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EM A N A DE ARTE MODERNA

NA
CONTRAMÃO
DA
HISTÓRIA
e o u tro s ensaios

C H O O in e q a um

TO CADO Q Df Qim & a i


crítica literária
p ro p ria m en te "c u ltu ra l" ficou
entre nós a cargo de Franklin
de O live ira . "

José Guilherme M erquior

"IL e r Franklin de O liveira é

A SEMANA
le r e re le r desde as entranhas
a nossa p ró p ria história
c u ltu ra l."

Ivan Junqueira

DE ARTE MODERNA
C ranklm de O liveira é a
um
m ais cosm opolita vocação de
crítico b rasileiro, o nosso
Lionel Trilling, le ito r
consciente de tudo o que
envolve lite ra tu ra ."

NA CONTRAMÃO
Felipe Fortuna

O s autênticos críticos como


Franklin de O liveira sabem
que im p o rta, sobretudo, po r
DA HISTÓRIA

em evidência os p ro b lem as. "

Adolfo Casais M onteiro


e outros ensaios

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outros exemplos, a palavra bum bum ; mas se observe
igualmente a contundência que corta rente ao revelar
UM LIVRO NECESSÁRI O E V I NGA DO R
esta aversão tácita e definitiva de João Guimarães Rosa:
Livro necessário, oportuno, rico de essências e, num “O nazismo, Franklin, é o Demônio”. Ou neste alerta:
país minimamente organizado e atento, um livro de “o velho Marx dizia que a ignorância nunca foi útil a
conseqüências perduráveis. Ensaios, em principal, des­ ninguém ”. Ou mais, de lambugem e terminante:
tinados à juventude pensante e aos hom ens não “O nome de uma autêntica revolução é cultura”.
estanques do país. E aos remanescentes da dignidade O estouro épico do revolucionário Rosa, ainda hoje
geral, além da dignidade intelectual. incompreendido; a personalidade irreprochável de um
É mais de se ressaltar a sua importância num tempo grande homem e escritor, Graciliano Ramos, aparente­
marcado pela presença das gerações sem palavras, mente seco e, torturado pela consciência profunda,
com o disse Paulo Rónai. Época de ausência de atingindo a m om entos de vaticínio e ilum inação
memória - e, pior, mesmo de memória recente - e em transcendental; o ilusoriamente palavroso e, na ver­
que a própria palavra sofre conseqüências de uma dade, pioneiro profissional do ato de escrever Coelho
atmosfera incultural e massacrada pela incúria, pelo Netto, cuja obra está a exigir uma revisão de seu senti­
obscurantismo, pelo desmazelo. E pelo retrocesso. do mais íntimo; a grandeza do Rui Barbosa homem de
Os ensaios desse mestre, não apenas crítico, desse pensamento e estadista... e mais revisitações revelado-
humanista, Franklin de Oliveira, faz ressurgir forte lem­ ras sobre Pontes de Miranda, Almir de Andrade,
brança dos grandes nomes do ensaísmo e do pensa­ Portinari, Dante Costa, Hugo de Carvalho Ramos,
mento estético e ético no Brasil. É de se lamentar que Carlos Tavares (de “O Ventre do Diabo”), José Ortega y
até hoje sigam insubstituídos — Sérgio Milliet, Paulo Gasset, Robert Musil, o austríaco que penetrou e expôs
Rónai, Augusto Meyer, Otto Maria Carpeaux, Brito a ambigüidade do eterno eu feminino sem nunca ter
Broca, Álvaro Lins, Astrojildo Pereira, José Guilherme sido apresentado às existências psicológicas de Capitus,
Merquior... para ficar somente nesses luminares do Sofias, G enovevas do n osso prim eiro bailarino,
partido mais alto dos pensadores de literatura e de arte Machado de Assis... uma grande página sobre Otto
no Brasil. Maria Carpeaux, saído da Europa Central, corrido das
Sem se afastar de firme base científica e dono de bestialidades nazistas e chegado ao Brasil parã aqui
uma integridade ética permanente, intelectual com esplender como um luzeiro e nos apontar, entre muitas
larga quilometragem de pensamento e vivência, ampla outras conquistas, a filosofia da arte... as variações
abrangência e honestidade intransigente, Franklin de sobre o Natal, síntese de grande força sobre o homem
Oliveira — já “comparado” a um intelectual completo transcendente e as indicações sinceras para uma políti­
como Edmund Wilson — com o primeiro ensaio desta ca cultural que jamais se afaste da vocacão humanística.
coletânea, A Sem ana de Arte M oderna na Contramão Exigente, vigilante, sério na pesquisa. Embora elo­
da História lavra um tento raro: levanta a mais contun­ giando como “livro indispensável” a História Concisa
dente desmistificaçào da “semana que engorda”, segun­ da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi, reclama a
do Carlos Drummond de Andrade ou da “patuscada”, ausência no capítulo do nosso barroco, da singularíssima
como a flagrou outro grande poeta, Dante Milano. pessoa do pintor Manuel da Costa Athayde, o Athayde
Afora esse trabalho demolidòr e recondutor a uma axi- azul-e-vermelho, companheiro do Aleijadinho e que
ologia necessária e nová^para os fatos culturais pintou, uma festa da alegria de viver em Congonhas no
brasileiros, o seu ensaio-título contém a arquitetura de interior da igreja de Bom Jesus do Matosinhos, anjinhos
uma vasta revisão. Convida, incita, provoca ao não- mulatos e chorões.
conformismo e ao repensamento da própria história do Talvez Franklin de Oliveira seja o atual grande críti­
país. Franklin não se furta a pensar, de novo, figuras co literário deste país sob o alcance largo da cultura
com Antônio Vieira, Rui Barbosa, Coelho Netto, como fato antropológico. Já foi essa a opinião de José
Graciliano Ramos, Portinari... Guilherme Merquior. Seu feixe de ensaios é um benho
Alguém já o chamou de prosador dos mais nobres. de cultura. E, em principal, uma lição que poreja
Nenhuma exag eraçào . Mais de se d estacar é a humanismo. E é comovente que o mestre, fazendo-se
importância de sua crítica numa literatura escassa de singelo, o tenha dedicado diretamente aos não-deslum-
pensamento. E em que ele aponta essa pouquidade. brados, aos “homens sérios deste país”. Que fica menos
Como em Euclides da Cunha, Monteiro Lobato, Raul pobre com a lucidez deste livro vingador.
Pompéia, como em Lima Barreto há um papel vingador
nesse ensaísta que não perde o eixo científico e não
João A ntônio
deixa escapar de suas mãos a agudeza da emoção. Daí,
a leitura desse livro terá conseqüências perduráveis no C apa: ca rica tu ra de B elm o n te p u b licad a na revista
espírito do leitor. O estilo tem maciez, sim; e, sim, “D .Q u ixo te” e retrato de Mário de Andrade por Anita
carrega energia, virilidade e, em momento algum perde Malfati, óleo sobre tela, 1923 .
a limpidez. Equaciona, sem complicar, a partir de sua
linguagem. Observe-se a densidade com que usa, entre
F ran klin d e O liveira

A S em a n a d e A r t e M o d er n a
NA CONTRAMÃO DA HISTÓRIA
E
O u t r o s en sa io s

TOPBOOKS
Copyright ® Franklin de Oliveira
Revisão José Mario Pereira

Produção Gráfica Fabiano Gallindo

Capa Luciana Mello

CIP - B rasil. Catalogaçâo-na-fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, R J

O liveira, Franklin de, 1916 -


047s A Semana de Arte Moderna na contramão da histó­
ria e outros ensaios / Franklin de Oliveira.
R io de Janeiro : Topbooks, 1993

1. Semana de Arte Moderna (1 9 2 2 : São Paulo).


2. Cultura. I. Título.

CDD - 306
93 - 0350 CDU - 008

Para a edição deste livro foi decisivo o apoio da Rioarte,


na pessoa do seu diretor Hélio Portocarrero.

Direitos exclusivos desta edição reservados pela


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Impresso no Brasil
A
Gilberto Rodrigues Franklin de Oliveira
e
Mareio Rodrigues Franklin de Oliveira
meus filhos,

e a
Álvaro Cláudio de Moraes,

meu amigo
»
Sumário

Nota do Autor...................................................................11

A Semana de Arte Moderna


na contramão da história

Entre Sodoma e Gomorra.............................................. 15


Antropofagia.................................................................... 16
As revoltas plebéias.........................................................18
As lições da linguagem.................................................. 18
Uma poética de transição.......................................... 20
As duplicidades do pregador....................................... 21
À sombra das universidades.......................................... 23
As distorções de Vieira....................................................25
A gramatiquinha.............................................................. 26
A arte de furtar................................................................ 27
Carência filosófica...........................................................29
Os búfalos.........................................................................31
• Revolução, teu verdadeiro nome é cultura.................. 34
Inventário......................................................................... 35
Outros ensaios

* A revolução roseana.............................................................. 41
* Graciliano R am os................................................................... 53
* Ler Coelho N etto.................................................................... 59
| Rui quase desconhecido...................................................... 73
* Pontes de Miranda.................................................................. 81
* Almir de Andrade................................................................... 91
Portinari..................................................................................... 95
A História da literatura de Alfredo B o s i.......................... 97
Dante C o sta ........................................................................... 103
Carece beleza, repete Z e lã o ............................................. 109
O resgate de um grande escritor..................................... 115
Ortega: clareza e equívoco............................................... 119
« Duas ou três verdades sobre M usil.................................131
.* Um gigantesco sistema de destruição das máscaras 137
Carpeaux relembrado...................... ................................... 141
Variações sobre o N atal..................................................... 149
Para uma política cultural..................................................155
I

Nota do autor

O mais perverso dos ditadores militares do ciclo


de 64 - o general Médici - consagrou a Semana de Arte
Moderna como o evento central da cultura brasileira
contemporânea. Não mandou proceder o balanço da
Semana para verificar se a sua pretenção era justa.
Satisfez-o a vaidade de fazer-se pontifício fardado dos
rapazes de 22. Sequer determinou o levantamento dos
que participaram da patuscada bandeirante. Baniu da
crônica do acontecimento um artista plástico do porte
de Celso Antônio e um músico como Elpídio Pereira.
Escrito in patibus infidelium , este ensaio não
poderia deixar de ser o que realmente é - uma
desmistificação da patuscada, como a alcunhava Dante
Milano, dos paulistanos.
Os adeptos da Semana compreenderam que, já
mais do que sexagenária, ela precisava de muletas, não
para andar, simplesmente para ficar de pé.
Os paulistas e paulistanos de hoje, livres do
provincianismo de 22, reconhecem que a Semana não

11
passou de um divertimento que se esgotou nos próprios
limites do Planalto.
Enquanto não arrom barm os os burgos que
infestam a cultura nacional o Brasil não tem o direito de
alegar ter uma cultura, quer se tome a palavra no seu
sentido antropológico, quer a aceitem os na sua acepção
humanística.
O processo de revisão da patuscada de 22 creio
que se inicia com este livro. Daí a sua utilidade,
sobretudo para a juventude universitária brasileira.

* * *

A segunda parte do volume é constituído de


ensaios éditos e inéditos — os primeiros ganharam as
páginas do Correio da M anhã, o Estado de S. Paulo, a
Folha d e S. Paulo. Os inéditos dormiram longo sono nas
gavetas de sapateiro do autor. Eles completam a
primeira parte do livro, razão de sua presença neste
volume. De um modo ou de outro, eles tangenciam
temas do ensaio principal. O leitor anotará omissões
com o a do rom ance M adam e Pomery, no qual o autor
definia a Paulicéia com o um vasto bordel. E figura de
bordel não deixou de ser Oswald de Andradecom a sua
monomania de com er Dona Lalá - monomania derivada
d esca ra d a m e n te do E n go le hom em , de A d elin o
Magalhães.
Este não é um livro para os até hoje deslumbrados
com a farsa de 22. Foi escrito com o pensamento
voltado para os homens sérios deste pobre país.

Franklin de Oliveira

12
A Semana de Arte Moderna
na contramão da história
»

Entre Sodoma e Gomorra

Paulo Prado, um dos patronos da Semana de Arte


Moderna, incluía entre os pecados capitais de nossa formação
nacional a luxuria, a lascívia, a corrupção dos costumes. De um
certo modo ele estava repetindo a observação de Humberto de
Campos escrita entre 1915/1919, posteriormente inserida no
volume Carvalhos e roseiras em 1923. Nesse ensaio observa
Humberto: “Desde os primeiros dias de sua instalação no Brasil,
pôs o português em evidência, entre os índios, os instintos de
libidinagem que o caracterizava no século. Os primeiros conflitos
entre os colonizados e os naturais nasceram menos da conquista
da terra, da caça ao ouro, das restrições à liberdade do que da
posse da mulher. A índia tornou-se, então, o centro de todos os
choques”. E explicava: “Forçado às longas travessias solitárias o
marinheiro luso ansiava ao fim das travessias pela satisfação
amável ou brutal dos reclamos indomáveis da carne”.
A Carta de Pero Vaz Caminha, escrivão de Pedro Álvares
Cabral, nos tópicos em que trata com minudências a “vergonha”
das índias é um documento decisivo sobre a voracidade sexual
dos primeiros colonizadores do Brasil.
Embora não dissesse claramente, Paulo Prado deixa

15
entrever que o colonizador português imprensou o Brasil entre
Sodoma e Gomorra.

Antropofagia

A conotação de posse sexual dada ao verbo comeré uma


contaminação semântica da antropofagia sexual portuguesa, nos
tempos da colonização.
Os índios deglutiram, devoraram o bispo Sardinha. O
choque de retorno não se fez esperar.
Os colonizadores, arregimentados entre a gente mais vil
do Reino, em resposta à deglutição do bispo, desandaram a comer
as índias, numa explosão de canibalismo sexual.

II

Oswald de Andrade e Mário de Andrade, em busca das


raízes de nossa identidade nacional, voltaram ao indianismo do
período romântico da literatura brasileira; o primeiro com o
Manifesto antropofágico, síntese da ideologia primitivista que
então postulava; e o segundo com Macunaíma. A verdade é que
Mário com a sua rapsódia, bebida em Koçh-Grünberg (De
Roraima ao Orenoco), em Capistrano de Abreu (A língua dos
caxinaúas), em Couto de Magalhães (O selvagem) e em Barbosa
Rodrigues (Poranduba amazonense), estava mais perto do nosso
indianismo literário. O “herói sem nenhum caráter” era réplica
negativa do Peri de Alencar (Oguarani), com a diferença de que
Peri é um herói inteiriço. Ele se move no mundo dos valores.
Guia-o uma axiologia cujo núcleo central é o princípio do
cumprimento do dever, a noção da dignidade inconsútil. Ele é
da estirpe moral do Juca-Pirama. Já a Macunaíma falta a qualidade
ética que sustenta todas as demais virtudes humanas: a coragem.
A preguiça é a pedra de toque de sua falta de caráter.

16
*VyA j
O indianismo de Oswald, tal como aparece no Mani
festo antropofágico~ é uma metáfora do bom selvagem - a
sombra de Rousseau paira sobre a sátira oswaldiana. As
contribuições do índio ao colono português - a forjatura dos ~
instrumentos de caça e pesca, a construção de embarcações de £
casca ou tronco escavado para navegação nos rios, as técnicas^
de cultivo da terra, etc. - foram omitidas.
A sociedade idealizada por Jean Jacques Rousseau
visava evitar a destruição do indivíduo, promovida pela
divisão da ordem social em classes ou estamentos. De modo
algum o genebrino preconizava um retorno ao primitivismo -
a vida do índio transcorria numa liberdade não limitada pela
existência do estado, ou norma jurídica ou ainda uma teoria
pedagógica castradora da espontaneidade de sua organização
social.
A nossa questão, que permanece insoluta até hoje, não
é a que enforma o Manifesto antropofágico, mas a da
reorganização da sociedade brasileira de baixo para cima,
eliminada a vocação prussiana na qual os projetos de mudança
social são filtrados por uma minoria. Esta é uma tendência qúe
vem de antes da Independência, em cujo centenário se fez a
Semana, para celebrá-la. Um ano antes do hilariante brado de
Pedro I às margens do Ipiranga, Hipólito José da Costa dizia:
“Prefiro as reformas vinda de cima, do que as feitas pelo povo.
Estas são sempre violentas”. Para Evaristo, o publicista da
Regência, tudo que fosse necessário fazer para consolidar a
ruptura com Portugal deveria ser feito, para que fosse evitada
a Revolução. Deve-se recordar que o período da Regência foi
um dos mais conturbados de nossa história, marcados por
sedições desde a Amazônia ao Rio Grande do Sul, passando
pelo Brasil Central.
O que transiuz nos aforismos do redator do Correio
Brasiliense é o medo do povo - daquele povo que o francês
Couty, com a ligeireza dos turistas em férias, dizia não existir
no Brasil.

17
As revoltas plebéias

Além da ambigüidade geográfica - nem África, nem


Europa - a Lusitânia foi o único país do Velho Continente onde a
Renascença não chegou. Somente quando perdeu o monopólio
das especiarias, Portugal se voltou para o Brasil. E o perdeu no
momento em que, com o crescimento das cidades e a elevação do
nível de vida de suas populações, o seu consumo se intensificara.
Mas, para isto, Portugal tinha de comprá-las e os produtores
indianos exigiam que o pagamento relativo a essas compras fosse
feito em dinheiro ou, pelo menos, parte em dinheiro e parte em
produtos portugueses. Mas Portugal não produzia nada. Em 1524
já devia três milhões de cruzados. Teve que recorrer a empréstimos,
a juros extorsivos. Às perdas econômicas acrescentavam-se as
perdas humanas. Das quatro mil pessoas que embarcavam para
as índias, duas mil morriam nos naufrágios. Instala-se a
instabilidade social, provocada pela generalização da miséria. Em
conseqüência explodem as rebeliões populares: Somente entre
1585/1673 ocorrem dezoito desses levantes, movidos pelas
desigualdades sociais: de um lado, o povaréu esmagado pela
extrema pobreza - veja-se a Romagem dos agravados, de Gil
Vicente; e, do outro, uma nobreza e um clèro usufruindo como
propriedade sua os bens que o país ainda conseguia produzir.
Enfiados entre as classes favorecidas exerciam atividades argentárias
os judeus, que viviam no país desde os tempos dos romanos.
Eis que Portugal se volta para o Brasil. íamos ser a sua
vaca leiteira.

As lições da linguagem

Como a linguagem é o melhor espelho de uma sociedade,


tomemos dois termos do vocabulário lusitano que dão o exato
perfil dos colonizadores. Fazendo-se passar por católicos, no

18
entanto mantinham-se aderidos à herança dos seus ascendentes -
os hebreus. Esta fidelidade foi uma das razões do rompimento do
cristianismo com a cultura hebraica. A doutrina de Jesus era
universal: contempla a humanidade; a dos judeus era uma seita de
um povo que se considerava “povo eleito”. Mais do que hebraica,
a religião cristã ostentava o caráter de religião popular e anti-
romana - religião de oposição ao domínio romano, credo dos
povos que viviam sob a tirania do Império - religião de escravos
e de deserdados. Além disto é de assinalar a sua contaminação
pelo pensamento grego e hèlenlstico, das culturas do Mediterrâneo,
de onde ã sua conseqüente universalização. Ela via o homem,
qualquer que fosse a sua procedência etno-antropológica: o
homem, o ser humano, em particular o homem ultrajado em,sua
dignidade. Não pregava a supremacia de nenhum povo sobre o
outro, de nenhuma classe sobre outra, motivo da acusação de
subversivo arguida por Roma e seus prepostos - Pilatos no caso
- contra Jesus.

II

Os portugueses, em cujo seio viviam, desde os tempos da


Reconquista, os judeus, viram na colonização do Brasil uma
oportunidade de enriquecimento. E aqui aportaram. Deram de
cara com o índio, o dono da terra, que ora chamavam de gentio,
ora de bugre. Mas eles, ao as aplicarem ao Brasil, adulteraram o
significado desses termos. Gentio tanto quanto bugre passaram
a ser sinônimos de sodomitas.
A sodomia era, no medievo transalpino, considerado o
mais abominável dos crimes, passível de punição com a pena de
morte. Era definido como pecado contra-natura. OsTemplários,
ordem militar religiosa, fundada em Jerusalém em 1120 para
proteger o Santo Sepulcro, sofreu a acusação de ser constituída
de sodomitas.
Os portugueses usavam a índia e posteriormente a negra,
praticando a cópula anal. Procediam assim também para evitar
filhos. Estes, quando nasciam, em conseqüência da desobediência
daquela norma, eram chamados simplesmente de mazombos.
Mas não só isto. A prática da sodomia satisfazia o apetite
sexual do colonizador, sobretudo por ser um exercício de
violência. Os sexólogos* afirmam que o ânus feminino é uma
zona ricamente erógena. Região ricamente enervada, o bumbum
feminino é apertado por um potente músculo. Esse músculo é
constituído de uma massa de fibras contractéis, de geração
motora. Tal massa fibrosa é destinada a operar movimentos, sob
a influência da vontade da sodomita ou de uma excitação
mecânica. Que acontecia?
Quando a índia ou a negra se recusavam a praticar a
sodomia, era barbaramente seviciada pelo colono. Surras,
bofetadas, até que, vencida pela truculência e a tortura, ela se
rendia à brutalidade do colonizador.
A inferiorização da mulher, o seu tratamento como objeto,
sua coisificação, que por mais de quatro séculos marcou a cultura
brasileira, tem sua origem no sadismo dò colonizador.

Uma poética de transição

Por que o parnasianismo, contra o qual se rebelaram os


autores emblemáticos da Semana - Oswald de Andrade e Mário
de Andrade - durou janto entre nós - de 1822 a 1922? Por que
correspondia ao nosso gosto da eloqüência? Por que em virtude
de um timbre ornamental foi o estilo das nossas classes dirigentes?
Ou por que, sob o disfarce da impassibilidade permitia ao
indivíduo não dar voz humana aos problemas da sociedade,
escamoteando-os numa suposta objetividade da arte? Ou ainda
por que em nome dessa impassibil idade, facilitava a aceitação
passiva das forças exteriores adversas ao homem, favorecendo o
conformismo social?

•Ver Pierre Habert - Dictionnaire de la sexualité, Paris, 1958.


Não houvesse o parnasianismo ultrapassado o tempo de
sua vigência estética, talvez o modernismo houvesse tomado outra
direção, mais construtiva do que destrutiva.
Mas a passagem do parnasianismo ao modernismo não se
fez abruptamente. Primeiro houve o simbolismo, que nos legou
dois grandíssimos poetas: Cruz e Souza e Alphonsus de Guimarães.
Depois o penumbrismo, designação dada por Ronald de Carvalho
aos que aqui adotaram o crepuscolarismo italiano, nos quais
Pascoli viu a não adesão aos cânones da civilização industrial. Os
introdutores do penumbrismo no Brasil foram Ribeiro Couto e
Álvaro Moreyra. Revelado em Portugal por Adolfo Casais Monteiro,
Ribeiro Couto obteve grande audiência entre os lusitanos. Os
crepusculari não despertaram, porém, nenhum interesse nos
donos da Semana, totalmente indiferentes à vida intimista dos
homens. Em vez da arte em surdina, preferiam os ruídos da arte
panfletária.

As duplicidades do pregador

A condenação da escravatura foi o primeiro sermão que


o Brasil ouviu logo após o início de sua ocupação pela gentalha
do Reino. Em 1684, quando da rebelião anti-imperialista de
Bequimão, em São Luís do Maranhão, Portugal mandou enforcá-
lo. Vivo, subiria o patíbulo. Se não o encontrassem, seria
executado em efígie. Os frades - capuchinhos - do Convento do
Carmo de São Luís imprimiam e distribuíam nas ruas entre a
população folhetos incitando a população a aderir à rebelião
pegando em armas.
A colônia tinha apenas consciência nativista. Não
ultrapassava esses limites, embora Bequimão fosse um homem
culto. Ele personificou a revolta dos primeiros oprimidos contra
o absolutismo colonial, sendo o fundador das nossas nascentes
correntes nacionalistas.

21
Vieira, nascido na Bahia, mas educado em Portugal, era
homem não só de dupla nacionalidade. De dupla face, também.
O padre Antônio Vieira sobre o qual o professor Luís Palacin, da
Universidade Federal de Goiás, nos deu um belo livro (Vieira e a
visão trágica do barroco, São Paulo, 1986) lastreou todas as
contradições do sermonista: contra a Contra-Reforma, a favor do
mercantilismo europeu, a favor da escravidão dos índios - tendo
fracassado nesse intento, passou a postular a escravidão do negro.
Defensor intransigente do rei, pregador da Coroa,
condenou o sistema colonial, mas não hesitou, quando da guerra
dos holandeses, a propor a entrega de Pernambuco aos
neerlandeses. Pregando a escravidão dos negros, que lhes
propunha? Qual a proposta compensatória para o trabalho servil?
No seu “XIV Sermão do Rosário” está a resposta: a
resignação. João Francisco Lisboa não poupou o pecador: “O
padre Vieira faz concessões em matéria que não as admitia, pois
o princípio da liberdade é absoluto e com ele não se deve transigir”.

A Amazônia dos Andrades

“A grande tolice do meu amigo Oswald de Andrade é


imaginar que descobriu o Brasil”, escreveu Carlos Drummond de
Andrade a Mario de Andrade, em carta de 14 de dezembro de 1925.
Mário viajou pelo Nordeste e pela Amazônia. Depois os
dois andaram por Minas. Da Hiléia, Mario trouxe o Macunaíma.
Nem o Paraíso perdido, de Euclides da Cunha. Nem o
Inferno verde, de Alberto Rangel.
Para começo de conversa a Amazônia, a maior floresta
equatorial do mundo, não é una na sua realidade ecológica e
cultural. Fundamentalmente ela tem dois ecossistemas: o das terras
altas, que cobrem imensas extensões de planícies áridas, embora
cobertas de florestas prodigiosamente exuberantes; e uma estreita
faixa de várzeas - terras baixas inundadas, ricamente férteis, vez que
anualmente são rejuvenescidas pelo lodo carregado pelas enxurradas
que rolam pelos Andes. Agassiz ficou surpreendido com a

22
quantidade e a variedade dos peixes amazônicos: sào mais de 1200
espécies diferentes, a maioria dos quais não encontrada em nenhum
outro lugar. Quanto às tartarugas, o número de ovos destruídos é
estimado entre 33 e 72 milhões para uma produção de óleo de
£30.000 a 480.000 fêmeas.
Desta viagem à Amazônia, tirante o Macunaíma, Mario
trouxe um de seus mais belos poemas: “Acalanto do seringueiro”.

“Seringueiro brasileiro,
Na escureza da floresta
Seringueiro, dorme”.

Já Oswald escreveu de oitiva: viu o galo cantar sem saber


onde...

“Tem a forma de hua harpa


Confina com as altíssimas terras dos Andes
E fadas do Peru
As quais são tão soberbas em cima da terra
Que diz terem as aves trabalho em passar”.

Outra vez Carlos Drummond de Andrade tinha razão: “A


poesia dele peca por pobreza de processos. É tecnicamente mal
construída”. E mais adiante: “ Ainda tenho fé de vê-lo escrevendo
como todos nós”. E acrescentou: “... sem os balbuciamentos do
Pau Brasil”.

Á sombra das universidades

Òs modernistas paulistanos queriam passar o Brasil a


limpo. Mas, conto poderiam fazê-lo, se eles nada conheciam
sequer da capital bandeirante, fora a mansão dos Prado e a
redação do Correio Paulistano? Fora desse círculo fechado, o
mundo não existia para eles. Passar o Brasil a limpo era combater
o parnasianismo e negar tudo o que até então tinha sido feito por
parnasianos e não parnasianos. Dc um poeta como Da Costa e
Silva já não falaram, tanto quanto de dois romancistas: Lima
Barreto e Enéas Ferraz. O velho Marx dizia que a ignorância nunca
foi útil a ninguém. Os corifeus da Semana atuaram à revelia desse
conceito. Um reitor espiritual como se intitulava com os seus
seguidores as vezes de mero de professor primário.
Em 1538 funda-se em São Domingos a Universidade
São Tomás de Aquino e, logo a seguir, a de Santiago de La Paz.
Em 1553 surgiam a do México e a de La Paz, a da Guatemala
e a do Peru, a da Colômbia, duas no Chile, duas na Argentina,
a de São Marcos, ainda em Lima, a de São Jerônimo, em
Havana, a de Santa Rosa, em Caracas, a de São Gregório
Magno, em Quito, a de Santo Ignácio de Loyola, em Córdoba
e a de São Francisco de Loyola, também em Córdoba.
Multiplicam-se o número dessas Universidades, que chegam a
26, desde a Ilispaniola a Nova Granada e Quito. Todas elas
tinham seus modelos nas Universidades de Alcalá e de
Salamanca. Todas eram dotadas de imprensa. Todas imprimiam
livros, jornais e tinham como impressores homens do porte de
Giovarini Paoli ou Juan Pablos, este último agente do alemão
João Gronberger, de Sevilha. Enquanto isso, por Carta Régia
de 5 de junho de 1747, o Reino mandou seqüestrar, todas “as
letras de imprensa” existentes no Brasil, por inconvenientes
aos seus interesses. A Argentina teve um Sarmiento, um
Alberdi, a Centro-América um Marti, um Hostos. Os brasileiros
que se destacaram culturalmente só tinham um caminho a
fazer: tocar rumo a Coimbra que sabemos o que foi, pelas
narrativas de Eça de Queiroz.
§em a educação não se chega à consciência política» E
era isto que Portugal queria impedir quando, no Brasil, desde
o final do século XVIII já tínhamos todas as condições objetivas
pàra sermos uma nação soberana.
A Universidade do Brasil só surgiu em 1922 no Rio de
Janeiro, mas~ de sua fundação a Semana não tomou
conhecimento.

24
As distorções de Vieira

Na noite de Natal de 1850, em Sào Domingos, Frey Antôn


Montesinos, glosando o texto Ergo voxclamantisin deserto, prega’
um sermão que ficou como um dos mais altos momentos da;
história espiritual da humanidade, no dizer de Pedro Henriquez
Urefta. Disse: “Havia começado um novo tipo de cruzada”. Pela
primeira vez na história humana, homens de uma nação
conquistadòía discutiam os" direitos da conquista, os direitos de
cada indivíduo à sua liberdadeT <T de cada comunidade à sua
independência.
O Sermão de Montesinos repercutiu tão intensamente na
Espanha de Carlos V que a Universidade de Salamanca, pelos seus
indignados teólogos, levaram o Imperador a editar uma Nova Lei
das índias, a qual deu sentido mais humano à colonização ibérica
- a Declaración de los derechos de los indígenas. Esta declaração
foi a fonte do Direito das Gentes, hoje dito Direito Internacional.
O Brasil não teve um Montesinos, nem um Pedro Claver.
Portugal não deu à sua colônia nada que lembrasse um Vasco
Quiroga, um Pedro de Gante, um Sahagún ou um Jacobo de
Tasterra, verdadeiro pioneiro da educação por métodos visuais.
Quiroja pretendeu realizar no México a utopia de Thomas Morus,
multiplicando as granjas de trabalho comum, os hospitais e asilos,
os armazéns coletivos, etc. Teve o oposto desta pléiade de
pioneiros: teve o padre Vieira, a oscilar, o tempo todo, entre
liberticida e libertário. Esta última postura, ele a assumiu
pouquíssimas vezes. Cortesão, se a certa altura assumiu a defesa
dos judeus foi porque compreendeu que a sua expulsão do Reino
iria empobrecer a Corte. Mas num Portugal onde havia - segundo
o depoimento idôneo do humanista flamengo Clenardo, que
viveu em Évora - mais escravos negros do que brancos, Vieira
acostumou-se a ver no trabalho servil uma coisa natural e na
exploração colonial uma diátese da história.
Os seus Sermões,, que na verdade eram comícios, só
atingia um ponto de alta incandescência quando se tratava de

25
proteger Portugal, como no caso do monumental “Sermões
contra as armas da Holanda”. Fora daí o seu sermonário era o
de um homem ainda em formação medieval, ao qual não faltou
porém, a intuição das novas condições européias, que pregava
uma política fundada no poder econômico da burguesia
mercantil constituída pelos cristãos-novos. Era um pragmático -
sua lógica tinha alguma coisa do realismo de Maquiavel. Na sua
argumentação a lógica cedia espaço à etimologia, às analogias,
aos silogismos. O mito do Quinto Império, que promoveria à
conversão universal ao catolicismo romano, tinha sua fonte em
Joaquim da Fiore e nos Espirituais. Era uma combinação do velho
messianismo nacional com o messianismo judaico.

A gramatiquinba

Num tópico do Manifesto antropofágico Oswald de


Andrade quer que usemos na escrita a língua “com que falamos”.
Mário de Andrade que vinha escrevendo “em brasileiro” mordeu
a isca. A partir de então passou a perseguir outro ideal de fala.
Desde a fase romântica de nossa literatura, dois dos nossos
maiores autores: José de Alencar, na prosa, e Gonçalves Dias, na
poesia, tiveram a obsessão da língua nacional. Mas o parnasianismo
soterrou esse sonho. Voltou-se ao português de Portugal - a prosa
dura (ou o verso) despida da macieza brasileira, o adjetivo
sufocando o substantivo e quase anulando o verbo - uma prosa
senatorial ou de tribunos em comícios cívicos. Em lugar da arte da
prosa, a retórica inflada sobretudo de sinônimos. As gramáticas
espartilhavam o ato de dizer. Mais próximo do modernismo o sábio
João Ribeiro esboçava, solitário, o seu protesto. Oswald inventa
o estilo telegráfico que não chega a ser uma forma de escrever.
Mário pensava em outra coisa. Projetou uma Gramatiquinba, na
qual começou a trabalhar de 1926 a 1929. Escreve a Souza da
Silveira. Por intermédio de Bandeira pede a Souza da Silveira uma
relação de livros que pudessem dar base científica ao seu projeto.
Vem a lista, encabeçada por Vendryes, Dauzat, Bourciez, Leite de

26
Vasconcelos, Brunot. Souza da Silveira, Bandeira recua: achava
que esses autores de nada serviriam a Mário. E sugeria que os
substituíssem por dois autores nacionais: Amadeu Amaral e
Antenor Nascentes. Mas eis que Mário dá de cara com a Gramática
dç Said Ali, a cujo sistema adere fervorosamente. É com tal fervor,
que desiste do seu projeto. E o modernismo ficou sem a sua
Gramatiquinha.

A arte defurtar

Os portugueses que aqui aportaram não queriam fazer


do Brasil uma feitoria, da qual usufruísse todas as possibilidades
que resultasse de trabalho. Só se interessavam pelas atividades
parasitárias. Mobilizando milhares de escravos, os ergueram os
engenhos de açúcar, no Nordeste. Esses engenhos tornaram
viável a exportação de 45 milhões de arrobas de açúcar no
período de 1711 a 1850. Durante três séculos, o valor do açúcar
importado rendeu ao reino 300 milhões de libras esterlinas.
A arte de fu rta r traça o perfil de uma nação excluída da
constelação dos valores renascentistas, dos quais o mais alto seria
o trabalho. O reino, já a esta época pululante de escravos negros,
como atesta o grande humanista flamengo Clenardo, então
residente em Évora, considerava o trabalho coisa vil, próprio para
escravos. Quanto ao luso, comprazia-se no logro, na trapaça. “Se
há um povo dado à preguiça sem ser o português, então não sei
onde ele exista”. A consideração do trabalho como coisa infamante
traz embutida o elogio da preguiça - a virtude máxima que une
o Manifesto ao Macutiaíma.
Os rapazes da Semana queriam redescobrir o Brasil. Mas,
como poderiam fazê-lo se nada conheciam sequer do próprio
Estado aqui implantado?
Para se passar uma sociedade a limpo não basta o desejo
romântico de fazê-lo. É preciso conhecê-la desde as suas origens:
os seus fundamentos econômicos, sua estrutura fundiária, suas

27
bases industriais, seus hábitos de consumo, sobretudo os
supérfluos, o grau de educação dos seus membros, os projetos
que alimentam, etc. É preciso conhecer tanto sua infraestrutura
material quanto os valores em que ela assenta, a política seguida
pelas suas elites dirigentes, estejam elas no poder ou na periferia
do poder. Não se trata de estabelecer uma relação direta entre
a ordem social e a criação intelectual, mas de fixar as mediações
que se dão na através da Cultura.
A burquesia paulista era bifronte: de um lado uma
cabeça está afincada nos latifúndios cafeeiros. Do outro, esse
afincamento se dava no nascente parque industrial que empregava
imigrantes ou descendentes de imigrantes-portugueses, italianos,
espanhóis, húngaros e a parcela argentária constituída de judeus
que viviam de empréstimos a pequenos comerciantes. Aqueles
imigrantes portavam todos ideologias anti-capitalistas : eram
anarquistas, anarco-sindicalistas e comunistas, adeptos estes
últimos da nova ordenação social que Lênin implantara na ex-
Rússia tzarista. O híbrido empresariado paulista remunerava
mal os assalariados, aponderam-se ao máximo da mais-valia
produzida pelo trabalho proletário. Maj&,do que uma, elite
ejíhpresarial era, de fato, uma lumpen-burquesia.
^ A greve de 1917, que paraliza a capital bandeirante, era
um sintoma da inquietação social que dominava no Planalto.
Os rapazes de Dona V eridiana Prado não se
sensibilizaram cpm essa demonstração de protesto social.
Faltava-lhes sensibilidade política.
Empregamos aqui o termo política como atividade
reflexiva sobre as formas de governo, a estrutura do poder, as
condições nas quais é exercida a liberdade individual, o exame
das questões econômicas, etc. Sendo o homem um animal
essencialmente gregário, ou ele tem posição política definida ou
é um fantasma da alienação. Isto, e não outra coisa, é o que eram
os futuros criadores da _Semana. Cinco anos antes de seu
movimento, eles não perceberam o alcance da greve de 1917,
preferindo a clausura regada a champagne na mansão do

28
sobrinho de Eduardo Prado, de onde sairiam anunciando que
iriam descobrir.o Brasil, propósito que mereceu dura crítica de
Carlos Drummond de Andrade em carta a MarTó de Aftdrade.

Carência filosófica

Amadeu Amaral, que não era apenas um grande poeta,


fez o diagnóstico da Semana: “Faltou-lhe base filosófica”. {
Limitou-se a pretender romper com o passado. Acontece que
a cultura é um processo ininterrupto, que ata o passado ao
presente e este ao futuro. A história literária de qualquer povo
mostra que a belejrística, para usarmos expressão fora de
moda, é como certos rios que, no seu curso, mudam de curso,
mas são as mesmas as águas que rolam. A evolução é um
processo que se faz em espiral: sempre dando volta sobre o
mesmo ponto mas sempre subindo mais.
É verdade que a Semana cresceu, mas cresceu por
cissiparidade. Oswald deu uma guinada para a esquerda,
embora confessasse que foi “um palhaço da burguesia”. Mario
oscilava entre o centro católico e a esquerda moderada. Plínio
Salgado, Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia aderiram à
direita. Estes defendiam um nacionalismo autoritário, combatido
pelo nacionalismo de Monteiro Lobato, que conhecia a miséria
dos nossos sertões. Lobato via no caboclo via o Jeca Tatu,
enquanto Menotti via no Juca Mulato* uma versão entre
romântica e hilária da Ceia dos cardeais, do fascista português
Júlio Dantas. Mas a nossa poesia modernista não nasceu nem
com Cassiano Ricardo, nem com Menotti ou ainda Guilherme
de Almeida, poeta de donzelas à procura de casamentos
promissores. Nasceu com Mario de Andrade, que fez a
Paulicéia desvairada ser uma mescla de Verhaeren, Cendrars
c Appolinaire.
O “verde-amarelismo” tanto quanto a “antropofagia”
alimentavam-se das guloseimas do PRP.
Para se mudar uma sociedade é necessário conhecê-la

29
desde as suas origens. Conhecer a sua infraestrutura, o
funcionamento de suas instituições, a cultura que ela quer
impingir ao povo, a composição de suas populações, o seu
pensamento e as suas aspirações. Os modernistas não
conseguiram transpor as muralhas dos salões da alta burguesia
paulistana.
Ora, a redescoberta do Brasil vinha sendo feita desde
o início do século, com os estudos de Nina Rodrigues sobre o
negro brasileiro; de Euclydes da Cunha sobre as populações
sertanejas; de Roquette-Pinto sobre o índio brasileiro do Brasil
Central; de Monteiro Lobato sobre o brasileiro marginalizado
da binterlândia; e nos romances de Lima Barreto e Enéas
Ferraz sobre as populações suburbanas cariocas.
Por volta de 1928 aparece José Américo de Almeida,
Rachel de Queiroz, Jo sé Lins do Rego, Graciliano Ramos,
Amando Fontes recolocando em tela os problemas sociais e
humanos do Nordeste. Oswald chamou-os de “búfalos com os
cornos enfiados na questão social”, ele que não conseguiu ser
ò romancista de São Paulo. Este romancista foi José Geraldo
Vieira, com uma obra-prima: A m ulher q u e fu g iu de Sodoma e
A tújiica e os dados. Com o seu cosmopolitismo literário José
Geraldo refletia a cultura internacionalizada da terra bandeirante.
Nesse período o Brasil assistiu também a retomada dos
seus estudos sobre as ciências humanas, com os ensaios de
Arthur Ramos, Edson Carneiro, Manuel Dieguesjunior, Fernando
^Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Luís Viana Filho, Maurício
Goulart, Roger Bastide, Pierre Verger, Florestan Fernandes, L.
A. Costa Pinto, Nunes Pereira, Hermes Lima. Neste período,
Porto Carrero introduz Freud em nosso país.
O Estado Novo, ditadura de direita, considerou esses
estudos subversivos. Apreendeu edições, prendeu autores,
instalando o terror policial que se prolongou até 1945, ano do
aparecimento de Sagarana, de João Guimarães Rosa, início de
sua obra gigantesca e de uma nova fase na nossa história
cultural.

30
Os búfalos

Há a literatura original e a literatura derivada. A


segunda não é, em termos artísticos, inferior à primeira. São
apenas diferentes. A prova mais peremptória da não-inferioridade
da literatura derivada, temo-la em T.S. Eliot. Poeta do porte de
um Rilke, esta dimensão diz tudo quanto se pretenda dizer de
Eliot: altíssimo poeta. E o autor dos Quatro Guartetospevmitiz-
se, inclusive, indicar e glosar as suas fontes.
Já numa carta dirigida a Mário de andrade, em 14 de
dezembro de 1925, Carlos Drummond de Andrade dizia que a
poesia de Oswald “peca por pobreza de processo”. E mais
categórico: “É tecnicamente mal constituída”.
Todo mau poeta é mau pensador. E Oswald tinha o
péssimo hábito de não indicar as suas fontes as quais não ia.
Preconizando uma poesia primitiva, Oswald a batizou de
Antropofagia.
A antropofagia pressupõe o canibal, o qual é o supremo
grau do primitivismo atribuível ao espírito ocidental. Os menos
informados pensam que o canibalismo é uma invenção de
Marinetti - invenção de 1922. Ora. bem. Em 1916, o romeno
Tristan Tzara, numa tarde de 8 de fevereiro daquele ano, no
terraço do Café Voltaire, em Zurique, cria a palavra Dada, de
onde o dadaísmo. Que é Dada ? perguntaram-lhe. “Não é
nada” respondeu. Não se depreenda daí que os dadaístas
tivessem sido uns alienados. Bem pelo contrário: tinham posição
claramente assumida. Os dadaístas uniram-se ao espartarquismo,
o belo movimento comunista alemão liderado por Rosa
Luxemburgo.
Se o espartarquismo não tivesse sido brutalmente
esmagado pelos junkers, o pólo irradiador do socialismo não
teria sido a Rússia, mas um país ocidental: a Alemanha. Então,
não teríamos tido Stálin. Os dadaístas foram militantes, ativistas:
lutaram nas ruas de Berlim e de Colônia ao lado dos espartaquistas.
E o diretor do órgão oficial dos dadaístas na Suíça, um senhor

O.V, v 31
de sobrenome Beargelf, fundou em Colônia o Partido Comunista
da Renânia. Sob a reação brutal de Hindemburgo contra as
esquerdas germânicas, os dadaístas entraram em coma político.
A República de Weimar estava em seus últimos estertores. É
quando aparece Francis Picabia com o seu Manifesto canibale
e a revista Canibale.
A identificação do verbo com er para mencionar a
posse sexual foi uma empulhaçào de Marinetti. O canibalismo,
do qual se fez arauto, a transferiu para o Brasil, com Oswald
de Andrade. Tanto na Antropofagia, como no Pau Brasil, o
índio de Oswald não é o de Montaigne (o bom selvagem
rousseneano). É o primitivo que deglutiu, degustou o Bispo
Sardinha. Que^õ trincou, mastigou, para sentir o gosto e o
sabor da carne humana.
rN o nosso idioma, há quinze verbos que indicam a ação
de. comer. Mas nenhum deles carrega a conotação de posse
sexual. Há até verbos, como o omitir, que se emprega na
linguagem usual, (exemplo: comeu várias passagens do texto).
Outro exemplo: (Comeu - empregado como sinônimo de
dissipar) com toda a herança. Ele ainda substitui o amofinar-
se (comia-se de ódio). Das quinze acepções do verbo comer
somente uma aponta para a cópula, quanto se cria uma relação
sexual entre devorador e devorado.
Em Gli amori futuristi, série do contos do clown do
futurismo, é permanente a ligação sadista entre o seviciador e
sua vítima. Marinetti se esmera em descrever as perversões
sexuais “canibalescas", com as quais o ideólogo do fascismo
italiano se delicia. Talvez não seja demais ver em sua apologia
do canibalismo a apologia dos métodos políticos adotados por
Mussolini - o de triturar os seus adversários políticos. O caso
de Antônio Gramsci é exemplar. (Triturar está implícito na
ação de comer).
Mário de Andrade, o único dos modernistas a deixar uma
obra importante como Música de feitiçaria, Danças dramáticas
do Brasil e o ensaio pioneiro sobre o Aleijadinho, sem falar no

32
Macunaíma, não soube evitar um ligeiro Jlirtcom Marinetti. Mas
cedo libertou-se desta brotoeja. Já o “papa” da Semana, Oswald
de Andrade, foi diferente. Apesar das origens internacionais da
Antropofagia, mamando mas não confessando a sua prosa no
carioca Adelino Magalhães de Visões, cenas e perfis (Rio,1918),
Oswald preferiu o charlatão James Bumham aos grandes nomes
da história da filosofia, quando não tecia loas à poesia de Catulo
da Paixão Cearense. Por que Oswald omitiu a influência da
Engole homem, de Adelino, uma estória de D* Lálá?
O julgamento definitivo da Semana foi feito por Mário
de Andrade, há meio século: “Eu creio que os modernos da
Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a
ninguém. Mas podemos servir de lição”.
De exemplo e lição servem os romancistas do Nordeste
- Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Raquel de
Queiroz, Amando Fontes. Que personagem de Oswald chega
sequer à sombra de Vitorino Papa Rabo ou do Mestre Severino?
De Caçulinha ou de Fabiano? Do negro Balduíno? Para
achincalhar esses romancistas, Oswald de Andrade os chamou
de “búfalos do Nordeste com os cornos na questão social”.
Não é missão dos escritores dar solução aos problemas,
sim revelá-los. Não dar importância às questões sociais, isso era
lá com Oswald. Mas há outra coisa: acontece que os búfalos,
bois selvagens principalmente da índia, em 1922 não existiam
no Brasil. Tanto que na Exposição Internacional comemorativa
do primeiro centenário da Independência, um casal deles foi
exposto para que o povo urbano os visse. Só muito depois
passaram a ser criados na Ilha de Marajó, Pará, Foz do Amazonas
e, mais recentemente, nos pântanos do Vale da Ribeira, em São
Paulo. A ignorância do frustrados, romancista de Março Zero
tinha o tamanhcTde sua arrogância.—Erahufalina.
Como bufalina, apesar da possível boa intenção de
seus organizadores foi a exposição sobre a Semana com a qual
o Centro Cultural Banco do Brasil comemorou os 70 anos da
Semana de Arte Moderna. Em 1922 iniciou-se, com a epopéia

33
dos Dezoito do Forte - Siqueira Campos, Eduardo Gomes,
Newton Prado, o civil Octávio Corrêia, o cabo Reis e demais
companheiros de jornada homérica- o inconformismo brasileiro
contra uma forma de Estado que se sobrepunha à sociedade
civil e defendia as grandes questões nacionais como “questões
de polícia”. A Semana passou ao largo desse inconformismo.
Não se preocupou com os problemas do povo brasileiro que eram
problemas de miséria e fome. Movimento elitista, politicamente
reacionário, contentava-se com o champagne com o qual a
família de Paulo Prado regava o seu playboyismo. Não há por que
exumá-los. Este país quer vida - quer viver, sentir-se vivendo.
Chega de máscaras mortuárias tomando o lugar e a vez de
quantos sejam capazes de produzirem a glória de viver.

Revolução, teu verdadeiro nome é cultura

Os anos 20 foram de forte agitação nacional. Do


Amazonas ao Rio Grande do Sul, passando pelo Centro-Oeste,
o Brasil estava sob grande efervescência política e social. A
República Oligárquica, inaugurada por Campos Sales com a sua
“política de governadores”, entrava em catatonia. Realizando-se
nos dias 13,15 e 17 de fevereiro de 22, a Semana, apesar de todas
as suas omissões, erros e contradições, apontava para o
inconformismo civil. No dia 5 de julho irrompe o inconformismo
militar com o levante do Forte de Copacabana, no Rio. Siqueira
Campos e Eduardo Gomes escrevem com o próprio sangue nas
areias da praia de Copacabana a epopéia dos 18 do Forte. Oito
anos depois, A república dos latifundiários rui. Ela já estava na
contramão da história. Mário de Andrade, mariano - filho de
Maria - puxava procissões. E Oswald de Andrade escrevia poemas
de louvor a Júlio Prestes, governador de São Paulo eleito, a bico
de pena para a presidência da República. Assume o poder Getúlio
Vargas, latifundiário gaúcho que aliava ao caudilhismo inato a
herança ideológica de Júlio de Castilhos, precursor do fascismo
no„ Brasil.

34
A verdadeira noção de revolução, que não inclui
necessariamente a idéia de insurreição, não se confina no campo
social e econômico. O nome de uma autêntica revolução é
cultura. Ela faz a vida dos homens, e os homens a fazem viva.
Enquanto não criarmos uma cultura autônoma, viveremos na
contramão da história.

Inventário

Setenta anos da realização da Semana da Arte Moderna


- ocorreu nos dias 13,15 e 17 de fevereiro de 1922 - justificam
um balanço dos seus propósitos, um exame das idéias que a
animaram e a verificação de suas conseqüências para a cultura
brasileira. Sexagenária, ela soa as trombetas do Juizo Final.
Quando a Semana completou 50 anos, o general Médici,
ditador de plantão, a incorporou ao calendário do putsch que
instaurou no país o poder militar discriminatório. É hoje data
oficial e oficiosamente celebrada nos altos círculos da collorida
República das Alagoas. Como nenhum dos então jovens autores
da Semana tinha qualquer parentesco com Matusalém, nao há
sobreviventes na capital bandeirante. Mas há os documentos
que deixaram - manifestos, artigos de jornal, discursos
pronunciados em banquetes, entrevistas, cartas, etc.
O grande erro do movimento nasceu de um pecado
original: nao tinha base filosófica, como agudamente notou
Amadeu Amaral. A esta falha os modernistas juntaram outras, de
não m enos gravidade. Consideravam que o espírito
revolucionário é incompatível com a consciência histórica. Sem
nunca terem lido Ludwig Feuerbach, adotaram uma sua falsa
lição: foram refratários ao princípio da historicidade. Ora,
história significa desenvolvimento e, por isso, ela não elimina
os vínculos entre o passado e o porvir - o presente e o futuro
são elos de uma cadeia em que se interperietram o passado, o
presente e o futuro. Eram a-historicistas, anti-historicistas. Por

35
isto trataram o curso da história como um patologista trata
uma tênia. Leibniz, que foi o filósofo que colocou o maior
número de questões na história do pensamento reflexivo,
sustentou o princípio da continuidade em todas as coisas, quer
dizer: não desprezou a tradição em nome do novo.
O ano de 22 foi, na capital bandeirante, um período de
grande agitação ideológica, portanto fermentação intelectual.
A capital paulista começava a se industrializar. Abrigava um
número imenso de imigrantes europeus - espanhóis,
portugueses, italianos, húngaros etc. Todos eles portavam
ideologias anti-capitalistas. Eram anarquistas, anarco-
sindicalistas, etc. Um segmento deles foi formar o Partido
Comunista. Em 1917, o ano da Revolução Soviética, o operariado
bandeirante paralisa, com greve monstra, a Paulicéia, à qual
Mário de Andrade deu o emblema de “desvairada". Na Europa,
entre o grupo Clarté, que reunia Romain Rolland, Anatole
France, Vaillent-Couturier, etc. Uma versão desse grupo em
São Paulo foi o grupo Zumbi organizado por Afonso Schmidt,
uma espécie de Gorki brasileiro. Participaram ainda da
organização, Maximiniano Ricardo, Silvio Floreal, Edgard
Leuenroth, Andrade Cadete, Everardo Dias, Astrojildo Pereira
e Raymundo Reys. Seu objetivo: a formação de uma “consciência
proletária”. Os rapazes de 22 passaram ao largo dessa onda de
agitação social e esperaram cinco anos para sairem da toca.
. Sairam. E-foram se abrigar nos salões da família
Prado, barões do café, o creme da plutocracia bandeirante.
Ali faziam as suas “tertúlias” literárias. A esse salão correspondia
no Rio o de dona Laurinda Santos Lobo, usufrutuária da
Matte-Laranjeiras, uma companhia multinacional - argentina
e brasileira - que explorava a erva mate, em Mato Grosso, e
pertencia a seu tio Joaquim Murtinho. Para que se tenha uma
idéia do que era a Mate: lá imperava o direito de pernoite.
Quer dizer: a moça que se casava tinha de ceder a sua
virgindade ao capataz-mor da fazenda. Bem, Murtinho,
engenheiro c médico homeopata, foi ministro da Viação, na

36
primeira fase do governo de Prudente de Moraes e, depois,
ministro da Fazenda do presidente Campos Sales. Darwinista
social, homem de negócio, Murtinho não tratava das causas
mas dos efeitos da crise econômico-financeira em que então
estávamos adernados. Para combater a deflação, comprimiu
brutalmente os investimentos públicos, aumentou ferozmente
os impostos, pregou e promoveu o afastamento do Estado de
qualquer atividade que pudesse implicar na retomada do
desenvolvimento e na dinamização das forças produtivas.
Transferiu para a iniciativa privada os encargos e iniciativas
que caberiam ao governo. Acabou arruinando as incipientes
atividades industriais, não diversificou a produção agrícola e
nos manteve atados à monocultura, quer dizer - privilegiou o
latifúndio. Quebrou o Banco da República, que era o Banco do
Brasil da época. Faculdades de ensino superior, tirantes, as de
Direito e as de Medicina, só existia uma para a formação de
engenheiros e técnicos. Era a Politécnica, no Rio. Como
Murtinho sustou os investimentos públicos, formandos e
formados da Politécnica ficaram sem emprego. Com esses
métodos acabou saneando a moeda, mas praticamente parou
o país e lançou a população na miséria.
A Epitácio substitui Artur Bernardes.
Abre-se o ciclo de incorformismo, civil e militar. No dia
5 de julho de 1922 Siqueira Campos levanta o Forte de
Copacabana e escreve, nas areias da praia carioca daquele
nome, a epopéia dos Dezoito do Forte. Há quem pretenda ligar
a rebelião de Siqueira e Eduardo Gomes à Semana, que a
precedeu. Entre os dois movimentos o que havia de comum era
a atmosfera política e as tensões sociais que angustiavam a
nação inteira. Nada mais que isso.
A Semana encontrou o país numa fase pré-
revolucionária, ansiosa por se livrar da carga da República
Oligárquica. Como movimento adstrito à capital bandeirante -
não chegou ao resto do Estado, e muito menos dela a nação
tomou conhecimento.

37
Quando irrompeu o modernismo paulistano, na
Europa, o movimento intelectual e artístico mais poderoso
era o Expressionismo. Ele envolvia as artes verbais, as artes
visuais, o teatro, a dança, a música, o cinema. Contaminou a
filosofia - veja-se Ernest Bloch - , a cenografia, a teosofia, e
inclusive um de seus participantes criou um método de
transcrever as danças - o balé - de forma que ele podia ser lido
como se lê um texto literário. No Brasil, chegou como o lituano
Lasar Segall e Anita Malfati. Foram mobilizados inicialmente
pelos rapazes de Dona Veridiana e de Paulo Prado.
Embora nao participasse do movimento Segall e
Portinari foram coetâneos de Mário, Oswald, Menotti, etc. De
Segall fala-se quase que só do Navio dos imigrantes, omitindo-
se as suas pungentes telas sobre o Mangue carioca e suas
prostitutas. Portinari, talve^ mais puritano do que ele, não teve
olhos para ver a miséria do mais repulsivo mercado do sexo,
que só acabou quando o prefeito Henrique Dosdworth rasgou
a Avenida Presidente Vargas na altura em que está hoje o
Sambódrpmo.
Talvez a maior contradição da Semana_íoi-*ter tomado
por “guia iluminado” Marinetti, escritor de terceira classe, e
caixeiro-viajante de Mussolini. Mas se até Maiakovski o
s reverencioi^! c »
" Seria injusto dizer que dos autores da Semana nada
ficou. Ficou sobretudo o M acunaíma, de Mário de Andrade.
E o Martim-Cererê de Cassiano Ricardo. O Ju ca Mulato, de
Menotti, é uma espécie de Ceia dos cardeais, de Júlio Dantas,
com respingos melífluos de Catulo da Paixão Cearense.
Mário era um intelectual e um homem sério, ao
contrário de seu ex-amigo Oswald de Andrade, que se
declarou “palhaço da burguesia”. Mário era tão sério que,
passados os anos, na Elegia de a b riito nfèssou que eles, os
da Semana, não eram exemplo para ninguém. Não teve medo
de dizer a verdade.

38
O utros e n s a io s
A revolução ro sea n a

Desde 1946, quando apareceu Sagarana, fazendo


estrem ecer com o seu poder onírico e sua força épica a
consciência literária brasileira, que todos falamos na
revolução G uim arães Rosa. Mas até hoje essa revolução
guimaroseana não foi definida, senão pelos seus aspectos
mais ostensivos - a dimensão formal.
A prosa de Jo ã o Guimarães Rosa irrompia das
páginas de Sagarana com tão terso e tenso e intenso poder
de visualização, tão vigoroso, frêmito, plástico e uma tão
numerosa multiplicidade de timbres, ritmos e acordes, na
sua musicalidade polifônica, que a crítica, num primeiro
lan ce de abord agem , não p od eria d eixar de ficar
impressionada com a com plexa estrutura formal sobre a
qual repousa, dinam icam ente, a ficção de Guimarães Rosa.
Surgiram, então, com Oswaldino Marques, Cavalcanti
Proença, Eduardo Portella - para citar apenas alguns - os
primeiros ensaios de análise formal, uns baseados nos
métodos da estilística, outros utilizando os processos do
new crilicism . Eu mesmo, servindo-m e dos instrumentais
da Schallanalyse, abordei vários aspectos sônicos da prosa
roseana. Nessa ocasião coube a Paulo Rónai, num magistral
ensaio publicado na imprensa carioca em julho de 1946,
cuidar pioneiramente de uma das dimensões singularíssimas
da arte de Guimarães Rosa, a sua técnica de narrar.
Estilo in opere, incoagulável, reinventandla-se pm
incessante dinâmica, esse estilo fizera explodir a linguagem
consuetudinária, desarticulando a sintaxe tradicional,
subvertendo a semântica dicionarizada, fazendo ir pelos
ares tudo quanto havia de estratificado na nossa dicção
literária. Ensinam os formalistas russos que quando um
crítico se está aproxim ando do valor de uma obra literária,
é a palavra, com o tal, que importa. Nessa fase do trabalho
crítico, é a orquestração - para empregar outro conceito
dos formalistas russos - , o quer dizer a qualidade fônica
do texto literário, que se mostra mais susceptível de
investigação. Pelas suas feições sonoras, geradas pelo uso
das a lite ra çõ e s, c o lite ra çõ e s, a sso n ân cias, rela çõ es
hom ofônicas, em síntese, pela sua sym phonic structure,
Sagarana oferecia ao crítico amplíssimo campo a ser
devassado. E essa pesquisa continua sendo feita até hoje,
por críticos da alta com petência de um Augusto de Campos
e um Haroldo de Campos.
Quando dez anos depois do aparecim ento de
Sagarana surgiram Corpo de baile, ciclo de novelas, e
G rande sertão: veredas, saga do Brasil medieval, os
sismógrafos da crítica registraram duas novas convulsões
no nosso raso território literário. Se, em Sagarana, a
entidade suprema tinha sido a frases em Corpo de baile e
em G rand e sertão: veredas a tôn ica revolucipnária
deslocava-se da estrutura frHSéòtógiea parà ã unidade da
palavra. A revolução roseana passou, nos dois livros, a se
operaf no interior do vocábulo. A palavra perdeu a sua
característica de termo, entidade de contorno unívoco,
para co n v erter-se em p lu rlssig no, realid ad e m qjti-
significativa. De objeto de uma só camada semântica,
transformou-se em núcleo irradiador de policonotações. A
língua roseana deixou de ser unidimensional. Converteu-

42
se em idioma no qual os objetos flutuam numa atmosfera
em q u e o significado de cada coisa está em contínua
mutação. É ver, por exem p lo, as num erosas cargas
semânticas com as quais se apresenta a palavra sertão -
# realidade geográfica, realidade social, realidade política,
dimensão folclórica, dimensão psicológica conectada com
o subconsciente humano, dimensão metafísica apontando
para as surpreendentes virtualidades dem oníacas da alma
humana, dimensão ontológica referida à solidão existencial
- infinitas possibilidades significativas.
Ainda aqui, mesmo diante desta revolução dentro
da revolução guim aroseana, a crítica continuou voltada
para os problem as lingüísticos, filológicos, estilísticos da
obra do genial escritor brasileiro, a mais poderosa
organização literária que o Brasil já produziu ao longo de
toda a sua história cultural, a história do espírito brasileiro.
O rgulho-m e de haver rom pido essa barreira
formalista, com quatro ensaios publicados no Correio da
M anhã - Corpo d e baile (ed ições de 14 de março e de 12
de maio de 1956), Estudos sobre G uim arães Rosa (edição
de 15 de fevereiro de 1958); e As epígrafes (edição de 25
de outubro de 1958). E ainda outra nota, cuja data agora
me escapa, em que à classificação de barroco dada a
Guimarães Rosa, pelo admirável Cavalcanti Proença opunha
a de flam boyant, categoria estética mais em consonância
com o acorde de sím bolos de G rande sertão.* veredas -
concordância não só artística com o também com o tempo
histórico refletido na epopéia roseana: o do fim da nossa
Idade-M édia se rtâ n ica . A brindo a trilha da crítica
conteudística, mostrei com o o tema faustiano (o pacto
com o diabo) permeava todo o G rande sertão - tese que
depois foi, para honra minha, endossada por um mestre da
estirpe de Antônio Cândido e um crítico da categoria de
Roberto Schwarz.
A revolução roseana que, de início, deixara em

43
perplexidade grandes parcelas da inteligência brasileira,
p re cisa m e n te aq u ela em qu e p red o m in a o ran ço
conservador, lentam ente com eçou a criar uma.crítica e um
auditório predispostos não só à sua avaliação estilística
com o ainda em erigir em padrões (os inefáveis epígonos)
os valores que nela se inserem. Sobre a possibilidade e a
fatalidade desta ocorrência, tínhamos aviso em Bergson
quando, em Les d eu x sources d e la m orale et de la religion,
lançou a grande lei da reversibilidade da obra genial,
segundo a qual a obra-prima suprema, depois de nos
deixar perplexos, cria pouco a pouco “só por sua própria
presença, uma concepção de arte e uma atmosfera artística
que permitam com preendê-la” - e, por via deste fato, a
obra que antes era tida por agressivamente nova passa a
ser retrospectivam ente clássica. Exatamente o que Proust,
que era bergsoneano, disse de Beethoven: os últimos
quartetos de Beethoven criaram o público dos últimos
quartetos de Beethoven.
Creio que cabe agora a pergunta fundamental: em
que consistiu a revolução roseana? Foi uma revolução
lingüística, de tipo joyceano, ou a sua revolução estilística
é apenas uma revolução dentro de outra revolução ainda
maior?
Os escritores brasileiros progressistas, portadores
de flama Tenovadora e espírito em ancipador, sobretudo a
partir de Euclides (Os sertões), todos eles, sem exceção,
escreveram suas obras sub specie historiae. De onde
^ serem , tod os os grandes livros b rasileiro s, “livros
vingadores”, para usar uma expressão euclideana. Antes
de Os sertões, “livro vingador” foi o seu grande antecipador:
O A teneu. Por terem sido “livros vingadores”, todos esses
livros reelaboraram matéria do tempo presente, o tempo
atual à sua criação. Repito, foram obras escritas sub specie
tempo ris.
A grande revolução guimaroseana consistiu em

44
romper dialeticam ente (conservá-la, ultrapassando, no
conceito hegeliano), essa forte tradição da inteligência
brasileira.
Jo ã o Guimarães Rosa pensou e escreveu a sua obra
«sub specie perfectionis.
~Estã~a~sua gigantesca revolução, que até hoje
sequer foi suspeitada pela crítica nacional. E porque ela
n ão foi s e q u e r su s p e ita d a , d esse fa to d eco rrem
incom preensões que partem, inclusive, dos setores mais
avançados de nossa cultura.
A tese que aqui propom os não pode ser esgotada,
em todas as suas im plicações, num singelo ensaio. Mas,
ainda assim, tentem os uma aproxim ação sumária.
Toda literatura, escrita sob o signo direto da
tem poralidade, é m im ética, im itativa, kodaquista -
reprodução mais ou m enos bruta da realidade contingente.
Presidem-na os brocados A rssim ia naturae; e Ars im itatur
naturam . Mas os que tomam estas duas regras de mimesis,
tomam-nas errado. A arte imita a natureza, sim, mas não
copiando a natureza, reproduzindo a natureza. Ela a imita,
não m acaqueando-a, mas agindo por processos idênticos
- criando formas mentais com o o universo físico cria
formas naturais. E, por que isto? Porque, com o dizia
Bacon: - Homo additus naturae. Esse poder do homem, a
que se refere Bacon, no trabalho do aitista que assume a
sua máxima expressão, pela força de criar uma outra
natureza, dentro do universo natural. Esta outra natureza
tem o nome de universo h u m a n o -a subjetividade, a nossa
intimidade com o indivíduo; o da com unidade social em
que inserimos a sua existência e o seu destino.
Nada repugnava mais a Jo ã o Guimarães Rosa do
que a literatura que despoja q flbmem d óãtribu tcf cfe sua
transcendência. Por isto é absolutam ente faisocÕTfrp^rá-lo
a Jo y ce, cuja subversão vocabular só abre cam inho ão caos
e ao niilismo. No caso, a aproxim ação formal é mera

45
coincidência - manifestação que não se refere ao essencial.
Jo y ce era o jubileu do irracionalism o. Rosa, o contra-
irracionalista. Toda a obra roseana enquadra-se numa
categoria diam etralm ente opósia - a categoria goetheana
do erzien h u gsro m a n : o rom ance de educação espixitual.
O rom ance de Thom as Mann. O rom ance de Hermann
Hesse - o H esse, sobretudo, de Das G lasperlenspiel, o
Hesse que nos ensinava que “no pecado já coexiste
sem pre a graça; na criança, o velho; no agonizante, a vida
etern a”. Assim não fosse, e com o poderíam os exp licar a
presença do tema da “suspensão dos julgam entos”,
informando toda a ficção de Rosa? Não fosse assim, e
com o com preender a vontade para os valores (W ille zum
Wert) que ilumina as suas novelas, estórias e o G rande
sertão?Penso em Hõlderlin: “Aquele que ama as realidades
mais profundas amará também o que há de mais vMVOHfia
vida”. Este é o amor pânico de Guimarães Rosa. Por isto
há na sua obra constante referência à religião. Mas a
religião, para ele não era matéria teológica, sim intuição
e sentim ento do universo: o mundo e, nele, a radiosa
averTtufãTíümanaTXpbfa de R o s a ,p a rá q i^ m á saijtstlêr,
f ü m afõ que busca a santidade do honiem . Como
Radem acker, poderia dizer e o disse em term os de ficção:
“O mundo contem porâneo na realidade está reclam ando
um novo tipo de santo - de um santo bem deste mundo,
com o um tipo de homem que saiba reunir e harmonizar
em si todos os diferentes lados nobres do ser humano,
conservando-lhes a sua respectiva altura em dignidade”.
Porque esta era a edificação humana a que aspirava, os
valores mais presentes à sua obra são a coragem , a
alegria, o amor. É abrir G rande sertão. “Carece ter
coragem . Carece ter muita coragem ” (pág. 109). O “vau
do mundo é a alegria. Vau do mundo é a coragem ...
(pág.301). “Deus é alegria e coragem - que ele é bondade
adiante” (pág. 309). “Tu não acha que todo mundo é

46
doido? Que um só deixa de doido ser é em horas de sentir
a com pleta coragem ou amor?” (pág. 575).
Criador de mundos m ágicos, de universos em que
se travam lutas ép icas, de dem ônios, de santos, de
loucos, de titãs, de fadas, onde foi buscar os seus grandes
personagens? Entre as crianças açoitadas pelo sofrim ento
- Miguilim, Dito - os pré-seres, os seres de consciência
ainda incriada - Urugem, Jo an a Xaviel, Gorgulho, Qustraz
ou Q u alhacoco, G uégue, Chefe Zequiel, Nominodômine,
Ju bileu Santos Ó leos, Nhorinhá, a estupenda Doralda, os
seres empurrados para as grotas do mundo, os humilhados
à espera de redenção.
Antes de Guim arães Rosa o rom ance brasileiro era
uma sinistra galeria de heróis frustrados - “galeria
p estilenta”, cham ou-a Mário de Andrade. Com João zin h o
Bem -Bem , Riobaldo, Diadorim, Medeiro Vaz, Jo c a Ramiro
.. -o "'T1 v ',V
*

' surgiram os prim eiros heróis resolutos da literatura


brasileira. E não só heroísm o individual. “A vida h eróica;
o heroísm o com o lei da ex istên cia” - com o observou
agudam ente Afonso Arinos, no discurso de posse na casa
de Machado de Assis, na noite de 16 de novem bro de
1967.
Escreveu-se, por motivo da morte dramática de
Rosa, terrivelm ente trágica para o Brasil, que “ao contrário
da m aioria dos grandes escritores con tem p orân eos,
Guim arães Rosa era singularm ente não en gajad o”. Visão
errada, por superficial. Leiam sua novela O m au hu m o r
d e W o ta m , t r e m e n d a a p ó s t r o f e à A le m a n h a
nazista. Dante Costa, num penetrante capítulo de Com
os olhos nas m ãos (R io, 1960) fez a prova m inuciosa da
m ensagem revolucionária da obra de Rosa: a denúncia da
miséria brasileira, a revelação de um quadro que, pela
sua sim ples am ostragem , exige mudança profunda. Ou já
esqu ecem os a crítica de Marx ao rom ance d e tese? Ou
esquecem os a lição de Engels, segundo a qual a mensagem

47
revolucionária deve emergir da situação descrita, sem
que a ela se faça referência de m aneira explícita!
Para se justificar a acusação de escritor alienado,
articulada contra Rosa, recorda-se que seu pensamento era
de origem platônica, plotiniano, místico. Em primeiro
lugar, recordemos Lênin reconhecendo em Tolstoi um dos
profetas da Revolução de 1917. Em segundo, ainda Lênin
dizendo: “É preciso sonhar”. Em terceiro lugar, recordemos
que, depois da experiência nazista, o conflito idealismo
versus m aterialism o foi su bstitu íd o p elo co n flito
irracionalismo yersus racionalismo, o qual está no cerne da
crise do mundo moderno. As filosofias não se voltam
contra o homem: elas estão apenas “de cabeça para
baixo”. As irracionalistas, estas, sim, são as que ameaçam
a humanidade. No caso completo do platonismo: qual o
problema essencial do pensamento de Platão? O da
felicidade e o da desgraçada vida humana. E qual o fim da
vida? A busca do bem verdadeiro. A melhor vida é a que
assegura a harmonia e o equilíbrio entre o indivíduo e a
cidade. Desta forma, a vida moral não é uma renúncia a si
mesma, mas a realização de si mesma (Milred Simon).
Platão tem o grande mérito de pôr em evidência a unidade
do problema moral e do problema político. Ora, um
escritor formado ao influxo do pensamento de Platão ou
de seus sucessores, Plotino ou Porfírio, não pode ser um
escritor desengajado.
O ideal que informa a arte de Guimarães Rosa é o
do homem harmonioso. Ele sabia que o ser humano não
se desenvolve por igual, nele ficando amplas áreas de
sombra a serem iluminadas. De onde a perversidade, o
crime, - os seres incompletos, que povoam a sua ficção.
Por isto, acreditava na salvação do homem, através do
aperfeiçoam ento da consciência individual. Poderia
repetir, como Goethe: “De que me serve fabricar um
bom ferro se o meu interior está cheio de escória?”

48
A partir desta angulação, não é possível falar
nem em desengajam ento, nem em alienação. Qual o fim
supremo do marxismo? A criação do homem integral.
O fato de Rosa acreditar na eficácia da vida ética
n^o o co lo ca entre os escritores reacionários ou
indiferentes. Se ele escolheu essa via, era pelo horror
que lhe inspiravam o caos, a desordem, a anarquia. A
sua aversão ao nazismo, da qual é documento O mau
hum or de Wotam, e do qual fala o seu comportamento
de diplomata protegendo os proscritos de Hitler, era
total. Dizia-me: - “O nazismo, Franklin, é o D em ônio.”
Aversão que sentia também pelo regime capitalista, -
fato que revela que ele sabia que o fascismo é impensável
dissociado do império do dinheiro. Ainda na manhã,
quando me foi buscar em minha casa para ler-me o seu
discurso de posse, ma Academia Brasileira de Letras
recém -concluído, renovou-me tais declarações. A sua
crença profunda no poder da arte para transformar o
indivíduo, o seu desejo de que a poesia fosse incorporada
à vida humana e não vivesse apenas no papel; que a
vida, ela mesma, se transformasse num poema contínuo,
numa realidade encantatória - esta crença só a poderia
ter um marxista in natura. E eis o que Rosa foi, na sua
verdade mais subterrânea. É fácil com preender esta
afirmativa, quando pensamos nos motivos goetheanos
que informam a estética m arx-engelsiana. (Ver, a
propósito, Peter Demetz, M arx,Engels u n d d er dichter,
München, 1959).
Recordo um episódio. No dia primeiro de outubro
deste ano de 1959 tivemos uma longa conversa, de mais
de quatro horas sobre a sua obra, a partir de Prim eiras
estórias e de Tutaméia. Sustentava eu a tese de que
sendo um tem peramento épico, a sua arte precisava de
espaço para se realizar em toda a sua plenitude. Que ele
deveria voltar às novelas espaciais, da primeira fase. O

49
d eb ate ganhou ard en tes d im en sões, com o sem pre
acontecia em nossos diálogos. A certa altura d isse-lhe
que tem ia que a sua busca da prosa p u ra pudesse ser
levada a extrem os, co n ter-lh e o poder de com un icação.
O bservei-lhe então que a prim eira frase de T u ta m éia -
“A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve
ser contra a H istória” - tal com o estava form ulada
poderia ser utilizada pelos que o acusavam de esoterism o
e de alienado. O problem a da alien ação preocupava-o
profundam ente. Fom os veem entes, na discussão, mas
encerram os, d eixando-a em suspenso. Três dias depois
(4 de ou tu bro) m andava-m e um bilhete em versos, com o
sem pre fazia, pedindo que o cham asse no Itam arati. E,
no fim do b ilh ete, dizia: “ E, pois, m u d a n d o de prosa-. /
o “A estória con tra a H istória, / Você, p erju ro de Glória,
/ acho q u e não en ten d eu . / “H istória, ali, é o fa to
passado / em reles co n ca ten a çã o ; / não se refere ao
avanço da d ia lética , em fu tu ro , / na vastidão da
am plidão. / Traço e a b ra ço . Jo ã o ”.
A dúvida, suscitada por uma d eficiên cia de
form ulação, se desfizera. D isse-lhe isto, e mais: que,
nesse nível, a arte tinha que estar em reb elião contra a
história, entendida aqui com o a “p ré-h istória", da qual
se fala na filosofia da práxis.
A exp eriên cia artística, levada ao mais alto grau
de intensidade, desdobra-se em exp eriên cia m ística,
observa Sullivan. Foi o caso do B eethoven dos Últimos
q u a rte to s , n o s q u a is a tin g iu a s e r e n id a d e do
con h ecim en to sobrehum ano. Tam bém , tal a exp eriên cia
de Rosa, banhada nos últim os tem pos, de uma luz
celestial. Ela lhe custou sofrim entos e atrozes, torm entos
inenarráveis. Já se disse que “Rosa foi a imagem do
artista com o santo: imolou a sua vida à sua arte”.
A ,sua_ o b ra-to d a, ela compgiidia—a jh is tória da
realização heróica. É a contínua apologia das virtudes

50
heróico-ascéticas. Parece dizer, e o diz, a cada momento:
as virtudes supremas são a contem plação e a açãò. A
contem plação mais perfeita - ou santidade. A ação mais
perfeita - ou heroicidade. Pauta e clave do mesmo canto:
não há santidade sem heroicidade. Não há herói possível
‘sem um fundo interno de contem plação - sem uma
orientação, uma vontade, uma determ inação de realizar os
valores.
Na literatura brasileira, escassa de pensam ento,
epidérm ica, a grande revolução foi criar sub specie
perfectionis - projetar no espírito humano a imagem da
vida possível de ser vivida segundo as leis da alegria e da
beleza, sob o império da poesia incorporada à existência
humana, e não com o realidade externa ao homem, alienada
de seus destinos.

51
»
Graciliano Ramos

Conheci Graciliano Ramos, em 1938, ano em que


desembarquei no Rio, vindo de São Luiz do Maranhão,
depois de doze dias de viagem, no Comandante Ripper.
Naquele tempo, a Livraria José Olympio era o grande
centro da vida cultural brasileira. Funcionava na Rua do
Ouvidor, quase esquina da Avenida Rio Branco. Aí pelas
onze horas da manhã já era fácil encontrar Graciliano,
sentado num banco, ao fundo da loja, fumando quase sem
cessar, falando pouco, voz baixa, olhos vivos - sua arma
de penetração psicológica - por trás dos cristais dos
óculos, de aros finos, escuros. Quase sempre calado,
sério. José Lins do Rêgo chegava, faiscante de humor,
fazendo um barulho de todos os diabos. Vozeirão enérgico:
- “Êta, cabra da peste!”, dito, redito em fala perpassante
de Nordeste. Volta e meia soltava uns urros, e explicava:
- “Estou dando as horas”. (Assim se diz no Nordeste,
quando o jumento zurra). Meninão grandé, coração
explodindo de generosidade, todo alegria - alegria imensa,
contagiante, de repente ia se apagando. Zé Lins começava
a sentir estranhas dores - era a monomania da doença -
e fechava-se em duro silêncio. Ia embora. Vezes vinha
Lúcio Cardoso, misterioso, soturno, como que emigrado

53
de uma cidade morta ou assassinada. Lá estava Marques
Rebelo, no ponteio do riso. Um dia trocou tabefes com
Osvaldo Orico. Também, rápido vinha, rápido saía, Amando
Fontes, pouco falante. Algumas vezes Gastào Cruls, piteira
enorme, alto, aloirado, ar de naturalista em férias. Sempre
Tomás Santa Rosa, voz mansa, cigarro permanentemente
na boca, uma alegria calma, sempre com pouco dinheiro,
porém sempre repartindo-o. Aberto luminosamente à vida
- d e resto, com ela acamaradado. Poucas vezes vi ali Jorge
Amado - sempre apressado, vestindo roupa de cores as
mais esquisitas, mal ajambrado. Com algo da mobilidade
de um conspirador (era Estado Novo), ou de autor em
constante andança p ra colher material. Vertendo ira
democrática, Osório Borba, áspero, agreste. Esquivo, Carlos
Drummond de Andrade. Rindo sempre, Genolino Amado.
Cordial, mas sempre intrépido nos comentários, Álvaro
Lins. Um outro silencioso, discreto, secreto: Astrojildo
Pereira. O pessoal da casa, afável, amigo, recebendo
telefonemas, guardando recados. E, lá no fundo, Mestre
Graça. Levantava-se, trafegava entre os presentes, voltava
ao seu buraco quase que como um bicho do mato. Um dia,
a conversa foi sobre o custo de vida, já insuportável.
- “Desse jeito, vamos acabar pedindo esmolas” -
concluiu Mestre Graça. E Otto Maria Carpeaux, fulminante:
- “A quem?!
Magro, moreno tirante a avermelhado, Graciliano
era quase a encarnação de sua prosa - uma prosa
descarnada, óssea, nervos só. Quando o conheci, andava
pelos 46 anos de idade, sofridamente vividos. Nascera (27
de outubro, 1892) em Quebrângulo, confins de Alagoas.
Passara a infância no sertão - na realidade, fora homem
sem infância. Toda ela transcorrera entre duras penas. De
Quebrângulo saíra para Buíque, no sertão de Pernambuco.
Em 1911, volta a Alagoas, Palmeira dos índios, que o tem
como seu prefeito, em 1928. A chata, cinzenta vida do

54
interior brasileiro. Não agüenta. Renuncia ao cargo de
prefeito, em 1930, e se manda para Maceió. Na bonita
capitalzinha do sururu, convive com José Lins do Rêgo,
Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Valdemar Cavalcanti,
Augusto Frederico Schmidt, por volta de 30, montara uma
'editora - a que lançou a primeira edição de Casa g ra n d e
& senzala, além de muitos novos do Nordeste. Schmidt
havia lido um relatório que Graciliano, como prefeito de
Palmeira dos índios, enviara ao governador de Alagoas.
Descobrira o escritor. Não era possível que o autor
daquele papel não fosse um escritor. Virou, mexeu. E
acabou publicando Caetés, romance que Graciliano iniciara
em Palmeira dos índios, em 1925, mas só terminara em
1928. Schmidt acertara. Dera um grande romancista ao
Brasil - o maior do ciclo do romance do Nordeste. Mas, por
várias experiências ainda iria passar Mestre Graça. A
definitiva: a prisão infame, em 1936, a deportação para o
Recife e o Rio, nos porões infectos de um navio, a colônia
correcional, a penitenciária. Depois, o superlivro: Memórias
do cá rcere, o mais pungente depoimento do primeiro
estágio fascista pelo qual passou o Brasil.
Do avô m atern o, Pedro Ferro, g rão-sen h o r
fazendeiro, patriarca do sertão, imponente, barbas brancas
- Graça depois o comparou aos hebreus antigos: Abraão,
Isaac, Esaú - guardou a imagem da resistência: a fortaleza
do espírito. Do avô materno, Tertuliano Ramos, homem da
zona da Mata, do massapê, da terra gorda, mole e oleosa,
a verde terra dos canaviais, desse avô sedentário, doentio,
introvertido, solitário - um sossego q u e os fatos exteriores
não perturbam - possivelmente lhe veio o temperamento
artístico. E, talvez da soma dos dòis, a ambigüidade de sua
obra, marcada tarifo pelo poder de resistência quanto pela
rarefação da vontade. Esta é a ambivalência em que, se
dilaceram os seus personagens centrais. Mas o homem
Graça, este esteve sempre muito mais perto do avô

55
sertanejo: duro, inquebrável. Um senso de altivez que o
levava à solidão mais feroz.
Redator do Correio da Manhã. Sua função: pentear
os textos - isto que hoje se chama copydesk. Uma noite,
parou na leitura de um original, suspendeu a cabeça, ficou
longo tempo parecendo perdido no vácuo. Súbito, rugiu:
- “Outrossim... Outrossim é a ... ”(e soltou o
palavrão).
Saía do Correio, já noite avançada. Os companheiros
que tinham carro ofereciam -lhe carona. Recusava,
obstinado, sistemático. Atravessava a rua, ia esperar,
defronte, o bondezinho que corria, ainda naquele tempo,
pela Gomes Freire, e que o largava na Lapa.
Tinha dias terríveis. Absolutamente trancado em si
mesmo. Inútil falar-lhe. Não respondia, não ouvia. Curtia,
na vida, duas fundas, infecháveis amarguras - cicatrizes
submersas a corroerem o seu existir. Silêncio.
Camus estava no Brasil. Daniel Caetano, redator do
Correio, encontrara-se com ele - para uma entrevista,
creio. À hora do jantar, no restaurante de jornal, disse a
Graciliano do encontro, e de seu entusiasmo pelo autor de
O estrangeiro. Graça estava num de seus dias pra menos.
Ouviu o deslumbramento de Daniel em silêncio. Percebeu
o desapontamento do amigo, resolveu falar:
- “É uma besta.”
Daniel assombrado:
- “Besta? Mas você leu A peste?"
- “Não li, não."
- “Se não leu, como diz que é uma besta?”
- “Não li. Reescrevi.”
Daniel tonteou. Mjis. depois, veio a explicação.
Graça andava sem dinheiro. Jo sé OlympiQ derãrIheJ ei\tão,
o A peste, para traduzir. E essa tradução - não a conheço
- afirmam que é verdadeira obra de recriação literária.
Graciliano não foi apenas um grande romancista.

56
Nele coexistia um crítico literário autêntico. Soube
apontar, com extrema lucidez, algumas das mais graves
dèficiêjicias do romance brasileiro. Por exemplo: a
ausência do dado econômico, na nossa ficção. Observou
que, sempre que lemos um romance brasileiro, temos
v o n ta d e de p e rg u n ta r: m as, de que vivem os
personagens? Diagnostteour de maneira concisa e clara,
i. doença literária que levaria o romance do Nordeste
à morte. Inanição artística. Participou do júri de um
concurso de contos, instituído pela Jo sé Olympio, cujo
prêmio foi disputado por Guimarães Rosa, em 1939,
com Sagarana. Pedro Dantas e Marques Rebelo lutaram
tenazmente pela vitória de Sagarana. A estranha riqueza
verbal desse livro deve ter perturbado Graciliano,
escritor marcado pelas virtudes opostas: as da rara
econom ia vocabular. Hesitou. Uma tortura. Votou
contra. Outra tortura. Esse voto o perseguiu. Escreveu
três pequenos ensaios para explicá-lo. Depois do voto
dado, com eçou a entregar os pontos. Os artigos
espelham essa luta de consciência. Exaltam a arte de
Rosa. E, no último deles, teve a visão profética. Escreveu
que, um dia, Guimarães Rosa escreveria um grande,
absoluto romance. E que, nesse dia, quando ele
chegasse, já não o poderia ler, porque teria dado os
ossos à terra. Em 1956 apareceu G rande sertão: veredas.
Graciliano Ramos morrera a 20 de março de 1953.
Cumprira-se o duplo vaticínio.

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L er Coelho Netto

Aos grandes serviços que tem prestado ao país ao


longo de suas atividades por vezes marcadas pelo
pioneirismo, a editora Civilização Brasileira acrescenta,
agora, a iniciativa de resgatar do esquecimento Henrique
M axim iliano C oelho Netto (1 8 6 4 -1 9 3 4 ), através do
lançamento dos títulos significativos de sua enorme
bibliografia. Ao acionar esse projeto de reedições, persegue
o generoso propósito de criar condições objetivas que
possibilitem a revalorização de, pelo menos, parte da
imensa obra do escritor maranhense.
A história literária não se faz só com grandes
autores e as obras-primas que eles criaram. Ela é uma
paisagem em que, mais do que os_ cumes, predominam as
pequenas elevações que enrugam a lisa superfície das
planícies. Em seu tempo, Coelho Netto foi considerado um
dos nomes mais altos da literatura brasileira. Mas o
equívoco rumor da glória que o cercou não foi lentamente
entrando em surdina. Cessou abruptamente. O escritor,
que inspirava admirações incondicionais, ou admirações
só discretamente pontilhadas de restrições, de repente
viu-se não apenas questionado, mais violentamente negado.
Registra-se, equivocadamente, que a desvalia de
sua obra foi argüida pelos autores salonários da Semana da
Arte Moderna (1922). A assertiva, de curso generalizado,
encontrável inclusive em um ensaísta tão lúcido e exato
quanto Brito Broca, falseia a verdade histórica. A investida
demolidora data de 1919- Nesse ano, em passional artigo
publicado na Revista Contemporânea, sob o título Histrião
ou literato?, Lima Barreto definia Coelho Netto como “o
sujeito mais nefasto que tem aparecido em nosso meio
intelectual".
A página de Lima Barreto não era um ato crítico,
mas uma ata de acusação. De qualquer forma, o romancista
que os rapazes de 22 ignoravam, tinha motivos de ordem
ideológica, agravados por ressentimentos pessoais, para
recusar a arte literária de Coelho Netto. Endossando o
libelo de Lima Barreto, os beletristas de 22 não viram que,
opondo à opulência verbal de Coelho Netto um
despojamento lingüístico que se confundia com a indigência
estilística, estavam praticando um coelho-nettismo às
avessas.
Se entre eles e o autor de A conquista existia esta
extravagante identidade, sob outros aspectos Coelho Netto
revelou-se superior aos modernistas. Os rapazes da Semana
fizeram a sua bulha de 22 em nome do espírito
revolucionário. Que aconteceu em 22?
Poucos meses depois da Semana, nas areias de
Copacabana, os Dezoito do Forte deflagraram, num
extraordinário lance épico, o primeiro protesto - a “crítica
das armas”, diria Marx-contra a República Oligárquica. Os
modernistas estavam, em nome da coerência, obrigados a
emprestar solidariedade a Siqueira Campos e seus heróicos
companheiros. Não o fizeram. Preferiram o silêncio. Mas a
solidariedade da cultura brasileira aos Dezoito do Forte não
afundou no comodismo alienado dos rapazes da Semana.
Ela veio pela voz de um escritor - de quem?
De Coelho Netto que, rompendo o bloqueio que a
censura impusera à imprensa, escreveu a bela página
A aventura radiante, de apologia aos jovens tenentes
de Copacabana. Escrita a página, o Jo rn a l do Brasil, do
qual o romancista maranhense era colaborador, não a
pqde publicar. Coelho Netto não se conformou. Levou-
a a Leônidas de Resende e Pedro Motta Lima, que
dirigiam A Nação, jornal onde defendiam os ideais
revolucionários que tiveram sua expressão espartana
no primeiro 5 de Julho. E foi assim que, nas colunas de
A Nação, apareceu o destemido texto de Coelho Netto.
Não se diga que este é um episódio extraliteráriò.
Não. Ele serve para deixar patente que a cultura
brasileira é uma cultura feita à revelia. Só assim se
explica que um autor de formação e índole conservadora
faça a apologia de um gesto revolucionário, de um ato
de rebeldia política. Como também explica porque um
grupo de jovens escritores que se propunha fazer uma
“revolução cultural”, colocasse a sua proposta sob o
patrocínio de um partido político ultra-reacionário e se
deixasse gratamente prostituir nos salões da plutocracia
paulista.
Tal o caso da Semana de 1922, nutrida à sombra
do PRP e regada pelos magnatas do café. É significativo
que tendo sido Coelho Netto o único escritor a assumir
o elogio público dos Dezoito do Forte, Oswald de
Andrade se esmerasse na com posição de um poema
saudando a ascensão de Jú lio Prestes à presidência da
República, numa farsa eleitoral que levou o país à
Revolução de 1930. Sinais tão trocados mostram que;
em culturas como a brasileira, de ontem e de hoje, os
valores éticos não contam.
É na moldura desta K ultur aluvional que temos
de situar Coelho Netto, para bem com preendê-lo - o
seu caso pede mais compreensão do que reabilitação,
até porque as reavaliações são frutos de modismos:

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p a g a m t r i b u t o a o s e u p e c a d o de o r i g e m : o
c ircunstancialism o das v o g as - dos usos a tu a is, q u e s â o
sempre usos efêm eros^-
Como se sítua Coelho Netto?
Ele estréia em 1893 com O morto, em que nos
mostra o Rio sob a Revolta da Armada. Quando o
escritor m aranhense faz a sua aparição de romancista, já
existiam, na literatura brasileira, M em órias póstum as de
B raz Cubas (1881) e o Q uincas Borba (1891), de Machado
de Assis; Casa de pensão (1 8 8 4 ) e O cortiço (1 8 9 0 ), de
Aluísio Azevedo; O A teneu (1 8 8 8 ), de Raul Pompéia e,
do outro lado do Atlântico, em Portugal, Os Maias, de
Eça de Queiroz, que é do mesmo ano de O Ateneu.
Para que aponta isso?
Aponta para a tragédia central de Coelho Netto.
Ele não foi literalm ente coetân eo dos seus grandes
contem porâneos. Coelho Netto sofreu o d ram a da não-
contem poraneidade-do contem porâneo, para falarmos
como Ju liu s Petersen, ou seja, segundo a expressão de
W ilhelm Pinder: sofreu a in co n tem p o ra n eid a d e do
contem porâneo.
Como se revela esta inco n tem p o ra n eid a d e do
contem porâneo, em Coelho Netto?
Revela-se na ausência de preo cu p açõ es sociais,
na arte do romancista maranhense. Todos os seus
contem porân eos elevaram a literatura à dignidade de
epistem ologia do ser social - Machado, Pompéia, Aluísio
e Eça transpuseram para a sua arte os problem as e as
in q u ie ta ç õ e íd e seu tempo, desmistificando a sociedade
em que viviam. O com plexo constituído pelos destinos
pessoais e as estruturas de classe, lucidamente estudado
por Daniel Bertaux no nível da antroponom ia política,
enform a, não importando em que grau de m odulação, a
ficção de todos eles. A circunstância social, que adjetiva
e cond iciona inelutavelm ente a vida humana, não

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enform a nunca a novelística de Coelho Netto, a não ser
episodicamente, como em O morto. Episodicamente, jamais
centralmente. A que se deve tal carência na ficção de
Coelho Netto ?
»
Basicamente ao fato dele ter criado a sua obra na
hora outonal do naturalismo, como já afirmaram alguns
críticos?
A hipótese não é plausível. Contesta-a a obra dos
grandes contemporâneos de Coelho Netto que - repita-se
- criaram as obras capitais na estação terminal do
naturalismo.
Fundamentalmente o que provocou a incontem-
p ora neid ade de Coelho Netto, desligando-o da grande
linha criativa dos autores que imprimiram o selo do
contemporâneo às suas obras, foi a persistência da adesão
do escritor maranhense a uma velha linha empobrecedora
da literatura nacional, ainda vigorante no Brasil nos fins do
século XIX.
O período de 1870-1920 marca o divórcio do
Brasil, em termos de arte literária, sobretudo da arte
ficcional, da grande corrente artística dominante na Europa
Ocidental e na Europa Oriental. Aquele período, para citar
apenas alguns exemplos, foi a época de Hardy, George
Eliot e Conrad, na Inglaterra; de Zola e Proust, em França;
de Eça, em Portugal; de Verga, na Itália; de Storm, Fontane
e Keller, na Alemanha; de Multatali, na Holanda, autor do
primeiro grande romance antiimperialista da literatura
ocidental; de Galdós, na Espanha - a época da “santa
literatura o cid en ta l ru ssa” e da grande literatura
escandinava, com Pontoppidan, Anderson-Nexoe, Kielland,
Lie, etc. - , as duas literaturas que representaram a
consciência do mundo na passagem do século XIX para
o nosso século.
A ficção brasileira, excetuados Machado, Pompéia,
Aluísio - Eça em Portugal - e , posteriormente Lima Barreto

63
e Enéias Ferraz, continuou presa à idealização do
cotidiano, alienada da vida real das pessoas, ignorando
a existência do homem comum na sua faina de viver ou
simplesmente sobreviver. Uma literatura, portanto, nào
de escritores, mas de literatos, literatóides. Uma literatura
que praticava o exercício da imaginação, entendida não
com o fa n ta sia exata, mas com o delírio escapista, Uma
literatura em que o pitoresco tomava o lugar da observação
concreta, da busca da realidade rente à vida. Coelho
Netto prisioneiro dessa “doença infantil” da literatura -
de onde o seu beletrism o, com todas as carências
embutidas nesse termo.
A arte literária de Coelho Netto foi comprometida
por deficiências que não eram só individuais, mas também
resultantes do retardo cultural que castrou toda uma
longa faixa da nossa evolução literária. Reconhecendo-
se esta verdade, não se deve excluir que, para as
carências que a sua obra ostenta, contribuíram, por outro
lado, outros fatores negativos, os quais o autor maranhense
não soube superar.
A grande matriz dessas deficiências ou meJJtior,
insuficiências, localiza-se numa opção que Coelho Netto
fez, crente de que ela importaria na individuação de sua
obra. Foi a opção estilística. Còelho Netto elegeu,, para
carta de identidade de sua arte, a prosa parnasiana.
Desta escolha resultou tudo quanto até hoje
justifica não só restrições tópicas à sua arte, com o a
própria rejeição de sua obra, enquanto monumento
literário.
A arte da prosa coelhonettina com prometeu
irremediavelmente a criação literária coelhonettina. An­
tes de enumerarmos alguns dos principais estilemas que
enformam o crispado desenho da prosa de Coelho Netto,
na qual o adjetivo prevalece sobre o substantivo, devemos
procurar buscar os motivos da opção parnasiana que ele

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fez para padrão, norma e seu código textual, e fixar as
con seq ü ên cias dessa op ção, que transbordaram dos
limites e s tilís tic o s e co n tam in aram toda a sua obra de
ficcio n ista .
> De in íc io , sa lien ta m o s qu ç o parn asianism o só
o b te v e a n a crô n ica p e rm a n ên cia no Brasil p o rq u e,
entre nós, em sua é p o c a , os sim bolistas não alcançaram
a au d iên cia que lh es era devida. Os p róp rios co rifeu s
da Sem ana da Arte M oderna ignoraram o sim bolism o
e, ig n o ra n d o -o , não in corp oraram à arte literária
b ra sileira , ao fazer literário b ra sile iro , so b retu d o nos
d om ín ios da prosa de fic ç ã o , o im enso instrum ental
rev o lu cio n á rio qu e e le c o lo c o u à d isp o siçã o de todos
os grand es re n o v a d o re s do ro m an ce c o n te m p o râ n e o -
de Prou st a J o y c e . O p a rn a s ia n ism o , n o B rasil,
ultrapassou a v igência do seu tem po histórico, travando
tod o o p o ste rio r d esen v o lv im en to da arte n a cio n a l de
narrar.
O p ro b lem a n a cio n a l da não d esp arn asiação
da nossa literatura p recisa ser p o sto em tela. Por que
durou tan to, en tre n ó s, a v ig ên cia p arn asian a, qu e se
esten d eu de 1882 a 1922, só e p iso d ica m e n te rom pida
p e lo s raros fic c io n ista s que rea lm en te am pliaram o
territó rio ro m a n esco da literatura brasileira?
Teria durado tanto a vigência parnasiana porque
co rresp o n d ia ao n o sso g o sto da e lo q ü ê n c ia , ao n o sso
am or p ela frase a rred on d ad a, à n ossa in c lin a ç ã o para
o pom poso?
Por q u e, em virtude de seu tim bre o rn am en tal,
foi e é o p arn asian ism o até h o je o estilo das n ossas
cla sse s dom inantes?
Ou ainda por q u e, em nom e desta su p osta
im passibilidade, o parnasianism o facilitava a a ceita çã o
das forças e x terio re s adversas ao hom em , favo recen d o,
com a sua proclam ada frieza m arm órea, o conform ism o

65
p o lítico ? Por q u e, p referin d o ater-se ao d escritivism o
na natureza, empurrou para segundo plano o homem e
sua existência?
Seja como for, o parnasianismo de Coelho Netto,
seu virtuosismo estilístico, seu preciosismo vocabular e o
seu sensualismo verbal, não foram apenas responsáveis
pela prolixidade da dicção literária, o difuso de sua
visualização artística centrada mais no aleatório do que no
essencial, e a sua quase permanente oscilação entre o
literário e a literatice. PaL parnasiação de sua prosa
resultou o horror d eX o elh o Netto ã idéia nua, à idéia que
se siTstentlTem sua própria arquitetura conceituai, que se
basta a si mesma, apenas amparada nos seus travejamentos
lógicos. Em conseqüência desse horror pela nudez p a g ã
dà idéia - nua como a luz, nua como a transparência - ,
Coelho Netto atirava sobre o pensamento o manto da
palavra, sufocando-o em grossa envoltura fraseológica,
sepultando-o sob o peso das vestimentas vocabulares
sobrecarregada de ouropéis e pechisbeques semânticos
xjue só enganam os que não sabem pensar.
O v e z a d a sinonímia o fez cair no erro de conceber
a-inflação vocabular como sinal de riqueza, quando é sinal
de pobreza. A opulência palavrosa sacrificou a esbelteza
jdas formas puras, maculou - mais que isso - , impediu que
a sua estrutura fraseológica ostentasse a disciplina
geométrica das idéias claras. Coelho Netto esqueceu que
a palavra é um ente que repudia a promiscuidade retórica.
Esqueceu que a palavra se prostitui quando, na tessitura
do estilo, o escritor não a co lo ca em com panhia
rigorosamente seleta, seletiva, e a lança nessa espécie de
bordel que é a frase farfalhante*/
Em nenhum passo de sua obra Coelho Netto
deixou testemunho de ter sido um homem de cultura, JSob
este aspe cto , ele também não fugiu à regra quase
imiversal, no Brasil, segundo a qual o escritor é apenas um

66
intyitivo, ou seja, intelectualmente um homem tosco,
cuja única habilidade consiste em manipular m eca­
nicamente o vocabulário de que dispõe.
A imputaçSfò de incultura, aqui feita a Coelho
Nptto, não tem o sentido de uma capitis dim inutio, não
o tem porque corre por conta da rarefação m ental
brasileira de seu tempo, e ainda também do nosso tempo.
Exemplo:, os modernistas de 1922, que se apresentaram
c o m o r e n o v a d o r e s de n o s s a c u ltu r a , ig n o ra ra m
heroicam ente tudo de grande que a literatura ocidental
produziu exatam ente naquele mesmo ano de 1922.
Ignoraram o Ulysses, de Jo y c e ; The waste lan d y de Eliot;
The Forsyte-Saga, de Galsworthy; o Trom m eln in d er
nachty de Brecht; D ie letzten tage d e r m enschkeit, de Karl
Kraus. Ignoraram Proust, cujo ciclo de A la rech erch e du
tem psperdu abrira-se desde 1919. Ignoraram que 1923 foi
o ano das D u in eser Elegien e dos Sonette an Orpheus, de
Rilke e de A con sciên cia de Z eno, de Svevo. Aliás, a;
Alemanha, para os escritores brasileiros, tanto de 1900
quanto de 1922, não foi o país das geisteswissenschaften,
de Dilthey e das grandes universidades européias, mas
tão só o país do Kaiser, dos generais prussianos, dos
ju n k ers e, no máximo, de Nietzsche. A Itália, não era a
Itália de Croce, mas a de D’Annunzio e do caixeiro
viajante do fascismo, Marinetti. E da França, seguindo a
linha dos nossos românticos, eles tomaram o que ali
havia de mais perecível. Como os detratores de Coelho
Netto, vihdos de 1922, lhe poderiam atirar a primeira
pedra?
A primeira coisa a respeitar em Coelho Netto é o
exemplo de toda uma longa vida obsessivamente dedicada
à literatura. O problema de com o ele a entendeu é outra
questão.
Desde que deixou o Maranhão, “a Provença
dourada do Brasil”, com o Netto belam ente chamou a sua

67
terra natal, ele jamais transigiu na sua devoção às então
denominadas “belas letras”.
Homem pobre, não praticou a sua literatura como
um diletante. Ela foi o instrumento de trabalho: assegurou-
lhe a honrada sobrevivência. A desigualdade de sua obra
correu, em grande parte, por conta desta circunstância
dramática: ter de viver de escrever num país em que ler
sempre foi um luxo.*
Um grande amigo e conterrâneo de Coelho Netto
- Humberto de Campos - dizia que o comércio mais cruel
do mundo é trocar miolos da cabeça por miolos de pão.
Este foi o comércio a que se deu, por mais de meio século,
o autor de Treva. Se Coelho Netto tivesse tido inclusive
condições materiais de pensar os seus livros, é bem
possível que nos tivesse legado uma obra não só mais
homogênea, com o sobretudo mais depurada e mais
corretamente orientada.
Romances como Turbilhão, Rei negro, Tormenta,
Inverno em f l o r e M iragem , na sua diversidade temática e,
por vezes, até na diversidade estilística - em Inverno em
flo r, por exemplo - , testemunhamos a busca de uma prosa
mais descarnada, de um certo grau de concisão substituindo
o luxo parnasiano de tantas e tantas páginas constantes de
sua enorme bibliografia. Tais livros mostram que o escritor
maranhense tinha possibilidades de disciplinar melhor a
sua imaginação, conter sua pletora verbal, adentrar-se
mais profundamente nos subsolos da alma humana, ser
mais certeiro nas observações, e talvez até mesmo recolocar
numa direção socialmente certa o sentido geral de sua
obra.
A conquista, com a qual a Civilização Brasileira
inicia este ciclo de relançamento de Coelho Netto, feito
sob um signo seletivo, é um livro que aponta para todas
essas possibilidades. Em primeiro lugar: ele nos dá um
Coelho Netto compromissado com as grandes causas

68
políticas de seu tempo: o abolicionism o e a República.
Sendo o romance biográfico da Geração de 89, A conquista
mostra, por outro lado, que Coelho Netto soube tratar o
memorialismo como obra de arte. E mais: que, quando
ele sobrepunha a memória, à f a n c y , no sentido que
Coleridge imprimiu a este termo, a sua ficção corria rente
à vida, fazia-se ela mesma vida profundamente vivida.
Também em A conquista Coelho Netto surge
com o um soberbo retratista. Aluísio Azevedo, Arthur
Azevedo, Bilac, Patrocínio, Pardal Mallet, Guimarães
Passos , Paula Ney passeiam nestas páginas não como
meros participantes da boêmia literária finissecular, mas
como gente carnalizada, sangrando vida,# porejando
existência autêntica.
Estas mesmas virtudes que fazem a sedução e o
poder de A conquista, reaparecem em Fogo-fátuo, escrito
trinta anos depois do romance da Geração de 89- Neste
último livro, a cena da morte de Paula Ney só poderia ser
traçada por um grande romancista. O grande romancista
que soube, também, concentrar-se, condensar as suas
faculdades criadoras, no conto. Firm o, o vaqueiro, Os
velhos, Bom Jesus d a M a ta e Ospom bos são peças literárias
das melhores de toda a contística nacional. Nesse sentido,
bastaria um livro com o Treva, com o no campo do
romance bastariam Turbilhãoe Rei negro, para resgatarem
Coelho Netto do esquecim ento a que o condenou uma
crítica que se tem limitado muito mais a repetir julgamentos
e q u i v o c a d o s do q u e se e m p e n h a d o e m , p e lo
conhecim ento direto dos seus textos, procurar situá-lo,
com justiça, 'no quadro geral da literatura brasileira.
Esta nova leitura de Coelho Netto, que a Civilização
Brasileira proporciona sobretudo aos jovens que, creio,
ignoram a obra do escritor maranhense, constituída, na
sua totalidade, de mais de cento e vinte volumes, é de
capital importância, não só para o conhecim ento direto

69
do autor de A conquista com o para a melhor compreensão
da evolução literária do Brasil, neste nosso século.
Quando Coelho Netto realizou a sua obra, o
romance brasileiro não era, como já ficou demonstrado,
apenas a ficção de Afrânio Peixoto, que definia a literatura
como “o sorriso da sociedade”. Havia, sobretudo, nos
domínios do regionalismo, a obra de Afonso Arinos,
Valdomiro Silveira, Oliveira Paiva, Domingos Olímpio,
\
Lindolfo Rocha, Simões Lopes Neto, Alcides Maya, cujo
Tapera foi prefaciado pelo próprio Coelho Netto, Hugo de
Carvalho Ramos e o Monteiro Lobato, de Urupês.
Em todos eles predominavam, em maior ou menor
grau, a mesma visão parnasiana da linguagem, que
empolgou Coelho Netto. Em Arinos, o amor do pitoresco
mescla-se desequilibradamente ao requinte literário. Em
Valdomiro, é excessiva a atração pelo anedótico: o autor
de Os caboclos não raro chegava a esquecer o homem que
há no caboclo, e a se fixar no caipira folclorizado; em
Paiva há a fusão das linguagens falada e escrita, mas não
muito bem delimitada, fato que ele compensa com certa
densidade psicológica impressa à sua personagem central;
em Domingos Olímpio, registra-se uma decalagem entre a
concepção romanesca e a execução literária; em Lindolfo
Rocha anota-se desequilíbrio ainda mais grave, que acentua
a desigualdade do texto: a fluência viva é sincopada por
uma dicção que raia o pernosticismo; em Alcides Maya,
não obstante o rigor no desenho da prosa, vemos
paradoxalmente os adjetivos deglutirem a imagística, além
do que o ritmo da prosa, apesar de bem marcado, não raro
perturba a leitura do texto.
Só a partir de 1917, com Tropas e boiadas, de Hugo
de Carvalho Ramos, e de 1918, com Urupês, de Monteiro
Lobato, este autor trazendo a marca do peso fraseológico
camiliano, a nossa literatura de ficção começa a se libertar
da ótica parnasiana, a se livrar da paráfrase e do

70


eufemismo, a se emancipar da dicção gorda e a tentar a
busca da expressão direta, implacável, reta. E a procurar a
adesão genuína ao coloquialismo, com Simões Lopes Neto.
Como se vê, com o seu vocabulário de mais de
v^nte mil palavrasj Coelho Netto seguiu a voga de seu
tempo: a belle-époquebrásileira foi o império do dicionário.
Levar, por co n seg u in te, o escritor m aranhense ao
pelourinho, pelo fato de ter sido um pastor de vocábulos,
é perder a perspectiva crítica. Sem esquecer o caráter
farfalhante da maioria de suas obras, não se pode deixar
na sombra o que nela pulsa, antes de tudo, como documento
literário. Não se pode esquecer a sua parte adesa não à
realidade brasileira, mas a aspectos decisivos dessa
realidade, como as campanhas abolicionista e republicana,
e a revolta da Armada contra o consulado tirânico de
Floriano Peixoto.
O morto, romance com indelével marca de crônica,
técnica que também foi a de Lima Barreto em Vida e morte
d eM .J. Gonzaga de Sá - Lima, que foi o primeiro a investir
passionalmente contra Coelho Netto - , há o Rio, como já
foi assinalado, da primeira revolta militar contra um
governo despótico; em A conquista reconstitui Coelho
Netto os momentos mais belos da campanha abolicionista,
em sua etapa carioca, e em A m iragem voltamos a ter a
imagem da Proclamação da República, mas, nesse ro­
mance, com uma novidade técnica: ela é vista através dos
olhos de um simples soldado - o Tadeu.. Esta é uma
estratégia que espantosamente preludia a técnica narrativa
de um romancista do porte de Henry James. Ela, portanto,
aponta para uma certa capacidade inovadora de Coelho
Netto, na arte arquitetônica da ficção, à qual, de certo, ele
não emprestou maior e mais fundo desenvolvimento
dadas as circunstâncias em que elaborou a sua obra. Como
é consabido, Coelho Netto realizou a sua obra sob os
açoites da estrita necessidade de sobrevivência. E foi esta

71
mesma circuns-tância que impediu que ele realizasse a sua
grande aspiração inicial: a de, através de um ciclo de
romances, reconstituir, artisticamente, a evolução histórica
do Brasil. Sonhava com uma espécie de Comédia H um ana
Brasileira, a qual as duras condições de vida do escritor
deixaram ficar em estado de projeto.
Numa época como a nossa, marcada pela presença
das gerações sem palavras, na justa definição de Paulo
Rónai, é preciso ler Coelho Netto. Lê-lo, não para segui-lo,
imitá-lo, etc., mas como possível caminho de reconquista
do amor exato pela palavra - e não da frase senatorial.
Esquecendo os seus excessos, que eram os de seu tempo,
poderemos ao ler o escritor maranhense corrigir as carências
do nosso tempo, se esta correção se fizer sob os reais
parâmetros ditados pela nossa modernidade.
A arte literária é antes e acima de tudo a arte da
palavra. Certos desta verdade de lana caprina, releiamos
Coelho Netto, fazendo uso correto da literacy - da nossa
capacidade de ver fundo o texto; o que está no seu coração,
e o que é externo a ele, mas que forma a sua substância -
o que o faz e perfaz.
O anticoelhonettismo cego induz a um equívoco
tão pernicioso quanto o é qualquer movimento que tente
destruir a literaliedade, vale dizer: a própria essência
artística da arte literária. Não se pense que as exigências de
imprimir sentido social,à arte literária impliquem o sacrifício
de seus valores estéticos. Recordemos que há um grande
exemplo desta verdade, na literatura ocidental.
Máximo Górki, considerado por um crítico tão
severo como William Empson, o maior dos escritores
proletários de todos os tempos, era um exímio estilista - um
autor para o qual a palavra tinha plumagem, canto e vôo.
A sua consciência proletária não fez Górki abominar a bela
forma literária, que Gramsci definia como fundamental em
todo texto revolucionário.

72
R ui q u a se desconhecido

Por ter sido estrênuo campeador das liberdades


humanas, eis que cinqüenta anos após a sua morte, Rui
retorna à nossa presença. Entre os últimos decênios do
século XIX e as primeiras décadas do nosso século, o
orador da República desempenhou papel equivalente ao
do padre Vieira, a grande voz insurgente de nossa era
colonial: o mesmo indômito amor à causa da dignidade
do homem, cuja defesa ambos assumiram com equatorial
exuberância vocabular e intrêmula coragem.
Porque cultura é, antes de tudo, esforço em favor
do enobrecim ento da natureza humana, raros são os
homens que, entre nós, podem merecer, como Rui, o título
de herói cultural, categoria em que se fundem a santidade
da bravura e a sacralidade das lutas pelo engrandecimento
do homem. j

Não entendeu assim, a geração que irrompeu no


cenário intelectual brasileiro, às vésperas da morte de Rui.
Contra o seu parnasianismo insurgiram-se os homens de
1922, que identificavam no apego de Rui à maneira erudita
de dizer uma barreira erguida contra a emancipação
idiomática do Brasil, atrozmente confundida com indigência
estilística, como se a arte de escrever pudesse ser reduzida

73
T

à condição de artefato da vulgaridade. Certo que a dicção


de Rui tendia para o pomposo e o solene, refletidos na
busca obsedante das palavras raras, dos vocábulos
preciosos, das expressões vetustas e das estruturas sintáticas
retorcidas. Refletidas também no gosto imoderado da
sinonímia, na preocupação arcaizante, na construção da
frase cheia de intercaladas, na deliberada colocação do
sujeito a anos-luz de distância do verbo. Mas esta visão
ornamentalística do discurso não ofuscava, por paradoxal
que pareça, a virtude suprema da concisão. Não afetava
as exigências de clareza - as contorsões fraseológicas
deixavam paradoxalmente intata a ordenação lógica do
pensamento. Não esvaziavam o enunciado literário da
substância intelectual que lhe é inerente. A riqueza
vocabutãr não era recurso de que Rui se valia para
esconder possível pobreza de idéias, antes, funcionava
como estratégia para lhes dar maior realce - a inflação
verbal atuava como apoio logístico do pensamento do
orador, que queria primeiro subjugar o auditório pelo
poder mágico das palavras, a fim de melhor fazê-lo aderir
ao seu ideário. JJma^estratégia de quem crê que o verbo
precede o lógos.
A intelligentsia brasileira que se inculcou de
modernista, presa ao estreito círculo de seus preconceitos
estéticos, não teve acuidade para separar o joio do trigo.
Viu, em Rui, o externo, o ludismo vocabular, não tentando
penetrar a essência interna de sua obra e captar o sentido
extraoratório de sua ação. Por isto, não absorveu, e muito
menos reelaborou a lição fundamental de sua obra, tendo
acontecido o mesmo com Euclides da Cunha - um dos
corifeus do modernismo, falando da “boniteza genial” de
Os sertões, não hesitou em qualificar o grande livro do
inconform ism o nacional de “falsificação hedionda e
repugnante”.
D ep o is da revolução de 30, nossos ensaístas

74
políticos instauraram a voga de investir contra o liberalismo
de Rui, preparando terreno, alguns inconscientemente,
para a implantação do Estado Novo, durante o qual Rui foi
apresentado com o um produto cultural da Inglaterra, nada
tendo a ver com o Brasil. Seus conceitos de liberdade civil
e cie liberdade.política como anglo-saxônicos, sem nenhuma
condição de aplicação em nosso país. Era a manipulação
de um sofism a, adrede m ontado, para justificar a
implantação de uma ordem política autoritária, que tratava
como lixo da história os valores liberais. Chegou-se a
dizer que faltou a Rui cultura sociológica, omitindo-se o
fato de que o desenvolvimento não só da sociologia como
das demais ciências humanas e sociais fora, no Brasil,
interrompido precisamente pela reação term idoriana que
precedeu o Estado Novo. Mas nem assim, pensadores tão
afeiçoados ao consulado estadonovista, como Oliveira
Viana, deixaram de reconhecer que, “defendendo a
liberdade individual”, o papel de Rui “foi dos mais belos:
e só apenas nesse setor ele poderia encontrar a base
bastante para a sua glória”, acrescentando que, “na defesa
das garantias da liberdade civil e política, Rui exerceu uma
função suprema em nosso país - função certamente única
em nossa história”.
Porque os homens de 22 não estimaram a herança
cultural que Rui nos legou como o fizeram outros grandes
nomes do pensamento brasileiro, adernaram na mais
obtusa alienação, preferindo entregar-se a uma querela de
lilerattiy consumidos numa bulha de beletrista, a assumir
òs grandes problemas humanos de seu tempo. Não
souberam despojar o legado de Rui do que nele havia de
insubstancial ou morto, e recolher, não só para preservar
c o m o , s o b r e tu d o , para a m p lia r, os v a lo re s q u e,
pertencendo-lhe, pertenciam ao repertório dos ideais
humanísticos. Limitaram a sua visão à do Rui gramaticófUo
ou, na melhor das hipóteses, à do Rui ciceroniano, como

75
sc o sentido último de sua obra se esgotasse no cascatear
das palavras, no torneio redondo da frase, nos transbordos
da grandiloqüência, no uso e abuso da r e t ó r i c a n a d a de
grande houvesse pulsado por trás de sua explosão verbal.
Pior para os homens de 22, que não só perderam
o gosto das grandes cruzadas libertárias, como acabaram,
porvia de seu estilo picadinho, abrindo caminho à geração
sem palavras, que hoje desfila diante de nós como legião
de tartamudag? Pior para eles, que não só não deram o
testemunho inconformista de seu tempo, que todos foram
salonistas e palacianos, bobos do rei quando o rei começava
a ficar nu. Pior porque, inauguraram entre nós a fase de
fecham ento do., universo da alocução, triste, ato de
complacência e concordância com uma época que, para
aviltar o homem, começa, por, sancionar a anulação das
potências criativas da linguagem. A farfalhante pletora
estilística de Rui adqyiriu-hoje-a-qualidade não de ex e mplo,
mas de estímulo à luta contra a o çlusâo expressiva a que
nos conduziu a sociedade unidimensional, advers^*à
valorização da palavra.
As grandes contribuições à história social e política
do Brasil ainda não foram suficientemente estudadas.
Outras ainda permanecem no nimbo. Está no primeiro
caso o seu monumental parecer sobre a escravidão, ao
qual Astrojildo Pereira dedicou luminoso ensaio incluído
em Interpretações. São duzentas páginas escritas em
dezenove dias, as quais lhe iriam custar a perda do
mandato político. Depois que o emitiu, Rui não mais
conseguiu reeleger-se. Somente sete anos após a sua
elaboração, retornou ao Parlamento, quando da convocação
da Constituinte republicana.
Não tendo, na sua prodigiosa análise do problema
do cativeiro, dissociado escravidão e latifúndio, os senhores
rurais o puniram, truncando, pelo espaço de quase um
decênio, a sua carreira de legislador.

76
Em 15 de ju lh o de 1 884, R o d olfo D antas
apresentara projeto sobre a extinção do braço escravo. A
Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1872, pela qual
lutara intrepidamente o Visconde do Rio Branco, revelara-
se ineficaz. Se a escravidão tivesse ficado restrita à sua
esfera, somente em 1950 teria desaparecido o cativeiro.
Ao emitir o seu parecer, de apoio ao projeto Dantas, Rui
não demonstrou, apenas com o jurista, a ignomínia da
propriedade do homem sobre o homem. Apontou para
o seu caráter anti-social, anticientífico e antieconôm ico.
Com o seu método implacável de análise, fulminou todos
os argumentos e sofismas dos que defendiam os interesses
dos latifundiários. Travada “a pugna entre o ódio e a
esperança”, Rui assumiu a defesa das vítimas.
N esse p a r e c e r su rg em o s g e r m e s de seu
antiagrarismo, que ele levou às últimas conseqüências,
quando assumiu, por quatorze meses, o Ministério da
Fazenda, no primeiro governo republicano. E aqui temos
outra face de sua desconcertante personalidade - a do
estadista.
Rui com preendera que o Brasil não realizaria o
seu destino de nação emancipada se continuasse sendo
“país essencialm ente agrícola”. Não vacila em romper
com a mentalidade agrária então dominante. Orienta
toda a sua política no Ministério da Fazenda no sentido
de promover a industrialização do Brasil. Mas não viu o
p r o b le m a da i n d u s t r i a l i z a ç ã o c o m o o s n o s s o s
desenvolvimentistas dos anos 50, que contemplaram
u n ila te ra lm e n te a q u e s tã o do n o sso c re s c im e n to
econôm ico. Ankparado sobretudo nas lições de Liszt,
Wagner e S choen berg , além de outros teóricos da
conversão da velha Germânia feudal em Alemanha
capitalista, Rui procurou dinamizar tanto a produção
quanto o consumo. Percebeu que não poderíamos
romper os limites de uma econom ia de escassez, sem

77
ampliarmos o mercado interno - sem deixarmos de ser
nação de subconsumidores.
Não bastava, porém, a Rui incrementar a produção.
Derrogou a ordem fisiocrática, que dominara o Brasil
durante todo o Império. Sua glória de reformador social
só não foi maior porque teve a antecedê-la, em pontos
básicos, o programa de reconstrução econômica do
Visconde de Ouro Preto, cuja execução a queda do
Segundo Reinado impediu. Mas, ainda assim, é preciso
lembrar que já em 1882, discursando sobre desenho è arte
industrial, Rui deixara entrever a importância que atribuía
à industriálização do Brasil, posição que o coloca do lado
de outro grande precursor: Mauá.
Assumindo seu programa de defesa do incipiente
parque industrial brasileiro, Rui incluiu em sua política
econôm ico-financeira o item da desconcentração da
riqueza, como essencial aos próprios interesses da nascente
burguesia nacional. Não devemos esquecer que Rui foi
um típico representante de um segmento da sociedade
brasileira em busca da ascensão política: a classe média,
protagonista da República.
E é quando irrompe a primeira crise da República,
no governo de Floriano, que a figura de Rui adquire
dimensões gigantescas. Juristas, o Brasil sempre os teve
tão grandes quanto ele - Pimenta Bueno, Teixeira de
Freitas, Lafayette, Clóvis, Pedro Lessa. É verdade que Rui
não chegou a ser um construtor de sistema, como Pontes
de Miranda. Mas ninguém encarnou, como Rui, o papel
de patrono judiciário das instituições democráticas, num
momento em que a nação chafurdava no medo e na
covardia, acossada pela violência e o arbítrio.
Ele foi a única voz que então se ergueu para resistir
à intolerância e à prepotência; para repelir os sofismas
opressores da razão de Estado; para reclamar a legalidade
constitucional servida pelos tribunais; para se opor à

78
“anistia expiatória”; para exigir a tutela jurídica das
liberdades e dos direitos humanos. Na tribuna parlamentar,
na tribuna forense, nas colunas do jornal, é o jurista que
coloca o direito a serviço da vida. Elabora, então, a
doutrina brasileira do habeas-corpusy dando-lhe ampli­
tude que não possuía. O egrégio instituto deixa de ser o
tradicional remédio judiciário para todas as violências
infringidas às liberdades civis e às franquias do cidadão,
conquistando as dimensões magnânimas de instrumento
assegurador da própria vida humana.
Todas as contradições em que Rui se emaranhou,
como o veto em Haia à doutrina Drago, pecado do qual se
redimiu quando, na mesma conferência, defendeu o
princípio da igualdade das pequenas nações frente às
superpotências, esbatem-se, tangidas pelos desassombro
com que assumiu, nas condições mais adversas, a temerária
defesa do homem e seus direitos, esmagados por um
governo tirânico.
Se esse desempenho conferiu grandeza irrebatável
e deu sentido de permanência histórica à ação política de
Rui, há um outro, que importou em serviço de excelsa
magnitude prestado ao Brasil.
Proclamada a República, os políticos, com Júlio de
Castilhos à frente, apossam-se do Rio Grande do Sul.
Impõem ao Estado uma organização política autoritária,
nos m oldes in flexiv elm en te rígidos da d ita d u ra
republicana, preconizada por Comte. A Constituição
estadual, que Castilhos redige, sob o protesto violento de
seu correligionário e cunhado Assis Brasil, é um paradigma
de diploma autocrático. Ela consagra brutal concentração
de poderes nas mãos do chefe do Executivo, inclusive a
faculdade de legislar. À Asseníbléia só é dado reunir-se
anualmente por dois meses.^Sua competência limita-se
aos campos tributários e orçamentários. É praticamente
convertida em tribunal de contas. Na realidade, não passa

79
de instituição ornamental. Ao chefe do Executivo é
permitido perpetuar-se no poder. Nesse regime dito
sociocrático a ordenação da sociedade é privativa do
poder discricionário: o Executivo onipotente. A
mentalidade totalitária é um dos pressupostos do Estado
positivista.
A Constituição sul-rio-grandense provocou a sinistra
sangreira que foi a Revolução Federalista (1893-1895), em
que terminou barbaramente sacrificada a figura exemplar
de Saldanha da Gama, e reclamou outra insurreição - a de
1923 - para ser atenuada em seu autoritarismo. Do que o
castilhismo era, como sistema liberticida, teremos noção
exata recordando o que foi o Estado Novo. Getúlio Vargas,
amamentado no seio do positivismo gaúcho, transpôs para
o plano nacional, em 1937, a autocraciiLçaslilhista.
Convocada a Constituinte, para a elaboração da
Carta Magna de 1891, Júlio de Castilho e a bancada gaúcha
por ele liderada tentaram por todos os meios imobilizar o
país no. espartilho de uma Constituição à imagem da
implantada no Rio Grande do Sul. A arremetida dos
arautos da ditadura republicana encontrou, porém, pela
frente, a intransigente oposição liberal de Rui, que expurgou*
nossa primeira Carta Magna do autoritarismo pré-fascista
de Júlio de Castilhos.
Este serviço imenso, prestado à débil democracia
brasileira pelo combativo liberalismo de Rui ainda não foi
avaliado, sequer reconhecido, pelos nossos pensadores
políticos. Ele é uma súmula que, na incomensurabilidade
empolgante de seu significado, aglutina todas as faces de
Rui: a do jurista, a do constitucionalista, a do organizador
político, a do pensador social e a do estadista, congregadas
numa dimensão que só a palavra humanismo dá a medida
do seu alcance para a civilização brasileira.

80
Pontes de Miranda

O translúcido ensaio de Antônio Carlós Villaça


publicado no Jornal do Brasil, foi a única homenagem que
Pontes de Miranda recebeu da imprensa carioca - e , talvez,
brasileira - pelo transcurso de seus oitenta anos, consumidos
no ato excelso da reflexão filosófica.
Também foi uma reportagem - a de Fredéric
Towarnicki, em VExpress- que assinalou, em França, em
1969, o octagésimo aniversário de Heidegger. Mas outras
homenagens foram prestadas, pela inteligência européia,
ao solitário autor da grande revolução ontológica do nosso
tempo, enquanto o resto do Brasil sequer pensou a
imensa, enorme dívida contraída com Pontes de Miranda.
Orça pela vilania. Pois um país carente de homens que
tenham a intrepidez de empregar o tempo de sua existência
buscando tornar o mundo mais magnânimo, ensinando-
nos o ato de reverência ao universo e à vida, precisa ter
perdido a dignidade de si mesmo, para chafurdar, refocilar
em tal vileza. Uma nação que tresmalha do reconhecimento
aos que a salvam da condição de/abrigo de primatas, na
realidade está de marcha batid^r na rota que reconduz à
horda. Suprema ironia: toda a obra de Pontes de Miranda
- de jurisconsulto, de sociológo, de epistem^logo, de

81
filósofo, de sábio e de artista - é uma colossal barreira
erguida à primarização do homem.
Nos tratados de Direito - a sua obra de jurista,
pioneira em vários sentidos, abrange quase todos os ramos
da ciência jurídica: filosofia de direito, direito constitucional,
direito civil, direito processual, direito comercial - tem
dimensões singulares na literatura brasileira e proporções
pouco freqüentes na literatura universal - nos compêndios
de ciência política, nas páginas de exegese constitucional,
nas lições de sociologia, nas densas preleções sobre
problemas gnoseológicos e até na transparência dos
poemas, dos aforismas e das reflexões sobre a sabedoria
dos instintos e a sabedoria da inteligência, a luz perfulgente
que guia a sua meditação é a de que o erro diminui do
infusório ao homem e, na história do próprio homem.
Uma visão leibnizeanamente otimista, como só a podem
possuir os egrégios integradores: as mentes pulcras que
acertam transformar o múltiplo no uno, desentranhando
do seio fragmentário do diverso a compacta unidade.
Pensai naquela sua definição: “Amam-se os que se parecem
- os que têm a mesma alegria” - , e dizei-me se não é
definição que só poderia ser enunciada por quem habita
os cimos alciônicos da poesia. Não apenas a poesia que
está nos poemas, no fazer poético, no poetar, mas também
aquela outra, que tece as mil tramas da vida, abisma-se nas
suas profundezas e, rosa incendiada, só pelos videntes se
deixa ver.
Antes de tudo, um pensamento combatente. Pon-
■tes quer que os indicativos da ciência se transformem em
1 ' imperativos da. ação. Portanto^p_ensameíUo-de~um-eten4;ista
que não perdeu a sua eticidade, num mundo em que - e
aí estão as denúncias de £. W. H. Hull, Jerom e Ravetz,
Theodore Roszak, Abraham Maslow, Jam es Shapiro - a
“industrialização da ciência” começa a levar os cientistas
à alienação moral.

82
No âmbito da ciência, Pontes de Miranda luta
contra autodeterminação e a tendência aproximativa;
reivindica a reflexão precisa, rente aos fatos. Toda a sua
rfieditação é um esforço ininterrupto para ouvir a língua
do real, a linguagem das coisas. É, portanto, um pensamento
com a consciência da grandeza dos problemas com que se
defronta - a consciência, e a humildade nela subjacente.
“Pensar - diz - é submeter-se”. Mas a sua é uma submissão
rebelde - insurge-se contra o desalinhavado da empíria e
as genêriTizãções do apriorismo. Propugna por uma
ciência positfvà - positiva porque nutrida pelos fatos,
alimentaaa no factual. Quer dizer: a objetividade como
método - o conhecimento instaurado pelo vigor imperante
da via analítica. A busca das constantes ocultadas nas
coisas. Ou escamoteada na multiplicidade através da qual
as coisas se manifestam. Uma busca incessante de enlace,
( engaste, determinação conjuntlvà, pela convicção de que
- não há saberes, mas saber - a sabedoria compreendida
^jcpmo criação humana total. Conhecer é o ato vital: ocupa
todo o terreno baldio da"vida, que é a única realidade
radical, posto que o homem é realidade radicada: presa à
vida.
E porque é o ato vital, nele está implícita a
confiança ilimitada na inteligência. Eis porque Pontes diz
que o cientista tem o direito e o dever de pronunciar o
ignoram us, porém não o ignorabim us, pois se o fizesse
estaria limitando o poder da inteligência humana.
Como os grandes filósofos, Pontes de Miranda
- pènsa com verbos e substantivos - a sua frase tem
espessura concentracionária, concisão diamantífera: poder
"cie cortar no duro aço dos fatos. Um exame mineralógico
a revelaria constituída de carbono, puro. Centrada em
incorruptível núcleo de clivagem.
Que quer dizer isto? Qvie os projces&os d exriação
científica são idênticos a o s -a a criatividade artística. O

83
artista e o sábio trabalham em diferentes universos, tratam
com materiais diferentes, mas o processo de criação é o
mesmo, em ambos. A exigência de hostinato rigore, de Da
Vinci, é o campo em que se encontram o cientista e o
artista. Essa exigêncialêóhardlàna énforma a construção
mental de Pontes de Miranda. Tal exigência, de exata
concretitude, é o spermatikos logos de sua preocupação
metodológica, a qual, evidentemente, não o afasta das
indagações epistemológicas - e disto temos^ testemunho
no opus magnum que é O J>roblema fundamental do
conhecimento, apontado por Renato Cirell Czerna como a
obra-prima da filosofia científica no Brasil.
O dito de que Pontes de Miranda propugna por
uma ciência positiva pode induzir o leitor desatento a uma
com preensão errada de sua postulação filosófica,
vinculando-a ao comtismo. A reação brasileira a Comte,
que se esboçou com a Escola do Recife, adquiriu realmente
dimensão significativa com Otto de Alencar que, por
acompanhar a evolução do pensamento matemático
contemporâneo e o processo de formação da nova física,
teve de automaticamente recusar o contismo. Amoroso
Costa, Teodoro Ramos, Lélio Gama, Roberto Marinho de
Azevedo, Felipe dos Santos Reis levaram avante o
desempenho epistemológico assumido por Otto de Alencar.
Eram todos matemáticos ou físicos. Vindo de excursões
exploratórias no universo da física e da matemática, mas
já cientista social, Pontes de Miranda é a figura mais
complexa e importante dessa constelação brasileira de
sábios.
Exemplar paradigmático da espécie encarnada no
zoom logikon, Pontes de Miranda introduz no Brasil o
panlogicismo do Círculo de Viena e ramificações: Círculo
de Varsóvia, Escolas de Upsala e Oslo, Grupos de Berlim,
Helsinki e Oxford. Precede o neopositivismo que, depois,
por via do pensamento de Reichenbach e Moore, desemboca

84
na filosofia analítica do empirocriticismo alemão (crítica
da experiência), de Mach, Avenarius, Petzoldt; da crítica
da c iê n c ia , de origem fra n cesa , de R u ssell; do
desenvolvimento da lógica matemática (logística), e da
física einsteineana. Servia-se o neopositivismo da logística
para decidir sobre os problemas fundamentais da filosofia.
Lídia Acerboni, em seu La filosofia contemporânea in
Brasile, considera Pontes de Miranda o fundador dessa
corrente de pensamento, no Brasil. Mas o positivismo
lógico de Pontes de Miranda que um pensador da
importância imensa do Padre Henrique C. de Lima Vaz S.J.,
prefere chamar de nominalismo crítico, não é o de um
epígono do Círculo de Viena e anexos. Em face dessas
correntes e subcorrentes mantém perfeita autonomia,
como observa agudamente Antônio Paim.
Ao mostrar que a vida social não é exclusiva do
homem, mas universal; que podemos encontrá-la tanto na
constituição da matéria, na mecânica atomística, na
dinâmica dos elétrons, nos minerais, vegetais e animais,
no mundo inorgânico e no orgânico, quanto no homem
que, de si mesmo, já é sociedade; que o fato social é uma
relação de adaptação; que a sociedade caminha no sentido
de encontrar o máximo de simetria, portanto, em busca de
maior democracia, igualdade e liberdade; que a organização
social exige a redução do quantum despótico; e que a vida
é superávit de bem - “o saldo dos acertos e atos bons é que
permite permanecer a vida” - , Pontes de Miranda exibe o
teor planetário do seu desígnio filosófico, cujo duplo
objetivo é a preservação do humanismo e a instauração de
bases científicas para a democracia, consignada ao homem
como requisito de sua plena realização.
Se os neopositivistas europeus se distinguiram
pelo seu apoliticismo - do grupo, Otto Neurath foi o único
que integrou o governo socialista de Munique, no fim da
Primeira Grande Guerra - , a posição filosófica de Pontes

85
de Miranda não o impediu, como salienta Luís Washington
Vita, “de ligar-se, a certa altura de sua vida, a posições
políticas de esquerda, participando inclusive do chamado
movimento maximalista, de apoio à revolução russa de
1917”. E eis aqui mais um indicativo de sua independência
mental.
A visão unitária do saber levou Pontes de Miranda
a criar e dirigir, na década de vinte, a Biblioteca Científica
Brasileira, nossa primeira grande brasiliana, na qual
"ápáreceram obras capitais da nossa cultura, como As idéias
fundamentais da matemática, de Amoroso Costa; a
Ihtrodução à sociologia geral, de Pontes de Miranda; o
Curso abreviado de siderurgia, de Ferdinando Laboriau;
Fontes e evolução de direito brasileiro, de Pontes de
Miranda; a Formação histórica do Brasil, de Pandiá
Calógeras, além de tratados de química orgânica, anatomia
patológica, oftalmologia, terapêutica médica, parasitologia,
firmados por cientistas da categoria de Otto Rothe, Leitão
da Cunha, Vieira Romero. De 1922, publicado em
comemoração ao centenário da Independência, é o monu­
mental Sistema de ciência positiva do direito que, pela sua
importância na bibliografia de Pontes de Miranda, equipara-
se ao soberbo Democracia, liberdade, igualdade. Ou à
vertiginosa concentração de riqueza reflexiva alojada nas
páginas de seu livro sobre a garra e a mão.
No prefácio de A propósito de frades, Gilberto
Freyre lembra uma conferência pronunciada no Recife, em
1957, por Pontes de Miranda, a qual, segundo o autor de
Casa grande & senzala, deu “extraordinário relevo” às
comemorações de duas iniciativas franciscanas no Brasil:
as criações do Convento do Recife e da Província
Franciscana do Norte do Brasil. Nessa conferência, que
lamentavelmente não foi incorporada ao belo volume
Obras literárias, editado por José Olympio em 1960,
Pontes de Miranda, segundo Gilberto Freyre, pôs em
destaque a influência nominalista na cultura européia,
inclusive sobre o desenvolvimento do Direito, na Inglaterra.
Infelizmente não conheço a conferência de Pontes
de Miranda, mas já defendi tese idêntica à sua. Comecei
mostrando como, com o retrato de Francesco d’Assisi, no
Sacro Speco, nasceu a pintura moderna. Giotto é o pintor
do franciscanismo - franciscano é o realismo gótico dos
Pisani. Tão grande é a importância cultural de São
Francisco de Assis, que o vemos no pórtico do humanismo:
para Burdach, a Renascença não começa com Petrarca ou
os tradutores dos gregos, mas com Francisco d’Assisi, cujo
espírito, segundo Walser, ilumina todo o Quattrocento.
Para RaffaeloMorghen, a revolução espiritual de Francesco
d’Assisi não inspirou somente a pintura de Giotto, mas
também a poesia de Dante. Da Renascença Franciscana
procede Gioacchino da Fiore, ilprofete de tutta spiritualitá
dei seclo XIII. Segundo Thode, a revolução espiritual de
Francesco d’Assisi é que é a verdadeira fonte do
Renascimento: com ele estão as origens da arte, na Itália.
Várias vezes referimo-nos, neste texto, a autores
que empregaram a expressão revolução franciscana. Em
que consistiu? Sim, ela existiu e, por ter ocorrido no século
XIII, foi, inicialmente, uma revolução medieval, quer
dizer, religiosa. Mas, em virtude de sua própria dinâmica,
mudou de qualidade, em seu curso, transformando-se em
revolução cultural e social.
A característica fundamental do século XIII é a
exp ectativa esca to ló g ica , p resen te em num erosos
testemunhos: a crônica de Ottone de Frisibga; o De
investigatione antichristi, de Geroh de Reicesberg; o Ciber
ad honorem augusti, de Pietro da Eboli; as crônicas
britânicas de Ruggero de H odeven, B ened eto de
Peterborough, Raul di Coggeshal; as crônicas de Fra
Salimbene da Parma e todas as m anifestações dos
Flagellantiy dos Spiritualie dos\Flaticelli; as especulações

87
de Arnaldo da Villanova, de Ubertino da Casale e de Pier
de Giovanni Olivi. Luzes de inconformismo e de esperança
rasgavam o horizonte crepuscular do outono medieval.
Com a morte de Francesco d’Assisi, dá-se um cisma na sua
Ordem: uma corrente mantém-se fiel à ortodoxia da
pobreza (é a esquerda franciscana), enquanto a direita
franciscana manifesta-se contra a observância das regras.
E quem lidera a esquerda?
Giovanni da Parma que, com Pier de Giovanni
Olivi, Ubertini da Casale e Michelle da Cesena, é o
representante maior do evangelismo franciscano, estudará
teologia em Paris e aderirá ao Evangelium aeternum, de
Gioacchino da Fiore. Seguia-o Almarico de Biena, que
estudara lógica, também, na Universidade de Paris, e cujas
idéias procediam de Scoto Erígena, que pregava o retorno
à Idade de Ouro. Almarico de Biena ensinava que Deus
estava em tudo, propagando as lições de Fiore. Da
esquerda franciscana saíram os Irmãos Apóstolos, que
empreenderam extraordinária ação, da Lombardia ao
Languedoc - e, nessa linha, estava Occam, discípulo de
Duns Scoto, que, com Marsílio de Pádua, defendia uma
teoria extremamente revolucionária para a época - a da
soberania do povo. Dizia Occam: “O Estado e a propriedade
privada não são legítimas senão quando instituídos com a
aprovação do povo. A soberania do povo é um direito
natural”.
A parte da Ordem que se manteve fiel a São
Francisco de Assis - a esquerda franciscana, os Spirituali
- aliou-se ao gioacchinismo (Gioacchino da Fiore), para
acelerar o advento da Igreja Espiritual, em conseqüência
do que, nas cidades do Medievo, exacerbou -se a
religiosidade popular, na qual já se incluía a revolução
social. Esta, no plano cultural, traduzia-se na atitude dos
teólogos que, inclinados ao espiritualismo de Fiore, profeta
da Ecclesia spiritualis, abraçavam o m onialism o,

88
derrogando os fundamentos lógicos da Escolástica e criando
uma nova astronomia, uma nova física, uma nova economia
político. Eis os grandes frutos da revolução de São
Francisco de Assis, que não foi só o poeta celestial do
Cântico d e if rate sole. assim postas as coisas, entendemos
melhor porque Santo Anselmo qualificava os nominalistas
de dialetas do nosso tempo.


Alm ir de A ndrade

Almir de Andrade passou pela vida discretamente.


Afável no trato, era o carioca que não fazia concessão à
bulha, ao tumulto e ao gosto da controvérsia, que fazem
a singularidade dos que nascem entre as montanhas e a
orla atlântica. Sabia sorrir, mas fazendo do sorriso uma
espécie de complemento de seu pensamento. Era a sua
forma esquiva de pensar. E ele não nasceu para outra coisa
senão para a vida do pensamento. Um pensamento claro
e puro como a água que desce das montanhas. Na verdade,
era entre elas que Almir sabia viver. Foi eleito para usufruir
a vertigem dos altíssimos cimos.
Nasceu aqui na terra carioca no início do segundo
decênio - 1911 - deste nosso confuso e turbulento século.
Magnetizado pela fascinação do saber, o trabalho intelectual
foi, desde a juventude, a sua grande paixão.
A vida das idéias como ao homem que ama a vida
seduz taT~como a frágil força de uma bela mulher. Talvez
tenham sido os secretos, fundos mistérios do ser mulher
que o levaram à sua primeira incursão intelectual pelos
domínios da psico-análise.,Pensador liberto das cadeias
do dogmatismo, recusou a “mística do se x o ” do mestre de
Vjena. O seu primeiro livro - A verdade sobre F reu d - é

91
uma rigorosa desmontagem do médico das aristocratas da
Casa dos Habsburgo. O Império Austro-Húngaro era uma
fábrica de neuróticas. Os homens casavam muito cedo,
para que as fortunas dos súditos de Francisco José não
escapassem das mãos da aristocracia. E como não casavam
por amor, rapidamente arrebanhavam as suas amantes
entre as jovens da classe média. As “mal amadas” fundiam
a cuca. E o dr. Freud e seu divã procuravam restabelecer
a ordem nos cérebros conturbados.
Almir de Andrade, à coisa novidadeira de Viena,
preferia o sólido saber clássico da psicologia. E escreve o
seu segundo livro - Psicologia contemporânea ainda
hoje atual.
A cultura, eis a realidade em que acreditava. No
seu terceiro livro submete aspectos da cultura brasileira a
uma penetrante investigação objetiva .Formação da
sociologia brasileira, obra inconclusa, provocou discussão
nos nossos meios raciais. A guerrilha intelectual começou
com um ataque de Sérgio Buarque de Holanda, que não
mereceu resposta. Sérgio não voltou à tona.
Passaram-se anos de silêncio, até que em 1971,
apareceu o "primeiro volume de As duas faces do tempo,
uma implacável análise do método dialético.
Espírito rigorosamente lógico, Almir não aceitava
a “lógica por vias oblíquas” que á a dialética.
Há uma filosofia moderna brasileira? Se há, quem
a iniciou? A resposta: Pontes de Miranda. Adepto
independente do empiriocriticismo - Mach, Avenarius,
Petzoldt - Pontes passa pela filosofia do Direito, para mais
tarde, fixar o seu interesse no campo da epistemologia
com a Teoria do conhecimento. O seu grande combate é
com o nosso pensamento metafísico, que vinha antes de
Farias Brito. Vinha dos Monte Alvernes e epígonos. E esse
foi também o combate de Almir: contra a metafísica.
Este é um simples registro com o conclusivo fim de

92
não deixar passar em branco a perda de um brasileiro que,
como todo filósofo, foi um sábio e quase santo.

93
» Portinari

Assim como Heidegger, ao falar de Hõlderlin,


elevou a poesia a um plano teogônico, assim também não
se pode pensar em Portinari sem alçar a pintura a um nível
mítico.
Mítico no sentido de mágico, tal como o concebe
Dacqué, o mágico considerado como intimidade do homem
com a natureza, busca de uma síntese suprema na qual se
diluam os dualismos sujeito-objeto, vida-espírito, mundo
e ser.
Toda a história de Portinari, toda a biografia de sua
arte, seja sua própria história interior, ou esta outra que se
desnuda nas suas criações, - penso no livro de Antônio
Callado - pode ser narrada num ritmo de mutação
incessante, a história de um artista insatisfeito consigo
mesmo, caminhando de experiência em experiência, de
demanda em demanda, de busca em busca, de pesquisa
em pesquisa, na consecução de uma forma que, sendo
mais do que estilo, possa ser digno de uma concepção do
mundo, via aberta no reino das idéias, imagem capturadora
de toda a matéria plástica - luz, cor, desenho, densidade
- de que se nutre o Universo.
Ide ver, G uerra e p a z , ou B oizinho s, ou
Descobrimento e bandeiras, ou Gado, ou ainda Vaqueiros:

95
vossas pupilas se dilatam, imersas neste cosmos de formas
vivas, descobrindo por trás do simples mundo dos objetos
a existência de um outro universo super, extra, híper,
excelso real: o mundo dos objetos estéticos.
Estéticos só? Não, não só estéticos. Um dos traços
da genialidade de Portinari está, precisamente, em que,
pelo operacionismo de sua pintura, ele amplia o campo da
ação simbólica, levando-a a um ponto em que ela, não
coincidindo com o estético, encontra sua última fronteira
no artístico.
Estamos habituados a admitir que são coincidentes
os dois conceitos - o estético e o artístico, dados como
sinônimos. Não é assim, todavia.
No artístico verificam-se implicações muito mais
profundas e complexas que as que se operam no estético,
o qual não é, senão, uma lâmina do artístico.
Em Portinari é fácil de ver. É fácil de sentir o
domínio dos procedimentos técnicos e a perfeição dos
comportamentos estilísticos.
É com forte poder que ele governa o espaço,
disciplina a cor, ritmiza as linhas, depura os volumes.
Mas nada disto é suficiente para lhe explicar a
grandeza, embora tudo isto signifique grandeza estética.
Que explica, então, a grandeza de Portinari?
Ela só pode ser explicada pelos axions artísticos
que se dão na sua pintura.
Ali há uma vontade de forma, uma potência de
forma. Mas há, também uma transcendência - é na sintaxe
do valioso que se ordena sua arte. Arte é valor. O mais alto
valor. O único valor. O resto, - é resto.

96
• A História da literatura
de A lfredo Bosi

Com lo n g ín q u a s raízes em Marcus Fabius


Quintiliano e Valerius Maximus, a história literária é uma
criação do século XVIII. Fundou-a Johan n Gottfried
Herder, com Von deustscher art u n d kunst (1774). Sob o
influxo da mentalidade positivista a história literária,
tendo se orientado para o acúmulo enorme de nomes,
datas e fatos, terminou por se transformar numa ancila
historiae. Desde o I Congresso Internacional de História
Literária, realizado em Budapeste, em 1931, essa disciplina
se tornou objeto de intermináveis controvérsias. Naquele
ano, na capital húngara, o romeno Dragomirescou postulou
a adoção de um método estético-crítico que levasse à
análise da obra em si mesma. Buscava Dragomirescou a
autonomia da ciência literária, independência que julgava
consistir na prescrição do método histórico. O mesmo
problema já havia surgido no domínio da história das artes
plásticas, representado pela contraposição do método de
Karl Schnaase ao de Ja c o b Burckhardt. Essejproblema, foi
resolvido com a fundação de uma scienza nuava\ . a
filosofia da história das artes visuais, criação de Alois Riegl
e Max Dvorak. Contra a postulação de Dragomirescou
insurgiu-se René Jasinki, que não compreendia com o se

97
pudesse escrever história literária renegando o método
histórico. E está parcialmente certo, porque os fatos da
vida espiritual não acontecem no vácuo. Se não se pode
considerar a literatura do ângulo estritamente historicista,
também ela não pode ser tratada do ângulo estritamente
esteticista. Seria substituir uma unilateralidade por
outra. A arte é um testenxunliQ.do te m p o jiia s testemunho
crítico, circunstância que, de si mesma^ já lhe confere
autonomia em relação ao próprio tempo.
Para o problema da historiografia das artes
plásticas, Riegl e Dvorak encontraram solução nas
chamadas Ciências do Espírito ( Geisteswissenschaften),
qu e fo r n e c e u as b a s e s da H istó ria do E sp írito
( Geistesgeschicbte). As Ciências do Espírito surgiram,
com Dilthey, na Alemanha weimariana, como reação ao
materialismo positivista. Com o seu livro Das erlebnis
und die dichtung, publicado em 1905, Dilthey estabelecera
os critérios metodológicos da gnoseologia das Ciências
do Espírito. Elas não podem adotar a epistemologia das
ciências naturais, postulada pelo materialismo positivista,
porque são uma ciência humana. Não lhe com pete, como
às ciências exatas, explicar os fatos, mas compreendê-los.
O determinismo casualístico das ciências naturais~cê3 e .
nas investigações das Ciências e da História do Espírito,
lugar à com preensão psicológica, a qual permite fixar as
sín teses co m p en d ia d o ra s através da p esq u isa das
significações. Sob o influxo de Hegel, a escola de
Dilthey, que absorveu também as lições de Croce, elaborou
o conceito de esfera da cultura humana objetiva, que
define a história com o geistesleben: expressão da vida
espiritual. Assim, a visão da história liberta-se da estreiteza
naturalística, que lhe era imposta pela metodologia
mecânico-positivista. E assim, também, a questão proposta
em Budapeste, em 1931, na verdade há vinte e seis anos
já estava resolvida, através da instauração de uma

98
gng^eolagi^~Qye_abrange a totalidadgj i a s manifestações
dajyjda-esj^iritual, permitindo o seu perfeito eatendimento
e a sua conseqüente valoração crítica. Essa orientação,
que deu na historiografia das artes visuais, em Riegl e em
Dvorak, em Wõlfflin e em Worringer, deu, na investigação
literária, um Gundolf, um Cysarz, um Günther Müller,
um Burdach, um Rudolf Unger. Nas ciências sociais, um
W eber, um Karl Mannheim. De lá descende Georg
Lukács. E também Erich Auerbach. Ela permitiu a
investigação ideológica do espírito objetivo - arte e
literatura são expressões objetivadas do espírito humano.
Expressões das grandes coisas que estão consignadas ao
homem.
Esta visão que talvez se pudesse chamar. d er no
sentido^-an^la^jd^ste-termq2^:-ulLuralística, enforma o
novo livro de Alfredo-Bosi - História concisa da fiteratura
Brasileira. O autor, que já nos havia dado o esplendido
ensaio que é Opré-modemismo, não se amoldou à rotina
e à inércia mental, em seu novo com pêndio, marcado por
um profundo sentido revisionista da nossa história literária.
Alfredo Bosi não procura esboçar apenas o diagrama da
evolução da nossa literatura, buscando a encheiresis, a
ligação espiritual entre fenôm enos de ordem diversa. Na
consideração do fato literário, ele atende à exigência
crítica fundamental, formulada por Coleridge, que consiste
na suspension of disbeliej\ sem a qual não com preen­
deremos jamais as obras que exprimem valores diferentes
dos nossos. Mas o atendimento dessa exigência não leva
Alfredo Bosi a .considerar a história com o simples
cronologia. Ele a entende e a pratica com o função crítica,
reavaliação de obras e autores, ê não com o mera
enum eração de fatos encadeadps no transcurso da
ev olu ção literária. Esta prática crítica prom ove a
contem poraneidade do passado, ào mesmo tempo em
que destrói as falácias de julgamento dos autores e obras

99
contemporâneas. Porque fundamenta o seu código
crTtlco numa weltkonzèption, Alfredo Bosi busca a
funcionalidade política da literatura.
O caráter social da literatura não resulta somente
do fato dela ocorrer num determinado contexto histórico.
Sendo a literatura obra de arte da linguagem, pelo fato
básico da língua constituir a matéria primeira da obra
literária, já que aqui a literatura, em virtude dessa
circunstância, adquire sentido social: nada há de mais
social do que a língua. O ^aráter social da literatura
advém da própria natureza da matéria-prima de qué ela
se serve, como instrumento de comunicaçãòTfmmana.
Por outro la d q ^ o fato inequív_o^_dg_obra^-de-^rte
constituir uma força propulsora do.desenvolvimento da
humanidade, exige do historiador e do crítico qug a sua
consideração se faça em nível político.
O passado artístico e literário representa, na
realidade, “recordações da humanidade”. Se ésse passado,
nas mãos do historiador, não se tornar coetâneo, a
hfstória da literatura e da arte transforma-se num imenso
cemitério. A história literária só nos interessa na medida
em que deixa de ser uma vasta necrópolis e transforma-
se num desfile de obras vivas. Esta é a única forma de
fazer o passado perviver. De fazer com que ele deixe de
ser pretérito perfeito e assuma a condição de grésente
indicativo. É por isto que em todas. as épocas cada
geração sente aLnecessidade de reescrever ajtüstória, ato
que implica sempre numa revisão de julgamentos. É
evidente que essa revisão só pode fundamentar-se numa
lebenschauung, numa concepção da vida e do mundo,
que os espíritos afeitos à rotina, ao imobilismo e ao
conservadorismo sempre repelirão.
Não se trata aqui de defender a grosseira angulação
estética de um Zdanov, de um Revai ou de Maurice
Mouilland, ou ainda de defender um sociologismo
reducionista, mas de reconhecer, como acentuou Lukács,
citando um exemplo singelo, numa entrevista de 1968 a
uma revista húngara - Kortars - que até um poema de
amor, pelo simples fato de ser endereçado a uma mulher,
é poema “participante”. Queiram ou não queiram os
‘obscurantistas de todos os tempos e quadrantes, a arte
x/ia um novo governo entre os homens, uma nova ordem
humana, e esta é a razão pela qual os estados e sistemas
políticos anti-humanos detestam eperseguem os artistas.
Sentern-se roubados no controle da consciência humana,
que desejariam exercer sem contestações. Este é o móvel
das envestidas contra a integridade dos intelectuais
autênticos, investidas que se multiplicam na sociedade
contemporânea que refina, cada vez mais, os instrumentos
de manipulação da alma humana, na sua busca insana de
substituir a autonomia espiritual do homem por uma
consciência letárgica.
O grande mérito do novo livro de Alfredo Bosi
está precisamente no fato de não ser obra enformada por
uma visão áulica da literatura. Por isto mesmo é que
Alfredo Bosi abre espaço, nesta História concisa da
literatura brasileira, a obras como a de Sousândrade e a
de Kilkerry, já valorizadas pela aguda consciência crítica
de Augusto de Campos e de Haroldo de Campos. Esta é
também a primeira história da literatura brasileira a
integrar no nosso patrimônio espiritual a figura de Otto
Maria Carpeaux, que incorporou à nossa ensaística a
dimensão das ciências do espírito e da sociologia do
saber, enriquecendo extraordinariamente a cultura
brasileira.
Nesse processo de incorporação, é pena que, no
capítulo em que Alfredo Bosi tratou do nosso barroco,
tenha omitido a figura singular de Athayde, cuja menção
se impunha, sobretudo em face da referência ao
Aleijadinho e a Joaquim Emérico Lobo de Mesquita e

101
Marcos Coelho Neto, estes, os grandes com positores
mineiros do século XVIII. Manuel da Costa Athayde não
foi som ente o extraordinário artista plástico cuja pintura
“valente e espaciosa”, com o ele mesmo a definiu, faz
pendant com a arquitetura e a escultura do Aleijadinho.
Francisco Antônio Lopes reco lh eu , na História da
construção da igreja do Carmo de Ouro Preto, página 165,
uma exposição de Athayde sobre o risco, de sua autoria,
do belíssimo altar-mor da Igreja do Carmo, que é um
texto de tal acuidade com o, inclusive hoje, raro seria o
pintor ou artista visual capaz de redigir, tais as suas
virtudes de estilo, a finura das observações, a correção
dos alvires, o acerto das sugestões — em síntese, uma
página que é alta lição de estética. Um livro estruturado
na visão culturalística não podia ignorá-la, com o não
ignorou as partituras de Mesquita.
É p r e c i s o fr is a r q u e , na su a a b o r d a g e m
culturalística do fato literário, acentuando-lhe a modulação
política, Alfredo Bosi não relega a segundo plano a
especificidade literária. Não perde jamais de vista a
“literaliedade”, aquilo que os formalistas russos chamavam
de literaturnost - ou seja, o conjunto de valores que
confere à obra literária a categoria de obra de arte da
linguagem. Este enfoque múltiplo do nosso patrimônio
cultural faz da História concisa da literatura brasileira
um livro indispensável.

102

Dante Costa

A leitura dos últimos livros de ensaios literários


editados - Augusto dos Anjos e outros ensaios, de M.
Cavalcanti Proença; Dimensões //, de Eduardo Portella;
Cadernos de crítica, de Antônio Olinto; e este Os olhos nas
mãos, de Dante Costa - vem recolocar no meu espírito um
problema sobre o qual já pensara: o da transposição para
o plano literário da divisão da ciência geral da beleza
quando ela foi seccionada em estética e teoria da arte.
Parece-me, se muito não erro, que essa transposição é
uma fatalidade da qual dificilmente escaparemos, quando
animados de propósito de uma perfeita e clara compreensão
do fato literário no Brasil dos nossos dias. A crítica estética
que é, por excelência, a crítica formalista,'pelo fato básico
de colocar sua ênfase na apreciação exclusiva dos valores
ártísticos, termina conduzindo a uma visão negativa da
nossa literatura tão carente dos valores da beleza pura. Só
escaparemos desta visão negativa através da adoção de um
mélodo culturalista capaz de abranger a obra literária na
multi-dimensionalidade de seus significados e valores.
É a partir do objetiviswmo estético de Max Dessoir
que começa a se destacar da estética a teoria geral da arte.
Enquanto a estética se mantém como filosofia do belo, a

103
teoria geral da arte passa a ser, com Dessoir, Utitz,
Schmarsow, Christiansen, etc., ciência do valor e da
natureza da arte. Isto porque estando a estética confinada
ao campo da beleza, do puramente estético, não abarca as
feições sociológicas, éticas, axiológicas apresentadas pelo
mundo da arte - mundo que é sempre uma representação
ecumênica de valores e não só de um único valor: o valor
estético. A obra de arte não compreende só a beleza pura
mas todo o valor: ético, religioso, político, etc. Neste
sentido Kainz já demonstrou que não coincidem os
conceitos de estético e de artístico. Da constatação dessa
discrepância surgiu a necessidade da fundação da teoria
da arte como esfera científica na qual se estuda a arte: o
que ela é em suas manifestações. Ocorreu tal bifurcação
das ciências que estudam a arte no campo das artes
plásticas. Mas quando as artes e ciências literárias tomaram,
a partir de Walzel e Strich, de empréstimo às artes visuais
as categorias de Wõlfflin, para aplicá-las à investigação
literária, torna-se possível, pelo precedente, ampliar aquela
área de empréstimo, transpondo para a literatura métodos
e processos da teoria geral da arte. É claro que a
transposição não pode ser feita em bruto, mecanicamente.
Não se trata de aplicação pura e simples, antes de ter um
modelo de pensamento que permita nova luz sobre os
problemas da criação e da arte verbal.
O livro de Dante Costa sugere essas reflexões.
Lendo-o, encontramos no seu autor, o desejo de pôr em
realce os valores intensivos da nova literatura brasileira. E
o estético, - ensina Kainz - é a manifestação mais pura dos
valores intensivos que são aqueles em que apreciamos o
objeto pelo objeto^ valorizando-o à base de sua própria
significação interior. Mas ao laao desta preocupacâo
estética, surge em Dante Costa- outra: a de pôr em relevo
os aspectos éticos, morais, filosóficos e ideológicos da
nova literatura brasileira. E nisso a sua visão parece que

104
se coloca sob o influxo da filosofia crítica de Bernard
Berenson quando diz que os fins supremos da crítica de
arte, se é que existem , devem ser encontrados na
intensificação da vida. (7fitii ultimi delia critica d ’arte,
se m ai esistono, debbono ricercasi nelVintensificazione de
vita... - Bernard Berenson, Estética, ética estória nelle arti
delia reppresentazione visiva, Firenze, Milano, 1958).
Autor, em colaboração com Santa Rosa e Rodrigo
de Melo Franco de Andrade de dois livros sobre a pintura
brasileira, - (quando Dante Costa quer caracterizar qualquer
coisa emprega sistematicamente a palavra cor) - não é de
se estranhar que o ensaísta de Os olhos nas mãos tenha por
norma literária um dos preceitos da crítica das artes
visuais. Mas, submetido ou não à filosofia crítica que se
estrutura na idéia de intensificação da vida, a verdade é
que Dante Costa não se contenta com os aspectos estéticos
da obra de arte literária. Neste seu livro, cujo título define
o caráter visual de seu temperamento, ele quer “a cor das
alegrias e das aflições humanas".
Nestes ensaios vemos Dante Costa denunciando
ora o conformismo do novo romance brasileiro, ora o
caráter reacionário desse romance.^ o ra o c aráter de
disponibilidade dos novos escritores, inteiramente alheios
aos problemas brasileiros. Sua palavra é dada para
eHimufàFlfre^rtã^cõTTltfa a passividade e o conformismo
da inteligência brasileira e sua falta de vinculação com a
vida do nosso tempo, no nosso país.
Se na ficção de Jo ã o Guimarães Rosa encontra
Dante Costa a revelação revolucionária dos mais tremendos
aspectos sociais da realidade brasileira, no romance de
Ernani Sátiro vê uma m an ifestação reacio n ária de
“a c o m o d a ç ã o d a s s i t u a ç õ e s e c o n ô m i c o - s o c i a i s
definitivamente condenadas”. Por isto pede aos nossos
romancistas que ajudem a “construir o lado positivo”. Até
hoje o romance brasileiro, sobretudo o romance rural,

105
esteve voltado para o Brasil arcaico: quer denunciando-o,
como no caso de Guimarães Rosa, quer com ele se
acomodando como no caso de Ernani Sátiro. Mas o Brasil
está largando a velha casca e, se isto é sinal de mudança,
é preciso que não fiquemos cegos com a luz que possa
resultar dessa mudança. A substância da estrutura feudal,
pela qual tanto se bate Dante Costa, não implica
necessariam ente na instalação de um regime social
presidido pelos ideais de justiça social.
Autor de um livro de divulgação sobre o socialismo
e membro militante do Partido Socialista Brasileiro, Dante
Costa sabe que processos de industrialização do tipo que
se implantou hoje no Brasil conduzem a situações de
servidão social que poderíamos definir como feudalismo
urbano. É preciso denunciar com veemência o Brasil
retrógrado, o medievalismo rural, mas sem esquecer que
a nova sociedade urbana já vem surgindo basicamente
imoral. A crítica socialista de Dante Costa está obrigada
a esta tomada de posição. Quero vê-la engajada nesta
denúncia, que já com eça a tardar.
Escrevendo uma prosa cordial e tranqüila, fundada
“numa linguagem simples e mansa”, como a chamou Mário
de Andrade, a crítica de Dante Costa é eminentemente
impressionista e, às vezes, menos que isso, mas talvez este
m enos e se explique pelo fato de que ele a escrevia para
um jornal de circulação circunscrita às classes trabalhadoras:
a operários. O louvor a esta sua generosa decisão de
escrever para operários não impede que condenemos no
autor equívocos de julgamento a que é levado pelo
emprego arbitrário de padrões artísticos. Assim, por
exemplo, a um escritor absolutamente secundário, Dante
Costa resolve identificá-lo como “dono de um instrumento
afinado, ao qual não faltam as notas sensíveis da boa
música de câmera, para essa música de entretons e de
surdina”.

106
Ora, a música camerística é arte de intimidade, arte
de delicadeza e finura egrégias, o recôndito santuário de
tòda a música. Pelo seu tom velado, sua natureza
confidencial, de arte em voz baixa, a música de câmera
ilustra, com seu requinte raro, a assertiva de Berenson de/ js
que a arte é um monarca demasiado poderoso para ter que
dar gritos e fazer alaridos a fim de chamar atenção. Este
monarca silencioso não vem na tempestade e na com oção,
mas com voz tênue e tranqüila. V a rte é un a sev ra n a troppo
possente p e r aver bisogno de g rid a re e d e strillare p e r
attriare attenzione. II Signore venne a d Elia non nella
tempesta e nelfracasso, na con u n a tranquilla esile voce.
Como, pois, tomar uma voz inarticulada pela voz que não
grita, não por falta de força, mas porque sua força é
delicada, contida, energia civilizada?
Volto ao ponto inicial destas notas: dadas as A
tarefas de denúncia social e ação revolucionária a que está è^
obrigado o novo romance brasileiro é necessário que a sua r
y, ‘
abordagem obedeça a imperativos tanto filosóficos, morais,
ideológicos e éticos quanto estéticos.
Na medida em que escreveu seus artigos para
trabalhadores - foi, com Jo ã o Mangabeira, fundador^do
Partido Socialista Brasileiro, - Dante Costa atendeu a essa
convergência de propósitos, aprofundando o esforço hoje
necessário à diminuição da distânciá entre produtores e
consumidores de arte. É necessário aproximá-los para que
a arte possa operar estética e moralmente. Operar
revolucionariamente.

A 'J Qsqk 0^ 3 K ajl


/vo

107
Carece beleza, repete Zelão

Quem quer que conheça a filosofia da história da


cultura artística, ainda que a vôo de pássaro, está
familiarizado com o nome de Wõlfflin. Este teórico
qüeria que se escrevesse a história da cultura estética
sem mencionar autores: “Uma história da arte sem
nomes", era a fórmula em que sintetizava a sua teoria.
Não que Wõlfflin menosprezasse os autores. O que ele
pretendia era valorizar o que eles faziam, valorizar, as
obrãs, e tão só as obras.
Este breve ensaio segue, de uma forma não
ortodoxa, a doutrina do grande mestre germânico. Não
ortodoxa porque, vez que outra, seremos obrigados a citar
autores. E vamos começar lembrando José Veríssimo que,
num estudo de 1894, citava Valentim Magalhães, segundo
o qual a nossa literatura “é uma literatura sem livros”.
Quase um século transcorrido sobre esta observação,
continuamos sendo uma literatura sem livros. A produção
literária nacional sempre foi intensa, mas invariavelmente
carente de obras significativas. Houve, é claro, uma
inflação de poemas e poetas, mas o verdadeiro status de
grandeza de uma literatura não lhe é dado pelas formas
líricas, mas pela prosa, em particular a prosa de ficção.

109
Ela absorve o tecido íntimo do poema e acrescenta-lhe
uma outra dimensão que ultrapassa os limites da pura
subjetividade ou do em ocionalism o mais frenético.
Acrescenta-lhe a carga do jgensamento, sobretudo do
pensamento" que tem suas raízes^ deitadas na mais alta
forma de sàBedoria: o saber que emana da vida, enquanto
experiência individual e social. O saber adquirido na
leitura do quotidiano, do qual nenhum ser hu m ana se
demite. Pode-se ser grande poeta aos 18 ou 20 anos, mas
jamais se será grande prosador, sobretudo grande ficcionista*'
na juventude, que é a negação de vida acumulada.
E§ta_é a razão pela qual temos literatura, mas não
temos livros - J ivr o s e n ten d ido a q u i o termo no sentido de
instrumentos iluminadoreiLda existência humana. Seriamos
grosseiramente inverídicos se não lembrássemos que, no
final do Segundo Reinado, para ficarmos rente à história,
existiram Machado d_e_ Assis e Raul Pompéia. Só num
p erso n ag em ^ Rubião - Machado nos deu o retrato do
Brasil inteiro, tal como ele é.até hoje: um país desnorteado,
padecendo da falta de objetivos, beirando a desintegração.
E Pompéia nos deu a crítica mais radical da escola, tal
como ela continua sendo até hoje^-uma máquina de-fazer
dinheiro. Tirante estes dois autores, nenhum outro procurou
dar em sua obra a visão global da sociedade brasileira, em
seus romances, no qual o individual e o social entrassem
em interação concreta. Durante toda a primeira metade do
nosso século continuamos assim, sem romances que
abarcassem a compreensão totalizadora da sociedade
brasileira, apesar da existência de autores do porte de
Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. E nos últimos 25
anos?
Neste quarto de século, o quadro não mudou,
embora a situação histórico-social que adjetiva a criação
romanesca tivesse sido profundamente alterada. ,
Houve 1964. Houve a supressão de todas as

110
liberdades públicas e privadas. E houve a modernização
conservadora, que modificou toda a filosofia da sociedade,
tornando-a mais complexa. Apesar de toda esta mudança
e de todo o imenso material que ela colocou à disposição
dos ficcionistas, eles não seguiram o conselho de Henryk
P o n to p p id a n , o m e stre in su p e rá v e l do ro m a n c e
dinamarquês deste século. Deixaram esfriar a sua cólera.
Perderam a sua capacidade de indignação moral. O herói
vertical, que fizera a sua primeira aparição em nossa
novelística em G rande sertão: veredas, cedeu lugar ao
herói deitado, o herói surrado, do qual nos falava Brecht,
ou seja: o personagem irresoluto.
Por que isto? Por que esta queda na desistência? A
explicação mais corrente é a de que, com a opressão
política instaurada em 64, o romancista tinha de perder a
voz. Nada mais falso, absolutamente mais inverídico.
Vejamos dois grandes exemplos históricos que desmentem
tal assertiva.
No século XIX não havia na Rússia tzarista nenhuma
espécie de liberdade. Nem de imprensa, nem de cátedra,
nem de púlpito, nem parlamentar. E que aconteceu? O
romance russo transformou-se no grande fórum em que
foram debatidos todos os problemas que tornavam a vida
humana insuportável na Rússia. De Gogol a Gorki, todos
os ficcionistas assumiram frontalmente a denúncia da
sociedade e do Estado em que viviam. As prisões, as
deportações, o exílio, em síntese, a repressão não os
intimidou. Se este é um exemplo do século passado, há um
outro bem rente à nossa época e às próprias raízes ibéricas
da cultura brasileira. As condições repressivas da Espanha
de Franco não impediram Cela de nos dar um imenso
painel de Madri açoitada pela fome, o desemprego e a
miséria. O mesmo aconteceu com Juan Antonio Zunzunegui,
Ignácio Augusti, Jo sé Maria Gironella, Juan Goytisolo,
Ferlosi, Ferreter e tantos outros ficcionistas que revolveram

111
todos os segmentos da sociedade hispânica, denunciando
as suas misérias e injustiças. Então, temos que a opressão
política não explica o caso brasileiro, com o não explicou
o do Portugal salazarista de Alves Redol, Orlando da Costa,
etc.
O problema é outro. E tanto é outro que, com a
abertura política, os romancistas reapareceram, mas para
tratarem de um tema que já havia perdido o seu hoje, aqui
e agora: o tema terrível da tortura política. Ficaram presos
no passado, embora passado recentíssimo. O presente de
uma sociedade que se diversificara, tornara-se mais
intrincada, engolfara-se em novos tipos de pobreza e de
miséria - miséria física, miséria psíquica, miséria emocional
- esses problemas não sensibilizaram os escritores, ainda
presos ao problema da tortura ou “revolução sexual” vista
como revolução social. Com a modernização conservadora
não subsístíram apenas as velhas classes sociais. Surgiram
outras, inclusive uma nova classe média e um novo
proletariado. Em co n seq ü ên cia, m ultiplicaram -se as
anomias sociais, as contradições de classe se transformaram
em antagonismos de classe. Ruíram vetustos padrões
morais, e não surgiram novos valores éticos, fyludou a
estrutura da família, não na base de uma nova deqntologia
mas de uma permissividade que encobre a prostituição.
Desorganizou-se a economia. Enfim, a sociedade foi posta
de pernas para o ar. E onde está o romancista, brasileiro
para oferecer o seu testemunho, a sua denúncia, a su,a
acusação ?
^Estamos pedindo romance, romance mesmo, e não
panfleto. Estamos pedindo o nosso Dickens, o nosso
Balzac, o nosso Tolstoi, o nosso Dostoievski, o nosso
Turguêniev, ou seja, romancistas que começaram a ver a
sociedade tal como ela é, desde os tempos de La celestina.
Romancistas que vejam sobretudo a cidade, esta sucursal
moderna do inferno, em cuja entrada, como no verso de

112
Dante, em geral, deixa-se toda a esperança. A cidade
brasileira de hoje, seja a das grandes áreas metropolitanas,
seja a cidade perdida no interior de Goiás, Mato Grosso ou
Minas, de São Paulo ou Rio.
Um dos nossos novos escritores, Carlos Tavares*
erti O ventre do diabo, seu livro de estréia, criou um
personagem extraordinário: Zelão, que vivia repetindo o
seu apotegma: “Carece beleza”. A beleza é o único poder
que salva o mundo, se a entendermos como a forma
suprema da verdade e da justiça.
Mas, por que faltam ao Brasil, os romancistas dos
quais precisamos com urgência?
^ A resposta é: porque temos intelectuais, temos
^ intelectualidade, mas não temos intelligentsia, no sentido
do term o . Esta é co n stitu íd a p e lo se g m e n to da
intelectualidade que dela se aparta e vai à frente, indicando
ao hom em que há outras p o ssibilid ad es de vida,
possibilidades que os intelectuais convencionais, por
convivência com os donos do poder, omitem ou negam.
Eis a chave da questão, do problema aqui proposto, ou
seja*, o da ausência de romances que reflitam o Brasil de
aqui e agora êsse Brasil que nega os direitos de cidadania
aos seus próprios filhos. O refrão do grande persomagem
de Carlos Tavares é férro em brasa na carne podre çjas
elites brasileiras.

113
•O r e s g a t e de um g r a n d e
escritor

Depois do surto do chamado Romance do Nordeste,


que data dos fins da segunda década do nosso século e que
era um romance predominantemente rural - Rachel de
Queiroz, Jorge Amado, José Lins do Rego, excetuado
Amando Fontes que, com Caçulinha (Os corumbas) faz
uma inflexão urbana e proletária sT Graciliano Ramos a
ficção nordestina dá seus últimos frutos por volta de 1938.
Durante dezoito anos o poder criativo dos nossos ficcionistas
hiberna. Mas em 1956 esse poder não só se refaz, como
muda de rumo. O espaço que na nossa literatura de ficção
era ocupado pelos nordestinos transfere-se para o Centro
Oeste. Surgem os nomes dos mineiros Cyro dos Anjos e
Mário Palmério. O primeiro pratica o romance psicológico,
enquanto o segundo persiste na linha da ficção de cos­
tumes. O deslocamento geográfico não acrescentaria nada
ao Romance do Nordeste: Os mineiros continuam a tradição
da novela de costumes, usando o coloquial da região,
in te ira m e n te d e s p r e o c u p a d o s com os p ro b le m a s
arquitetônicos, a armadura interna do romance. Sobretudo
limitam-se a narrar, deixando soterrado sob a trama das
estórias e sentido social mais profundo da criação literária,
que se traduz no seu poder contestátorio.

115
Mas eis qu e, nesse ano de 1956 ap arece Jo ã o
Guimarães Rosa, não só com as suas invenções lingüísticas
e sua renovação estilística. O sentido social de sua obra fica
ainda subentendido. Descobri-lo é a tarefa que o ficcionista
passa aos leitores. Com o deslocam ento da ficção nacional
para o Centro Oeste a estratégia narrativa de Guimarães
Rosa não se altera. Não só com Rasa perm anece a técnica
do sub-entendido. Ti com o goiano Bernardo Elís, no
romance O troncoy que a revolta aparece como uma das
lâminas da ficção. Com o goiano Bernardo Elís e com o
matogrossense Jo s é J. Veiga, a partir de suas novelas
esópicas, quase alegóricas.
Desta forma, a herança de um grande ficcionista
goiano -^Hugo de Carvalho Ramos - a literatura do Centro
Oeste assume sua verdadeira missão. Não há mais o
descritivismo geográfico das páginas de Afonso Arinos
celebrando o seu buriti perdido.
As nossas histórias literárias - cada qual repete o
que já foi dito com o se a história literária fosse uma receita
a ser aviada na mesma farmácia - ou caem na linearidade
de Jo sé Veríssimo, no esteticismo de Ronald de Carvalho,
na salgalhada cientificista de Sílvio Romero etc., ou na linha
da disciplina acadêmica, melhor dizendo da universitária,
de Alfredo Bosi. Desses vários tipos de comportamento
resulta às vezes a reavaliação da obra de escritores
fundamentais. Na maioria há apenas a repetição do que foi
dito.
Hoje, por exem plo, não há quem não repita que foi
j em 1918 com o Urupês, de Monteiro Lobato, que a nossa
, ficção regionalista se distanciou do lirismo hínico de
Afonso Arinos ( Buriti) ou de Inglês de Souza, no seu
I deslumbramento amazônico.
Ora, Monteiro Lobato não foi o pioneiro, que a
crítica dos professores apresenta com o o renovador do
nosso regionalismo.

116
Um ano antes do aparecimento de Urupês já existia
o T ropas e boiadas, de Hugo de Carvalho Ramos. Nascido
em Goiânia em 1895, ele instaura uma nova linha na nossa
ficção regionalista: - a linha do protesto, da contestação e
da revolta contra a ordem feudal imperante na nossa
hinterlândia. É claro que nas suas páginas vamos encontrar
a descrição da paisagem, dos costumes e hábitos goianos.
Mas o interesse do autor por estes com p o n en tes de sua
ficção é so b rep u jad o pelo seu sentim ento de revolta
social. Os seus p erso n a g en s não são “b o n e c o s ”, mas
hom ens que sofrem , p orq u e vivem na miséria e são
e s p o lia d o s no seu trab alh o . A d im ensão dram ática
perpassa as suas páginas; seus p ersonagens d escon hecem
o p itoresco de Lobato, não aspiram à co n d içã o de
“sím b o lo s” com o o J e c a Tatu. São ho m en s em luta contra
a fom e, a miséria e as dem ais form as de esp oliação da
dignidade fundam ental do ser humano.

\ \ \0 \ V
V I V
•Ortega: clareza e equívoco

D e um g r a n d e r e g e n t e c o n t e m p o r â n e o
c o n t a - s e q u e , i n t e r r o g a d o s o b r e se e r a e l i t i s t a ,
resp ond eu:
- E litis ta ? Eu? N ão . Sou s u p e r e l i t i s t a . Só o
m e lh o r me s a t i s f a z .
A m e sm a r e s p o s t a p o d e r ia te r s id o d ad a
p o r J o s é O r t e g a y G a s s e t . T o d a a su a a ç ã o
i n t e l e c t u a l f o i m a r c a d a p e lo g o s t o do s e l e t o , a
p a i x ã o do m e l h o r , q u e p a r a d o x a l m e n t e e s t á na
o r ig e m d as c r í t i c a s m a is f e r o z e s q u e lh e fo ra m
m o v id a s . A c u s a r a m -n o de n ã o s e r f i l ó s o f o , p o r q u e
e s c r e v i a m a r a v i l h o s a m e n t e b e m . A c u s a r a m - n o de
r e a c i o n á r i o , p o r q u e se a t e v e a p o s i ç õ e s l i b e r a i s .
A cu saram -n o de in d iv id u a lis ta , p o rq u e r e c o n h e ­
c e u o p r im a d o da p e s s o a h u m a n a . A c u s a r a m - n o
de i r r a c i o n a l i s t a , p o r q u e s u s t e n t o u q u e a v id a -
s o b r e t u d o a v id a h u m a n a - é a m a is p e r e m p t ó r i a
das r e a lid a d e s . A cu sa ra m -n o de o b s c u r a n tis ta
p o r q u e s o u b e v e r q u e a e c l o s ã o p o l í t i c a d as
m a s s a s - a s o c i e d a d e de m a s s a s - n ã o im p o r ta v a
n e c e s s a r i a m e n t e em p r o g r e s s o s o c i a l . V in te e
o i t o a n o s a p ó s su a m o r t e , t o d o s e s s e s e q u í v o c o s
e stã o c o n s ig n a d o s à d isso lu ç ã o . T ra n sfo rm a ra m -
se em l i x o de g l ó r i a .

119
A influência da Escola de Marburgo

Jo s é Ortega y Gasset nasceu a 9 de maio de


1883, em Madri. Seu pai, de quem recebeu o gosto
pelo jornalismo - já se disse que Ortega y Gasset
nasceu em cima de um prelo - , foi o célebre periodista
Jo sé Ortega y Munilla, também autor de novelas e
contos tirantes a Dickens e Balzac. Ortega y Gasset
estudou no colégio dos jesuítas de Miraflores e na
Universidade Central de Madri. Concluído o curso
superior, deslocou-se para a Alemanha: Leipzig, Berlim,
Marburgo. O itinerário da cultura filosófica alemã, a
partir de 1860, sofre uma inflexão: toma o rumo do
neokantism o, cuja plataforma era a superação do
positivismo e do materialismo, através da consideração
crítica das ciências e da fundamentação gnoseológica
do saber.
O reg resso a Kant fora p rep arad o p elo s
adversários do idealism o absolu to de Hegel. O
repertório das idéias que nutrem o neokantismo está
sobretudo na Crítica da razão p u ra , particularmente
nas o b jeçõ es de Kant ao empirismo de Hume. Tornam-
se, na Alemanha, pólos irradiadores do neokantism o
a Escola de Baden e a Escola de Marburgo.
A primeira orienta as suas investigações para o
cam p o das c iê n c ia s da cu ltu ra e da h is tó ria ,
distinguindo entre as ciências da natureza e as ciências
da cultura. Norteia-a um novo tipo de idealismo: o
idealismo axiológico, quer dizer: um idealismo voltado
p a ra os v a l o r e s , em o p o s i ç ã o ao id e a lis m o
gnoseológico, alojado na teoria do conhecim ento. A
Escola de Marburgo ostenta uma tendência mais
racionalista, conceitualista e objetivista, pondo sua
ênfase nas ciências da natureza, inclinando-se para o
modelo da física matemática. Não quer que o saber

120
filosófico se dissolva na intuição romântica do real ou
nas conceituações próprias das ciências particulares.
A Escola d*e Marburgo enfatiza o idealismo
gnoseológico, chegando a um objetivismo radical. É o
ècume lógico do neokantismo, que eleva o campo das
investigações às dimensões do criticismo kantiano. Sua
grande figura é Hermann Cohen, cuja crítica da civilização
o situa nas vizinhanças de um socialismo ético - Cohen
pretendia substituir o materialismo marxista pelo idealismo
kantiano, corrigindo - como já se disse - Karl Marx com
um Kant marburguês. No rastro desse socialismo ético,
desse marxismo kantianizado, que tem seus grandes corifeus
nas figuras de Karl Vorlánder, Friedrich Albert Lange e
Ludwig Woltmann, surgem, de um lado, o reformismo
burguês da Segunda Internacional (Bernstein, etc.) e o
austro-marxismo (Max Adler, Otto Bauer, etc.). Ambos, ao
trocarem Hegel por Kant, sustentam que o socialismo não
pode renunciar à sua dimensão ética.
Apesar de ter estudado, como seu compatriota
Morente, em Marburgo, e ali ter recebido forte influência
de Hermann Cohen, que nele despertou o amor pelo
método científico, Ortega não se ateve aos valores
marburguianos - ele não foi um neokantiano, pelo
menos no sentido de Marburgo.
Encerrado o período germânico, Ortega volta à
Espanha. Com a morte de Nicolás Salmerón, ocupa a
cátedra de metafísica da Universidade de Madri.
Quando Ortega inicia a sua reitoria espiritual, a
cultura espanhola estava afundada numa profunda letargia.
A Espanha movia-se sonambulicamente entre dramáticos
problemas econômicos, sociáis, políticos e humanos. A
primeira reação contra esse estado de inconsciência
cultural partiu de Unamuno.
Os grandes nomes da Geração de 98 haviam feito
da Espanha o seu tema, o seu drama e o seu destino.

121
Unamuno foi, dos grandes espanhóis, aquele que mais
sentiu a tragédia espanhola. “Cemeterio de vivientes,
cárcel de sueltos, Espana...”, diz num de seus poemas.
Antônio Machado, outra altíssima voz de 98, via projetada
sobre a Espanha “la sombra errante de Caín*. E foi
justamente este “com plexo de Caim”, exacerbado pela
guerra civil franquista, que levou Américo Castro a
instaurar uma visão totalmente revolucionária da história
da Espanha. Ora bem, Unamuno foi o primeiro a reagir
contra a abulia em quê sua pátria se abismara. Mas
Unamuno, poeta de alta voltagem, preocupava-se muito
pouco com o rigor intelectual. Compreendeu, mais
agudamente do que qualquer dos seus contem porâneos,
que o problema espanhol era acima de tudo um problema
de disciplina intelectual, e que a Espanha não sairia da
condição em que se encontrava se não pusesse fim à
confusão conceituai em que os espanhóis adernaram.
Ortega em preende uma jornada a favor da clareza, da
claridade mental, da precisão e do rigor intelectual, como
imperativos da salvação nacional. Mas a diáfana clareza
que ele reivindica não podia ser algo sobreposto à vida,
algo externo à vida. Ela tinha de ser entendida còm o a
vida em sua própria plenitude - vida na sua significação
mais profunda. A claridade não era um adorno, mas o
núcleo irradiante da vida. Sem a sua posse, a vida ficaria
sem sentido: os hom ens não sairiam do estado de
inconsciência - viveriam com o sonâm bulos, sem saber
a que ater-se.
A clareza que Ortega procurou com o escritor não
era só um signo de perfeição estilística, seu emblema de
grande domador da língua. A desnuda limpidez, a casta
nudez de sua prosa - a mesma luz que banha a pintura
de Miró lava a dicção de Ortega - antes de ser exigência
literária, era exigência ontológica: brotava de um ser
enraizado na vida.

122
Não só não se coloca sob esta ótica o problema do
estilo de Ortega y Gasset, como brande-se as suas
excelsas virtudes de escritor contra a sua condição de
filósofo. Nesta linha, chega-se a negar o seu status de
p e n s a d o r s u b s t i t u í d o p e lo p a p e l de b r i lh a n t e
prestidigitador de idéias, senão que de hábil vulgarizador
de pensam entos alheios. Se a clareza fosse um dado
afilosófico, com o ficaria Hume? Argui-se ainda contra
Ortega o fato de não ter sido um filósofo sistemático, um
construtor de sistemas.
Falta sutileza à arguição. Ela é demasiado ...
sistêmica.
A crise da filosofia clássica européia exprimiu-se
na dissolução do idealismo hegeliano. Hegel tinha como
seu objetivo supremo criar uma gigantesca construção
filosófica que tudo abarcasse: natureza, pensamento,
história. Tudo Hegel submetia às suas próprias categorias
filosóficas. E confiava poder superar todas as contradições.
Mas esbarrou diante de uma: a contradição gerada pelo
método filosófico empregado na construção de seu sistema
e o próprio sistema que ele criou: o idealismo absoluto.
Foi esse intento - o da edificação do mais gigantesco
sistema surgido na história da filosofia - , que determinou
a destruição da idéia de sistema. Mas S* há de perguntar-
se - a noção de que sistema?
O abandono da idéia de sistema não implica
necessariamente aspecto pela luta contra o racionalismo.
E isto porque não há coisa alguma que seja organicamente
mais arquitetônica do que a razão humana, que relaciona
entre si as coisas e harmonicamente as torna conjugadas.
A razão elimina a incoerência, a incongruência do ato de
p e n s a r - to r n a - o logicamente solidário. Logo, a queda do
espírito de sistema não pode ocorrer na mente do
f iló s o f o , q u e é o g ra n d e a r tic u la d o r das c o isa s
aparentemente díspares. Depois da desagregação do

o o* \ ^
123
hegelianismo, o que ocorreu foi o colapso dos sistemas
cerrados - dos sistemas autárquicos, o que não significa
a morte do sistema como tal.
ôr Os sistemas abertos não podem desaparecer pelo
simples motivo de não ser possível pensador destituído de
espírito de disciplina, de ordem, de ordenação, pensador
que não seja dotado de capacidade construtiva, que não
seja arquiteto de idéias. Q pensamento filosófico,não se
constitui na base do rapsódico, mas do sinfônico . O fato
da unidade, da^cõngrüência do pensamento, manter-se
oculta não quer dizer que não exista atitude sistematizadora.
Não é por não ser ostensivo que o dado sistemático não
seja subjacente ao ato de pensar. Todo pensamento é uma
construção unitária, ainda que não desvelada. Portanto,
não é o fato de Ortega não exibir um conjunto fechado que
deve autorizar a sua eliminação do rol dos pensadores. O
seu é um sistema aberto.

Um antecipador de Ortega

Diante da Espanha invertebrada com que se


defrontava, Ortega encontrou, mais do que na cátedra
universitária, no jornal, a cuja leitura, segundo Hegel,
devemos nossa primeira oração matinal, o seu grande
veículo de comunicação social. A geométrica clareza de
sua prosa - o apótema de Vauvenargues, segundo o qual
“la clarté est la bonne foi des philosophes”, depois
retomado por Jules Renard e repetido pelo pensador
espanhol - correspondente ao seu desejo de eficácia
instantânea, à sua vontade de levar imediatamente os seus
leitores a um estado de alerta, a um estado de prontidão
em face dos problemas do seu tempo. Neste sentido é
lícito também dizer que a filosofia de Ortega nasceu sobre
rotativas, e não só ele.
Em geral, quanto à sua filosofia, o que se tem a

124
observar não se refere ao seu falso caráter assistemático,
mas às dificuldades de sua classificação. Ela não se deixa
capturar por um esquema explicativo como, por exemplo,
o de seu compatriota Julián Sanz dei Rio, que precedeu
.Ortega como introdutor do germanismo na Espanha.
Entre eles, o denominador comum do alemanismo não
eliminou diferenças básicas. As preocupações de Sanz
dei Rio eram preocupações éticas, enquanto as de Ortega
eram preocupações epistemológicas. A esta distinção,
acrescente-se outra: o velho mestre de história da filosofia
da Universidade de Madri limitou-se a transpor para a
Espanha o krausismo - não foi mais que um epígono de
Karl Christian Friedrich Krause. Esta sua postura terminou
por encontrar a oposição de José dei Perojo y Figueras,
antigo estudante de filosofia em Heidelberg - foi aluno
de Kuno Fischer. No pensamento de Perojo é possível
detectar verdadeiras antecipações do pensamento de
Ortega.
Embora recusando aprisionamentos em esquemas
simplistas, a filosofia de Ortega comporta uma divisão
didática, que configura três etapas de sua evolução.
A primeira etapa, que cobre o período que vai de
1902 a 1913, recebeu a designação de objetivismo. A
atitude objetivista surge como uma reação contra a
atmosfera freneticamente personalista da vida espanhola.
O rteg a re a g e c o n tr a esta t e n d ê n c ia , de cariz
exarcerbadamente subjetivista, proclamando a supremacia
das coisas sobre as pessoas. “Santificadas sejam as coisas
!”, disse, então.
Nesta linha, Ortega pede a nossa atenção para as
realidades humildes, para os segmentos da vida humana
em geral negligenciados pelos filósofos. Desatar ao
máximo as asas da vida, como queriam Nietzsche e
Simmel, é, em síntese, a sua proposta. É preciso que haja
não só um Newton para a ciência e um Kant para a

125
filosofia, mas também um Newton dos prazeres e um
Kant das ambições - prazeres e ambições que, por
comporem o tecido da vida, devem ser elevados à sua máxima
potência.
Perspectivismo é o nom e da segunda etapa, que
se estende de 1914 a 1923. Aqui com eça a desabrochar
a antropologia filosófica orteguiana. “Yo soy y o y mi
circunstancia”, eis o em blem a de Ortega. Ele já aponta
para uma tese hostil ao pensam ento idealista. A fórmula,
s e g u n d o a q u a l o h o m e m v iv e , “s u b s p e c i e
circunstantiarum ”, e não “sub sp ecie aetern i”, aponta
para um certo historicism o, pois as circunstâncias se
fazem “sub sp ecie h istó ric a ”, perfazem -se “sub specie
tem poris” . Elas têm uma dinâmica temporal, histórica. A
fórmula orteguiana reco n h ece esta verdade, mas a deixa
no nimbo. Então, sua fórmula fica abstrata. Onde esse
abstracionismo se mostra patente? Assim se mostra quando
Ortega declara que viver não é só faina, um q u e h a c e r,
mas conviver, tratar com o mundo circundante. Ortega
propõe uma inversão genial de Descartes - substitui o
penso, logo existo, pelo penso p o rq u e existo.
Mas o que é a vida, para Ortega? Porque ele
ficou muito rente ao biologism o de Von Uexkiill e de
Hans Driesch, não considerou, nesse passo, a vida senão
em seu plano natural. Não aprofundou a sua dimensão
histórica, que o levaria fatalmente a injetar no conceito
de circu n stâ n cia o trabalho, os m eios de subsistência
que, ao lado dos m eios naturais (relações entre homem
e mulher), asseguram a existência humana. Se ele
tivesse ido às últimas con seqü ên cias de sua formulação,
teria visto ganhar uma nova grandeza filosófica a sua
proposta de valorizar a vida, em particular a vida
humana. E teria ingressado mais soberbam ente na terceira
etapa de seu pensam ento, denominada de raciovitalista,
e que se estende de 1924 até o ano de sua morte: 1955.

126
Nesta fase, o núcleo central da reflexão orteguiana é a
tensão entre logos e bios. Ortega, porém, não a resolve
dialeticamente. E não o faz porque sustenta que ambas
não são contraposições, mas realidades convergentes e,
como tais, estão condenadas a necessariamente coexistirem.

Insuficiências e justificativas

Nesta fase da evolução filosófica de Ortega a sua


teoria do homem adquire contornos mais consistentes.
Torna-se problema central de sua reflexão. A vida humana
assume, então, para Ortega, a dignidade da realidade
radical. Confrontando-se com todas as suas circunstâncias,
o homem tem de fazer a sua vida, mas de fazê-la de forma
autêntica. E é a cultura que equipa o homem para realizar
autenticamente a sua vida. Aqui Ortega está de salto
armado para a sua doutrina da sociedade e do estado, o
qual não concebe como sendo tudo na comunidade
humana.
Estas indicações, feitas a vôo de pássaro, permitem
ver, de um lado, os pontos frágeis da filosofia orteguiana
e, de outro, o equívoco de certos julgamentos que a sua
obra suscitou. Já vimos que um dos apótemas fundamentais
de Ortega - yo soy yo y mi circunstancia - não tem cariz
irracionalista. Não o tem porque para o filósofo espanhol
o homem não é: o homem vive. E porque vive, tem
história. Nada mais distante do que ensinam as filosofias
da vida e as doutrinas existencialistas, às quais se vinçula
o nome de Ortega, do que aquela fórmula básica, que
aponta para a transparente verdade de que a ontologia do
homem só é possível com o história, portanto, só pode seç
socialmente pensada, e não metafisicamente.
O defeito da visão de Ortega é a incompletude,
que o deix^T^ritr^tneío^ do caminho. A origem^^desta
incompletude é o seu irredutível idealismo. Mas o grande

127
conflito filosófico do mundo moderno nâo é entre^idealismo
e materialismo, e sim entre as filosofias irracíonalístas e as
que não o são. As filosofias irracionalistas, estas sim,
negam g h õ friem e a vida. As filosofias idealistas - recorde-
se o grande exem plo da filosofia clássica alemã, da qual
o marxismo é herdeiro - proclamam incessantemente a
dignidade do homem, embora descuidem o tratamento
dos fundamentos reais em que essa dignidade assenta.
PJegligenciam as condições concretas para o exercício
desta dignidade.
Por outro lado, há certos tipos de materialismo,
com o os m e ca n icista s, qu e decretam a m orte da
personalidade humana. Com a sua teoria da vida humana
como a mais radical das realidades, Ortega afastou-se de
todo e qualquer irracionalismo. Seu ponto débil: não ter
visto a razão proletária, como a encarnação, em nosso
tempo, dos dois tipos de razão que cultivou: a vital e a
histórica. É uma carência, não um cariz irracionalista.
Também é um equívoco detectar a presença do
irracionalismo no seu diagnóstico sobre a “rebelião das
massas”. Em 1930 ele podia soar como elitismo frenético.
No livro em que cuida desse tema, o que Ortega denuncia
é a ascensão do homem-massa, que ele localiza em todas
as classes, sobretudo nas classes médias, e não no
proletariado.
O homem seleto, para Ortega, é aquele que exige
sempre mais de si mesmo; o homem de massa é o que se
satisfaz com sua vulgaridade. É claro que o diagnóstico
não era o de um democrata - e Ortega jamais o. foi, pois
permaneceu sempre fiel ao seu liberalismo procedente do
século XIX, que não era sequer o do seu grande compatriota
Mariano Jo sé de Larra, para o qual a classe média é a classe
do “homem líquido” —aquele que toma a forma do vaso
que o contém. De qualquer forma, o que, três anos após
o diagnóstico de Ortega, nos mostrou a história? Exibiu-

128
nos o nazismo com o a primeira grande m anifestação da
sociedade de massa. Além do fascism o, as sociedades de
consum o de h o je são sociedades de massa, no seio das
qu ais a indústria cu ltural id iotiza as p e sso a s. A
c o n d e n a ç ã o da s o c ie d a d e de m assa p o r O rteg a
côrresponde ao sçu ideal da vida iluminada pelas
claridades da inteligência e da razão. Ideal tanto maior
quando foi pensado num mundo revolto, confiado à sua
própria turbulência.
Quanto à apologia da individualidade humana,
feita por Ortega, também está h o je historicam ente
justificada pelos estados totalitários do nosso tempo. A
humanidade teve de passar por sinistras experiências
políticas para reaprender que a pessoa humana é a
realidade mais radical. Em função dessas experiências,
os próprios valores do liberalism o se impuseram ao
hom em c o n te m p o râ n e o , com o uma h era n ça a ser
ampliada* e não com o um legado a ser esquecido.
O p róp rio aristocratism o de O rtega, que se
em p en h ou em criar uma nova p a id é ia para o homem
espan hol e, por e x te n s ã o , para o ib ero -a m erica n o , em
cuja categoria nos incluímos, lembra uma lição histórica:
a de que o valor, a m agnanim idade, a tolerân cia, o
sentido da honra, o peso da palavra em penh ad a, a
coragem , em sín tese, todas as virtudes ditas de raiz
nobre m antiveram -se vivas no espírito g rego, dep ois
de instaurada a etapa dem ocrática da história ateniense.
Na verdade, a dignidade humana é incom patível com o
vulgar.
Este h o rror à vulgarid ad e c o m e ç a , com OrtegaV
na e la b o ra ç ã o de sua prosa. Foi o bastan te para que
a e leg â n cia do seu tex to fosse arguida com o indicadora
de sua in ca p a cid a d e de p en sar - contra o seu status de
f iló s o f o . O s a u to r e s d essa a r g u iç ã o p a r e c e m ig n orar
que Gramsci inclui a capacidade de bem escrever com o

129
exigência prévia para se ser um bom marxista, condição
que exclui a ignorância, como Marx advertia.K
As filosofias modernas, nascidas entre duas guerras
mundiais, vinculadas ao crepúsculo de uma ordem social
que não tem com o evitar o esgotamento do seu ciclo
civilizatório, teriam de nos apresentar mais problemas do
que indicar caminhos de transformação do mundo. Esta
última lição nos veio de um filósofo alemão dos fins do
século XIX. Dizer isto não significa em p ob recer o
pensamento contemporâneo. Bem pelo contrário, ele se
enriquece na medida em que possa ajustar melhor aquela
filosofia transformadora ao nosso tempo - e ela se ajustará
incorporando ao seu repertório precisamente os problemas
que a sociedade do tempo de Marx não conhecia e os
marxistas posteriores negligenciaram. Toda filosofia que
perdura, perdura precisamente pela sua capacidade de se
adequar aos tempos que se seguiram aos de sua elaboração.
O ato de filosofar obriga sempre à busca da
co la b o ra çã o não só do passado. Pede, tam bém a
colaboração do presente. Por isso mesmo, toda filosofia é
inconclusa, no sentido de que seu material está em perene
devir.
Eis por que a história da filosofia já constitui de si
mesma, por isso mesma, um problema filosófico. A práxis
reflexiva de Ortega não se encerra nos muitos volumes que
retêm a sua meditação. Ela continua convocando a nossa
atenção para as questões que a deflagraram, desde as
coisas mudas que estão ao nosso redor aos gritos de
angústia que irrompem dentro de cada um de nós, e
clamam por uma nova serenidade.
Ortega pediu que ao homem fosse dada uma
missão cfe clareza sobre a Terra. A clareza que - disse - não
é só vida porque é a plenitude da vida. E Jo sé Ortega y
Gasset nos ajudou um pouco a obtê-la. Bem-aventurados
os que instalam luz nos olh o s dos h o m e n s , í

130
D uas ou três verdades
so b re M usil

Depois de iniciativas culturais dignas do maior


louvor como, por exem plo, a tradução da melhor poesia
de T.S. Eliot - versão, tradução e notas exemplares de Ivan
Junqueira - a Nova Fronteira inicia agora o processo de
incorporação da obra de Robert Musil ao patrimônio
espiritual do leitor brasileiro. Instaura esse processo o
lançamento da novela O jovem Torless, com a qual o
escritor austríaco iniciou em 1906 a sua carreira literária.
Seis títulos compõem a bibliografia de Musil. São, além de
O jovem Torless, os seguintes: Reuniões ( V ereinigungen,
1911); Os alucinados ( Die schaw àrm er, 1921, drama);
V icente ou a am iga dos hom ens em inentes (V in z en z utid
die fre u n d in bedeutetider m antier, 1923, comédia); Três
m ulheres ( Die f r a u e n , 1924) e O hom em sem qualidades
( D er m a n n ohtie eigenscba/ten, 1930/1933/1943/1952). As
reuniões e Três m ulheres são coleções de novelas. Como
era norma no Império dos Habsburgo, um estado policial
conduzido de 1848 a 1916 por Francisco Jo s é ( “governes
e não mudes nada”), era o pai que escolhia a profissão dos
filhos. O de Musil queria que ele fosse militar na corte de
Viena, onde até o vestuário feminino era militarizado.
Musil recusou a ind icação paterna. Form ou-se em

131
engenharia. Em 1908, na Universidade de Berlim, doutorou-
se em filosofia, defendendo tese sobre Mach ( Beitrag z u r
beurteilung d e r lehren Macbs). Recebe, então, convites
para ocupar catédras universitárias em Berlim e em
Munique. Mas o êxito obtido por O jovem Torless fixa a
maior: a literatura.
Entre o fim do século XIX e o início do nosso
século, os países sob a monarquia danubiana, parti­
cularmente a Áustria, sofriam a avassaladora influência do
pensam ento de Ernst Mach, p resente inclusive na
constituição austríaca do primeiro após-guerra, via Hans
Kelsen. Os “austro-marxistas” não escaparam a essa
influência, que se estendeu até ao socialismo russo,
através de Bogdanov, tendo sido combatida por Lenin em
Materialismo e empiriocritismo, livro lucidamente criticado
pelo astrônomo e marxista holandês Anton Pannekoek em
Lenin aispbilosopb. Essa influência alcançou ainda Einstein,
que depois a rejeitou, e Otto Neurath, que fundou o “Ernst
Mach Verem”, origem do Círculo de Viena (1910) e suas
ramificações: Grupo de Berlim, Círculo de Varsóvia, grupos
de Uppsala e de Oslo, Grupo de Helsinki - as centrais do
positivismo lógico. Assim como a filosofia do direito, o
marxismo austríaco, a física e a teoria social, também a
literatura recebeu o influxo de Mach. Todo o grupo da
“Jovem Viena” 0 un8 Wien) até autores contemporâneos
como Hermann Broch formaram-se sob a batuta desse
pensador nascido na Morávia, depois professor de física
em Graz e em Praga e de filosofia na Universidade de
Viena. Mas que ensinava Mach?
Ensinava que o mundo consistia somente em
nossas sensações. A sua noção fundamental é que todo
conhecimento é uma ordenação das “impressões dos
sentidos” - o seu antisubstancialismo é uma espécie de
ressurreição do idealismo berkeleyano, no qual não faltou
quem identificasse traços de fideísmo. Esse subjetivismo

132
sem freios - Mach fòi chamado de “O Hume do século XIX”
- assumiu matizes em Richard Avenarius, Joseph Petzoldt
Willly, Hans Kleinpeter, nos funcionalistas Richard Wahle,
Max Verworn, e em vários “condi-cionalistas”. Se tal
, ocorreu no campo do pensamento especulativo, que
aconteceu na literatura? Qual a influência de Mach na
literatura do império danubiano, de Hoffmansthal a Musil
e Broch?
Determinou o surgimento do impressionismo
austríaco, cujo arauto foi Hermann Bahr. Mas o impressio­
nismo da Europa Central não tem nada a ver com o da
Europa Ocidental. Este nasceu em Paris, em 1874, com
Monet, Degas, Renoir, Manet, Cézanne e Pissarro, que
d escobriram novas qu alid ad es da luz, intuíram o
“perpetuum m obile” de todas as coisas, substituíram a
imagem visual pela imagem tátil e submergiram na
exploração mais funda dos fenômenos cromáticos. Portanto,
uma descoberta em inentemente estética. A literatura
absorveu táis descobertas. O impressionismo literário
ocidental encontrou seu “unto oro” em Henry James,
Tchekov, Proust, Virgínia Woolf, Katherine Mansfield,
Thomas Wolfe. Já o impressionismo austríaco não tem
denominador comum estético. Sua base é filosófica: ela
assenta na noçãò de que o real são as sensações, quer
dizer: que a realidade objetiva não existe. Puro, fremente
solipsismo.
A^filosofia de Mach é a célula mater da criação
artística de Musil. Ao contrário dos impressionistas da
Europa Ocidental, com sua estética impregnada de valores
plásticos, o impressionismo austríaco determina em Musil
uma prosa de leveza mozartiana, transparente, nítida,
sóbria. Por isso mesmo, em virtude mesmo da disciplina
matemática desse estilo, soa insólita a assertiva, posta em
circulação entre nós, de que Musil é um precursor do
expressionismo alemão. Precursores do expressionismo

133
germânico foram Meyrink, Wedekind, Hermann Stehr,
Paul Z e c h , A nton W ild gan s. E os se u s g ra n d e s
representantes, no romance, são Leonhard Frank, Rene
Schickele, Alfred Dõblin, Hans Henny Jahn. Além do mais
o expressionismo, que não se confinou nas artes visuais,
na ficção e na dramaturgia - ocupou outras áreas do
“globus intelectualis” como o cinema, a música, o balé, a
filosofia (Ernst Bloch e Martin Buber, este descobridor da
mística hassídica), a teologia Karl Barth e Carl Sonnes
Chein), a antroposofia (Rudolf Steiner), caracteriza-se
pelo seu explosivo conteúdo político, foi sob esse aspecto
o oposto do impressionismo. Esse ostensivo conteúdo
político inexiste nos impressionistas, tanto da Europa
Ocidental quanto da Europa Central.
Também é inaceitável outra assertiva: a de que
Narziss u n d Goldmutid, cuja autoria foi atribuída por um
crítico paulista a Thomas Mann, quando é romance de
Hermann Hesse - Ernst Robert Curtius e Joseph Mileck a
consideram a melhor novela de Hesse, opinião não
compartilhada por Theodore Ziolkowski, um dos mais
competentes intérpretes do autor de O lobo da estepe.
Narciso e G oldm und exibe “temática e situações bem
próximas” das de O jovem Torless. Equívoco puro._Q _
romance de Hesse trata do conflito entre—aum enteT o
intelecto, o espírito (geist) e a alma (seele) apresentados
pelo rõmarrctstar Como pólos opostos do serZ Mas_esse
antagonismo, essa assimetria é*_no romance, resolvida
pclá mediação dialética da arte.
A única coisa certa que se disse úo. Ojovem Torless
é que ele é uma antevisão do inferno nazista e d o s s e jjs
motivos psicológicos, formulada com quase trinta anos de
antecedência sobre o Terceiro Reich. Mas a crítica brasileira
não pode parar aí. Romance de um internato tanto quanto
O jovem Torless é O A teneu, de Raul Pompéia, que, àò
apresentar o colégio do professor-Aristarco como um

134
universo concentracionário, é igualmente uma visão
profética do sadismo nazista, previsão genialmente feita
70 anos antes do advento de Hitler. E o romance brasileiro
tem uma precedência de 43 anos sob o de Musil.
Um g i g a n t e s c o s is t e m a d e
d estruição das m áscaras

Musil, Broch e Doderer formam o grande trio do


rom ance austríaco contem porâneo. Enquanto Broch tratou
da Alemanha da crise da República de Weimar, Musil e
Doderer preferiram tratar da decadência do Império Austro-
Húngaro, que viveu sob o governo obscurantista de
Francisco Jo s é , protótipo do governante de talhe nazista.
“Governa e não muda nada”, foi o con selh o que ouviu
quando assumiu a coroa da Casa dos Habsburgo. Ele fez
do Império Austro-Húngaro um Estado policial: o espectro
da revolução de 1848 o perseguiu a vida inteira.
Não militarizou só o estado, mas toda a sociedade,
em especial a aristocracia. Na sua corte, até a indumentária
feminina parecia mais farda do que vestido. Viena não era
só a cidade de Francisco Jo s é . Abrigava outra dinastia dos
Strauss - a valsa era o manto que não deixava transparecer
a nudez de uma sociedade degradada. Essa sociedací(?\
tinha de dar Freud. E por quê? Porque na Viena de I
Francisco J o s é , os casam entos se faziam para ampliar e ,
consolidar as fortunas. Resultado: dentro de pouco tempo
os m arid os se d esin te re ssa v am das e s p o s a s e iam
descarregar o seu potencial erótico nas m oças pobres. As
esposas caíam nas neuroses, e as m ocinhas resvalavam na

137
prostituição. Foram entre essas mal-amadas que Freud[
encontrou a sua clientela.
M usil, c o m o D o d e re r, e s c re v e ra m ro m a n c e s
enciclopédicos - fizeram aquele tipo de romance chamado
por Curtius de “super-romance”. Toda a Viena do fim do
Império está refletida em O hom em sem qualidades, hoje
entregue ao leitor brasileiro pela Nova Fronteira em tradução
de Lya Luft e Carlos Abbenseth. São 864 páginas em que o
ensaio toma o lugar da ficção.
Musil trabalhou no livro 20 anos e o deixou incluso.
Não era só o seu perfeccionismo artístico que impedia a
conclusão do romance. Pela sua natureza intrínseca e a sua
complexidade arquitetônica, ele estava condenado a não ter
fim.
Compararam-no às epopéias de Proust e de Joyce.
Comparação imperfeita. Do ponto de vista do romance-
ensaio, já havia desde 1924 A m ontanha m ágica, de Thomas
Mann. E as epopéias proustianas e joyceanas, a primeira na
sua circularidade, a segunda na sua explosão lingüística
nada têm a ver com o romance de Musil. Este é um fato
isolado na literatura ocidental - romance de um engenheiro,
ficou como uma catedral à qual faltou a cúpula. O hom em
sem qualidades é urna espécie de sistema de destruição de
máscaras: nesse painel gigantesco a face verdadeira dos
seres humanos não conhece a transparência. Os eventos que
o autor descreve, ele o faz com extrema precisão e uma
álgida objetividade. Mas os personagens escapam à nitidez
do desenho - são esfumados: “sem qualidades”, isto é, sem
características. Se pensarmos no termo caráter em seu
sentido inglês, os personagens de Musil não o têm. Olham
o mundo com olhar ausente. Musil, homem tocado de uma
enorme ânsia de conhecimentos, doutorou-se em filosofia.
Sua tese de formatura foi sobre Ernst Mach. Como
se sabe, o pensador que criou o empiriocriticismo negava a
objetividade do mundo. Não existia o real: existiam só

138
sensações. Este lastro filosófico talvez ilumine o segredo do
romance dé~OTusil, um romance em que a impressão da
sotledade domina a noção concreta da sociedade que ele
descreve. É que, na verdade, Musil descrevia uma sociedade
qu,e já estava morta, embora insepulta.
Quem é o personagem principal do livro?
Ulrich, o “homem sem qualidades”? Ou Moosbrugger,
o maníaco sexual?
Não esqueçamos: no romance há um crime - o
assassinato de uma prostituta - e a história desse crime se
enlaça como um símbolo à Campanha Colateral. A relação
incestuosa entre Ulrich e Agatha é também emblemática. Mas
nada disso se apresenta como tragédia: é narrado com humor
e - este o supremo encanto do livro - sua leveza estilística
que já foi classificada com o mozartiana. Esta leveza
transparece, sobretudo, em algumas figuras femininas.
Diotima, Clarisse, Agatha. Sob este aspecto, o de desvendador
da alma feminina, Musil lembra um pouco um autor que
nunca leu - o nosso Machado de Assis. E também na fixação
da “disponibilidade”, no sentido que Gide dava a esta
palavra, dos seus personagens. Tal disponibilidade é a chave
da falta de “qualidades", de todos eles.
C a rp ea u x relem brado

Carpeaux. Um seu compatriota - O t t o Weininger


- dizia que memória e _çaráter andavam de mãos dadas..
Quem esquecia, quem não era capaz de ter e conservar
lembranças era destituído de sentido ético.
Filho único, de pais da classe média alta, Otto fez
não só os cursos de letras na Universidade de Viena, como
doutorou-se ainda em matemáticas, física e química.
Houve um momento em que desapareceu de casa por
vários dias. A família não se intranquilizou. Foi encontrá-
lo na Universidade, estudando Direito Canônico. Viena
vivia sob duas dinastias: a de Francisco Jo sé, que fora
coroado em 1848, e ouviu do seu antecessor este conselho:
“Não faças nada”. Cidade multinacional, as pessoas falavam
e cantavam nas ruas nos mais diversos idiomas. Era a
primeira capital do Império Austro-Húngaro. A segunda
era Budapeste. Todos os males que assolaram o nosso
século vieram de Viena: o pan-germanismo, o sionismo e
o nazismo. Muito moço, Carpeaux escreveu um livro
intitulado A missão européia da Áustria. Era o livro de
cabeceira de Dolfuss. Otto estava em sua casa jantando
com sua mulher Helena, cantora lírica da Ópera de Viena
e que abandonara a profissão para se casar com Carpeaux,

141
quando um grupo de ferroviários invadiu o lar de Otto.
Disseram-lhe que a Tchecoslováquia havia sido invadida,
Lidice destruída pelos alemães, que já marchavam sobre
Viena, tida como reduto comunista. As ligações ferroviárias
estavam cortadas. Só havia um trem cargueiro que ia sair
dentro de poucas horas. Enfiaram Otto e Helena nesse
cargueiro, que os deixou na fronteira com a Itália. Católico,
perseguido político, era natural que Otto fosse bater às
portas do Vaticano. Aconselharam-no a vir para o Brasil.
Lhe deram então uma carta de recomendação a Alceu
Amoroso Lima, presidente do Centro Dom Vital. Carpeaux
guardou a carta e foi para a Bélgica, de onde se passou
para a parte'flamenga da Holanda. Lá foi trabalhar num
jornal e publicou um livro contra Hitler. Iam as coisas
assim, quando os nazistas invadem a França. Era a guerra.
Otto decide vir para o Brasil. Espera num banco, com o um
postulante qualquer, para falar com Alceu Amoroso Lima.
Só no final da tarde é recebido. Identifica-se e entrega a
Alceu a carta do Vaticano. Alceu o manda para o interior
do Paraná. Escapou do inferno nazista, mas não se livrou
do inferno paranaense. Otto vai para São Paulo. Começa
a comer da venda dos livros raros que conseguira trazer da
Europa. Álvaro Lins era crítico literário e o principal
redator político do Correio da M anhã. Ocorre a Otto
escrevê-lo. A carta vai em francês. Álvaro manda traduzir
o artigo e o publica. E escreve um belo artigo de
apresentação de Otto aos seus leitores brasileiros. Paulo
Bittencourt, homem de sólida formação cultural - estudara
em Cambridge - chama Otto ao Rio. Carpeaux ficou
escrevendo semanalmente no suplemento literário do
Correio. San Thiago Dantas estava fundando a Faculdade
de Filosofia, onde é hoje a Casa da França. Convida Otto
para organizar a biblioteca da nova Faculdade. A esta
altura Carpeaux já estava escrevendo em português. Não
escrevia à máquina, mas à mão. Designaram um linotipista

142
para compor o reboque, o qual, na gíria da redação, era o
segundo ed itorial. O tto versava sem pre assuntos
in te rn a c io n a is, mais v in cu la n d o -o s a o s p rob lem as
brasileiros. Posteriormente uma seleção desses artigos foi
reunida nos volumes O Brasil no espelho do m undo (1965)
‘ e A batalha da Am érica^TaHnã(X9& i), ambos editados
pèla Civilização Brasileira, ao tempo em que a dirigia Ênio
Silveira. Em *1942 a Casa do Estudante publicou A cinza
do purgatório (1942) e Òrigens e fin s (1943). Em 1949,
Simeão Leal, diretor do Serviço de Documentação tio
Ministério da Educação publica a pequena Bibliografia
crítica da literatura brasileira que, na realidade, é uma
história da literatura brasileira.
Fui conhecer Carpeaux na redação do Correio da
M anhã. O Álvaro Lins tinha deixado o jornal, para fazer
a campanha de Juscelino Kubitschek. O redator-chefe do
jornal era o Antônio Callado, cujo candidato era o Juarez
Távora. Paulo Bittencourt, que era amigo de juventude de
Eduardo Gomes, quis que ele se candidatasse de novo. O
brigadeiro não quis. Só por isto o Correio passou a apoiar
o JK. Eram anos politicamente turbulentos. A nação
estava dividida. Dividido o Exército. Um dia o Paulo
chamou-me ao seu gabinete e me disse:
- “Se as liberdades públicas e privadas correm
risco, e se eu não estiver no Brasil e você não conseguir
falar comigo, peque por excesso. Mas excesso na defesa
das liberdades. Estamos entendidos".
O Correio tinha duas redações. Uma enorme, onde
trabalhavam os responsáveis pela reportagem política, a
reportagem geral, a reportagem esportiva, os colunistas de
cinema, música, artes plásticas, etc. E numa pequena sala,
apelidada de Petit Trianon, ficavam os que trabalhavam na
página de opinião do jornal. Nesta trabalhou Graciliano
Ramos. O Paulo fazia questão do jornal bem escrito.
Contratou Graciliano Ramos para peneirar os textos da

143
página de opinião. Um dia, Graciliano acendeu o seu
cigarro - Selma, se não me engano - inclinou a cadeira
para traz, puxou uma tragada e soltou um palavrão:
- “Outrossim. Outrossim é a puta que pariu”. <
O velho Graça era muito chegado ao filho
Márcio. Um dia, o garoto se suicidou. Paulo foi informado,
e determinou que todas as despesas com o sepultamento
corressem por conta do Correio. Mas com uma condição:
não fosse revelado o nome do pagador. Intrigado com o
mistério, o velho Graça começou a interrogar o dono da
funerária. Esse acabou abrindo a boca. O velho Graça foi
ao gabinete do Paulo para lhe agradecer o gesto. Disse:
- “Paulo, você é o patrão menos filha da puta que já
conheci!’. Virou as costas, foi embora.
O Otto era educadíssimo, um homem terno.
Adorava um bom vinho, se indignava quando, na rua, via
alguém maltratando um cão. Vestia-se impecavelmente -
o azul e cinza, as suas cores prediletas.
Fui conhecê-lo pessoalmente na redação do Correio
- na sala dos redatores que redigiam a página de opinião
do jornal. Éramos Otto, Pedro Lessa a Speyer, Jo sé Lino
Grunewald, Jo s é César Borba, Álvaro Lins, que depois se
desligou do jornal para fazer a campanha de! Juscelino,
então candidato do PSD à presidência da República. O
pessoal da grande redação - reportagem política, noticiário
internacional, noticiário da cidade e do país, seção de
esporte, cinema, teatro, artes plásticas etc. Antônio
Callado era o redator-chefe. E Luiz Alberto Bahia, o
secretário da redação.
Um dia, aí pelas nove horas da manhã, recebi em
casa um te le fo n e m a do G u im arães Rosa. Dizia:
“Desenferruja a pena”. Respondi-lhe que não estava
enjténdendo. Ele, então, explicou: que eu fosse às quatro
horas da tarde, na redação do Correio que o Callado queria
falar comigo.

144
Fui. O Callado me disse: “Não sou eu quem quer
falar contigó. É o Paulo”. Em seguida, ligou para o
gabinete do Paulo Bittencourt, que ficava um andar acima
da redação.
# O Paulo me recebeu e foi logo dizendo: “Espero
que nos acertemos”. E, em seguida:
- “Se as liberdades públicas ou privadas correrem
risco, e se eu não estiver no Brasil, e se você não puder
falar comigo, peque por excesso, mas excesso na defesa
das liberdades”.
Só então tomei conhecim ento de que ele me havia
escolhido para suceder o Álvaro como editorialista político
do jornal.
Era aquele um ano difícil. Ameaça de golpe militar,
de censura prévia aos jornais enfim: colapso das franquias
democráticas.
Na página de opinião do Correio havia dois
editoriais. O primeiro, ocupando três colunas, era dedicado
aos assuntosvdo país e, eventualmente da cidade, quando
o assunto assim o exigia, pela sua importância. O
segundo, estendia-se por uma coluna, e invariavelmente
cuidava de temas internacionais. Na gíria da redação era
o reboque. Carpeaux o escrevia. E como não suportava
máquinas, escrevia à mão. A letra dele era puro hieróglifo.
Um linotipista - o Camilo - especializou-se em deçifrá-la
e era quem passava o texto para a linotipia.
Desde sua fundação, o Correio fazia questão fechada
de ter o seu rodapé de crítica literária. O primeiro crítico
foi Jo sé Veríssimo, que consagrou Os sertões de Euclydes
da Cunha. Depois dos anos vinte, o .crítico foi Humberto
de Campos. Ele trabalhara nos seringais da Amazônia,
com o seu conterrâneo e de meu pai, primo Vespasiano
Ramos, poeta romântico que dissolveu em álcool uma
paixão não correspondida, e Ferreira de Castro, que viria
mais tarde a ser o grande escritor português. Quando saiu

145
em 1928 o romance A selva, de Ferreira de Castro,
Humberto o consagrou com a sua crítica. Esse fenôm eno
viria a ocorrer pela terceira vez, em 1945, com o Sagarana,
de Jo ã o Guimarães Rosa. O crítico chamava-se Álvaro
Lins.
J á estava em curso a primeira edição da História
da literatura ocidental, de Carpeaux, em oito volumes.
Nós conversávamos muito sobre literatura, filosofia -
especialm ente a filosofia da arte, uma disciplina nascida
na Universidade de Viena - e música. Um dia ele me
confessou que o seu ideal era escrever uma História da
m úsica. No dia seguinte, antes de ir para a redação do
Correio, passei pelo escritório do meu amigo e compadre,
o editor Jo rg e Zahar e disse-lhe que não havia uma
H istória d a m úsica de autor b rasileiro (C arpeaux
natu ralizou -se em 19 4 4 ). - “Quem escrev eria ?”,
pergu ntou -m e Jo r g e . R espond i: - “O C a rp ea u x”.
Redargüiu Jorge: “Então manda ele aqui”. Sai do escritório
do Jorg e para o jornal. Lá dei a notícia ao Otto. Já viram
a alegria de uma criança que ganha o brinquedo que
quer? Esta era a pura alegria de Otto.
Não é este o> lugar oara falar de um livro que\W
ensina o leitor_.não apenas a ouvir música, mas a~?
com preender a sua arquitetura interna - a /^r mu^sica.^
Carpeaux faia da música viva - a que ouvinrosnas-salas
de concertos - a música que nasceu com a revolução
antipolifônica de Monteverdi, contra a polifonia de
Palestrina e de Vitória, a música que nos dá Haydn,
Mozart, Brahms, Béla Bartok. Antes de Carpeaux existia
a História da m úsica de Mário de Andrade, que é de uma
indigêncte de fazer chorar.
No Brasil, Otto sofreu uma campanha sórdida
liderada por Oswald de Andrade. Morre Paulo Bittencourt.
Assume a direção do Correio uma senhora, que tem o
“dom” de destruir tudo em que toca. Destruiu o Correio,

146
e por pouco não destruiu o Museu de Arte Moderna. É
claro que essa megera expulsou o Otto do Correio.
Armando Micelli entrou para o Correio ainda
menino. Éramos muito ligados: ele a mim e a Otto. Nos
, primeiros decênios deste século ocorreu em Viena uma
verdadeira epidemia de catalepsia. O terror tomou conta
da cidade. Esse fato marcou Otto para sempre. Ao Micelli
ele pediu que se “morresse” cravasse-lhe um punhal no
coração. Era o com plexo da catalepsia falando mais alto.
Não foi necessário. O coração o levou - uma série de
enfartes que não respondiam à medicação de seu médico,
o admirável Stans Murad. Uma semana antes dele partir
para sempre, fui vê-lo no Prontocor da Rua Dona Mariana,
em Botafogo.
Passada a em oção do encontro, e \e me disse: -
“Tudo para acabar assim”. Percebi uma lágrima no canto
dos seus olhos.
Costumávamos jantar num restaurante italiano, na
rua de Maranguape, sempre servidos pelo mesmo garçon.
Contei-lhe que um dia fora almoçar num restaurante perto
do Convento de Santo Antônio. O garçon me reconheceu.
E logo perguntou: - “E o seu amigo?”
Ficamos conversando a manhã inteira. No dia
seguinte eu tinha de me ausentar do Rio. E sabia que,
quando voltasse, não iria mais encontrar o Otto. Realmente,
no dia seguinte, pela manhã, ele se libertou de toda a
parafernália médica que o cercava e gritou: “Viva a
liberdade”. Fechou os olhos. Estava morto.
A memória é uma ressurreição.

147
Variações sobre o Natal

A c e le b r a ç ã o do Natal não é p riv ilég io de


nenhum a re lig iã o , cu lto ou c re n ç a . É uma data que
p e rte n c e a toda a h u m anid ad e, in d ep e n d en te da
natureza m ística dos povos que a com p õem , se cren tes
ou a g n ó stico s.
No Natal, o hom em e a m ulher festejam a sua
própria fratern id ad e - é o dia em que todos reafirmam
a sua b o n d a d e, a p ro v içã o de e s p e ra n ç a e de doçura
que alberg am em seu s c o r a ç õ e s .
J e s u s , f ilh o de J o s é e de M aria, é uma
abreviatura de Je h o s h u a q u e, em h e b r a ic o , quer
dizer “o S a lv a d o r”. Ele nasceu numa é p o c a muito
p arecid a com a n o ssa. C o n v u lsõ es s o c ia is co n tín u a s,
m iséria, fo m e, v io lê n c ia e escrav atu ra - o Im p ério
Rom ano, que se ju lgava d ono do m undo, tratava do
o resto da hu m anid ad e com o re b u ta lh o .
Os E v a n gelh o s foram p e n sa d o s e e s c rito s na
P alestin a. O que é c o n sid e ra d o mais fiel do ponto de
vista da narrativa de J e s u s é o de F e lip e , que estev e
perd id o d uran te 19 s é c u lo s . Foi e n c o n tra d o quando
da d e s c o b e rta em 1945 dos M a n u scrito s do M ar
Mo rto.

149
O aram aico e o h ebra ico

Era aramaico o nome do pai de Jesus. Nesse idioma,


que praticamente dominava toda a Ásia, José significa
precisamente carpinteiro. E esta foi realmente a profissão do
pai de Jesus. Por outras palavras: durante toda a vida foi um
simples operário.

Talvez o maior milagre

Nas sociedades corruptas, submetidas aos caprichos


dos poderosos, as mulheres são sempre as maiores vítimas
indefesas da violência dos machões. Maria Madalena não
escapou desta fatalidade. Jesus a redimiu da prostituição, e
a fez sua mulher, narra Felipe. Este foi o seu mais belo
milagre.
E qual o significado do nome Cristo?
Ele é o particípio passado do verbo clirio que, em
hebraico, quer dizer “o ungido”.

Virgílio, o profeta \
*
Todo o mundo diltüral do Ocidente considera Virgílio
um poeta maior que o grego Homero. Esse grandíssimo
poeta latino está hoje ao lado de Platão, de Campanella, de
Francis Bacon - dos homens que, nos inícios da nossa
civilização, criaram o sonho da vida ideal, e a esse sonho
deram o nome de utopia, considerando-a não como algo de
irrealizável, mas perfeitamente factível.
Virgílio também criou o sonho da Aetas Aurea - A
Idade do Ouro. O mantuano nasceu no seio de uma família
camponesa, período dos consulados de Pompeu e Craso,
que anunciavam a mais terrível guerra civil que o mundo de
então poderia testemunhar. E Virgílio a presenciou.
Chega a época de Augusto. Unifica-se a civilização

150
mediterrânea. Virgílio passa então a defender os ideais da
justíssima tellus - a “terra justa”. Ergue a sua voz contra o
latifúndio, do qual Tácito disse que ele “perderia a Itália”.
Justiça, o coração palpitante da vida, eis o que Virgílio
queria.
Virgílio, com as Geórgicase as Bucólicas, se insurgiu
contra os grandes proprietários agrícolas. E compõe o que
denominou de éclogas, palavra que, segundo o étimo latino,
quer dizer “história de pastores".

O vaticínio

Poeta, vate - o que vaticina. É fná Ecíoga IV, das


Bucólicas, que Virgílio tem a sua grande antecipação. Esta
Écloga, que o poeta compôs em homenagem ao nascimento
do filho de seu amigo íntimo Asinio Polión. Esse Polión
exerceu papel decisivo na reconciliação de Augusto com
Antônio, reconciliação que assegurou a paz a Roma.
Uma criança num berço - eis para Virgílio a esperança
de um mundo melhor. Nos primeiros séculos do cristianismo,
Santo Agostinho e os padres da Igreja viram a IV Écloga de
Virgílio anunciar a chegada ao mundo do menino Jesus.
Dante talvez tenha sido o primeiro grande poeta a
ver na IV Écloga o prenúncio da vinda de Cristo.
Como o Ocidente é uma criação do cristianismo,
Virgílio passou a ser chamado de “Pai do Ocidente”, por ter
sido o precursor da presença do Deus-Menino, neste pobre
e sofrido murido humano.

Os historiadores

O testemunho de historiadores contemporâneos de


Jesus, como Flávio Josefo, depõem a favor de Cristo como
figura histórica. A descoberta em 1945 dos chamados
Manuscritos do Mar Morto reforça essa tese, e demonstra

151
ainda que a pregação de Jesus nada tem a ver com a religião
hebraica. Mais dp que hebraica, a religião cristã é uma
religião romana. É im possível explicar o cristianismo fora
das condições sociais e econômicas em que vivia o povo, no
Império Romano.

As duas Marias

São duas mulheres as figuras centrais na vida de


Jesus. A primeira delas, Maria, esposa de Jo sé, foi sua mãe.
A segunda Maria Madalena, ex-prostituta, que se tornou
mulher de Cristo.
M adalena o aco m p an h av a em tod as as suas
peregrinações e, em Jerusalém, assistiu ao seu sepultamento,
depois do martírio no Gólgota. À sepultura de Jesus voltoü
com flores para o embalsamento do santo homem que
amava.
E ela foi a única pessoa a quem Jesus apareceu no dia
de sua ressurreição.
O romance de Kazantzakis sobre o amor de Jesus e
de Madalena não agradou aos ortodoxos e bem pensantes.
O grego glorificou apenas o amor.
Quando Herodes desencadeou uma feroz perseguição
a Jesus, o Menino-Deus foi levado por seus pais para o Egito.
Viveu exilado em Nazaré. Começou a pregar na Galiléia, de
onde expulsou os vendilhões do Templo. Pregou ainda na
Judéia. Atravessou a Samaria, voltou à Galiléia, onde
pronunciou os seus grandes sermões, dos quais se destaca o
Sermão da montanha.
Jesus retorna a Jerusalém, onde é acusado de ser
revolucionário. Entregam-no a Pôncio Pilatos, agente da
tirania romana, que o manda flagelar até a morte (7 de abril
de 30).
Renan define Cristo como profeta do liberalismo
humanitário. Raimarus disse: “Jesus foi um revolucionário”.

152
Tácito e Suetônio se preocuparam com a sua figura
de renovador da humanidade. E Albert Schweitzer, nos
nossos dias.

Maquiavel e Erasmo

Quando, já no Renascimento, Maquiavel escreveu í\


Bíblia dos tiranos - Op rín c ip e -, para contestá-lo, Erasmo de
Rotterdan escreveu Instituto principis christiani.
Nâo esqueçamos: Erasmo é o patrono dos intelectuais
que honram a inteligência, defendendo todos os injustiçados. \

Religião efilosofia

Tendo o cristianismo se desenvolvido nas regiões em


que mais floresceu a filosofia, as relações entre eles é
indissolúvel. Se há uma filosofia cristã, a verdade é que toda
a história da filosofia desde os gregos e romanos está
entrelaçada, é assim permanece até os nossos dias, como
comprova a denominada “filosofia p eren e”.
É que nada torna o homem mais divino do que o
saber - a sabedoria, cuja suprema expressão está nas obras
de arte, que assinalam a evolução do homem rumo à
transcendência de sua condição de simples animal que
refocila a Terra.
É o pensamento, esta forma lógica de bondade, que
resgata o homem e a mulher da selvageria animalóide. E esse
resgate é um ato religioso, embora quem o pratique nem
sempre tenha consciência disso. .

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153
P a ra um a política cultural

As Cartas sobre a educação estética do homem, de


Schiller, é o documento fundamental para a elaboração de
toda e qualquer política cultural. A cultura não é apenas
um reflexo da infraestrutura, como pensam os maus
leitores de Marx e Engels. Nem a cultura é uma efígie de
uma só face. Ela revela a complexidade e a natureza
contraditória das classes que compõem a sociedade.
Sem p a id eia não existe comunidade humana.
lfa educação, que faz do primata u m je r humano,
e por isto mesmo ela jamais pode cessar, variando a sua
natureza conforme mudam as circunstâncias sociais. Esta
é a razão pela qual sem educação não há cultura. O dito
de que o homem não tem natureza decorre do fato de a
natureza ser indiferente aos valores. Eis porque a cultura
diz respeito ao homem e só ao homem. Desde os sofistas
que assim é ela entendida. No idealismo alemão, o grande
herdeiro da filosofia clássica grega, Kant, considerava “a
beleza uma condição natural da humanidade" e “atribuía
à função estética o desempenho de um papel decisivo na
reformulação da civilização” - Novalis, Hegel, Herder
pensavam assim. Mas de todos esses alemães Schiller foi
além de seu amigo Goethe. A estética sozinha não poderia

155
libertar o homem das condições inumanas de vida. Este
último problema era um problem a político. E só uma
solução política poderia resolver o problema. Schiller, em
síntese, visava à fundação de uma nova ética que abolisse
os controles repressivos que a sociedade burguesa impõe
a Eros - à sensualidade. No nosso século Jung reconheceu
assustado o radicalismo de Schiller que, no sentido mais
certo e exato, foi filósofo mais avançado do que Hegel,. o
pai do conservadorismo bismarquiano.
Entenda-se por política cultural:
1. A política cultural é uma questão de educação
e de mobilização das comunidades humanas e não de
“mobilização de massas”, a qual é a forma mais estúpida
de destruir o sentido democrático da cultura.
2. Mobilizando “massas” trata-se a sociedade como
um todo hom ogêneo, o que implica em por em prática
uma política de dopação ideológica do povo.
3. Acaba de assumir a presidência da Funarj o
escritor e jornalista José Louzeiro - homem múltiplo:
maranhense de nascimento, fez a sua formação intelectual
no Recife ao tempo em que era agente do Estado Novo o
ali falecido Agamenón Magalhães. A grande esperança é
que ele não tenha esquecido as lições libertárias de um
Gonçalves Dias, de um João Francisco Lisboa e Sousândrade,
para falar só de alguns. Reconhece Jo sé Louzeiro que o Rio
está perdendo a sua missão de pólo irradiador da cultura
nacional. Propõe então acionar projetos em conjunto com
os governadores do Rio Grande do Sul e do Espírito Santo.
E por que não com os outros Estados da Federação, da
Amazônia a Santa Catarina, dos dois Mato Grosso a Minas,
e de Goiás, o centro mais dinâmico do Oeste - do Brasil
Central? - Ou ele pensa confinar o resto da Federação "
numa solidão cultural a que torna vazio o cérebro do §r£
Rouanet, um “filósofo dinamarquês” que oscila entre o

156
chá da Academia Brasileira de Letras e longas visitas a
escolas d è samba? Carnaval j â _ f & L cultura popular.
Çonvertido-em produto para turistas internacionais, hoje
é festival de bumbuns, seios, ventres de fora - de mulheres
peladas.
Crie prêm i o s ^ r eedite livros que os editores
convencionais não têm interesse emTeécfítãr ou editar,
mas não resvale na '"TfTdüsfnã cuíturaP que é uma das
formás~cTé prostituição da cultura. Sobretudo ouça em
debates abertos os produtores idôneos da cultura e não os
seus gigolôs e proxenetas. A tolerância - e aí está o
exemplo de Erasmo de Rotterdam - é a vocação humanística
da cultura. Mas a cultura não é uma casa de tolerância.

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