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«Eu sei» – a fórmula pasoliniana evocada por Saviano – é a primeira frase, logo
repetida anaforicamente na abertura dos onze seguintes parágrafos, de um artigo
publicado no Corriere della Sera em 14 de novembro de 1974, um ano antes de
Pasolini ser assassinado. Neste texto, que se intitulou originalmente «O que é este
golpe?» («Che cos’è questo golpe?») e hoje é conhecido pelo título que ganhou
nos Escritos corsários, «O romance das matanças» («Il romanzo delle stragi»),
Pasolini, em tom profético, dizia saber «os nomes dos responsáveis» pela violenta
instabilidade política na Itália daqueles últimos anos, a começar pelos atentados
cometidos em 1969 e em 1974, por meio dos quais se buscava gerar medo na
população e justificar a adoção de medidas de exceção:
Pasolini dizia saber «os nomes do grupo de poderosos» que, com a colaboração
da CIA, dos coronéis gregos e da máfia, manipulavam e acobertavam, «entre
uma missa e outra» (alusão aos democratas-cristãos), «velhos generais», «jovens
neofascistas, ou antes neonazistas» e até mesmo «criminosos comuns» – todos
convertidos em peças de um grande e intrincado xadrez político-criminal. Este
conhecimento que Pasolini cristaliza na fórmula relembrada por Saviano revela-se
trágico, em certo sentido, na medida em que não pode se transformar em ação, a
não ser no âmbito, restrito mas por isso mesmo potente, da escrita, da literatura:
Eu sei. Mas não tenho as provas. Não tenho nem ao menos indícios.
1. SAVIANO, Roberto. Gomorra. Viaggio nell’impero economico e nel sogno di dominio della camorra. Milão:
Mondadori, 2006, p. 232.
2. PASOLINI, Pier Paolo, «Il romanzo delle stragi» (1974), In Scritti corsari (1975), hoje em Saggi sulla politica e
sulla società (1999), org. Walter Siti e Silvia De Laude. Milão: Mondadori, 2009, p. 362.
a crítica e as artes
Podemos dizer, então, que, para Pasolini – mas também para Saviano –, Eu sei é
o nome de um intervalo trágico entre conhecimento e ação (intervalo propício
para a imaginação , que pode saber «tudo o que não se sabe» e pode falar tudo
o «que se cala»); Eu sei é, pois, a senha de um saber que tenta extrair alguma
potência de sua própria impotência (o que talvez seja o paradoxo fundamental de
toda arte frente ao real).[4] Saviano também sabe «os nomes dos responsáveis»
pela morte de Francesco Iacomino e de todas as outras vítimas da Camorra – e
escreve seu livro precisamente para decliná-los, coordenando «fatos [...] distantes»
(os negócios da Camorra, como ele demonstra com relatos exemplares, embora
enraizados em Nápoles ou Casal di Principe, acabam por se estender a todos os
continentes), pondo juntos «pedaços desorganizados e fragmentários» de modo a
formar um quadro complexo mas coeso, restabelecendo «a lógica lá onde parecem
reinar a arbitrariedade, a loucura e o mistério». O próprio Saviano explica em
termos de uma conquista da «possibilidade de escrever» a sua viagem a Casarsa:
4. Como exemplo dessa potência extraída da impotência, podemos lembrar que «a reconstrução da verdade a
propósito do que aconteceu na Itália depois de 1968» – reconstrução que, frisa Pasolini, «não é tão difícil», pelo
menos quando se conta com a imaginação – estava na base de Petróleo (Petrolio), romance que ele vinha escrev-
endo por aqueles dias e que a sua morte deixaria incompleto (só tendo sido publicado, postumamente, em 1992).
qual o poeta relembra os últimos dias e a morte de sua mãe, assim como as
suas primeiras reações à ausência dela. Neste parágrafo derradeiro, Carlito
tenta imaginar o que lhe diria sua mãe se indagada se «lhe coube a morte boa
ou a morte má». A resposta que a imaginação lhe oferece não é exatamente
reconfortante, mas tampouco desesperadora:
Numa primeira leitura, talvez não se veja aí mais do que uma afirmação
desencantada da profunda indiferença entre todas as modalidades de morte, uma
vez que a qualquer delas se segue o mesmo nada devastador. Porém, esta não
seria uma interpretação condizente com a complexidade retórica do poema. É
preciso notar sobretudo, numa segunda leitura, que aqui estamos perante uma
voz que, pelo menos na imaginação, desgarra-se da morte para dirigir-se a um
vivo (aquele «você» enfatizado pela melodia e pela sintaxe, próximo ao final da
longa frase), cobrando-lhe tacitamente, antes de tudo, o reconhecimento dessa
sobrevivência espectral. Só assim se pode apreender o significado da invocação de
Pasolini neste texto. Do ponto de vista estabelecido por Carlito[7] , Pasolini parece
ser – mais que uma vítima da «morte má», a qual, enfim, pelo menos do ponto de
vista dos mortos, termina por equivaler à «morte boa» – o nome de uma forma
de potência que não apenas consegue vencer a própria impotência, mas que, na
memória e na imaginação dos vivos, resiste mesmo à mais dolorosa destruição.[8]
Afinal, como sugere a comparação proposta no poema, mesmo a morte (boa ou
má, tranqüila ou dolorosa) é uma forma – extrema, é certo – de experiência: isto
é, uma forma de ainda (mesmo que pela última vez) sentir, provar, tocar, ver,
ouvir. Neste sentido, pode-se dizer que a imagem de Pasolini morto «vale o que
6. AZEVEDO, Carlito. «H.», em Monodrama. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 152. O nome de Pasolini tam-
bém aparece em outro poema do mesmo livro: «A foto do santuário de Delfos / no Édipo de Pasolini / colada no
painel do seu carro / no espelho do banheiro / e na caixa de remédios / me repete / que você não é mais triste /
do que qualquer pessoa / que eu conheça / nesta cidade / de imigrantes / fantasmas / à sombra / do obsessor»
(«Monodrama», id., p. 99).
7. Que, sutilmente (consciente ou inconscientemente, o que não importa), parece cifrar o desejo de uma
«morte boa» para si mesmo na alusão a Chaplin, cujo personagem mais notório, como se sabe, é conhecido no
Brasil como Carlitos – portanto, um quase homônimo do poeta.
8. Cf. AZEVEDO, Carlito. «O anjo boxeador tenta descrever uma cena», em Monodrama cit., pp. 118-119.
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9. Cf. id., Monodrama cit., pp. 11-29 («Emblemas»), 73-85 («Dois estrangeiros»), 86-88 («Limpeza do aparel-
ho»), 91-108 («Monodrama»).
10. Id., p. 47: «Você a reconheceu / como sendo a menina / coreana da Central / de Fotocópias do Catete /
aquela com / camiseta salpicada / presilhas fluo / mureta / e hipodérmica pendente / do braço».
11. Id., pp. 35-36; cf. id., pp. 53-54, 57 («“É a guerra. É a guerra. É essa maldita guerra...”, ele entoava bem baix-
inho, resignado, tomando o rumo de volta para casa [...]»), 68-69, 71-72, 89-90, 121-134. Cf. SAVIANO, Roberto.
Gomorra cit., p. 134: «Como na Bósnia, como na Argélia, como na Somália, como em qualquer confusa guerra
interna, quando é difícil entender a que lado pertences, basta matar o teu vizinho, o cão, o amigo, ou um teu
familiar. Um boato de parentesco [Una voce di parentela], uma semelhança é condição suficiente para se tornar
alvo. Basta que passes por um rua para receber de pronto uma identidade de chumbo».
3. Não por acaso, também, o mais recente livro do historiador e filósofo da arte
Georges Didi-Huberman, Survivance des lucioles[14], o qual constitui uma espécie
de vindicação do poder de resistência política de certas imagens e certas palavras,
parte de uma premissa semelhante: refuta-se a noção, que se acha, por exemplo,
em alguns textos de Giorgio Agamben, de que a possibilidade da experiência
encontra-se destruída para o homem contemporâneo.[15] E é significativo
que Didi-Huberman comece seu livro pela releitura – francamente antitética
e problematizadora – de um célebre ensaio de Pasolini, publicado, no mesmo
Corriere della Sera, poucas semanas depois do já mencionado «Il romanzo delle
stragi». Trata-se do ensaio que ficou conhecido como «L’articolo delle lucciole»
(com este título foi recuperado nos Scritti corsari, embora, em sua forma primeira,
de 1º de fevereiro de 1975, se intitulasse, mais prosaicamente, «Il vuoto del potere
in Italia»).[16] Didi-Huberman busca pensar com Pasolini, sem se furtar, quando
necessário, a pensar contra Pasolini (adotando postura semelhante frente a
Agamben).
No seu texto – cujo título pode ser traduzido por «O artigo dos vagalumes»[17] –,
Pasolini faz um diagnóstico extremamente desesperançado da sociedade italiana
de sua época, a qual estaria sucumbindo a uma nova e, até há pouco, imprevisível
forma de fascismo, de conseqüências talvez mais nocivas que o fascismo histórico
(ou «fascismo fascista», para falar como o autor). Este «fascismo radicalmente,
totalmente, imprevisivelmente novo» teria resultado de um «fenômeno» ocorrido
na Itália dez anos antes, conforme data Pasolini. Em vez de simplesmente
15. Escreve Agamben, nas primeiras linhas do ensaio que dá título ao livro Infanzia e storia, citadas por Didi-
Huberman: «Todo discurso sobre a experiência deve hoje partir da constatação de que esta não é mais algo
que nos seja ainda dado fazer. Porque, assim como foi privado da sua biografia, o homem contemporâneo foi
expropriado da sua experiência: antes, a incapacidade de fazer e transmitir experiências é, talvez, um dos poucos
dados certos de que ele dispõe sobre si mesmo». AGAMBEN, Giorgio. «Infanzia e storia. Saggio sulla distruzione
dell’esperienza», in Infanzia e storia. Distruzione dell’esperienza e origine della storia (1978), nuova edizione ac-
cresciuta. Turim: Einaudi, 2001, p. 5.
16. PASOLINI, Pier Paolo. «L’articolo delle lucciole» (1975), in Scritti corsari cit., pp. 404-411.
17. Há uma tradução do texto, com o título de «O artigo dos pirilampos», in PASOLINI, Pier Paolo. Os jovens
infelizes. Antologia de ensaios corsários, org. Michel Lahud, trad. Michel Lahud e Maria Betânia Amoroso,
São Paulo: Brasiliense, 1990. Vagalume me parece preferível a pirilampo porque, embora tenha surgido como
eufemismo para vaga-lume, sugere algo como luzes vagantes. Mas devemos lembrar que também temos em
português a palavra lucíola (proveniente justo do italiano lucciola), a qual, embora não registrada nem no Aurélio
nem no Houaiss, encontra-se no Caldas Aulete («gênero de insetos coleópteros teleforídeos das regiões quentes
da Europa; são brilhantes de noite»), com uma abonação extraída de Fagundes Varela: «As mil constelações se
tresmalham quais errantes lucíolas». Vale lembrar que a palavra também aparece no título do célebre romance de
José de Alencar.
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18. PASOLINI, Pier Paolo. «L’articolo delle lucciole» cit., pp. 404-405.
19. DIDI-HUBERMAN, Georges. Survivance des lucioles cit., p. 23. PASOLINI, Pier Paolo. «L’articolo delle
lucciole» cit., p. 407.
25. Id., ibid.
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Daí que Pasolini assevere drasticamente que «a distinção entre o fascismo fascista
e o fascismo desta segundo fase do poder democrata-cristão não só não tem
comparações na nossa história, mas provavelmente em toda a história».[28]
29. Id., «Acculturazione e acculturazione» (1973), «Il vero fascismo e quindi il vero antifascismo» (1974) e «Il
genocidio» (1974), in Scritti corsari cit., pp. 290-293, 313-318 e 511-517.
30. Id., «Siamo tutti in pericolo» (1975), em Saggi sulla politica e sulla società cit., p. 1724.
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33. É o título do quarto capítulo de Survivance des lucioles cit., p. 77-97. Cf. também id., «Peuples exposés
(à disparaître)», Chimères, 66-67 (2008) [Morts ou vifs], pp. 21-42 ; id., «Pasolini ou la recherche des peuples
perdus», Les Cahiers du Musée Nationale d’Art Moderne, 108 (été 2009), pp. 86-115; id., «Peuples exposés, peuples
figurants», De(s)générations, 9 (septembre 2009) [Figure, figurants], pp. 7-17.
35. ROCHE, Denis. La disparition des lucioles (réflexions sur l’acte photographique). Paris: Éditions de l’Étoile,
1982. Citado por DIDI-HUBERMAN, Georges. Survivance des lucioles cit., pp. 37-40.
a crítica e as artes
Roma, dez anos depois da morte de Pasolini, quando, na colina do Pincio, mais
precisamente num local conhecido como «bosque dos bambus», havia «uma
verdadeira comunidade de vagalumes» a fascinar os passantes: «os vagalumes
não tinham desaparecido entre 1984 e 1986, mesmo em Roma, mesmo no
coração urbano do poder centralizado».[36] No entanto, conta Didi-Huberman
que, mais recentemente, retornou ao Pincio e constatou que os bambus haviam
sido cortados e que os vagalumes haviam, outra vez, desaparecido.[37] Porém,
seguramente para voltar a aparecer em outro lugar. Se queremos ver de novo
os vagalumes, num tempo em que a sua sobrevivência toma a forma de «uma
comunidade anacrônica e atópica», precisamos saber a hora de nos deslocarmos,
de mudarmos de posição: trata-se, afinal, de uma «iluminação intermitente»
(éclairage intermittent) que é também uma «iluminação em movimento» (éclairage
en mouvement), uma iluminação fugidia no tempo e no espaço.[38] Se há,
segundo Deleuze e Guattari, uma «literatura menor» (representada por Kafka),
haveria também, propõe Didi-Huberman, uma «luz menor» (lumière mineure)
que possui «as mesmas características filosóficas» daquela: do «forte coeficiente de
desterritorialização» às premissas de que «tudo aí é político» e «tudo adquire um
valor coletivo», falando do povo e das «condições revolucionárias» inerentes à sua
marginalização.[39]
Podemos nos perguntar se não é precisamente esta «luz menor» que Roberto
Saviano e Carlito Azevedo foram buscar nas palavras, nas imagens e sobretudo
na figura de Pasolini. Se não a luz dos vagalumes, a luz dos fogos-fátuos que,
em certas noites do campo, desprendem-se dos cadáveres e fazem pensar em
fantasmas, em aparições. Afinal, qualquer exame atento das artes de nossa
«época», pelo menos em suas mais interessantes realizações, demonstra que
nelas a crítica da contemporaneidade não se dissocia do que poderíamos
chamar de uma estética, que é também uma política, da assombração. Que é
igualmente, antes de tudo, uma poética da sobrevivência, se por «sobrevivência»
compreendemos a forma extrema de comunicação e indeterminação entre
vivos e mortos – mas também, em analogia com esta, a dinâmica trans-histórica
intrínseca às artes, e, antes que a elas, a todas as imagens, artísticas e não-
artísticas.[40] Sobrevive-se a um morto ou sobrevive-se à própria morte: em
37. Id., ibid.
39. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka. Pour une littérature mineure. Paris: Minuit, 1975, pp. 29-33. Cf.
Georges Didi-Huberman, Survivance des lucioles cit., p. 44.
40. Cf. Georges Didi-Huberman, L’image survivante. Histoire de l’art et temps des fantômes selon Aby Warburg,
Paris: Minuit, 2002.
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ambos os casos, é toda uma vida espectral, tão afim à «condição póstuma da
literatura»[41] (e das artes em geral), que aí se inicia. Não por acaso, já num
de seus primeiros poemas, Carlito Azevedo confrontava o leitor com a figura
ambígua ou limítrofe do «vivente morrente».[42] Isto é: do sobrevivente. Isto é: do
resistente – da resistência.
41. Cf. FERRONI, Giulio. Dopo la fine. Sulla condizione postuma della letteratura, Torino: Einaudi, 1996.
42. AZEVEDO, Carlito. «A dúvida de Camilo Pessanha», in Collapsus linguae, p. 40. Cf. PESSANHA, Camilo.
«Água morrente» [título atribuído por João de Castro Osório] (1895), in Clepsydra, ed. Paulo Franchetti, Campi-
nas: Editora da Unicamp, 1994, p. 100.