor explicita a intenção, deixa claro a fonte. Exemplo de
paráfrase é o poema Oração, de Jorge de Lima:

“- Ave Maria cheia de graças...”

A tarde era tão bela, a vida era tão pura,

as mãos de minha mãe eram tão doces,

havia, lá no azul, um crepúsculo de ouro... lá longe...

“- Cheia de graça, o Senhor é convosco, bendi-ta!”

Bendita!

Os outros meninos, minha irmã, meus irmãos

menores,

meus brinquedos, a casaria branca de

minha terra, a burrinha do vigário

pastando

junto à capela... lá longe...

Ave cheia de graça

- ...”bendita sois entre as mulheres, bendito é o

fruto do vosso ventre...”

E as mãos do sono sobre os meus olhos,

e as mãos de minha mãe sobre o meu sonho,


e as estampas de meu catecismo

para o meu sonho de ave!

E isto tudo tão longe... tão longe...

O autor retoma explicitamente a oração Ave Maria e mantém-se fiel a ele, justapõe a
figura de Maria à da sua mãe, refere-se à hora do Angelus.

Paródia

“A paródia é uma forma de apropriação que, em lugar de endossar o modelo retomado,


rompe com ele, sutil ou abertamente”.

Ela acontece no famoso poema de Carlos Drummond de Andrade No Meio do


Caminho, que faz uma paródia do soneto Nel Mezzo del Camin, de Olavo Bilac que, por
sua vez, remete ao primeiro verso da Divina Comédia, de Dante Alighiere: "Nel mezzo del
camin de nostra vita".

Além do título, Drummond imitou o esquema retórico do soneto de Bilac, ou seja, em


vez de parodiar o significado, promoveu um paródia na forma: empenhou-se na imitação
irônica da estrutura, reproduzindo apenas o quiasmo (repetição invertida) do texto.

No Meio do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.

Nel Mezzo del Camin


Olavo Bilac

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada

E triste, e triste e fatigado eu vinha.

Tinhas a alma de sonhos povoada,

E a alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada

Da vida: longos anos, presa à minha

A tua mão, a vista deslumbrada

Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo... Na partida

Nem o pranto os teus olhos umedece,

Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,

Vendo o teu vulto que desaparece

Na extrema curva do caminho extremo.

Pastiche

O pastiche pode ser plágio, por isso tem sentido pejorativo, ou é uma recorrência a um
gênero. A estética clássica, por exemplo, promovia o pastiche e não era desdouro fazer isso.
O pastiche insiste na norma a ponto de esvaziá-la, como acontece com o dramalhão, que
leva o gênero drama às últimas conseqüências.

É bom esclarecer que a questão da ori-ginalidade e da autenticidade nas artes nasceu


com o Romantismo, cuja concepção artística era que a obra expressasse a subjetividade do
autor.

Tradução

A tradução de um texto literário impli-ca em recriação, por isso ela está no campo da
intertextualidade. Veja um poema de Edgar A. Poe traduzido por dois escritores da língua
por-tuguesa:
Once upon a midnight dreary, while i ponde-red

weak ande weary

Over many a quaint and curious volume of for-got-

tem lore, while i modded, neraly napping, su-ddenly

there came a tapping,

As of some one gently rapping, rapping at may

chamber door

Only this and nothing more.

(Edgar A. Poe)

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,

Vagos curiosos tomos de ciências ancestrais,

E já quase adormecia, ouvi o que parecia

O som de alguém que batia levemente a meus umbrais

‘Uma visita’ eu me disse, ‘está batendo a meus umbrais

E só isto, e nada mais.

(Tradução de Fernando Pessoa)

Em certo dia, à hora, à hora

Da meia-noite que apavora,

Eu caindo de sono e exausto de fadiga,

Ao pé de muita lauda antiga,

De uma velha doutrina, agora morta

Ia pensando, quando ouvi à porta


Do meu quarto um soar devagarinho

E disse estas palavras tais:

‘É alguém quje me bate à porta de mansinho:

Há de ser isso e nada mais.

(Tradução de Machado de Assis)

O poema é o mesmo, os dois partiram do texto original em inglês, mas as traduções são
bem diferentes, embora a essência dele continue nos dois textos traduzidos.

Intertextualidade implícita.

Quando uma articulista de jornal es-creve sobre a importância dos direitos huma-nos na
atualidade, suas idéias fazem parte de um discurso ideológico, portanto, com certeza, seu
texto mantém diálogo implícito (ou explí-cito) com a Declaração Universal dos Direitos
Humanos da ONU e outros documentos.

Na Literatura, a intertextualidade é uma constante, porque cada estilo de época se opõe


ao anterior e retoma parte da estética passada. Exemplos: o Classicismo retomou a
Antigüidade Clássica, assim fez também o Arcadismo e o Parnasianismo. O Realismo
combatia os excessos do Romantismo, já este contrariava o formalismo dos clássicos.

O soneto de Antero de Quental é uma evidência de como uma corrente literária se


contrapõe à outra. “Mais Luz” é uma crítica explícita aos poetas românticos:

Mais luz!

Antero de Quental

Amem a noite os magros crapulosos,

E os que sonham com virgens impossíveis,

E os que se inclinam, mudos e impassíveis,

À borda dos abismos silenciosos...

Tu, Lua, com teus raios vaporosos,

Cobre-os, tapa-os e torna-os insensíveis,

Tanto aos vícios cruéis e inextinguíveis


Como aos longos cuidados dolorosos!

Eu amarei a santa madrugada,

E o meio-dia, em vida refervendo,

E a tarde rumorosa e repousada.

Viva e trabalhe em plena luz: depois,

Seja-me dado ainda ver, morrendo,

O claro Sol, amigo dos heróis!

Nesse caudal de retomada e oposição, acontece a intertextualidade que forma a histó-ria


da literatura de uma nação. João Cabral de Melo Neto tem um poema que ilustra muito bem
esse fenômeno com a metáfora do cantar dos galos:

Tecendo a manhã

João Cabral de Melo Neto

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito que um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo


(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, todo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Quando se vê um (a) jovem tentando ra-biscar um poema, espremendo os miolos para


colocar no papel a sua subjetividade trabalhada em forma de palavras, qualquer escritor se
encanta, pois é mais um que quer ser água no rio caudaloso da literatura. Camões, Machado
de Assis sorriem porque com esse gesto não deixa a literatura morrer. Intertextualidade
também é isso: os cantares de cada geração dialogando entre si.

*Este texto é uma paráfrase do livro Intertextualida-des: Teoria e Prática, várias autoras,
Editora Lê.

** Hélio Consolaro é membro da Academia Araçatu-bense de Letras, cronista diário da


Folha da Região de Araçatuba, professor de Português.

Bibliografia

Paulino, Graça; Walty, Ivete; Cury, Maria Zilda Cury. Intertextualidades: Teoria e
Prática, 1ª edição, Belo Horizonte-MG, Editora Lê, 1995.

Barros, Diana Luz Pessoa de; Fiorin, José Luiz (organizadores). Dialogismo, Polifonia,
Inter-textualidade. lª edição, São Paulo, Edusp, 1994.

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