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SABER

DOMINIQUE VALBELLE

A VIDA NO ANTIGO A VIDA NO ANTIGO


l l
Tomando como ponto de partida os resultados nliinln:. i:nm .is mais recen
tes explorações arqueológicas do urbanismo do vale dn Nilo, nsta nhni contribui
para um melhor conhecimento de um dos mais velhoi povos do mundo civiliza-
do e da sua história desde o inicio do Antigo ImpAno (7700 i. C.) até ao fim
do Novo Império (1088 a. C.).
Através da abordagem de temas tão variadoí 1:01110: a nilralílicacfto social,
a organização política e institucional, .is .n:iivnl.nl<v. |IIIH!II|IVH>, n vnlii liinilínr
e quotidiana, os usos e costumes, a alimentício, i minlilididi t ciiliiini, a
autora elabora um magnífico fri!si:n iln h|i|iin .miMin nim-mnlu ,nr, intmr.
uma visão clara e sucinta <!« IIMI.I il.r. m.ir. l,i ,i Mi.mir i r/ih.M' .<!•-. lnini.in.is.

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BBN 972-1-03116 X

5 U601072"012H1"
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMERICA
Título original: La Vie datis l'Egypte Ancienne
Tradução de Isabel St. Aubyn
ÍNDICE
Tradução portuguesa © P. E. A., 1990
Capa: estúdios P. E. A. Pag.
© 1988, Presses Universitaires de France (n.° 1302 da Colecção Introdução 7
«Que Sais-je?»)
Capítulo I — As classes sociais e os meios socioprofis-
Direitos reservados por sionais 12
Publicações Europa-América, Lda.
I — As categorias humanas e as classes sociais ... 13
II — O palácio, a corte e as instituições reais ... 18
III — Os templos, suas Casas de Vida, oficinas
Nenhuma parte desta publicação pode ser re- e domínios 22
produzida ou transmitida por qualquer forma IV — O exército e a marinha 27
ou por qualquer processo, electrónico, mecânico
ou fotográfico, incluindo fotocópia, xerocópia V — Os homens livres e os servos 30
ou gravação, sem autorização prévia e escrita
do editor. Exceptua-se naturalmente a transcri- Capítulo II — A ocupação do tempo 35
ção de pequenos textos ou passagens para apre-
sentação ou crítica do livro. Esta excepção não I — O rei e o seu vizir 36
deve de modo nenhum ser interpretada como II — Os funcionários 40
sendo extensiva à transcrição de textos em re-
colhas antológicas ou similares donde resulte III — Os operários e os artífices 44
prejuízo para o interesse pela obra. Os trans- IV — Os camponeses 49
gressores são passíveis de procedimento judicial. V — Os serviçais 55

Capítulo III — O nível de vida e as suas manifestações 61


Editor: Francisco Lyon de Castro I — O túmulo, o seu mobiliário e os monumen-
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA. tos de devoção 62
Apartado 8 II-—O povo 66
2726 MEM MARTINS CODEX III — Os bens imobiliários 69
PORTUGAL IV — Os bens produtivos: as terras e o gado 72
V'—Os metais e os produtos de luxo 74
Edição n.° 101214/5117
Capítulo IV — O quadro de vida • 77
Execução técnica:
Gráfica Europam, Lda., I — Os aglomerados 77
Mira Sintra — Mem Martins II — Os campos - 31
III — Os desertos 86
JVpósif o Legal n." 36 272/90 IV — O estrangeiro 89
Capítulo V — A vida privada 94

I — A família 94
II — A casa 98
III — O meio envolvente 100
IV — As devoções 103 INTRODUÇÃO
V — O lazer 106

Capítulo VI — As modalidades do quotidiano 109 Os vestígios do Egipto faraónico testemunham,


inequivocamente, a primazia concedida pelos homens
I—A alimentação 109 da época à vida para além da morte. Os túmulos reais
II — A saúde : 112 ou privados, geralmente construídos em pedra ou esca-
III — O vestuário 114 vados na rocha das falésias, foram preservados,
IV — A higiene e os adornos 117 enquanto o tijolo cozido se empregava quase exclusi-
vamente na construção de palácios e moradias, ricas
Conclusão 120 e pobres. Ora, curiosamente, foram estas mesmas con-
cepções que contribuíram, numa medida não despre-
Bibliografia. 122 zível, para nos informar sobre as mentalidades, as
necessidades, os hábitos quotidianos.
Na verdade, ao tornar-se possível explorar certas
cidades e aldeias da Antiguidade, percorrer certos volu-
nies dos arquivos C|IK: chegaram até nós, ler os contos
c a sabedoria poupados pelo tempo, somos forçados
a reconhecer que o contributo dos textos e das repre-
sentações, gravados e pintados nas paredes dos túmulos,
tal como o seu conteúdo, quando não foi objecto de
pilhagens, é essencial: consoante a época, os meios de
que dispunha e a função desempenhada, o futuro
defunto escolhe, para a sua moradia na eternidade, os
elementos mais importantes do seu quadro da vida, da
sua família, e mesmo do seu pessoal, os bens que lhe
são mais caros; relata os factos principais da sua exis-
tência, recorda o seu ofício, as relações que eventual-
mente manteve com o Faraó ou uma alta personalidade
do reino; o mobiliário que o acompanha á última
morada por ocasião do funeral compreende roupa de
casa e móveis, utensílios e alimentos; do fim do Antigo
DOMINIQUE VALBELLE .1 VIDA NO ANTIGO EGIPTO

Império ao início do Novo Império, modelos de cons- o seu repouso eterno seria poupado e até mesmo de
truções e de actividades agrícolas e artesanais comple- que os seus nomes seriam honrados pelos visitantes,
tam as alusões iconográficas das paredes. Esta documen- aos quais se destinam as inscrições que figuram nas
tação colorida anima, pois, e com rigor, os dados capelas em que os vivos depunham as oferendas aos
brutos que a arqueologia confia à nossa interpretação. mortos. Resumiam assim a sua experiência terrestre,
Seria, portanto, ilusório esquecer o contexto no qual material e moral, a fim de que nada lhes faltasse depois
aquela se manifesta ou os limites que a sua natureza da morte, que consideravam uma transição entre duas
lhe impõe: as figurações de actividades profissionais espécies de vidas bastante próximas uma da outra.
e de propriedades seguem-se a estereótipos quando não Seria, portanto, cientificamente mais tranquilizador
são a ilustração de uma fórmula funerária destinada tentar reconstruir a vida dos antigos Egípcios unica-
a ajudar o defunto na vida subterrânea; os relatos mente a partir dos verdadeiros vestígios da sua exis-
biográficos são, muitas vezes, pobres em informações tência. Mas, será possível resumir a vida de um homem
verdadeiras, apresentando-se repletos de basófias incan- n partir de alguns lanços de paredes abandonados, no
savelmente repetidas; o mobiliário funerário das classes melhor dos casos, de detritos acumulados cm depósitos
abastadas é fabricado por oficinas especializadas e, públicos c, se tivermos muita sorte, de fragmentos de
certamente, só de longe reflectirá o mobiliário corren- K-j>isl os administrativos?
temente utilizado pelas mesmas famílias enquanto vivas. Nos últimos dez anos, a arqueologia urbana tem-se
Contudo, algumas falhas vêm, por vezes, perturbar desenvolvido no vale do Nilo e os resultados começam
os sólidos costumes egípcios, deixando então transpa- a tornar-se palpáveis; muitas ciências auxiliares per-
recer algumas indicações originais: os pobres são amor- mitem determinar o contexto ecológico da época,
talhados com o seu vestuário habitual e os seus velhos reconstituir ;i alimentação; o estudo e a comparação de
móveis; no fim do Antigo Egipto e durante o Primeiro inscrições oficiais e de volumes arquivados e diferen-
Período Intermédio, o poder acrescido de certos nomar- temente conservados, ao permitirem o progresso dos
cas provinciais deve ter contribuído para os tornar conhecimentos sobre as estruturas sócio-económicas do
mais loquazes e os relatos enriquecem-se com episódios país nos diversos períodos em questão, colmatam certas
e comentários sobre os tempos conturbados que atra- lacunas da documentação. Assim, só imbuídos de
vessam; na XVIH dinastia, e em particular durante o modéstia e empregando, no que elas realmente repre-
cisma amarniano, os temas iconográficos renovam-se e sentam, todas as informações disponíveis, podemos
tendem para uma reprodução da paisagem mais pró- tentar realizar um dos estudos mais árduos, mas tam-
xima das realidades quotidianas. bém mais excitantes, que a história nos propõe: evocar
Por muito atraente que seja, este quadro não é a vida de um dos mais velhos povos do mundo civili-
senão o reflexo dourado que os Egípcios desejavam zado ao longo de dois mil anos, ou seja, do início do
deixar de si mesmos e do ambiente. Não o destinavam Antigo Império (2700 a. C., aproximadamente) até ao
com certeza aos milhões de turistas que todos os anos fim do Novo Império (1088 a. C.).
visitam os seus túmulos, conservando a esperança, não Como é evidente, seja qual for a propensão dos
obstante as pilhagens, as usurpações e as reutilizações, habitantes do vale do Nilo para conservar firmemente
de que as sepulturas se manteriam invioladas, de que as tradições, uma «evolução», resultante tanto das flu-
10 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 11

tuações de um equilíbrio difícil entre poder real e poder ouro extraído das minas, recenseamento dos prisionei-
provincial como da natureza e do desenvolvimento das ros de guerra, e mesmo da população autóctone, fun-
relações de força que se manifestaram periodicamente dação dos primeiros centros urbanos onde se reúnem
entre o Egipto e os vizinhos, modificou progressiva- os antigos aldeões que assim despovoam os campos.
mente e, por vezes, com alguma brutalidade, os hábitos A terra do Egipto pertence ao Faraó, os homens do
e as mentalidades durante tão longo período. Assim, Egipto encontram-se ao seu serviço. Instaura-se uma
tornam-se indispensáveis as referências cronológicas administração sólida e hierarquizada. A conservação de
constantes. alguns títulos testemunha as diversas funções que per-
durarão, mas só a partir da ui e, sobretudo, da iv dinas-
Foi durante as duas primeiras dinastias que se ins- tia, com a multiplicação dos textos conhecidos, se tor-
taurou urn poder único no Egipto, que tomou inicia- nai-a possível reconstituir as bases institucionais e as
tivas políticas e económicas determinantes e criou estru- características mais importantes da sociedade egípcia
turas institucionais suficientemente fortes para condi- nos seus primórdios. Contudo, as modificações impor-
cionar a história do país até à conquista por Alexandre. tantes na própria concepção da monarquia e nas suas
Segundo um processo há muito presente na Meso- rclucdcs com a administração provincial tornam-se sen-
potâmia, os habitantes do vale e do delta do Nilo apre- síveis na dinastia seguinte e a história do país vê-se
sentam-se, cerca de 4500 a. C., reunidos em grandes marcada pela procura de um compromisso harmonioso
burgos agrícolas cujos vestígios sugerem, no mínimo, entre um governo necessariamente forte e uma tendên-
o esboço de uma organização socioprofissional e a exis- cia sempre premente para a regionalização.
tência de um artesanato em que a cerâmica tende a
ocupar o primeiro lugar. Durante o iv milénio, várias
culturas, algumas das quais em relação com o Próximo
Oriente, testemunham o notável domínio de diversas
técnicas, em particular no fabrico de objectos de pedra
dura ou de marfim, vasos, recipientes, estatuetas, cabos
para facas. A qualidade de alguns destes objectos, assim
como as dimensões de certos síleces, sugerem uma espe-
cialização capaz de confirmar o notável desenvolvimento
da cerâmica. A necessidade da repartição das tarefas no
seio das comunidades aldeãs começa então a impor-se.
Esta situação coincide, 3000 anos a. C., com a reunião
sob a mesma autoridade do vale e do delta do Nilo,
provavelmente em detrimento deste último.
Nessa época, o rei toma um certo número de medi-
das, destinadas a centralizar a gestão do novo patrimó-
nio: plano de irrigação e de controlo dos cursos de
água, avaliação dos rebanhos, das terras cultiváveis, do
A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 13

Tais números não podem, porém, ser directamente


comparados com as avaliações aqui reproduzidas, pois
referem-se sempre a uma categoria particular da popu-
lação, prisioneiros de guerra, operários, tropas envia-
das para determinadas campanhas militares, membros
de expedições organizadas a minas ou pedreiras situa-
CAPÍTULO I das nos desertos que circundam o Egipto. Raros foram
os actos de recenseamentos chegados até nós. Além
disso, são muito incompletos e abrangem apenas um
AS CLASSES SOCIAIS grupo determinado de pessoas. Estes documentos reflec-
E OS MEIOS SOCIOPROFISSIONAIS tem bem a complexidade de um sistema administrativo
(|iu: comportava simultaneamente um núcleo centrali-
zador forte cujos traços só indirectamente nos são for-
A demografia do país nas diferentes épocas consi- necidos e múltiplas engrenagens locais que nos legaram,
deradas foi alvo de raros estudos, e estes baseados p < > r vexes, testemunhos precisos, como a instituição
essencialmente na apreciação das colheitas. As avalia- iln T i i m i i l o , cm Tebas, na época dos Rameses: arquivos
çes propostas são, pois, puramente hipotéticas e suscep- c vestígios arqueológicos combinados dizem-nos, por
tíveis de discussão após um estudo sistemático dos exemplo, que tal aldeia de operários ao serviço do
números fornecidos pelos próprios textos egípcios: Faraó compreendia entre 40 a 60 famílias, cada uma
com 2 a 6 membros, vivendo em habitações com uma
área de cerca de 70 m2. Existem outras informações
Região
Época Antigo Império Novo inrnii:, completas, referentes a outras comunidades, a
Tinita Império Médio Império « n i t r o : ; períodos, mas .são, no conjunto, demasiado par-
ciais para serem simplesmente adicionadas.
Vale 600 000 1 040 000 1 120 000 1 620 000
Fayutn 6000 9000 61 000 72000 I — As categorias humanas e as classes sociais
Delta 210 000 540000 750 000 1 170 000 Heródoto, no século v a. C., escrevia, em O Inqué-
Desertos 50000 25000 25 000 25000 rito, n, 164: «Os Egípcios distribuem-se por sete clas-
ses: os sacerdotes, os guerreiros, os boieiros, os por-
queiros, os mercadores, os intérpretes, os barqueiros.
Não há mais; os seus nomes decorrem dos ofícios exer-
Total 866 000 1 614 000 1 966 000 2 887 000 cidos». (Trad. de A. Barguet, Plêiade). O regime feudal
que prevalecia no século VI, descrito pelo historiador
grego, confirma a existência de classes sociais, cuja ori-
(Segundo K. W. Butzer, Early Hydranlic Civilization in Egyp.t
Chicago, 1976, quadro 4, p. 83.) gem deve ser procurada nos tempos mais recuados.
14 DOMINIQUE VALBELLE ,•1 VIDA NO ANTIGO EGIPTO 15

A identidade de algumas destas classes, pelo contrário, a dos membros da família real. A considerável parte
parece-nos mais surpreendente e não se adapta à situa- reservada à administração, tanto aos níveis mais eleva-
ção social dos períodos mais antigos. dos como aos mais modestos, talvez se deva à identidade
do autor da compilação: Amenemope era «escriba das
Uma espécie de memorandum enciclopédico, datado da obras divinas na Casa de Vida». Mas, não está em
Xin dinastia, o Onomasticon de Amenemope, passa em revista,
depois dos elementos e das entidades divinas, o rei, os parentes, desacordo com frequentes testemunhos de omnipre-
os cortesãos, os oficiais e seus colaboradores, os sacerdotes, os scnça desta administração em todo o país e da sua esta-
operários, os artífices e diversas profissões, antes de citar as gran- bilidade, mesmo nos períodos mais conturbados. Na
des classes sociais, as etnias conhecidas e as grandes categorias lista, os sacerdotes precedem os operários e os artesãos.
humanas, tudo numa ordem cuja lógica nem sempre se revela
muito clara: assim, entre cargos administrativos figuram títulos
religiosos, enquanto funções militares interrompem séries de res- Verifica-se esta hierarquia num documento da XVII dinastia:
ponsabilidades económicas. uiii.i, cena de recenseamento figurada no túmulo de um escriba
i li i r i i i i i o <!<• Tu l mês IV, Tchanonny. Um comentário hieroglí-
Contudo, esta longa enumeração realça algumas evi- liru precisa (|nc se lr;il;i de «recensear todo o país, cm presença
ile MI.i Majestade; controlar todo o inundo, a saber: os soldados,
dências, evidências estas que são confirmadas por outros • w -..u i i.lnii". pino;.. M:, rin|irejvu1o:; reais <; os artífices de toda
textos mais breves. O soberano, interlocutor privile- , l,- ia i in indo n |uís, lodo o gado grosso, galináceos e gado
giado dos deuses, é a primeira personagem do Egipto. i m i ' . | ' > ., A p i n t u r a segui: uma ordem sensivelmente diferente: em
Detém todos os poderes e goza de todos os privilégios, p i i n i e i t o lugar vêm os sacerdotes, depois os empregados do
l''art)(), soldados, gado grosso e cavalos. Provavelmente o escriba
mas assume também os deveres mais pesados para com pretendeu lisonjear Tchanouny ao começar por citar os soldados.
o país e os súbditos. Partilha praticamente todos os
poderes, privilégios e responsabilidades com altos fun- Imporia observar i|ue, embora seja de admitir que
cionários civis, religiosos e militares que escolhe, fre- o iiiiimciiulo !'<•( i-iK.eatncnlo se refere ao país na sua tota-
quentemente, entre os membros da própria família. Este líilailc, lioniens e animais, parece na verdade limitar-se
tipo de governo autocrático reencontra-se por ocasião ."is camadas mais modestas da população e ao gado. As
das grandes restaurações que se seguem aos períodos altas funções administrativas, religiosas e militares
de perturbações internas graves ou de invasões estran- encontravam-se, de resto, misturadas no Onomasticon
geiras. Evolui rapidamente, logo que a prosperidade de Amenemope e sem que seja possível distinguir entre
suscita novas funções ou, pelo contrário, quando a elas qualquer hierarquia. A primazia dos outros padres
autoridade legítima se torna ineficaz, para um regime sobre os operários e os artífices não é anormal num
de tipo feudal em que os governadores de província, estado de direito divino. Reencontramo-la na exposição
os nomarcas, aumentam as suas prerrogativas em detri- de Heródoto. De resto, textos como estes eram copiados
mento do órgão central. Estas situações podem levar à por jovens escribas nas Casas de Vida dos templos.
tomada do poder por um fidalgote, um militar ou um Todas as observações decorrentes da sua análise,
grande sacerdote cuja eficácia tenha suprido as fraque- realçam, seja qual for o contexto, um pequeno número
zas do Estado. Assim, não nos sentimos desconcertados de informações imutáveis sobre o lugar ocupado pelos
ao ver que, no Onomasticon de Amenemope, a enume- indivíduos na sociedade egípcia e sobre as categorias que
ração das mais altas funções do reino surge logo após formavam. Desde a fundação de um Estado organizado,
16 DOMINIQUE VALBELLE
l 17

iodos os súbditos do Egipto estão, ern princípio, sujei-


los a obrigações. De acordo com o meio e a habilidade,
praticamente todos exercem uma tarefa definida ao ser-
viço do rei, podendo este atribuir pessoal a uma fun-
dação civil, militar, religiosa, funerária ou a um parti-
cular, de forma temporária ou permanente. Com o
t empo, a situação aligeirou-se.
Desde os tempos mais recuados, os Egípcios distin-
guiram vários estatutos na sociedade: o de nobre (prt),
<> de homem do povo ou súbdito (rhye e hnmmt),
.l' :;i" r ii:m(!o a palavra homem (rinf) qualquer indivíduo,
ou mu < I | H T a i i o m i , ainda, um .servo. Os nobres nunca
ilri :;im ,ul i l i n l i a r n M - I I e : ; l a d < > à llvnk: <los títulos.
i luiiliiil i | i i i i i i : i i n n i n a i asla (ccliada c. os exemplos
«li l ' 1 - i i i I :. I H i i l l a p i d a , quando se satisfaz o sobe-
niiin, n. M I são escassos. Pelo contrário, o casamento
« l i - um dek:s com filhas de nomarcas, apesar de mem-
lii-<>:; desta nobreza, contribuiu, na iv dinastia, para
inaiicliar o prestígio da realeza faraónica, que vê alguns
do:; seus caracteres absolutos rapidamente postos em
..... sã, durante o Primeiro Período Intermédio: origi-
n. n i a m e i i i e , o rei e a família situam-se acima da nobreza,
a qual, no entanto, pertencem.
As inscrições gravadas nos monumentos privados,
esteias, estátuas, túmulos, etc., comportam, geralmente,
vários títulos para a mesma personagem, desde que esta
ocupe uma posição de alguma importância na sociedade
da época. Entre estes títulos, alguns, herdados do pas-
sado, apresentam apenas um carácter honorífico. Os
l — Cena de recenseamento no túmulo de Ichanouny outros traduzem as funções que a personagem desem-
Tebas (cliché Daik-Brack). penhou, simultânea ou sucessivamente. Certos cargos
complementares constituem, habitualmente, uma prerro-
gativa do mesmo homem. Além disso, a acumulação
de responsabilidades administrativas, económicas, reli-
giosas, ou mesmo militares, sem ligação aparente entre
si, não é rara. Uma destas responsabilidades prevalece

\ VIDA NO AN
SABER 214 — 2
DOMÍNÍQUE VALBELLE VIDA NO ANTIGO EGIPTO 19
18

geralmente sobre as outras, mas o Egípcio coloca quase intimamente associada ao rei que este rapidamente pas-
sempre em plano de igualdade óbvia, o exercício ver- sou a designar-se por «Faraó».
dadeiro de uma profissão regular, o papel de gestor de O palácio «síp-s3» surge nos textos essencialmente
um grande domínio, uma missão de duração limitada ,i partir do Império Médio. Contudo, já no Antigo
confiada pelo rei ou por um alto funcionário e a prá- Império a locução se aplica à sede do poder central,
tica regular de uma devoção particular, por exemplo. > - n i relação directa com certos serviços efectuados por
Para compreendermos melhor este fenómeno, recorde- conta do rei: escolta e protecção, assim como a exe-
mos certos cartões de visita que pormenorizam os mais cução das suas ordens.
diversos méritos do seu proprietário, ao lado da menção O «Palácio/Domínio Real» (pr-nsw) é uma insti-
bem adornada do seu verdadeiro ofício. Este costume, tuição rujo papel essencialmente económico é directa-
largamente generalizado em todas as épocas, mostra que iu« n t . - c o n t r o l a d o pelo monarca. Em particular, constitui
não existia nenhuma barreira estanque entre as grandes i i i n . ) l o n i e privilegiada i lê doações cm benefício de fun-
ordens do Estado. Além disso, a expressão da única i l . M , < > ! • • . ou ( ! • • |>.ii i u nl.iivs, i i i i i n conic:.io muitas vezes
e mesma função pode apresentar variantes radicais, con- I n i u i i i i n . M I i . l i « i i i . - . i i . l M H | i i i i " ; i mu numero importante
soante se saliente a situação da pessoa relativamente > l i n li 1.1 . M I ' f . c .il)',ims c i v i s , sobretudo na província.
ao empregador, a categoria profissional a que pertence l" nus mii;i destas palavras se escreve pelo seu
ou a natureza precisa do seu trabalho. | i i o | > i i n ulii>£>i'uniíi, representando um edifício (ch).
l ' ( « l ia, contudo, não materializar a habitação usual do
rei, tuas .sim uma construção intermédia entre um pavi-
II — O palácio, a corte e as instituições reais lli.io >: uma capela utilizada pelo soberano de forma
m.ic; ou menos virtual, por ocasião de cerimónias, em
No Antigo Império, cinco palavras ou locuções ser- ( • i i i i i ( u l a r as dos jubileus. Porém, uma alusão a um
«lesses pavilhões, chamado «lótus de Isési», numa carta
vem para traduzir os diferentes aspectos da noção de
do rói ao arquitecto Senedjem-ib sugere, talvez, instala-
palácio real e suas funções essenciais. A «Casa Grande»
ções de envergadura. Desempenhava ainda uma função
(pr'3) é a mais frequente. Habitualmente citada em
económica em relação à Residência.
relação à capital, Mênfis, designa a habitação do soberano,
da família e dos amigos íntimos: Ptahchepses, favorito dos O «Interior» (hnw), geralmente traduzido por
últimos reis da iv dinastia, e também os seus sucessores, «Residência», ultrapassa largamente esta simples noção,
na v dinastia, «foi educado com as crianças da realeza na assim como a sua influência ultrapassa a de um Minis-
Casa Grande do rei, na Residência e no Harém do rei». tério do Interior. Abrange um organismo e, ao mesmo
Os títulos referentes a esta expressão abrangem, para tempo, um conjunto de construções. Esta entidade eco-
além dos serviços administrativos, o pessoal relacionado nómica de primeiro plano comportava uma administra-
com a vida quotidiana do rei — médicos, cabeleireiros, ção dependente, como o Domínio Real, do monarca.
barbeiros, manicuros, servidores diversos — e os artífi- Possui bens específicos, rebanhos, propriedades, pes-
ces. Não parece ter interferido na vida do país como soal. Dispõe de um arquivo e de celeiros. Desempenha
entidade económica própria. Por outro lado, está tão simultaneamente um papel de agente centralizador na
20
DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 21

produção dos domínios e, em particular, dos domínios


funerários, e de agente distribuidor no abastecimento
das fundações e seu pessoal. Exerce, assim, uma função
de controlo e de equilíbrio na gestão económica do país.
Desta rápida análise distinguem-se três missões
principais:
• A residência e a manutenção da família real,
• O cumprimento de rituais monárquicos,
• A sede do governo.
Estas três missões cumprem-se em locais próximos
mas distintos, como mostram ainda sem ambuiguidade,
no fim da xvm dinastia, os vestígios do centro da capi-
tal de Amenófis IV, Amarna. Conhecem-se muitos
outros complexos palacianos de todas as épocas, mas
poucos são suficientemente diferenciados para testemu-
nharem as várias funções enunciadas. De resto, não é
impossível que, quando a residência do soberano se
afastou de um dos dois grandes centros administrativos
do país, Mênfis e Tebas, como no Império Médio ou
na época dos Rameses, as instituições governamentais
tenham continuado a funcionar. A corte, pelo contrário,
acompanha o monarca, e os altos funcionários que a
compõem só a abandonam para realizar tarefas que lhes
são confiadas. Mesmo os responsáveis provinciais, nos H L
^P:R
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II:
períodos de poder autoritário, mandam construir sepul-
turas numa necrópole próxima do túmulo real. As
estruturas institucionais modificaram-se com o tempo
i
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e a sua importância relativa variou. O léxico, por vezes,
evoluiu. Mas, muitos elementos constitutivos das dis-
r\ Plano de situação dos edifícios ofic

posições primitivas continuam a ser utilizados. Assim,


conhecem-se as contas dos pães entregues na Residência, Amarna.
em Mênfis, datadas do ano 2 de Séthi I, i. 2'ahicio, harém do norte, harém do sul e alojamento do pés-
As instituições reais, civis ou militares e as funda- :,oul.— a. liua Eeal. — 3. Ponte ligando a casa do rei aos bairros das
ções religiosas ou funerárias dos sucessivos soberanos, luulhcrr.s. — i. Casa do rei. — 5. Arquivos. — 6. Armazéns. — 7. Negócios
K:;trani;<!iros. — 3. Casa de Vida. — 9. Santuários. — 10. Casas de sacer-
em todo o país, empregam pessoal abundante e variado, dotes.—11. Caserna. — 12. Quartel-general da Polícia.
DOAÍINÍQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 23
22

colocado sob a autoridade do soberano através dos seus O carácter divino da realeza egípcia nas origens não
representantes, vizir, directores de departamentos admi- carece de demonstração. Vivo, o rei é Hórus; morto,
nistrativos, generais, encarregados de missões, escribas... é Osíris. Da sua sobrevivência eterna depende a har-
O pessoal das instituições reais é composto por funcio- monia do mundo, isto é, do Egipto. Assim, em frente
nários que recebem um salário em espécie, calculado d:i pirâmide que encerra os seus restos mortais, cons-
em função dos impostos, assim como recompensas oca- trói-se um templo funerário no qual cinco estátuas com
sionais atribuídas, segundo os méritos de cada um, pelo a sua efígie são purificadas, vestidas, ungidas, ornamen-
próprio rei. O pessoal das fundações religiosas e fune- tadas e onde se depõem, diariamente, oferendas num
rárias está, habitualmente, a cargo dessas mesmas funda- altar próximo de uma porta secreta que permite que
ções, provindo os rendimentos da exploração das terras o defunto passe do mundo dos mortos para o dos vivos,
e do gado, que são ofertas do monarca e bastam, depois |i:ir:i :;t' a l i m e n t a r . Na base deste conjunto monumental,
de deduzidos os impostos, para os fazer viver e pros- ao t n i i i l sf r i i c o n l r a .libado por uma avenida, no vale,
perar. mu h i n j i l d de acolhimento <• uma cidade da pirâmide
Os domínios da coroa, os dos templos e os dos i v r r l i i - i i i r ^ . - i v l n u a l i a s k r i l I U T l t O do templo funerário,
particulares abastados parecem concebidos segundo um
. i l n j . i n i o | > r : ; : ; i > a l , o r g a n i z a m o serviço diário e prepa-
modelo comum e não é raro encontrar funções seme-
ram a.1; l r : ; l a s .
lhantes nestes diferentes meios. A gestão administrativa
engloba vários departamentos distintos: culturas e cria- Já na iii dinastia, um complexo funerário único
ção de gado, avaliação e conservação das colheitas, pre- celebrou, no planalto desértico de Saqqara, o jubileu
paração dos alimentos, prestação de serviços aos patrões, do n:i Djescr para a eternidade. Mas, as construções
oficinas de tecelões, marceneiros, sapateiros, fabricantes l i r i í c i a s que o compõem parecem organizadas para um
de vasos, jóias... Um certo número destas fundações, exercito de .sumiu-as c não para pessoal afadigado. No
independentemente da sua natureza, beneficia de privi- i n i r i i i da iv dinastia, estes vastos edifícios cobrem
légios excepcionais decretados pelo rei: são dispensadas vários hectares, sobretudo em Dachur e Giza. Foram
de pagar impostos ao Estado e a totalidade do seu os arquivos de templos funerários da v dinastia, em
pessoal é protegida contra qualquer trabalho ou requi- Ábousir, que chegaram até nós. Compostos, no essen-
sição externa, mesmo emanando dos serviços centrais. cial, por contabilidade, informam-nos não só sobre a
economia destas fundações e o lugar que ocupam na
III — Os templos, suas Casas de Vida, economia do país, mas também sobre a vida dos tem-
oficinas e domínios plos e o pessoal que os anima. Alimentados pelos domí-
nios funerários do rei ou de outros soberanos, por inter-
No Egipto faraónico, coexistiam duas espécies de médio da Residência e do templo solar do rei, os
templos: as residências dos deuses e os templos fune- rendimentos em víveres e em peças de tecido serviam,
rários construídos para o culto dos reis depois da morte obviamente, as necessidades post mortem do monarca,
e chamados, no Novo Império, «castelos de milhões de mas também alimentavam os numerosos empregados do
anos». estabelecimento.
DOMÍNÍQUE VALEELLE /l VIDA NO ANTIGO EGIPTO 25
24

As actividades diárias compreendiam um serviço de culto


Os grandes templos divinos são, eles próprios, sede
realizado duas vezes ao dia que corresponde às duas refeições de vastos empreendimentos de competências múltiplas.
terrestres do soberano defunto, à higiene das suas cinco estátuas, Oualquer santuário de alguma importância elaborou,
à leitura do ritual, a diversas purificações e libações e um ser- desde muito cedo, a sua própria cosmogonia, que o
viço profano, incluindo o encaminhamento e a preparação das :,iiua no local em que o mundo foi criado. Os arquivos
oferendas — um mínimo de onze galináceos, os melhores pedaços locais e os textos gravados nas paredes testemunham
de um boi, uma grande quantidade de pães de várias formas, < - s t u situação primordial. Os cultos, que são celebrados
cerveja, etc., a distribuição dos víveres previamente apresenta-
das ao rei, a guarda do edifício e do seu conteúdo, a redacção diariamente ou em datas fixas, honram as divindades
das peças de arquivos. O pessoal permanente repartia-se por cinco principais do local e seguem um ritual que se afasta
grupos, dirigidos por cinco chefes, que assumiam alternadamente muito pouco daquele que pretendia assegurar a sobre-
o cargo de acordo com quadros que chegaram até nós. Cada grupo vivência do rei morto. A estátua do deus substitui a do
estava dividido em duas secções de cerca de vinte pessoas, dota- h i , !''IH omra :;e profundamente encerrada no templo,
das de dois responsáveis. A este grupo regular juntam-se Os u n i u v i H H i a i i o cujas poria:; só são abertas pelos sacer-
sacerdotes-puros e os artífices, os cabeleireiros, os oleiros, os
cozinheiros, os lavadeiras, os remadores, os carregadores, os • l o i . s m . n , i | i i . i l i l ii ai los, os únicos autorizados a pene-
médicos e os cantores, num total de cerca de 300 indivíduos. i i u n.i /ou i m a r . :,.!".!.ida do icmplo. Procedem à sua
luy •. ycsicm na, 01 n a i m - n i a m na, incensam-na e apre-
Em volta destes complexos funerários reais, nas • m.mi Ilie os alimentos mais frescos e mais saborosos,
capelas dos túmulos circundantes, uma multidão de i c c i i a m l o o ritual divino quotidiano. Outros actos de
' pessoas asseguram junto dos cortesãos, dos altos fun- n i h o desenrolam-se nas diferentes partes do templo:
cionários e suas famílias, um serviço de oferendas mui- iransporte da estátua ou da barca do deus, em procis-
tas vezes vindas da oferenda divina do templo próximo. são, pelos telhados ou pelo exterior, a música e os
Os homens distinguidos pelo soberano podem beneficiar • .mios litúrgicos, os mistérios, os oráculos. Grupos de
de uma espécie de renda que satisfaz o abastecimento sacerdotes exercem, sucessivamente, segundo a compe-
em géneros indispensáveis e permite, assim, retribuir icncia e o grau de iniciação, cada uma destas tarefas.
os «servidores do ka» encarregados destes gestos pie- Km certas práticas, são ajudados pelos laicos, escolhidos
dosos. Esta renda provém, por vezes, tal como os ren- entre os notáveis da região.
dimentos dos templos, da exploração de um ou vários Mas, paralelamente aos deveres quotidianos do culto
domínios funerários repartidos pelo conjunto do país. desempenhados pelas diferentes categorias de oficiantes
Quanto aos templos funerários rameses, em Tebas, que substituem o soberano esta função hierática, outros
são um compromisso entre os templos funerários do trabalhos requerem arte, cuidados e qualidades inte-
Antigo e do Médio Império e os templos divinos. Cons- lectuais: a cópia e a redacção dos livros sagrados que
truídos segundo um plano semelhante ao dos templos se efectuam nas Casas de Vida. Estes institutos, pre-
divinos, compreendem um palácio, reduzido, indispen- cursores dos scriptoría das nossas abadias medievais,
sável às cerimónias jubilares e outras, que se realizavam formavam gerações de escribas que se treinavam na
no recinto sagrado. Foram igualmente importantes cen- reprodução das composições profanas e religiosas do
tros económicos como o Ramesseum e administrativos, passado, na compilação de novos documentos e pro-
curavam nos arquivos sagrados receitas médicas, mági-
como Medinet Habou.
26 DOMINIQUE VALBELLE , 1 VIJ J/1 NO ANTIGO EGIPTO 27

cãs e formulários astronómicos. Toda a espécie de sábios alimentos e de objectos manufacturados. As oficinas
por lá passavam. Não muito longe, no laboratório, do domínio di: A m o n , no NOVO I m p é r i o , eram tão
outros especialistas inventavam ou fabricavam perfu- prestigiadas que :.;io numerosos o:; altos funcionários aí
mes, unguentos e feitiços. d i - h - i i . l n , i l ; ' , i i i i i . i responsabilidade q u e mandaram repro-
Próximos deste mundo secreto e, contudo, aparen- i l n u ii,is |).iirdrs «Ia sua capela funerária uma visão
temente muito afastados dele pela natureza das suas .l .1,1:, :n liviiladc.s. No tempo cie Ramsés III, o domínio
actividades, os escritórios, os armazéns e as oficinas do df Amon empregava mais de 100000 homens.
templo fornecem uma imagem muito diferente. For-
niam, porém, o suporte material indispensável. Os
escrilórios «erem prioritariamente os interesses do IV — O exército e a marinha
domínio divino, exploração de terras repartidas pelo
conjunto do país, reprodução dos rebanhos, concessões
mineiras, etc., e contabilizam as colheitas, o produto As estruturas precisas do exército são pouco conheci-
das expedições e o espólio que os soberanos não deixam das, em especial nas épocas mais antigas. Justapõem-se
de trazer das campanhas militares no estrangeiro, para lílnlos honoríficos e funções reais, sem que seja pos-
glória do deus. Mas, assumem frequentemente tarefas sível reconstituir com segurança a hierarquia militar
q i h ' são, no essencial, da competência das instâncias <|ue evocam. Assim, é essencialmente a partir de rela-
governamentais, quo frequentemente ultrapassam, au- tos autobiográficos de soldados e sobretudo de oficiais,
nifiiiundo assim a sua influência. Vejam-se os grandes que conseguimos adivinhar a sua importância na socie-
processos que: se seguiram aos retumbantes roubos de dade e os períodos da vida que consideram dignos de
túmulos no fim da época dos Rameses e se desenrolaram interesse.
no recinto do templo de Amon, em Carnac. O seu No Antigo Império, não parece ter existido um
papel político crescente obriga constantemente os sobe- exército permanente, a julgar pelo que nos diz um
ranos a procurar, junto deles, a confirmação da sua director dos empregados do palácio de Pépi I, Ouni:
legitimidade. Conservam arquivos de toda a espécie e
conservam depósitos de bens pertencentes à coroa, para- «Sua Majestade rechaçou os Aamou que habitam-na-areia,
lelamente aos numerosos entrepostos e celeiros que upós o que Sua Majestade reuniu um exército muito numeroso
encerram os produtos provenientes do domínio divino. (composto de povo) de todo o Alto Egipto, do sul de Elefantina
:io norte da monarquia de Afroditopólis, do Baixo Egpito nas suas
Todavia, o Estado estipula um imposto sobre o con- duas Administrações inteiras, das praças fortes de Sedjer e Khen-
junto dos bens de produção, que podem ser considerá- sedjcrou (?), de Núbios de Irtjet, de Medja, de Iam, de Ouaouat
veis, se tivermos em conta, por exemplo, as doações i: de Kaaou, assim como de Líbios. Sua Majestade enviou-me à
efectuadas por Ramsés III aos principais templos do (Vente deste exército, enquanto os nomarcas, os tesoureiros do rei
Egipto. i ID Baixo Egipto, os Amigos Únicos do Grande Castelo, os chefes
i- 11;-, governadores de domínios do Alto e Baixo Egipto, os cor-
Fora do templo, nas suas terras e dentro dos seus ir:.:n>:; directores de caravanas, os directores dos sacerdotes do
muros, uma multidão de camponeses, operários, artí- A l i i i <• do Baixo Egipto e os directores das Administrações iam
fices e servidores empregam-se nas mesmas tarefas que :i IVcnie dos contingentes do Alto e Baixo Egipto, dos domínios
nos domínios reais, produzem as mesmas espécies de c das cidades que governavam e dos Núbios dessas regiões.*
28 DOMINIQUE VALBELLE
l A VIDA NO ANTIGO EGIPTO

Nenhum dos homens citados, tanto nas fileiras um sistema defensivo coerente, sujeito a um comando
como no comando, é um profissional da guerra. Se unificado situado em Bouhen. A descoberta de um
exceptuarmos o exército formado pelo rei em pessoa, arsenal em Mirgissa permitiu formular uma avaliação
para erradicar as pressões asiáticas sobre a fronteira cia guarnição regular: 70 homens armados, dos quais 35
oriental do país, e confiado a Ouni, os outros exér- de piques e 35 de arcos. Números semelhantes foram
citos são formados e chefiados pelos responsáveis avançados para outras praças fortes: entre 50 e 100
administrativos, dos quais dependem habitualmente. homens.
Todos eles incluem já efectivos estrangeiros. Nos alvores da xviu dinastia, é um oficial naval,
Kstu iniciativa da envergadura liberta um odor a Ahmés, que nos fornece testemunhos mais directos
improvisação, como sugere a continuação do relato: sobre a expulsão dos Hicsos e a conquista de Avaris,
sua capital: exército e marinha fluvial estreitamente
«Era eu que tomava as decisões, embora a minha função interdependentes, não podem ser dissociados e partici-
fosse a de director dos empregados do palácio real devido à cor- pam nos combates de maneira coordenada. Como é evi-
recção da minha conduta, de tal modo que nenhum (homem) dente, o relato procura valorizar os feitos do autor e as
me viesse às mãos (?) com o seu companheiro, que nenhum recompensas que obteve: o ouro «da valentia», terras
(homem) se apoderasse do pão ou das sandálias de alguém sem
ser posto na rua, que nenhum (homem) roubasse vestuário na junto à casa e os prisioneiros feitos. A lista nominativa
<-u1;uli: ou uma cabra ao dono. [...] Inspeccionava todos os con- destes prisioneiros, 9 homens e 10 mulheres, figura
íiujmtcs; nunca houvera inspecções feitas por outro inspector.» em anexo, como título de propriedade sobre estes
escravos.
Mais tarde, na x dinastia, o Enseignement pour Com as grandes campanhas na Ásia dos soberanos
Mérikarê mostra os soldados entregues à pilhagem da do Novo Império, o exército assume importância e
necrópole tinita. estrutura-se. Muitas vezes chefiado pelo próprio rei,
No Primeiro Período Intermédio, o recrutamento leva à sua frente um general em chefe auxiliado por
local pelos nomarcas prevalece sobre as iniciativas reais. todo um estado-maior. Divide-se em vários corpos, pro-
O país encontra-se dividido em vários grupos de regiões tegidos por um dos grandes deuses do país. Desde a
coligadas que se defrontam. A composição e o aspecto introdução, no Egipto, do cavalo e da roda, até ao
dos exércitos são-nos revelados por modelos de madeira, Segundo Período Intermédio, é composto por duas gran-
protótipos dos nossos soldados de chumbo, expostos des armas: a infantaria, compreendendo companhias de
no túmulo de um nomarca de Assiut: duas secções de 200 ou 250 homens distribuídos por 4 ou 5 secções,
40 homens, Egípcios portadores de lanças e escudos e e os carros. Com Ramsés IV, atinge-se o número de
Núbios arqueiros. No Império Médio, é a formidável 20 companhias, ou seja, 5 000 homens. Grandes textos
cadeia de fortalezas da Segunda Catarata que nos históricos largamente difundidos pelo país pormenori-
informa sobre o exército, sua organização e seus meios. xnin as subtilezas da arte estratégica egípcia. Os vestí-
As construções, em primeiro lugar, dão-nos uma ideia ;>,ioi; de fundações militares reais — cavalariças, acam-
da arte das fortificações no fim do m milénio e das pamentos, arsenais e depósitos de carros — são visíveis
dimensões consideráveis de certos aglomerados que um pouco por toda a parte, e sobretuod em Tebas e
albergavam. Alguns papiros dizem-nos que compunham i-m Pi-Ramsés. Constrói-se uma nova cadeia de forta-
50 DOAÍINÍQUE VALBELLE 1 VIDA NO ANTIGO EGIPTO 31

lezas, desta vez em direcção ao Próximo Oriente, no cisar, dentro dos limites do possível, a situação do povo
norte da península do Sinai, assim como na fronteira no seio da sociedade egípcia e os diferentes estatutos
líbia, de forma mais modesta, porém. Verdadeiras pra- que ela encerra. O povo é, muitas vezes, a categoria mais
ças-fortes albergam colonos na Núbia. A marinha mal conhecida porque nos deixa vestígios insignificantes
desempenha um papel crescente: tanto no transporte da sua existência. Indigente e analfabeto, desaparece
cias tropas em direcção aos portos da Síria e da Pales- em sepulturas rudimentares e anónimas e, sobretudo,
tina, como nos combates contra os Povos do Mar. não se retrata. Precisemos ainda que a demarcação entre
A proporção de mercenários estrangeiros, vindos de aqueles que conseguem, a custo, passar à posteridade
iodos os horizontes, aumenta constantemente e os tes- e aqueles que estão votados a soçobrar no esquecimento
temunhos da sua integração no país, depois da desmo- é ténue e variável consoante as épocas e os seus impon-
bilização, são abundantes. Parecem adoptar os costumes deráveis históricos. Assim, a modéstia das cabanas que
egípcios, usam geralmente nomes egípcios que recordam habitavam as comunidades obrigadas, devido às suas
a sua origem ou a dos pais, mas introduzem novos funções, a permanecer no deserto, não impediu estas
deuses, depressa venerados pelos Egípcios, que frequen- construções, muitas vezes feitas de pedra seca por falta
tam. A partir do reinado de Ramsés II, os antigos de água, de resistir melhor ao tempo e à concentração
combatentes vêem-se dotados de rendas e de terras. urbana que as ricas moradias erguidas nos vales. Além
A. classu militar torna-se cada vez mais o instrumento disso, situada por definição no coração da vida activa
do poder. Assim, não deve surpreender-nos que, no do país, esta mão-de-obra é a vedeta dos registos que
íini da x vi u dinastia, um general se torne faraó. chegaram até nós, sob a forma de avaliação global ou
O prestígio crescente do «uniforme» não deixa de de listas nominativas. É objecto de registos escrupulo-
suscitar, desde muito cedo, uma certa irritação entre sos e de controlos frequentes. Numerosa, é igualmente
outras categorias de funcionários. A Sátira dos Ofícios, motivo de orgulho para os empregadores. Hábil e dedi-
composição literária do Médio Império destinada a cada, aparece, por vezes, representada e nomeada ao
valorizar o ofício de escriba, em detrimento das pro- lado dos patrões, nas paredes dos túmulos.
fissões manuais, inclui, a partir do Novo Império, a O Antigo Império não nos legou, que se saiba,
situação do soldado, que descreve de forma muito pouco arquivos respeitantes à população trabalhadora que
lisonjeira. Mas a obra, que também adverte os leitores executou os grandes trabalhos da época: escavação da
contra a situação dos sacerdotes, é um órgão de propa- rede de canais indispensável a uma agricultura organi-
ganda feito para confortar os futuros escribas na esco- zada; construção dos grandes centros urbanos e da
lha da sua carreira. Não surpreende, pois, que contenha primeira capital, Mênfis; edificação das pirâmides e dos
episódios deveras tendenciosos. seus complexos funerários. Camponeses e servidores
ficaram ainda mais esquecidos. Apenas os prisioneiros
V — Os homens livres e os servos de guerra conservaram, por diversas vezes, a sua ima-
gem simbólica e os seus efectivos gravados na pedra.
Os quadros socioprofissionais até aqui apontados Não duvidamos de que estes homens e estas mulheres
reuniam a quase totalidade dos Egípcios. Contudo, antes tenham ido engrossar as hostes dos operários não espe-
de observar os homens no seu trabalho, importa pre- cializados e da criadagem egípcia.
32 DOMINIQUE VALBELLE
A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 33

Com o Médio Império, a sorte dos mais desfavore-


cidos é apaziguada por diversos decretos administrati- Duas outras categorias estão, por seu lado, indubi-
tavelmente privadas de liberdade: os prisioneiros de
vos. Os trabalhadores manuais são afectados a uma
guerra, os prisioneiros de direito comum e suas famí-
instituição real, religiosa, uma municipalidade ou um
particular. Empregam-se ora nos campos, ora em gran- lias. Os primeiros podiam ser directamente atribuídos
aos militares que os tivessem capturado, como se viu
des estaleiros, conforme as estações do ano e as neces-
sidades. Os empregadores enviam-nos frequentemente, no caso de Ahrnés, no início da xvm dinastia, ou envia-
para participarem na construção de um edifício público dos para os serviços encarregados da distribuição de
ou religioso, de uma região para outra. A viagem é mão-de-obra, verdadeiro «gabinete de colocações».
paga. Recebem rações de pão e cerveja das autoridades Quanto aos trabalhadores que fugissem do emprego, a
administrativas do estaleiro que os emprega. São desig- toda a espécie de desertores, aos infractores, devedores
nados por várias palavras: rntt, mnyw e hsbw. A última, recalcitrantes, ladrões ou criminosos, eram encarcerados,
após julgamento, na «Grande Prisão» e reduzidos a um
que significa «contados», insiste nos controlos de que estado muito próximo da escravatura, pois podiam ser
são alvo regularmente. Um serviço administrativo espe- legados por herança, cedidos ou vendidos. Arrastavam
cial geria esta mão-de-obra, sobre a qual não é, de modo na desgraça a própria família e, quando possuíam ser-
nenhum, possível afirmar se era livre ou servil. viçais, estes eram confiados a outros empregadores.
Acontece o mesmo com uma categoria vasta e vaga O pessoal afectado a um amo ou por ele adquirido é
que dá pelo nome de «servidores reais» (httiv nsw) e objecto de um registo rigoroso que compreende o nome,
abrange todos os servidores do reino, dos mais distintos o sexo, o apelido, a idade aproximada — criança, ado-
aos mais humildes. Estes são criados, operários ou lescente, adulto ou ancião —, por vezes a origem ou a
artífices especializados. Podem igualmente ser enviados especialidade, tudo isto depois da enumeração dos mem-
para instituições e fundações variadas ou para casa bros da família.
de simples particulares, por decisão do monarca, para Os arquivos do Novo Império são menos explícitos
executarem uma tarefa que exija uma habilidade rara, no que respeita a esta mão-de-obra servil porque a
por exemplo. A sua situação parece aproximar-se da :;ituação parece ter evoluído consideravelmente, sem que
dos funcionários de hoje, provavelmente com pouca o sistema institucional tenha sido profundamente modi-
margem para recusar uma missão. 1'icado. Gerações de antigos prisioneiros de guerra
Uma terceira categoria é reconhecida pela palavra fiicontram-se agora integrados na população activa em
smdt que parece caracterizar, na maior parte das vezes, postos mais ou menos elevados, enquanto novos pri-
grupos auxiliares em contextos variados: templos, insti- .'.ioneiros afluem às centenas após vitoriosas campanhas.
tuições reais, domínios diversos, etc. Susceptíveis de < >iitros são oferecidos como tributo pelos países subme-
secundar simples operários, não parecem gozar de um lidos à hegemonia faraónica. Os campos são cultivados
estatuto social muito elevado. No Novo Império, con- |ior camponeses cuja sorte nem sempre parece invejá-
tudo, passam desta situação à de operário, e inversa- vel, mas que beneficiam claramente de mais liberdade.
mente, conforme a conjuntura, o que elimina qualquer • >;; monumentos são construídos por operários funcioná-
possibilidade de servidão. rios cujo estatuto em nada parece comparável ao dos
tntbclbâdores manuais do Império Médio. Pelo con-
HAIIKH 2M — 3
DOMÍNJQUE VALBELLE

trário, os textos referentes ?. venda, à posse ou à doação


de escravos (hm/hmt, b3kjb3kt) não são raros, mesmo
em contextos operários. Os trabalhos forçados conti-
nuam a existir, no quadro de instituições governa-
mentais ou particulares, e são desempenhados por
delinquentes. Quanto aos empregados do Faraó que
trabalham nos seus domínios ou nos dos templos, nunca
foram tão numerosos. CAPÍTULO II

A OCUPAÇÃO DO TEMPO

Os Egípcios não escreveram diários íntimos, pelo


que se torna, muitas vezes, difícil reconstituir a sua vida
quotidiana. Contudo, alguns quadros profissionais, tem-
plos e estaleiros, conservaram horários de serviço e
notas tão completas e regulares sobre o avanço dos
i rabalhos, os abastecimentos, as ausências e seus moti-
vos, bem como toda a espécie de contabilidade, que é
possível seguir um sacerdote ou um operário quase
desde que acorda até que se deita. As informações
ivcolhidas deveriam limitar-se às actividades profissio-
nais. Mas, os Egípcios não separam em nada a vida
profissional da vida social e familiar. Assim, encon-
iram-se, por vezes, nos registos administrativos, algu-
mas indicações de ordem puramente privada que per-
mitem situar os diferentes aspectos da vida quotidiana
Hns em relação aos outros. Já o mesmo não acontece
i >in as outras categorias socioprofissionais. Muitas
•.vxes, temos de nos contentar com a natureza das tare-
l.i;; que determinado homem desempenhou em dado
momento da sua existência. E já não é mau. Mesmo
' i u 11 lacunas e tendenciosos, os relatos autobiográficos
-ccm ciados suficientes para reconstituir as obriga-
de uma função ou as etapas de uma carreira. As
l VIDA NO ANTIGO EGIPTO 37
DOMINÍQUE VALBELLE
36

As preocupações dos soberanos repartem-se pelas mani-


composições literárias também descrevem, por vezes, e festações simbólicas da realeza, as demonstrações de
de maneira mais pitoresca, o dia a dia das suas perso- piedade, a gestão económica do país e a defesa das
nagens. Outros textos, mais oficiais, enumeram os car- fronteiras. A vontade do rei exprime-se em decretos e
gos dos mais altos dignitários do Estado e informam- cin cartas reproduzidos em esteias ou nas paredes dos
-nos sobre o protocolo respeitado. túmulos dos cortesãos. Djéser e Nébka, Snéfru e os
sucessores da iv dinastia, Quéops e Quéfren, torna-
nim-se personagens literárias: procuram divertimentos
I — O rei e o seu vizir mais ou menos intelectuais. A Profecia de Nefertite,
Icita a posteriori^ no Império Médio, fornece-nos um
O Faraó, filho e herdeiro dos deuses, destinado resumo da etiqueta na corte:
a regressar ao seio destes depois da morte, é um ser
único e essencial, responsável pela vida, a alimentação, «Ora, aconteceu, no tempo em que Sua Majestade o rei
a paz e a harmonia do seu reino. Resume as qualidades Stnííru. justificado, era o rei benfeitor de todo o país, num desses
e os poderes indispensáveis à vida dos súbditos. As suas lias (portanto), aconteceu que os funcionários da corte entraram
10 pnlácio —vida, saúde, força.— para fazer as usuais saudações;
prerrogativas são, pois, de ordem simultaneamente !i.-pois de faxcrem as saudações saíram, como era hábito de cada
ritual e material. A sua imagem, porém, transforma-se lia. E Sua Majestade —vida, saúde, força— disse ao tesoureiro,
consoante as modalidades do governo, os sucessos e os |ne se encontrava perto: "Vai e traz-me os funcionários da corte
fracassos da sua política. Primeiro pontífice e detentor iue saíram daqui (onde tinham estado) para fazerem as saudações
Io dia." Foram imediatamente reconduzidos a Sua Majestade.
do princípio monárquico por essência, é também homem Kntão, deitaram-se de novo diante de Sua Majestade...» (Romans
de Estado e combatente. i-t contes égyptiens, tradução de G. Lefebvre, Paris, 1949,
No Antigo Império, o cerimonial que preside à [.['• S6-97.)
higiene do rei inspirou necessariamente os ritos prati-
cados nas estátuas e no templo funerário, depois da sua O Conto de Sinouhé que, desta vez, apresenta um
morte. Constituem, pois, um reflexo simplificado que i dato contemporâneo da xn dinastia, é um pouco mais
a representação do despertar de um cortesão, Ptahhotep, preciso:
no seu próprio túmulo, vem confirmar. Compara-se
«Dez homens vieram e dez homens foram, conduzindo-me
habitualmente, e com razão, esta cena com a que se . M I palácio. Eu tocava com a cabeça no solo, entre as esfinges;
desenrolava, todas as manhas, na corte de Versalhes. M crianças reais encontravam-se à porta da entrada, à minha
Os anais dos reis da época conservaram, ano após ano, .';p"ra. Os Amigos, que já "tinham sido introduzidos no átrio,
os acontecimentos considerados marcantes: jubileus e ipnntíiram-me o caminho dos aposentos privados. Encontrei Sua
Majestade num trono de prata e ouro (colocado) num nicho.
outras festas relacionadas com a função monárquica, ( .>uundo me deitei de rastos no chão, perdi os sentidos, na sua
fundações, doações e oferendas piedosas, construção presença.» (Segundo G. Lefebvre, op. c/í., p. 21.)
de capelas, palácios, fortalezas, fabrico de estátuas e
barcas divinas ou reais, recenseamentos, importações, Os soberanos do Império Médio passaram à poste-
campanhas militares, avaliação de prisioneiros e de ii«lade com uma imagem de pessoas avisadas, dotadas
espólios precedem, conforme as circunstâncias, a men- <Ic qualidades morais, autores verdadeiros ou fictícios
ção do nível das águas de que dependem as colheitas.
DOMÍNIQUE VylLBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 39
38

As audiências que se realizam quotidianamente nos


de conhecimentos destinados aos herdeiros e, através
seus aposentos, quando reside na capital, cumprem um
deles, a todo o país. protocolo imutável:
Do Novo Império, fica-nos sobretudo a imagem de
faraós chefes de exércitos, aureolados de glória, à frente «Está sentado numa cadeira, um tapete (estendido) no chão,
de tropas vitorianas, oferecendo aos deuses as riquezas um dossel (colocado) por cima da sua cabeça, uma almofada de
dos países conquistados, recebendo os tributos dos seus couro no assento, outra aos pés, [...], uma bengala na mão,
vizinhos subjugados ou distribuindo, com grande pompa, quarenta pergaminhos desdobrados à sua frente; os grandes das
recompensas generosas aos melhores servidores do dezenas do Sul (permanecem) de cada um dos lados, à sua frente,
o camarista à direita., o encarregado dos rendimentos à esquerda,
Estado. Muitos deles foram também legisladores: os escribas do vizir ao alcance da mão, um susceptível de corres-
Horemhed, Séti I, Ramsés II celebrizaram-se pelas ponder com o outro (?), cada um no lugar conveniente. Todos
suas reformas. Amenófis IV, por fim, tornou-se ilustre, são ouvidos, chegada a sua vez, sem permitir que quem quer que
em particular, pelas suas concepções naturistas que seja passe à frente do que tem direito a precedência...»
Em primeiro lugar, são-lhe entregues as chaves dos cofres-
influenciaram profundamente as mentalidades, a arte -fortes a fim de que possa proceder à sua abertura. Em seguida,
e a literatura religiosa no fim da xvin dinastia. informa-se sobre a situação das fortalezas do Norte e do Sul.
As despesas e os rendimentos do Domínio Real e das terras da
O papel do vizir e dos altos funcionários está tão Residência são-lhe comunicados. Os chefes da polícia e os direc-
tores dos distritos submetem-lhe os seus relatórios. Depois disto,
estreitamente ligado ao do soberano no governo do dirige-se ao palácio para cumprimentar Sua Majestade e avistar-se
país que nem sempre é fácil adivinhar, na ausência com o chanceler para se assegurar das medidas de segurança
de uma autobiografia precisa, as responsabilidades de biquotidianas respeitantes à abertura de todas as portas do Domí-
cada um. As funções do vizir, que correspondem às de nio Real. O dia de trabalho está agora a começar.
Só ele tem competência para julgar os altos funcionários
primeiro-ministro, isto é, do chefe do executivo, estão acusados pelos colegas e para resolver os litígios internos do
comprovadas desde a iv dinastia, o que não significa Domínio Real. Qualquer funcionário, do mais importante ao mais
que não possam ter existido antes. No Novo Império, humilde, pode pedir-lhe conselhos. É ele que regista os legados,
quando os cargos que comporta se tornam demasiado os actos de venda ou de partilha. Examina os pedidos relativos
à exploração de terras. Manda abater árvores no Domínio Real,
pesados, o vizir desdobra-se em dois, um opera no quando necessário. Decide quanto à construção de diques, man-
norte, enquanto o colega se consagra ao sul. Garantes tém-se ao corrente do estado da rede hidrográfica e zela pela boa
do bom andamento do reino, os vizires são escolhidos distribuição da água através dos campos, dá instruções aos
pelo soberano entre os seus íntimos, ou mesmo na nomarcas e chefes de domínios, no momento das colheitas.
própria família. Muitos textos biográficos louvam os Decide quanto aos limites dos distritos agrícolas de cada nomo
e quanto aos prados de cada zona de pastagem (?). Anuncia a
méritos e os feitos de vizires defuntos, mas o túmulo chegada das cheias que marcam o início do ano, depois de ter
de Rekhmirê, colaborador de Tutmés III e dos seus observado o aparecimento da estrela Sirius. Ordena os impostos
sucessores, foi o único que conservou simultaneamente que lhe são entregues com grande pompa pelos representantes
a cena de intronização e o discurso que o monarca pro- de todo q Egipto e recebe os tributários dos países do império.
nunciou por essa ocasião, uma exposição pormenorizada Nomeia os funcionários, manda proceder ao recrutamento de
dos deveres originados por essa posição de primeiro tropas para a escolta do rei, envia mensageiros aos responsáveis
locais para execução dos decretos reais e comunica as instruções
plano e a representação comentada das principais activi- ao estado-maior do exército.
dades que encerra.
DOAÍÍNIQUE VALBELLE i VIDA NO ANTIGO EGIPTO 41
40

Sim Majestade nomeou-me para o cargo de Amigo, director dos


Como é evidente, estes assuntos não são tratados profetas da cidade da pirâmide. [...Sua Majestade nomeou-me]
todos no mesmo dia, mas ao longo do ano. Trata-se, magistrado da cidade de Nekhen, (porque) tinha mais confiança
porém, de um breve resumo das responsabilidades assu- '•m mim do que em qualquer dos seus servidores. Juntamente
i < >m o vizir, julgava os assuntos mais secretos e os que impli-
midas pela personagem. Outras cenas do seu próprio '•avam o nome do rei, do harém real e do Tribunal dos Seis [...]
túmulo mostram-no ainda a inspeccionar os armazéns Knquanto fui magistrado da cidade de Nekhen, Sua Majestade
e as oficinas do domínio de Amon. Além disso, sabe-se nomeou-me Amigo Único, director dos empregados da Casa
que se ocupava pessoalmente da preparação da sepul- (.irande [...]. Houve um processo secreto no harém real contra
tura do soberano e do andamento dos grandes estaleiros a esposa real, grande favorita. Sua Majestade permitiu que eu
lulgasse o caso sozinho, sem nenhum magistrado, vizir ou notável
reais. Assiste às cerimónias monárquicas mais impor-
além de mim [...].»
tantes e participa nas principais festas religiosas, etc.
Assim, compreende-se facilmente a necessidade de uma
vasta administração de engrenagens múltiplas para o É aqui que intervém o episódio, já apontado (p. 27),
que apresenta Ouni à frente do exército constituído
secundar.
para rechaçar os invasores vindos da Ásia. Perante tal
sucesso, Ouni é novamente encarregado por Pépi I de
II — Os funcionários reunir, por cinco vezes, tropas para combater os mes-
mos inimigos e de as conduzir, em pessoa, a uma vitória
Não cabe nesta obra a enumeração, mesmo resu- definitiva. De regresso à corte, novas tarefas o espe-
mida, dos cargos mais representativos exercidos pela ravam:
administração central e pela administração provincial.
Bastar-se-á dar a palavra, por alguns instantes, a um «Quando era oficial do Grande Castelo, porta-sandálias, o rei
alto funcionário da vi dinastia, promovido a nomarca do Alto e Baixo Egipto Mérenrê, meu senhor —que viva eter-
e director do Sul e, em seguida, debruçarmo-nos sobre namente! — nomeou-me nomarca, director do Alto Egipto, do
a engrenagem administrativa essencial, o escriba, para :-nl de Elefantina ao norte de Afroditopólis [...] Todo o tra-
balho foi cumprido, todas as possessões da Residência devendo
avaliarmos uma ínfima parte da extensão das tarefas :.cr inventariadas no Alto Egipto, foram inventariadas no Alto
desta função pública tão minuciosamente organizada ií;;ipto, duas vezes. Formou-se um conselho e foi um sucesso no
que sobreviveu às crises monárquicas e às invasões mais Alto Egipto [...] Sua Majestade enviou-me a Ibhat para recolher
.1 sepultura dos vivos «Senhor da Vida», com a tampa e a pirâ-
severas. mide quadrangular preciosa e augusta destinada à pirâmide
O director dos empregados do palácio, Ouni, que •••Mérenrê surge na (sua) perfeição», minha soberana. Sua Majes-
já encontrámos devido às responsabilidades excepcio- i.ide enviou-me a Elefantina para trazer a porta secreta de granito
nais que lhe confiou Pépi I na chefia do exército, con- c o seu umbral, os rastrilhos e os lintéis de granito, para trazer
ta-nos, de história em história, os mais notáveis episó- as portas e as lajes de granito da parte superior da pirâmide
(Mérenrê surge na (sua) perfeição», em seis lanchões, três barcos
dios da sua carreira de cortesão: i vela e três botes... (?), numa só expedição [...] Sua Majestade
i nviou-me a Hatnoub para trazer uma grande mesa de oferendas
«Eu era (ainda) uma criança de olhos vendados, no reinado ' ! > • alabastro de Hatnoub [...] Sua Majestade mandou-me escavar
de Téti, e já exercia funções de chefe de entreposto; fui nomeado • nu o canais no Alto Egipto e construir três jangadas e quatro
director dos empregados da Casa Grande [...] sacerdote- l un-ns à vela em acácia de Ouauoat, enquando os príncipes
-leitor mais antigo do palácio primordial, no reinado de Pépi.
42 DOAÍÍNÍQÚE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 43

estrangeiros de Irtjet, Uoaouat. Iam e Medja forneciam a madeira ossos de trabalhador; és alto e magro. Se puxares ou carregares
necessária [...]» (Segundo A. Roccati, La littérature historique um fardo, desfalecerás, etc.»
sous 1'Ancien Empire, Paris, 1982, pp. 191-197.)
enquanto outras versões se baseiam mais directamente
Ao longo da sua carreira, Ouni assume sucessiva- nas vantagens materiais e nas prerrogativas da pro-
mente, ou simultaneamente, responsabilidades adminis- fissão:
trativas no seio do palácio, judiciárias na província, e
mais tarde também na corte, militares e novamente «Quero aconselhar-te no plano intelectual e no plano físico,
administrativas, mas, desta vez, num plano mais ele- para que (saibas) manejar a paleta com facilidade, que obtenhas
vado, já que é colaborador directo do rei e do vi/ir a .confiança do rei, que tenhas acesso aos arquivos e aos celeiros,
que (sejas capaz) de receber o trigo à entrada do celeiro e que
em todo o sul do país, antes de ser encarregado de estejas em condições de proceder à oferenda divina nos dias de
missões de confiança respeitantes ao ordenamento da festa, (bem) vestido e munido de cavalos, enquanto a barca te
sepultura do último dos quatro soberanos que serviu. espera no rio; serás acompanhado por uma escolta e livre de
circular à tua vontade, por ocasião das tuas inspecções. Disporás
de uma casa na cidade e o soberano conceder-te-á um posto
A formação dos escribas compreende a cópia de importante; estarás rodeado de servidores e de criados e os que
textos de propaganda, cartas-modelo e contabilidades- vivem no campo, nas terras que mandaste cultivar, quererão
-tipo, reunidas em colectâneas. No Novo Império, cer- apertar-te a mão. Olha, faço de ti um auxiliar de vida. Regista
tas composições inspiradas na Sátira dos Ofícios pros- (bem) os escritos, de modo a evitares imposições e a tornares-te
um excelente magistrado [...].»
seguem a sua difusão, renovando-lhe parcialmente a
inspiração. A insistência com que procuram desencorajar
os jovens que aspiram a outras profissões ou os escribas As funções do escriba são extremamente variadas
tentados por uma reconversão acaba por se tornar consoante o serviço público ou privado que o emprega.
suspeita, tanto mais que outro tema literário, visivel- Pode ser fixado na cidade ou conduzido ao campo,
mente muito generalizado, consistia em cartas fictícias mantido no seio de uma instituição ou afectado a uma
de exortação enviadas a escribas preguiçosos. «uarnição distante. Comportam, porém, na maior parte
A forma mais tradicional do género começa pela (Ias vezes, responsabilidades de importância variável
injunção: «Sê um escriba!», seguida de uma longa e «lue o colocam numa posição fora do comum e sugerem
pormenorizada lista dos males que espreitam os jovens lioas perspectivas para o futuro: «todos procuram ele-
que cometam a imprudência de fazer outra opção. var-se». Saber ler, escrever e contar, conhecer as leis,
Estão, pois, em causa todas as profissões possíveis e confere um indiscutível poder sobre uma população em
imaginárias, com excepção da de escriba. Uma versão !>nmde parte analfabeta. Ora, não é necessário pertencer
mais subtil limita-se a sublinhar, de forma geral, as van- -.\a sociedade egípcia para ser escriba. Assim, não
tagens de ser escriba para aqueles que apresentam uma é raro, ao percorrer árvores genealógicas, encontrar
constituição delicada: verdadeiras «dinastias» de escribas, como a que redigiu
<>•, arquivos do «Grande e Nobre Túmulo de Milhões
«Sê um escriba, o teu corpo é delicado e o teu braço cansa-se • l- Anos de Faraó», do ano 16 de Ramsés III até ao
(rapidamente); não te consumas como uma vela seguindo o exem- mo 20 de Amenemope, isto é, durante cento e cin-
plo daqueles cujo corpo perdeu (toda) a força, pois não tens • | U f i i i : i anos, aproximadamente.
44 DOMÍNÍQUE VALBELLE
A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 45

Sete homens se sucederam neste posto que consistiu, en-


quanto o governo conseguiu mater a calma e uma prosperidade num estaleiro pelo qual o rei revelasse um interesse
relativa no país, em elaborar um rol extremamente minucioso particular, tinham a possibilidade de ser notados, recom-
dos homens empregados na fundação real, do andamento dos seus pensados ou promovidos. Foi assim que Méréptahaukh-
trabalhos, dos materiais entregues e utilizados no estaleiro, dos
instrumentos, dos salários pagos em cereais todos os meses pelos mérirê, dito Nakhébou, passou, de simples pedreiro que
serviços centrais e das actas jurídicas estabelecidas na aldeia de fora nos primeiros tempos, a arquitecto preferido de
Deir el-Mcdineh, onde habitavam os homens e os chefes de que Pépi I:
o escriba fazia parte. Este era ajudado na sua tarefa por dois
outros escribas encarregados dos auxiliares da equipa (smdt)
c do abastecimento quotidiano que estes forneciam. Mas, a cor- «Sua Majestade conheceu-me como pedreiro e Sua Majestade
respondência com o vixir, excepcionalmente com o soberano, nomeou-me inspector dos pedreiros, director dos pedreiros e
e com as autoridades regionais, assim como os relatórios e director do ofício; Sua Majestade nomeou-me carpinteiro e pe-
outros documentos oficiais eram apanágio apenas do «escriba dreiro do rei; Sua Majestade nomeou-me Amigo Tjnico, carpin-
do Túmulo». Quando as greves agitaram a comunidade operária, teiro e pedreiro do rei nas duas Administrações [...] Enquanto
cada vez mais frequentemente privada de salários, foi ele que estive com o meu irmão, o director dos trabalhos... escrevia
conduziu as negociações. Mais tarde, quando bandos armados, em e usava a sua tabuinha; quando ele foi nomeado inspector dos
número crescente, começaram a devastar os campos e a adminis- pedreiros, eu usava a sua régua (?); quando foi nomeado direc-
tração central, ocupada em tarefas de primeira necessidade, pre- tor dos pedreiros, eu era o seu terceiro (companheiro); quando
cisou de mais pessoal, o escriba do Túmulo foi substituir, de foi nomeado carpinteiro e pedreiro do rei, eu dirigi o domínio
início localmente, depois regionalmente, as autoridades assober- cm sua substituição e tudo foi perfeitamente executado; quando
badas. Refugiado, com uma equipa reduzida, dentro das muralhas ele foi nomeado Amigo Onico, carpinteiro e pedreiro do rei nas
fortificadas do templo funerário de Ramsés III. que se tornara duas Administrações, eu fazia as contas de todas as suas pos-
o centro administrativo governamental da região, é aí que instala sessões. Os bens que se encontravam na sua casa aumentaram
um gabinete digno das suas novas funções, que consistiam essen- tanto como na casa de qualquer notável. Quando foi nomeado
cialmente em percorrer as aldeias e os domínios de todo o sul director dos trabalhos, eu substituí-o em todos os seus negócios,
do país a fim de cobrar os impostos necessários ao funcionamento para sua grande satisfação. Assim, geri o seu domínio funerário
das instituições tebanas e, em particular, aos salários dos funcio- durante vinte anos [...] Sua Majestade mandou-me dirigir...
nários. Um deles tornou-se mesmo, contra sua vontade, pois a sua Procedi de modo a satisfazer Sua Majestade no Alto e no Baixo
correspondência insiste frequentemente no seu horror às viagens, 1'fiipto; Sua Majestade mandou-me dirigir o traçado (?) do canal
encarregado de missões importantes que o levaram ao Médio i k: Kémis de Hórus e a sua escavação. Mandei-o escavar no espaço
Egipto e à Núbia, onde o exército egípcio defendia com dificul- ile três... (?), a fim de regressar à Residência quando (já) esti-
dade a fronteira sul do país. vesse cheio de água [...].» (Segundo A. Roccati, op. cit.,
l .p. 182-186.)

Nakhébu, depois de ter feito a aprendizagem do ofí-


III — Os operários e os artífices i io de pedreiro e de carpinteiro juntamente com o irmão,
r.cre os bens deste, que se encontra demasiado ocupado
A distinção entre operário especializado, artífice l cuidar de si mesmo. Em seguida, percorre o caminho
e artista não tinha existência institucional. Algumas • Io irmão mais velho, subindo um a um os degraus da
profissões, mais do que outras, permitam que aqueks i > n > í i : ; s ã o . As suas encomendas incluem tanto a cons-
que as exercessem mostrassem as suas habilidades ou ttuçSo de edifícios, incluindo as estruturas, como a esca-
talentos. Se trabalhassem na corte, numa oficina ou !• .MI de canais. A sua promoção é, sem dúvida, espec-
i • n l . i r uvas, encarada no contexto familiar que ele
DOMÍNIQUE VALBELLE .4 VIDA NO ANTIGO EGIPTO 47

descreve, não implica realmente uma promoção social mós de lado os dias de festa em que toda a equipa se
equivalente. Mesmo tendo começado na profissão como dirige, com mulheres e filhos, a caminho do cortejo para
observar a barca sagrada e os oficiais que vieram propo-
simples pedreiro, Nakhébu nunca parece ter sido um
sitadamente para o efeito, os dias em que celebram as
proletário. suas próprias cerimónias religiosas, aqueles em que o
Na verdade, a família constitui um factor importante
na orientação dos jovens, que deviam iniciar muito cedo vizir honra o estaleiro com a sua presença, aqueles em
uma aprendizagem. O pai e os irmãos iniciam os ado- que a comunidade acompanha um dos seus à última
lescentes no seu próprio ofício. Só aqueles que não morada, ou ainda todos aqueles durante os quais decidem
conseguem empregar-se na mesma instituição, na mesma fazer greve, ocupar o local de trabalho ou m?.nifestar-se
junto dos templos funerários da margem oeste, quando
oficina, procuram trabalho fora.
As biografias, gravadas ou pintadas em túmulos, que as suas rações de trigo e de aveia tardam a ser distri-
apresentam já uma certa importância, dizem respeito, buídas.
por definição, apenas à classe mais abastada. Não deve- Consideremos um dia normal de trabalho. O soberano ou
mos esperar, portanto, que este género literário nos o vizir veio à necrópole escolher o local mais propício para o
informe sobre as camadas mais modestas da população. ordenamento do túmulo. O plano do túmulo foi elaborado por
uma pequena comissão de notáveis e pelos superiores da equipa.
Na maior parte das vezes, estas contentam-se em assi- O traçado de vários corredores e salas, durante o qual apenas
nalar, nos seus monumentos, as funções que exerceram metade da equipa podia intervir ao mesmo tempo, está terminado.
eles próprios e os familiares. Excepcionalmente, fazem-se 0 campo está livre para os especialistas. Os homens abandonam
representar na obra de arte, mas é mais corrente encon- :i aldeia de madrugada. Têm à sua frente oito horas de labor
:i realizar. Percorrem o carreiro que os leva, à beira das falésias
trá-las anonimamente entre os companheiros de trabalho, il<: greda, até ao colo que domina o Vale dos Reis. É aí que, nas
na evocação de um estaleiro ou de uma oficina, no cabanas de pedra seca que construíram para as ocasiões em que
túmulo do alto funcionário responsável. É, portanto, não regressam à aldeia, depositam a refeição do meio-dia. Dei-
graças aos arquivos que podemos reconstituir, de resto •:am-se escorregar ao longo do caminho a pique que conduz aos
estaleiros. Os porteiros., que asseguraram a guarda do cofre-forte
muito facilmente, o dia de trabalho de um operário. < ide se alinham os materiais indispensáveis à construção das
Embora esta reconstituição não abranja nenhuma comu- 1 i redes do futuro túmulo, cumprimentam-nos friamente, interro-
nidade para além da dos homens do Túmulo, empre- 1 indo-os sobre os seus substitutos. Pode começar a chamada.
gados que os reis do Novo Império entretinham prin- ! : o escriba estiver ocupado, far-se-á mais tarde. O contingente
cipalmente a escavar e decorar os seus hipogeus no l ii-cce reduzido, hoje de manhã. Amennakht partiu para um vale
distante, juntamente com Pached, em busca de gesso, a fim de
Vale dos Reis, em Tebas. l.ihricar a massa que cobrirá as irregularidades da rocha. Neferren-
Trata-se de simples operários. Os seus chefes, os |n-r já se ausentou para beber um pouco de água. Quanto a
escribas, tiveram a mesma origem, antes de mandarem 'irmiedjem e a Ramosé, deviam ter ido visitar o tio, gravemente
neles, sucedendo habitualmente aos pais nos mesmos car- i l u i i M o , a uma aldeia próxima. Pavamessu espera o nascimento
.('• mn filho e Amenhotep está a cuidar da infecção que Pakharu
gos, mas estas famílias encontram-se firmemente instala- • MI i imiti nos olhos. Nakhy e Kenherkhepechef arranjaram maneira
das naquilo que se nos revela como uma sinecura, se • ! ICT mordidos por um escorpião, enquanto Inherkhaou fabrica
tivermos como referência as outras comunidades operá- ervcjt, na companhia de Kenna, tendo em vista a festa de
rias de que a história do Egipto nos deixou testemunhos M. H V>IT, a deusa da elite tebana. Doze ausentes em sessenta:
UM '" muito mau!
suficientes para que a comparação possa ser feita. Ponha-

l
, l VIDA NO ANTIGO EGIPTO 49
48
DOMÍNÍQUE VALBELLE

i lixada e registada pelos escribas para evitar as contestações que


Vão-se buscar os sacos que servirão para despejar os detritos surgem tão facilmente neste universo fechado. Quando se instala
e as mechas dos candeeiros que o estaleiro, cada vez mais às um litígio, ou é apresentada uma queixa junto dos chefes, um
escuras à medida que os trabalhos avançam, consome enorme- tribunal constituído por homens e, ocasionalmente, por mulheres
mente. Todos pegam nos seus instrumentos, verificando o seu da comunidade reúne-se e julga a questão. Se o julgamento deixar
estado com inquietação, pois terão de os restituir, terminado as partes insatisfeitas ou se não for respeitado, resta o recurso
o trabalho, ao escriba que comparará o seu peso com o de uma no oráculo do santo patrono da aldeia, o rei divinizado Ame-
pedra padrão, na qual estão escritas todas as informações neces- nófis I. Os casos que ultrapassem o estrito quadro da aldeia são
sárias ao controlo. Finalmente, os presentes estão prontos para da competência de tribunais regionais mais importantes, como
começar a trabalhar. A escultura de uma parede está quase termi- aconteceu com as célebres pilhagens dos túmulos reais no fim
nada; pode dar-se início à coloração. Os pintores trituram e mis- c In época dos Rameses, nas quais os operários do Túmulo esti-
turam os pigmentos que foram buscar à montanha, nos dias pre- veram repetidamente implicados.
cedentes. Em frente, um escultor, com a ajuda de um pequeno A escavação da rede subterrânea do túmulo real raramente
cinzel de cobre, talha na superfície polida, com muita arte, si: prolonga por mais de dois anos, depois dos quais só os escul-
silhuetas traçadas por um desenhador em ocre vermelho e que lores, os desenhadores e os pintores prosseguem os seus trabalhos.
urn trabalhador mais velho, um chefe de equipa ou o escriba \o poderá estar
corrigiram a negro. Corredores profundamente escavados na mon- (lortos reinados foram breves e os estaleiros, sucedendo-se a um
tanha, ouvem-se as pancadas das grandes picaretas de bronze ritmo demasiado rápido, permaneceram muitas vezes inacabados.
despedaçando a rocha que os menos qualificados e os aprendizes Acontece, porém, que a equipa, que oscila habitualmente entre
recolhem nos sacos que, em seguida, despejam no exterior. Aí, não •10 e 60 membros, seja seriamente reforçada, em caso de necessi-
longe da porta, outro desenhador ensaia uma composição para dade, ou mesmo redobrada. A frequência das ausências indivi-
uma cena funerária que será reproduzida e aumentada numa duais e colectivas da equipa, as múltiplas encomendas que escribas
superfície em preparação. O desenhador passa a ponta amassada e operários executam em seu benefício pessoal —estátuas, sarcó-
da cana de bambu pelos pedaços de rocha mais regulares, que fagos pintados, Livros dos Mortos, etc.— não sugerem cadências
anteriormente seleccionou. Perto dele, o filho mais velho e o infernais. É verdade que uma equipa pouco ocupada pode ser
sobrinho entretêm-se a garatujar figuras imitando as do dese- niilizada em tarefas artesanais da mesma região, mas estes tra-
nhador. Mais adiante, num abrigo da rocha, confortavelmente lialhos extraordinários também são ocasião de recompensas suple-
ordenado, o escriba bem instalado toma nota, em pedaços de mentares.
calcário, dos progressos do estaleiro, notas estas que mais tarde
copiará para o diário do Túmulo. Interrompe o trabalho a melo
da manhã para receber um carregamento de mechas entrançadas IV — Os camponeses
e de óleo iluminante e elabora imediatamente o inventário.
O trabalho termina ao meio-dia. Os homens, que há muito
não saíam para o exterior, piscam os olhos sob influência da luz O mundo camponês, no Egipto faraónico, é objecto
que se reflecte por todo o vale desértico e tórrido. Partem em de n m curioso paradoxo: evidenciado em todas as evo-
grupos, uns para as instalações de lazer do desfiladeiro, outros, • H-lies funerárias do mundo dos vivos, nem por isso
mais selvagens, para os refúgios que eles próprios escolheram
e nos quais gravaram os nomes. Depois de terem comido e des- • l' i::a de ser marginal numa economia que, no entanto,
cansado, a maior parte dos homens regressa ao estaleiro para ter- • essencialmente agrícola. As representações dos túmulos
minar o trabalho previsto para o dia. Contudo, dois responsáveis > produzem constantemente cenas de cultura das terras,
escolhidos na equipa partem para a aldeia para assistirem, na • • ' H i r i i a s e criação de animais. De campo em campo,
companhia de dois escribas encarregados do abastecimento, à che- i i i se os homens conduzindo as charruas puxadas por
gada dos peixeiros e dos vendedores que fornecem regularmente
à aldeia os produtos frescos. Em certos dias, os homens de • l"!-; bois, lançando as sementes que em seguida serão
serviço estão ocupados de manhã à noite com a recepção dos i" . i ' l : i s poios burros para que se enterrem bem, colhendo
géneros e sua distribuição pela população, minuciosamente orga-
HAIII \ " H - - - 4
DOAÍINÍQUE VALBELLE -l VIDA NO ANTIGO EGIPTO 51

são, muitas vezes, tratados no próprio local, em depen-


o linho ou arrancando cebolas. Os pomares são percor-
dências próximas dos celeiros e dos estábulos ou em
ridos por regos destinados à irrigação e que desenham
galerias, por exércitos de empregados: padeiros, vinha-
uma espécie de quadrícula regular onde crescem legumes
teiros, açougueiros e cozinheiros preparam o pão, a cer-
e flores que os jardineiros regam cuidadosamente. Nos
veja, o vinho, os alimentos frescos, secos e toda a
pomares, alinham-se palmeiras e árvores de frutos de
toda a espécie. Mais adiante, a vinha em latadas. Os espécie de conservas, enquanto o linho é fiado e tecido
pântanos do norte do país são mais propícios à criação nas oficinas.
de gado grosso que os boieiros conduzem às pastagens, Muitas outras actividades agrícolas e múltiplos pe-
fazendo-os atravessar os cursos de água abundantes em quenos ofícios foram-nos transmitidos por breves alusões
peixes que alagam os campos. Nas margens, homens t-m textos ou pelos vestígios de produções hoje reco-
compõem molhos de bambu que outros transportam às lhidas em sítios arqueológicos, mas as figurações dos
costas. Nas zonas mais húmidas, apanham-se com uma i túmulos parecem mais afeiçoadas a certas ocupações do
rede pássaros que depois serão criados nas quintas. que a outras, em particular às que permitem que o artista
No sul, nas franjas desérticas do vale, pastores vigiam 1 imprima livremente o seu gosto pelo desenho animalista
i - a fantasia ilimitada que traduz. O camponês interessa-o
os rebanhos de cabras e carneiros. menos. Limita-se a representá-lo no exercício de gestos
O Verão e as colheitas constituem um tema de inú-
meras variantes. Cereais, sementes, frutos e legumes i radicionais que fixam a noção a transmitir à posteridade.
são empilhados ou directamente colocados em cestos. N<> período amarniano, os grandes domínios do reino,
Molham-se os cereais, enquanto os burros, transportando começando pelo domínio de Aton, são muitas vezes
pesados fardos, se dirigem para os celeiros. Debaixo dos evocados em paredes de túmulos, como nas dos templos
pórticos dos pátios das quintas, ou nos telhados dos silos, ' ! • > deus do Sol. Não sendo possível observar uma verda-
os escribas do domínio aguardam a chegada dos produtos, deira rotura em relação às figurações tradicionais do
que avaliam em alqueires antes de serem armazenados. • .impo, verifica-se a introdução de importantes cambian-
Os estábulos são mais frequentemente evocados pelos tes. Grandes quadros repletos de pequenas cenas rela-
modelos do Primeiro Período Intermédio e do Império ' miadas umas com as outras num plano de conjunto
Médio do que nas paredes das capelas, enquanto a con- dnR propriedades, restituem, com uma precisão minu-
tagem dos rebanhos constitui igualmente uma cena favo- ciosa, cada parcela e os seus elementos característicos,
rita dos lapicidas e dos pintores que parecem clivertir-se • i ' l ; i cabana de camponês, cada sebe no lugar certo.
com as sovas que os camponeses recebem se não estive- A literatura, por sua vez, dá-nos uma ideia bastante
rem em regra, no dia de prestar contas. Estas servem • |ni:mática dos camponeses. Há um conto que repre-
para calcular o imposto anual, variável consoante as ntn um quadro pastoral quase universal:
colheitas, que equipas de cobradores virão recolher, em
••!''.r:i uma vez, diz-se, dois irmãos filhos da mesma mãe e do
data aprazada. Nos galinheiros, jovens empregados lan- mo pai: Tromi era o nome do mais velho e Bata, o do mais
çam revoadas de grãos. As aves mais pequenas abrigam- >•' r I n i p i i tinha uma casa e era casado e o irmão vivia com ele
-se em gaiolas, enquanto as aves pernaltas são alimen- <• fosso seu filho. Era o mais novo que confeccionava os
tadas em recintos murados. Mais afastado, o apicultor l ilnn 'In mais velho, e levava o gado a pastar; era ele que culti-
VNVM ( M i l l i i a , que realizava todos os trabalhos do campo em casa
afadiga-se em volta das colmeias. Os produtos da quint»
52 DOAIÍNIQUE VALBELLE l VIDA NO ANTIGO EGIPTO

do irmão. É verdade que o mais novo era um rapaz sólido e


alegre; não existia outro como ele na região: possuía a força de
um deus.
»Passaram-se muitos dias: o irmão mais novo conduzia os
animais, como sempre, segundo o hábito e (regressava) a casa,
à noite, carregado com toda a espécie de produtos do campo,
leite, lenha, todos os (primores) que colocava à frente do (irmão
mais velho), sentado junto da mulher; depois bebia, comia e
(saía para passar a noite, sozinho, no) estábulo, (com) os anknais.
E, quando a terra se encontrava (novamente) iluminada, no dia
seguinte, cozia (os alimentos) e apresentava-os ao irmão, que lhe
dava pão para (ir) para o campo. Em seguida, levava as vacas
a pastar nos prados [...] Ora, na época de amanhar a terra,
o irmão mais velho disse-lhe: "Prepara uma junta (de bois) para
lavrar; a terra está seca (de água) e boa para lavrar; depois
traz as sementes para os campos, pois amanhã vamos lançar-nos
seriamente ao trabalho", etc.» (Segundo G. Lefebvre, op: cit.,
pp. 142-143.)

Outra narrativa do Novo Império desfia, num estilo


oriental que os contistas árabes não renegariam, as des-

*
venturas de um pobre habitante do oásis, que veio ao
vale tratar de negócios e que, depois de ter sido roubado
um a um, dos bens que trouxera com ele, é recompen-
sado, pelo magistrado a quem durante muito tempo
importunou com as suas queixas, com as possessões
do seu perseguidor:
«Então [o grande intendente] Rensi, filho de Méru, enviou
dois guardas em [busca de Djehoutynakht]. Trouxeram-no, por-
tanto, e foi feito um inventário [dos seus bens, assim como]
da sua [gente, a saber:] seis pessoas, sem contar... (?), cevada
do Alto Egipto, trigo, burros, [gado grosso], porcos e gado
miúdo. [E entregou-se] esse Djehoutynakht [como escravo] a
esse habitante do oásis, [assim como] todos os seus bens [...].»
(Segundo G. Lefebvre, op. cit., p. 69.t k >>• -Cena mrd, período amarniano (segundo o BIFAO 69,
^S- /> p- 81).
Estranhamente, não é na boca dos trabalhadores
rurais que os escritores da época colocam as recrimi-
nações habituais de todas as sociedades camponesas, mas
na de um escriba indignado por ver um dos seus antigos
colegas tentado pelo regresso à terra:
DOMINÍQUE VALBELLE 'l VIDA NO ANTIGO EGIPTO 55

vessa-se um período de fome e, portanto, de restrições,


«Não te lembras da cara dos camponeses confrontados com
a declaração fiscal das colheitas das quais as serpentes levaram mas todos fazem o que podem para assegurar o indis-
metade e os hipopótamos comeram o resto? Os ratos pululam pensável à comunidade.
pelos campos (invadidos) por gafanhotos; é aí que o gado miúdo
pasta; as andorinhas reduzem o agricultor à miséria. O pouco
que resta das culturas esgota-se e atrai (?) os ladrões; o seu V — Os serviçais
valor mercantil está perdido; a junta de bois morreu de tanto
malhar os cereais e puxar pela charrua. É então que o escriba
chega à margem: vem registar a declaração das colheitas, (acom- O corpo dos serviçais compreende, no Egipto faraó-
panhado) de guardas armados de varapaus e de Núbios empu- nico, um certo número de profissões que hoje seriam
nhando folhas de palmeiras. Eles "Entrega o trigo!" Mas, classificadas de artesanais, corno as que se referem à ali-
não há trigo. Sovam-no até morrer. Em seguida, amarram-no mentação e aos têxteis. De resto, não existe nenhuma
e lançam-no ao poço, onde mergulha na água, de cabeça para classificação hierárquica entre servidores e artesãos, en-
baixo; a mulher também foi amordaçada ao pé dele e os filhos
estão presos; os vizinhos abandonam-no, fogem e o trigo desa- contrando-se todos eles ao serviço do mesmo ano. Era
.sobretudo a posição que o amo ocupava na sociedade
parece [...].» que determinava a dos empregados e a sua capacidade
de, por sua vez, virem a ser amos de empregados mais
Perante um quadro tão negro da vida dos campo- modestos. Assim, os mesmos títulos não têm o mesmo
neses, surpreende um pouco o papel sinistro que o significado e não obrigam necessariamente às mesmas
escriba desempenha sem pestanejar, ao mesmo tempo larefas, consoante são exercidos por cortesãos, pelo pes-
que não parece pôr em dúvida a autenticidade da angús- soal de um particular, ou por escravos. Os estrangeiros,
tia da vítima. Não recua perante nenhum argumento nu particular os Cananeus, ocupam, neste meio, uma
para convencer. A sua conclusão é cínica: recorda que posição de elite durante o Império Médio. Quanto às
o escriba, não o sendo por obrigação, não está sujeito mulheres, que até então não tinham sido apontadas no
a tais riscos. exercício de uma profissão, embora ocasionalmente de-
Mas, nem toda a correspondência-tipo para uso dos :.rinpenhem um papel político de primeira importância,
escribas nos devolve o mesmo eco, muito longe disso. mi assumam funções económicas ou sacerdotais, inter-
Um destes textos-modelo mostra o enviado do palácio vêm aqui largamente, embora com atribuições bem deter-
recolhendo, calmamente, grandes quantidades de fruta minadas.
e jarros de vinho, numa propriedade do rei situada no
delta; outro encerra um relatório ao arquivista-chefe do No Antigo Império, os relevos e as pinturas dos
Tesouro sobre a situação de um domínio e todos os iiimulos constituem, como no caso dos camponeses, a
pormenores relativos às ordens executadas para satis- principal fonte da nossa informação, substituída, no
fação dos responsáveis; outro ainda é o diário do tra- Império Médio, pelo abundante corpo de esteias que
balho realizado durante mais de um mês numa eira de 1 1 n-iiou até nós. Na corte, ou na província, vê-se que
cereais. Por fim, a correspondência real entre um pro- (••. ofícios artesanais mais estreitamente ligados ao mundo
prietário rural da xi dinastia com o seu homem de con- n r. i fola são exercidos em pátios ou em edifícios comuns,
th. lado da evolução das colheitas. Moleiros, padeiros
fiança descreve uma situação bastante dura, pois atra
DOMÍNÍQUE VALBELLB A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 57

c cervejeiros trabalham não longe dos silos. Açou-


gueiros abatem e esquartejam os animais a poucos metros
dos estábulos, pedaços de carne secam em cordas, en-
quanto outros são colocados em grelhadores ou estufam
nos caldeirões dos cozinheiros. Mais adiante, a criadagem
iransporta iguarias e bebidas para o amo ou entretem-se
nas tarefas domésticas. Alguns criados, por exemplo,
arrumam o quarto e fazem a cama. Os templos funerá-
rios da v dinastia também empregam, como se viu,
pessoal laico para a preparação dos alimentos ou limpeza
de tecidos, mas os gestos relativos à higiene do rei
defunto e a apresentação dos alimentos são, sem dúvida,
apanágio dos sacerdotes. São também as actividades do
artesanato alimentar e dos têxteis que ilustram os mode-
los destinados a prolongar, tal como nas paredes dos
lúmulos, a evocação das actividades e dos bens agrícolas,
juntamente com as de outras oficinas.
No Império Médio, não só os amos representam nos
seus monumentos todos os serviçais, designados pelo
nome, função ou situação, como os próprios servidores
têm o costume de erigir esteias em honra do patrão.
Ouas grandes categorias de serviçais parecem repartir
entre si as tarefas a realizar: uns, os «criados a pé»
cncarregam-se sobretudo do equipamento e do serviço
<lo patrão, enquanto os outros, os «sentados», tratam
<!os alimentos, das bebidas e do vestuário, embora se
verifiquem frequentemente excepções a esta classificação,
i Xs primeiros, muitas vezes apresentados como obesos,
pálidos e de cabeça rapada, trabalham geralmente nos
aposentos privados ou na tesouraria que encerra os pro-
i In tos preciosos da casa: metais e objectos metálicos
• i uno armas, baixela e instrumentos; tecidos e vestuário,
incluindo as sandálias; unguentos e óleos, etc. Fiação,
i • «dafíem, conserto do calçado e lavagem da roupa
• l |.cndem deste departamento, presente tanto nas pro-
i i ' < l a d e s da coroa e dos templos como entre os par-
i i . iihiivs ricos. Relatores, intendentes e escribas apro-
DOMINIQJJE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 59
58

ximam-se, na categoria das suas funções, dos músicos, bebida, parece ditar as suas ordens a dois escribas ajoelhados
à sua frente. No terraço, um contabilista toma nota da entrega
cantores, adivinhos, professores de escrita, mas também de material em curso. A parte direita da residência, completa-
mordomos, criados, porteiros ou lavadeiros. As mulhe- mente destruída, devia abranger outros sectores de actividade,
res ocupam-se da higiene da patroa e do seu guarda- em particular os aposentos reservados às mulheres.
-roupa. Esteticistas e cabeleireiras transportam espelhos
e guarda-jóias. Outras são amas ou criadas das crianças, Mas, é sobretudo nos grandes domínios do reino,
ou cantoras. evocados nas paredes das sepulturas dos altos funcio-
Cozinha e armazém ao mesmo tempo, o m w é o nários que os gerem, que se afadigam mais claramente
local onde se preparam e conservam os alimentos. Com- as multidões anónimas de empregados que percorrem
preende as cozinhas propriamente ditas, as padarias, as os armazéns, preparam toda a espécie de conservas,
fábricas de cerveja, as leitarias, as caves dos vinhos, os empilham peças de roupa acabadas de sair das oficinas
depósitos de água, de peixe, de fruta, etc. Também é aí ou escolhem os alimentos necessários à vida quotidiana.
que se guardam as contas relativas a estes serviços e a
roupa. Os criados que aqui trabalham preparam e ser-
vem as iguarias destinadas à mesa do patrão. A apresen-
tação das bebidas ocupa um lugar de destaque nas cenas
de interior. As criadas encarregadas desta tarefa usam
habitualmente o cabelo entrançado, ocultado por um
lenço, por motivos de higiene. As mulheres também
trabalham nas cozinhas e nas padarias, onde as vemos
moer a farinha que em seguida passam por uma peneira
e, depois, preparar a massa para o pão, que enformam
em recipientes cónicos, enquanto os colegas do sexo
masculino executam as mesmas tarefas ou preparam
pães redondos e achatados que cozem numa outra espé-
cie de fornos, ao mesmo tempo que outros trituram
cereais em almofarizes, com a ajuda de grandes pilões
de madeira.
A representação, em corte, da casa de Djehoutynefer, no
tempo de Amenóíis II, resume algumas das actividades domés-
ticas num quadro privado. A cave é reservada ao artesanato
têxtil: num primeiro compartimento, há homens que fiam, no
seguinte estão sentados em frente de grandes teares, no terceiro,
lavam, roupa. No rés-do-chão, criados e criadas transportam
louças, frutos e flores para o amo. As escadas encontram-se reple-
tas de criados que transportam para os andares de cima baús,
jarros e pedaços de carne. No primeiro andar, o amo, junto do
qual um criado agita um leque enquanto outro lhe serve unia
DOAÍÍNIQUE VALBELLE
60

CAPÍTULO III
O NÍVEL DE VIDA
E AS SUAS MANIFESTAÇÕES

O Egípcio dispõe de uma variada escolha de meios


para enriquecer. Seja qual for a sua profissão, recebe
um salário muitas vezes suficiente para bens supérfluos.
Em certas situações, recebe ainda do soberano recom-
pensas ou dádivas particulares, como paga pelas suas
gentilezas. Dotado de terras ou de rebanhos, explora
por conta própria mas, com os lucros obtidos, sustenta
o pessoal que emprega e paga os impostos fixados anual-
mente em função do volume das colheitas. Se a fortuna
dos pais for importante e se ele tiver zelado pelo seu
conforto, e depois pelo seu enterro, pode receber uma
herança de importância variável, consoante a sua abas-
tança e o número de filhos ainda vivos à data. Por fim,
o artesanato praticado para além do emprego oficial
e o comércio a título privado constituem, eventualmente,
apreciáveis fontes de rendimeito.
A parte conservada dos actos jurídicos — vendas,
partilhas, heranças — que sancionavam aquisições e
transferências de bens, embora ínfima quando compa-
rada com o volume que todo o conjunto devia repre-
sentar, fornece informações em primeira mão sobre os
rendimentos de algumas famílias e o valor relativo dos
bens considerados, sendo o seu equivalente em metal
— bronze, prata ou ouro — sistematicamente apontado.
O Egípcio abastado despendia, para seu conforto ou
DOAUNÍQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 63

divertimento, ou para impressionar os familiares, quan- é realçado por elementos arquitecturas de calcário de
tias consideráveis; ou antes, na ausência de moeda, for- Tura, granito de Assuão ou alabastro de Hatnub. A par-
necia produtos à altura do preço fixado para o bem tir da iv dinastia, o relato da construção do túmulo
em questão. Mas, a maior parte dos seus haveres era e da inclusão de uma porta secreta ou sarcófago, oferta
dedicada ao ordenamento da sua sepultura, à construção do soberano, encontra-se gravado na capela, ou mesmo
do mobiliário funerário e os rendimentos dos domínios nos batentes da porta, a fim de que os parentes do
funerários à manutenção de um culto post mortem e defunto e os sacerdotes funerários dele possam tomar
à construção de uma capela ou ao fabrico de monumen- conhecimento quando vêm depor as oferendas quoti-
tos mais modestos — esteias ou estátuas — destinados dianas:
a serem colocados num recinto sagrado, sob a protec- «Quanto a este túmulo, foi o rei do Alto e do Baixo Egipto,
ção de uma divindade, em particular da do deus dos Micerinus — [que viva eternamente] — que (me) concedeu o
mortos, Osíris, na cidade santa de Abidos. Assim, a se- terreno. Ora, aconteceu que [Sua Majestade ia a passar] pelo
pultura e as fundações piedosas constituem os primeiros caminho que ladeia a pirâmide para inspeccionar o trabalho de
construção da pirâmide chamada "Micerinus é divino", quando
sinais exteriores de riqueza. Portadoras de uma mensa- o pedreiro e [carpinteiro real] os dois grandes sacerdotes de
gem que comporta realizações, qualidades morais e bens Mênfis e os artesãos (já) aí se encontravam para inspeccionar
materiais do defunto, traduzem complacen temente a sua os trabalhos de construção do templo [...] Depois, Sua Majes-
fortuna e as formas que esta assumia enquanto vivo. tade ordenou que se arrasasse um monte de entalho [para cons-
truir] este túmulo.»

I — O túmulo, o seu mobiliário A continuação do texto está muito incompleta mas


e os monumentos de devoção os fragmentos que restam dizem-nos que o rei encomen-
dou aos dois tesoureiros da divindade que mandasse
Exceptuando o túmulo real, embora sem perder de buscar calcário de Tura para revestir o templo funerário,
vista que este serve de modelo aos túmulos privados, trazendo ao mesmo tempo duas portas secretas e os
existe uma grande variedade de sepulturas, consoante elementos da porta do túmulo de Debéhéni. A mas-
a época, o local e o meio social. Muito antes do início taba, que foi construída sob a direcção do arquitecto
do Antigo Império, observam-se já alguns indícios dessa pessoal do soberano, por decreto real, media «100 côva-
vontade de reproduzir, na morada supraterrestre, os dos de comprimento e 50 de largura — aproximada-
principais elementos do quadro de vida da personagem. mente 1250 m2 — e 8 de altura — um pouco mais
Admite-se geralmente que devem ter existido estreitas <le 4 m».
semelhanças entre as primeiras mastabas, construídas Enquanto o planalto líbico se cobria, em volta das
em tijolo cru e rodeadas por muros de redentes, em pirâmides de Dachur, Giza, Abusír ou Saqqara, com
«fachada de palácio», e as residências principescas da imensos bairros de mastabas que albergavam os restos
época. Mas, a partir da ni dinastia, os túmulos começam mortais de muitas famílias de cortesãos, na província
a diferenciar-se das habitações, tanto na estrutura como • nitro tipo de sepultura começava a concorrer com o
nos materiais utilizados. As superestruturas são cada vcx l>rinieiro: escavadas na encosta das falésias que orlam
mais frequentemente feitas de pedra e o seu aspecto O vale e dominam o Nilo, os túmulos rupestres dos
r 64 DOAÍINJQUE VALBELLE

nomarcas apresentavam um plano completamente dife-


rente. Enquato as mastabas são construções maciças que
comportam um pátio em peristilo, uma capela composta .8 l
por um grande número de salas para funções diversas
e um serdab fechado que alberga as estátuas que retra-
tam o defunto, encimando todo este conjunto uma ou
várias caves às quais se tem acesso por um poço, os
hipogeus são por vezes precedidos, quando o terreno
o permite, por um dos pátios aos quais se chega, em
certos casos, por uma escada monumental; as fachadas
dos túmulos propriamente ditos podem ser ornamenta-
das por um pórtico; as diferentes divisões da capela são,
como a cave, escavadas na rocha. Ambas as fórmulas
foram adoptadas simultaneamente em todas as épocas
nas necrópoles reais e nos cemitérios de todo o país.
Com o tempo, inventaram-se esquemas mistos e toda
a espécie de ordenamentos. Um dos mais notáveis reside
na sobreposição de uma pirâmide de dimensões modes-
tas e da capela: este modelo que parece ter surgido em
Tebas, na x dinastia, obteve grande sucesso no Novo
Império, mesmo nos meios mais simples.
A decoração destas capelas, construídas ou rupes-
tres, quando não apresenta cenas de oferendas, nem
desenvolve ritos e fórmulas funerárias, especifica, con-
forme as épocas, apenas por meio do texto, ou também
da imagem comentada, as propriedades do defunto e as
actividades que aí se desenvolvem, os episódios notáveis
da sua carreira e algumas manifestações da sua autori-
dade, dos acontecimentos a que assistiu ou nos quais
participou, os membros da sua família, os amigos, os
colegas, os superiores e os subordinados. Assim, o tú-
mulo, para além de proclamar, pelas suas dimensões,
pela qualidade dos relevos e pelo brilho das pinturas, « evia continuar a pronunciar-se o seu nome. rara tai,
a riqueza do proprietário, ainda recorda, até ao ínfimo .defunto devia assegurar uma renda àquele ou àqueles
pormenor, a fortuna que permitiu a sua existência. Mas, « ue o servissem quando já não estivesse em condições
este rol de virtudes recompensadas, de feitos coroados <ie dar ordens ou, então entregar-se à boa vontade dos
de sucesso e de luxos merecidos não se limita à arquí- «J8. A entrada das capelas encontram-se gravados apelos
««« vivos para estimular o zelo de uns e outros. Final-
•IA1IEB 214 — 5
HÁ MANEIRAS DE LER A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 65
QUE SÃO MANEIRAS DE SER
tectura, aos materiais e à decoração, isto é, à parte visí-
nc

vel do edifício. Prossegue na cave, com o mobiliário
cc funerário. Contudo, poucas sepulturas o conservaram
intacto: a tentação era tanto mais forte quanto a super-
P1 estrutura do túmulo anunciava um conteúdo mais pres-
e

tigioso. Assim, não foi por acaso que só as sepulturas
v cuja entrada se perdeu ou foi dissimulada acidental-
h mente se mantiveram invioladas. O mobiliário é com-
posto por elementos propriamente funerários — sarcó-
o
o fagos, canopes, ouchebtis, Livros dos Mortos a partir
d do Novo Império —, por elementos que representam
d o quotidiano do defunto — móveis, roupa, objectos de
higiene, utensílios, alimentos, louças— e por algumas
c
fi peças de valor — estatuetas em madeira, pedra ou metais
r preciosos, baixela de ouro, prata ou bronze, etc. —, se
ESPERAMOS QUE TENHA GOSTADO DESTE LIVRO E QUE ELE VENHA OCUPAR UM
( LUGAR DE HONRA NA SUA BIBLIOTECA. FICAMOS LHE MUITO AGRADECIDOS SE
o defunto for um homem abastado. O equipamento era
£
PREENCHER E NOS ENVIAR ESTE POSTAL. transportado em procissão, por ocasião do funeral, atrás
ESTEJA ATENTO À SUA CAIXA DE CORREIO!
I
dos restos mortais. Estes fornecem indícios fiáveis sobre
1 a qualidade do embalsamamento, que pode ir da dre-
Profissão
nagem encefálica e da evisceração compensada pela intro-
dução de substâncias aromáticas no corpo que, em se-
Cai Postal __
guida, é mergulhado em sais de natrão durante setenta
Bjcontreí esto posto! no livro: __
dias até uma simples dissecação favorecida pelo emprego
Que aflquíri numa Imana u3 fl/e encomende/ pelo correio
de resinas. O corpo era então envolvido em faixas de
linho mais ou menos finas consoante o serviço escolhido.
Se desejar elrjuns livros de nossa edição, bastará preencher o espaço que se segue. Todas os encomendas são Mas, as preocupações do futuro defunto não se redu-
confidenciais.
ziam apenas à conservação do invólucro carnal num
Título e Autor ambiente confortável e repousante. A fim de sobreviver
depois da morte, devia ser alimentado e dessedentado
regularmente, estando previstos diversos ritos para res-
" tituir à boca e ao nariz as funções vitais e, sobretudo,
ulo, para além de proclamar, pelas suas aimeii; devia continuar a pronunciar-se o seu nome. Para tal,
pela qualidade dos relevos e pelo brilho das pinturas, o defunto devia assegurar uma renda àquele ou àqueles
a riqueza do proprietário, ainda recorda, aterão íntimo que o servissem quando já não estivesse em condições
pormenor, a fortuna que permitiu a sua existência. Mas, de dar ordens ou, então, entregar-se à boa vontade dos
este rol de virtudes recompensadas, de feitos coroados seus. À entrada das capelas encontram-se gravados apelos
de sucesso e de luxos merecidos não se limita à arqui- aos vivos para estimular o zelo de uns e outros. Final-
SABEB 214 — S
66 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 67

mente, por medida de segurança, pensando provavel- tos da senhora Sénebtisy sobre um contingente de 95
mente que mais vale confiar-se aos deuses do que aos pessoas assim reduzidos à escravatura: um extracto do
sacerdotes, constroem-se, em vida, monumentos desti- registo dos presos entrados na Grande Prisão de Tebas,
nados a evocar a memória dos defuntos nos santuários remontando à dinastia precedente, indica a identidade
da cidade natal, ou em Abidos, por ocasião das peregri- de cada um deles, por vezes o seu ofício, e o motivo
nações que se faziam frequentemente. Entre estes mo- da acusação; enquanto um auto autoriza o intendente
numentos, as estátuas são sobretudo a expressão de dos campos Haankhef a dispor destes homens e destas
intervenções individuais, enquanto as esteias reúnem mulheres, que transmite à mulher. Pela mesma época,
frequentemente um grande número de parentes, fami- os arquivos da cidade da pirâmide de Sesóstris II, no
liares e colaboradores. Fayum, compreendem diversos legados, entre os quais
uma espécie de acta notarial que contém duas séries
de disposições testamentárias sucessivas:
II — O povo
«Título de propriedade redigido pelo tesoureiro-ccónomo
do chefe dos trabalhos do distrito setentrional, Ihyseneb, dito
É difícil descobrir o estatuto dos empregados que, Ankhren, filho de Chepeset: todos os meus bens, adquiridos no
nas paredes dos túmulos, são figurados no exercício da campo e na cidade, pertencerão a meu irmão, sacerdote em Soped,
sua profissão, ao serviço do patrão, nos campos, nas senhor do Oriente, Ihyseneb, dito Ouah, filho de Chepseset;
oficinas ou nas dependências. Muitos deles são empre- todos os meus criados pertencerão a meu irmão. Estas disposições
estão consignadas num registo, no gabinete do porta-voz do Sul,
gados reais e ainda hoje ignoramos as condições exactas no ano 44, no 2.° mês do Verão, no 13.° dia.
da sua presença em casa de simples particulares: estarão »No ano 2, no 2.° mês da Primavera, no 18." dia. Título
lá para desempenhar uma tarefa precisa ou foram afec- de propriedade redigido pelo sacerdote de Soped, senhor do
tados a um domínio privado como o poderiam ter sido Oriente, Ouah: redijo um título de propriedade a favor de minha
a um domínio da coroa ou a uma fundação religiosa? esposa, mulher do sector oriental, Chefet, dita Téti, filha de
Satsoped, respeitante a todos os bens que me legou meu irmão,
E, para terminar, ficarão sob as ordens da mulher ou o tesoureiro-ecónomo do chefe dos trabalhos de Ankhren [...]
do filho mais velho do patrão, depois da sua morte? Toda a baixela ainda existente, legada por meu irmão., será
Embora nenhum texto legal nos informe concretamente transmitida a quem ela quiser, entre os filhos que me deu.
sobre estes assuntos, podemos avançar, a partir de Lego-lhe os quatro asiáticos cedidos por meu irmão...; ela
transmiti-los-á aos filhos que quiser. No que respeita ao meu
alguns casos individuais, que não existia nenhuma regra túmulo, quero ser colocado junto de minha mulher, _sem mais
absoluta sobre tal matéria e que a distribuição destes ninguém senão ela. Quanto aos edifícios que meu irmão me
homens pelo reino dependia de acordos específicos entre deixou, a minha mulher habitá-los-á, sem que ninguém possa
as autoridades e os notáveis que se viam dotados desta expulsá-la [...].»
categoria de mão-de-obra. De qualquer modo, estes
homens não são propriedade dos empregadores. O pessoal de serviço vem enumerado após as pro-
Já o mesmo não acontece com as pessoas privadas priedades, tal como no Conto do Oasiano. De notar
de liberdade por decisão de justiça e com os estrangeiros que a acta de propriedade compreende uma cópia da
feitos prisioneiros em campanhas militares. Chegou até acta anterior, garantindo a autenticidade dos direitos
do testador para dispor dos bens considerados.

L
nós um volume da xin dinastia que estabelece os direi-
68 DOMINIQUE

Além disso, a descrição de um processo contém


os termos do contrato de venda de uma jovem síria
e da troca de um escravo contra um túmulo, em Tebas,
no reinado de Ramsés II:
VALBELLE
í A VIDA NO ANTIGO EGIPTO

III — Os bens imobiliários

No Antigo Império, já se conhecem vários contratos


de venda de casas.
69

Um deles encontra-se gravado numa esteia que se erguia


«E, no ano 15, sete anos depois de ter casado o director do perto da propriedade, mas a sua natureza, túmulo ou habitação,
distrito Sa[mout], o mercador Raia veio procurar-me, acompa- não colhe a unanimidade dos tradutores; as suas dimensões não
nhado da escrava síria Gemeniherimentet — "Encontrei-a-no- vêm citadas e o preço —10 shâty — é pago por meio de duas
-Ocideute"—, que ainda era uma criança e disse-me: "Compra- peças de tecido e uma cama. Dois outros contratos estão redigidos
-me esta rapariga e dá-me o que ela vale"; foi assim que se me em papiros; provêm de uma aldeia do Alto Egipto, Gebelein, e
dirigiu. Fiquei com a rapariga e dei-lhe a [quantia] pedida. remontam ao fim da IV dinastia; um dos edifícios mede 16 côva-
Agora vou expor aos magistrados o preço que paguei.» dos de comprimento por 15 côvados de largura —cerca de
56 m 2 — e é trocado por um peça de tecido de 15 côvados e
meio de comprimento, cujo valor em metal não é especificado;
Segue-se a enumeração de sete peças de vestuário o outro tem 16 côvados por 11 —cerca de 40 m 2 — e foi pago
ou de tecido que pertenciam à cliente, às quais se jun- por uma peça de tecido de 24 côvados.
tam cinco vasos de bronze, nove quilos de cobre recupe-
rado, um cântaro de mel e dez túnicas que ela deve ter Carecemos de elementos comparativos contemporâ-
adquirido a seis pessoas diferentes. A jovem escrava neos para definir o valor absoluto destes bens.
custa-lhe, afinal, um pouco menos do equivalente a Muitos textos de diversas épocas fazem alusões, mais
375 g de prata. O valor da sepultura oferecida em troca ou menos precisas, à construção de residências e à cria-
do homem não está especificado mas, mais tarde, no ção de domínios. As actas de Metjen, um extracto de
tempo de Ramsés XI, outro escravo declara, ele pró- volumes oficiais que comprovam os direitos do proprie-
prio, ter sido comprado por cerca de 182 g de prata, tário sobre um certo número de fundações de vocação
enquanto uma mulher custou perto de 375 g, nova- funerária e mencionam a superfície e a situação geográ-
mente, no mesmo ano. fica das terras designadas é a mais velha colectânea de
Embora só excepcionalmente tenham sido conser- textos jurídicos de que se tem conhecimento. Remonta
vados tais testemunhos antes da Primeira Época, a ao fim da m dinastia. Uma das propriedades é assim
presença de escravos, em maior ou menor número, é resumidamente descrita:
um facto banal nas sucessões, confirmado no Novo
Império, mesmo em camadas modestas da sociedade: «Um domínio de 200 côvados de comprimento por 200 côva-
um divino padre, um jardineiro, operários do túmulo, dos de largura — 4 ha, aproximadamente— cercado por um
muro e equipado, (onde) belas árvores foram plantadas e orde-
estrangeiros... nado um grande tanque de água, (junto do qual) se plantaram
figueiras e vinha.»

Um marco, na cidade da pirâmide de Sesóstris II,


cm Illahoun, indica as dimensões de quatro casas se-
melhantes: 30 côvados por 20—150 m2, aproximada-

,
70 DOAÍINIQUE VALBELLE A VIDA
71

mente. Mais tarde, na xvm dinastia, a carta de um


normarca ao mestre de obras constitui um testemunho
ao vivo:

«[...] Coloca as esteiras e as vigas dos armazéns e da parte


de trás da casa. A parede terá 6 côvados de altura. Quanto às
portas do armazém, constrói-as com 5 côvados de altura, enquanto
as da habitação devem ter 6. E, depois, diz ao pedreiro que
proceda do mesmo modo e faz com que construa a casa depressa
[...] Comunicar-te-ei a altura total e a largura do edifício [...]
Outra coisa: manda pagar ao proprietário o preço do terreno da
casa. Toma precauções para que não me agrida quando lá for.»

Infelizmente, o preço do terreno não está especi-


ficado.
A partir dessa época, as habitações também se encon-
tram frequentemente representadas nas paredes dos tú-
mulos, com o meio envolvente, jardins ou parques.

Assim, a propriedade do arquitecto de Amenófis I e dos


Tutmés, Inéni. ocupa uma parede inteira da sua capela funerária:
em primeiro plano, uma parede de pedra de traçado sinuoso,
como as que as escavações revelaram existir por todo o Egipto
e na Núbia, em todos os períodos, atravessada por duas portas;
encobre a parte inferior da habitação, de dois silos e de uma
grande construção branca de abóbada baixa, oculta por detrás
de um sicômoro; a residência parece construída com grandes
blocos de calcário,, o que não é completamente impossível se con-
siderarmos a quantidade de monumentos prestigiosos que o dono
da casa mandou construir em Tebas para os seus soberanos.
Contudo, tendo em conta que os próprios palácios são construí-
dos em tijolo cru e contêm apenas alguns elementos arquitectu-
rais de pedra, uma realização de tal luxo parece pouco provável;
por outro lado, a pintura utilizada, imitando madeira ou pedra,
obtinha um certo sucesso: talvez se trate apenas, neste caso, de
juntas simuladas sobre um fundo de massa branca feita com cal;
a casa possui um primeiro andar mas não se vê nenhum terraço;
o segundo plano apresenta um tanque rodeado por uma sebe
simétrica; os outros planos sugerem um vasto pomar e um
palmeiral. O número de plantas de cada variedade é apresentado Fig. 6 — O jardim e a casa de Inéni; cena do sen túmulo,
num quadro: no total mais de 370 exemplares e 12 videiras. em Tebas.
72 DOMNÍQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 73

Outras figurações, mais ou menos esquemáticas, em O valor das grandes propriedades rurais nunca é esti-
elevação ou mesmo em corte, e alguns modelos de barro, pulado, nem em contratos, nem em actos de sucessão,
madeira ou calcário de residências urbanas ou rurais, os documentos jurídicos originais que chegaram até nós
construídas com um só piso ou com um primeiro andar referem-se apenas a negócios modestos. Os extractos
e um terraço, ajudam-nos a interpretar os numerosos ves- que figuram em esteias ou em túmulos referem-se, por
tígios de habitações descobertas por ocasião de esca- vezes, as possibilidades dos compradores mais modestos,
vações em diversos contextos. conservam-se discretos quanto ao preço. É o que tam-
bém acontece com grandes doações como as do papiro
Nem sempre é fácil determinar quais as casas que Harris. A única certeza que podemos ter, antes da Pri-
foram distribuídas aos seus ocupantes quando o amo meira Época, quanto ao preço de um campo, data do
entrou em funções e quais as que representam verdadei- reinado de Tutmés III: o aroure equivale a 15 g de
ras propriedades privadas. Só as casas construídas no prata, o que é relativamente pouco, comparado com
perímetro do domínio de uma fundação real ou reli- o preço dos escravos (pp. 68-69) e com o gado. Na
giosa e os alojamentos dos criados não se prestam a con- xvni dinastia, o valor de um touro ou de uma vaca
fusões; mas que dizer da casa prometida, na sua cidade parece variar entre 45 g e 60 g de prata, enquanto na
natal, ao escriba merecedor (p. 43)? Em que categoria época dos Rameses, um jovem escravo custava entre
classificar as casas que formam os bairros centrais da 27 g e 36 g e um touro podia atingir 128 g de prata.
cidade da Amarna? Porém, casas de trabalho ou resi- O elevado montante destas quantias, que excedem, por
dências privadas, são espaçosas e luxuosas residências, vezes, as possibilidades dos compradores mais modestos,
sinal certo de um nível social elevado e de acumulação justifica provavelmente a prática, visivelmente generali-
t de riqueza. De resto, os contratos que conhecemos rara- zada, da compra efectuada em comum, por vários indi-
mente se referem a propriedades e edifícios luxuosos. víduos, de um animal ou de um rebanho. Na mesma
Trata-se de cabanas, de entrepostos, de dependências di- época, a cotação de um burro situava-se entre 23 g
versas, de capelas e de quiosques de festas, assim como e 26 g de prata, a do porco entre 4 g e 6 g, a da cabra
de pequenas parcelas de terreno para construção valendo entre l g e 3 g, consoante a idade e o tamanho do
de l a 5 deben de cobre — l a 4,5 kg. animal. Quando nos é dada a possibilidade de compa-
rar números de épocas diferentes ou, por vezes, dentro
de um breve período, notamos variações importantes
IV — Os bens produtivos: as terras e o gado nesses mesmos números. É a cotação dos cereais, depen-
dente das colheitas, elas próprias sujeitas às cheias, que
Importa distinguir os vastos domínios e os grandes determina estas flutuações. Estudadas no que toca ao
rebanhos que não são directamente explorados pelos período dos Rameses, revelaram-se consideráveis. Im-
proprietários quando não pertencem a fundações ou à porta, pois, ser prudente em matéria de comparações,
coroa, das pequenas parcelas de alguns aroures —um já que a situação económica do país é susceptível de
pouco mais de um quarto de l ha — e das cabeças de provocar diferenças notáveis entre os diversos reinados.
gado que os camponeses ou qualquer outra categoria Assim, os cereais viram as suas cotações multiplicadas
de pessoas, adquirem e de que se ocupam pessoalmente. por 3 ou mesmo por 5 entre o reinado de Ramsés III
74 DOMÍNÍQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 75

e o de Ramsés VII e, em seguida, diminuírem para do Império Médio até ao fim do Novo Império: 100 g
metade entre os de Ramsés IX e Ramsés XI. Pelo con- de cobre valem l g de prata e 2 g de prata valem
trário, os bens trocados por ocasião da mesma transac- l g de ouro.
ção são perfeitamente comparáveis, com os três aroures Examinando os termos dos mercados que chegaram
pagos, no tempo de Tutmés III por uma só vaca, cujo até nós, é visível a variedade dos bens alinhados para
preço estava fixado em 45,5 g de prata. O valor da pagar as facturas apresentadas aos compradores. Na ver-
terra parece inalterável no tempo de Amenófis IV, se dade, em raros casos o vendedor parece ter exigências
considerarmos que os dois únicos testemunhos conhe- precisas quanto à maneira como pretende ser pago:
cidos bastam para abordar a questão. Dez sacos de trigo, a venda da jovem escrava síria Gemeniherimentet cons-
correspondentes a uma colheita média durante toda a titui um bom exemplo. Mas, o bazar heteródito habi-
época faraónica, vendem-se à mesma tarifa no tempo tualmente proposto pelo comprador e, segundo parece,
de Tutmés III. A equivalência entre o preço da terra aceite como pagamento pelo vendedor, encerra todas as
e o daquilo que ela produz num ano, antes de dedu- categorias imagináveis de produtos. De resto, é graças
zidos os impostos, as sementes para o ano seguinte e, a esta prática que hoje se conhece o valor que tinham
eventualmente, o aluguer do campo, não pode, contudo, na época. Desde os tempos mais recuados, são os pró-
ser estudada no que respeita ao período dos Rameses prios metais, sob diversas formas, e também os tecidos,
porque este, rico em informações sobre a cotação dos que são utilizados mais frequentemente como moeda de
cereais, é toalmente omisso quanto à terra arável. troca nos grandes negócios cujos passos conhecemos.
Usam-se igualmente as peles, assim como a madeira e os
móveis.
V — Os metais e os produtos de luxo O cobre e o bronze são, evidentemente, o metal e a
liga mais frequentes. Surgem, em primeiro lugar, sob
a forma de baixelas, mas também de armas, de utensílios
Se a cotação dos cereais serve de referência para ou de objectos de higiene, de espelhos, de metal recupe-
a avaliação de certos bens e dos alimentos que produ- rado, indistintamente, reservando-se a prata e o ouro
zem, são, como vimos, os metais, principalmente o cobre para a baixela de luxo e para as jóias. O chumbo ou
e a prata, conforme o nível das transacções, que se utili- o estanho intervêm mais raramente em transacções. Seja
zam para estimar o ou os objectos destas transacções. qual for o objecto considerado, se não for fabricado por
Mais uma vez, é necessário ser prudente, pois a cotação encomenda do cliente, só o seu peso em metal é consi-
dos metais também variou com o tempo, o que se derado, excluindo-se o tempo de trabalho e a qualidade
traduz, na prática, por diferenças na paridade de da execução. Esta medida justifica-se pelo facto do
troca entre estes metais. Contudo, à parte uma baixa metal assim recuperado ser geralmente fundido e trans-
sensível da cotação do ouro no reinado de Amenófis II, formado em outro objecto, como testemunham muitos
provavelmente resultante do afluxo de riquezas depois textos. Quanto às pedras semipreciosas, aparecem pouco
das vitórias egípcias na Ásia, e um aumento mais fraco nos mercados, embora o seu valor nos seja indicado
da do cobre no fim do reinado de Ramsés IX, verifica- pelas doações destas pedras que Ramsés III fez aos
-se uma estabilidade bastante considerável desde o início grandes deuses do país.
76 DOMINIQUE VALBELLE

Os tecidos eram, por vezes, fabricados tendo como


única perspectiva uma eventual compra, uma terra de
cultivo, por exemplo. O seu preço era definido em fun-
ção das dimensões da peça e da qualidade do tecido.
No conjunto, e no período dos Rameses, situa-se entre
l g e 45,5 g de prata. A variedade das peças, do ves-
tuário e da confecção era muito grande, desde a faixa CAPÍTULO IV
ao sudário, do avental triangular ao chalé, das telas
grossas ao linho fino. As peles destinadas à confecção
de sandálias, de almofadas de bancos, de pergaminho, O QUADRO DE VIDA
e também de sacos ou odres, conforme a sua origem
e dimensões, podiam atingir 18 g de prata. Por fim,
a madeira é um produto raro num país onde apenas Quando o Egípcio expõe o seu quadro de vida,
crescem árvores pequenas, como as acácias, ou árvores pinta uma paisagem, recorda uma cidade, age sempre
de madeira fibrosa, como as palmeiras. Assim, as essên- com um objectivo determinado: estabelecer a soma
cias necessárias às grandes estruturas, aos batentes das simbólica dos elementos do seu ambiente profissional
portas dos palácios, dos templos ou aos finos trabalhos ou dos seus haveres, marcar por meio de referências
de marcenaria ou de marchetaria deviam ser importadas, ou ilustrar uma narrativa, defender um tema ideológico.
como os pinheiros ou os ébanos. Por esta razão, mesmo Assim, seria ingénuo acreditar na sua palavra, aceitar
as tábuas de madeira vulgar e os móveis que então à primeira vista as reproduções das cenas situadas na
se faziam eram sempre produtos apreciados. Estes, natureza ou num contexto artificial, escutar os seus simu-
quando não se destinam às sepulturas, assemelham-se lacros de descrição. É, porém, através da própria expres-
surpreendentemente aos mais simples dos nossos móveis são desta arte codificada que se torna possível, confron-
de campo: cadeiras empalhadas, ou pequenos bancos, tando os seus testemunhos com os que a arqueologia
mochos de três pés, baús, etc. Muitos preços de tábuas, nos propõe, reconstruir alguns aspectos ambientais e,
de elementos fabricados ou de móveis são conhecidos simultaneamente, a visão que deles formava o homem
mas, ignorando a natureza da madeira, a forma e as da época.
dimensões dos produtos evocados, as referências perdem
parte do interesse. I — Os aglomerados
A enumeração de todos estes bens, acompanhados,
nos casos mais favoráveis, de indicações quanto ao seu
valor relativo ou absoluto, constitui apenas, como é Já nos primórdios da sua história, o Egipto viu o seu
óbvio, um primeiro passo em direcção a uma apreciação território cobrir-se de verdadeiros centros fortificados,
mais satisfatória do nível de vida dos Egípcios, nas suas figurados em paletas do período tinita como cidades
diferentes categorias sociais, mas é tudo o que o estado construídas num plano sensivelmente quadrado, de ângu-
actual dos nossos conhecimentos pode ofecerer sobre los arredondados, rodeadas por muralhas guarnecidas de
ameias. Os vestígios de diversos sítios, entre os mais
o assunto. antigos da história do vale do Nilo, como Abidos e Ele-
78 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 79

Os textos contemporâneos da sua fundação e do seu desen-


volvimento não se alargam em descrições. O seu nome «Muros
Brancos» parece referir-se às muralhas que cercam os bairros
principais. A cidade, de facto, foi construída num terreno cortado
por pequenos vales e é pouco provável que, nos tempos mais
remotos, se tenha cingido a um perímetro restrito. Além disso,
é sabido que o aglomerado era protegido por um dique das inva-
sões anuais das cheias do Nilo. Célebre por ter albergado a resi-
dência dos soberanos do Antigo Império, é, afinal, o nome da
cidade da pirâmide de Pépi I, construída a ocidente, junto à
necrópole real de Saqqara, que passa à posteridade: Mennefer,
que os Gregos transformaram em Mênfís. Repetidamente despre-
zada, em favor de outras capitais, porém menos judiciosamente
situadas, nem por isso deixou de ser a primeira cidade adminis-
trativa do país. Além disso, a sua posição ímpar na extremidade
sul do delta contribuiu, provavelmente, para o desenvolvimento
do porto, cujos estaleiros navais e vastos entrepostos lhe gran-
jearam, no Novo Império, uma importância tanto comercial
como táctica.

Protótipo das metrópoles, só Tebas concorreu com


ela em renome. Tebas, elevada à primeira categoria na
xi dinastia, foi novamente eleita pelos monarcas da
XVIH dinastia, originária de um burgo próximo. Embora
Fig. 7.— Fundações de cidades: pormenor da paleta das
Museu Egípcio do Cairo. muitos dos seus bairros residenciais sejam menos conhe-
cidos do que os perímetros sagrados dos seus templos
e as extensões dos cemitérios, as ruínas que a represen-
tam ainda hoje nos dão mais do que uma simples ideia
da sua grandeza.
fantina, confirmam os esquemas desajeitados da icono-
grafia e começam a revelar certos dados deste urbanismo A margem direita do Nilo destinava-se a acolher o palácio
real, a sede do governo e as residências dos notáveis, juntamente
nascente. Estas cidades são metrópoles de nomos. Umas com os santuários de Amon, Mut, Khonsu e Montu. Foi perto
devem a sua existência a motivos religiosos, como Abi- da muralha deste último que Tutmés I mandou construir o seu
dos, outras constituem, como Elefantina, pontos estra- Tesouro e os túmulos dos altos funcionários da região guardaram
tégicos intransponíveis. Entre estas cidades de impor- a recordação de algumas casas urbanas de dois pisos, encimadas
tância média, cuja população ainda hoje não pode ser por terraços e orladas por palmeiras e sebes, carcterísticas dos
bairros elegantes. Os bairros mais modestos da mesma margem
avaliada, nem aproximadamente, distingue-se uma: Mên- não são objecto de reprodução, ao contrário do que acontece com
fís, a primeira capital do país unificado. as pitorescas ribas do rio, invadidas por uma multidão de nego-
80 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 81

ciantes e de mercadores que circulam pelo meio das barracas


erguidas junto dos barcos ancorados. O desembarcadouro do dades. O bairro ocidental é o domínio de Amon, o bairro azul
templo de Amon oferece, de resto, um espectáculo semelhante o de Seth. Astarté encontra-se a oriente. Ouadjit, a setentrião.
sempre que chegam produtos enviados pelas propriedades do A casa que aí se encontra é como o horizonte do céu, etc.»
deus, distribuídas por todo o país.
Na costa ocidental, os vestígios dos templos funerários Trata-se de uma obra de circunstância rica em ale-
situam-se nos limites das culturas e das colinas desérticas inva- gorias, mas muito pobre do ponto de vista descritivo.
didas pelas necrópoles reais e privadas Mais ao sul, os restos
do imenso palácio de Amenófis III e do porto que o servia Outra composição sobre o mesmo assunto é mais pre-
estendem-se não muito longe dos de um posto militar situado cisa, mas apenas no que respeita aos inesgotáveis recur-
na orla do deserto. Um papiro do fim da época dos Rameses sos da cidade. Contudo, só acessoriamente recorda os
diz-nos que o vasto aglomerado de Tebas-Oeste, espraiado por jardins e os lagos que a ornamentam, o porto e os
vários quilómetros paralelamente ao Nilo, compreendia, entre
estes centros religiosos e todas estas oficinas funerárias, as resi- campos que a circundam.
dências dos sacerdotes, dos ferreiros, dos médicos, de todo o pes-
soal menor e de alguns responsáveis locais. Algumas delas encon- Já estamos bem longe, não obstante as afirmações
tram-se representadas, rodeadas de pequenos jardins, nas paredes dos escribas, dos complexos urbanos das duas famosas
de algumas sepulturas. Instalada no leito de um pequeno ouadi capitais. Estas constituem, simultaneamente, o modelo
desértico, retirado no vale, a aldeia dos operários do Túmulo
continua a ser, com as suas sucessivas muralhas e as paredes e a excepção. Sem podermos sequer citar todas as cate-
das casas mais recentemente construídas, um dos testemunhos gorias de aglomerados que o Egipto conheceu, limite-
mais bem preservados da arquitectura civil do Novo Império. mo-nos a recordar, por ocasião deste panegírico de
As muralhas não constituem fortificações protectoras, limitando-se
a marcar os limites do aglomerado. É nelas que se apoiam as Pi-Ramsés, os estreitos laços que sempre mantiveram,
habitações médias. Estreitas e fundas, parecem empurrar-se umas em todas as épocas, com o mundo agrícola. Nenhuma
às outras, enquanto as ruelas abrem caminho de norte para sul cidade, incluindo as capitais, nenhuma aldeia vive total-
e de leste para oeste. A longa existência desta aldeia justifica as
irregularidades da sua configuração final. Nem espaços livres, mente isolada dos campos, dos pomares que a rodeiam,
nem vegetação em todo este conjunto; foi fora destes muros dos jardins que a embelezam. Talvez por isso nos seja
que se ordenaram os celeiros destinados a armazenar as reservas tão difícil distinguir os verdadeiros burgos rurais.
em cereais da comunidade e que capelas e salas de reuniões
puderam acolher a realização de assembleias de aldeia.

Tal como em relação a Mênfis, não conservámos II — Os campos


nenhuma descrição literária egípcia de Tebas. É, no
entanto, a estes dois modelos que se referem os escribas
que decidiram fazer o elogio da residência dos soberanos Se já certos textos literários consideram os campos
rameses, na parte leste do delta: simples reservas de víveres — «os pântanos abundam
«Sua Majestade —^vida, saúde, força— mandou construir ern peixe, os tanques transbordam de aves, os prados
uma residência chamada Grande-de-Vitória. Situa-se entre as são verdejantes de vegetação, etc.» — as representações
regiões do Levante e o Egipto e abunda em géneros e alimentos. que cobrem as paredes dos túmulos não têm habitual-
O seu plano é semelhante ao de Tebas, a sua existência dura- mente mais nenhuma função: os campos, os pomares,
doura como a de Mênfis. O sol nasce no horizonte e aí se põe.
SABER 214 — 6

\a a gente abandona a ci
82 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 83

as vinhas surgem para mostrar a futura colheita, os pân-


tanos para demonstrar a existência de caça, de peixes
e de pastagens. Por vezes, porém, uma paisagem natu-
ral é representada por outros motivos que não apenas
o potencial económico que encerra. Assim, a flora e a
fauna aquáticas, que parecem apaixonar pintores e dese-
tf ,-v
nhadores, são muitas vezes escolhidas como cenário
nos palácios de Malgata e de Amarna ou como meio
natural de cenas mitológicas. Parques de animais sagra-
dos também podem encontrar-se representados nas pare-
£<^* J"0 "«• t
^C m- X • . \> _ VI
des de capelas, como o das gazelas de Anoukis em
Sehel. Muitas vinhetas que ilustram capítulos do Livro
dos Mortos desenvolvem-se sobre um fundo natural.
A intenção do lapidicida também parece, por vezes,
enciclopedista como, provavelmente, as evocações da
«câmara das estações» do templo solar de Niouserrê,
em Abu Gurob, ou o «jardim botânico» de Tutmés III,
em Carnac. Por fim, nas cenas de cultivo ou de criação
de animais tradicionais, como as de caça e de pesca,
descobrem-se frequentemente rasgos do artista: algumas
ervas daninhas num campo à primeira vista impecável,
uma profusão de aves coloridas numa acácia, um cro-
codilo encolhido no fundo de um curso de água enquanto
um rebanho o atravessa, um vitelo lambendo afectuo-
samente a mãe, etc. Todos estes pormenores, exami-
nados um a um, contribuem para dar vida a cenas cam-
pestres com motivos previamente determinados.
Acontece que a alusão pictórica se torne mais geral,
menos racional, em benefício de uma paisagem mais
ampla, mas mais bem situada do ponto de vista topo-
Fig. 8. — O parque das gazelas sagradas da deusa Anoukis; cena gráfico. O solo é materializado, conforme o hábito, por
do túmulo de Neferhotep, em Deir el-Médineb. um traço castanho que, serpenteando através dos cam-
pos e das árvores, sugere a ideia de um relevo. Também
os cursos de água, descrevendo curvas e recortes, divi-
dem o plano em outros tantos registos irregulares que
criam a ilusão de volume. Estas tímidas tentativas de
84 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 85

restituição do espaço natural seriam insuficientes para A paisagem do delta diferia muito da do vale. Cur-
despertar a nossa imaginação se o estudo da paisagem sos de água, pântanos e lagos surgiam abundantemente.
actual do Egipto, acompanhado pelo do subsolo por A vegetação compunha-se sobretudo de papiros, cana-
meio de cortes e sondas inspirados nos métodos de pros- viais, plantas aquáticas de várias espécies, mas também
pecção geológicos, e ainda pelo das variações do curso vinhas, pomares e jardins. Junto ao Mediterrâneo esten-
do Nilo, não viesse em nosso auxílio. No Sul, o vale, dem-se ainda vastas marinhas de sal, exploradas desde
por vezes muito largo, encontra-se, em certos locais, a Antiguidade. Os aglomerados, respeitando os capri-
encaixado entre as falésias dos planaltos líbico e ará- chos da morfologia do terreno, são formados por case-
bico. De província em província, passa-se de uma pai- bres dispersos, construídos ao abrigo das cheias, em
sagem de planície para uma paisagem de montanha. colinas naturais que em árabe se chamam gezira —
Mas, são sobretudo o rio e os canais que o prolongam, ilha —, ou nas margens escarpadas resultantes da esca-
que animam efectivamente os campos, outrora limita- vação e da limpeza regular dos cursos de água. Contudo,
dos à zona inundada, todas as Primaveras, pelas cheias. estabeleceram-se cidades importantes nos principais bra-
Nestas terras baixas anualmente ameaçadas pelas águas, ços do Nilo, por razões históricas, religiosas ou comer-
as cidades e as aldeias constroem-se em todas as eleva- ciais. Formam, praticamente, colinas artificiais em que
ções: terraços aluviais, colinas, aglomerações de terras as novas habitações se sobrepõem aos vestígios de outras
ao longo dos canais. Sabe-se pouco sobre o habitat cam- mais antigas. Chamam-se kom ou tell.
ponês, não obstante algumas belas descrições: Tanto no delta como no vale, a rede hidrográfica
forma um elemento essencial na paisagem, que modela
«Raia mandou construir uma bela casa em frente de Afrodi- à sua vontade. Fonte de vida, reserva inesgotável de
topólis, mandou-a construir na margem, [...] (?) como obra para peixe e de caça marinha, constitui a primeira rede de
a eternidade e rodeada de árvores por todos os lados. Em frente comunicação do país, muito anterior às estradas. Assim,
da casa foi escavado um canal e o sono só é perturbado pelo é muitas vezes representada nesta função. A frota flu-
fragor das ondas. A vista é repousante. Sentimo-nos [logo] ale-
gres só [de passar] pela porta. Enebriamo-nos nos salões. Os vial era, portanto, importante no Egipto, dando origem
enquadramentos das portas, em calcário de Tura, contêm inscri- ao ordenamento de bacias portuárias, cais de embarque
ções e são esculpidos. Os belos batentes foram refeitos de novo e ancoradouros vários que, por sua vez, suscitavam a
e as paredes incrustadas de lápis-lazúli. Os celeiros encontram-se criação de estaleiros navais, entrepostos, oficinas e
repletos dos melhores cereais. As capoeiras abrigam gansos cin-
zentos. Os estábulos estão repletos de vacas. Um tanque cheio de animados mercados. As margens do rio, e as dos canais,
água está reservado à reprodução de palmípedes. Os cavalos estão que, de resto, a iconografia não distingue, eram locais
nas cavalariças. Barcas, barcaças e batéis destinam-se ao trans- de atracção que punham em contacto as populações cam-
porte do gado e estão amarrados ao cais, etc.» ponesas com tripulações vindas de outras regiões e do
estrangeiro.
A exposição, que começa por uma descrição da Às vezes, porém, os Egípcios sabem esquecer as con-
quinta como local de permanência agradável, passa tingências materiais, dando largas à imaginação. Foram,
rapidamente à elaboração de um inventário do patrimó- talvez, os escritores do Novo Império que nos deixaram
nio, sem contudo abandonar totalmente o tema inicial. as descrições mais desinteressadas sobre a natureza
86 DOAÍINÍQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 87

envolvente, nos Cantos de Amor. Estas composições, De todas estas imensas terras áridas, só as primeiras
que se situam no campo, foram particularmente inspi- foram frequentemente objecto de reproduções nos
radas pelas árvores e jardins que se confundem corn túmulos, na evocação do próprio túmulo e das cerimó-
os jovens, numa linguagem poética de subtis requintes: nias que com ele se relacionam, ou mais figurações
simbólicas da vaca Hator saindo da montanha tebana,
ou ainda em cenas de caça ou de criação de gado miúdo.
«[...] Pertenço-te, como a terra
Esta zona intermédia entre as culturas e o verdadeiro
Que semeei de flores, deserto assemelhava-se muito mais a uma savana ou a
E de plantas de toda a espécie cujo aroma é suave uma paisagem de Sael do que aos campos pedregosos
Como é encantador o canal que aí se encontra, e estéreis das regiões mais longínquas.
E que as tuas mãos escavaram. Povoados desde a pré-história, colonizados desde
o Antigo Império, os oásis do deserto líbico esten-
Para nos refrescar, soprando o vento Norte:
dem-se de Norte a Sul, ao longo de uma larga depressão
Um local de passeio maravilhoso [...]» que prossegue em direcção a Darfur. Célebres por
alguns dos seus vinhos, os vinhedos não são o único
(Tradução francesa de P. Posener-Kriéger, segundo
S. Schott, Lês chants d'amour de 1'Egypte on- recurso destes distritos longínquos, administrados por
ctenne, Paris, 1956, p. 77.) governadores. A metrópole dos de Dakhla, remontando
ao fim do Antigo Império, foi recentemente descoberta
em Balat. Abrange uma área de 3 ha, rodeada por uma
III — Os desertos muralha de forma sensivelmente quadrada, da qual extra-
vasam alguns bairros igualmente cercados por muralhas.
Oficinas de oleiros confirmam a existência de um arte-
Neste país, em que as culturas ocupam uma ínfima sanato local relativamente desenvolvido. As manadas
parcela, as extensões desérticas, apesar de inquietantes de burros fazem igualmente parte das imagens referen-
e inóspitas, fazem parte do quotidiano. Primeiramente, tes aos oásis e os sais de natrão, produzidos no mais
o deserto próximo, aquele que começa quando desapa- setentrional dos oásis, constituem matéria indispensável
recem as terras inundáveis, o das necrópoles, das plan- às práticas funerárias egípcias.
tas espinhosas e herbáceas; os oásis vêm em seguida, De facto, os recursos minerais são numerosos nos
reminiscências pontuais de um antigo vale fluvial para- planaltos montanhosos que enquadram o vale do Nilo.
lelo ao Nilo, no deserto ocidental; por fim, as monta- De naturezas geológicas variadas, foram desde muito
nhas, ricas em recursos minerais variados, mais ou cedo terreno propício para pedreiras e minas. Tanto
menos distantes das zonas habitadas; e, depois, as umas como outras recebiam esporadicamente expedições
regiões situadas nos confins do país, junto das fronteiras de importância variável em função das necessidades.
ou sobre o litoral do Mar Vermelho, guardadas por Algumas foram exploradas mais regularmente do que
fortalezas ou abrigando portos, domínios de populações outras, em determinadas épocas, consoante a política
nómadas, ora atraídas pelas planícies do Egipto, ora dos soberanos, e conservaram marcas da extracção de
hostis à sua autoridade. pedras, metais ou minerais diversos, vestígios dos habi-
DOAÍÍNÍQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 89

tats operários e dos santuários construídos pelos fronteiriço de Tcharu, no actual canal do Suez, até à
homens — soldados, trabalhadores braçais, artesãos — Palestina, na parede norte da sala hipóstila do templo
separados, por períodos mais ou menos longos, da famí- de Carnac, por ocasião de uma campanha que o rei
lia, da casa e dos dos deuses. travou nestas regiões contra beduínos revoltados.
O aspecto geral das construções, a presença de poços
A única figuração que conservámos destes territórios desolados e árvores encontram-se cuidadosamente descritos. O diá-
é uma espécie de «mapa do tesouro» de uma secção do ouadi rio de um oficial das tropas aquarteladas numa delas,
Hammamat, no deserto arábico, onde se encontram pintadas no tempo de Merenptah, testemunha a importância
esquematicamente, num tolo de papivo, as montanhas escarpadas destes movimentos em todo o sector. Os desertos do
sobre os caminhos que as percorrem, as minas de ouro e os jazigos Egipto, como se vê, não são regiões desabitadas.
de prata, as cabanas dos mineiros e o traçado de um poço, o san-
tuário dos deus Amon e a esteia do rei Séti I, que também man-
dou ordenar ao longo de uma estrada mais meridional uma série
de fontes para facilitar o percurso das tropas enviadas para tra-
balhar em outras minas de ouro.
IV — O estrangeiro

Estes distritos eram objecto de vigilância, assegu- Estabelecendo com os vizinhos relações muitas vezes
rada por uma polícia especial. ambíguas, o Egípcio sente-se ao mesmo tempo atraído
Mais a leste, nas costas nuas do Mar Vermelho, na por países que considera exóticos e assustado com a
península do Sinai, nos socalcos líbicos do delta e na aventura que constitui, na Antiguidade, viajar para
Baixa Núbia, tribos beduínas, de diversas origens, vivem, regiões longínquas. De um ponto de vista mais terra a
mais ou menos pacificamente, da criação de animais. terra, consoante o potencial militar do Egipto, o estran-
geiro constitui uma ameaça grave ou uma fonte consi-
De vez em quando, por carências pessoais ou por pres-
derável de enriquecimento para o país. No fim do
são de elementos externos, ameaçam os interesses egíp-
Antigo Império, apesar das reticências e inquietações
cios nestes sectores estratégicos. Assim, a expedição
que estas populações lhes inspiravam, vários nomarcas
enviada para o litoral do Mar Vermelho por Pepi II de Elefantina aceitam conduzir, em país núbio, expedi-
foi massacrada por um grupo de nómadas, precisamente ções das quais não regressam com vida. São enviados
quando os seus membros reuniam as peças do barco pelo soberano para explorar novas rotas e trazem dos
que deveria conduzi-los ao país de Pount, transportadas seus périplos um grande número de produtos desconhe-
do vale através dos carreiros. Para evitar estes ataques cidos no Egipto. Por vezes, precisam de combater, por
e os de invasores mais perigosos, construíram-se praças- vezes intervêm em confrontos entre etnias diferentes,
-fortes nas diferentes zonas fronteiriças, a partir do muitas vezes estabelecem acordos com algumas delas.
Império Médio. Garantiam não só uma certa segurança, Mas, nenhuma das narrativas autobiográficas que nos
como também serviam de feitorias comerciais nas trocas transmitem estes feitos compreende a descrição das
económicas regulares que o país mantinha com os vizi- regiões atravessadas, nem observações sobre hábitos ou
nhos. As de Seti I, na parte norte do Sinai, foram mentalidades. Acontece o mesmo com as relações entre
representadas na sua ordem geográfica, desde o posto o Egipto e os outros vizinhos.
T
90 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 91

A imagem do faraó massacrando um inimigo, que ficará consa- «Vivo em Kenkenato. Não estou bem instalado. Não há
grada como alegoria profiláctica da supremacia egípcia sobre os homens para fazer tijolos, nem existe palha nos arredores. A que
vizinhos, já na i dinastia se encontra gravada no Sinai, num ro- trouxe para as primeiras necessidades já acabou, embora não haja
chedo do ouadi Maghara. Outro método mágico carregado de burros para a roubar. Passo os dias a observar os pássaros e
significado semelhante só se tornou conhecido a partir da V dinas- pesco. Anseio pelo caminho que conduz à Palestina. Estou de-
tia: figurinhas de feitiço, em madeira, argila crua ou cozida, baixo de uma árvore que não dá frutos (?) comestíveis,, pois
cera, alabastro ou calcário, cobertas de inscrições hieráticas que mesmo as tâmaras que não amadurecem desapareceram. Há mos-
encerram listas de nomes de príncipes ou de princesas, simboli- quitos (?) ao nascer do Sol e moscas (?) ao meio-dia. Os mos-
zando os seus países, acompanhadas de fórmulas mais ou menos cardos (?) picam e chupam [o sangue] das veias [...].»
injuriosas destinadas a atingi-los através do suporte escolhido
para aniquilar o perigo potencial que representam. Estas figuri-
nhas podem ser substituídas por vasos. Encontram-se igualmente Quer se trate de um explorador isolado ou de um
outras fórmulas mágicas. Muitas vezes despedaçadas e lançadas exército em deslocação, o trajecto raramente é evocado
para fossos por ocasião das cerimónias de fundação de um monu- por outros pormenores para além da menção de locais
mento ou de um conjunto monumental, protegem-se virtualmente
contra a intervenção das forças do mal, sejam elas quais forem. atingidos, atravessados ou ultrapassados. As descrições
As mais numerosas, feitas de cera, desapareceram nas chamas. de regiões estrangeiras são excepcionais e caem rapida-
Este costume perdurará até à Primeira Época. Paralelamente, mente, como no caso do Egipto, no inventário dos
listas de nomes de cidades ou de países estrangeiros submetidos recursos locais:
ao Egipto, ou como tal considerados, inscritos em espaços ovais
aos quais se aplica a silhueta de um prisioneiro, expõem nos
templos, nas bases dos pilonos e das colunas, a imagem inofen- «Era uma terra excelente, chamada laa. Produzia figos e
siva dos vencidos oferecidos ao deus. Outros costumes semelhan- vinha; o vinho era mais abundante do que a água; havia muito
tes destinam-se a afirmar o poder universal do Faraó em todas mel e azeite em quantidade; frutos de toda a espécie cresciam
as épocas. A de concepção mais pacífica consiste em fazer figurar nas árvores. Havia também cevada e frumento e os animais mais
ou em enumerar os tributários dos países vassalos oferecendo ao diversos eram incontáveis.» (Segundo G. Lefebvre op. cit.,
rei ou ao vizir um contributo anual em homens, rebanhos, cavalos, p. 11.)
carros e produtos de luxo.
Quanto às representações de paisagens por ocasião
Estas precauções rituais ou políticas não devem de expedições pacíficas ou guerreiras, são quase exclusi-
fazer-nos esquecer, porém, que, na prática quotidiana, a vamente reservadas às paredes dos templos, oferecen-
integração das comunidades estrangeiras no Egipto, do-se ao deus os benefícios daí retirados. Do país de
antes do i milénio, é uma evidência corroborada por Pount conservámos apenas a imagem dada pelos relevos
do templo funerário da rainha Hatchepsout, em Deir
múltiplos testemunhos.
el-Bahari. É também o único exemplo conhecido de
A julgar por um tema literário conhecido, o Egíp-
figuração de uma aldeia africana antes da Primeira
cio, quando viaja para fora das fronteiras do seu país, Época.
quando é nomeado para um cargo num protectorado
longínquo, ou quando se exila por razões políticas,
Esta encontra-se construída à beira de um curso de água no
sente a nostalgia da terra natal e aspira a regressar qual nadam tartarugas e peixes. As cabanas que o compõem são
para aí passar os últimos dias, seja qual for o acolhi- construídas sobre colunas para as quais se sobe por uma escada.
mento dispensado pelos anfitriões: A ausência de perspectiva é compensada pelas dimensões variáveis
das habitações, pela disposição irregular das árvores de incense
92 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 93

e dos ébanos e pela presença cie animais selvagens ou domés-


ticos: um pássaro que voa de árvore em árvore, uma vaca deitada
debaixo de uma delas, um cão errando entre as casas.

As únicas evocações gráficas capazes de ser compa-


radas com este quadro único não partilham da mesma
serenidade. Trata-se de aspectos de fortalezas semelhan-
tes às cenas correspondentes dos baixo-relevos assírios.
Mas, o assalto ou a destruição destas praças-fortes w:' ' ' f' v
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situa-se nos campos vizinhos, quanto mais não seja '
para ilustrar a poda das árvores e as colheitas nos cam-
pos, às quais se entregam os soldados vencedores. Estas f \w ' ' ""r lT~~- , .*1*»!
operações guerreiras não deixam de ser pretexto, porém,
para que o artista mostre as florestas do Líbano ou as
colinas arborizadas da Síria. t- y-
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Fig. 9. — Uma cabana no país de Pount; cena do templo de


Hatcbepsotit, em Deir el-Bahari.
A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 95

nenhum termo especial para a designar. Dispõe, porém,


de uma designação para todas as pessoas que moram
na mesma casa. Seja qual for a força dos laços que
muitas vezes unem o filho ao pai, é dever do pai incitar
CAPÍTULO V os filhos a fundar um lar desde jovens, isto é, a cons-
A VIDA PRIVADA truírem uma casa, ou a repará-la se esta lhes. for forne-
cida pelo empregador, e a escolherem uma mulher.
A sociedade tende, pois, para a divisão da família em
Muitas vezes obrigado a afastar-se do lar para núcleos mais restritos. Estes núcleos compõem-se dos
desempenhar as tarefas que lhe são confiadas, o Egípcio, pais, dos filhos e dos parentes a seu cargo: uma mãe
alto funcionário ou obscuro trabalhador manual, é muito viúva, irmãos e irmãs órfãos de pai e demasiado jovens
dedicado aos seus, à cidade e ao país. De resto, esta- para serem casados, etc. Estes novos núcleos familiares
belece pouca distinção entre meio familiar, meio social estão, portanto, abertos aos membros isolados da famí-
e meio profissional. Os colegas são muitas vezes o pai, lia e, em particular, às mulheres sozinhas ou repudia-
os filhos, os irmãos ou os cunhados, e também os vizi- das. O bem-estar dos progenitores é uma obrigação
nhos e os amigos. Não é raro habitar numa casa desti- moral dos filhos, cuja dedicação pode ser encorajada,
nada aos que desempenhem as suas funções, situada como nos nossos dias, pela perspectiva de uma herança.
num bairro onde residem também os seus parceiros. Na verdade, é conhecido um testamento que priva
Se é explorador agrícola e constrói ele próprio a sua vários descendentes da sua parte da herança. Em certas
casa, esta é animada por pessoas que partilham a sua épocas, as sepulturas constituem a última ocasião de
vida de todos os dias e quase se tornam parte da famí- reunir os membros cie uma família, desta vez defini-
lia. Embora tenham chegado até nós informações pon- tivamente. Assim, chegamos a encontrar cerca de vinte
tuais sobre a vida privada de pessoas pertencentes a múmias amontoadas na mesma sepultura, no tempo dos
diversas categorias sociais, pelos mais variados proces- Rameses, mas a raridade das inumações ainda intactas
sos, quis o acaso que fosse uma comunidade operária aquando da chegada dos arqueólogos, não permite tirar
a que nos legou um quadro mais completo, em todos conclusões dos casos examinados. Sabe-se, porém, que
os aspectos. Esta servirá, pois, como tema de referência em outras épocas o túmulo estava reservado apenas ao
ou de comparação, de confronto com dados exteriores casal, excluindo mesmo os filhos de tenra idade, inu-
de que possamos dispor. mados em cemitérios diferentes.
No Egipto faraónico, o casamento não parece ser
sancionado por um rito religioso ou por um acto jurí-
I — A família dico. Não- é conhecido nenhum contrato de casamento
anterior à Primeira Época, ao contrário do que acontece
A família no sentido lato, os ascendentes, os des- com o divórcio, que necessita de um apontamento
cendentes e os colaterais, constitui, para o Egípcio, um sobre a repartição dos bens pelo casal: cada um fica
quadro tranquilizador que expõe com orgulho nos monu- com o que tinha quando se casou e os bens adquiridos
mentos funerários e religiosos, embora não conheça são divididos pelos dois: dois terços para o homem
I 96 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 97

e um terço para a mulher. O casamento, que não parece afecto. Mas, os escultores e os pintores raramente se
ser motivo para nenhuma festa familiar, era precedido, afastam de um repertório de atitudes convencionais,
como no Egipto moderno, pela entrega de uma espécie com excepção dos períodos amarniano e dos Rameses,
de dote pelo pretendente, que esperava, assim, obter que conservaram algumas cenas íntimas da família real,
a concordância do pai da noiva. A união é, então, con- eivadas de uma comovedora espontaneidade, mais pró-
cretizada pela coabitação do casal. Ao contrário do xima da nossa sensibilidade. A literatura romanesca,
que acontece com a família real, no interior da qual a por seu lado, dedica-se mais à ilustração do ciúme e do
poligamia e as relações consanguíneas se justificam pela adultério do que da ternura ou da paixão. Por sua vez,
constante preocupação de uma transmissão legítima do relatórios oficiais e textos jurídicos dão conta dos agra-
poder faraónico, estas práticas nunca foram aprovadas vos, das disputas e das discussões que agitavam os lares
pelas classes abastadas, nem pelos meios mais modestos, da época, e mesmo o harém real, local privilegiado de
que condenam e punem adultérios e violações. Por outro intrigas e rivalidades. A correspondência real ou fictícia
lado, a separação do casal é frequente, sobretudo entre também realça as relações harmoniosas, ou até amorosas,
os indigentes e o novo casamento em caso de viuvez como se pode ver nesta carta dirigida por um escriba
ou de divórcio constitui uma regra. O celibato é à sua defunta mulher:
considerado um comportamento associai. A homossexua-
lidade só é evocada em contextos mitológicos, o que «Oh! venerável sepultura de Osíris, a cantora de Amon-
não permite apreciar a atitude da sociedade egípcia a Akhtay, que repousa em ti! Ouve-me e transmite [esta] mensa-
gem. Pergunta-lhe, já que estás junto dela: "Como te sentes?
este respeito. Esta, sem mostrar uma complacência acen- Onde estás?". Dir-lhe-ás: "Que pena Akhtay não se encontrar
tuada pela expressão da sexualidade, parece condenar vivai". Assim se exprime o teu irmão, o teu companheiro.
os falsos pudores. Um erotismo requintado, precursor Que dor por ti, tão bela, sem igual. Em ti, não havia nada
do que floresce no Cântico dos Cânticos ou na poesia de feio. Chamo todo o tempo por ti, responde [àquele] que te
chama [...].»
árabe, está bem patente nos Cantos de Amor:

«[...] A ti dediquei o meu coração. As famílias egípcias tinham geralmente muitos filhos
Por ti faço o que ele desejar, mas estes não parecem tão numerosos em casa — dois
Quanto estou deitada nos teus braços; em média—, devido à elevada mortalidade infantil e
O desejo que sinto de o fazer, porque, desde muito cedo, eram confiados a escolas ou
É o brilho dos meus olhos [...].» colocados em locais de aprendizagem de um ofício.
Quando os pais se separavam, os documentos referen-
(Tradução francesa de P. Posener-Kriéger, op. cit., tes ao divórcio nunca mencionavam quem assegurava
p. 76.)
a educação dos filhos, embora estes sejam confiados ao
Desenhos, estátuas e um papiro pudicamente clas- pai em todos os casos que se conhecem. Contudo, é
sificado de «erótico» traduzem essencialmente uma provável que os recém-nascidos ficassem com as mães,
ingénua e alegre obscenidade. pelo menos durante alguns anos. Mas, o assunto nunca
As relações conjugais exprimem-se, na maior parte é ventilado e, visivelmente, não oferecia dificuldades.
das vezes, na iconografia, sob a forma de respeitoso Por outro lado, a esterilidade de um casal constitui
SABER 21Í — 7
98 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 99

tema de viva preocupação para os infelizes assim atin- o qual se abrem os diversos aposentos privados da casa, clara-
gidos pela sorte. Quando as orações e as dádivas às mente separados uns dos outros; os estábulos têm ainda outro
acesso. Das 70 divisões que formam este conjunto, cerca de um
divindades em causa não surtiam mais efeito do que os terço é ocupado por dependências, e o resto reparte-se por pátios
esforços dos médicos e dos feiticeiros, eram obrigados interiores que parecem exercer uma função de locais de transição,
a canalizar a sua afeição para filhos de terceiros. Igno- de encontro e de recepção, uma entrada com quatro colunas que
ramos, porém, se, de um ponto de vista legal, se trata devia servir de escritório do dono da casa e pequenos grupos de
quartos. As residências de Amarna são relativamente menos espa-
de uma espécie de tutela ou de uma verdadeira adopção. çosas — 1200 m2 em média — embora os diferentes corpos de
edifícios que as compõem se distribuem pelo interior de um
grande jardim cercado — de 2000 a 4000 m2. Não faltam elemen-
II — A casa tos de prestígio —pórticos, rampas de acesso, átrios, vestíbulos,
áreas de recepção —, nem de conforto — as casas de banho
fazem a sua aparição. A habitação principal, que compreende
Já por diversas vezes tivemos ocasião de referir a sempre corpos distintos, mas menos nitidamente isolados uns dos
construção e o aspecto geral das habitações em meio outros, está completamente separada, desta vez, dos sectores
urbano e em meio rural, a sua atribuição a título pro- domésticos — cozinhas, armazéns c estábulos —, situados junto
da cerca, nas traseiras da casa e dos silos que, por sua vez, se
fissional, ou de considerar o seu valor. Resta-nos obser- expõem ao olhar dos visitantes. Uma capela, rodeada de um
vá-las na sua verdadeira função, como cenário da vida pequeno jardim, possui uma entrada particular monumental e um
privada. Somos levados a classificá-las em duas grandes acesso, mais discreto, à residência. Muitas pinturas mostram cenas
categorias: as grandes residências e as quintas que reú- de banquetes abrilhantados por conceitos que reúnem a família,
nem, em volta do núcleo familiar, toda uma população ou cenas mais íntimas de mulheres em sessões de higiene, sendo
objecto de cuidados por parte das criadas.
de empregados, por um lado, e as modestas cabanas em
que vive a família em sentido restrito, por outro lado. Conhecemos ainda melhor a organização de uma casa
Como ignoramos qual o plano de uma exploração operária e a vida que aí se processa, graças aos vestígios
agrícola média, do alojamento dos trabalhadores manuais arqueológicos, etnográficos e epigráficos da aldeia de
e dos criados relativamente ao dos patrões, a maneira Deir el-Médineh.
como se desenrolavam as refeições e as relações que
todas estas populações mantinham entre si, somos for- Ocupando uma superfície que oscila entre 40 e 120 m2, apre-
çados a recorrer, para ilustrar a primeira categoria, ao sentam-se habitualmente como uma enfiada de compartimentos
plano das residências da cidade da pirâmide de Sesós- de dimensões variáveis, todos eles situados no rés-do-chão. O pri-
tris II, ao das residências dos altos funcionários da meiro, junto à ruela, apenas recebe luz da porta da entrada;
destinado ao culto dos antepassados e dos deuses ou génios pro-
capital de Amenófis IV e às cenas íntimas dos túmulos tectores da fecundidade e do parto, comportava um altar con-
do Novo Império. venientemente decorado, esteias e bustos de deuses do lar.
O segundo, situado ao nível da ruela, mais espaçoso e mais alto
As casas de Illahoun, que cobrem, cada uma delas, uma do que o primeiro, era iluminado por janelas altas dotadas de
superfície de 2400 m2, são constituídas por sectores suficiente- grades, possuía uma coluna central, escoras de pedra junto às
mente distintos para que se torne possível, à primeira vista, janelas e, muitas vezes, portas secretas recordando o patrono da
atribuir-lhes as respectivas funções: cozinhas e armazéns possuem aldeia. Amenófis I e a mãe, Ahmés Nefertari, e ainda dipinti
mmtas vezes uma entrada de serviço e comunicam por uma só variados. E a sala-de-estar, aquela em que se recebia, onde se
porta com um vestíbulo que serve o pátio, com pórtico, para tomavam as refeições e certamente, como as casas dos actuais
DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 101
100

feias, onde se dormia de noite. Um ou dois retiros ocupavam estrito quadro da aldeia, do bairro ou, quando muito,
o espaço deixado livre pela escada que conduzia ao telhado, em da região.
terraço, e ao corredor que conduzia à cozinha, por vezes comple- As fontes de que dispomos são praticamente omis-
tada, para arrumação dos géneros, por um silo ou uma cave; sas quanto a estes temas, que só raramente surgem
a cozinha, equipada com um forno para pão, com almofarizes, nos
quais as mulheres ao serviço das famílias da aldeia vinham pilar figurados e que, mesmo neste caso, só excepcional-
os cereais, com masseiras e reservatórios de água, era descoberta. mente comportam algumas indicações sobre o contexto,
Para além dos ordenamentos próprios de^cada compartimento e a identidade dos protagonistas e o significado real das
de alguns nichos nas paredes, continham um mobiliário modesto situações evocadas. Quanto aos testemunhos epistolares,
de madeira ou de pedra — bancos, cadeiras, camas, baús —, de
palha —esteiras, cestos—, cerâmica e panos. Era provavelmente não contentes por aludirem sibilinamente a temas conhe-
neste recinto fechado que se desenrolava uma boa parte do dia cidos apenas pelos correspondentes, o que é normal nas
das mulheres da aldeia e dos seus filhos recém-nascidos. Contudo, cartas, mas limita o seu interesse documental, misturam
deviam visitar-se umas às outras e conversar, junto ao fogão, assuntos pessoais e assuntos profissionais, o destinatário,
sobre os últimos mexericos da terra.
uma esposa, um parente, um homem de confiança, clis-
pondo-se a resolver toda a espécie de problemas: a vida
III — O meio envolvente privada parece ter sido muito mais pública do que hoje
se poderia admitir. Por fim, é a escolha das pessoas que
Para alérn da família e de todos os residentes em o Egípcio pretende que figurem nos seus monumentos
sua casa, o Egípcio estabelecia certamente laços de vizi- que mais nos diz sobre as suas afinidades electivas.
nhança ou de amizade com outras pessoas, como Alguns mostravam preferência pelos seus superiores,
demonstram inequivocamente certos indícios, se bem outros por simples amigos, outros ainda por fiéis servi-
que raros. Abre-se pouco, todavia, quanto à sua vida dores, consoante o seu carácter e a natureza das rela-
social, que parece desenvolver-se sobretudo em volta ções que mantinha, de facto, com uns c outros. Mas,
do mundo profissional. Mas, há circunstâncias que o mais uma vez, as informações são escassas e, em muitos
podem subtrair ao universo familiar: as grandes festas casos, convencionais.
religiosas e as manifestações oficiais da realeza nas quais, Assim, teremos de restringir o estudo unicamente
por vezes, se encontram pessoas de todos os meios, a à comunidade de Deír el-Médineh que, como é evidente,
guerra, as viagens em que o Egípcio se confronta com não nos pode dar conta de outros meios sociais. Para
costumes e mentalidades que o desconcertam, mas nas além do trabalho propriamente dito e das relações com
quais sabe estabelecer relações cordiais com os interlo- as autoridades da região, que parecem ocupar durante
cutores ocasionais, e também os mercados, que põem muito tempo os homens da aldeia, visivelmente bem
em confronto negociantes de todas as origens com as informados sobre a actualidade e as suas consequências
populações autóctones. Mas, ignora-se completamente sobre a existência, estes sacrificam-se bastante às exi-
se estes contactos conduzem, por vezes, a relações regu- gências da vida comunitária. Se os chefes têm por mis-
lares ou se são apenas epifenómenos. As raras activi- são zelar pela distribuição equitativa das rações, pelo
dades extraprofissionais do Egípcio, justas desportivas, bom funcionamento dos serviços comunitários — abas-
caça, pesca, responsabilidades municipais, práticas reli- tecimento de água, distribuição correcta do trabalho dos
giosas e demonstrações de convívio desenrolam-se no escravos por cada lar, etc. — e assegurar a calma no

,
102 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 103

trabalho e na aldeia por meio de medidas preventivas, aldeia, em particular os chefes, e as respectivas mulhe-
com a ajuda do guarda, dos porteiros e dos polícias do res, usam títulos religiosos honoríficos que os unem
Túmulo ou, se necessário, convocando o tribunal local, aos cultos dos santuários da região, participando muito
todos, incluindo as mulheres, participam quotidiana- provavelmente nos serviços celebrados, em especial por
mente no cumprimento destas tarefas. Encarregam-se ocasião de cerimónias particulares ou das festas do deus,
da distribuição dos géneros alimentícios, emprestam ou como cantores, por exemplo.
alugam burros para esta mesma distribuição ou, respei-
tando o juramento feito ao entrarem para a equipa,
denunciam os comportamentos delituosos que surpreen- IV — As devoções
dem, ou são jurados, se for caso disso. Toda esta gestão
e estas tentativas, mais ou menos desajeitadas, de manter Os actos piedosos ocupam um lugar importante na
uma disciplina indispensável num meio submetido às vida quotidiana do Egípcio, quer seja rei, cortesão ou
tentações que constituem as sepulturas reais e o seu homem do povo. Habitante de um país rico em divin-
conteúdo não se passam sem dificuldades, e turbulências dades, privilegia, em primeiro lugar, os deuses da sua
frequentes agitam este pequeno grupo logo que uma cidade, que honra de maneira diferente conforme a sua
personalidade um pouco mais forte do que as outras situação social. Faraó, construirá templos através de
procura exprimir-se. As festividades locais e as devo- todo o Egipto, recheando-os de riquezas; nobre, man-
ções colectivas são outras tantas ocasiões quotidianas dará erguer uma pequena capela, um nicho, uma esteia
de reunião dos aldeões, assim como a atribuição de ou simplesmente uma estátua; mais modesto, quotizar-
uma concessão no cemitério e a consequente procura da -se-á com outros para proceder do mesmo modo. Poderá
entrada perdida da antiga sepultura que aí se encontra, ainda desempenhar uma função sacerdotal num santuá-
ou os trabalhos de construção do novo túmulo, que rio próximo onde cumprirá regularmente os seus deve-
reúnem os amigos dispostos a dar uma ajuda. res religiosos. Longe da sua cidade, recorda os seus
Embora as relações entre os aldeões constituam o deuses, mas entrega-se à protecção dos deuses locais
essencial dos seus contactos sociais, estes homens e e pode mesmo ocupar cargos honoríficos junto deles.
estas mulheres não vivem totalmente fechados sobre São sobretudo cartas que nos transmitem estas práticas,
si mesmos. Para além das visitas que fazem aos mem- muitas vezes proclamadas em grajfití, e o seu autor
bros da família disseminados pela região, ou das que nunca entra em pormenores sobre o assunto sem pri-
deles recebem, por ocasião de nascimentos e funerais, meiro colocar o correspondente sob a protecção dos
vão muitas vezes às aldeias ou templos vizinhos, ao deuses da cidade que o recebe, o que nos informa
mercado situado à beira do rio, ou mesmo à outra simultaneamente sobre o local de emissão do documento.
margem, para tratar de assuntos, isto é, para fazer um As grandes festas do calendário e aquelas em que
pouco de mercado negro ou algum negócio, como teste- as divindades de uma região se visitam, em viagens de
munham os contratos que legalizam estas operações e barco que se prolongam por procissões de santuário em
algumas cartas referentes aos termos da encomenda, às santuário, dão origem a feriados em que a população
instruções de execução, ou às recriminações que se da região veste os melhores fatos a fim de participar
seguem à entrega da mercadoria. Alguns homens da ou assistir. Estas festas processam-se ao longo do ano,
104 DOMINIQUE VALBELLE

à razão de várias por Lua. São festas epónimas dos


meses, muitas vezes relacionadas com as estações — as
cheias, as colheitas, etc. —, que veneram os laços que
unem os deuses entre si, ou apresentam um carácter
funerário e comemoram um episódio da vida de Osíris.
Outras, ainda, perpetuam a memória dos reis defuntos
mais populares no dia do aniversário da sua coroação
ou da sua morte. Estas devoções colectivas não se pro-
cessam de maneira uniforme. Umas deslocam multidões,
outras celebram-se localmente, tanto nas grandes metró-
poles como nas mais pequenas povoações. Algumas dão
lugar a rituais adaptados, libações, sacrifícios ou oferen-
das, outras consistem em ágapes.

No âmbito mais restrito do bairro ou da aldeia, o


povo multiplica as imagens piedosas e transforma cada
uma delas no suporte específico de uma crença parti-
cular. Junta-lhes ainda os animais sagrados destas divin-
dades, as insígnias, os emblemas. Atribui poderes sobre-
naturais a elementos da paisagem, como os picos de
Tebas, ora serpente, ora leoa, e votados ao silêncio.
Acolhe igualmente com entusiasmo cultos originários
de todo o Egipto e dos países vizinhos, veiculados por
prisioneiros estrangeiros, operários e artesãos enviados
de um estaleiro para outro. Este panteão popular e as
devoções que com ele se prendem assumem formas
esquemáticas como as esteias de orelhas, destinadas a
transmitir melhor as orações dos crentes. Forma-se um
pequeno clero ern volta destes ícones e dos símbolos
que geram e constroem-se edifícios sagrados em sua
honra. Recebem regularmente oferendas, animais engor-
dados para serem sacrificados, cerveja expressamente
fabricada. Os devotos reúnem-se em celebrações priva-
das. Os mais venerados são levados em procissão e tor-
nam-se oráculos. Estas manifestações secundárias da
religião, que devem muito à magia, também se prati- Fig. 10. — Emblema da deusa Anoukis, proveniente de Deir el-
cam na periferia dos grandes santuários: oráculos, oni- -Médineh, Museu do Louvre (cliché Chuzeville).
106 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 107

romancia, astrologia, venda de feitiços são subprodutos Os soberanos do Novo Império, por seu lado, entre-
correntes destes locais sagrados. Mas, a religião, sob gavam-se mais à arte da caça, que praticavam nos deser-
todas as suas formas, não se reduz a templos e capelas. tos do Egipto e mesmo na Núbia. A caça e a pesca
Mesmo em casa, pinturas, esteias e estatuetas atraem são simultaneamente um desporto e a expressão sim-
para o lar a benevolência dos deuses, dos génios e dos bólica da vitória do Faraó, e dos súbditos, sobre as
defuntos. Os gestos de devoção individual ou familiar forças do mal. Processam-se, ainda, nos pântanos do
não são raros. A conservação do culto dos mortos cons- Fayum ou do delta: aí, já não se trata de leões, nem
titui, evidentemente, a manifestação mais banal, mas de órix nem de búfalos, perseguidos e crivados de
as peregrinações à cidade de Abidos, junto de Osíris, flechas, mas de crocodilos e hipopótamos, apanhados a
o príncipe dos Ocidentais — dos mortos — tornam-se arpão, de caça marinha pescada à rede, como peixes,
correntes a partir do Império Médio. ou atingida em pleno voo com a ajuda de uma arma de
arremesso. Os combates desportivos também tinham
os seus adeptos. Luta e jogos de competição eram alvo
V — O lazer de atenções e os feitos de Amenófis II no tiro ao arco
foram considerados dignos da construção de uma esteia
O rei aborrece-se. Para o distrair, os filhos contam- destinada a comemorá-los.
-Ihe, cada um por sua vez, os prodígios acontecidos A dança, bem como a música e o canto, têm muitas
no tempo dos antepassados. É o encadeamento esco- vezes uma conotação religiosa, mesmo quando se expri-
lhido pelo autor dos contos do papiro Westcar para mem num quadro profano. Contudo, os concertos ser-
introduzir as suas histórias. Uma delas refere-se ao viam de complemento requintado dos banquetes, tão
fundador da ni dinastia, Senéfru, que já nesse tempo apreciados pelos Egípcios, a julgar pelos relevos e pin-
carecia de diversões. O seu mago, precursor dos nossos turas dos túmulos e pelos instrumentos de música que
produtores de revistas parisienses, não foi apanhado acompanhavam os restos mortais de operários, mesmo
desprevenido: dos mais modestos, que viveram na xvin dinastia.
O teatro limitava-se a dramas mitológicos e não parece
«Que Sua Majestade se dirija para o lago do palácio — vida,
saúde, força. Manda equipar uma barca com todas as jovens boni- ter saído dos recintos sagrados, ao contrário do que
tas que se encontrem no palácio. O coração de Sua Majestade aconteceu com outros géneros literários: contos, epo-
divertir-se-á ao vê-las remar, para cima e para baixo [...].» peias míticas, fábulas, máximas e composições poéticas
lidos ou recitados em público. Os jogos de sociedade
A ideia seduziu o monarca: existem desde as épocas mais remotas e alguns deles
«Vou certamente organizar um passeio aquático. Tragam-me
eram colocados na sepultura com o único fim de dis-
vinte remos de ébano com incrustações de ouro e cabo de sân- trair o morto. Havia o jogo da serpente e outros jogos
dalo (?) enfeitado de ouro fino. E tragam-me vinte mulheres, de dados e piões semelhantes aos actuais. Figuram, de
bonitas de corpo e de peito, de cabelos entrançados e que ainda resto, nas vinhetas do Livro dos Mortos. A invenção de
não tenham tido filhos. E tragam-me ainda vinte cortes de tecido
arrendado para entregar às mulheres, depois de se despirem.» palavras cruzadas literárias constituía uma maneira de
(Segundo G. Lefebvre, op. cit., p. 78.) passar o tempo mais intelectual. Mas todos estes jogos,
108 DOMINIQUE VALBELLE

espectáculos, actividades físicas, artísticas ou eruditas


embora revelem recursos do corpo e do espírito, repre-
sentam sobretudo excelentes pretextos para que o Egíp-
cio exerça o seu passatempo favorito que, através de
textos de todas as épocas e em todos os meios, parece
residir em discussões e comentários animados e inter-
mináveis. CAPÍTULO VI

AS MODALIDADES DO QUOTIDIANO

I — A alimentação

Se a função nutriente do Faraó — «as suas palavras


criam alimento» — é suficiente para mostrar a impor-
tância que o Egípcio atribuía à alimentação na vida
quotidiana, as provisões previstas por ocasião da che-
gada do soberano e do seu exército garantem-lhe lar-
gamente a satisfação das suas necessidades: uma lista
de géneros alimentícios encomendados num destes
momentos nada fica a dever às que se elaboravam em
honra do Rei de França ao regressar de uma campanha
militar.
Em primeiro lugar, recorre-se aos cesteiros para prepararem
10 tabuleiros, 500 cestos e 100 coroas para a decoração floral.
iDevem estar expostos nunca menos de 30 000 pães e bolos
diversos. Seguem-se 300 cestos de carne seca, e vísceras, leite,
creme, 50 gansos, fruta, legumes e carvão para fazer lume. Mais
adiante, aconselha-se mel, pepino, alfarroba e alho francês e
resume-se o essencial: pão, cerveja, carne e bolos. Em seguida,
a enumeração prossegue com óleos, carne de vaca, aves, toda
a espécie de peixes, pombos, leite, creme, novamente legumes,
uma qualidade especial de cerveja, vinho, etc. Aconselha-se viva-
mente o requinte na apresentação das iguarias e no serviço:
baixela de ouro e prata, os mais belos escravos equipados para
a ocasião, etc. Não estamos muito longe dos banquetes romanos,
símbolo da decadência. Por outro lado, ignoramos as circunstân-
cias deste acolhimento e a qualidade do anfitrião que o organiza.
110 DOAÍINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 111

O Egipto dispunha de alimentos de toda a espécie sumo corrente, enquanto as gorduras animais e vegetais
e, se importa do estrangeiro, é porque se pode oferecer são indiferentemente utilizadas.
esse luxo, luxo que parece abranger, em diversos graus, Todos estes produtos nos foram transmitidos por
a maior parte das categorias sociais, uma vez que se imagens, pelo nome e pelos vestígios que a secura excep-
encontram etiquetas de jarros de vinho e de recipientes cional do clima por vezes preservou até hoje, mas os
de óleo estrangeiros mesmo nas aldeias dos operários hábitos culinários que presidiam à sua preparação man-
do Faraó. De testo, talvez se trate de presentes ofere- têm-se herméticos a ponto de ser legítimo perguntai-
cidos pelo próprio Faraó por ocasião de jubileus, por se, para além de alguns princípios elementares de coze-
exemplo. A base da alimentação é o pão e a cerveja, dura, se pode verdadeiramente falar de culinária. Na
fabricados respectivamente com frumento e cevada. verdade, é visível, por vezes, nas paredes dos túmulos,
A distinção entre pães e bolos não é muito nítida e, o acto de grelhar uma ave, assar um pedaço de carne
entre as dezenas de variedades existentes, algumas eram de vaca ou cozer algumas pecas com osso. Mas, nada
contempladas com a adição de leite, tâmaras ou mel. mais, a carne nunca é preparada, os legumes nunca
Assim, encontram-se algumas espécies de cerveja, e são cortados em pedacinhos, às rodelas. Não é conhe-
outras bebidas fermentadas, à base de tâmaras, como cida a mais elementar receita de cozinha, de pastelaria
por exemplo a seremet. Quanto ao vinho, embora a sua ou de molho. Os textos que louvam os méritos de uma
preparação seja um tema apreciado por pintores e mesa ou comentam uma refeição referem-se ao cerimo-
escultores, é essencialmente uma bebida servida em fes- nial ou à disposição dos alimentos, mas nunca aos
tas. Se as carnes não entram nas ementas quotidianas, talentos do dono ou da dona de casa. Talvez a cozinha
os Egípcios nem por isso deixam de as consumir mais não fosse objecto de transmissão oral. A curiosidade
do que durante muito tempo se pensou, como mostram gastronómica dos Franceses não pode ser satisfeita.
estudos recentes. Este consumo não se limitava à carne Porém, os banquetes, mesmo num contexto familiar,
de vaca, de caça e às aves de capoeira que ornamentam parecem momentos privilegiados da vida dos Egípcios
sobretudo os altares dos deuses e as mesas dos mortais: e as atenções de que os rodeiam — flores, cones cie per-
incluía igualmente cabras, carneiros e porcos, mais bara- fume, concertos — são comparáveis aos nossos arranjos
tos e abundantes nas aldeias. Mas, era sobretudo o florais, candelabros e ambientes musicais. Não se pense,
peixe, tão comum no Nilo, no Mediterrâneo e no Mar contudo, que anfitriões e convidados se sentavam ale-
Vermelho, que se encontrava em todas as mesas. Tanto gremente à volta de uma grande mesa, ou se sentavam
a carne como o peixe, quando não se comiam frescos, em almofadas em volta de um tabuleiro. As figurações
podiam ser secos ou conservados. De acordo com os mostram-nos sentados lado a lado em cadeiras ou ban-
tabus próprios das divindades de cada região, certos quinhos, não muito longe de aparadores carregados de
animais eram localmente protegidos ou proscritos. manjares, e servidos por um grande número de criados,
O Egipto cultivava um grande número de legumes e enquanto músicos e cantores os distraíam. Ao contrário
de plantas aromáticas e toda a espécie de frutos, como do que acontece com estes, vivos e graciosos, os con-
se pode ver nas figurações e nos restos recolhidos de vivas parecem demasiado ocupados em aspirar o aroma
túmulos e habitações. O leite e os lacticínios encon- da flor de lótus que têm na mão e em equilibrar, sobre
tram-se presentes mas não parecem fazer parte do con- a peruca, o cone de gordura aromática que derrete len-
DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 113
112

ou menos radicais, etc., que contribuem para nos infor-


tamente para poderem comer ou conversar à vontade
mar sobre a higiene, os riscos corridos e os remédios
com os vizinhos. Na verdade, exigimos a cenas rituais
fornecidos.
de carácter funerário, a refeição do defunto e da esposa,
A partir da xvm dinastia, encontram-se instalações
venerados por alguns íntimos, que nos restituam o
sanitárias mais ou menos rudimentares nas habitações.
clima dos jantares profanos, momentaneamente iludidos
Pode tratar-se, como na casa do mestre de obras que
pela abundância das iguarias, pela graciosidade dos cria-
mandou construir o templo funerário de Tutmés IV,
dos, pelo encanto da música. Pensávamos encontrar
em Tebas, de um suporte, alto e em forma de tubo
uma alegre companhia e deparamos com uma celebração
mais aberto em baixo e de algumas tinas de cerâmica
fúnebre. dispostas num compartimento destinado às abluções, de
uma latrina como a do mobiliário do chefe da equipa
II — A saúde Khâ, em Deir el-Méclineh, ou de verdadeiras casas de
banho, com esgoto, como em Amarna. Contudo, exis-
tem complicadas redes de canalização nos templos desde
O Egípcio inclui a saúde nos três votos de cortesia
o Império Antigo e um sistema de esgotos permitia
mais frequentemente formulados, logo a seguir à vida
a evacuação das águas sujas no Império Médio, na
e à boa forma, que distingue da ausência de doença.
fortaleza de Bouhen, na Segunda Catarata: é provável,
O que sabemos do seu regime alimentar médio joga
sobretudo a favor do equilíbrio alimentar: cereais, pro- pois, embora não tenham sido assinalados nas ruínas de
dutos frescos, consistindo em peixe, legumes verdes e Kahun, que ordenamentos semelhantes já se encontras-
sem presentes em palácios do Antigo e do Médio Impé-
féculas, fruta, assim como carne e, ocasionalmente, pro-
rio. A lavagem da roupa, muitas vezes representada nas
dutos lácteos. É verdade que, por vezes, se revelam
paredes dos túmulos, faz-se nas margens dos cursos de
carências, mas estas não resultam de erros alimentares
água, em grandes tinas de barro. Vassouras usadas,
generalizados. Embora alguns períodos de fome, pro-
encontradas nas habitações, mesmo modestas, testemu-
vocada por cheias demasiado fracas ou demasiado vio-
nham o zelo das donas de casa e das crianças, enquanto
lentas, tenham atingido o país por diversas vezes ao
o grande número de camadas de cal que ainda hoje se
longo da sua história, nada nos diz que os pobres sofres-
podem contar nas paredes das casas mostram o desejo
sem de fome habitualmente. Quanto à obesidade que
de asseio e saneamento. Apesar destas práticas de
caracteriza, na iconografia, toda a classe dos funcioná-
higiene e do uso de produtos desinfectantes, como o
rios de uma categoria mais ou menos elevada, ela é
natrão para a pele e a galena para os olhos, os Egípcios
provavelmente sinal de uma alimentação demasiado adoeciam.
abundante e da ausência de exercício. Não pode, por-
Recorriam, então, ao médico, ao sacerdote de Sekmet
tanto, verificar-se no corpo do Faraó, cujos feitos des- ou ao encantador de escorpiões, isto é, ao feiticeiro.
portivos asseguram um aspecto fundamental do seu
Na maior parte das vezes, para maior segurança, com-
poder: a força física. Os antropólogos e os paleopatolo-
binavam-se os dois métodos. Conhecemos a medicina
gistas verificaram, nos corpos que tiveram oportunidade
de examinar, um certo número de doenças, parasitoses, egípcia através de uma dezena de papiros médicos que
contêm tratados — tratado do coração e dos seus vasos,
deformidades, fracturas e intervenções cirúrgicas mais
SABER 214 — 8
114 DOMINÍQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 115

tratado das doenças do estômago, tratado de patologia identificados e só muito raramente existe alguma seme-
externa e de cirurgia óssea, etc. — e de colecções lhança entre o vestuário de linho fino, plissado e trans-
de receitas classificadas por capítulos — olhos, ouvi- parente que homens e mulheres usam com elegância
dos...—, que ora referem remédios caseiros, ora de nas pinturas, nos baixos-relevos e nas estátuas de cer-
feiticeiros. Estes métodos, para nós contraditórios, eram tas épocas e os testemunhos mais ou menos grosseiros
então considerados pelos médicos, e pelos doentes, per- que chegaram até nós. A nudez não é encarada como
feitamente compatíveis, ou mesmo complementares. nas nossas civilizações modernas. É própria da infância.
Apesar das intervenções exigidas pelos costumes e pelos Quanto aos adultos, o homem encontra-se muitas vezes
embalsamamentos, os Egípcios não pareciam possuir um de tronco nu, vestido com uma tanga curta quando exe-
conhecimento muito desenvolvido da anatomia do cuta um trabalho manual, ou com uma tanga mais
corpo humano. Por outro lado, a ginecologia e a obste- comprida nos outros casos, e a mulher usa, muitas vezes,
trícia preocupavam muito os médicos, que descrevem uma saia vaporosa de alças largas que deixam ver o
doenças, deformidades e remédios. As inflamações peito; de resto, o corpo apresenta-se frequentemente
oculares, os traumatismos de toda a ordem e as pertur- coberto com véus transparentes que o valorizam; as
bações da digestão, juntamente com as várias espécies criadas, por vezes, limitam-se a ocultar o sexo. Como
de febres, são os males mais frequentes. Desde o Antigo roupa interior, o homem usa uma pequena tanga trian-
Império que se conhecem médicos. Seja qual for o seu gular; não conhecemos peças de roupa interior feminina.
título e a sua função, recebem uma formação mais ou Os operários do Túmulo recebiam, como outras
menos científica ou mágico-religiosa nas Casas de Vida categorias de funcionários, vestuário de trabalho: túni-
e nos templos e tratam ao mesmo tempo a manifesta- cas (mss) e tangas curtas (rwdw), tangas compridas ou
ção dos males por meio de poções, unguentos, fricções, grandes xailes (d3iw) para os chefes. Na corte de
etc., e as causas — um gesto que despertou a raiva Séti I, em Mênfis, as mulheres-escravas são dotadas
de uma divindade, por exemplo — por meio de encan- destas duas primeiras categorias de vestuário e a ter-
tamentos, do uso de um amuleto adaptado à situação ou ceira aparece no guarda-roupa das damas. O carácter
de um ex-voto ao deus enfurecido. unissexo dos fatos mais simples é compreensível: a
maior parte limita-se a cortes de tecido de linho de
dimensões variadas que podem usar-se de acordo com
III — O vestuário as situações e as modas; a única verdadeira peça de
vestuário que o Egípcio parece ter conhecido é a túnica.
Para definir as diferentes maneiras de vestir dos Existiam, contudo, vários modelos, como mostram cla-
Egípcios, dispomos de várias categorias de documentos:
ramente as representações: curtas ou compridas, amplas
o próprio vestuário, quando conservado, as listas desti-
nadas a controlar a lavagem da roupa, a distribuição ou justas. Os exemplares conservados dividem-se em
de vestuário, ou a sua menção em contratos, e a icono- dois grupos. O primeiro compreende peças de um só
grafia. Estas três fontes, a priori complementares, não corte, em que o decote foi aberto e os lados cosidos,
encaixam, muitas vezes, umas nas outras. Poucos nomes deixando uma abertura para os braços. O segundo
de tecidos e de peças de vestuário foram correctamente abrange várias peças de vestuário semelhantes aos actuais

l
116 DOMINIQUE VALBELLE
A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 117

vestidos: compõem-se de um encaixe feito de um


pequeno rectângulo de tecido em que foi recortado o biqueira curva e presilha passando entre os dois pri-
decote, de duas mangas, e de uma saia, formando uma meiros dedos, eram feitas de fibras vegetais entran-
peça única. Um casaco com mangas parece concebido çadas, assim como de couro natural ou pintado de
segundo o mesmo princípio. O enxoval do rei Tu- branco, com excepção das sandálias de Tutankhamon,
impróprias para a marcha.
tankhamon compreendia ainda luvas.
O vestuário dos particulares apresenta, por vezes,
pregas ou presilhas, como ornamento, e fragmentos
arrendados, confeccionados segundo a técnica do IV — A higiene e os adornos
macramê recordam, entre outras coisas, o vestuário das
remadoras de Senefru; mas, até agora, os tecidos mais
A higiene da estátua do rei defunto ou do deus e
ricos foram encontrados nos túmulos reais: os enfeites
aquela a que os sacerdotes procedem antes de pene-
que os embelezam podem ser tecidos, pintados, bor-
trarem nos sectores mais sagrados dos templos são
dados; as orlas são embainhadas, franjadas ou enfeita-
o protótipo dos cuidados corporais usuais: abluções,
das com galões de um só tom ou multicores. Por fim,
purificação da boca por meio de natrão, corte da barba,
vêem-se imitações de peles, feitas de linho em tecidos
depilações, fricções com óleos e unguentos perfumados
cuja utilização é mal conhecida, embora tenha chegado
e fumigações de incenso. A existência de barbeiros, de
até nós uma imitação pintada de pele de leopardo do
cabeleireiros, de manicuras, pedicuras e esteticistas entre
sacerdote sem datando do período greco-romano. Os
os criados e criadas de sua majestade ou dos cortesãos
restos de vestuário que o clima excepcional do Egipto
mostram bem os cuidados que os Egípcios dedicam
conservou distribuem-se por toda a história do país,
ao seu aspecto. Uma aparência desalinhada atrai o des-
desde as primeiras dinastias. Com raras excepções, foram prezo dos outros. Práticas quotidianas de higiene e
os tecidos mais fortes, menos delicados, portanto, que
tratamentos de rejuvenescimento ou cie beleza chegaram
resistiram, transmitindo-nos uma imagem muito incom-
até nós através das representações que, embora rara-
pleta do vestuário egípcio. Importantes variações intro-
mente propondo verdadeiras cenas de higiene, valorizam
duzidas em modelos à primeira vista pouco numerosos,
o resultado obtido, pelos objectos de higiene encon-
sobretudo graças ao emprego de diferentes tramas e às
trados nos túmulos e em habitações e, sobretudo, pelas
variações dos plissados, testemunham uma fantasia receitas preconizadas que figuram em tratados médicos.
inventiva. Felizmente, as representações estão de acordo
Umas destinam-se a purificar o hálito, outras a embe-
com os vestígios encontrados. Se confirmam tendências
lezar o rosto, a eliminar as sardas ou sinais desengraça-
estáveis na maneira de vestir, revelam modas no vestuá-
dos, outras, ainda, procuram lutar contra a calvície ou
rio festivo, o interesse dos Egípcios pelos tecidos colo-
colaborar no rejuvenescimento do paciente. Os métodos
ridos vindos do estrangeiro, a partir do Império Médio,
as diferenças entre o vestuário das damas e das criadas, utilizados vão de fumigações aromatizadas com madeira
de olíbano e resina de terebinto até à preparação de
quando estas estão vestidas, ou os fatos especiais reser-
unguentos utilizando mel, natrão vermelho e sal, com
vados às divindades e a certos sacerdotes. Quanto às
adição, ou não, de pó de alabastro, ou uma decoração
sandálias, fabricadas segundo um modelo único de de feno-grego.
118 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 119

Os produtos de maquilhagem visíveis nas pinturas


repartem-se por duas categorias: os que se destinam
a realçar a beleza dos olhos, à base de colírio de anti-
mónio, de malaquite ou de galena, e os que dão cor
à tez. As matérias utilizadas são trituradas em almofa-
rizes especiais, e depois misturadas com óleos ou cre-
mes, conservadas em pequenos boiões de pedra dura ou
de vidro, antes de serem recolhidas, provavelmente
com lindas colheres esculpidas, no momento da apli-
cação. Os estojos de maquilhagem compreendem um
frasco e estiletes. Lâminas e pinças figuram entre os
acessórios femininos e masculinos. Quanto aos perfu-
mes, conhecemo-los melhor através dos textos gravados
nos laboratórios sagrados dos templos do que através
das menções profanas, embora se encontrem muitos
frasquinhos nos equipamentos funerários conservados.
O cabelo constitui um elemento fundamental de adorno.
Assim, tanto os homens como as mulheres lhe dedicam
uma atenção especial, como testemunham os pentes, os
ferros de frisar, os alfinetes e, sobretudo, as perucas.
De facto, se os homens usam o crânio rapado ou o
cabelo muito curto, ou ainda uma longa peruca, várias
cabeleiras femininas feitas de cabelo e de fios de lã
entrançados em conjunto conservaram-se perfeitamente
até aos nossos dias. Por fim, o Egípcio, quando se veste
a rigor, não deixa de completar a sua aparência com
a ajuda de jóias florais, de fantasia ou preciosas: grinal-
das de lótus, colares, alfinetes de peito, brincos, anéis,
pulseiras, etc. Para alcançar o gracioso efeito que as
imagens nos transmitem, dispõem do olhar das aias ou
dos familiares mais próximos e dos reflexos um tanto
confusos que os espelhos de bronze cuidadosamente
polidos lhes devolvem.

Fig. 11. — Peruca de Méryt proveniente de Deir el-Médineh,


Museu Egípcio de Turim (cliché Museu de Turim).
A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 121

surgem dúvidas quanto à existência no Além, as quais


servem de justificação para exortações de carácter hedo-
nista. Mas, são talvez os versos que expõem a relativi-
dade da condição humana, seja qual for o nível da
sociedade em que nos colocarmos, e a natureza efémera
das nossas obras mais duradouras que propõem a melhor
CONCLUSÃO demonstração de uma reflexão que atingiu a maturi-
dade:
Em todos os períodos da sua história, o Egipto «[...] As gerações desfalecem e desaparecem,
lançou um olhar lúcido sobre o país, o governo, os Outras surgem no seu lugar desde os tempos dos
costumes e as mentalidades da época que atravessava. [antepassados,
Estas reflexões, ora optimistas, ora desencantadas, expri- Os deuses que viveram antigamente,
mem-se através de alguns escritos de elevado nível moral E repousam nas pirâmides.
e de uma subtileza de espírito que os aproximam do
pensamento filosófico. Os relatos sobre a concepção Os nobres e os bem-aventurados também,
do mundo, que podemos ler nas paredes dos templos Encontram-se sepultados nos túmulos.
ou nos monumentos deles provenientes, são elaborações Construíram casa cujos vestígios já não existem.
teológicas que sintetizam e explicam, por diversos arti- Que lhes aconteceu?
fícios materiais, mitológicos e filológicos, fenómenos
Escutei as palavras
científicos e abstracções. As colectâneas de preceitos
de Irnotep e de liordjedef
morais aconselham ou confirmam a maioria das obser-
vações que fizemos sobre os costumes e as disposições Que estão citadas em provérbios,
E sobrevivem a todas as coisas.
consideradas justas ou injustas em relação aos supe-
riores, à mulher, ao meio, aos subordinados, aos pobres, Que aconteceu aos locais que lhes pertenciam?
aos desonestos, aos violentos ou aos estrangeiros. As paredes desmoronaram-se,
O Diálogo do Desesperado com a sua Alma, que remonta As praças desapareceram^,
ao Primeiro Período Intermédio, confronta um pessi- Como se nunca tivessem existido f... J»
mista com o seu ser imortal, que ameaça abandoná-lo
se ele não gozar a vida: trata-se provavelmente da (Tradução francesa cio P. Posener-Krléger, op. cif.,
p. 75.)
mais antiga pesquisa introspectiva da história da huma-
nidade. Não é uma composição isolada, mas um ensaio
representativo de uma corrente de pensamento susci-
tada pela ruína contemporânea do país. Mais tarde,
no Império Médio e no Novo Império, O Canto do
Harpista faz o elogio, nas suas mais antigas versões, da
morte e da vida para além do túmulo. Em seguida,
A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 123
v
f Sobre a LITERATURA HISTÓRICA OU POLÍTICA:

J. H. Breasted, Ancient Records of Egypt, Nova Iorque, 1906;


R. A. Caminos» Late-Egyptian Miscellaniés, Oxford, 1954;
A. H. Girdiner, Ancient Egyptian Onomástica, Oxford, 1947;
BIBLIOGRAFIA G. Posener, Litterature et politique dam 1'Egypte de Ia XIIC dy-
nastie, Paris, 1969; e A. Roccati, La liltéraure historique sons
V Ancien Empire égyptien, Paris, 1982.
Os imperativos desta colecção não permitem, como é evi-
dente, citai: os numerosos artigos especializados que inspiraram Sobre a ICONOGRAFIA:
esta breve síntese, nem a totalidade das publicações consultadas
sobre determinados pontos. Contudo, importa remeter o leitor P. Montet, Lês scènes de Ia vie privée dans lês tombeaux
mais curioso para algumas grandes obras que se debruçam sobre égyptiens de l'Ancien Empire, Estrasburgo, 1925; c J. Vandier,
as estruturas da sociedade egípcia,, para colectâneas de traduções Manuel d'Archéologie égyptienne, t. IV a VI, Paris, 1964-1978.
de textos e para estudos iconográficos, colocando os próprios
documentos à sua disposição. E, de um modo geral, para uma primeira abordagem, acon-
selha-se a leitura de G. Posener, S. Sauneron c j. Yoyotte,
Respeitando às INSTITUIÇÕES E À SOCIEDADE, consulte-se: Dictionnaire de Ia civilisation égyptienne, Paris, 1970, e, para
saber em que ponto se encontra o estudo de qualquer tema,
D. D. Berliev, La classe laborieuse en Egypte au Moyen Lexikon der Agyptologie, Wiesbaden, 1975-1986.
Empire (em russo), Moscovo, 1972, e Lês relations sociales en
Egypte au Moyen Empire (em russo), Moscovo, 1978; J. Cerny,
A Commtmity of 'Workmen at Thebes in the Ramessidc Period,
Cairo, 1973, e Valley of the Kings, Cairo, 1973; W. Helck,
Untersuchungen zu àen Eeamtentitelm dês Ãgyptischen Alten
Reiches, Gliickstadt-Hamburg, 1954. e Zur Wervalttmg dês Mitt-
leren und Newen Reichs, Leyde, 1958; G. Ogden, Tivo aspects
of the Royal Palace in the Egyptian Old Kingdom, Colômbia,
1982; P. Posener-Kriéger, Lês archives du temple ftméraire de
Néferirkarê-kakái, Cairo, 1976; e D. Valbelle, «Lês ouvriers de Ia
Tombe», Deir-el Mèdineh à 1'époque ramesside, Cairo, 1985.
l Sobre os PRODUTOS, SEU PREÇO, FABRICO E UTILIZAÇÃO:
W. Helck, Materialien sur Wirtschaftsgescbichte dês Newen
Reiches, Wiesbaden, 1961-1969; J. J. Janssen, Commodity Prices
from the Ramessid Period, Leyde, 1975; A. Lucas e J. R. Harris,
Ancien Egyptian Materials and Industries, 4.* ed., Londres, 1962.
Sobre a LITERATURA propriamente dita:
G. Lefebvre, Romans et contes égyptiens de l'époque pharao-
nique, Paris, 1949; M. Lichtheim, Ancient Egiptian Litterature,
Los Angeles, 1975-1980, e S. Schott, Lês chants d'amour de
l'Egypte ancienne, trad. P. Posener-Kriéger, Paris, 1956,

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