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MITOS

iropa-ai
Falar desenvolvidamente da vastíssima obra do Prof. Dr. Fi-
delino de Figueiredo ao longo de sessenta anos de actividade
literária constante, desde o romance Os Humildes, ou da obra
de história crítica da literatura O Espírito Histórico, publicada em
1910, até Entre Dois Universos, seu último livro editado; falar
de uma figura sobre a qual já se debruçaram valores mundiais
como Unamuno, Keyserling, Brion, Cassou, Gilberto Freyre, não
cabe na capacidade dimensional deste apontamento.
Bastará dizer que a todo este vasto conjunto constituído por
algumas dezenas de volumes faltava, no julgamento do próprio
autor, uma conclusão geral equivalente à moralidade de uma fá­
bula extensa e intensamente vivida. Surgiu ela neste inesperado
livro. Um livro com funda vibração humana, em que o autor
avança na confissão dos seus entusiasmos e das suas ansiedades,
mais que nos volumes anteriores. Quase um auto-retrato de pin­
tor ao lado da paisagem que contempla e extracta na sua tela.
Símbolos & Mitos, escrito num estilo puríssimo e calmo de
filólogo e filósofo, de escritor e pensador, é uma longa medi­
tação sobre os últimos acontecimentos nos mais variados ramos
da ciência, da literatura, da filosofia, onde o autor rememora o
estilo de cultura em que se formara, o considera derrubado, e
corajosamente se propõe enfrentar uma nova visão do mundo,
uma nova explicação científica, uma nova interpretação estética
o -fí 1/t v Á 4 ir*n
COLECÇÃO ESTUDOS E DOCUMENTOS

Obras publicadas:

1 — Ensaios (vol. vn), Antônio Sérgio.


2 — A Ciência Econômica e a Acção, Pierre Mendés France
e Gabriel Ardant.
3 — Ensaios (vol. v), Antônio Sérgio.
4 — A Loucura dos Homens, Jules Moch.
5 — Pode-Se Modificar o Homem?, Jean Rostand.
6 — Ensaios (vol. n), Antônio Sérgio.
7 — Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões.
S — U. R. S. S. — Depoimento Dum Socialista Francês, Jules
Moch.
9 — Os Manuscntos do Mar Morto, John Marco Allegro.
10 — As Maravilhas do Cinema, Georges Sadoul.
11 — Recordações da Minha Vida Morta, René Leriche.
12 — O Sexo e a Sociedade, Kenneth Walker e Peter Fletcher.
13 — Recordações e Confidências do R. P. Dominique Ptre,
Hughes Vehenne.
14 — Mais Brilhante Que Mil Sóis, Robert Jungk.
15 — Dicionário Critico de Algumas Ideias e Palavras Corren­
tes, Antônio José Saraiva (fora do mercado).
16 — O Medo e os Conflitos Emocionais no Mundo Moderno,
Peter Fletcher.
17 — Hiroshima Renasce das Cinzas, Robert Jungk.
18 — Para a História da Cultura em Portugal (vol. i), An­
tônio José Saraiva.
19 — Para a História da Cultura em Portugal (vol. n), An­
tônio José Saraiva.
20 — O Flagelo da Suástica, Lord Russel of Liverpool.
21 — Uma Nova Ásia, Anton Zischka.
22 — Geografia e Economia da Revolução de 1820, Fernando
Piteira Santos.
23 — A República Moderna, Pierre Mendés France.
24 — A História Começa na Suméria, Samuel Noah Kramer.
25 — Na Pele de Um Negro, John Howard Griffin.
20 — Vida, Espírito e Matéria, Erwin Schrõdinger.
27 — História da Oestapo, Jacques Delarue.
28 — Verdadeira História dos Concilios, Jean-Louis Schonberg.
29 — Símbolos & Mitos, Fidelino de Figueiredo.

Obras do mesmo autor

(Indicam-se as datas das primeiras edições


e os locais das últimas)
Os Humildes (romance), 1908, ed. Gomes de Carvalho, Lis­
boa (esgotada).
O Espírito Histórico, 1910, 3.a edição, Teixeira, Lisboa (es­
gotada).
História da Crítica Literária em Portugal, 1910, 2.a edição,
Teixeira, Lisboa (esgotada).
A Crítica Literária como Ciência, 1912, 3.a edição, Teixeira,
Lisboa (esgotada).
História da Literatura Romântica, 1913, 3.a edição, Anchieta,
São Paulo (esgotada).
Características da Literatura Portuguesa, 1914, 3.a edição,
Teixeira, Lisboa (esgotada).
História da Literatura Realista, 1914, 3.a edição, Ancfcieta,
São Paulo (esgotada).
Portugal nas Guerras Européias, 1914, Teixeira, Lisboa (es­
gotada).
História da Literatura Clássica, 3 vols., 1917-1922, 3.* edi­
ção, Anchieta, São Paulo (esgotada).
Estudos de Literatura, 5 vols., 1915-1951, Teixeira (1.° a 3.°),
Portugália (4.°) e Universidade de S. Paulo (5.° vol.),
(esgotada).
Como Dirigi a Biblioteca Nacional, 1919, Teixeira, Lisboa
(esgotada).
Cartas de Menéndez y Pelayo a Garcia Pérez, 1921, Aca­
demia das Ciências, Lisboa (esgotada).
Epicurismos, 1923, Fluminense, Lisboa (esgotada).
Torre de Babel, 1924, Fluminense, Lisboa (esgotada).
Sob a Cinza do Tédio, 1925, 4.a edição, Nobel, Coimbra (es­
gotada).
O Pensamento Político ão Exército, 1926, Fluminense, Lisboa
(esgotada).
Notas para Um Idearium Português, 1929, Sã da Costa,
Lisboa (esgotada).
Estudos de História Americana, 1929, Melhoramentos, São
Paulo.
Motivos de Novo Estilo, 1929, 2.a edição, Nobel, Coimbra.
História de Um «Vencido da Vida», 2.a edição, 1929, Par­
ceria A. M. Pereira* Lisboa.
Critica do Exílio, 1929, Teixeira, Lisboa (esgotada).
A Épica Portuguesa no Século XVI, 1930, 5.a edição, Uni­
versidade de São Paulo (esgotada).
Iniciação Boêmia, 1932, Instituto de Coimbra (fora do mer­
cado e esgotada).
A s Duas Espanhas, 1932, 4.a edição, Guimarães Editores,
Lisboa.
Menoridade da Inteligência, 1932, 2.a edição, Imprensa da
Universidade de Coimbra.
Depois de Eça de Queirós..., 1933, 5.a edição, Clãssico-CIen-
tífica, São Paulo (esgotada).
Interpretações, 1933, 2.a edição, Nobel, Coimbra.
Pyrene, 1935, 2.a edição, Companhia Editora Nacional, São
Paulo (esgotada).
O Dever dos Intelectuais, 1935, 4.a edição, Leio, Porto.
Aristarchos, 1939, 2.a edição, Antunes, Rio de Janeiro.
Últimas Aventuras, 1941, A Noite, Rio de Jànedro (esgotada).
Antero, 1942, Departamento Municipal de Cultura, São Paulo
(esgotada).
A luta pela Expressão, 1944, 2.a edição, Ática, Lisboa.
Um Pobre Homem da Póvoa de Varzim, 1944, Portugália
Editora, Lisboa.
Cultura Intervalar, 1945, Nobel, Coimbra.
Um Coleccionador de Angústias, 1951, &.a edição, Guimarães
Editores, Lisboa.
Variações sobre o Espírito Êpico, 1954, Universidade de São
Paulo (fora do mercado e esgotada).
Música e Pensamento, 1954, 2.a edição, Guimarães Editores,
Lisboa.
O Medo da História, 1956, 2.B edição, Guimarães Editores,
Lisboa.
Um Homem na Sua Humanidade, 1956, 2.a edição, Guima­
rães Editores, Lisboa.
Diálogo ao Espelho, 1957, Guimarães Editores, Lisboa.
Entre Dois Universos, 1959, Guimarães Editores, Lisboa.
Revista de História, 16 vols., (1912-1928), Teixeira e Flu­
minense, Lisboa. Direcção e colaboração. (Esgotada).
Letras, 11 vols., 1938-1954, Universidade de São Paulo. (Di­
recção e colaboração).

Dos volumes de história literária circulam resumos didác-


ticos em várias edições de Lisboa, Coimbra, Barcelona,
Rio de Janeiro e Buenos Aires. De outras obras há tra­
duções.
SÍMBOLOS & MITOS
Se deseja conhecer a actividade editorial de Publicações
Europa América e receber, gratuita e pexlòdlcamente, infor­
mações bibliográficas sobre o movimento editorial nacional
e estrangeiro, queira enviar-nos, num simples postal, o seu
nome e a sua morada.
COLECÇÃO ESTUDOS E DOCUMENTOS

FIDELINO DE FIGUEIREDO

SÍMBOLOS
&
MI TOS
Todos os direitos reservados.
Capa de Ibolya Salkovits
A o s m eus filh o s, M aria Graziela,
Jorge Fidelino, H e le n a D u lc e e
N uno Fidelino — todos m u ito dis­
ta n te s e sem pre bem 'presentes.
Breve prólogo
Nestas magras 'páginas se recolhe um solüóquio
lentamente meditado e rosnado, mas com sua varie­
dade nos temas, nos andamentos e nos tons.
Nas antigas oratórias havia um evangelista, que
representava o desdobramento do compositor, para
conduzir o fio do entrecho, ainda que este fosse de
ordinário bem conhecido por ter sua versão prefi­
xada.
Também tio presente monólogo, apesar de debater
só matéria viva e comum, se entendeu útil desdobrar
o agonista único em duas personagens — o protago­
nista, que vai meditando, e um secretário, que lhe
registra as palavras com fidelidade aproximativa.
Precariamente aproximativa, porque não se gravou
um disco ou uma fita magnética, nem se recorreu
à colaboração de cügum cérebro electrónico; apenas
se rabiscou papel. E essas mesmas palavras recolhi­
das seriam já na origem rigorosamente fiéis às ver­
dadeiras idéias e intuições pensadas e sentidas?
Como sabê-lo? Em caso nenhum o protagonista de­
sautorizaria o seu secretário.

Ave, Lector.
Dois símbolos

S. M. — 2

No pequeno palco, onde encena a comédia do


seu ramerrão diário, rodeiam-no vários retratos,
pintados, desenhados e esculpidos por artistas ami­
gos em diversos lugares das suas andanças. Fazem-
-lhe companhia e dão-lhe o calor de gratas recor­
dações, porque a todos esses artistas muito estimou.
E lembra-se bem do preciso momento em que foram
realizados e da ambiência de luz e sentimentos dos
lugares. Assim, esses retratos evocam uma seqüên­
cia de episódios da sua longa existência, variada e
intranquila. Alguns dos seus autores regressaram há
muito ao húmus criador: Saavedra Machado, Antô­
nio Carneiro, Raul Xavier e Agustín Segura — este
de modo trágico, na guerra civil de Espanha. E outro
mais, que lhe deixou uma saudade tão dolorosa que
o tempo nada pode com ela. Todos, vivos e mortos,
respondem ao chamamento do seu coração, quando
contempla os retratos demoradamente, fazendo uma
verdadeira exegese do seu conteúdo artístico e emo­
cional. O retratado, nesses distantes momentos, era
outro homem ao qual o artista, por sua vez, fazia
uma exegese moral interpretativa. A pequena gale­
ria ganha assim variedade proteica ou caleidoscó­
pica; a realidade extinta revive com suas cores, sua
20 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

luz e seu destino ondulatório, como riacho a ser­


pentear arrastadam ente por entre penhascos..
De cada vez concentra a sua atenção num só.
Hoje foi a vez de um carvão de Abel Cardoso. Num
domingo visitara-o na sua casinha do Bairro dos
Actores, muito pequena para um tal gigante. Fazia-
-lhe a impressão de um elefante em casa do seu cor-
naca. Como se o adivinhasse, o artista desafiou-o a
passar ao terraço das traseiras, cuja largueza de
horizonte compensava a pequenez da casa. O pintor
costumava trabalhar ali. O cavalete, a caixa de tin­
tas, os pincéis e a desordem o mostravam. Havia
também um divã que fazia apetecer sestas repara-
doras e uma mesinha coberta de livros e papéis
amarelecidos pelo sol.
Conversaram longamente, sob o saboroso estí­
mulo de um velho Porto. Quem não conhece esse
prazer da conversa despreocupada, serena e em con­
fiança entre velhos amigos de campos diversos, pro­
vados pelos anos, ignora um dos mais elevados en­
cantos espirituais da existência. A tarde caía em
calma luminosidade e doce temperatura. Parecia um
diálogo entre dois discípulos velhos de Sócrates ou
Platão, sem pedantismo, sem louvores mútuos, mas
com uma expressão de inabalável apreço por caracte­
res longamente postos à prova. Uma fraternidade em
marcha inversa à do sangue e da comum educação
familiar, não de pònto de partida, mas de chegada.
Então o artista levantou-se devagar, como fazia
tudo, e afirmou sem consultar o outro:
— Vou fazer-lhe um carvão.
SÍM B O L O S <8> M IT O S 21

Preparou os petrechos e empenhou-se no traba­


lho, sem sacrifício da conversa. E já ia adiantado
quando lhe anunciaram a visita de um conterrâneo.
Saiu à sala a recebê-lo e por lá se demorou mais do
que desejava, porque o provinciano alargava-se em
fúteis novidades locais, sem arredar pé. Entretanto
o sol desaparecera. Caíam as sombras densamente
quando o artista voltou ao terraço. Sem uma hesi­
tação disse:
— Estes provincianos nem sempre conhecem o
valor do tempo. Vamos acabar isto.
E travou uma luta denodada com a luz que fugia
e com o seu próprio carácter, que desadorava a pre­
cipitação. E conseguiu a traços rápidos e certeiros
fazer emergir das trevas uma cabeça e caracterizá-la
em todos os seus contornos. Toda a pouca luz da
atmosfera dormente a concentrou na testa lisa, de
modo a compensar a escuridão do ambiente e o ne-
grume espesso do carvão.
Regressando com o rolo de papel à sua casa dis­
tante, o retratado meditava sobre aquele pequeno
episódio de uma grande amizade. Certo lhe pareceu
um verdadeiro artista o homem de espontaneidade
predominante na intuição e na expressão. Mal sabia
Mestre Abel Cardoso, em sua obstinada modéstia,
que numa negra mancha acabava de criar um sím­
bolo: a representação e o resumo de uma vida, que
decorrera e se consumira na luta com a penumbra
perseguidora que o cercou. Uma organização de som­
bras desfiguradoras ou apagadoras, com seus em­
22 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

presários e agentes bem vigilantes, o acompanhou


sempre para o diminuir ou suprimir. Mas ele con­
seguiu emergir como aquela fronte se afirmava con­
traditória no carvão do amigo.
Vidas numerosas terá havido como esta, milhões
incontáveis desde que se estabeleceu o duelo dos
gregarismos de vário tipo com os indivíduos ou as
minorias aberrantes. Gregarismos de classe, intole-
râncias de partido e seita, defesa pelo medo ima­
ginoso, pela inveja e pelo despeito contra quem é
audaciosamente diverso do meio em que teve de
nadar e flutuar e conviver, queira ou n ão — como o
quadro mais singular se há-de conter na moldura
mais comum. E era essa representação de incontá­
veis e inevitáveis dramas pessoais que dava ao car­
vão de Abel Cardoso proporções de símbolo. Já
notaram a curiosidade desagradada com que obser­
vamos as mais pequenas diferenças no comporta­
mento dos povos em seus actos comuns ou diários?
Nos Estados Unidos fazia-o rir aquela maneira de
comer tudo com o garfo dextramente manejado,
enquanto o outro braço caía ao lado e ao longo da
cadeira. No mesmo instante os Ianques ririam dele,
a comer com as duas mãos e os braços um pouco
abertos, com os pulsos contra o rebordo da mesa.
Uma vez surpreendeu dois criados negros a obser­
vá-lo com curiosidade por uma porta.
E ra uma elementar manifestação da psicologia
gregária na pátria eleita do gregarismo cerrado,
como nunca houve no mundo. Dali ao cerco das
sombras desfiguradoras ou apagadoras e à cruzada
SÍM B O LO S <& M IT O S 23

do americanismo e à guerra nuclear só havia um


percurso de gradações, em que a essência do fenô­
meno se mantinha. Abel Cardoso criara aos olhos
da sua própria experiência um símbolo humano.

E ra pelo Natal, quando muitos amigos distantes


e separados para sempre dele se lembravam. Nessa
manhã de melancólica saudade, ao abancar à sua
escrevaninha, os olhos caíram-lhe sobre um gene­
roso presente que de longe lhe enviavam: o volume
jubilar consagrado ao seu labor longevo por uma
grande Universidade, onde servira por largos anos.
Uma conjura de amigos fiéis, desde a proposta ini­
cial, através da sua aprovação e realização profi­
ciente até à apresentação e ao revestimento artís­
tico — uma capa de cores e desenho de significação
simbólica.
— Como o carvão do Abel! — exclamou penho-
rado e desvanecido.
E a associação espontânea dos dois símbolos
adensou-lhe a sorridente melancolia evocadora.
E ra uma capa de desenho e coloração muito sim­
ples, mas de perfeita harmonização visual e eloqüên­
cia patente. Uma só cor, em dois tons, um azul-
-esverdeado e um azul-violáceo, separados por uma
estreita faixa ou orla branca, tudo bem fundido na
expressão de uma paisagem fantástica de sonho.
O desenho perfigurava o corte vertical de uma pla-
nura alterosá, revestida pela neve caída de um céu
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puro. Sob a corcova mais alta do terreno abria-se


uma entrada de mina ao abandono, oculta debaixo da
neve deserta e dormente — porque O' céu sem nuvens
também dorme. A entrada da mina denuncia ri­
queza, com as suas paredes xistosas a soltar grandes
folhas e lascas, e com o desperdício pelo chão, nas
imediações, de mais folhas e lascas de minério talvez
puro de ganga. Os folíolos verticais, como arrum a­
dos, e os dispersos pelo chão acordam-lhe a lem­
brança de livros e pastas, como despojos de alguma
biblioteca subterrânea de trasgos ou gênios da
terra, mortos ou emigrados.
Sem o querer, sem o saber, a longos anos de dis­
tância, separada por um oceano, a artista formulava
com sumo relevo expressivo, só por força da sua
espontânea intuição, um novo símbolo complementar
do de Abel. E assim se encontravam o velho pintor
português e a jovem pintora brasileira Lila Galvão
de Figueiredo — nome também muito caro ao seu
coração—, um a simbolizar a luta com as persegui­
doras sombras crepusculares, outra a simbolizar a
vitória definitiva do gelo sepulcral. Como os velhos
deuses, a ilaquear um homem pertinaz, de costela
prometeica, verificando a impotência das nuvens
densas e escuras, a recorrer à neve inexorável, ca­
dente e jacente para sempre, cruel qual sentença
contra algum ciclope revoltado. E assim, só com o
poder expressivo do carvão e da neve, a envolver
alguns traços, se representava o drama de uma vida
de luta e esterilidade, luta laboriosa pelo acesso à
plena luz e desfecho de Tântalo sepultado em meio
SÍM B O L O S d M IT O S 25

dos elementos que o dessedentariam — o céu lumi­


noso e- a neve pura e alva, condensação de todas as
cores e de todas as belezas do mundo. Mas o homem,
encadeado nas trevas da mina regelada, ainda mexia,
como Prometeu agitava as correntes, quando os abu­
tres lhe debicavam com fúria no fígado... Então os
deuses, revoltados por sua vez, amordaçaram-no,
apertaram-lhe os grilhões e mandaram-lhe uma car­
cereira, a doença, escravizadora, cruel e hum ilhante!
E o homem, silencioso, imóvel, nas trevas enregela-
das dessa mina de todos desconhecida ou esquecida,
seguiu na sua luta com a arm a suprema, a sua razão;
e mesmo dali desentranhava e acumulava minério
na galeria ínvia do seu cárcere.
E os dois símbolos pessoais, criados pela imagi­
nação amistosa dos artistas, fundiram-se e trans-
cendentalizaram-se num mito geral. Que mito?
II

Sísifo de Corinto
Os Helenos demonstraram mestria, até hoje inex-
cedida, para a criação de mitos ou ficções de inter­
pretação estética, bem expressivos, em sua antropo-
morfose, de relevantes fenômenos naturais e morais.
Mitos dinâmicos ou susceptíveis de ilimitados desen­
volvimentos ulteriores, como biografias de heróis,
semideuses e deuses sempre vivos e activos, a obrar
prodígios e a infligir más surpresas e percalços aos
pobres seres humanos*, sem poder mítico ou mágico.
De resto, toda a mitologia clássica deslumbra pela
inicial inspiração criadora; decepciona pela aplica­
ção do poder mítico e volta a deslumbrar ou a hor­
rorizar pela magnitude cruel dos castigos das rebel-
dias e aventuras que desagradavam aos deuses por­
que ofendiam a sua soberania ou despertavam a sua
inveja rancorosa. B astará lembrar os suplícios im­
postos aos títanes que ousaram coligar-se para guer­
rear Zeus. Eem mostrou Camões sentir a essência
dessa mitologia na criação de Adamastor. Os homens
comuns, com sua perversa imaginação, sedentos de
mal, encarregavam os deuses de executar as per-
veraidades morais que lhes enchiam os corações e
quo eles não podiam pôr em obra. Assim será sempre
m im mitologias ou teogonias que soem acompanhar
80 F ID E L IN O D E FIG U E IR E D O

o nascimento das religiões ou o seguem de perto,


mesmo ao credo mais poèticamente puro. Até nas
glosas literárias dos mitos modernos se verifica esse
desequilíbrio entre a criação original das magias
taum atúrgicas e o seu uso nas relações comuns.
O Dr. Fausto, sobretudo na versão de Goethe, ardia
por devassar os arcanos universais; assina um pacto
com o Diabo para contrair o poder que lhe faculte
esse acesso e lhe restaure as forças juvenis. Mas faz
desse poder e dessas forças um uso miserável e
indigno.
O mito de Sísifo, um dos mais evocados pela mo­
derna literatura, mormente depois da segunda grande
guerra, exemplifica tudo isso: a profundidade inicial
do sentido, o uso mesquinhamente humano dos po­
deres mágicos, a perversidade dos deuses e a exem-
plaridade crudelíssima dos castigas.
Viam os Gregos em Sísifo, lendário rei de Corinto,
a personificação da astúcia, entre todo o gênero
humano. (Cautela com a evolução semântica da
palavra «rei»; entre os Helenos tanto podia signifi­
car um régulo local ou insular como, segundo Platão,
um filósofo idòneamente preparado para o exercício
da governação pública.) Não admira essa genialidade
num filho de Êolo, deus dos ventos, embora contras­
tante da força impetuosa e nada calculista do pro-
genitor. Mas tal astúcia não lhe foi defesa bastante
quando acendeu a cólera de Zeus.
E que provas estadeou dessa astúcia singular­
mente poderosa? De uma vez que um vizinho lhe
roubou os gados e que também com poder mágico
SÍM B O LO S d M IT O S 81

lhes trocou as aparências para não se ver descoberto,


Sísifo fàcilmente ,reconheceu e recuperou as suas
reses, porque lhes tinha marcado o lado inferior dos
cascos.
Autólico, filho de Hermes, recebera de seu pro-
vidente pai o dom de se tornar invisível e de o
exercer também sobre os outros e sobre os bens
roubados. O condão ampliava-se pela faculdade de
lhes mudar a forma. No mundo dos deuses cobiça-
vam-se muito os bens do mundo humano; a magia
divina aplicava-se grandemente à arte do roubo e
da ocultação dos bens roubados. Todos tinham um
pouco de Autólicos e Sísifos, os dois rivais na astúcia
Hurripiadora. Estes mestres, admirados em todo o
Olimpo, não deixaram de medir forças.
Quando Zeus, por sua vez especialista em raptos
<l<5 mulheres apetecidas, arrebatou Argina, filha de
AHopo, Sísifo ousou denunciar o omnipotente rei
d08 deuses ao pai da vítima. Zeus, então, indignado,
incumbiu a Morte de suprimir o denunciante, esse
genial Sísifo. Apresentou-se a Morte para cumprir
0 hgu mandato, mas Sísifo conseguiu suspendê-lo,
prendendo a própria Morte com fortes grilhões! E a
mortalidade ficou também suspensa entre o gênero'
1mmano, enquanto durou o cativeiro da Morte »— o
íInu 1 só terminou pela intervenção de Ares, que a
reiiiítuiu ao seu ofício sinistro. Este Ares era um
HeiiM da guerra menos escrupuloso que o seu par­
ceiro latino, Marte, ainda um pouco preocupado com
ri lügitimidade das guerras e das matanças.
Uma vez conseguida a libertação da Morte, Zeus,
32 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

em fúria contra Sísifo, fulminou uma das tais sen­


tenças crudelíssimas de eterna duração: Sísifo, no
Hades, rolaria perpètuamente uma formidável pedra
até ao cume de certa colina; e quando o atingisse, a
pedra precipitar-se-ia irresistivelmente para o ponto
de partida. E o condenado recomeçaria a sua tarefa
extenuante e inútil. E assim por todos os tempos
dos tempos.
Prender a Morte constituiu a proeza maior de
Sísifo, mas* o engenho helénico não lhe extraiu todo
o conteúdo profundo, nem por exegese filosófica,
nem pela tragédia. A Morte agrilhoada ofereceria
um tema rival de Prometeu agrilhoado, talvez o
único de altura equivalente na mitologia helénica.
Se o encadeamento de Prometeu podia suspender
no ponto de partida a prodigiosa aventura humana,
o encadeamento da Morte volveria todos os homens
em deuses imortais, pelo menos despreocupados do
fim, normalmente a sua maior certeza.
Mas a atenção dos poetas e dos filósofos fixou-se
mais na crueldade da sentença de Zeus que nas pro­
vas da astúcia de Sísifo, das quais a de mais trans­
cendente significado foi esse apresamento da Morte.
O cinema explorou um pouco os aspectos cômicos da
Morte em férias: ocorriam desastres pavorosos, cho­
ques de comboios e automóveis, naufrágios e quedas
de aviões, e ninguém morria, porque ela, com a foice
arrumada a um canto, dormia uma boa sesta ou pas­
seava à beira-mar... Mas o aspecto grave e austero
do tem a só se encontra num breve conto da nobilís-
sima autora mexicana Maria Enriqueta: Pedro y la
t

SÍM B O L O S d M IT O S 33

Muerte, da colectânea Sorprescts de la viãa} de 1925.


Um guarda florestal, exuberante de saúde e força,
não se sentia completamente feliz na independência
do seu pequeno reino silvestre porque sofria de um
medo obsessivo: o assalto de surpresa da Morte.
Sabia que devia morrer, mas queria antes medir
forças com ela, a velha megera esquelética. Um dia
cruza o seu domínio ínvio um transeunte misterioso
que, ouvindo-lhe a grande queixa, promete satisfa­
zê-la. E logo desaparece. Quem seria? Evidentemente
uma transm utação da própria Morte, encarregada
pelos deuses de castigar a louca ambição do lenha­
dor com a peculiar crueldade olímpica e de todos os
deuses de todas as religiões.
Espantado pelo repentino sumiço do estranho
viandante, o guarda olha por acaso na direcção de
um telheiro que protegia uma armadilha contra as
raposas. E que vê? Nem mais nem menos que a pró­
pria Morte a bailotear sarcàsticamente n o 'lu g ar de
alguma raposa ingênua. A surpresa do homem logo
se converte em pavor. Com passos tontos corre a
casa a procurar grossas cordas para mais segura­
mente am arrar a armadilha. A Morte, lá dentro,
passa do sarcasmo* à fúria contra o cárcere e o car­
cereiro. Reforça este a prisão e põe-se de sentinela
ansiosa. E durante muitos dias e muitas noites nada
mais faz que isso — prender melhor a Morte e guar-
dá-la à vista, sem comer, nem dormir, nem cuidar
das suas tarefas. Um vizinho foge espavorido; e ali
fica o estulto guarda numa aflição já desesperada.
Como a situação era insustentável, resolve acometer

s. m. —3
34 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

de machado em riste. Quem abatia carvalhos gigan­


tescos não pode temer aquela velha ossuda. Este
episódio do homem determinado a m atar a própria
Morte, com sua dramaticidade, lembra por contraste
diametral a comicidade de um conto de Õscar Wilde,
The Canterville Ghost, em que o fantasm a aterrador
de um velho castelo treme de medo, como varas
verdes, ante outros medrosos que lhe fugiam.
O lenhador, decidido e confiado, entreabre a ar­
madilha envolta em poderosas cordagens e prepara-se
para avançar e contentar o seu velho anelo de fazer
justiça na pérfida inimiga, que uma vez ao menos
não ficará impune com seus esgares de troça. Mas
a Morte esgueira-se fàcilmente, salta-lhe ao pescoço
e prostra-o para sempre, com suas forças orgulhosas
e seu machado bem afiado. E para ali ficou ao aban­
dono, em frente da armadilha vazia. O vizinho, que
fugira, veio sorrateiram ente na manhã seguinte para
assumptar o que havia. Inteirado, a ruminar na
macabra história, conclui de regresso ao seu lar
tranqüilo:— Não há felicidade igual à de gozar a
vida, sem saber a data em que virá a Morte.
Quer dizer: até para que o maldito mister da
Morte se torne mais suportável, ela precisa de liber­
dade— a santa liberdade, tão indispensável ao ho­
mem como o ar e como o sol, quais o pão e a água...
Não foi a magna prova da astúcia de Sísifo
— prender a Morte, como os deuses haviam pren­
dido no Cáucaso o herói da maior audácia — o que
se perpetuou na atenção preferente dos homens.
Tomaram-na por simples pretexto para o exercício
SÍM B O LO S <& M IT O S 35

da crueldade olímpica e fixaram-se antes na prova


dessa crueldade: esfalfar-se num esforço inútil por
conduzir a um trabalho vão como irrealizável e an-
gustioso por eterno.
Os Ingleses, cujo orgulho tinha alguma coisa de
olímpico, mantiveram por longo tempo no seu código
penal essa punição do contínuo trabalho inútil, como
rodar manivelas que a nada movimentavam. Conti­
nuamente, mas não eternamente, porque uma justiça
«uperior defende os homens pela sua transitoriedade.
Parece que os homens se deleitam em apoucar,
por intermédio dos deuses e dos «Estados nacionais»,
divindades modernas, o seu próprio génio. Mas este
não proveio de dádiva gratuita dos numes, provém
do esforço muito suado, muito perseverante, dos
homens. Parece também que uma das causas ori­
ginais do sentimento religioso consiste na necessi­
dade que os homens sentem de se apoucar pela força
da magia, uns aos outros, em guerra gregária à
individualidade, muito embora a individualidade a
todos sirva por suas conquistas.
Porém, o rasto da astúcia de Sísifo não se apa­
gou: legou-a a seu neto materno, o facundo Ulisses,
filho de sua filha Anticleia. A astúcia do avô abran­
dou humanamente no neto, filtrada através do génio
de Homero. Ulisses apenas queria defender-se e
vencer os obstáculos ao seu regresso a Itaca e aos
braços da sua fiel Penélope. E quando fraquejou
perante as seduções de Calipso, não tardou em se
cansar do amor de uma deusa para nostàlgicamente
recomeçar a viagem para o seu reino e para o amor
36 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

de uma fraca mulher muito pretendida. Esse homem


apenas é mais solerte ou vulpino que titânico nas
suas ambições. A sua linhagem alterou-se com o
sangue de Laertes, seu pai. A genealogia mítica
impregna-se de intenção profunda.
Não se compreende o esquecimento da mitologia
pelos historiadores da filosofia — quando essa opu­
lenta mitologia helénica representa para a civiliza­
ção europeia a primeira concepção sistemática do
mundo, mais difundida e influente que a dos físicos
eleatas, por causa das suas aderências religiosas,
dirigidas ao medo e não à pura curiosidade intelec­
tual. Esquecimento que lembra o silêncio dos mes­
mos historiadores a respeito da música moderna,
que também encerra doutrina filosófica. Alguns com­
positores foram ainda pensadores, por exemplo Ber-
lioz, Lizst e Wagner.

Aqueles dois desenhos — o carvão feito ao lusco-


-fusco e o lençol de neve a ocultar a mina aban­
donada — só se tom aram verdadeiramente símbolos
quando o seu significado se ampliou de extensão.
O singular não determina símbolos, porque os sím­
bolos expressam emblemàticamente uma constância
de carácter e de repetição. Mas também, quando a
representação de uma pobre vida, que se consumiu
na luta com as sombras perseguidoras para poder
construir coisas que o frio da indiferença havia de se­
pultar, se despersonalizou, a am argura dessa pobre
SÍM B O L O S & M IT O S 37

vida como que se socializou em norma, já não caso


ningular. E assim se tornou mais leve. A companhia
na dor aligeira-a, qual ajuda a um carrego. E mais
ainda se aliviou quando os dois símbolos se fundi­
ram e resolveram num mito de transcendente sen­
tido. Se a existência humana, desde os trogloditas
aos cosmonautas da era espacial, se consome em fa­
digas intermináveis para criar coisas vãs, a fazer
n a desfazer como Penélope tecia e destecia a sua
teia, essa existência afigura-se absurda a quantos a
contemplem em conjunto e a avaliem. E só o mito de
Sisifo, a carregar o seu calhau rolante, por toda a
eternidade, representa com flagrante eloqüência esse
absurdo irremediável, com toda a sua angústia. E
assim, também, a angústia de todos será menos
angustiosa. Ninguém se crê perseguido pelos deuses,
por ter de sofrer as chuvas e as trovoadas; bem
Babe que chuvas e trovoadas a todos atingem como
fenômenos de atmosfera irresponsável e não inten­
cionada.
Desse modo, por esforço dialéctico, a dor indivi­
dual, com sua aparente singularidade cruel, exten-
dn-se a todos: atenuou-se nos símbolos e subiu à
«olidariedade humana, com sua condição imutável,
no mito de significado mais genérico de toda a
Antiguidade. Sentir-se compreendido na condenação
otcrna fulminada contra todo o gênero humano, a
r)i tal se adere inseparàvelmente à humanai condição,
dilui de modo tal a angústia de viver que lhe su­
prime o direito de queixa. O homem não pode sofrer
penas eternas, porque não vive eternamente. Nasceu
38 F ID E L IN O D E FIGXJEIREDO

num dia e acabará noutro. E stá sobre a superfície


da Terra há duzentos e cinqüenta mil anos; e a vida
vegetal e animal tem 1 milhão de anos de idade; a
sua casa terrena rola nos espaços há biliões de anos
e a máquina do universo constituiu-se há 2 triliões e
durará menos que esse lapso de tempo.
Todas estas idades, seja qual for o erro na con­
tagem de cada uma, estabelecem uma hierarquia
concêntrica de eternidades — eternidades só perante
a escala humana, seu egoísmo e seu medo.
Saberá estas coisas o condenado Sísifo e delas
extrairá alguma consoladora esperança no acaba­
mento do seu suplício? Só perguntando-lho se po­
deria saber. E como? De modo análogo ao daquele
jornalista que entrevistou Prometeu. Armando Pa-
lacio Valdés contou essa audaciosa aventura em
Papeles dei Doctor Angélico.
Um jornalista do diário madrileno E l Pueblo
Libre, que se aborrecia enormemente em Sebastopol,
aceitou o convite de um oficial russo da guarnição
de Abkhasia para visitar Prometeu. E lá foi, já
não aborrecido, mas trespassado pelo pavor. Tre­
param à montanha, percorreram túneis estreitos e
húmidos, de gatas, como felinos traiçoeiros, atra­
vessaram grutas caliginosas e por fim desemboca­
ram no cume, onde Prometeu agrilhoado jazia de
costas, com uma corte de abutres à volta, a digerir-
-lhe com delícia as vísceras sempre renascentes.
E entabularam conversa. Prometeu não esquecera
o grego, a língua de sua mãe, Témis, e aprendera
idiomas modernos para m atar o tempo: falava grego
SÍM B O L O S <& M IT O S 39

o entendia o francês. Não esperou que o jornalista


espanhol e o oficial russo o interrogassem, logo
começou uma am arga lamentação condenatória do
uso que os homens faziam do fogo e das artes que
ole lhes ensinara. E como falava a um homem dos
jornais, não poupou a imprensa que falsificava ou
mesmo invertia a sua missão.
Entrevistar Sísifo parece mais difícil. Suando e
tressuando pela encosta da sua colina de expiação,
não terá tido oportunidade para aprender línguas:
condenado a uma activa pena eterna, luta com falta
de tempo — mais um agravamento do seu suplício.
E quem saberia localizar o Hades? Os geógrafos da
mitologia, mesmo os mais doutos, não são concordes
nesse ponto: apenas se sabe de certeza que o reino
dos mortos era subterrâneo, sulcado por vários rios
e guardado pelo barqueiro Caronte e um mastim,
Cérbero, com três cabeças. E devia te r largueza
bastante para comportar montes e vales como aque­
les por onde o penedo do pobre supliciado subia e
descia. Mesmo bem localizado, o seu acesso tornar-
-se-ia bem árduo e perigoso até para qualnuer jor­
nalista corajoso. Caronte não se deixava seduzir por
gratificações, nem Cérbero se entretinha com bolos
de estricnina. E qual a pergunta de maior interesse
que o jornalista levaria na ponta da língua? Saber
se, investido da representação de todo o gênero
humano com a inanidade torturante da vida, se
sentia um pouco aliviado na sua pena? Impossível
responder. Os deuses, ao encarniçar-se contra um
inimigo, suprimiam-lhe também a vis philosophica
40 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

ou a vontade e a força de especular sobre o próprio


infortúnio para dialècticamente chegar a uma sua
conversão interpretativa que o apaziguasse um
pouco. Nenhuma escapatória possível. Os deuses
mostravam-se perfeitos na sua concepção do mal e
nos desígnios do seu ódio perseguidor — persegui­
dor, mas nunca exterminador. Sabiam o que as crian­
ças não sabem: acabado o brinquedo, acaba-se tam ­
bém a brincadeira. A concepção de deuses e de mitos
m inistra preciosos elementos para a antropologia
filosófica ou para a elaboração de um retrato inte­
gral do homem, sobretudo nos contornos da sua
vocação para o mal. Do conteúdo se deduz a forma
do recipiente e das obras a aptidão do obreiro. Coisa
difícil o diálogo entre qualquer jornalista afoito e
Sísifo, personificação mítica do absurdo eterno da
vida humana — mesmo que este falasse grego e en­
tendesse o francês e o jornalista falasse o seu franciú
de Lisboa ou Madrid e entendesse o grego homérico,
como no caso de Prometeu!
A conversa giraria em tom o da duração etem a
de um sofrimento inútil. Ora a eternidade não parece
coisa concebível por um cérebro humano. P ara os
homens tudo tem um princípio e um fim; «eterno»
designa apenas o que dura desmesuradamente em
relação com a normal vida humana. Afigura-se coisa
impensável, não só por se não derivar das notícias
positivas da observação sensorial e da experiência,
elaboradas pela razão, mas também porque haveria
de te r um sentido de marcha para o futuro, pois o
passado eterno já vivido e não testemunhado care»
SÍM B O L O S d M IT O S 41

ceria para os humanos de todo o ensinamento recor-


datório.
Teríamos assim uma ideia de eternidade unila­
teral, como ave desasada de um flanco: uma eter­
nidade sem princípio. Ora a ideia tem sentido retros­
pectivo e prospectivo, sem duração mensurável. Não
6 por seu carácter abstracto que a ideia de eterni­
dade se tom a impensável, porque podemos con­
ceber muitas ideias abstractas e com elas realizar
inverosímeis malabarismos. «Humanidade», «vida»,
«morte», «brancura», não designam realidades; só
há «homens», «seres vivos», «mortos», e «coisas
brancas». Concebemos tais ideias abstractas, porque
a nossa observação e a nossa experiência, a nossa
comparação, generalização e abstracção as formu­
laram e porque as herdámos de nossos antepassados,
com a linguagem que lhes arquivou as aquisições
mentais.
P ara nós, «eterno» significa apenas despropor­
cionado ante a escala da vida humana. Quem sabe
se para um corvo e uma tartaruga, que duram muito
mais que um homem, a expressão «eternidade» con­
teria outro sentido mais próximo da intenção dos
deuses — se os corvos e as tartarugas pudessem sen­
tir a consciência da sua longevidade. Se a estatura
influi nas nossas ideias, com razão maior há-de in­
fluir a duração da vida dos indivíduos que ocupam
espaço e absorvem tempo, segundo o seu volume e
a duração de sua existência. P ara o verificar basta
recordar as nossas ideias e a nossa visão das coisas
42 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

do ambiente na infância, na adolescência, na moci­


dade, na madurez e na velhice.
Parece que um jornalista do Chiado ou da Calle
de Alcalá não poderia entender-se fàcilmente com
Sísifo. Zeus, ao fulm inar a sua condenação eterna,
conferiu a imortalidade a Sísifo, pois só pode cum­
p rir uma pena eterna auem também for eterno. E no
mesmo instante lhe atribuiu essência divina, inacessí­
vel à acção do tempo, com seu deseaste envelhecedor.
Os deuses não envelheciam e não sentiam o fluir do
tempo, os dias e as noites, as estações, os anos e os
séculos, referidos aos fenômenos astronômicos. Se
os condenados envelhecessem e declinassem, não pa­
gariam as suas dívidas aos deuses. E estes conhe­
ciam a solidariedade nos interesses entre credores
e devedores. Sísifo, ao aprisionar e am arrar a Morte,
conferiu também uma imortalidade instantânea ao
gênero humano, mas foi vencido na luta desigual.
Decididamente, a conversa era impossível entre
um homem preocupado com o seu imediato furo jor­
nalístico — o nosso colega Fulano entrevista Sísifo
nos Infernos — e um ser solidário com a duração do
universo, embora o pequeno universo de Homero e
Hesíodo. Para o rapaz dos jornais e das parangonas
sensacionais o mundo, um rosário de dias, materia-
lizava-se numa colecção de diários de papel; para
os deuses o mundo vivia só num perpétuo presente.
E Sísifo teria a mesma sensação, o que lhe havia de
aligeirar bastante a pena absurda e inconcebível.
Isso não impediu que o seu mito fosse investido da
SÍM B O LO S <& M ITO S

representação do absurdo total da vida humana, com


sua angústia generalizada.
Começou então o reinado do sisifismo — que o
lusitanista holandês H. Houwens Post crê muito
anterior à primeira grande guerra. P ara este agudo
crítico, toda a obra de Machado de Assis é de mili­
tante sisifismo, ainda que o autor brasileiro não ti­
vesse notícia dos escritos teóricos da doutrina ou,
melhor, da posição moral e emocional de autores
como Kierkegaard, Sartre, Kafka e Camus. Uma
posição descrita em romance, peças de teatro e algum
ensaio arbitràriam ente subjectivo.
Os homens gostam de mitizar a realidade. Criam
e recriam mitos, restauram-nos e sobrepõem-nos.
Com eles mascaram a verdade, saibam-na ou não.
Com a técnica moderna da propaganda, que ensinou
a dominar e a corromper as consciências, desenvol-
veu-se também a indústria dos mitos, duplamente
falsos, porque não brotam do sentimento colectivo,
nem da criação literária. Coisa parecida com a in­
dústria dos plásticos.
Os mitos de origem literária não têm a simplici­
dade monolítica dos mitos helénicos, nem a sua
expressividade nascida como intuição colectiva ime­
diata e logo traduzida por um inexcedido génio
artístico. Esses, como o Dr. Fausto, D. Quixote,
I). João e Hamlet, nasceram da inspiração indivi-
dualfssima de grandes espíritos já de idade histó­
rica muito avançada; são complicados e mesmo re-
torcidos, admitem as mais diversas interpretações,,
vflm © vão-se, tornam a voltar como velhas modas,
44 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

testemunhando a incerteza das ideias e dos juízos do


homem sobre o próprio homem.
O mito de D. Quixotep certamente o mais uni­
versal dos modernos mitos de origem literária e na
aparência o de mais coerente caracterização, não
deixa de meter água por vários lados da sua barca.
Ê um mito dual, um grupo em que as duas partes
contrárias, o idealismo perfeito de D. Quixote e o
bom senso realista de Sancho, se chocam, polemizam
e se entreinfluem. Um opõe ao outro as suas razões
em form a peculiar, D. Quixote por discursos de alta
e desinteressada doutrina teórica, Sancho por objec-
ções rasteiras expressivas pelas evidências do inte­
resse imediato e por aquele seu inesgotável adagiá-
rio, que mergulha, ele sim, na experiência colectiva.
Ao contrário dos mitos heléniços, o mito cervan-
tino tem carácter evolutivo: o seu conteúdo só se
patenteia pelo comportamento dos seus dois compo­
nentes. Em poucos versos, Homero e Hesíodo nos
entregam todo o conteúdo dos mitos que mencionam,
com a eloqüência imediata da-sua dominadora força.
Cervantes escreveu um prolixo romance, em duas
partes, durante as quais o carácter de D. Quixote se
vai alterando, como a definir-se e a subir na mente
do seu criador. Sempre a alterar-se? Sempre a ex­
trem ar o seu heroísmo, o seu desinteresse e a sua
ideal pureza cavalheiresca? Não. O cavaleiro que
ousou desafiar leões, de lança e escudo em frente da
jaula das feras, foge numa das suas aventuras e de
outra desiste, quando a vê mal parada, afirmando
com sofisnmdo eufemismo que não lhe estava des­
SÍM B O LO S & M IT O S 45

tinada. O cavaleiro, que, por obrigação das regras


da cavalaria, devia viver ao deus-dará, coma as aves
dos campos e-dos céus, permite que o seu escudeiro
aceite grossa quantia, ao sair de uma corte ducal,
nunca identificada. E sabe-lhe bem esse confortável
viático para o novo jom adear.
O m ártir da verdade idealista sem jaça, pela qual
t rava combates incontáveis e desiguais, ao sair da
Cueva <de Montesinos, faz por meias palavras e num
piscar dos olhos am pacto de m entira com Sancho:
este não porá em dúvida as maravilhas entrevistas
cm seu mergulho na cova mágica e ele fingiria acre­
ditar nas patranhas do seu escudeiro quando galo­
pou pelos espaços, montado no cavalo Clavileno.
Assim tratava ao herói mais puramente cavalhei­
resco do mundo o seu criador, que, além de lhe atri­
buir essas fraquezas incoerentes, o fez correr as
aventuras mais degradantes. Puros e congruentes,
de uma pureza e unidade elementares, só os mitos
lielénicos. Receberam as heranças bastardas de ori­
gem forasteira, que testemunham sobreposição de
civilizações, mas a form a do seu brotar caracte-
rlza-se sempre por essa inteireza monolítica, suma­
mente expressiva. Depois alteraram-se um pouco,
porque os Helenos não tiveram concílios definidores
dos seus mitos, não os imobilizaram em dogmas nem
«e bateram por eles em guerras odientas e exter-
minadoras. Além da severa lei do ostracismo, a his­
tória só registra um caso sensacional e memorável
de intolerância defensiva dos mitos — a m orte de
Sócrates.
46 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

Os modernos casos de sobreposição de mitos ve­


rificam-se principalmente na política e na história,
depois de montada a infalível técnica da propaganda.
Homens que a si mesmos se mitizaram, sobrepõem-se
artificialmente a lendas de personagens históricas
perfazendo a sua mitização, mas pítojectando-se nelas
e desse modo antegozando uma glória imaginária.
Fazem a essas figuras já meio lendárias o que ambi­
cionam a respeito deles próprios, sobretudo na des­
proporção dos juízos, já fora de toda a realidade.
Em Portugal se pôde observar esse pitoresco fenô­
meno, a propósito das comemorações henriquinas.
O processo de mitização sobreposta pode não se limi­
ta r a um indivíduo, mas referir-se a um grupo ou
classe, aos preconceitos e ideias fixas, às concepções
doutrinais que fazem a sua coalescência social e a
sua razão de viver.
Coisa fecunda em ensinamentos para o retrato
moral do animal-homem, animal-político, metafísico
e incansável criador de mitos.
Quanto se perdeu em notícias positivas para
integração desse retrato, só porque nenhum jorna­
lista se deixasse tentar pela imitação da proeza do
redactor de E l Pueblo Libre, de Madrid! Cerca de
meio século nos separa do relato de Armando Pa-
lacio Valdés — tempo de mais para a memória can­
sada pela vida vertiginosa de hoje. Cinqüenta anos
formarão um dos primeiros graus da tal hierarquia
concêntrica de eternidades, cujo raio maior será a
duração do Cosmos...
Ganhar-se-ia uma grande oportunidade para a te-
SÍM B O LO S & M IT O S 47

lovlsão, se um afoito jornalista descesse ao Hades


com seu aparelho fotográfico de cores. Que emoção
vor Sísifo a resfolegar encosta acima, empurrando
por nós todos o formidável calhau da angústia hu­
mana! E à ilharga, pequenino e oprimido, o jom a-
liMtii de olhos esbugalhados! Deveria contemplá-lo
com recolhimento e devoção, porque presenceava um
üoto redentor do gênero humano, praticado pela
própria vítima sofredora, não por um messiânico
Sacrificado* Mas o dever de preparar o texto para
o jornal não o deixaria gozar em plenitude a sua
magnífica e original aventura. Magnífica, mas me-
iiuH difícil do que se lhe afiguraria. Caronte, o
barqueiro transportador das almas, também tivera
noutro tempo sua curiosidade jornalística de sentido
Inverso — observar o mundo superior dos vivos. E
«li veio. E na volta contou a Luciano, o satírico,
«liiiinto o haviam impressionado as presunções pro-
vlaórlas dos vivos e as decepções etem ais dos mor-
Ioh -que pouco a pouco voltavam às antigas ilu-
ifien para enganar o tédio da eternidade...
Afinal a entrada não pareceria tão difícil como
A primeira vista. Caronte não recebia gorjetas e não
dolxitva envenenar Cérbero, mas não resistiria à ten-
de conversar acerca da sua velha viagem ao
mundo terreno da superfície. Teríamos assim um
<1IAlogo muito esclarecedor a respeito do mundo dos
vivou, observado por um morto, e do mundo dos
hmrloH observado por um vivo. Form aria um retrato
HfefTftl do homem num díptico.
Man os jornalistas, tão curiosos e amigos de via­
48 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

jar, não se lembraram de que poderiam contar pro-


vàvelmente com um «quinta-colunista» nos Infernos,
esse Caronte, apesar do tratam ento inóspito que re­
cebeu de Gil Vicente. Verificariam então a verdade
manhosa da sabedoria das nações: até no Inferno
vale a pena te r amigos!
Não se lembraram também de antecessores mais
gloriosos que o redactor de E l Pueblo Libre, de Ma-
drid — nem mais nem menos que Orfeu, Luciano,
Virgílio e Dante. Descidas aos Infernos, celebradas
pela grande poesia e pela grande música, por um
Milton e um Gluck. Sempre por estas alturas.
O «interessante» díptico poderia ampliar-se em
«espectacular» tríptico. E o terceiro painel dá-lo-ia
uma pequena paragem no Norte de Ãfrica, à volta,
para entrevistar Atlas, filho do títan Jápeto, como
Prometeu, e envolvido imprudentemente por seu pai
na rebelião contra Zeus. O seu papel não teve grande
relevo, mas a filiação agravou-lhe as culpas. E Zeus
fulminou-o com uma das tais sentenças crudelíssimas
e eternas, e agora desproporcionadamente iníqua:
sustentar com sua cabeça e suas mãos a abóbada
celeste cravejada de luzeiros! Depois, para de novo
ferir o pai, agravou-lhe ainda a sentença, petrifi­
cando-o na cordilheira que lhe tomou o nome, e man-
tendo-lhe a consciência desperta e sensível — como
Adamastor, a guardar a secreta comunicação de dois
oceanos e a penar de amores impossíveis. Só uma
diferença no lugar do desterro os apartava, porque
no tempo do delito o extremo ocidental do mundo
era nas Colunas de Hércules e no tempo de Camões
SÍM B O LO S <6 M IT O S 49

o seu extremo austral era já o cabo Tormentório.


A imaginação castigadora do poeta igualava o poder
do Zeus.
Com a experiência adquirida na descida ao Hades,
0 jornalista fàcilmente conseguiria fazer-se entender
nesta aventura nova. E perguntar-lhe se a inexis­
tência da eternidade, como coisa impensável, aligei-
niva um pouco o seu suplício. Ele tinha forças bas-
1antes para aguentar tam anha carga, porque Zeus,
como credor astuto, não mantinha devedores insol­
ventes; queria apenas gozar com o mal, não arriscar
grandes capitais a juros compostos em negócios fa­
líveis.
Atlas, sabedor da aventura anterior do jornalista,
desentender-se-ia talvez da sua pergunta e contestar-
-lhe-ia:
— Haja ou não haja eternidade, o meu suplício
parece a todos bem maior que o de Sísifo.
Mas o jornalista, homem de boas leituras, objec-
taria:
— O trabalho de Sísifo é vão e sem fim, nem des­
canso.
E ra ver quanto lhe pesava aquele calhau, a
teimar em descer para o sopé do outeiro.
Então Atlas, como se tivesse também suas lei­
turas e se lembrasse da disputa entre os varinos de
Ilhavo e os campinos do Ribatejo, narrada por Gar-
rett, sobre quem tinha mais força, se o mar, se um
touro, perguntar-lhe-ia, com ênfase:
— Que pesa mais, este céu estrelado ou um sim­
ples pedregulho?
50 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

Não se ficaria atrás o jornalista e retorquia-lhe:


— O pedregulho representa um simples contra­
peso. Sísifo carrega com toda a angústia humana,
desde o primeiro de nós.
à conversa assistiam alguns curiosos, entre eles
um rifenho abastado que vivera em Paris e presen-
ceara a ocupação nazista. Logo oporia, com indig­
nada decisão:
— Zeus carrega fardo muito maior; carrega com
toda a maldade humana, que pesa mais que um sim­
ples pedregulho rolante e todo o céu. Os homens in­
ventaram Zeus para instrumento da sua própria per­
versidade, à qual crêem ainda pouco poderosa para
pôr em obra os seus imperativos de mal. Essa origem
explicará a analogia entre o rigor feroz das sentenças
dos deuses e a iniqüidade feroz dos julgamentos po­
líticos revolucionários dos homens. A atribuição de
transcendentes sentidos à crueldade eterna dos mitos,
como os de Sísifo e Atlas, eqüivaleria a uma reabili­
tação dos mártires.
A estas observações do marroquino sabido res­
ponderia A tlas com um provérbio árabe que se não
pode reproduzir...
Sisifismo e existencialismo
E Sísifo e Atlas, vistos ou não, conversados ou
não, continuaram a viver sua vida mítica — um a
rolar sem fim a angústia do esforço vão, outro a
sustentar o Céu com todas as suas ilusões e supers­
tições. Vivem ainda, porque o homem, animal criador
de mitos, sofre de uma insaciável bulimia de men­
tira. Por ela julga e interpreta o que não sabe e não
pode ignorar; por ela foge da realidade charra de
todos os seus dias; por ela cria as artes, sublima-
ções da sua mitomania; por ela organiza mnemó-
nicas sínteses do conjunto da existência e do uni­
verso— os titânicos arranha-céus de palavras da
metafísica.
Cada mito espera sua sazão propícia para soltar
as suas inflorescências capitosas ou acres. A segunda
grande guerra deu-a a Sísifo. Entrou na moda —
obstinada moda que tem resistido aos embates da
filosofia universitária, porque trazia no seu bojo
dinamismos que se hão-de g astar antes de morrer.
O vocábulo «sisifismo» ganhou direitos de cidade
e figurará mais tarde ou mais cedo nos dicionários
de filosofia, porque é sinônimo de existencialismo
no seu moderno matiz francês, definido nos últimos
tempos da ocupação nazista e sob a influência das
54 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

suas tormentosas humilhações. Que viram então os


Franceses? A impossibilidade de vencer as bestas
do Apocalipse. Em 1918 conseguiram dominá-las,
mas elas voltaram com força nova e ferocidade re­
dobrada em 1939. E alguns homens de pensamento,
que não viram nisso tudo uma condição da existên­
cia, e um processo da história, ajustaram as contas
com essa existência e com o mundo todo, em vez de
o fazer com os seus chefes políticos e militares, e a
sua estrutura social, as suas ideias condutoras, a seu
sistema de educação e a idade da sua civilização.
Alastraram um mal de campanário a todo o mundo
e suprimiram esse mundo com todo o seu conteúdo,
por meio de palavras mal humoradas ou vindicativas.
Esse existencialismo francês aparece como filo­
sofia de circunstância, à maneira da Ilustração ou
filosofia das luzes, no século xvm , do krausismo em
Espanha e .do positivismo em França. Distingue-se
da Ilustração ou Aufklãrung, em que esta revela um
explosivo optimismo baseado na razão, ao passo que
o existencialismo francês brota de um explosivo pes­
simismo emocional, determinado por cruciantes e
estúpidos sofrimentos. Ambos significam descida ou
corajoso advento da filosofia à praça pública e ao
salão, estabelecendo assim unanimidade de confiança
que multiplica as forças reformadoras do pensa­
mento. Casos que se repetem na história, entre os
Gregos, os Ãrabes e os índios — segundo o critério
comparatista de Spengler.
Não é justa a posição de indiferença ou mesmo
de desdém da filosofia acadêmica ou universitária.
SÍM B O LO S d M IT O S 55

Tudo que existe, se não procede artificialmente de


técnicas propagandísticas, se não visa a constituir
uma anticultura de classe ou partido, com emana­
ções letais para a verdadeira cultura, tem sua legi­
timidade e deve ser acatado para que ponha à prova
o seu dinamismo e exerça a influência esclarecedora
que pode exercer — mesmo a acção negativa que lhe
futura a crítica. Demonstrar experimentalmente os
erros a que levam alguns caminhos constitui um
grande serviço. Devemo-nos bater pela franca liber­
dade intelectual, até para a expressão de ideias con­
trárias às nossas ou a que antevemos fracassos.
Assim se gastam as forças dos erros — os quais se
obliteram e passam à história como fases da expe­
riência humana e suas ilusões.
O existencialismo, atitude preferencial para os
problemas imediatos .da consciência ante o moderno
teor de vida, enraíza-se em terras estranhas: na
fenomenologia alemã de Husserl, Heidegger e Scheler,
a qual teve a coragem de «pôr entre parêntesis» ou
prescindir do problema das essências e confinar-se
na descrição do nosso Dasein ou da humana presença
individual no mundo, para a descrever pela sua ime­
diata revelação fenomenista à consciência de cada
um. Ã distância também nele influi a moderna valo­
rização do dinamarquês Kierkegaard, que contou a
angústia e o desespero do homem, que não sabe de
onde vem, nem para onde vai, e não consegue a cer­
teza de Deus para entabular diálogo com ele, mesmo
num ambiente conventual de místico monoideísmo.
E destas fontes procede essa popularizada moda
56 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

filosófica. Só falta acrescentar a estas fontes vul­


tosas e nobres outra sem vulto, nem nobreza, mas
com influência sensível: o complexo de ressenti­
mentos e recalques da infância do definidor. Ele os
memorou num livro autobiográfico: Les Mots.
Isto da sua autenticidade primitiva degenerou
pela popularização, mas não sem prestar bons ser­
viços, tais como enterrar a discussão do problema
das essências, que se arrasta, na filosofia ocidental,
desde a poética invencionice das «ideias puras» de
Platão.
Também fez desserviços, sobretudo à gente moça:
a supressão da gravata e do pente, da cortesia, do
escrúpulo de linguagem, o amortecimento do pudor
no convívio dos sexos e a difusão do gosto pela lite­
ratu ra sexual.
Que prestígio guardam certas filosofias só por
efeito mágico da sua antiguidade e da beleza da
forma de sua expressão! Certo que a fonte prim ária
do espírito filosófico de largo voo a deu uma espon­
tânea admiração do homem pelo que se passava à
sua volta; e expressou-se em mitos e sistemas de
ideias míticas e concepções poéticas — manifestações
de ignorância comovida e excitada.
Não existem tais ideias puras, nem as suas remi-
niscências na cabeça dos homens, nem os conceitos
de Aristóteles, nem os conceitos do Verbo, de Santo
Agostinho, nem os conceitos aristotélico-tomistas,
nem os avatares vários das ideias puras de Platão,
que a história da filosofia arquiva. Só há coisas e
pessoas onde coexistem, pois há planetas desabita­
SÍM B O LO S <S> M IT O S 57

dos. Se as essências devessem preceder as existên­


cias, toda a história geológica, sideral e humana
estaria prevista e representada num armazém de
matrizes, ou, para o m anter em dia, o seu guardião
deveria trabalhar muito, a induzir as essências das
existências criadas hora a hora pelo engenho hu­
mano. E teríamos então que a ciência e a tecnologia
modernas haveriam invertido completamente a ordem
do mundo: na hora da partida as essências prece­
diam as existências e nos tempos modernos estas
antecipavam-se àquelas; as realidades telescópio, mi­
croscópioy aviãoy nave espacial, determinariam a in­
dução de essências ou de matrizes novas para o tal
armazém de possibilidades das existências.
Pode-se sugerir que as asas de ícaro acusam a
precedência da matriz e que a esmeralda de Nero
míope revela a essência da realidade lente, base dos
microscópios. Também do electrónico ? Só pode haver
uma resposta, que não provém da filosofia, mas da
religião, e só de religião te ísta : a omnisciência intem-
poral e absoluta de Deus. Ao criar o mundo terreno
e ao povoá-lo de seres humanos, sabia muito bem
qual o comportamento desses habitadores da Terra
durante os séculos dos séculos. Mas nesse caso para
que necessitaria a sua omnisciência daquele arma­
zém de essências ou matrizes? E estas deveriam
possuir grande poder de mobilidade e diferenciação
interna para abarcar todas as possíveis existências
futuras.
Não há argumentação com base em factos obser­
vados ou na experiência que possa conseguir anular
F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

estas verdades incontroversas: o mundo existe inde­


pendentemente dos homens e da influência da sua
presença nele e da sua visão dele. Só as pequenas
coisas, que representam técnicas de adaptação para
tornar a vida humana possível ou suportável, exis­
tem por obra do engenho dos homens, à custa de
esforços titânicos.
Os existencialistas franceses têm razão indiscutí­
vel, quando matam com certo desdém realista esse
perturbador e imaginoso problema das essências,
coisa tão vã como a querela dos «universais» nos
séculos góticos, vulgo medievos — à qual de resto
se articula.
Mas esses existencialistas já não têm sombra de
razão quando com mau humor negam a existência
do mundo fora do nosso espírito, da sua represen­
tação subjectiva e da sua utilização egocêntrica. Por
aqui os existencialistas franceses acordam e refor­
çam o seu parentesco fenomenológico e vão entron-
car-se, queiram-no ou não, na velha corrente idea­
lista e, se analisássemos fundamente essa atitude,
contrariariam o seu antiessencialismo, como se per­
dessem o pé num redemoinho.
A sua maior originalidade consistirá talvez na
forma de apresentação das suas teses: em romances
e peças de teatro que exemplificam maneiras ou tipos
de comportamento. Nessas obras, por vezes de grande
emoção, outras tantas de afoita soltura de lingua­
gem e despreocupação ética, os protagonistas valem
por argumentos, fazem mesmo de personificações
exemplares de ideias. Mas que valor demonstrativo
SÍM B O LO S á M IT O S

se pode atribuir a uma obra de ficção, forjada em


todas as suas peças pela imaginação preconceituosa
do seu autor? O mesmo que se deu ao «romance
experimental» de Zola.
Nas suas relações com o mundo, os existencia­
listas percorrem três momentos emocionais: 1.° re­
conhecer o absurdo presente em toda a existência
humana; 2.° cair em estado de angústia; 3.° concluir
pela náusea negadora.
O seu absurdo eqüivale a autêntico sisifismo e
teve seu definidor teórico e prático em Camus. O
ensaio Le M ythe de Sisyphe só em poucas páginas
se refere ao homem do calhau, vítima do rancor vin­
gativo de Zeus, mas encerra muitos comentários de-
desanimados sobre várias outras formas de absurdo
real.
Só a angústia parece legítima e oportuna. O
absurdo e a náusea já não parecem tão legítimos,
porque generalizam reacções apressadas ou super­
ficiais. Nem a França e Paris condensam toda a vida
humana, nem esta pode em caso algum constituir
um absurdo generalizado e causar náusea aos seres
humanos, aos que a vivem e a tom am no que ela se
mostra.
O livrinho de Camus contém um mostruário dos
absurdos da existência humana — sem grande acerto
na escolha nem na caracterização de cada um. O seu
apologista hispano-americano, Guillermo Lapalma,
fazendo justiça à veracidade histórica do conjunto
da obra de Camus, como expressão estética das
contradições da vida contemporânea, reconhece a
60 F ID E L I NO D E F IG U E IR E D O

obscuridade e a insuficiência doutrinai da pequena


colectânea. Lá figura o dom-juanismo que nada tem
de absurdo, pois se compõe de cínica devassidão,
hipocrisia estética enganadora, arbitrário filosofismo
de ocultação da cobardia contra as mulheres e, no
dizer dos médicos, um dispersivo fingimento de exu-
berâncias de virilidade inexistentes. O filosofismo
proveio da música de Mozart, que transformou o
tema, e da interpretação dessa música imortal por
Hofmann. Esse tema, no seu aspecto de glosa crítica,
ele o trouxera, havia uns trin ta e seis anos, de
Espanha, onde por esse tempo quase rivalizava com
o da decadência do país, pela insistência obsessiva.
Hoje, estimaria poder devolvê-lo à procedência.
No código da doutrina, o- tratado U Ê tre et le
Nêant, de Sartre, fervilham, como de costume, nos
escritos de metafísica, os paralogismos que levam à
paradoxia e às logomaquias, as petições de princípio,
os postulados gratuitos e o subjectivismo impres­
sionista. Tudo num número de páginas vinte e tantas
vezes maior que o das páginas em que Einstein lan­
çou as bases da Relatividade, que revolucionou a
física e reformou a concepção do universo. Parece
que os filósofos deveriam dar o exemplo da rectidão
severa do sentido lógico, visto que a lógica e a logís­
tica, sem matemática ou com ela, formam ainda um
capítulo da filosofia. Mas também oferece curiosi­
dade notar que nessa parte alógica e subjectiva se
contêm as afirmações mais originais de um espírito
agudo e corajoso.
Quem não procurar na filosofia as emoções da
SÍM B O LO S d M IT O S 61

poesia ou da ficção romanesca há-de por força pro­


testar contra esse juízo sobre o absurdo da vida
humana. Suprema iniqüidade contra o homem! Há
duzentos e cinqüenta mil anos surgiu na Terra hostil
o animal humano, erecto sobre as patas traseiras,
com o polegar das mãos oponível aos outros dedos,
faminto, nu, com a cabeça vazia ou apenas guarne­
cida pelo medo, rodeado de espécies inimigas, mais
fortes que ele e sujeito às influências atmosféricas
soberanas. E só por seu esforço realizou o prodígio
de sobreviver a espécies gigantescas tão poderosas
que sucumbiram ao peso da própria força do seu
aparelho de agressividade e .defesa. Durante esse
lapso de tempo yestiu-se, comeu, resistiu a hostili­
dades destruidoras, criou uma consciência ou mundo
interior, constituiu uma técnica, uma ciência, uma
arte e várias filosofias existencialistas, tudo para
solucionar, de provisório em provisório, os três pro­
blemas primordiais da sua existência — a fome, o
amor e a m orte — e contentar as três direcções car­
deais na condição dessa consciência que ele se deu:
a política ou do convívio; a religiosa ou das suas
relações com os mistérios do mundo e seus medos;
a filosófica ou da reflexiva admiração ante a gran­
deza e a beleza do que se oferecia à sua contempla­
ção: paisagens, oceanos, céus e a stro s— tudo ina­
cessível ao seu domínio. E atingiu os tempos histó­
ricos, os últimos cinco mil anos, em que já soube
escrever de s i mesmo para os pósteros. E acaba de
entrar na idade espacial, em que voa como os pás­
62 F JD E L IN O D E F IG U E IR E D O

saros não voam e canta em coro a sua alegria triun­


fal por entre os astros, vendo de longe o seu planeta.
Animal feroz e inteligente, lutou sempre entre
esses dois impulsos, o de m atar e gozar com o sofri­
mento das outras espécies e do próprio semelhante
e o de compreender, am ar e admirar. Milênios sobre
milênios de matanças cruéis, como as vinganças dos
deuses, por ele inventados para gozar imaginària-
mente o requinte da própria ferocidade. Mas também
conseguiu vitórias gloriosas da inteligência sobre
essa ferocidade, quando criou a arte, a ciência e a
altíssima tecnologia e concebeu o heroísmo dos sen­
timentos e a santidade. Não foi de sua culpa o dua­
lismo da própria índole, feroz como nenhum outro
animal e inteligente como ele só — inteligência que
faz pensar em privilégios divinos de resgate ou rea­
bilitação, concedidos por um Zeus com momentos
lúcidos entre cóleras perversas. Esse privilégio, que
o tom ou o único animal telúrico hábil para passar
da astúcia defensiva à inteligência construtora de
prodígios, inspira um humilde sentimento de gra­
tidão, que para esse lutador contra as sombras,
agora manietado e amordaçado sob um lençol de
neve, constituía a base da sua direcção religiosa.
Porque havia o pobre bípede erecto, de polegar
oponível aos outros dedos, de granjear essa prefe­
rência e não outra espécie mais forte, por exemplo
o chimpanzé ou o urso, dotados também de astuciosa
inteligência?
Chega-se a pensar no capricho de uma expe­
riência.

SÍM B O LO S & M IT O S 63

P. S. — O ano de 1924 assinalou no ambiente por­


tuguês alguns pruuidos de curiosidade pelo mito de
Sísifo: um desenho de Antônio Carneiro, uma reco-
pilação de recortes jornalísticos posta por Agostinho
de Campos sob o signo de Sísifo, O Homem, a La­
deira e o Calhãu, e um poema de João de Barras.
O artista expressa a agonia do esforço sobre-
-humano; o prosador organizou o que chama «bre-
viário de desencanto político» e o poeta fez o que já
fizera aos mitos de Anteu e D. Juan Tenorio —
desfigurá-los ao calor da sua poesia soalhenta e
ovante. O seu Sísifo é apenas um grande criminoso,
justamente castigado, que sob a exortação do Amor
consegue expiar a sua pena e é por fim redimido.
Este Sísifo será homônimo do concebido pelos Hele­
nos, mas só homônimo.
Nada têm estes pruridos com o existencialismo
parisiense, que mais de vinte anos depois explodiria
em polêmicas e duelos.
rv
Uma experiência de Zeus

M. — 6
Os deuses eram iníquos. E não esqueciam as suas
iniquidades, ou para vigiar a rigorosa expiação dos
supliciaáos ou para as alterar com agravamentos e
variantes que proporcionassem gozos novos ao seu
incontestável sadismo. Os desgraçados que houves-
sem mostrado ousadias insólitas e espírito inventivo
não saíam mais da s-ua memória. Zeus perguntava
amiúde à sua cruel imaginação que fruto poderia co­
lher das advertências dos audaciosos. Bem analisa­
das, as sentenças que fulminou contra os títanes
mostraram um sábio aproveitamente das aptidões
dos vencidos para ao mesmo tempo os fazer sofrer
e utilizar os seus sofrimentos. A audácia sem par
de Prometeu nunca mais foi esquecida. A par dessa
audácia havia no roubador do fogo celeste, fonte
de toda a vida, uma preocupação antropófila, que
dava que pensar a Zeus — omnipotente m as não
omnisciente. Prometeu não se contentara de entre­
gar aos homens os poderes mágicos do fogo, da sua
luz e do seu calor; ensinara-lhes o uso desse fogo na
produção de muitas coisas úteis à sua miséria de­
samparada. E isso intrigava muito a Zeus, quando
os cuidados do seu reino olímpico e as suas travessu­
ras eróticas lhe deixavam algum lazer meditativo.
68 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

Um dia decidiu-se. Chamou Atena, a sua filha


fiel, filha sem mãe, porque fora parida por ele.
«Coisa original!» — pensou—, «uma filha sem mãe!
No mundo mortal costuma ver-se muito o contrário:
filhos sem pai!»
Depois lembrou-se da terrível dor de cabeça, que
o fizera g ritar e recorrer a uma operação cesariana
brutal. E o cirurgião veio, Hefesto, e com uma pan­
cada certeira do seu camartelo das bigornas fez sal­
tar-lhe do crânio uma pimpolha gigantesca e sabida,
já de elmo invulnerável e lança pronta. Desta vez,
Zeus dizia-lhe:
— Quero fazer uma experiência para saber aonde
podem conduzir homens miseráveis essas invenções
do tredo Prometeu.
E teve um movimento de indignada crispação ao
recordar o logro fatal de que fora vítima.
— Ajuda-os com a tua sabedoria a tira r todas
as conseqüências da prestidigitação- que lhes ensinou
esse malvado que eu agrilhoei ao> Cáucaso.
Dizia assim porque o pai dos deuses, apesaç de fa­
lar com mestria a língua de Homero, não conhecia a
acepção moderna da palavra técnica. E acrescentou:
— Dá-lhes uma boa lançada que nunca mais
esqueçam e os faça correr pelos caminhos dos mun­
dos e dos tempos.
E Palas ou Atena obedeceu prontamente e com
alvoroçado júbilo. E ra a primeira vez que punha à
prova o seu mágico poder. Embraçando o escudo,
ajeitando o capacete e sopesando a lança bem afiada
e ervada de venenoso saber, desceu do Olimpo, à
SÍM B O L O S <& M IT O S 69

procura de uma vítima. E ao primeiro homem que


encontrou, desferiu-lhe um bote formidável — coisa
parecida pela força, que não mais se gasta, apesar
dos obstáculos e das incessantes mudanças de direc­
ção, ao pontapé de saída de um velho footbáller em
desafio sensacional. O homem, atordoado por mo­
mentos, logo se sentiu outro — iluminado pela inte­
ligência e pela vontade de perscrutar os segredos da
natureza, até então reservados aos deuses. E comu­
nicou esses novos dons aos outros homens. Assim
desceram dos Céus à Terra as ciências, as artes e a
prestidigitação, como dizia Zeus do poder de trans­
form ar as coisas brutas em coisas úteis. Atento ao
lavrar do saber, por indústria do espírito prometeico,
Zeus alarmou-se com o rumo da sua experiência
e resolveu procurar um remédio preventivo de fu ­
turos perigos, não fosse aparecer no Olimpo alguma
corte de prestidigitadores prometeicos a intim ar á
ele e aos deuses seus aliados ordem de despejo.
Tinha razão. Ele devia o poder a uma conjura, se­
guida por uma guerra prolongada com os títanes,
contra seu pai, Crono, por fim vencido e encerrado
no Tártaro. Talvez em sua perspicácia política adi­
vinhasse um futuro prolóquio, muito generalizado
entre os m ortais: quem com ferro mata, com ferro
morre.
E mandou cham ar Minos à sua presença. Minos
era uma espécie de presidente da junta de juizes do
Hades, que aplicava as penas aos mortos, segundo
a sua vida terrena. Tinha reputação de justo na dis-
W tribuição das almas, pelo T ártaro e pelo Eliseu.
70 F ID E L IN O D E FIGTJEIREDO

Veio Minos, exalando um abominável cheiro de


enxofre. Zeus tapou o nariz e exclamou numa careta
de repulsa:
— Que raio de fedor trazes contigo!
— Ê mesmo o cheiro dos raiozinhos que Vossa
Omnipotência há-de brandir. Hefesto os forja na sua
oficina com perícia, mas têm de passar pelo Hades
para que recebam uma têmperazinha que os torna
mais eficientes. Os homens já sabem muito de ma­
gia e prestidigitáção. Podem achar alguma defesa
contra as ordens de Vossa Omnipotência.
— Pois isso mesmo está a preocupar-me. Quero
que os vigies e, quando achares que as malas-artes
do tal Prometeu se vão tornando perigosas para o
meu olímpico poder, que os atires uns contra os ou­
tros, para se destruírem com essas magias do fogo,
que lhes ensinou o maldito Prometeu. A propósito:
que Hefesto engrosse os grilhões desse inimigo fi-
gadal.
— O h! Omnipotente Zeus! O desgraçado só tem
fígado para os abutres. Dizei antes: ininfigo cere­
bral. E lembrai-vos que a vossa vontade é incontras-
tável pelas artim anhas dos mortais.
Se Prometeu ensinara aos homens as artes, as
ciências e as técnicas da paz, Minos ensinou-lhes as
artes, as manhas e os ódios da guerra. E assim nas­
ceu uma espécie nova — o homem dúplice, a um
tempo animal feroz e animal inteligentíssimo e habi-
líssimo, mestre na arte do mal e na arte do bem,
porque nele se digladiavam o espírito de Prometeu
a lavrar e o de Zeus armado com novos raios, for­
SÍM B O L O S <S> M IT O S 71

jados por Hefesto na sua oficina e temperados no


Hades.
E os pobres mortais empreenderam a sua carreira
histórica de milênios, aos bordos, entre duas embria-
guezes, cada um a combater consigo mesmo e com
os outros, cada povo dividido em grupos lutadores
e todos os povos em guerra uns contra os outros.
Homo duplex, ferox etsi sapiens — nestas coisas
o latim não fica mal, à falta do grego pré-homérico,
idioma em que Zeus ordenou a Minos que vigiasse
e contrariasse a irradiação do espírito de Prometeu.
A Minos, juiz supremo do Hades, porque Zeus pres­
cindira de um Satanás e guardara para si todas as
artes do malefício. Um precedente da moderna con­
centração dos poderes. Nenhum diabo competidor.

# • m

Concluída a experiência, Zeus comprouve-se em


m anter essa dualidade no carácter dos m ortais: a
sapiência prometeica alimentava a ferocidade, abrin­
do-lhe novos caminhos e descobrindo-lhe sempre
processos mais eficientes para fazer sofrer e des­
tru ir a obra da inteligência; ao contrário, a maldade
proporcionava estímulos poderosos para criações
incessantes de saber, de beleza e defensão contra o
mesmo mal. Uma luta permanente, cada adversário
empenhando todas as suas forças, mas não conse­
guindo extinguir o outro. E se o extinguisse, extin-
guir-se-ia a si mesmo, porque da luta procedia a sua
própria razão de existir.
72 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

Parecerá isto absurdo, como proclamam os exis­


tencialistas franceses, angustiados e logo nauseados,
a dessolidarizar-se do mundo, que recriam subjec­
tivamente, escolhendo os seus caminhos num caos
de destroços?
Absurdo quer dizer: fora da lógica da determina­
ção, e por isso inexistente ou inconcebível. Zeus teria
assim, com seus poderes incontrastáveis, empreen­
dido uma experiência que levaria ao absurdo. Mas
todos os juízos de valor, mesmo os impregnados de
carácter lógico, se baseiam numa comparação entre
coisas da mesma espécie ou estados diversos da
mesma coisa. Não se pode comparar a vida dos mor­
tais com outra vida. O homem não viveu outra vida,
nem viverá outra; nada sabe de si, de quando jazia
«do possível na névoa duvidosa», e nada saberá
quando, extinto, voltar a mergulhar na gleba mãe
e madrasta. Mas sabe muito das formas que essa
única vida sua revestiu durante os milênios da tal
marcha a ziguezaguear entre Prometeu e Zeus. E a
comparação mostra-lhe tanto os horrores malditos
da sua ferocidade como os triunfos deslumbradores
da sua inteligência, e que a vida actual parece incom­
paravelmente mais alta, mais digna, mais bela em
tudo e melhor de se viver que nessas fases preté­
ritas. Zeus premedita a destruição do gênero hu­
mano, talvez mesmo o escaqueiramento do planeta,
mas Prometeu insuflou no homem dúplice as mais
altas ideias e os mais generosos sentimentos, outrora
inconcebíveis: a paz universal, a solidariedade hu­
mana, o desarmamento físico e moral, e a equitativa
SÍM B O LO S & M IT O S 73

distribuição dos produtos da terra e do trabalho.


Ideias e sentimentos que pairam na atmosfera e en­
chem os corações.
Parecerá isto absurdo? Os factos, quando a sua
determinação está bem estabelecida e a sua evidên­
cia se afirma de maneira incontroversa, não podem
parecer absurdos, parecem apenas factos reais e ine­
vitáveis. Não havia outra maneira de se processar
a história humana. Ao fim da sua longa experiência,
Zeus tinha razões para se dar por satisfeito; do seu
trono olímpico assistira a uma parada edificante de
monstruosidades e sofrimentos, mas também as ti­
nha para se achar logrado, porque o homem não se
deixara destruir e fizera dos tormentos ideados por
Minos, seu representante, uma seqüência de cadinhos
purificadores e tom ara-se mais digno e por vezes
mais poderoso que* o próprio Zeus.
Não rezam as crônicas do Olimpo que Zeus hou­
vesse concebido jamais a santidade e a sabedoria
pura. E hoje o homem possuía, a par de memórias
de guerras destruidoras, uma galeria gloriosa e in­
findável de santos e sábios, e já voava em direcção
a outros astros, que Zeus não sonhara. Prometeu
soubera desforrar-se do suplício do Cáucaso e dos
seus abutres.
í*

O segundo grau da reacção existencialista pe­


rante a vida contemporânea, por via do seu carácter
ocasional e regional — a angústia — >tinha validade
permanente. Os primeiros homens que observaram
74 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

o panorama externo sentiram admiração e um im­


pulso especulativo que haveria de produzir as vá­
rias ciências — todas que se continham em gérmen
no amor da sabedoria ou filosofia em sua primeva
espontaneidade. Mas quando concentraram a aten­
ção no seu mundo interior, sentiram angústia, a qual
se lhes tornou companheira inseparável, pelo que
sofriam e viam sofrer. Essa inflexão do pensamento,
do exterior para o interior, veio originar os existen-
cialismos, de vário sinal, estóicos, cépticos, epicúreos,
e os Jeremias e Jobs, mais ou menos profundos que
Eclesiastes, com grande orgia de criação de pala­
vras para caracterizações subtis, que farão as delí­
cias dos pedantes modernos. A angústia deu o tem­
pero obrigado de todas as filosofias de algum cunho
realista. Só prescindem desse tempero amargo as
filosofias cândidas ou panglóssicas, generalizações
de casos pessoais, como na música de Mendelssohn.
Pode-se dizer que, tanto quanto à arte, a angústia
proporciona grande parte da inspiração filosófica:
especular em defesa dos apertos de coração que a
realidade ambiente e interna provocou; opor à sobe­
rania tirana do mundo exterior a reacção do pensa­
mento interpretativo e julgador. Vingança da po­
breza impotente, que recorda a invenção de anedotas
contra os déspotas pelas suas vítimas a ferros.
Mas essa angústia oferece apenas uma ponte de
passagem para a alta reflexão, no termo da qual
se abrem vários caminhos. Muita gente se some, ao
transpô-los, na floresta densa de um credo, renun­
ciando ao seu individualismo pensante e compro­
SÍM B O L O S <& M ITO S 75

metendo gravemente uma das direcções mais nobres


da inteligência humana, a religiosa. Os existencia­
listas, porém, fazem coisa pior: cospem, nauseiam-
-se, em repulsas e vômitos, suprimem toda a tabela
de valores estabelecidos, por vezes a invertem, liber­
tam-se de todas as coacções éticas e proclamam o
seu direito de escolher o próprio caminho. Isto num
mundo hiperordenado e determinado em que as li­
berdades permitidas aos seres vivos não ultrapassam
as das aves, a saltitar de ramada em ram ada — su­
pondo que as aves possam escolher as ramadas em
que poisam e gorjeiam. Náusea, em vez de gratidão.
Nascer e experimentar uma vida efêmera, mesmo
com sua condição dúplice, feroz e inteligente, parece
destino mais nobre que vir ao mundo, como tigre,
chacal, barata ou percevejo. Faz mesmo pensar num
privilégio para a tal experiência mítica de Zeus.
Gratidão, endereçada a que alvo? Ao próprio Zeus
experimentador e cruel— serão gratos os que ne­
cessitam de se subalternizar a poderes pessoais ou
antropomorfoseados, análogos aos que temem na
Terra. Porém, os que amam esforçar-se por se libe­
ra r de mitos hão-de endereçar a sua gratidão ao
mesmo poder a que os existencialistas de Paris diri­
gem o seu cuspo e os seus vômitos — à evidente or­
dem universal, a que estão sujeitos todos os homens,
todos os povos, todas as civilizações, todos os deuses:
nascer, passar a vida em obediência à sua condição,
e morrer,, sem apelação nem renascimento.
As intuições mais profundas do budismo teste-
munham-se com a sua diligência por quebrar a ca­
76 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

deia infinita dos renascimentos e procurar por von­


tade antecipar a não-existência nirvânica. Identifi­
cam dor e existência. Se Buda tivesse podido ler
Descartes e arranhasse o seu latim, traduziria o
silogismo fundamental cogito ergo sum por doleo
ergo sum . A premissa maior ganharia extensão: o
sofrimento como condição essencial da existência.
Mas Buda tingia a vida com cores sombrias de pessi­
mismo. Confinado num ambiente de limitadas expe­
riências, opunha ao hemisfério feroz da consciência
a cessação da vida em elevação moral, não as longas
perspectivas intelectuais que depois se desdobraram
ante essa mesquinha vida. O seu ideal reduzia-se à
quietude, ao contrário da insatisfeita e agressiva
iniciativa e da fome de imortalidade que veio a tor­
nar-se o âmago da consciência ocidental. O budismo
aniquila uma força promotora tal como a vontade
de viver, força intrínseca e geradora dos três pro­
blemas primordiais do homem — o da fome, o do
amor e o da morte.
Vontade de viver, luta pela existência, impulso
vital, instinto de conservação — qualquer nome
serve, desde que se reconheça o imperativo elemen­
ta r que domina e comanda a presença humana sobre
a Terra e que gera toda a sua história biológica e
social, com seu bem ou sua inteligência prometeica,
e sua ferocidade ou sua essência olímpica. /
Um dia, o homem que jazia agora sob o lençolT
de neve ignorada teve de fazer arrancar algumas
árvores que lhe ensombravam e humedeciam a ca­
sota, agravando-lhe as periódicas afecções pulmo-'
SÍM B O LO S <& M IT O S 77

nares. Doeu-lhe o arboricídio premeditada, como um


delito só perdoável pela necessidade da legítima
defesa. E mais lhe doeria na Primavera imediata ver
suprimir os rebentos que das raízes mutiladas bro­
tavam, trespassando o húmus calcado, a procurar
a liberdade e o sol. E ra como um aborto já em avan­
çada fase de gestação, verdadeiro crime contra a
lei fundamental da vida — a vontade de subsistir.
E como as afirmações dessa vontade encontram obs­
táculos na mesma vontade de outras espécies e den­
tro da ambiência da própria espécie, determinaram
lutas implacáveis entre direitos iguais que se não
reconheciam mutuamente — o direito de viver e o
direito de m atar.
O próprio Zeus acabou por se conformar a esta
verdade, que ultrapassava o seu poder discricioná­
rio. Conformar-se perante uma realidade invencível,
que lhe entrava pelos olhos, por mais que ele os
fechasse. Tomou a m andar chamar Hefesto, o seu
técnico infernal. E este veio, enfiado porque adivi­
nhava o motivo do chamamento urgente — saber de
como cumprira a ordem de reforçar os grilhões que
prendiam Prometeu, de maneira a to m ar impossível
toda a veleidade de fuga ou a agravar-lhe inutil­
mente o suplício. Assim fariam diariamente, ao
lusco-fusco, os carcereiros de Dreyfus na ilha do
Diabo.
Entrou Hefesto com seu a r «cariacontecido» —
à maneira espanhola. E Zeus, com enjoo, disfarçou:
— Lá vens tu com teu fedor.
78 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

— Esses raiozinhos fedorentos são cada vez mais


precisos à defesa da majestade olímpica de Vossa
Omnipotência. Os mortais andam cada vez mais
atrevidos...
Aí Zeus assustou-se um pouco. E recordou com
desagradável sabor de sangue as titânicas lutas que
lhe custara o acesso ao sumo poder e os perigos que
rodeavam constantemente o seu exercício. O avô
Urano fora derrubado, castrado e encerrado no Tár­
taro por seu pai, Crono; e a este destronara-o ele
Zeus, aliado com os irmãos. Instruído sobre o carác­
ter das relações entre pais e filhos e acerca da força
dos laços de sangue, suprimira sua mulher, Métis,
por temer que lhe desse um filho mais* forte que ele
e digno continuador da sua linhagem de traição,
resignando-se por isso a perfazer a gestação de sua
filha Atena no próprio crânio. E perguntou m atrei­
ramente:
— Que há?
E Hefesto, a gaguejar, contou-lhe que fora com
os seus ajudantes aos cumes do Cáucaso para colo­
car os grilhões reforçados que mais e mais jungis­
sem o tredo Prometeu às rochas, mas que não achara
mais que as antigas cadeias quebradas e dispersas
com desprezo. Um pastor que andava por aqueles
sítios ermos narrou-lhe cheio de medo que vira che­
gar alguns homens a voar com asas parecidas às de
Ícaro. Vinham de muito alto, perto do Sol, mos­
trando não temer que lhes acontecesse o que perdera
Ícaro: derreterem-se-lhes as asas com o calor. Pelo
SÍM B O LO S <& M IT O S 79

contrário, o Sol pestanejou assustado e a seguir arre­


galou os olhos para ver bem aquele desplante. Os ho­
mens, só quatro, saíram de entre as asas, como
Fáeton poderia descer do seu carro — com toda a
facilidade e segurança. Aproximaram-se do filho de
Jápeto, que também não lhes teve medo, como se
já os esperasse; quebraram-lhe as correntes, que
caíram para aí com grande estrondo, espantando os
abutres, a bater as asas em fuga espavorida. Pro­
meteu então sentou-se, apertando a barriga com alí­
vio, e soltou um brado fundo e longo, que reboou
por montes e vales. E todos desapareceram logo num
clarão deslumbrador. Por momentos o Sol apagara-
-se, como se apagam as estrelas mais brilhantes
quando ele se levanta.
Aqui o pastor e Hefesto prefeririam lembrar o
ofuscamento produzido pelo cogumelo das explosões
atômicas, se ambos houvessem tido a ventura de
presenciar esse espectáculo moderno.
Hefesto acrescentou:
— Quer Vossa Omnipotência que traga o pastor
atarantado?
— P ara quê? Para ju n tar o seu fedor ao teu? —
replicou Zeus de mau humor, porque tinha uma
pituitária muito sensível. Os seus aposentos no
Olimpo rescendiam aos mais requintados e voluptuo­
sos perfumes de flores capitosas. As deusas e as
mulheres do mundo mortal, que amou de boas ma­
neiras ou por violentos raptos, bem lhe conheciam
essa arm a de sedução — artifício mágico, corres­
80 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

pondente à guitarra de D. João, nos séculos bar­


rocos, aos versos do romantismo e ao automóvel na
era técnica.
Surpreende que os autores existencialistas não se
houvessem fixado ainda nos grandes recursos do
tema de Zeus, como antepassado glorioso de todos
os Tenórios do mundo. Além da sua legítima esposa,
há notícia de uma dúzia de amadas, entre deusas e
mortais. Mas qual seria entre os deuses o critério
de legitimidade matrimonial? Coisas de grande
atracção para um best-seller, que rivalizaria com as
Memórias de Casanova. Daria suficiente m atéria
para um catálogo, semelhante ao que Leporello lê
na ópera de Mozart, Don Giovanni. Só menos farto.
E st modus in deorum rebus.
—-P ara quê? — repetiu, a ver se Hefesto dizia
alguma coisa mais que o livrasse daquele embaraço
em que a espantosa notícia o lançara. Mas Hefesto,
que esperava uma explosão de cólera mais temível
que os raiozinhos que ele mandava tem perar ao
Hades para os reforçar na sua eficiência, embara­
çado se achava também. Quem tal havia de dizer
do pai dos deuses? Parecia não se surpreender, até
mesmo se resignar.
Zeus pensava. E a pensar o deixou Hefesto,
quando ele lhe acenou que se fosse. Não cabia em si
de contente, porque tem era que Zeus o mandasse
agrilhoar com as cadeias que por tempos incontá­
veis imobilizaram Prometeu. Não sabia o pobre fer­
reiro dos deuses que o ódio dos deuses constituía, a
par de documento da sua maldade, a maior homena­
SÍM B O LO S d M IT O S 81

gem que os seus corações podiam prestar. E conten­


tou-se prontamente do desprezo também olímpico.
Zeus deixou-se pensar. Por quantos dias, anos,
séculos ou milênios? Quem sabe que noção de tempo
ele e os numes seus susefanos possuíam? Se o
tempo era para o rei dos deuses um perpétuo pre­
sente, não existia; se o conglomeravam einsteinia-
namente ao espaço e ao movimento, seria variável
e poderia até suprim ir toda a massa existente,
dissolvendo-a em energia inútil, a gastar-se no vácuo,
já não em tédio, angústia e náusea, como afirmam
os existencialistas de Paris. Quem o sabe? Sentir o
tempo, sofrer o tempo, suas procelas e adversidades,
contá-lo bem contadinho em sua lentidão am arga ou
em sua vertigem fugidia nas marés de rosas, lenta­
mente como para os pobres condenados ou fulminan­
temente, quais os raiozinhos de Hef esto, bem tempera­
dos no Hades—era privilégio reservado aos mortais.
Zeus pensou e resolveu conformar-se. A surpresa
da fuga de Prometeu excedia a sua divina compreen­
são. Haveria no mundo outro poder superior ao seu,
melhor acolitado e armado? E qual? Onde residiria?
Como se exerceria? Disporia de raiozinhos mais efi­
cientes que os de Hef esto?
Súbito acudiu-lhe à memória aquela magia da
prestidigitação, ensinada por esse malvado Prome­
teu aos m ortais que transform ava as coisas brutas
em coisas úteis e de tudo espremia forças incalculá­
veis, mais poderosas que as de Neptuno ou Éolo
e dos títanes, aliados de seu pai, Crono. E resignou-se
com um sorriso pérfido e carregado de maus agou-

S. M. — 0
82 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

ros. Fazia o que fazem os governos modernos ante


uma revolução que não podem dominar: reconhe­
cê-la, mas com a intenção reservada de lhe fazer a
vida negra na infância inexperiente. Agora à mente
dos governantes acodem os expedientes da balca-
nização e da infiltração neocolonialista. A mente de
Zeus, mais solerte ou mais experimentada no lidar
com a natureza dos mortais e no exercício do poder
discricionário, viu num relâmpago- todo o panorama
da existência dos homens — embriagados pelos po­
deres mágicos de Prometeu e envenenados pelas fun­
das lançadas que lhes vibrara a mão certeira de
Atena. Futurou toda a carreira trágica e genial, des­
prezível e gloriosa, do homem dúplice — animal ferox
etsi sapiens.

(*

Assim, só com os recursos da sua botica e se­


gundo fórmula por ele achada, a que não faltaria
o excipiente inerte, Zeus criara um novo ser mortal —
o homem dúplice, feroz, ainda que inteligente.
E ficou-se a observá-lo pelos milênios abaixo: mise­
rável, dramaticamente miserável, e glorioso, homè-
ricamente glorioso. E esse homem dúplice começou
a compor a sua sinfonia fantástica de idílios e pas­
torais, crimes e expiações.
— Forte originalidade essa do omnipotente pai
dos deuses! — ironizarão alguns, lembrados da pre­
sença da condição do bem e da condição do mal em
todas as religiões.
SÍM B O LO S <& M ITO S 83

— Forte originalidade essa das religiões em to­


m ar conhecimento de uma realidade elementar da
existência de todos os seres vivos da Terra! Coisa
tão certa e sabida que na língua portuguesa há o
apelido Duplex> usado por quem não sabe de Zeus,
nem de mitologias antigas ou modernas. Bastava
sentir as hostilidades da atmosfera com suas inver-
nias impiedosas e suas carícias primaverais. A origi­
nalidade inventiva de Zeus consistiu em se antecipar
a todas as religiões, pois todas elas surgiram muito
após o seu reinado olímpico, tiveram mesmo o pro­
pósito de o destronar ou de lhe fazer o que ele
fizera a seu pai, Crono, na alvorada dos tempos. Não
seria original criar um tipo vivo correspondente a
essa duplicidade da natureza contraditória e indife­
rente aos interesses e egoísmos' vitais de um ser
ultra-sensível que tudo vê pelo prisma da sua con­
servação e defesa? A natureza tolera a presença do
homem porque não toma conhecimento dela. Zeus
transpôs para o mundo interior do homem a dupli­
cidade bonançosa ou tempestuosa do ambiente, mas
sem lhe alterar a conformação física. Deu-lhe uma
consciência que funciona como um espelho. Se por
sua vez essa conformação houvesse de se adaptar
formalmente ao seu conteúdo, Zeus deveria criar
também um novo monstro, metade homem, metade
bicho, à maneira dos centauros, das sereias e dos
licantropos ou, em bom português, dos lobisomens.
Não lhe faltava poder nem imaginação para isso,
como o prova a imensa galeria de monstros da sua
mitologia, desde o dragão aos gigantes de cem mãos.
84 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

Na guerra contra o pai, tivera-os como inimigos.


Não seria aconselhável aumentar a galeria de pre-
suntivos inimigos,. para mais tão lascivamente fe­
cundos. Talvez o seu desígnio fosse ju n tar mais uma
perfídia ao homem dúplice, que aliaria a beleza à
ferocidade oculta. E para isso lhe mantivera a con­
figuração formosa e digna, peito aberto, cabeça ao
alto, braços e mãos livres. E pensando com um
sorriso gozador:
— Quem poderá adivinhar que num corpo tão
belo como os de Apoio ou Vénus se contenha tão
constante e calculosa traição? Com medo uns dos
outros, dos meus raios e das surpresas dos Céus, os
homens reconhecerão um poder superior que os pro­
teja. E nao me faltará um culto de adulação para
me aplacar.
Acabara de descobrir que os homens, suas víti­
mas, poderiam tom ar-se seus aliados preciosos. Bem
sabia que na lealdade e dedicação dos numes do
Olimpo não devia confiar muito. Zeus tinha grande
espírito político e na hora do perigo não escrupuli-
zava na escolha dos aliados.
Como era um superdeus, não só se antecipou às
religiões, logo as ultrapassou para sempre. Estas,
ao reconhecer a fatal duplicidade da natureza, hos­
til ou propícia, criaram novas divindades que asse­
diavam o desgraçado bípede implume, cada uma a
querer dominá-lo e reduzi-lo à sua servidão, para o
conduzir ao seu paraíso ou ao seu inferno. Faziam
do medo e do suborno as suas armas. Zeus, mais
hábil psicólogo, submergia na vida interior do ho­
SÍM B O LO S & M ITO S 85

mem essa duplicidade. E ra dentro dele que se tra ­


vava a luta interminável entre os dois adversários
inextinguíveis, sob a unidade sedutora de um corpo
belo e sereno, como os de Apoio ou Vénus, não à
vista de todos, como nos autos de Gil Vicente ou
Lope de Vega, muito menos poetas que Zeus. O pai
dos deuses, como poeta castigador, superava mesmo
a Dante.
E o homo-ãuplex partiu para a sua caminhada
histórica, para a sua prodigiosa aventura, em que
logo se adivinha o desígnio de uma experiência di­
vina. Partiu levando no peito o seu pequeno Hades
e o seu pequeno Eliseu, como os soldados levam na
mochila toda a sua bagagem ou todo o seu destino.
Algumas vezes se rompia o equilíbrio interno
desses corpos apolíneos e venustos — equilíbrio feito
de alternativas compensadoras entre contrários. A
realidade histórica escapava-se à lei de Zeus, como
no mundo da fenomenalidade natural surge o per­
calço da incerteza. E Zeus por certo não adivinhava
Heisenberg. O equilíbrio quebrado também destruía
a beleza enganadora que Zeus quisera conservar,
com predomínio da metade vencedora, como se num
centauro o monstro acabasse de se perfigurar todo
em cavalo ou todo em homem.
Isto, não o tendo podido prever, também Zeus
não pudera expressá-lo nalgum mito suplementar
de sua perversa imaginação. Mas expressavam-no
mitos de origem literária de autores que muito
fundo penetraram na sondagem da própria cons­
ciência, por exemplo o mito do retrato, de ôscar
F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

Wilde, e o mito do lobisomem ou do lobo das es­


tepes, de Herman Hesse. Num caso o corpo manti-
nha-se juvenil e belo, enquanto o retrato punha à
vista o apodrecer do mundo interior sob larvas in­
fectas; noutro caso o corpo alquebrava-se e destro­
çava-se, enquanto a consciência se. mantinha em per­
pétua beleza e frescura. Mas estes eram casos ex­
tremos de triunfo definitivo de um dos hemisférios
da consciência sobre o outro. Também os havia tem­
porários, ainda que freqüentes. Esses exprimia-os
o lobo oculto no fundo de cada consciência, o lobo
que irrompia de dentes e garras aguçadas e que só
regressava ao seu covil depois de satisfazer a sua
voracidade sanguinolenta.
Quem não se lembrará, por sua observação di­
recta e por- suas leituras históricas, de numerosos
exemple»/ dos casos perfigurados nos dois mitos
suplementares ao grande mito da experiência di­
vina? Uma experiência que se consolidou em per­
pétua realidade.
Neste século presente a evidência da perpétua
validade do mito do homem-fera sábia chegou ao
seu auge. Uma evidência que ofusca a passividade
do mito de Sísifo, perfilhado pelos existencialistas
franceses. A existência humana encerra mais que
absurdo e angústia, extravasa tragédia.
Neste século presente bem se demonstrou esse
conteúdo trágico, sobretudo na segunda grande
guerra. Jam ais o homem subiu tanto pela inteligên­
cia: construiu uma física revolucionária, prolongou
a duração da sua tragédia e iniciou a conquista do
SÍM B O L O S <0 M IT O S 87

espaço cósmico. Mas também jamais o homem des­


ceu tanto em perversidade criminal. Um fastígio
de glória suprema e um paroxismo de aviltamento
abissal. O ziguezague entre o bem e o mal ia te r
inevitàvelmente ao mal, porque extraía novos re­
cursos inventivos das conquistas da inteligência,
aue só por um momento eram benéficas ou inócuas.
Losro o esüírito de Zeus os roubava a Prometeu e
lhes invertia a direcção. E isto de modo tão infali­
velmente constante que Zeus, notando a convergên­
cia de efeitos entre as duas forças contrárias que se
difirladiavam dentro do homem, teve este pensamento
dantesco:
— Afinal, Prometeu e a minha omnipotência con­
sumimos as nossas melhores forças numa luta esté­
ril, porque a vítim a permanece a mesma e sempre
atingida pelos mesmos golpes. E se nós nos rendêsse­
mos à realidade dessa convergência dos dois adver­
sários e nos puséssemos de acordo? Aniquilaríamos
o homem. Prometeu não deixaria também de ser ven­
cido pelo desaparecimento do campo de batalha co­
migo. Ficaria mais neutralizado em suas mágicas
prestidigitações que no alto do Cáucaso, com os gri­
lhões e os abutres.
E recorrendo à eloqüência enganosa de Saturno,
quando invocava a força incontrastável dos destinos,
conseguiu da candura do representante maior do es­
pírito prometeico sobre a Terra uma assinatura que
tom ou possível o nascimento da indústria das bom­
bas atômicas. A ssinatura que foi um símbolo da
força iniludível do mal. Também as intenções de
88 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

Fausto, ao fraquejar perante o pacto proposto por


Mefistófeles, eram muito outras das que depois de­
monstrou no uso que fez do seu rejuvenescimento.
Ai de quem confia nos homens ou nos deuses!
Os mitos compõem-se de símbolos e desintegram-
-se de novo em símbolos, ainda os que pareciam
mais obstinadamente duradouros e monolitiçamente
inteiriços.
E a esta situação chegou o homem dúplex: se o
acordo se consolida e executa, a sua presença desa­
parecerá da Terra, com todo o bem e todo o mal da
sua condição de animal feroz e inteligente. Zeus
terá vencido Prometeu de uma vez, o heróico defen­
sor do homem. E Prometeu, em liberdade ociosa,
errará pelos ermos do mundo, a curtir os seus re­
morsos e só repetindo um vulgaríssimo prolóquio
de todas as línguas:— Por bem fazer, m al haver!
Terá sido este o conteúdo, bem dramático em sua
vulgaridade, das palavras derradeiras do génio dos
gênios, murmuradas sibilinamente na língua do
P r. Fausto?
Vertigem e perplexidade
Liberando-se de símbolos e mitos, de alegorias e
facécias, e furando as nuvens, o pobre eremita pen-
sabundo, neste ponto da sua escalada, descortinou
subitamente um panorama infindo. Apesar da lim-
pidez do céu, mal o abrangia com o curto alcance
dos seus olhos. Panorama infindo pela duração nele
condensada, mais que pelas dimensões territoriais.
Toda a carreira histórica do homem a estadear a
sua miséria e os impulsos de crueldade e inteligên­
cia, a que o obrigaram essa miséria e a vontade im­
perativa de persistir no ambiente adverso. Toda a
luta, toda a sangueira, toda a técnica expeditiva,
toda a arte, toda a ciência, toda a astúcia, toda a
indiferença moral. Ali, em planos sucessivos, numa
acumulação heteróclita, se lhe ostentavam as notí­
cias de velhos estudos e leituras, as observações e
reflexões, as experiências. Sentiu uma perplexidade
aflitiva, verdadeira angústia de pobre a quem de
sopetão atirassem uma riqueza incalculável, que ele
tivesse de adm inistrar com responsabilidade e ina­
bilidade plenas. Parecia-lhe também vertigem de
altura, que os Hispano-Americanos chamam puna,
a doença súbita que desintegra a consciência e mi-
92 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

neraliza o carácter. Keyserling a descreveu com fla­


grância nas Meditações Sul-Americanas. O pensa­
mento sintético encerra sentido de ascensão, signi­
fica busca de altura: não admira que produza tam ­
bém a sua puna estonteante, com embriaguez de
oxigênio e seu terro r peculiar. Ele o sentiu funda­
mente. Que fazer com todo esse m aterial que im­
prudentemente procurara, só para se defender da
obsessão perseguidora de reminiscências amargas?
Lembrava-lhe o embaraço de um historiador a cuja
porta levassem todo o material documental de algum
opulento arquivo, intimando-o: «Aqui tem. Organize
isto numa história que sirva a todos com utilidade.
Isto, assim desorganizado e confuso, não passa de
lixo e de fezes da história.»
Mas por onde começar? Como descobrir os nexos
lógicos ou as ligações causais entre todos esses
disiecta membra? Como hierarquizá-los funcional­
mente e valorativamente? Como defender-se dos pre­
conceitos pessoais? Até n a mais rigorosa pesquisa
laboratorial é inevitável a intrusão de elementos pes­
soais do pesquisador ou da geral condição humana,
com suas limitações sensoriais. N a sua angústia
não havia só a tontura de altitude ou da síntese;
havia o sentimento doloroso da crise da presença
da espécie humana sobre a Terra. Preparava-se es-
tòlidamente a destruição dela e a inutilização de todo
aquele patrimônio, estadeado à sua vista, na infinda
planície que se lhe oferecera ao fim da sua escalada.
SÍM B O LO S d M IT O S 98

Um homem pode cair em estado tal de desespero que


aniquile o impulso fundamental de viver. Ê o caso
dos suicidas — seres já desenraizados pela privação
da sua maior força. Mas a perspectiva da destruição
da sua espécie parecia-lhe coisa que ultrapassava
as forças humanas. Reforçava a actualidade dò
absurdo sisifista, porque essa mesma demonstração
do absurdo, qualquer que fosse a sua duração, cons­
tituía outro absurdo maior. Não sentia envergadura
para voos novos de evasão. Pensou, repensou, re­
volveu algumas ideias e emoções, remanchou e re-
manchou com dolorosa impotência e concluiu por
fechar as asas da imaginação para se enrodilhar
todo em volta da própria dor — como o touro ferido,
já com a espada do matador a tremelicar-lhe na nuca,
dá a volta à arena para escolher poiso onde acabar.
A m etáfora também oferece refúgio aos grandes
angustiados que chegam às fronteiras da compreen­
são e da resistência à dor e da expressão dessa dor.
Evocou parentescos e solidariedades. Lembrou-lhe
um glorioso parente nessa perplexidade insolúvel:
Schubert a repetir a frase angustiada do fim do se­
gundo andamento da sua sinfonia oitava, à procura
de algum caminho de libertação e sem o achar, aca­
bando por desistir e deixar para sempre incompleta
e sem desfecho aquela concentração de am argura
letal.
A vastidão do panorama, a altura do miradouro,
a acumulação de tão maravilhosos destroços e de
tão revoltantes ignomínias aterraram-no. E desistiu
94 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

pensando: antes rir à custa dos deuses que chorar


pelos absurdos humanos !

(Mas o secretário — ou o evangelista nar­


rador? ou o compère desta fábula triste? —
sabia que o pensamento não pára senão
quando cessa a irrigação do cérebro. E, do­
tado de poder telepático e bem identificado
com as ideias do protagonista, continuou a re ­
gistrar a seqüência da meditação que lhe pre­
sumia e concluiu-a. Legou assim aos sábios
da estilometria ou da estilística do século fu­
turo um árduo problema: dirim ir a parte do
texto autêntico e a parte imitada. Coisa pa­
recida a separar numa audição da ópera Tu-
randot O' que pertence a Puccini e o que Alfano
lhe juntou com devota identificação. O secre­
tário, menos pessimista, esperava que a pre­
sença humana sobre a Terra não cessasse tão
depressa nem passasse de todo o gosto dos
problemas bizantinos da literatura.
Segue-se a corajosa interpolação.)
VI

Príncipios e limites
(Interpolação)

Quero voar!
— mas saem da lama
garras de chão
que me prendem os tornozelos.

Quero morrer!
— mas descem das nuvens
braços de angústia
que me seguram pelos cabelos.

E assim suspenso
no clamor da tempestade
como um saco de problemas
— tapo os olhos com as lágrimas
para não ver as algem as...

(Mas qualquer balouçar ao vento


me parece Liberdade.)

J o s é G o m es F e r r e i r a , Poesia, II.
Sumário

Sentimento de fim. — Crise dos prin­


cípios metafísicos. — Deslocação dos li­
mites. — Realeza da causalidade. — Ne­
cessidade de revisão da teoria do conhe­
cimento. — Oportunidade para uma inte­
gração crítica: ciência nova, filosofia
nova. — A gnosiologia kantiana, como
derradeiro eco da grande Revolução Ale­
mã. — Possível contribuição portuguesa
para uma filosofia de síntese crítica, nos
planos cosmológico e antropológico. —
Relance pela actualidade. — O desfecho
da experiência de Zeus. — Música, voz
oracular.
Havia muitos anos que a fisionomia da vida hu­
mana, por algumas de suas feições, mentais e so­
ciais, lhe despertava um sentimento de fim. O cami-
nheiro percorre longuíssima distância, entrecortada
de obstáculos e aventuras, e no termo dela vê-se
enfurnado num cubículo, a esbarrar na parede e a
topetar no teeto. Chegara a confessar tal sentimento
decepcionador nalgumas páginas sobre o que cha­
m ara «o século dos limites» e a propor a constitui­
ção de uma disciplina que estudasse os contornos ex­
tremos da vida social, a qual se designaria por terma-
tólogia ou ciência dos limites. Afoitou-se até a des­
crever uma técnica para determ inar ou recortar «o
limite da personalidade nos homens e nos povos».
Tudo em maneira muito condensada, que o destino
adverso não mais lhe permitiu desenvolver e aclarar
{Últimas Aventuras, Rio de Janeiro, 1941).
A vida moderna atingira tal elevação e tal com­
plexidade técnica, tal exigência de organização es-
cravizadora, que os homens comuns já não compor­
tavam ou que só eram realizáveis mediante um de­
solador empobrecimento psicológico e o sacrifício
da liberdade — o maior bem e a maior dignidade
que os homens podem desfrutar. Por toda a parte se
100 F ID E L IN O D E FIG U E IR E D O

encontravam as manifestações angustiantes do sen­


timento de fim ou de limite já atingido. Os mais
gloriosos obreiros da revolução científica, nomes da
altura de um Einstein ou de um Planck, chegando
ao termo das suas avançadas estonteantes e sen­
tindo a sua impotência, davam a palavra aos teó­
logos e aos filósofos e retiravam-se da liça, porque
as armas aperfeiçoadíssimas da ciência já não pro­
metiam por enquanto novas vitórias. Deveriam di­
zer antes «poetas e filósofos», porque os teólogos
nada descobriram jamais, com seu método; apenas
deduziram e deduziram sem cessar e glosaram tex­
tos literários — deduções e glosas que circundavam
um tipo de realidade imaginosa pré-estabelecida ar­
bitrariamente. Mas o® poetas são livres em suas
intuições como os filósofos em suas especulações de
probabilidade racional. Os primeiros partem do seu
fundo sentir vital divinatório; os últimos levantam
voo das fronteiras da ciência autorizadamente e le­
gitimamente como balões cativos ou águias pruden­
tes que não perdem de vista os seus- ninhos nas
montanhas.
Uns e outros representam o perpétuo desconten­
tamento do coração e da razão humana ante o curto
alcance da ciência positiva e tentam suprimir-lhe a
impotência com seus recursos próprios, que podem
ser ilimitados, esses sim. Poesia e filosofia são irmãs
pelo anseio de libertação e pelo desmedido ambi­
cionar; só se apartam pelo predomínio da sensibili­
dade intuitiva e instintiva na primeira e pelo predo­
mínio voluntário da razão lógica e sempre guiada
SÍM B O LO S á M IT O S 101

pela ciência na segunda. Irmãs gêmeas, que, por mais


que se apartem nos seus caminhos, sempre conver­
gem no ponto de chegada, à «luta pela expressão» —
pois em palavras se cifram as suas conquistas,
palavras precisas, claras, sugestivas e belas na tra ­
dução do impreciso e do misterioso. O incognoscível,
definitivo ou temporário, é o domínio próprio das
duas irmãs — que também sofrem periodicamente
da histeria da obscuridade. Momentos de desespero,
de que as salvam só novos progressos das ciências,
deslocando para mais avante as suas fronteiras e
propondo-lhes novas dúvidas.
Tais desesperos acompanham-se do morbo do
cepticismo da razão crítica, portanto da ciência que
se deixou imobilizar e desprestigiar; e abrem as por­
ta s do pensamento puro e da sensibilidade pura a
enxurros desfiguradores. Correspondem a conjuntu­
ras tenebrosas de «apagada e vil tristeza». A Hélade
na decadência e a Península Ibérica oferecem fla­
grantes exemplos desse paralelismo entre impotên-
cias e equívocos.
Mencionar exemplos forasteiros e caseiros, anti­
gos e modernos, de quando a cultura se inverte em
anticultura, poderia desviar a meditação do recto
caminho para o seu escopo de apaziguamento pelo
desígnio de compreensão.

Esse problema vital dos limites do conhecimento


tem séculos, mas só atingiu o seu auge na filosofia
crítica de Kant, para quem a metafísica se tom a
uma autêntica ciência dos limites do conhecimento.
102 F ID E L IN O D E *F IG U E IR E D O

Desde então, com pequenos aditamentos e correc-


ções, as suas ideias reinaram. O seu sistema foi um
pilar da cultura moderna, como o sistema de Copér-
nico, Newton, Kepler e Galileu na astronomia e na
física até à reforma einsteiniana. A glória de um
pensador mede-se tanto pelas apologias quanto pe­
las impugnações. Umas e outras não faltaram ao
pacífico velhinho de Kõnigsberg. Também pacifista
por seu opúsculo sobre a paz perpétua, com que se
antecipou a este impaciente anelo de paz que palpita
hoje em todo o orbe.
Quando se queria delimitar a esfera do cognos-
cível, recorriajse à psicologia, à lógica e à metafísica.
A primeira e a. segunda fixavam os processos nor­
mais da elaboração do conhecimento; a última de­
finia os «primeiros princípios» ou os alicerces indis­
pensáveis de toda a concepção da natureza. Por­
tanto, se o que se pretendia conhecer ofendesse essas
normas e esses primeiros princípios, situava-se fora
do alcance da inteligência humana. Assim sucedia
com a ideia de Deus, com a síntese do universo e a
natureza íntima da nossa consciência, que não eram
relacionáveis com qualquer noção anterior, porque
se via na marcha do conhecimento um avanço obri­
gado de relação em relação, como a travessia de um
rio de poldra em poldra, e sempre uma incorporação
em sínteses preestabelecidas e uma obrigada locali­
zação em espaços e tempos que não ultrapassem o
alcance dos nossos sentidos por serem demasiado
vastos ou demasiado breves. E, depois da reforma
kantiana, devia-se desistir da pretensão de tocar a
SÍM B O L O S & M ITO S 103

realidade íntima ou nomenal das coisas, que só eram


acessíveis pela sua fugente aparência fenomenista,
expressa em juízos ou unidades elementares da acti-
vidade lógica, muito variados, mas bem contadosi
por uma severa classificação. Kant, à luz de tais
ideias, analisou e destruiu, uma a uma, as correntes
provas da existência de Deus — Deus pessoal, omni-
potente e omnisciente, criador de quanto existe, o
cognoscível e o incognoscível, castigador e premia-
d o r— provas deduzidas em séculos de meditações
dedutivas, para lhe delinear uma fisionomia per­
feita. E nesta plataforma de impotência se jouve
durante muitos decênios do século xix... Mas a rea­
lidade impetuosa e também poderosamente criadora
rompeu com os arames farpados que a encerravam
e passou avante. Os teólogos desentenderam-se do
criticismo kantiano, muito embora ele fosse logica­
mente inatacável e o filósofo- houvesse depois re­
construído por inspiração e postulado da consciên­
cia moral o que suprimira com lógica inexorável.
E novas razões de crer se forjaram das novas ma­
neiras de formular as antigas; e foram arquitecta-
das com destreza dialéctica. Um dos caminhos segui­
dos, o primeiro e mais engenhosamente rebuscado,
foi a absorção da ciência moderna por interpretações
e conciliações ousadas. Proesa acrobática só válida
para os fiéis da confissão donde provinha esse por­
tentoso esforço dialéctico, ao passo que a ciência
nova tem validade indisputada e provada para todo
o gênero humano, para quantos seres possuem um
sentido lógico normal e obedeçam a impulsos tam­
104 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

bém normais de utilizações que lhes alarguem o


horizonte e lhes contentem os anelos de melhorar
a vida. Isso em plena independência do credo seguido
e sem prejuízo da primordial apetência religiosa.
Os homens de ciência cederam à mesma rebeldia
que manteve as posições dos teólogos: desrespei­
tando as balizas limitadoras da psicologia, da lógica
e da metafísica, avançaram com audácia e génio
criador, elaborando eles mesmos, pela prática experi­
mental, a sua metodologia da pesquisa cognoscente,
formulando os seus postulados» neometafísicos e le­
vando para muito longe as fronteiras do saber. Os
primeiros princípios da metafísica pareceram desse
modo banalidades de Monsieur de la Palice ou do
Amigo Banana, que nunca estava em casa, quando
saíra, ou jogo de palavras de certo monólogo cô­
mico sobre o pão fresco, ainda quente do forno...
Isto quanto aos princípios de identidade e contradi­
ção, certamente os mais alheios a todo o progresso
das ciências. Os outros não saem em melhor estado
da simples aferição do seu conteúdo doutrinai pelo
desenvolvimento moderno da pesquisa científica. O
de substância, que articulava os fenômenos à pre­
sença de uma substância constante e imutável, evapo-
rou-se perante a química de Mendeliev, que reduziu
todas as formas da substância universal a 92 ele­
mentos transmutáveis, mesmo a distâncias inacessí­
veis directamente aos sentidos humanos. E por fim
a física de Einstein diluiu-os em energia. Como a fí­
sica moderna identifica massa e energia, a pri­
meira como condensação potentíssima da segupda e
SÍM B O LO S & M ITO S 105

esta como rarefacção daquela, em formas inobser-


váveis pelos sentidos, os ontologistas empedernidos
poderão afirm ar que o princípio de substância ga­
nhou veleidades de sobrevivência. De facto, ele não
era só um princípio, foi também um obcecante pro­
blema da metafísica, ao tornar-se especulação sobre
a natureza dessa substância, sobre a sua unidade,
até remontar à primeira causa e à ideia de Deus,
como ponto de partida, essência inicial, a quidditas>
de que derivavam todas as existências. Pode-se di­
zer que o princípio e o problema de substância era
um conglomerado de toda a velha filosofia metafí­
sica.
A desintegração do átomo demonstrou, que os
elementos de Mendeliev, ordenados pelos seus pesos
atômicos, só diferiam pelo interno arranjo plane­
tário dos átomos — para u sar a linguagem de Nils
Bohr: a substância constitutiva dos átomos é a< mes­
ma, energia eléctrica, positiva ou negativa, com
graus de carga diferentes. Todavia, os dicionários
de filosofia, os históricos, não os vocabulares, não
tomam conhecimento da física moderna, que resol­
veu em poucos anos o problema nodal da metafísica,
durante séculos e séculos a servir de pretexto para
os mais ousados malabarismos de palavras. Infeld,
colaborador íntimo de Einstein, chama-os de lixo...
Continua-se a publicar livros sobre o problema e
num deles, que alude à ciência moderna, é esta liqui­
dada pelo modo seguinte: não lida com a própria
realidade, mas apenas com símbolos matemáticos...
Considerar os velhos filósofos como adivinhadores
106 F ID E L IN O D E FIG U E IR E D O

da moderna solução científica do problema eqüiva­


leria a ver no primeiro homem que galgou uma vala
um precursor da aviação a jacto.
A razão suficiente por igual se sumiu ante a re­
velação da misteriosa irracionalidade indiferente
de um universo de todo estranho ao carácter e à
forma do pensamento humano.
^esrundo Kant, o tempo e o espaço eram agentes
condicionadores do trabalho da consciência a mo­
delar e organizar as percepções recebidas por inter­
médio dos sentidos. Com a sua indispensável coope­
ração a consciência remodelava e apossava-se do
mundo para os usos humanos. Qual foi o destino
destas Meias após as conquistas recentes das ciên­
cias? O tempo e o espaço, que até hoje ninguém
conseguira definir satisfatoriamente, foram conglo­
merados pela física einsteiniana num continuum in­
dissolúvel espaço-tempo, articulado ao movimento
e à velocidade do móvel, tudo expresso em lingua­
gem matemática — o mais rico e difícil idioma, ainda
assim mais claro que a linguagem metafísica. E a
antropologia, tomando o homem pela mão à saída da
biologia, e reconstituindo-nos a história do homem
nos cem mil anos de sua existência de luta, mostrou
que não é a consciência humana que refaz o universo,
é o meio que faz o homem e que durante esses mil sé­
culos lhe compôs a consciência e a recompôs por
várias vezes. O animal humano foi sustentado e con­
duzido por tantos tipos de consciência quantas as
fases decisivas da sua marcha histórica sobre a Terra
e sob os Céus. P ara essa consciência o mundo seria
SÍM B O LO S <& M IT O S 107

um antes da descoberta do fogo e outro depois dela.


Se a consciência modelasse o mundo por assimilação,
este haveria mudado vezes várias. E não mudou; o
que se foi alterando pelos tempos abaixo foi a cons­
ciência, como espelho que se aperfeiçoasse na capta­
ção das imagens, ampliando o seu alcance e reduzindo
as suas refracções deformadoras. À medida que as
técnicas de domínio da sua casa terrena progrediam
e as suas notícias da fenomenalidade externa se
alargavam, a consciência ia-se reformando e modi­
ficando o seu comportamento. Nesses milênios não
se ofereceram à contemplação do homem vários
mundos; o mesmo dominador mundo é que forjou
ou determinou consciências várias ao homem, crian­
do-lhe até impulsos de libertação desse domínio. Im­
pulsos que eram outorgas generosas, que só confir­
mavam o domínio, como as calculadas concessões
do velho absolutismo.
O homem é um instrumento passivo, fatalmente
passivo da sua constituição cromossómiça e da sua
formação mesológica — deveria dizer-se antes me^
socrática, para assinalar a força impiedosa ou in­
vencível desse meio formador. Os impulsos de liber­
tação — a inteligência, o talento, o génio, a virtude,
toda a originalidade criadora— já estavam com­
preendidos e previstos nos genes dos seus pais e
haviam de ser solicitados ou pelo menos tolerados
pelo ambiente social.
Também o princípio de causalidade, pedra angu­
lar de toda a edificação do pensamento, em seus vá­
rios andares ou graus hierárquicos, sofreu sua in­
108 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

vestida. Começou em 1874, com Boutroux e o seu


sermão De la contingence des lois de la nature,
que percorria esses vários andares do edifício do
pensamento, paralelos a outros tantos aspectos da
fenomenalidade natural, do mundo físico ao mundo
psíquico, e salientava a precariedade crescente das
leis naturais, sempre que aumentava a imprecisão do
poder de medir os fenômenos até chegar à liberdade
criadora da consciência. Boutroux expressa a reac-
ção antikantiana e antipositivista e prepara o surto
do bergsonismo, com todas as suas orgias literárias.
A gente filosofante de então não rezava por pa­
dre-nossos e ave-marias, rezava por outra cartilha,
a do criticismo de Kant e do positivismo de Comte,
em que se continham orações tão cristalizadas em
dogmas como as leis da natureza — as leis de Ar-
quimedes, Kepler Newton, Pascal, Lavoisier, Proust,
Gay-Lussac, da conservação da m atéria e da ener­
gia, etc. Alarmou-se um pouco, a princípio, por ver
trem er as colunas do templo da Sabedoria. Mas a
pregação, ainda que eloqüente e com oportunidade
emocional, não esgrimia outras armas senão as da
dialéctica metafísica e confinou-se no mundo uni­
versitário. Só com o brilho de Bergson transpôs os
umbrais, para chegar ao mundo profano. Revestiu
então formas de nova eficiência, porém efêmera,
como a das modas que duram na razão inversa da
sua generalização.
O princípio de causalidade era coisa muito en­
raizada na mente humana; e os serviços da tecnolo­
gia, derivados hora a hora da ciência construída à
SÍM B O L O S d M IT O S 10 »

sombra desse fundamental princípio, estavam tão


patentes que o bombardeio das belas palavras foi
estéril.
Renasceria a crise mais tarde no seio da própria
ciência, quando esta deitou mão a muitos problemas
epistemológicos ou do conhecimento, que logica­
mente era ela a mais autorizada para os versar.
Quem pode com legitimidade maior discutir os mé­
todos da elaboração do conhecimento e dos seus li­
mites senão os cientistas que o elaboram e a toda a
hora demonstram a eficiência concreta desses mé­
todos?
A metafísica, a respeito do conhecimento, não
formulara só os primeiros princípios condiciona­
dores e balizadores, apresentava também teorias de
limitação, todos esses ismos sobre a ciência e a exis­
tência, sobre o livre acesso ao absoluto e a sua ina­
cessibilidade, sobre a sua negação rotunda e até sobre
a negação da própria realidade em que vivemos e de
que vivemos. O idealismo platônico e o de Berkeley,
o positivismo relativo de Aristóteles e o teologismo
dogmático de Tomás de Aquino, todas as suas mo­
dalidades possíveis encontraram guarida no seio dos
primeiros princípios e aí cresceram como teias de
aranha em arrecadação esquecida. Foi prolixo e
aceso o polemizar sobre a natureza do Ser e da Subs­
tância, sem nunca atingir o menor ganho positivo,
pois pela dedução verbal jamais se conquista um do­
mínio novo, sequer um facto. Apenas se põe à prova
a imaginação dialéctica de quem afirm a e de quem
refuta. Os progressos consistem na arte de afirm ar
110 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

inventivamente e de negar com igual dom inventivo


para descortinar fendas e fragilidades nas constru­
ções orais, sem repetir os argumentos ou os ataques.
P ara isso toma-se preciso criar incessantemente
uma terminologia, sempre mais alheia à realidade e
mais esotérica, sem ser e sem substância — o que se
queria conhecer precisamente.
Ê uma teimosa sobrevivência da sofistica dos
primórdios da filosofia grega, no intervalo entre as
primeiras afirmações da curiosidade científica, rare-
factoras do conteúdo heteróclito e inorgânico dessa
prístina sabedoria e a constituição dos grandes sis­
temas de Platão e Aristóteles, de obstinada longevi­
dade. E mal se compreende a coexistência entre essa
moderna sofistica e a revolução científica. Ou só se
compreende pela coragem da mente humana para
todas as contradições: a superstição mais grosseira
e a mente científica mais rigorosa; a confiança nos
bruxedos e na alta medicina; o puro amor e a de­
vassidão incontentável a coexistir na mesma cons­
ciência.
O princípio de contradição, avesso do princípio
de identidade, recebe também grande abalo, igual nas
proporções ao que atinge em hipótese o de causali­
dade. A ciência moderna mostrou que os fenômenos
e as coisas podem contradizer-se internamente, ser
e não ser ao mesmo tempo. Os biologistas sentem
dificuldade em delimitar o mundo vivo do inanimado
porque os minerais têm sua sensibilidade e assimi­
lam. Além disso, as fronteiras do reino vegetal com
o animal não são fixas: há microrganismos com
SÍM B O LO S <& M IT O S 111

caracteres de espécies botânicas e de espécies zoo­


lógicas, os vegetais mineralizam-se e adquirem sua
clivagem, subsistindo com sua circulação noutras
regiões do seu organismo alimentado por uma raiz
comum. E os físicos mostraram experimentalmente
que a luz é ao mesmo tempo irradiação ondulatória,
como queria Newton, e bombardeio corpuscular,
segundo Einstein.
Apenas parece difícil por agora observar simul-
tâneamente as duas formas contrárias da propaga­
ção, como se não pode ler ao mesmo tempo as duas
páginas da mesma folha dum livro. E um matemá­
tico tcheco, Karel Gõdel, demonstrou que se pode
chegar por dedução cientificamente rigorosa a duas
conclusões contrárias, sem haver meio de destrin-
çar entre a verdadeira e a errada. (V. On Formdlly
undecidáble Propositions> 1962, trad. ingl.)
Desta flagrante possibilidade de contradição na
entranha das coisas e dos fenômenos há vestígios
de observação instintiva na linguagem comum: o
claro-escuro dos pintores, o helado-caliente das sor-
vetarias madrilenas e o queimar da neve dos lavra­
dores.
E contradição maior será conceber e verificar
experimentalmente que todos os corpos são massa
condensada ou em expansão e energia incorpórea.
ÍÉ

Chegando ao princípio de causalidade, cumpre


dobrar a língua. Tem majestade, porque é rei dos
primeiros princípios metafísicos. Primus inter pares.
112 F I D E L I N O D E F I G U E IR E D O

E ostenta a maior nobreza. Nada menos que a


grande revolução científica do presente século. Co­
meçou no seio da biologia essa crise; e alargou-se na
física, tomou-se filosofia crítica, em que intervie­
ram os próprios físicos. Num «diálogo socrático»,
reconstituído por Jam es Murphy, Einstein atenuou
as culpas da física nessa crise, lembrando que foi na
biologia que essa crise se abriu, pois ali se antecipou
a concepção estatística da ideia de lei, não sendo
possível remontar na observação dos processos bio­
lógicos até à origem e, portanto, à franca evidência.
A física de Max Planck, descobrindo a descontinui-
dade das radiações termodinâmicas, deu-lhe depois
repercussão geral. As origens dessa crise, tão altas
e de solução tão precária, revitalizam alguns putros
primeiros princípios. Transformando o de identidade
e restaurando as forças do de finalidade.
O princípio de causalidade tornou-se um instinto
lógico da consciência, como segunda natureza criada
pela evolução histórica e baseada nas observações
autênticas da inteligência em toda a sua frescura e
espontaneidade. A consciência nasce vazia; pouco a
pouco se vai guarnecendo com as noções extraídas
do viver quotidiano. Em breve os sucessos se enca­
deiam como as cerejas, todas enfiados em séries; e
essas séries atadas umas às outras formam um pa­
norama de causas e efeitos que se designa por
determinismo universal. Mas como não é possível
presencear todos os fenômenos já passados e todos
os do futuro, a experiência humana tem uma base
restrita, feita da observação individual num curto
BlM BO LO a d M IT O S 113

lapso de tempo, de testemunhos históricos e de pre-


sunções do futuro desenvolvimento das coisas. Não
poderá nunca deixar de ser contingente a generali­
zação a que nos abalancemos. Permitiu contudo ao
homem acumular o seu opulento patrimônio cientí­
fico e tecnológico. A sucessão incessante, sem co­
meço nem fim, de causa e efeito, cada causa já efeito
e cada efeito nova causa, deve estar na raiz da
noção do tempo. Tudo parecia obedecer ao aforismo
escolástico post hoc> ergo propter hoc. E ste depois
será o gérmen de noção de tempo, que essencialmente
consiste no sentimento de uma variação ou mudança
que se passa à nossa vista: o movimento aparente
do Sol e a alternativa dos dias e das noites; das vi­
gílias e dos sonos, das estações com todas as meta­
morfoses patenteadas à superfície da Terra, a deslo-
cação dos astros na abóbada celeste, a instabilidade
atmosférica, suas tempestades e bonanças, o cresci­
mento e o declínio físico do próprio homem e a re­
petição periódica de todas essas variações e mudan­
ças. N otar essa instabilidade e essa repetição e
aplicar-lhes um sistema numérico de contagem fo­
ram por certo os elementos constitutivos da ideia de
tempo e do expediente mnemónico da cronologia.
Elementos que não fazem parte inata e constitucio­
nal da consciência, nem formam uma realidade
objectiva, mas representam a interferência do mundo
externo com o nosso mundo interno ou mais exacta-
mente a elaboração desse mundo interior, que sem
tal interferência eqüivaleria a um espelho em frente
de um areai deserto. E tanto isto parece decorrer

S. M. — 8
114 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

assim — a variação e a mudança como bases da ideia


de tempo — que os cativos sepultados vivos em mas­
m orras lôbregas sem luz natural, sem pontos de re­
ferência, perdem essa noção, vivem num perpétuo
e monótono presente inalterável. Nem sequer vêem
as sombras da caverna de Platão, que deslizavam na
parede oposta à abertura. Alguns autores explora­
ram em obras literárias o dramatismo de tal situa­
ção, em que o tempo- se reduz a reminiscência e as­
piração— por exemplo, Sílvio Pélico e Alexandre
Dumas.
E sta gênese da ideia de tempo tem suas aderên-
cias que levam à ideia de espaço. A noção de tempo
encerra maior complexidade intelectual que a de
espaço. E sta parece, em certa medida, implícita na­
quela ou na sua anterioridade. As mudanças e va­
riações do mundo exterior envolvem o sentido de
movimento, de alteração das posições relativas das
coisas umas perante as outras e perante nós. Daí
provém a ideia de intervalo encurtáyel ou aumentá-
vel e logo de distância, e a seguir outra, mais geral,
que abarca todos os intervalos e distâncias, com mo­
vimento ou sem ele, a de espaço.
Poder-se-ia dizer que a ideia de tempo envolve
um corolário imediato, a concepção de espaço. Não
sabemos o que o tempo e o espaço possam constituir
fora de nós, mas observamos que são peças impres­
cindíveis no acto de assimilação do mundo externo.
Não nasceram connosco, mas foram-se definindo e
definindo-nos. Os homens primitivos é que realiza­
SÍM B O L O S <& M IT O S 115

ram essa definição espontânea. Tudo isto, com per­


dão da veneranda memória de Kant, que cria essas
ideias inatas.
De modo que este carácter dual da noção de
tempo ou este seu obrigado aspecto psicológico pro­
fundo com raízes nas intimidades misteriosas do
subconsciente é plenamente acatado pela física rela-
tivista quando nos propõe o continuum espaço-tempo,
expresso em matemática, articuladamente ao movi­
m ento— que é sucessão de variações e mudanças.
Tal coincidência ajuda os leigos a penetrar a dou­
trina einsteiniana, e serve o vaivém, que estes lei­
gos necessitam, entre os dois mundos — o exterior
e o interior.
E stas lhe pareciam as intuições básicas na gê­
nese primitiva das ideias de espaço e tempo, que
depois se transcendentalizaram até chegar à gnosio-
logia kantiana que as eleva a peças- fundamentais
da consciência. Pode-se dizer que em cada ciência o
espaço e o tempo têm sua significação. Da estabele­
cida na mecânica extraiu Bergson a sua ideia de
duração. (W. Gent, Die philosophie des Raumes
und der Zeit> historische, kritische und analytische
Untersuchungen> reedição de 1961.)
Na linguagem quotidiana há vestígios da intui­
ção primitiva ou espontânea desse continnum espaço-
-tempo-movimento, quando se diz a uma hora de
distância, a um tiro de espingarda, pelo espaço de
dois dias, etc.
116 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

Prim eiro alto


(AquA foi a vez de o secretário dar parte
de fraco. Parou com as suas garatujas, 'pou­
sou a caneta e começou a fazer impacientes
flexões com os dedos cansados para os acor­
dar. E lançou um olhar para o patrão, ali
junto, estiraçado numa poltrona, a penar e a
pensar. Parecia-lhe ouvir o fervor dos seus
tenesmos cerebrais, a afirmar vontades impe­
rativas de expressar ideias ou emoções. Com
os olhos semicerrados meditava sempre fora
do tempo, mas transido pelo impulso de ser
do seu tempo, bem identificado na intimidade
da consciência com os seus problemas, reno­
vações e perigos.
Todo o estilo de cultura, em que se for­
mara, ruíra fragorosamente. Outra era a vi­
são do mundo, outra a sua explicação cientí­
fica, outras deveriam ser a interpretação e a
estima dos valores estéticos e filosóficos. E
já não podia pôr-se em dia9 refazendo o seu
mundo interior, emendando o conjunto da sua
longa vida! Tinha de se resignar à posição
de destroço inerte e inútil, como quem, acor­
dando, contemplasse a sua cidade arrasada
por um mágico e silencioso terramoto, com
outra cidade a surgir maravilhosamente, di­
versa nas formas, nas cores, nas funções e nos
habitadores, vindos de longínquo planeta.
Mas ele queria perceber, saber e adaptar-se a
SÍM B O L O S <& M IT O S 117

essa nova fa se da universal transitoriedade


e da soberania da inteligência do homem,
agente modelador do seu universo. E não
podia!
Repetia a situação de um albatroz9pousado
sobre o rebordo de uma falésia sobranceira a
devorador abismo. A ave audaciosa adivinha
que vai morrer, porque tem as asas quebra­
das e já mal respira. Mas ainda sente a sedu­
ção dos ares que percorreu altiva. Ergue os
olhos tentados, agita as asas doloridas e im ­
potentes; logo porém os baixa para as fun-
duras abissais que a advertem fatalmente.
Que fazer? Subir uma vez mais ou precipitar-
s e y de cabeça escondida entre as asas des­
feitas? Hesita um momento e levanta voo —
um voo periclitante e condenado, como se pen­
sasse: cair por cair9 antes de algum cume
excelso e nobilitador!
E o secretário retomou a pena e de novo
foi lançando as suas garatujas confusas so­
bre o papel.)

Os homens de ciência desinteressaram-se por


completo da psicologia e da metafísica do conheci­
mento, dos primeiros princípios, dos limites, da re­
forma crítica de Kant, das suas quatro tríades de
juízos e categorias, e, sem licença de filósofos e teó­
logos, puseram-se a fazer ciência, guiados só pelas
118 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

suas intuições imaginosas, pelas conquistas da expe­


riência e uma incontestável vontade. Sem cuidar em
organizar juízos sintéticos a priori, como elementos
fundamentais do conhecimento, e seguindo apenas
os ditames da observação dos fenômenos da natu­
reza, as ensinanças da experimentação, os homens
de ciência transpuseram os limites metafísicos do
saber, tomaram-nos puramente físicos, químicos, téc­
nicos e humanos, e só se detiveram quando perdiam
as suas batalhas com os fenômenos da luz, do calor,
do som, da electricidade e do movimento. Assinala­
ram então esses momentos-lugares com bandei­
rolas ou Colunas de Hércules, umas irremediàvel-
mente definitivas, outras esperançadamente provi­
sórias, até que a aparelhagem técnica lhes ampliasse
os meios de pesquisa. Magnus Pike, num livro de
sólido saber e jovial humor, The Bounãaries of
Science, recém-vertido em português, aponta sete
dessas balizas, que declaram derrotas na luta da
inteligência humana com a natureza, luta gloriosa
que em nossa civilização remonta aos pensadores de
Eleia, mas só ganhou as suas grandes conquistas a
partir de Copémico', Kepler, Galileu e Newton. Lem­
bra um mapa do ensino elementar da história, em
que os lugares das batalhas e dos combates estão
apontados por bandeírinhas com as cores das nacio­
nalidades ou dos partidos neles empenhados. Somente
as derrotas da ciência moderna são mais gloriosas
que as vitórias militares de todos os tempos.
A primeira baliza implantada por Magnus Pike
é a da riboflavina, substância química ligada estrei­
SÍM B O L O S d M IT O S 119

tamente ao mecanismo da energia vital e da qual não


se pode fisicamente passar para a energia cósmica.
A segunda baliza provém da constante expansão
do universo que leva as galáxias para fora do alcance
da nossa observação telescópica.
A terceira implanta-a a infinita divisão da ma­
téria, até chegar às partículas de energia, que com­
põem as partículas elementares, e ao comportamento
imprevisível de cada uma delas. Atinge-se então o
domínio da incerteza que Heisenberg formulou no
princípio associado ao seu nome.
A quarta dá-no-la o arqui-subtil teorema da inde-
monstrabilidade de Gõdel, que abriu uma brecha no
rigor lógico ou na consistência da ciência matemá­
tica: casos em que é impossível demonstrar a falsi­
dade da proposição contrária a outra — ambas as
quais foram logicamente deduzidas.
A quinta baliza tem já carácter biológico, por­
tanto refere-se a um mundo fenomenal mais res­
trito, por ser apenas telúrico, mas atinge-nos como
seres humanos individuais. Consiste na impossibili­
dade absoluta de explicar e prever cientificamente
a singularização dos seres individuais, entre os quais
não há dois idênticos, nem sequer os verdadeiros gê­
meos, provenientes de um mesmo óvulo e de genes
rigorosamente idênticos. E se o parecem fisicamente
e pela receptividade nervosa, ao modo dos Irmãos
Corsosy de Dumas, apartam-se no comportamento
quotidiano. A biologia, chegando aos caracteres fí­
sicos e morais dos indivíduos, detém-se impotente.
E sta baliza tem especial significação quando se
120 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

discute o estafado problema da fronteira entre o de­


terminismo e o livre-arbítrio, porque as volições,
que parecem em nós determinadas por causas exter­
nas, constituem na sua extensão e no seu carácter
uma afirmação de individualidade singular, com os
tais peculiarismos misteriosamente imprevisíveis.
B asta observar durante algum tempo os movimentos
espontâneos das crianças, das aves, dos animais do­
mésticos e dos insectos. Todos obedecem à condição
biológica da sua espécie, às circunstâncias do meio
em que vivem e ao seu gregarismo intrínseco ou à
sua invencível sociabilidade, mas todos se libertam
de tudo isso por momentos para tom ar decisões pu­
ramente individuais, que escapam à racional expli­
cação. Porquê? P ara quê? Por mais que se os observe
e se conjecture, não se poderá nunca reconstituir a
forma geral de origem dessa pequena libertação,
nem delimitar a sua zona. Reconstituímos causações
complexas e longínquas, mas sempre permanece um
resíduo inatingível, como na física nuclear, ao perse­
guir os movimentos e as dimensões das partículas
derradeiras.
Neste caso das volições aparentemente espontâ­
neas e livres pode-se conceber uma hipótese teórica:
compor-se-iam elas de fenômenos físico-químicos,
fisiológicos e mentais bem determinados, segundo
o princípio de causalidade que não se deixa iludir,
e seriam apenas a resultante final ou a chegada
desse longo rosário de pequenas contas à consciên­
cia, que lhe obedeceria como os nervos e os músculos
haviam obedecido ao fluxo dinâmico anterior.
SÍM B O L O S <£> M ITO S 121

Mas algum dia se poderá colher e desfiar esse


rosário de fenômenos elementares? Até em tal im­
possibilidade de se dirimir, essa questão do livre-
-arbítrio se parece com a das partículas residuais da
física nuclear.
A sétima baliza, proposta com bom humor de
resignação às limitações humanas, por Magnus Pike,
é o estudo exaustivo do cérebro dos homens, com po­
der de estimular ou provocar altas inspirações artís­
ticas ou científicas e de provocar as geniais in­
tuições adivinhadoras que assinalam os maiores pro­
gressos do saber. As anedotas, que circulam em
tom o de pitorescos episódios das biografias dos
grandes homens, não têm validade e, sendo exactas,
nada adiantavam para o estudo científico. O impulso
e a intuição imaginosa que levam à descoberta cien­
tífica sempre cairão fora das fronteiras das pró­
prias ciências que servem, quais generosos caprichos
dos deuses.
No fim da sua balizagem o autor inglês conden-
sa-a em três realidades inultrapassáveis: a extrema
simplicidade que a análise atinge, como o comporta­
mento da última partícula da matéria, no mundo
físico; a complexidade química do cérebro na evo­
lução biológica, e a finalidade ou intenção de tudo
isso, o sabido e o incognoscível.
Temos assim dois superlimites condensadores
de carácter realista ou experimental e outro super-
limite de carácter filosófico.
Descansem os filósofos que não acabará a sua
função de especular sobre o que a ciência é incapaz
122 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

de averiguar, mas que a inteligência e o coração hu­


mano não desistem de perseguir. E descansem tam­
bém as consciências religiosas que não há nenhuma
incompatibilidade entre a ciência e o espírito reli­
gioso, o puro, humilde e esclarecido que já não cabe
nas religiões oficiais. Por mais que a ciência afaste
as suas balizas, conquistando novos domínios, sem­
pre sobrarão domínios maiores, senhoriados pelo
mistério insondável.
i*

A nova concepção dos limites do conhecimento,


estabelecida pela ciência, liberta-o da psicologia
clássica e da metafísica verbalista e identifica-o es­
treitam ente com a curiosidade humana, sua perseve­
rança, sua intuição, sua imaginação inspiradora e
seus recursos presentes e futuros de aparelhagem
técnica auxiliar. Com essas armas o homem poderá
livremente e incansàvelmente percorrer c>s domínios
que o separam das tais balizas e superbalizas. Chega
para lhe encher a vida e toda a história futura. Só
a racionalização da vida individual e social e a con­
quista do espaço cósmico dão pano para mangas por
séculos de séculos.
No fundo, essas duas tarefas envolvem alterações
possíveis na constituição física e psíquica do animal
humano. Um homem que não sente fome, nem opres­
são de tiranetes, sejam eles generalotes ou bacharéis
beócios, que voa a velocidades supersônicas, que se
adapta à imponderabilidade operosá, diferenciar-se-á
muito do actual, principalmente na sua paradoxal
SÍM B O L O S dá M IT O S 123

correria para deixar de ser homem e apressar o


advento de um supra-homem nietzschiano, cujo con­
teúdo filosófico foi não há muito relembrado em
páginas flagrantes por Romeu de Melo. Mas, mesmo
sem fantasias audaciosamente proféticas e sem per­
der o pé sobre as realidades sólidas, essa implanta­
ção dos marcos do conhecimento a distância enorme
das fronteiras dos antigos domínios exerce uma
acção reflexa sobre os pontos de partida ou sobre os
primeiros princípios metafísicos. Assim, o pôr do Sol
altera a expressão luminosa de nascente, porque à
distância no tempo se associa a distância no espaço,
expressa, em luminosidade. E não podia deixar de
ser assim. A física nova de Planek e Einstein afec-
tou a solidez do princípio de causalidade, coluna mes­
tra de todo o edifício metafísico, à qual se articulam
como braçadas de tronco central todos os outros.
Fàcilmente se identifica o princípio de causali­
dade ao de conservação da energia, que no tempo de
Lavoisier era de conservação da matéria. Causa sem
efeito significaria perda ou extravio de energia;
efeito sem causa expressaria geração espontânea de
energia. Também o princípio da inércia seria aba­
lado, porque a alteração do movimento ou do re­
pouso, sem obstáculos ou iniciativas externas a esses
dois estados, igualmente denunciaria criação espon­
tânea ou misteriosa de energia.
O princípio de razão suficiente não deixa de ser
atingido- pela crise do de causalidade, mas agora be­
neficiando na sua influência, porque pode aconse­
lhar prudência e moderação nos casos em que falhar
124 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

o rigor da causalidade com seus efeitos imediatos e


evidentes, ensinando a procurar outras formas de
razão, mediatas e disfarçadas aos nossos actuais
meios experimentais. Confiar e esperar — parece re­
comendar.
Quanto ao princípio de identidade — quod est9
e s t—, sobe de categoria, perdendo a sua essência
acaciana ou vulgar; é promovido a critério da ver­
dade. Basta equacionar em forma algébrica os pro­
blemas cuja incógnita possa ser quantificada. Resol­
vida a equação, converte-se esta em identidade, com
os dois membros iguais — sinal de que atingimos a
verdade. Só para os juízos de valor estético ou mo­
ral essa promoção não se tom a possível, como não
se tom ou possível para Kant, que teve de recorrer
a postulados imperativos, quando procurou alicerces
objectivos para a sua moral e para a sua estética —
em última análise, não objectivos, só kantianos.
Max Planck interveio na polêmica sobre o prin­
cípio de causalidade, suscitada pela apresentação da
sua teoria dos quanta. Firmou a sua posição de fide­
lidade ao kantismo, portanto às categorias metafí­
sicas e aos postulados da teoria do conhecimento,
onde a relação causarefeito era o segundo termo da
tríade relação. Postulados só válidos para o mundo
exterior a nós, mas que abriam o acesso para a
coisa em si, cuja discussão não cabia ao homem de
ciência. «Uma vez aceita a existência de um mundo
exterior independente, a ciência aceita ao mesmo
tempo o princípio de causalidade como um conceito
completamente independente das percepções senso-
SÍM B O LO S <6 M IT O S 125

riais. Aplicando este princípio ao estudo dos fenôme­


nos naturais, a ciência investiga primeiramente até
que ponto* a lei da relação causa-efeito é aplicável
aos diversos acontecimentos no mundo da natureza
e no reino do espírito humano.»
Fiel ao seu Kant, Planck tinha o conceito causai,
não só como uma das categorias basilares da elabo­
ração do conhecimento, mas também como um dado
imediato do conhecimento e, portanto, de validade
universal.
Ê peremptório, mas nada a sua experiência de
grande homem de laboratório acrescenta de novo à
gíria kantiana, nem sequer a clarifica ou simplifica.
De ordinário, os escritos filosóficos dos homens
de ciência são tímidos e carecem de qualquer origi­
nalidade, nem alegam a sua vasta experiência pes­
quisadora em abono das opiniões pessoais dos pen­
sadores que recapitulam. E sempre que podem, esque­
cidos de quem são, saltam arriscadamente para cam­
pos alheios que os tentam. Gostam de m ostrar que
também são homens de imaginação e até de fazer
seus versos... Planck, nos seus ensaios sobre a cau­
salidade, prefere fugir para a religião e para o velho
pleito entre o livre-arbítrio e o determinismo, sem
dizer que religião e sem dirimir esse interminável
pleito, mas fechando o acesso dos profanos à entra­
nha da sua gloriosa experiência revolucionadora com
todo o seu génio, mas também com a pesadez disci­
plinar da mente germânica. Planck não reparou que
nos é impossível conceber um só acto de livre-arbí­
trio. Todos, ainda os mais espontâneos de aparência,
126 F ID E L IN 0 D E F IG U E IR E D O

até os de caprichosa veneta voluntariosa, foram pre­


cedidos por um conjunto circunstancial e condiciona­
dor. Qualquer análise o confirma. O que desnorteia
poderá ser a presença da consciência, nos indivíduos,
mas esta é também um campo de acção determinada
e determinante. Impossível eximir-se alguém ou al­
guma coisa à ordem universal — panorama de en-
cadeamentos de causações.
Faça cada qual um exame dos seus actos.
Mais surpreendente ainda parece a posição de
Heisenberg, nessa discussão da causalidade, que ele,
por seu princípio da incerteza, agravou como nin­
guém. Defendeu-se de derrubar o princípio de cau­
salidade. Apenas o suspendera para procurar uma
nova fórmula que lhe permitisse investigar proces­
sos minúsculos, como os do quantum elementar de
acção, onde o princípio de causalidade não era apli­
cável na forma clássica e simplista da macrofísica.
E um desses casos seria o movimento das partículas
do átomo, cujas variações de velocidade e posição
não são calculáveis. Comentadores sensacionalistas
generalizaram esse princípio de incerteza a todo o
mundo fenomenal. Heisenberg refutou-os e saiu em
defesa da coluna m estra do nosso pensamento. Es­
cusado seria lembrar que, se todo o nosso edifício
de saber se viesse abaixo, o universo não se inteira­
ria de tal terram oto restritam ente humano e inte­
lectual e seguiria impassível na vertigem da sua
complexa maquinaria. Só o nosso patrimônio de sa­
ber se reduziria a um sistema de expedientes téc­
nicos com êxitos prováveis para nos facilitar a exis­
SÍM B O LO S d M IT O S 127

tência sobre a convexidade instável de um dos mais


insignificantes planetas num dos menores sistemas
que formam uma das mais reduzidas galáxias dos
100 milhões delas: a Terra, no sistem a solar e na
Via Láctea.
E tudo seguiria como dantes, porque o homem
é dominado pela vontade de viver e pelo impulso de
adaptação incessante ao seu meio com o menor es­
forço. O homem e todas as espécies animais. Sim­
plesmente, entre as que povoam o telúrico planeta,
só ele conseguiu elaborar uma consciência e guar­
necê-la de ideias e noções, de técnicas- e hábitos.
E no centro dessa elaboração jaz um par de conquis­
tas fundamentais — a descoberta do fogo e a des­
coberta do princípio de causalidade ou do encadea-
mento de relações causa-efeito. Foi a experiência
involuntária ou o acaso, logo evoluída para o grau
superior de experimentação, que levou a esse prodi­
gioso achado, cuja forma episódica não é possível
conjecturar senão por via artística, segundo fizeram
os irmãos Rosny e H. G. Wells, de acordo com al­
guns dados positivos dos antropólogos e experiências
ainda possíveis hoje.
O maior percalço da ruína do princípio de cau­
salidade, se ela fosse possível, procederia do escan-
caramento da consciência às forças invasoras da
superstição, do medo pânico, da negação de quanto
parecesse racional, portanto, o regresso a uma fase
ou a um estado de involução, como o designado por
Comte de teológico, mas mais grave por ter sentido
contrário, francamente, cinicamente contrário. A
128 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

vida colectiva não pode parar. Isso o patenteia o fe­


nômeno da estagnação intelectual operada metodi­
camente pelas ditaduras imobilistas posteriores às
duas grandes guerras: para se defender da anquilose
mortal produzida pela imobilidade, os povos reto­
mam decisivamente o caminho retrógrado, no único
sentido possível, como as raízes das árvores vigoro­
sas, que teimam em viver e crescem para onde po­
dem, à procura de humidade. Nesses momentos po-
de-se presenciar uma situação triste: a transigência
da verdadeira cultura perante a falsa ou a anticul-
tura, para poder viver disfarçada. Os filósofos da
cultura deverão estudar esse fenômeno patológico
social.
Os escritos de Heisenberg em defesa do princí­
pio da causalidade podem decepcionar um pouco.
Não consideram o lado humanamente experiencial
dessa conquista da consciência para sempre nela
incorporada, como o hábito de andar sobre as patas
traseiras dos cangurus e mesmo dos seres humanos,
que já foram animais quadrúpedes, orelhudos e pe­
ludos. Nada adianta na defesa desse princípio essen­
cial ou vital da consciência humana e de todo o
conjunto da sua evolução histórica, porque nada o
põe em perigo. Mais provável parece que a luz e o
calor corram perigo de perecer, arrastando-nos na
sua extinção, porque Zeus pode agravar a loucura
criminal de alguns homens e pode também apagai*
o Sol...
O extermínio pela guerra nuclear e uma revolu­
ção sideral parecem menos inverosímeis que o pensa­
SÍM B O L O S <& M IT O S 129

mento humano sem a presença constante do prin­


cípio de causalidade em todas as suas formas, ainda
as mais irracionadas. Heisenberg só reiterou que
essa relação de causalidade não se verificava, se­
gundo sua forma tradicional, no campo da micro-
física: a causa A sempre há-de produzir o efeito B,
quando actue nas mesmas condições, e nunca o
efeito C ou D. A sua essência mantém-se, energia
que se transform a e conserva e se não some.
Ãs vezes, em tardes calmosas, quem contempla
a serenidade azul dos céus vê destacar-se da lim-
pidez profunda um vaporzinho níveo, que logo forma
uma nuvem rala. As brisas estivais impelem-na e
ela desliza gravemente por uns momentos, pronto
se esgarça e se esvai, regressando à profundidade
azul. O desaparecimento ou o desvio da energia
causai eqüivaleria a esta ilusão óptica para aqueles
que sentem o princípio com o simplismo automá­
tico do ignorante ao premir um botão para mano­
brar um ascensor e o vê desobedecer. Descrê da elec­
tricidade e da engenharia!
A determinação causai é uma conjuntura circuns­
tancial que não dominamos integralmente e que não
se repete sempre. Há no seu complexo adjutórios,
que podem faltar com a sua indispensável presença,
produzindo, não carência de efeito, mas uma varia­
ção no efeito. Não é preciso mergulhar na micro-
física para se verificar este caracter probabilístico,
sujeito a surpresas, do princípio de causalidade. Os
doentes e os médicos muitas vezes se encontram pe­
rante situações análogas: o quadro clínico não se

S. M. — 9
130 FID E L1N O D E F IG U E IR E D O

alterou, o enfermo não sente a menor manifestação


nova; e o tratam ento deixou de produzir o efeito
costumado. Passados uns dias, ainda sem alterações
ao alcance da observação, a surpresa inverte-se com
o restabelecimento da eficiência da mesma terapêu­
tica. Durante a sua suspensão recorreu-se a vários
expedientes interpretativos, como o da habituação,
talvez puramente simbólicos e paliativos como o
dos mitos.
Por tudo isto lhe pareceu superiormente inspi­
rado o designio do Prof. Fernando Pinho de Almeida,
que percorreu variados campos da fenomenalidade,
fisiologia, radioactividade, física atômica e biolo­
gia geral, para coleccionar casos impressionantes
de suspensão da causalidade em sua forma comum
ou em que a pressão do botão do ascensor não o
fazia mover ou parar. Nesses casos havia, não su-
miço da energia emitida, mas escolha da forma
do seu emprego, como se m atéria e energia tivessem
memória e liberdade de opção por tal ou tal caminho,
portanto iniciativa. Sim, iniciativa, porque o efeito B
não deixava de voltar a produzir-se. O que o experi-
mentador perdia era o poder de vergar o curso dos
fenômenos ao seu programa prefixado, porque outro
poder mais alto se lhe levantava em frente. Qual
seria esse poder? E o professor português conclui
pela crise ou mesmo pela falência irreparável do de­
terminismo radical de forma jacobina do século xix e
levanta de novo o problema do finalismo ou da pre­
sença de uma consciência com sua vontade intencio­
nal no fundo das coisas. Tese perigosa porque pode­
SÍM B O LO S d M ITO S 131

ria, sem o querer, abrir a porta à invasão das velhas


superstições de aparência religiosa, mas verdadei­
ramente anti-religiosas, pois apenas dão corpo à ne­
cessidade iniludível de antropomorfose e domínio
por meio de deuses equivalentes aos déspotas da
Terra.
Pinho de Almeida levanta por casos concretos e
severamente autênticos a pergunta ansiosa, mas
aponta logo um método ou caminho para a honrada
especulação acerca do problema, pela constituição
de uma nova metafísica de base indutiva ou rigoro­
samente científica. E ra por certo esse o pensamento
dos sábios, incluindo o maior deles, Einstein, ao dar
a palavra aos filósofos e teólogos. Escusado recor­
dar: teólogos sem dogmas preestabelecidos, só im­
pulsionados pelo generoso sentimento da religiosi­
dade cósmica, emanada dessa contemplação sábia do
universo.
Foram estas observações sugeridas pelo livro
austero de um impugnador do determinismo, tam ­
bém não comprometido, como agora se usa dizer:
Ciência e Filosofia (1962). Pinho de Almeida tem
razão quando investe com o velho determinismo dos
«éculos x vm e xix, que via na consciência do homem
um quadro branco, impassível, onde as sensações
('xternas escreviam o que os estímulos determina­
vam. Mas já dissipa boa parte dela quando procura
uma coisa evidente: a finalidade. Cada efeito, repe­
lindo-se e encadeando-se num incessante fluir de fe­
nômenos, é um argumento do finalismo universal,
ou melhor, do sentido da fenomenalidade. Os casos
132 F I D E L I NO D E F IG U E IR E D O

apontados não alteram a fisionomia dessa corrida


cíclica para transitoriedades bem caracterizadas e
inevitáveis.
Pelo contrário, está muito «comprometida» a
argumentação do Prof. Philipp Frank, da Universi­
dade de Praga, ainda que a sua obra sobre o prin­
cípio de causalidade e seus limites pareça a mais
importante de quantas, grandes e pequenas pela ex­
tensão e por seus signatários, discutiram o pro­
blema relevante. O compromisso do Prof. Frank
— que parece às vezes um comprometimento — obe­
dece a ligações filosóficas e políticas: materialismo
dialéctico e socialismo marxista. E tão patentes que
por certo estão na base da deliberação da casa edi­
tora da versão francesa de 1938 de não a reim­
primir, apesar do seu incontestável mérito, por con­
tra ria r o carácter de quieta neutralidade da Biblio-
thèque de Philosophie Scientifique.
Ao seu compromisso deve o autor a desenvoltura
da sua investida com os psitacismos metafísicos,
que se infiltram na especulação de base científica.
Ele chama-os de resíduos idealistas, segundo a te r­
minologia oficial do partido; pode-se dizê-lo em bom
português papagaísmos ou sonoridades vãs de papa­
gaios. Simples tradução do étimo grego psitacon.
O carácter polêmico da obra quebra-lhe o fio do
pensamento e torna difícil uma leitura sequente
dessa defesa cerrada da causalidade, através de in­
cidências numerosas e de sectores diversos.
A ciência, segundo Frank, tem um fim utilitário,
a previsão do futuro no mundo da actividade feno­
SÍM B O LO S d M IT O S 133

menal, para servir um objectivo concreto. E o seu


processo consiste na coordenação entre os símbolos
privativos de cada campo e os dados imediatos da
experiência. Os símbolos privativos da física são as
coordenadas e as velocidades dos pontos materiais,
os graus de temperatura, etc. Depois exemplifica o
funcionamento da sua concepção, nos vários domí­
nios, com solidez de saber especial, sempre debla-
terando contra as fórmulas gerais, tão gerais que se
tornam abstractas e já não se pode verificar se são
verdadeiras ou falsas. E chega ao princípio de cau­
salidade, em que estão implícitas várias leis, mas
que é muito difícil formular, porque a física dos
quanta mostrou que os valores infinitamente peque­
nos se lhe escapam, tanto na fórmula absoluta de
Laplace, sumo pontífice do determinismo universal,
quanto na fórmula mais conciliadora de Boltzmann,
que expressa apenas probabilidades de repetição de
certa variante, como as estatísticas em que se funda
o exercício das companhias de seguros.
Sempre a grande altura e percorrendo os mais
variados campos, sem esquecer o da história, o
Prof. Frank demonstra a validade universal do prin­
cípio de causalidade, para o mundo macroscópico e
para o microscópico.
A incerteza, levantada pela física de Planck e
promovida a novo princípio por Heisenberg, não o
comove. Mantém sempre a sua confiança no determi­
nismo universal, só com certa fluidez na sua adapta­
ção e verificação. B arra a passagem a todas as for­
mas de indeterminagão, milagre, acaso, alma do
184 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

átomo, intenção finalista, etc., e conclui por afirm ar


que só no esquema que a matemática nos apresenta
de dois estados a descrição pode ser perfeita; na rea­
lidade experimental ela é apenas aproximativa. Por
isso, o futuro imediato dos sucessos pode às vezes
aparecer como imprevisível e abalar os créditos do
princípio de causalidade. Tudo se passa como dan­
tes, como em todos os tempos, porque sempre se
reconheceu que o esquema da matemática purificava
a realidade. Agora os vínculos dos símbolos com os
dados experimentais são outros, porque os experi-
mentadores atingiram a observação directa e quase
perfeita das escórias que a matemática eliminava
e que sugerem surpresas e aparências de indetermi-
nação.
A olhos profanos, mas respeitosos, a obra do
Prof. Frank afigura-se uma verdadeira enciclopé­
dia histórica da vida e das aventuras do princípio
de causalidade, documento exemplar da moderna
filosofia científica.
Pascual Jordan propõe para estas infracções do
princípio da causalidade no mundo microfísico uma
explicação nada transcendente. Seriam devidas a
perturbações introduzidas no decurso dos fenôme­
nos pelo próprio observador, com sua aparelhagem
desproporcionadamente inadequada. Tal despropor­
ção existe ainda nas pesquisas da macrofísica e da
astronomia, mas em sentido inverso e já inócuo.
Quem creria que um telescópio apontado a uma
galáxia pudesse aíterar-lhe os movimentos? As par­
tículas atômicas são sensíveis à nossa presença com
8 I M B 0 L 0 S <& M IT O S 135

aparelhos enormes; os astros não dão por nós, nem


pelos nossos gigantescos instrumentos.
«Não se tra ta para nós de tom ar conhecimento,
por assim dizer, de maneira contemplativa, de um
facto que tem, independentemente do acto de obser­
vação e em todo o estado de causa, uma existência
objectiva; mas de colaborarmos nós mesmos nos
factos que sob a nossa observação caem. Segue-se
daí que a exacta e infalível causalidade nossa conhe­
cida na microfísica se enfraquece até ceder o lugar
a simples leis estatísticas em que se articulam di­
versos actos de observação. Contudo, não caímos
em microfísica sobre terreno que se mova por entre
ideias vagas, frouxas e hesitantes, mas podemos
precisar o que acima indicámos sob forma de teoria
matemàticamente exacta, que permite dominar com
certeza sobre o plano teórico uma extraordinária
multidão de factos experimentais concernentes à
física atômica.»
Assim se encontram Philipp Frank e Pascual
Jordan.
Consta esta interpretação do seu livro Die Physik
und das Geheimnis ães Organischen Lebens, com
uma autorizada tradução francesa.

A crise dos primeiros princípios deriva necessà-


riamente da revolução científica. Foram aprioristica-
mente formulados pela introspecção atenta só aos
processos da razão e perante um mundo ilusório de
136 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

formas, cores e movimentos grosseiramente obser­


vados. Além de apriorísticos, guardam ran cunho
psicológico humaníssimo e estranho à realidade da
própria natureza. A ciência moderna avançou muito
no conhecimento objectivo ou extra-humano da na­
tureza, o que se reflecte na modelação da consciência,
desde logo no seu funcionamento puramente inte­
lectual. Os primeiros princípios são todos abalados
cada um de sua maneira; só se salva o de causali­
dade, qual trave mestra de grande arquitectura.
A causalidade desempenha papel tal na consti­
tuição do patrimônio do conhecimento e da nossa
consciência do universo que deveria ser promovida
a vínculo essencial do homem com esse universo.
E tal vínculo conferir-lhe-á uma alta dignidade cós­
mica. Então, revistos ou reformados, os primeiros
princípios terão carácter de universalidade — como
se preceituava dantes, sem se ver que apriorismo
humano e universalismo cósmico não se podem con­
ciliar.
m

Quem não tem acesso aos templos da alta ciên­


cia ou laboratórios, onde ela se construi, deve con­
tentar-se com a sua meditação e a memória da sua
experiência vital. Para o pobre solitário ensimes-
mado, a causalidade não era um princípio formu-
lável em meia dúzia de palavras, qual mandamento
de catecismo. Esse laconismo simplista proviria de­
certo da velha mentalidade metafísica e dogmática;
prestou seus serviços, mas está hoje superado pelo
SÍM B O L O S <6 M ITO S 137

aprofundamento da observação dos fenômenos, que


nalguns casos parece te r atingido o absoluto, ou a
substância — aquilo que está e permanece sob os
fenômenos. A causalidade é uma condição constante,
que nos rodeia e sob formas várias está presente
em toda a vida universal, como a luz e o calor. Cau­
salidade significava para esse leigo um conjunto
circunstancial e convergente para um objectivo ou
resultado, que é o efeito. Mas entre o agrupamento
das circunstâncias, vulgarmente chamadas de con­
dições, e o efeito resultante há um mundo complexís-
simo e muito susceptível de alterações. Se nós as
pudéssemos inventariar, só conseguiríamos expressar
as suas modalidades de combinação por meio da
fórmula matemática das permutações dos grupos.
Deve-se dizer antes causação para expressar esse
encontro constante, mas muito variável, de factores
determinantes, que disparam o efeito. A causação
ó uma realidade constante da diferenciação da ma­
téria e do equilíbrio compensador da energia; iden­
tifica-se mesmo com a conservação da m atéria e
da energia, e com a incessante transm utação dos
elementos e seus derivados, e portanto a finalidade
universal. O que se tom a preciso para a compreen­
der e sentir é desumanizá-la ou mundificá-la de an-
tropocentrismos, Tudo se passou assim antes da
presença da espécie humana e tudo se passará assim
quando ela desaparecer.
Mas a observação humana só atinge as manifes­
tações macroscópicas da causação, em que parece
haver componentes dominantes no conjunto causai
138 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

e bastantes para nos satisfazer a curiosidade e o


nosso egoísmo utilitário.
O grau de aproximação utilitária e de probabili­
dade contingente do nosso conhecimento da causa-
ção só nos salta à vista quando afundamos no
mundo atômico.
Se a causação é o próprio desenvolvimento dos
fenômenos ou o fluir da própria realidade, não pode
falhar, como o Sol não poderia deixar de aquecer e
iluminar.
Segundo alto
Primeiros princípios abalados — uns es­
quecidos, outro consolidado na sua realeza,
após o fracasso de uma rebelião, e ainda outro
a dar sinais de despertar do seu letargo, o de
finalidade — e os limites do conhecimento
transpostos para distâncias a perder de vista,
tudo isto significa um prodigioso alargamento
dos territórios do saber. Os cientistas fizeram
como os senhores feudais dos séculos góticos,
desprezando as delimitações reais ou como os
pioneiros do Novo Mundo, deitando a mão às
terras-de-ninguém.
Deste portentoso feito, superior, gloriosa­
mente superior, a todas as formas do direitoy
que neste caso eram prescrições teóricas de
psicolopia e metafísica, depreendem-se duas
conclusões:
l . a A oportunidade urgente de revisão da
teoria do conhecimento, a de Kant, única rei-
SÍM B O LO S do M ITO S 139

nante ainda no mundo acadêmico e universi­


tário. Mas partindo do próprio Kant, resti-
tuído à sua íntegra autenticidade, e prescin­
dindo de toda a crítica posterior, com suas
correcçõeSy adições e glosas, e só tomando
como alvo de referência os progressos da ciên­
cia, os factos positivos, os métodos e os depoi­
mentos dos próprios cientistas, que não fize­
ram metafísica, só fizeram física, química e
matemática. (V. R. Bayer, Epistémologie et
logique depuis Kant, 195%.)
2.a A oportunidade ainda mais urgente de
integrar todas essas conquistas novas numa
síntese crítica para alicerce da filosofia e da
educação próprias da nossa época, de passo
ritmado com a marcha das ciências.
Kant pouco ou nada contribuiu pratica­
mente e de forma directa para esse floresci­
mento das ciências; a sua genial contribuição
foi para o conhecimento, mais íntimo e mais
límpido de bastardas aderências, do próprio
conhecimento, sua elaboração e seus processos
mentais; decompor um espesso conjunto nos
seus elementos. Representa, por sua filosofia
crítica, sua incessante apologia da liberdade
e seu afoito exercício dela, o último acto da
grande Revolução Alemã.
Perguntar-se-á agora: mas houve uma Re­
volução Alemã? Houve, de alcance tão pro­
fundo como a Revolução Inglesa, política e
mental, que formulou a liberdade cívica e em
140 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

certa medida preparou o advento do Tcantismo;


de alcance tão ruidosamente espectacular como
a Revolução Francesa, que, fiel ao caracter
humanizador da gente da França, popularizou
e mundiálizou essa liberdade política; e ainda
de alcance tão radical como a Revolução Rus­
sa, que reformou a face do mundo e desorien­
tou com seu magnetismo todas as bússolas.
Essa Revolução Alemã foi a Reforma Re­
ligiosa do século xvi, que estabeleceu na Eu­
ropa a liberdade de consciência. Revolução
fidelíssima, por seu carácter violento e ful­
minante, ao gênio e à função histórica do povo
germânico.
Qual foi essa função no conjunto da civi­
lização europeia? A de açoite de Zeus, com
intervenções cruéis e decisivas. A primeira
afirmação da força incontrastável de tal açoite
de Zeus, manejado com voluptuosa e sádica
destreza, mostrou-se no século v, com a des­
truição do Império Romano do Ocidente ou
da civilização helenõ-romana. Logo começou
a lenta reconstrução do mundo ocidental,
que viria a ser o solar da civilização romano-
-germânica, românica pelo aproveitamento dos
materiais da demolição e germânica pelo en­
xerto cultural, pelo rejuvenescimento è pelo
estilo arquitectónico.
Quando o cristianismo foi oficializado como
religião dos Estados ocidentais, começou a sua
transformação noutro credo, a religião cato-
SÍM B O LO S ã M IT O S 141

Uca, política e autoritária. Os primeiros con-


cílios, definindo e organizando o corpo de dou­
trina que reinaria por dez séculos, representam
as espias de distensão de um formidável toldo
de cobertura que dominaria essa nova civilir
zação ou cultura, limitando-lhe ou balizando-
-The o horizonte e os movimentos. Assim se
construiu a opulenta civilização europeia, que
se iniciou por essa fase gótica ou teocrático-
-feudal. No século xh atingiu o auge do seu es­
plendor. Catedrais de sublime beleza, castelos
de imponente força, a cavalaria e o culto da
mulher, levado ao extremo da «liberté d’aimer»
poeticamente, formam a floração opulenta
dessa primeira idade da cultura europeia. Pri­
meira, não média, porque nada neste mundo
principia pelo meio. Durante esses dez sé­
culos de estreita cooperação germano-latina,
ainda que não pacífica, exemplificou-se talvez
como nunca a índole contraditória do homem}
porque nessa idade coexistiram a barbárie
feroz dos costumes e o mais estreme idea­
lismo, a impulsividade da força bruta e o
escrupuloso acatamento do direito, mesmo em
símbolos, venerados por todos, como actos
religiosos.
No século xv a fase germano-romana da
civilização europeia entrou em liquidação. De­
pois de ensaiar tipos vários de estrutura po­
lítica e econômica, veio a parar na formação
dos Estados nacionais, com o fortalecimento
142 F ID E L IN O D E FIG U E IR E D O

da realeza e a aliança 'provisória de uma


classe nova, a burguesia. O ingrediente prin­
cipal dessa longa elaboração cultural, a reli­
gião, entrava também na sua crise de crédito
e ascendente. Então o povo germânico empu­
nha pela segunda vez o açoite de Zeus e dis­
solve a cooperação criadora romano-gótica.
A voz de Lutero começa a longa e sangrenta
Reforma religiosa ou a grande Revolução
Alemã, que por caminhos pedregosos e dolo­
rosos conduziu à libertação da consciência e
a um súbito crescimento intelectual, só com­
parável ao dos dias de hoje.
Cada membro da dissolvida cooperação ou
aliança seguiu seu caminho: Germanos e seus
ramos ao norte, dentro do molde protestante
com suas variantes; Latinos ao sul, resistindo
à modernização da sua fé e quanto possível
à criação da ciência nova. Foi a zona da Con-
tra-Reforma.
Já antes se patenteava bem francamente
a diversa índole cultural dessas duas zonas
componentes da civilização europeia, a do
norte impetuosa e violenta, a do sul mais
compreensiva e lenta. E um bom exemplo dá-o
a própria resistência à teocratização dos Es­
tados: os Germanos com as lutas do sacer­
dócio e do império, que chegaram à guerra,
entre Henrique IV e Gregório V II; os Italia­
nos pela poética abnegação do franciscanismo,
a seu modo uma volta à autenticidade cristã.
SÍM B O L O S d M IT O S , 143

Houve afluxos e acções de presença ou ca­


talíticas de vária proveniência: a súbita valo­
rização da cultura antiga, difundida pela im­
prensa, e, nas duas penínsulas meridionais, a
vizinhança batalhadora da civilização árabe.
Daí resultou o carácter de cruzada religiosa
que a civilização europeia teve de assumir
anacrònicamente ao sul e o empobrecimento
de conteúdo do humanismo: em vez de con­
centração das atenções nos valores terrenos
e humanos, diametralmente oposta à longa
alienação reinante na idade gótica, a simples
erudição filológica nas letras da Antiguidade.
Não era humanista quem amava em com­
preensão os valores humanos e por esse gene­
roso sentimento adquiria capacidade para pre­
gar e entender os valores constituídos por
uma grande experiência humana, a dos A nti­
gos; era-o apenas quem sabia grego e latim,
os ensinava e preparava os textos recupera­
dos. Ora a palavra «humanismo» fora criada
para designar uma atitude da mente e da sen­
sibilidade, ampliadas na sua simpatia, no seu
espaço e no seu tempo. Desta nasceu a curiosi­
dade geográfica, bem servida pelos Portugue­
ses, que não The viam todo o alcance.
Dessa grande Revolução Alemã, a filosofia
crítica de Kant foi o último eco renovador —
distante plicatura ou contraforte de porten­
tosa montanha que surgisse na modelação
tectónica. Nela predominam em estreita
144 F ID E L IN 0 D E F IG U E IR E D O

aliança o esforço libertador da inteligência,


o zelo religioso em pureza pietista e a mais
alta preocupação ética. Kant não passou à
história como insigne latinista ou helenista>
mas constitui um paradigma imortal do ver­
dadeiro humanista, pelo seu amor ilimitado
a todas as formas do saber e por sua solida­
riedade humana e, sobretudo, pela sua obra
de libertação do conhecimento. Depois dele}
os pensadores e cientistas encontraram os seus
possíveis caminhos desimpedidos de obstá­
culos fantasmagóricos ou papões. Como ho­
mem, Kant é um irmão desse outro asceta
ou santo laico — Bento Espinosa, glória do
sangue português.

A segunda conclusão do súbito alargamento des-


lumbrador dos territórios dominados pelo conheci­
mento do homem será a patente necessidade de ela­
borar uma série de sínteses que sobrepostas consti­
tuam uma concepção nova do universo.
Os historiadores autorizados da filosofia europeia
correlacionam as concepções filosóficas e o estado
coetâneo das ciências. Um paralelismo nem sempre
bem patente, porque a imaginação metafísica varia
mais fàcilmente do que progride a conquista de fac­
tos novos da natureza. Delirar parece menos difícil
que saber. Todavia, esse paralelismo evidencia-se na
mente de alguns filósofos que também foram homens
wr^ w
I
vpiüp iwçm/rnmmt
SÍMBOLOS d MITOS 145

de ciência, como Pitágoras, Aristóteles, Leibniz,


Pascal. Mas só modernamente se ostentaram dois
aspectos da história da filosofia: testemunhar e ter
de expressar verdadeiras revoluções científicas, tais
as da primeira metade do século xix e a que está
decorrendo aos olhos de todos, graças ao carácter
sensacional das suas conquistas e à vertigem das
comunicações. Coisas de tamanho vulto que realizá-
-las e filosofá-las já não cabia nas mesmas inteli­
gências. Os homens de ciência escrupulizam muito
em especular sobre as suas descobertas e carecem
de agilidade expressiva e também de preparação nas
disciplinas humanas. Fora do seu laboratório sen-
tem-se hóspedes contrafeitos, se penetram noutros
domínios, como os homens de letras são canhestros
no seio dos laboratórios, quando acreditados apenas
por um conhecimento literário ou livresco desse
mundo novo e, ainda assim, de segunda ou terceira
mão.
Grande parte da responsabilidade nessa dicotomia
de inteligência em hemisférios cabe ao erro pedagó­
gico da divisão da orgânica escolar em letras e ciên­
cias, erro em conflito com a própria realidade. Tudo
é m atéria de conhecimento científico, o que respeita
ao universo cosmológico e o que respeita ao universo
antropológico. As chamadas letras, assim separadas
e estudadas como impressionismo de pura falação
estética, não contêm nenhum poder de utilidade cog­
nitiva, só mutilam a mente e cavam um fosso entre
os homens de pensamento.

S. M. — 10
146 F ID E L IN O D E FIG U E IR E D O

Um erro pedagógico a remediar, para o qual


mais adiante se apresentará a mezinha adequada.
Depois do intenso movimento científico da França,
começado após a libertação do fátuo e sórdido rei­
nado de Luís XIV e brilhantemente extensiva à pri­
meira metade do século xix, a conjuntura histórica
não podia ser mais propícia a um esforço de inte­
gração sintética para ordenar e delinear toda uma
nova imagem do mundo. E Comte surgiu, com sua
largueza de vistas, sua confiança optimista na inte­
ligência humana.
Tão optimista que cria houvesse a civilização
— a europeia, única de que se falava então— atin­
gido o estudo de positividade definitiva e se pudesse
elaborar uma síntese também definitiva. Optimismo
cândido que logo aspirou, perante o espectáculo de
um mundo em crise desordenada pela implantação
do regime liberal, a constituir uma ciência nova, a
sociologia, sobre a qual se havia de fundar uma
política nova, como ciência de previsão.
A classificação das ciências por ordem de graus
de complexidade e de possibilidades de previsão, em
ordem inversa, tinha grande lugar no seu sistema
e passou a tê-lo desde então na epistemologia ou
na lógica, porque traduzia uma necessidade impe­
riosa de inventariar o saber apurado. Necessidade
exigente que já não se poderia contentar das velhas
sumas dos séculos góticos, nem da dicionarização
das noções, tipo Enciclopéãie méthodique, de D’Alem-
bert, de gloriosa memória. Agora desentranhava-se
desse imenso acervo de factos novos e de explicações
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SÍMBOLOS ã MITOS 147

novas toda uma concepção filosófica do mundo e da


vida, um conjunto global e manuseável, aplicável a
todos os actos da vida e em todos os momentos. E ra
a hora oportuna. Por isso o positivismo se expandiu
e animou os esforços de renovação de que palpitava
a Europa, depois da Revolução de 1848. Apesar da
amplitude que lhe patenteou Augusto Comte, o posi­
tivismo tendia para um estreitam ento sistemático
de catecismo. E ra sobretudo um ponto de vista, um
método de considerar os problemas, uma expectativa
sempre racional e uma confiança inabalável na ciên­
cia, que naturalm ente envolveu o horror desdenhoso
pela metafísica e pela superstição. Estas represen­
tavam idades mentais, ultrapassadas pelo estado po­
sitivo. ^
N a tradição filosófica francesa havia um prece­
dente, ainda que restrito ao mundo geográfico e às
noções muito confusas do século xrv: Pierre d’Ailly,
a águia de França, que na sua Imago Mundi fez um
esforço de integração sintética de grande influência
no desenvolvimento da curiosidade geográfica da
centúria imediata. Colombo muito lhe deveu dos seus
ambiciosos sonhos de navegante metafísico, até que
os práticos portugueses e espanhóis o aproximassem
da realidade.
A Inglaterra da prim eira metade do século xix
atravessa uma situação intelectual análoga à da
França: ponto de chegada ou plena floração de
um intenso movimento científico partido de Newton
— nada menos! — e acompanhado de outro superior
movimento filosófico de apologia da sensação como
148 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

fonte prim ária do conhecimento e da observação


experimental como único método seguro. Locke e
Hume irradiaram influência profunda sobre todo o
continente, pelo menos nas regiões menos juguladas
pelos obstáculos tradicionais. De um modo geral, a
conjuntura inglesa diverge da francesa pela maior
altura e pelo predomínio da física de vocação tecno­
lógica, logo endereçada ao fomento industrial, que
produziria a profunda revolução econômica e a hege­
monia oitocentista da Grã-Bretanha, em todos os
campos de acção. Também teve menos doutrinadores
de reformas sociais, porque os reformadores repre­
sentavam a heterodoxia individualista e o carácter
inglês só era individualista no convívio de outros
povos.
Owen foi uma brilhante excepção, como pai do
socialismo inglês. Antes só houvera o movimento
luddista, que procedia de Ned Ludd e tinha carácter
negativo: simples destruição das máquinas criadas
pela tecnologia de base científica recente. Ao passo
que em França, com sentido prático ou carácter
utópico, não faltam por esse tempo os reformadores
sociais: Blanqui, Pecquer, Proudhon, Cabet, Leroux,
Louis Blanc e Saint-Simon, mestre de Augusto Comte.
E stas duas conjunturas mentais sugeriram duas
filosofias irmãs de síntese, o positivismo comtiano
e o evolucionismo de Spencer. Irmãs pela filiação,
mas de índole bem diversa. O comtismo é que exem­
plifica patentemente o esforço de integração sinté­
tica, enquanto o evolucionismo demonstra uma ex­
traordinária capacidade sincretista e generalizadora,
SÍM B O LO S <fi M IT O S 149

a par de uma rara imaginação construtiva. Em tomo


das sensacionais ideias de Darwin sobre a origem
das espécies zoológicas — evolução diferenciadora,
adaptação ao meio, luta pela existência, sobrevivên­
cia dos seres mais aptos, crescimento gradual da
heterogeneidade que se desentranha da primitiva
homogeneidade, o engenheiro Herbert Spencer arqui-
tectou uma concepção da vida e do mundo, incorpo­
rando os dados últimos ou mais determinantemente
característicos das ciências e mantendo sempre uma
severa unidade de estilo. E como a renovação cien­
tífica enchia a atmosfera, à classificação das ciências
ou ao inventário sistemático do saber voltou, mas
também aí se apartando de Comte. O seu escrito a
esse respeito revela mesmo um intuito polêmico.
Entre as duas filosofias irmãs de sintetismo há
outra diferença bem característica: a atmosfera emo­
cional criada pela obra de Darwin, que suscitou reac-
ções coléricas por apear o homem da sua majestosa
realeza. Muitos dos argumentos aduzidos provinham
da ofensa da dignidade do soberano apeado.
Agora a situação é muito diversa. A física, hoje
tão relevante como a biologia há um século, nada
rebaixa no homem, antes lhe conferiu poderes de
prodígio e razões novas de confiar na sua inteli­
gência, na sua perseverança heróica. Um heroísmo
de altura maior que a do marcial, um heroísmo ani­
mado por tendências sobre-humanas ou de possível
desumanização, não para regredir à condição si-
miesca, segundo temiam os adversários do dar-
winismo, sim para ultrapassar o próprio homem.
150 F ID E L I NO D E F IG U E IR E D O

Na era espacial deve haver concepções filosó­


ficas novas. E cabe aos que sentem com profundeza
e identificação os ventos hodiernos, transformadores
como nunca sopraram furacões sobre a Terra, orga­
nizar essa visão actual do mundo cosmológico e do
mundo antropológico. Precisa-se voltar à noção spen-
ceriana da filosofia como o saber totalmente uni­
ficado. A esse movimento caberia bem o nome de
«neopositivismo» — se a designação «positivismo»
não tivesse aderências indesejáveis — as suas dege-
nerações pseudo-religiosas, aquele delírio de Clotilde
Vaux como Ente Supremo e Augusto Comte grão-
-sacerdote, e também as deformações em política
partidária por catecismos tão dogmáticos e estreitos
como o de Carlos Borromeu.
Em Portugal, o positivismo respaldou a propa­
ganda republicana. P ara Teófilo Braga converteu-se
numa espécie de molho inglês, que se junta aos pratos
mais variados e lhes dá um sabor uniforme que se
adivinha antes de os provar. E para Pereira de Sam­
paio (Bruno) ampliou-se hibridamente num cacha-
rolete heteróclito que até admitia ingredientes anti-
positivistas. Amorim de Carvalho, com sua mestria
crítica, o demonstrou no livro que lhe consagrou:
O Positivismo Metafísico de Sampaio Bruno.
Eclecticismo e sincretismo não têm reputação
melhor, o segundo até pela etimologia. Neste caso de
escolha da designação para um movimento integra­
dor em sobreposição de sínteses críticas das ciências,
desde a microfísica até à astrofísica e à cosmologia,
o caminho seguro parece que é esperar que a coisa
SÍM B O LO S d M IT O S 151

nasça e por seu próprio carácter sugira o nome.


Entretanto poderia servir uma alcunha: filosofia
crítica de integração.
Alguns metafísicos advertiram-se da presença
dessa tendência integracionista dos dias de hoje e
apoderaram-se dela como nova oportunidade para
as suas acrobacias verbais, talvez para uma outra
era de grandes sistemas. E logo criaram a designa­
ção holismo e holística, inexacta na forma e no
fundo, pois de holos, grego, inteiro, forma-se ho-
loísmo e holoística; e o que se ambiciona agora não
é a simples presença da ideia de conjunto ou totali­
dade. Essa dominava todos os velhos sistemas desde
Aristóteles. Também se não pretende fazer lembrar
que a síntese como quadro provisório e fim ideal
domina a prática de todas as análises — ideia que
teve seu incansável paladino em Henri Berr, já re­
cordado. O que se pretende agora é integrar sintè-
ticamente, descobrindo-lhes os vínculos naturais,
todas as conquistas novas das ciências, de modo a
constituir uma imagem cosmológica actualizada e
uma reforma total dos comportamentos humanos,
guiados pela axiologia ou filosofia dos valores, que
dessa imagem logicamente se extrai. Simples espe­
culação em torno da física moderna e não devaneio
sonhador depois ou para além da física. Não se visa
a uma nova Summa, porque somar e totalizar é ape­
nas juxtapor e estabelecer continuidade na conta­
gem; e a verdadeira síntese abrevia e absorve pela
simplificação natural. Um exemplo desse tipo de
síntese da realidade dão-no a absorção da química
152 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

pela física e a presença da matemática em quase


todas as ciências. Não se tra ta de expedientes pro­
cessuais, mas de descobrimento de vínculos positivos.
Essa nova filosofia científica responderia às duas
grandes interrogações de toda a filosofia realista ou
positiva: que é o Cosmos? Que é o homem? E dessas
duas perguntas ou problemas fundamentais brotaria
outra interrogação ansiosa, mas já no plano moral
e educativo. Como deve comportar-se esse homem,
assim retratado num mundo, assim compreendido
e descrito? A resposta a esta curiosidade pragmà-
ticamente imperativa formula um conceito primor­
dial ou nuclear da educação considerada como ins­
trumento da inevitável assimilação de todos os seres
humanos recém-chegados à vida social, nus, de olhos
fechados e cabeças vazias de quaisquer noções guia-
doras, porque a civilização ou a cultura não se trans­
mite hereditàriamente, há-de ser embutida na cons­
ciência à força, por meio da educação.
Educam e assimilam o homem todas as influên­
cias que se exercem sobre ele. A criação materna, o
ambiente social e a escola, em seus vários graus.
Mas a mais importante influência exerce-a a escola
média ou liceal, pela duração longa do seu curriculum
e pela época de maleabilidade moral dos indivíduos,
durante a qual a recebem. Constitui o verdadeiro
grau da formação humana se tiver por núcleo a tal
concentração de vitaminas intelectuais e morais, a
imagem-força: imagem do mundo actualizada pe­
rante as ciências cosmológicas e antropológicas, ou
da natureza e do homem, e força pelo dinamismo
SÍM B O LO S á M ITO S 153

voluntarista que a impregna e lhe imprime sentido


activo. A continuidade educativa entre os vários
graus, do infantil ao universitário, é dada pela omni­
presença dessa imagem-força, que alarga o seu raio
ou o tamanho do seu desenho e a riqueza do seu
conteúdo, de acordo com o avanço e portanto para­
lelamente à idade do educando. Tudo isto já foi
exposto noutros lugares: Menoridade da Inteligência
e Interpretações. Não se pode exigir que repita as
suas ideias a quem já lhe custou expô-las uma só
vez. Certo que a públicos surdos se deve g ritar mais
de uma vez o que se pretende fazê-los ouvir...
A introdução desse conceito fundamental, a sua
permanência e o alargamento crescente do seu raio
justificam-se fàcilmente: de todos os meios educa­
tivos a instrução ou o ensino do saber capitalizado
em cada época oferece a melhor maneira de influir,
elevar e conduzir uma consciência; e se essa instru­
ção transm itida se organizar metódica e racional­
mente na concepção cósmica e antropológica típica
do tempo do educando, assimila-o ao plano social su­
perior. Haverá em todos um sentimento de contem-
poraneidade que lhes despertará vocação fraternal
porque vêem o mundo e a vida com os mesmos olhos.
Inútil lembrar que tal fundamentação nova en­
volverá uma estrutura orgânica completamente nova
também, com supressão de muita m atéria estéril ou
nociva ou mesmo embrutecedora. Coisa muito difícil
e demorada pela incompreensão dos empregados pú­
blicos, em geral atrasados em relação aos tempos
que fluem impiedosamente e sem se deter para ex­
154 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

plicar o seu própro sentido. Empregados públicos —


designação que ele dava a quantos intervém na
govemação do Estado, em qualquer altura da escala,
com o papel primacial de conservação e defesa da
imobilidade.
Menos difícil lhe parecia, até no pequeno hori­
zonte português, a empresa gloriosa, mas por sua
alta zona teórica, inatingível às perturbações dos
empregados públicos, a empresa gloriosa de orga­
nizar uma filosofia de síntese científica: uma — por­
que os mesmos m ateriais permitem construções di­
versas. Quase contemporâneos e empregando os
materiais típicos da sua época foram o positivismo
e o evolucionismo. Bastou a diferença do meio e o
aparecimento da obra de Darwin para os tornar
fisionòmicamente diversos.
H á por aí, vogando fora da universidade, que não
dá por eles, muitos talentos disponíveis de tendência
filosófica — grande novidade no pàtiozinho nacional.
Desperdiçam-se em actividades paracientíficas ou
parafilosóficas e alguns na babugem dos fascículos,
mas o que é autênticamente seu, livros e artigos
quase sem leitores, descobre possibilidades e anelos
de alto voo. Bastar-lhes-ia um mergulho na grande
ciência moderna para lhes revelar todos os mate­
riais de produção exótica de que poderiam lançar
mão. E também o municiamento dos idiomas, em
que a ciência nova se expressa, para lhes ampliar a
documentação básica.
Uma filosofia científica bem do seu tempo pode­
S ÍM B O L O S <& M IT O S 155

ria abrir algum caminho de comunicação entre a


inteligência portuguesa e a alta cultura mundial.
As tradições de audácia, bravura e espírito de
sacrifício do carácter português apenas se adapta­
riam a um conceito novo do heroísmo, mais fecundo
e mais nobilitador. Servir a cultura humana também
proporciona descobrimentos de mares nunca dantes
navegados.
Muitos pequenos serviços podem compor grandes
serviços e até deles decorrer, quando os grandes
excedem as forças de quem os acomete. Bartolomeu
Dias não pôde atingir a Índia, mas achou e dobrou
o cabo Tormentório. E é da tradição nacional em­
preender coisas desproporcionadas com as forças
disponíveis. A falta de sentido da realidade levou
os Portugueses corajosamente a desastres catastró­
ficos: Toro, Tânger, Alcácer Quibir e Goa. Seriam
capazes de fazer frente a todos os Estados e raças
de continentes inteiros, marchando de olhos venda­
dos para um suicídio épico.
Construindo pensamento sobre ciência, ninguém
morre; só descobre razões de viver uma vida então
melhor entendida.
Nos países históricos, muito históricos, a evoca­
ção de exemplos do passado vale por argumento su­
premo.
Ora a elaboração de uma filosofia crítica de sín­
tese científica constituiria uma façanha heróica, da
qual, mesmo não se perfazendo, poderia surgir al­
gum cabo Tormentório, logo transmudado em cabo
da Boa Esperança: nem mais nem menos que a
156 F ID E L IN 0 D E F IG U E IR E D O

descolonização intelectual da velha pátria, há séculos


a viver de ecos e reflexos da cultura original, criada
para além dos Pirenéus... O que poderia suceder era
que o gigantesco e ousado empreendimento encon­
trasse resistências nesse mundo, habituado a negar
aos povos ibéricos a necessária capacidade para o
governo autônomo da sua inteligência, como nume­
rosos observadores negam hoje aos povos coloniais
a preparação necessária para o exercício da indepen­
dência. Têm razão, mas esquecem que a liberdade
só se aprende, se conquista e se conserva pelo exer­
cício dela e sua defesa constante. Ramón y Cajal
desinteressou-se das polêmicas sobre a presença ou
falta perene de uma ciência espanhola, não pediu
licença aos condutores da alta ciência mundial, pôs
mãos à obra e fundou a neurologia moderna. Tam­
bém Egas Moniz, político em ostracismo perpétuo,
sem ajuda, sem licença dos empregados públicos e
críticos cépticos, deu passos agigantados na neuro­
cirurgia.
Haveria suas resistências na fase inicial porque
essa construção tinha de empregar materiais exó­
ticos e ofereceria o aspecto de' uma restituição de
coisas emprestadas, ainda que bem conservadas ou
mesmo enriquecidas no seu conteúdo por uma boa
administração.
E assim se repetiria inicialmente, mas só inicial­
mente, o caso das criações literárias de inspiração
exótica — o lirismo provençalesco reduzido a um in­
teresse filológico; o petrarquismo camoniano; o cul-
tismo gongórico; o romantismo de G arrett; o histo-
8 I M B 0 L 0 8 <è M IT O S 157

ricismo de Herculano; o filo s o fis m o poético de


Antero; a vibração social e política da poesia de
Junqueiro; o simbolismo de Eugênio de Castro, etc.,
para a crítica geral apreciados apenas como irra­
diações de influência das literaturas verdadeiramente
criadoras ou como solidariedades morais daquela
Weltliteratur, que nos recompõem dia a dia os com-
paratistas.
Porém, pouco a pouco, esse esforço novo de cola­
boração autêntica na gesta da alta cultura seria re­
conhecido. Em prosa bárbara, exceptuado João de
Barros, se continham as revelações dos novos acha­
dos geográficos e em forma ensinada pelos Antigos
e pelos Italianos se continha a m atéria épica dos
Lusíadas, que exemplificava uma nova concepção
dos valores heróicos e humanos — e tudo isso foi
descortinado e reconhecido e forma hoje o quinhão
principal do patrimônio literário do idioma por­
tuguês.
Tente-se, pois, acrescentar com a tradicional au­
dácia esse patrimônio. A crítica mundial descobrirá
e exaltará qualquer achega, como descobriu e apon­
tou o opúsculo de Francisco Sanches, antes que os
próprios Portugueses.
O carácter crítico desse Quod nihil scitur — que
o próprio eremita fizera traduzir e publicara na sua
Revista de H istória— constituiria um belo perga­
minho a alegar. Porém, lembrando sempre que a
erudição em história da filosofia ainda não é filo­
sofia e pode até amortecer o impulso da especulação
original. No ambiente português moderno existem
158 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

já afirmações relevantes de inquietação filosófica,


todas de nobre fonte, mas nenhuma brotando da
concepção nova da natureza, delineada pelas ciên­
cias e mirando francamente ao futuro, com propó­
sitos de dinamismo reformador.
E esse objectivo pragmático reformador afirmar-
-se-ia predominantemente na interpretação socioló­
gica ou estimativa da imagem do mundo sobre os
dados da ciência delineada ou, mais exactamente, na
discriminação de valores práticos úteis, edificantes
e condutores — destacados pela reflexão filosófica.
A epistemologia analisa e apresenta os critérios
da verdade; a axiologia elabora uma teoria do valor
e propõe critérios de avaliação que nos guiem os
passos. Basta percorrer com atenção crítica um jor­
nal diário, do título ao último anúncio, ou ouvir
uma emissão radiofônica, para se concluir a carên­
cia de uma disciplina da hierarquia dos valores que
regem os tempos de hoje. Anarquia, até à inversão
total, por ignorância, suficiência, paixão e interesse.
Os homens sempre se conduziram por valores
preferenciais que naturalmente haviam constituído
antes, espontâneamente ou reflectidamente. Mas só
depois da crítica de Nietzsche à «tábua dos valores»
do seu tempo se disciplinou em especialidade filo­
sófica o estudo da actividade valorativa. Logo se
criou uma designação nova e os metafísicos imagina­
tivos caíram em cima desse novo departamento,
acumularam bibliografia pesadona, dividiram-se em
escolas, assim aumentando as perplexidades dos ho­
mens desnorteados pelos constantes traum as da vida
SÍM B O LO S & M IT O S 159

contemporânea e fizeram fru strar uma esperançosa


e oportuna iniciativa. Os povos precisam de ideias
claras, práticas e assimiláveis para sair dos emba­
raços de cada hora, que na complicada vida moderna
se lhes deparam, com uma superabundância de ma­
terial noticioso e emotivo.
Em Portugal, o Dr. Lobo Vilela, no seu livro
Problemática do Homem, mostrou recentemente a
constante presença da estimativa, que em verdade
é uma segunda elaboração do conhecimento, para o
tornar valor de cultura humana e atribuir-lhe uma
cotação privativa de cada hora. A axiologia, como
ramo da psicologia social e por suas raízes filosóficas,
tem carácter de disciplina de observação e experi­
mentação metodizáveis; e também admite voos espe­
culativos para a integrar nas ideias gerais de cada
época.
Grande empresa filosófica para uma geração que
resolva desprovincianizar e descolonizar intelectual­
mente o pequeno Portugal, formulando um programa
de vida não menos heróico e prestigiador que a ora­
tória sobre os velhos descobrimentos. Nem precisa
de se inchar de ambições impossíveis, como a da rã
de Esopo; bastar-lhe-á contemplar o exemplo de
outros povos pequenos ou outras rãs mais razoáveis
que a da fábula do escravo grego: povos pequenos
que estão pedindo à alta inteligência os recursos
para fazer frente à crise mundial e orientar os seus
passos através dos destroços da hegemonia e dos
créditos de uma civilização.
A filosofia parece tão necessária em todos os
160 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

graus e formas da existência humana, individual ou


social, como o pão para a boca...
Os antropologistas portugueses e estrangeiros
concebem o seu departamento como «ciência sinté­
tica no seu empenho em abranger o estudo de todos
os aspectos da vida do homem, aspectos naturais,
biológicos, psicológicos e espirituais». São as próprias
palavras de um deles, o ilustre Prof. J. R. dos Santos
Júnior, da Universidade do Porto.
Será uma promessa generosa, mas de prazo inde­
finido, verdadeiramente um ideal inexequível. Os an­
tropologistas, cada qual confinado em seu sector,
não passam das pesquisas analíticas. Estes fazem
antropometria para definir grupos étnicos e tipos
nacionais; esses aplicam-se à sociologia das civiliza­
ções primitivas; aqueles comprazem-se na etnografia
descritiva, sem esquecer o folclore...
Se lhes fosse possível organizar tal síntese, sem
sair do seu campo, estava realizada metade do tra ­
balho de integração filosófica preconizado aqui. Só
faltaria introduzir nesse hemisfério a noção de valor,
com um papel rival do sentido lógico e rival do
chamado «organizador» na vida celular, e depois
articular o todo ao hemisfério cosmológico. E ficava
pronta a funcionar uma filosofia sintética, viva e
actual. Não parece coisa exeqüível a ambição dos
antropologistas — homens de ciência especializados
e não filósofos. Com a devida vénia aos mestres.
Os homens comuns não esperam pela «síntese
crítica» dos antropologistas, nem pela «síntese filo­
sófica» dos pensadores. Têm de viver e a cada hora
SÍM B O LO S <& M IT O S 161

constituir valores e optar por comportamentos. Então


formam sobre essa imperiosa base vital a sua pró­
pria síntese. Cada indivíduo é uma espontânea sín­
tese antropológica itinerante na unidade do seu «eu».
Divergir pode eqüivaler a cooperar.
Tal empreendimento, que produziria uma remo­
delação total da mentalidade portuguesa para poder
comparecer no alto convívio da cultura, exigiria uma
bem estudada planificação. Coisa em que ele já
muito havia pensado, segundo o seu velho gosto das
utopias ambiciosas. Tão ambiciosas que envolviam
a realidade toda para a forçar a assumir nova forma.
Quantas dessas utopias brotaram ao longo da sua
vida! Como da calúnia, alguma coisa fica sempre
da utopia...

Nada tem de novo o recurso esperançado à filo­


sofia. Keyserling, depois das suas viagens ao Ex­
tremo Oriente, defendeu a infiltração das concep­
ções vitais asiáticas sobre as europeias. Schweitzer,
mais filantropo que filósofo, tom ou as culpas da
presente crise à filosofia moral e tem propugnado
uma reform a ética. E Northrop, superior aos pre­
conceitos oficiais de separação do mundo em dois
hemisférios, propos a integração dele pela harmoni­
zação das filosofias praticadas em cada ambiente
histórico. Até no pequenino Portugal surgiu um
pensador generoso e entusiasta, o Prof. Germano
Rocha, a oferecer uma «nova filosofia cristã». Sim­
plesmente a pureza da sua intenção foi prejudicada
pelo seu carácter confessional, por influência polí-

S. M. — 11
162 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

tica de circunstância e pelo divórcio da física mo­


derna, que não tem responsabilidade na crise, apenas
goza a glória de agente principal da transformação
da vida sobre a Terra — se Zeus desistir de levar
até final a sua experiência...

Ú ltim o alto
(Outra vez o secretário, cansado, afrou­
xou no seu esforço, vendo que a febre do pa­
trão também abrandara, com a aproximação
da terra e da gente portuguesa. Por mais
amplo que seja o alcance de uma angústia,
sempre ela nascerá num horizonte pátrio e
se expressará num idioma nacional. Os sis-
mos, ainda os mais violentos, também têm seu
epicentro. Terra e gente eqüivalem para cada
pensador à célula de um favo, onde cada abe­
lha deposita o seu mel, que depois o crestador
ou o centrifugador fundirá num mel único.
E o pobre olhava as garatujas que ainda
lhe faltava decifrar, olhava-as com esperança
numa pausa. Enganou-se, porque o albatroz
de asas quebradas já levantava imprudente
voo para as nuvens.)

A experiência de Zeus tivera dois tempos — dois


actos. O primeiro destinava-se a apurar aonde poderia
levar aos homens a sua contraditória condição:
homo — animal duplex, ferox etsi sapiens. Já se viu
que os levou à maior glória, à idade espacial, e à
SÍM B O L O S d M IT O S 163

maior infâmia da sua milenária biografia, as duas


guerras mundiais, e agora à cínica preparação do
suicídio da espécie. E a vez terceira foi que Zeus
confiou o seu açoite ao povo germânico; também
brandido em dois tempos, como a suprema experiên­
cia do cruel pai dos deuses.
O segundo acto desta — o conluio entre os her­
deiros infiéis de Prometeu e os envenenados pelo
golpe de lança de Atena, em obediência à vontade de
Zeus — está a ponto de se cumprir, pois o extermínio
do homem será o resultado da guerra nuclear, desen­
cadeada ainda por culpa do povo germânico e seus
aliados novos. E Zeus poderá passear por entre as
ruínas das civilizações, gozando a perfeição da sua
obra, como outrora Nero gozava o incêndio de Roma.
E pensará talvez cinicamente que não ficou ninguém
para contar aos pósteros, nem mesmo em condições
de engendrar pósteros capazes de avaliar as propor­
ções olímpicas do castigo, que deixava a perder de
vista os infligidos aos títanes. E pronto.
Hic fu it homo.
Mas à última hora pode surgir uma reacção de
bom senso, como se o equilíbrio entre os conjurados
se rompesse por alguma pequena diferença de forças
a favor de Prometeu, que advertisse a tempo os seus
infiéis herdeiros. Então a guerra nuclear não se
desencadeará; e os homens poderão continuar a ve­
getar a sua existência, cujo único ideal parece ser
hoje durar até ao fim da semana corrente. Será um
perigo apenas adiado, porque os problemas humanos
são bifrontes: acalma-se um cariz feroz, e logo se
164: F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

nos revira outro, diferente, mas não mais caroável.


Sem a guerra o segundo cariz do problema primor­
dial da presença humana sobre a Terra descobri-lo-á
a excessiva proliferação. Os homens, multiplicando-
-se que nem coelhos bravos, ver-se-ão a braços com
problemas de alimentação, acomodação e orgânica
social que, após expedientes precários, mas que che­
garão para m atar todo o encanto de viver, se tor­
narão absolutamente insolúveis. E pronto surgirão
as migrações em massa e as guerras destruidoras —
que suprimirão a espécie sob o seu feroz e insus­
tentável aparelho militar. Assim desapareceram vá­
rias espécies, entre elas o gliptodonte, que chegou a
ser um tank vivo aparentemente invencível. Mas
foi vencido e anulado pela sua arm adura de ataque.
O gliptodonte e o homem fazedor de guerra con-
tar-se-ão entre os quatro ou cinco centos de espécies
desaparecidas, inventariadas pelos naturalistas. Pode
também, se a perenidade do planeta e da ordem cós­
mica lho permitirem, dar origem a outra espécie
superior, em que o hemisfério feroz da sua cons­
ciência fosse dominado pelo da inteligência constru­
tiva e do bom senso conservador e também por uma
estrutura social de justiça e previsão, que amorteça
o hemisfério moral da sua ferocidade. Inverter-se-iam
os termos da tese <Je Rousseau: o homem que nasce
bom e a sociedade que o perverte.
Surgiria assim o ser transumano, equivalente a
um pós-hominídeo, mas muito diverso do sobre-ho-
mem nietzschiano, que exagerava o complexo germâ­
nico de superioridade e violência desdenhosa. Um
SÍM B O LO S & M ITO S 165
/
pensador português, Romeu de Melo, estudou a psi­
cologia desse ente de razão, tão artificial como o
homúnculo de retorta do Segundo Fausto goethiano.
Tudo isto pode constituir tema doloroso para os
romancistas conjecturais dos tempos futuros, à
Wells, e para os sonhadores de hipóteses cosmoló-
gicas.
P ara os homens de hoje, que vivem o seu dia a
dia sob a angustiosa ameaça da guerra imediata,
com todos os seus horrores, ainda inimagináveis, ape­
sar da sua trágica experiência, o essencial é que as
civilizações desaparecerão ou desapareceriam sem
que houvessem resolvido problemas básicos e aspi­
rações milenárias: o estabelecimento de um governo
justo, a posse da terra, no sentido de húmus arável
e meios de produção, e o valor do trabalho.
Tais problemas formam o resíduo social de todas
as guerras e revoluções, mesmo das melhor mas­
caradas por divergências religiosas.
Os homens, melhor, alguns deles, construíram
uma arte perfeita, uma ciência perfeita e uma tecno­
logia perfeita, mas em matéria política não passa­
ram todos eles de grosseiras improvisações sem es­
tabilidade equilibrada e justa, como a que se observa
no mundo animal inferior e no reino vegetal.
Constitui uma glória para a civilização europeia,
principalmente para o povo inglês, haver formulado
a filosofia da liberdade política e de consciência, e
para o povo francês havê-la popularizado. Mas da
teoria e da esperança à realização prática a distân­
cia foi imensa. Teòricamente, a doutrina da liber­
160 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

dade durou só um século sobre o continente euro­


peu — de Waterloo até à primeira grande guerra;
pràticamente fruiu pequenos intervalos de vigência.
E não foi a má fé dos seus inimigos que a fez frus­
trar, foram os próprios produtos dela: liberalismo re­
presentativo e econômico, aliado à grande revolução
industrial; o capitalismo e o socialismo — hoje frente
a frente como inimigos inconciliáveis. Cada institui­
ção social nova traz sua boceta de Pandora a extra­
vasar discordâncias inconteníveis. Assim uma se­
mente, se não gora, há-de produzir a planta com
os frutos, que a ordem universal lhe cometeu. Sim­
plesmente, no campo social, a previsão é impossí­
vel, não só porque a humana experiência é muito li­
mitada, desperdiçada ainda por um ensino histórico
errado, mas também porque as coisas se passam no
domínio da interacção das consciências e na sua.
zona profunda e misteriosa. (V. «Civilização e Sub­
consciente», in Entre Dois Universos, versão nova.)
Fala-se de ciência política e há um ensino uni­
versitário dessa disciplina. Não se pode, contudo,
rastrear o menor influxo de tal ciência e de ta l en­
sino. E só uma razão disso parece evidente : que não
há, nem é possível uma ciência política, pelo menos
como ciência de previsão e aplicação, fundada so­
bre leis comprovadas. A história e a psicologia so­
cial seriam as suas bases. Mas as leis históricas são
inconcebíveis, porque os factos históricos não se re­
petem, e sem repetição regular ou muito provável
não se pode formular uma só lei; e as leis de psico­
logia social, apenas esboçadas sob a forma de cos­
B1M B0L08 d M IT O S 167

tume ou reacção colectiva, não assentam sobre um


material de fenômenos observados, suficientemente
abundante. Tudo que se conhece das reacções colec-
tivas respeita à civilização europeia e a um período
curto da sua história. E já se vê como a experiência,
a observação e a documentação dos últimos decê­
nios revelaram formas novas de fenomenalidade
colectiva verificada em toda a Terra e em toda a
humanidade. Basta evocar um deles para nos adver­
tir do carácter excepcional da época: o despertar de
civilizações inteiras que se estendem por continen­
tes.
Logo em 1910, por intuição própria, ele viu isso,
como declarou numa brochura-programa, O Espí­
rito Histórico. Só meio século depois essa brochura
chegaria aos seus destinatários naturais. E citava já
Heinrich Richter, filósofo da história, também só
agora chegado ao mundo ibérico, por uma versão
argentina. As ideias têm seu prazo obrigado de es­
pera para germinar: depende a duração dele do nas­
cimento da curiosidade pública.
Quando na Europa, por influência das grandes
revoluções inglesa e francesa, o vago sentimento po­
lítico se transformou em opinião pública, expressa
livremente pela imprensa e pelos partidos ou suas
correntes, pareceu que se desenhava uma norma de
psicologia social, que poderia ser promovida a lei.
E era a seguinte: a uma derrota em guerra exterior
seguir-se-ia uma revolução interior, com a inevitável
renovação do pessoal directivo e a reparação ju sti­
ceira ou castigadora pedida pela consciência nacio­
168 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

nal em estado de choque. Assim se verificou em


muitos países durante o século xix e ainda nos pri-
mórdios do corrente.
E ra como a variabilidade compensadora das
pressões atmosféricas; poderia mesmo crer-se que se
definia uma lei dos anticiclones sociais. Bastavam,
porém, o desalento das virtudes cívicas e a influência
de abafadores externos para que tal norma aparente
se não verificasse. Espanha, após a guerra de Cuba
e a perda das últimas colônias da América e Ãsia,
e vários países vencidos em 1918 e 1945 exemplifi­
cam excepções tão eloqüentes como as confirmações
anteriores, criando perplexidade aos filósofos da his­
tória. E não se pode recorrer aos dados da antropo­
logia, porque, segundo uma concepção limitada, esta
ciência apenas estuda as sociedades primitivas, onde
tais fenômenos não existem ou só se manifestam
em gérmenes.
Só se viam bem agora os abafadores ou aborta-
dores da reacção espontânea dos povos: o medo à
liberdade e às ideias, e os vícios mentais contraídos
durante o estado de guerra, as ditaduras, os dólares
e a ocupação m ilitar e, sobre todos, o magnetismo
perturbador das bússolas governativas pela simples
presença do socialismo.
Chegava agora ao plano mais próximo do cosmo-
ram a de destroços que se estendia opressivamente
diante da sua memória e dos seus olhos — destroços
sangrentos e fumegantes, cem vezes mais confran-
gedores que os da longínqua história. O passado
próximo diz-nos mais que as perspectivas distantes,
SÍM B O LO S & M IT O S 169

como os retratos dos avós que ainda conhecemos nos


emocionam mais que as galerias dos solenes qua­
dros dos museus. Chegava aos tempos recém-vividos
ou sofridos e teria de entrar pela crítica política de
sucessos candentes e de personagens ainda vivas,
generalotes e doutores auto-suficientes e afoitos
improvisadores de doutrinas e soluções. Matéria
muito contingente porque a magnitude intensiva e
extensiva dos sucessos escapava à acção e ao alcance
dos governantes, que não tinham estatura para do­
m inar tais grandezas novas. Alguns tinham relevo
pessoal, mas só no seu quadro nacional, nenhum em
escala humana ou mundial — à excepção de um
papa e de um chefe socialista, um relâmpago fugidio
e um raio cruelmente ofuscante.
E ssa carência de homens que respondam ao de­
safio colectivo, segundo a fórmula de Toynbee, o
declínio da moralidade pública, segundo a severi­
dade ética de Schweitzer, a indiferença geral um
pouco cínica até à apatia, tudo confirmava as suas
próprias ideias (V. Entre Dois Universos) sobre a
inexistência de formas colectivas do sentimento da
vergonha — privilégio humano, muito dignificador,
mas puramente individual.
Estava-se perante um caso, o maior de toda a
história, de assincronia das civilizações em presença,
sobretudo das duas rivais — a europeia e a eslava —,
uma em franco declínio, outra em acelerada as­
censão. Verdade aparentemente dura e deseonsola-
dora para quem se lembrar do quadro da decrepi-
tude europeia, pintado por Spengler: casas em ruí­
170 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

nas e montões de sucata de caminhos de ferro. Exa­


geros de profeta apressado e tendencioso por seu
complexo germânico. A imagem só vale para os tem­
pos idos, com sua população rala e sua vida histó­
rica em focos locais incomunicados. Em tempos de
superpopulação e de mania andarilha ou exeursio-
nística não caem as casas em abandono e ruína e
também não param os caminhos de ferro e todos os
meios de locomoção. Decadência de uma civilização
significa hoje apenas perda de hegemonia mundial,
falta de homens de mentalidade política à altura dos
gigantescos problemas novos, que se tem de entrar
num período de novas formas- de estruturação eco­
nômica e social, e rebaixamento da moral pública.
E o último sintoma também não respeita ao com­
portamento privado, traduz só coragem de contra­
dição e d e . esquecimento da compostura digna, ou­
sadia para oportunismos opostos aos da véspera,
vítimas e carrascos abraçados a rir jovialmente e
olvido completo dos deveres de exemplaridade edu­
cativa para com os povos — numa palavra, falta de
solidariedade humana, guiada por ideais absolutos.
Esse campo será talvez o único franqueado à acção
para atingir o absoluto inacessível à inteligência:
só é verdadeira em absoluto a acção que serve me-
diata e imediatamente a causa do melhoramento mo­
ral, mental e econômico dos homens, e a sua frater­
nidade em paz.
" Uma circunstância agrava ainda o sentimento
SÍM B O LO S <& M IT O S 171

da iminência do fim: a dissipação bem patente do


tesouro de esperanças amealhado e legado pelo sé­
culo xix. Os filósofos e críticos oitocentistas e tam ­
bém os poetas filantropos eram severos no julga­
mento da realidade social, mas não destruíram a fé
quase unânime no progresso e em três recursos que
pareciam decisivos: a difusão da instrução pública,
o enriquecimento pela indústria e a reforma da es­
tru tu ra social. E havia ainda o expediente da colo­
nização europeia noutros continentes. Então só se
falava em civilização europeia; as outras jaziam em
catalepsia indefinida. Mas hoje todos esses recursos
e esperanças foram delapidados. A doutíssima Ale­
manha, depois de prussianizada, deitou fogo ao
mundo por duas vezes. Bismarck, ao dizer que a
vitória de Sedan fora ganha pelo mestre-escola, re­
conheceu que soldados esclarecidos são mais agres­
sivos. A riqueza fez surgir o imperialismo mercantil
e m ilitar norte-americano; e a simples presença da
civilização eslava com nova estrutura social dá a
causa-mestra do estado constante de alarme. Nin­
guém crê já na pacificação pelo progresso, vendo
coexistir os avanços vertiginosos do saber e a acumu­
lação dos armamentos mais mortíferos. A descolo­
nização, por sua vez, acabou com as diversões por
outros continentes, promovendo-as a choques da ve­
lha civilização europeia com outras que despertaram.
Tudo se foi nas mãos dos herdeiros do patrimônio
legado pelo século xix.
172 F ID E L IN O D E FIG U E IR E D O

Ladeira final
( O secretário não era um Zagalo qualquer,
mantinha dentro de 'perfeita lealdade a sua
independência crítica. Chegando aqui, depôs
a caneta em descanso para se permitir algu­
mas reflexões leais — tão leais que pareciam
trechos de um «diálogo ao espelho». E pensou:
«Que adianta a quem vai acabar saber que
morre vitimado pela assincronia de duas
grandes civilizações rivais e pela falta de ho­
mens de estatura gigantesca para abarcar o
conjunto dos problemas de escala mundial ou
planetária, porque o mundo político dorme
um sono de imobilidade pré-ptolomaica, sem
recolher o impulso da era espacial, ou por
ser apenas instrumento de uma experiência
de Zeus?» Entretanto, olhando as suas notas,
cobrou ânimo como um cavalinho fiel, à vista
prometedora da coudelaria.)

A existência humana era coisa bem dolorosa,


porque encerrava obrigatoriamente muita luta, muita
dor e muita decepção. Todavia, do fundo da sua
consciência trasbordante de memórias boas e más
erguia-se um sentimento de rendida gratidão ao
misterioso governo do universo pelo te r trazido à
vida, mesmo a uma vida que não fora mimada pelo
destino. Erguia esse sentimento a um poder, cuja
presença bem sentia, embora não pudesse imaginar
como se exercia, onde se localizava, como se confi-
«■y ^ . , 1.9f ■ .■l ü . u u.M«»

SÍMBOLOS <& MITOS 173

gurava, nem como o designar, porque não há em ne­


nhuma língua humana palavra suficientemente ex­
pressiva e pura que o nomeie. Jamais a razão, por
mais sábia que se tom e e por mais ousadamente
que especule, chegará a definir, localizar e designar
o alvo dessa gratidão* respeitosa e humilde. Deverá
contentar-se com as intuições do sentimento, que
oferecem uma forma periférica e divinatória do
conhecer. Contemplar as sublimes grandezas e be­
lezas do universo, e penetrar um pouco o seu des-
lumbrador funcionamento, oferece a maior altura
que os homens podem atingir. Ousar sobrepor-se-lhe
pela concepção de um arquitecto pessoal responsável
significa um insensato recuo para as antropomor-
foses empequenecedoras. Com tudo que passara na
sua travessia, ainda assim achava que fora favore­
cido pela alternativa: viver em vez de jazer para
sempre diluído no anonimato silencioso da disper­
são mineral e vegetal e dos raios solares e cósmicos.
Tivera o privilégio da organização biológica e do
clarão de uma consciência no torvelinho universal
de causações encadeadas e de transitoriedades cí­
clicas.
Só lhe pungia a dor de ter de apagar esse cla­
rão da sua candeia bruxuleante, quando havia tanta
coisa estonteadoramente bela para ver e quando
toda a luz era pouca para se descobrir um caminho
menos inseguro, que levasse a algum fim alto.
Então, por um vício mental, muito seu, acudi-
ram-lhe duas imagens sonoras bem eloqüentes: o
diálogo inicial do andante do quarto concerto de
174 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

Beethoven e certa fase muito repetida no adágio do


segundo concerto de Rachmaninoff. Bem mostra­
vam, por adivinhação, esses dois motivos a distância
percorrida pelo homem num século.
No concerto de Beethoven, o pobre bípede im-
plume suplica piedade às forças de mal e violência
dos deuses que lhe empecem o caminho da sua plena
realização. Na dureza colérica da resposta sente-se
o rigor dos desígnios de Zeus. Mas o homem, débil
e sofredor, sentindo a força da sua inspiração inte­
rior ou da sua predestinação, insiste e repete a sua
prece impregnada de promessas e esperanças. Resis­
tem ainda os ministros do Hades e fulminam novas
danações. Cóleras' divinas; mas divina é também
a persistência heróica do espírito de Prometeu. I n ­
siste e por fim consegue abrandar as Erínias, que
logo o deixam passar avante; e por curiosidade até
lhe fazem corte, transmudando o tom da sua fraseo­
logia severa.
E o homem não faltou às suas promissoras espe­
ranças, não iludiu a curiosidade malévola de Zeus,
porque num século atingiu os desenganos dos li­
mites da sua prodigiosa aventura.
A presença humana sobre a Terra estava em pe­
rigo. E o seu velho sentimento de limite transfor-
mava-se agora em sensação de fim próximo. A exis­
tência humana chegara a complexidade tal de de-
veres e destrezas de organização despotizadora que
já não cabia nas aptidões do homem comum; e
muito estreita margem deixava ao livre exercício da
personalidade, e essa mesma estreiteza era senho-
SÍM B O LO S <& M ITO S 175

reada pelo carácter multitudinário inevitável da


época. Governar era conduzir e domesticar, pela
força ou pelas propagandas corruptivas, rebanhos
de mentalidade primitiva.
A trajectória humana fora conduzida sobre um
duplo rodado, correndo em rigoroso paralelismo,
uma das rodas soltando chamas infernais em suás­
tica, a outra emitindo uma luz aurorai criadora.
Mas as duas luminosidades vão fundindo o seu calor
e estimulando-se mutuamente. A experiência de
Zeus tende já para o fim do seu segundo e último
tempo. Daí provinha essa amaríssima sensação de
fim e de perda irremediável. Após a subida corajosa
pela encosta da glória, evocada no segundo movi­
mento da Nona, o desânimo profundo e irremediável
do ãdágio do segundo concerto de Rachmaninoff,
recordação de tudo que se perdeu irreparavelmente,
tudo menos a consciência:

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—--- ÕSU4M', ____

H i i jg gi ■.
3^=*' cU*. A&

Um homem salvara-se da brenha sombria dos


símbolos e mitos, das alegorias e facécias, para es­
calar píncaros de vertigem. Que viu?
176 F ID E L IN O D E F IG U E IR E D O

Saíra da espessura e descera da escalada, exausto


e em sangue, a repetir teimosa frase musical — um
sopro gélido...

(A interpolação terminou. Seguem-se as


páginas finais> autênticas, já não reconsti­
tuídas pelo secretário.)
?

vn
Epílogo

...como o louco bailarino que


[bailasse
na pedra duma campa — e ali
[tombasse.

E ali tombasse arfante, agónico,


[divino,
depois de haver dançado todo o
[ballet do seu destino.

Amorim db Carvalho, Biografia.

.
8 m . — 12
Que longe e alto o levou a simples contemplação
de dois expressivos desenhos a que ele atribuiu sen­
tido amargurado! Não há nada pequeno e isolado
da realidade universal. Tudo se articula ao conjunto
cósmico. A mais reduzida partícula do átomo invi­
sível ou a dor dum mísero calinho no dedo mínimo
de um pé levam a igual distância e altura. O mesão
e a dor do calo exprimem a mesma energia com que
o Sol nos ilumina e aquece; o calo evoca-nos a cir­
culação sanguínea, o sistema nervoso, o estado ge­
ral do organismo, o estado ocasional da atmosfera,
os raios cósmicos, e funde-se com o seu ridículo pun-
gir na energia que move miríades de galáxias há tri-
liões de anos. Isso pode inspirar orgulho e humil­
dade, porque somos tudo e ao mesmo tempo quase
nada nesse tudo.
Partira de dois desenhos convertidos em sím­
bolos do carácter e do destino de uma vida obscura,
para de conversão em conversão, dialècticamente,
através de mitos de vário conteúdo e diversa vali­
dade, chegar ao abismo sem fundo da dor humana —
onde tudo se sumiu. Seguira o fio ondulatório ou
sinuoso da sua meditação ensimesmada. Realmente,
ondulatória? A ondulação exprime flutuação mais
que seqüência; e produz pequenas e indecisas dés-
180 FID EU NO DE FIGUEIREDO

locações, sem aproveitamento progressivo. Melhor


seria dizer que o seu pensamento percorrera uma
curva em ciclóide — a linda curva estudada por
Pascal. Mas também não traduziria fielmente o seu
processo. Qualquer ponto de uma circunferência que
se move sobre um plano descreve uma série ininter­
rupta de quase circunferências — quase, porque não
chegam a fechar-se —, as quais se articulam umas às
outras com sobreposição de uma parte do espaço
contido nelas. Lembra um pouco os elos de uma
corrente ou, melhor, os anéis do fio de um carretei
a desenrolar-se ao abandono sobre o chão.
Ainda esta curva não lhe expressava bem o
processo da sua meditação, porque se desenvolve no
mesmo plano, com teimosia monótona. Seria ade­
quada para traduzir a obstinada repetição de um
mesmo pensamento, por exemplo aquela frase do
segundo movimento da terceira sinfonia de Beetho-
ven, que ele identificava ao rodar vagaroso de uma
carreta pesada sobre a areia gemedora. Tristeza
tanta e tão opressiva que urgia pelo desabafo da
alacridade expansiva do movimento imediato.
Na sua meditação houve sempre ganho de dis­
tância e altura, mesmo com os desvios facetos —
verdadeiràmente altos de descanso para a sua
emoção.
E esta característica de subida em distancia­
mento nem mesmo a traduziria a espiral — a mais
bela curva que esquematiza o movimento da coisa
maior que o homem pode ver com seus olhos de
bicho da Terra: uma galáxia.
SÍMBOLOS & MITOS 181

A espiral desenvolve-se sobre um plano, dá dis­


tanciamento pelos raios cada vez mais longos das
espiras, mas não dá subida. Só a curva helicoidal, a
linha desenhada no espaço livre por um ponto ex­
tremo de uma pá de hélice, satisfaria cabalmente. As
colunas salomónicas dos velhos templos padeciam
do anelo de altura e desenrolavam-se em helicoidal.
Uma tromba de água, a beber o mar e a levá-lo para
os céus, também marcava uma direcção helicoidal.
Bastava erguer verticalmente o eixo do cilindro
ideal que a circunscrevia para obter a expressão
de tudo isso — distanciamento, continuidade e mo­
vimento em altura, com desmedida ambição. As es­
cadas da Torre de Babel seguiriam uma helicoidal,
e as rampas de acesso à Giralda sevilhana rectifi-
cavam em cordas segmentares as ansas de uma heli­
coidal. Assim fazem os pombos-correios, ao partir:
volitam em circunvoluções helicoidais, à procura de
imperceptível viração que os ajude a fixar a sua
trajectória rectilínea, já fora das influências locais.
E quando a acham, seguem-na disparados.
Também se perfiguram em adejos ou ansas heli­
coidais certas frases repetidas em diverso tom e
diversa altura, de Haendel e Bach — busca ansiosa
de cumes celsos e arejados. E ele, em sua longa me­
ditação curvilínea, nada mais fizera que isso: liber­
tar-se da zona dos tufões para atingir a estratosfera
serena das ideias e encarar enfim a vida como os
cosmonautas vêem a Terra: de fora e em conjunto.
Exemplificara um método, formulara uma receita.
182 FIDELINO DE FIGTJEIREDO

Se a noção de helicóide como trajectória de um


móvel ou conduta de uma corrente, segundo se exem­
plifica nas hélices dos navios e aviões, nas serpen­
tinas dos alambiques e nas bobinas, tivesse chegado
ao Olimpo, lestamente Zeus a aplicaria a algum
tipo de suplício requintado.
Imagine-se um prisioneiro no fundo de um ergás-
tulo ^cilíndrico de altas paredes cegas, quais as de
chaminé, que só descobrem ao alto um disco de céu,
a negacear-lhe com promessas de liberdade e luz.
Essas paredes seriam de pedra tosca e saliente de
modo a proporcionar degraus para a escalada auda­
ciosa do prisioneiro em desespero e até descanso
para esperar forças novas. Instintivamente, como
fazem os animais de tiro subindo em ziguezague as
ladeiras, esse condenado procuraria vencer a altura
das paredes cilíndricas em desvios helicoidais, para
iludir o perigo da subida em vertical. E, com mãos
e pés fincados em garra, venceria a distância, apro­
ximando-se ansioso da boca do ergástulo e da liber­
tação. Mas, quando o infeliz já estendia uma das
mãos para o rebordo salvador, a fim de o galgar
triunfante, via com horrorosa surpresa que ele lhe
escapava, porque as paredes cresciam, num ímpeto
defensivo contra o seu prisioneiro. E isto repetia-se
indefinidamente: vencia a escalada, chegava a re­
ceber em cheio o clarão do Sol e a sentir uma hífada
de a r livre, mas era logo vencido pelo infalível cres­
cimento das paredes, mais incansáveis que ele. E
recomeçava o duelo ininterrupto entre a tenacidade
SÍMBOLOS & MITOS 183

heróica do homem, ansioso de luz livre, e o ódio


omnipotente de Zeus.
Não pareceria este suplício ainda mais cruel que
o de Sísifo? Não podia desistir, porque não lho con­
sentia a negaça da luz e da liberdade. E também não
podia descansar além dos momentos em que reto­
mava o fôlego. Sísifo, quando o bloco descia de es-
cantilhão pela encosta abaixo da colina do Tártaro,
poderia gozar algum alívio e até ouvir um jornalista
perguntador; não estava obrigado a correr em ma­
ratona com o pedregulho, nem seria capaz de o
fazer, porque a sua possança era de atleta, não de
corredor.
Externamente, ninguém se inteirava daquele
drama sem fim, porque a astúcia de Zeus tudo pre-
vira: a torre afundava-se tanto quanto crescia, e
assim sem alterar a sua proporção na paisagem.
Era um agravamento da pena.
Até no mais amargo infortúnio o homem con­
serva o seu instinto social e precisa da solidariedade
de olhos compassivos e palavras piedosas.
Este novo suplício da escalada helicoidal de uma
torre sempre crescente não seria só mais cruel, ex­
pressaria com maior eloqüência mítica o drama an-
gustioso do homem em toda a história da sua pre­
sença sobre a Terra — uma luta interminável e sem
tréguas entre a ferocidade e a inteligência, em cínica
emulação cooperadora e em multiplicação inces­
sante dos seu problemas. Cada problema resolvido
engendrava logo outros mais espinhosos. Até que
por fim as duas forças rivais, a ferocidade e a inte­
184 FIDELINO DE FIGUEIREDO

ligência, se punham de acordo numa conjura para


o extermínio definitivo dessa espécie dúplice, ferox
etsi sapiens. E surgia o seu maior e último pro­
blema, o da própria presença sobre a Terra.
Sòmente o suplício da escalada vã, em direcção
helicoidal, entre paredes que subiam sempre, à me­
dida que o condenado as ia vencendo, estaria mais
adequado para Prometeu que para Sísifo, se a cruel­
dade beócia de Zeus não preferisse infligir tormentos
físicos como o dos abutres devoradores e o do pedre­
gulho rolante. Sempre o divino desprezo pela pessoa
humana.

De regresso, tomou a contemplar os dois dese­


nhos — o carvão negrusco e o lençol de neve sobre a
mina abandonada. Ele não garrara sem governo;
sentia bem as suas amarras. Mas agora olhava os
desenhos com outros olhos. Durante a sua recolhida
caminhada envelhecera mais e sentira que se desu-
manizara um pouco. Viajara muito, mas sempre à
vista do ancoradouro, como D. Quixote e Sancho,
que ao subir da Cueva de Montesinos e ao descer do
Clavileno eram outros. Para se recuperar bastaram-
-lhe duas joviais recordações da sua infância de
filho único — imagens de uma «história em quadra­
dinhos».
A mãe não lhe prodigalizava manifestações sen­
timentais. Mas não perdia ensejo de lhe influir no
coração. Costumava sentá-lo nos joelhos para en­
treter a sua fantasia com historietas. E uma das
mais antigas narrava as trocas e baldrocas de um
SÍMBOLOS & MITOS 185

macaco matreiro e folgazão que muito almejava por


uma viola para tocar e dançar. E consegue-a por meio
desses expedientes astuciosos. E no fim recapitu-
la-os, gabarola: de navalha fiz sardinha; de sar­
dinha fiz farinha, etc., etc., etc., até chegar à viola;
e frum, frum, frum, que vou para Angola.
Nunca percebeu muito bem o sentido da histo­
rieta, nem a intenção da mãe, ao contar-lha, nem
porque a recordava agora, em tão austera disposição
moral. Significaria um lembrete da sua consciência
a adverti-lo de que procedera como o arteiro símio nas
suas conversões? Também de dois desenhos fizera
dois símbolos; de dois símbolos fizera um mito;
desse mito absurdo fizera um mito razoável, que já
lhe parecia indestrutível, um mito que não era mito,
pois expressava uma verdade evidente; à luz dessa
evidência remontara da crise hodiema ao carácter
permanente da história e esboçara uma aproximação
intuitiva do maior problema da consciência humana.
Exemplificara um método, formulara uma re­
ceita.
A outra recordação da infância, que lhe acudiu,
fê-lo ver-se a lançar balões de papel colorido, em noi­
tes festivas de Verão. Enchia-os com o ar quente que
subia de uma fogueira e, quando eles infunavam,
acendia a mecha atada a uma cruzeta bocal e sol­
tava-os, por entre a algazarra jubilosa dos compa­
nheiros. Os balões subiam tremelicando, hesitantes,
como se também sentissem as complicações da inex­
periência da liberdade. Depois, colhidos por alguma
brisa suave que os ajudava, decidiam-se a tomar al­
186 FIDELINO DE FIGUEIREDO

tura, até que um vento mais forte os obliquava, in-


clinando-os cada vez mais; e por fim tombavam de
todo e ardiam, largando para a terra os farrapos
em chamas e cinzas. Mas a mecha continuava a
arder sozinha e partia aliviada e livre, impelida pelo
vento ainda por algum tempo. E aquele pequeno
sinal de vida, que lhe acenava do Céu, sumia-se por
fim na serenidade escura da noite. Parecia-lhe sen­
tir uma opressão de mistério, e uma desilusão — a
desilusão opressiva de todos os fins, a que temos de
nos resignar, queiramo-lo ou não. Só padece desi­
lusões quem antes sofreu de ilusões, qual a de crer
que uma simples labareda vogando no espaço, já li­
berta da sua base física, possa esclarecer algum
mistério à sua tenebrosa ignorância. Todas as cha­
mas são mortais e duram pouco.

Chegando também ao fim da sua meditação, per­


guntou à sua consciência se valera a pena todo este
esforço de conversão das coisas pequenas em ele­
mentos integrantes e inseparáveis das coisas gran­
des? Sim, valeu a pena, para se defender da náusea
existencialista e do perigo de desprezar o homem
— homo duplex, ferox etsi sapiens —, e portanto des-
prezar-se a si mesmo. Diligenciara situar as peque­
nas misérias da vida individual e as grandes dores
colectivas no lugar que lhes corresponde num qua­
dro da fenomenalidade geral, bem averiguada e
conhecida. E afogara-as num dilúvio de luz.

Natal de 1963.
»

Pág.
Breve prólogo .......................................................... 13
I — Dois símbolos .......................................................... 17
— Sísiío de Coriu to ................................................................. - ......... 27
— Sisifismo e existendalism o .................... .............. 51
— Uma experiência de Zeus ...................................... 65
— Vertigem e perplexidade ...................................... 89
— Princípios e lim ites (Interpolação) ....................... 95
Primeiro alto ............................. ...... .................. 116
Segundo alto ........................................................• 138
Ültimo alto ......................... ........................ 162
Ladeira final .................................. ........... ......j 172
VII — Epílogo ...................................... ........... ........... . 177
*
ADDENDA

Quando redigia o presente escrito, recebeu o


autor um convite da Knowledge Universal Founda­
tion, dos Estados Unidos, Califórnia, para se incum­
bir de um capítulo de vasta obra em preparação, The
New Prophets Speak for the Man, destinada a pro­
por uma filosofia pacificadora, fundada no conhe­
cimento. Apesar da impropriedade enfática do título
e do risco de o seu pequeno sistema de ideias destoar
de um grande conjunto não planeado, acedeu por
notar certa convergência de propósitos e também
porque os homens de pensamento devem subir a
todas as tribunas que se lhes ofereçam para defender
a paz. Tencionou enviar uma condensação da parte
impessoal deste livro, precedida por um bem abre­
viado resumo da sua tentativa de diagnose da crise
mundial, exposta em livros anteriores. A falta de
saúde, porém, impediu-o de uma vez mais ruminar
aquelas ideias para as cozinhar num prato novo e
adaptado a paladares exóticos. Assim faltará uma
voz portuguesa naquele coro internacional, ainda que
se lhe houvesse assinalado um lugar na ambiciosa
partitura. Tentou propor um substituto, mas a dis­
tante Fundação nem tomou conhecimento da pro­
posta e insistiu no seu primitivo convite. E o autor
perdeu também o ensejo de observar se as suas ideias
eram mais vivedouras no clima da língua inglesa.
Que ao menos se murmure em lusitano o que
se não pôde clamar em humano!

No momento em que revia as provas do primeiro


capítulo teve o autor a notícia do passamento do
Prof. Abel Cardoso, nele nomeado. Aqui lhe deixa
uma sentidíssima saudade. Abel Cardoso foi um dos
homens mais nobres que pôde conhecer ao longo da
vida.
Edição n.° 4/29/1194

Este livro foi composto e im­


presso na Sociedade Astória,
em Lisboa, para Publicações
Europa-América, Ld.a, e con-
cluiu-se em Junho de 1964

E sta colecção tem leitores habituais, digamos mesmo:


leitores fiéis . Entende o editor que deve corresponder a
esse interesse. Em homenagem aos leitores que acompanham
esta colecção com singular preferência, estabelecem-se mo­
dalidades especiais de assinatura.
Se estiver interessado nesta nossa iniciativa, peça o
folheto elucidativo, num simples postal , dirigido ao editor,
Publicações Europa-América, Ld.a, Rua das Flores, Jf5, 2.°,
Lisboa-2 .

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