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Sol Subterrâneo

Dyonélio Machado, conhecido por ser um militante comunista e um dos


líderes da Intentona Comunista de 1935, que foi uma tentativa de golpe contra o
governo de Getúlio Vargas, traz em seus livros uma jornada psicológica – seja por
perseguições políticas e militares ou por sobrevivência –, questões sociais e o tom
de tramoia entre seus personagens, utilizando dentro da ficção a sua própria
experiência quando perseguido e preso, como dizem Ucha e Gilson (1980):
A prisão influiu muito na obra posterior de Dyonelio Machado.
Tanto em O louco do Cati que publicara em 1942, quanto na trilogia
iniciada com Os deuses econômicos, em 1966, continuada com Sol
subterrâneo (ainda não publicado11) e encerrada, agora, com
Prodígios. Outros livros editados na década de 40 não relançados,
Desolação, e Os passos perdidos, também foram influenciados pelo
que o autor sofreu na prisão. A situação dos personagens de Prodígios
é muito semelhante à de Dyonelio Machado em 1935/1937: ‘Eu saí da
cadeia, dois anos depois, sem culpa formada. A prisão dá material
para muitas coisas. Uns fazem memórias – são célebres as de Sílvio
Pelico –, mas eu achei melhor utilizar minhas vivências em livros de
ficção. Era um crime ter esse material e não o utilizar’.
A história de Lúcio Sílvio em Sol Subterrâneo (1981) se inicia tão pacífica
quanto qualquer outra história. Ao concordar com o pedido de Hegesipo de ministrar
aulas de oratória para um homem chamado Nicóstrato, Sílvio jamais pensaria que
estaria se encaminhando para uma trama enrolada, tecida entre os angiportos,
estradas imperiais e seus fóruns. Uma calma dissimulada antes da verdadeira
tempestade. Dissimulada, sim, porque antes mesmo de uma oferta inocente de
emprego, a tempestade já estava armada para Sílvio: graças à sua carta temerária,
um erro de papel, enviada para Evandro – e que acabou nas mãos condenáveis de
Ascalon, seu desafeto pessoal.
Com um início marcado por uma simples desconfiança, o personagem
principal avança em um enredo de autoridade pessimista – embora marcado por
estrias de esperança –, passando a ser alvo de investigações do governo de Nero
por confabular com os cristãos.
Sol Subterrâneo é um romance histórico, sendo o segundo livro da Trilogia
da Liberdade ou Trilogia da Libertação, apesar de sua publicação ter ocorrido após
o terceiro volume, como explica Dyonélio (1995):
O segundo volume (Sol Subterrâneo) é muito longo. Para fins
editoriais, não era adequado num momento de crise. Além disso, o
terceiro volume traz personagens mais conhecidas, é menor, e eu
sempre me preocupei em facilitar as coisas para o leitor. Embora os
romances em questão formem uma unidade entre si – como acontece
com A Comédia Humana, de Balzac – podem ser lidos
independentemente.
O romance é narrado por um narrador onisciente e contém 35 capítulos ao
todo, dividindo-se em 3 partes, que indicam os momentos de transição na narrativa:
a primeira parte se estende do início, passando pelas primeiras investigações a
Lúcio Sílvio e o pedido de custódia livre por Caio Flavo, até o pedido de casamento
com Tarsita. A segunda parte estende-se de Caio Flavo buscando modos de ajudar
seu amigo, a cerimônia do casamento de Sílvio com Tarsita até, por fim, a prisão do
mesmo. A terceira parte estende-se de Sílvio na prisão por 4 anos, enquanto seu
amigo advogado tenta maneiras de tirá-lo de lá, até a sua saída, devido a morte de
Nero. O ambiente retratado no livro é pesado, carrega desconfiança; é um ambiente
em que todos os personagens transpiram suspeita e medo pelas ações militares
que estão acontecendo.
“Sílvio está tomado de uma força -- que só tem de pessoal a expressão.
Porque, na verdade, ela se origina na espécie mesma, como obra dos grandes
abalos. E, ao aflorar à consciência do homem, dá-lhe um direito difícil de contestar.
Com a face demudada, nessa palidez do cárcere, sinal de distinção que o
sofrimento confere, Silvio enfrenta o centurião e brada-lhe:
— Abri estas cadeiras!
E dá um jeito de levar-lhe os grilhões quase à altura do rosto.
O policial escuta-o, perplexo.
Silvio continua, numa palavra vibrante, como a desmentir seu estado de
desnutrição:
— Quem te ordena é cidadão romano, descendente dum herói de Zama!
Quadrato não está enxergando mais seu antigo pensionista: Silvio é outro. E
não se interrompe.
Num desabafo, sem medir conveniências, Silvio clama:
— O setor mais odioso e mais amaldiçoado nesse reinado de terror que hoje
morreu é a polícia pretoriana! Sois vós! Vós, que servis, automaticamente, os
desígnios mais nefandos dum truão! Dum palhaço sinistro que, em nome duma lei
arbitraria de lesa-majestade, leva também a vos a incorrer num crime de lesa-
humanidade!”
Em Sol Subterrâneo, então, a narrativa possui um caráter alegórico,
explorando a história e a geografia do Império Romano e todas as suas
particularidades – o império de Nero marcado pelas repressões, a mitologia, a
perseguição aos cristãos declarados culpados pelo Grande Incêndio de Roma. Tal
caráter alegórico é mais complexo e expressivo, em que se cria uma indagação,
uma crítica velada a tirania de Nero e ao governo vigente na época em que o
romance foi escrito – o primeiro volume da trilogia foi publicado pouco tempo após o
início da Ditadura Militar e os outros dois livros em sequência foram publicados
antes do término da mesma. Torna-se mais fácil de construir um sentido, uma
significação em uma obra alegórica quando ela se distancia do seu cenário atual,
que é o que Dyonélio Machado fez nessa trilogia.
“Percorre o Fórum Romano, os Fóruns de Júlio César e de Augusto. Demora-
se sob os pórticos. Não o enxerga. Também há muita confusão ali, com as obras.
Resolve encaminhar-se diretamente para o Aventino. Lamenta o tempo perdido
naquela busca infrutífera. Envereda pelo Vícus Túscus -- que é o caminho habitual
de Caio – quando se defronta, a meia-distância, com Teófanes.
Logo após os cumprimentos, diz-lhe Teófanes:
— Gostei muito da sua intervenção naquela discussão da pérgula de
Hegesipo. Você falou pouco, mas bom. Cristo, mesmo no caso de ter existido, nada
mais representa do que uma hipóstase dionisíaca. Hipóstase Humana já se vê. O
prisioneiro de Tigelino, própria a designação de Segundo Orfeu. Talvez mesmo, o
último Orfeu. Porque me acredite: vai ser esta a derradeira tentativa religiosa no
mundo. Depois do seu fracasso, e ela também está destinada ao fracasso, vamos
entrar num caminho mais positivo: o da ciência.
(...)
— E isso não é nada — continua Silvio: — há sofrimentos bem maiores que
essas ruinas...
Teófanes abaixa gravemente a cabeça num gesto de assentimento:
— Há. O que fizeram com os adoradores desse Segundo Orfeu é
simplesmente monstruoso. Mas parece que está tudo acabado, não?
Silvio abana negativamente a cabeça.
— Não?... Bem, isso não me admira. Eles não foram massacrados pela
autoria dum crime que todo mundo sabe que eles não cometeram. Ao que a
autoridade visa é extermina-los. Por que? Fácil é a resposta: eles representam uma
nova ordem de ideias. Talvez mesmo uma nova ordem de coisas...”
O título do romance, por fim, remete-nos ao subtema principal: é uma
antítese, é o contraste entre o “bem e o mal”, é a violência e a amizade... Sol
Subterrâneo é, nada mais, nada menos que o brilho da esperança e da liberdade
em tempos opressores e obscuros.
“— Tu te lembras — pergunta Tarsita — daquele beijo de Tessalônica? Era o
beijo que eu tinha reservado para o homem que eu amasse.
— Se me lembro!... Senti-lhe ainda o gosto nestes beijos que acabas de me
dar...
— Pois daquele beijo nasceu esta nossa filha.
— Amor!
É tudo quanto Sílvio pode oferecer em troca de tamanha delicadeza no sentir.”

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