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DOMINIQUE VALBELLE
BBN 972-1-03116 X
5 U601072"012H1"
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMERICA
Título original: La Vie datis l'Egypte Ancienne
Tradução de Isabel St. Aubyn
ÍNDICE
Tradução portuguesa © P. E. A., 1990
Capa: estúdios P. E. A. Pag.
© 1988, Presses Universitaires de France (n.° 1302 da Colecção Introdução 7
«Que Sais-je?»)
Capítulo I — As classes sociais e os meios socioprofis-
Direitos reservados por sionais 12
Publicações Europa-América, Lda.
I — As categorias humanas e as classes sociais ... 13
II — O palácio, a corte e as instituições reais ... 18
III — Os templos, suas Casas de Vida, oficinas
Nenhuma parte desta publicação pode ser re- e domínios 22
produzida ou transmitida por qualquer forma IV — O exército e a marinha 27
ou por qualquer processo, electrónico, mecânico
ou fotográfico, incluindo fotocópia, xerocópia V — Os homens livres e os servos 30
ou gravação, sem autorização prévia e escrita
do editor. Exceptua-se naturalmente a transcri- Capítulo II — A ocupação do tempo 35
ção de pequenos textos ou passagens para apre-
sentação ou crítica do livro. Esta excepção não I — O rei e o seu vizir 36
deve de modo nenhum ser interpretada como II — Os funcionários 40
sendo extensiva à transcrição de textos em re-
colhas antológicas ou similares donde resulte III — Os operários e os artífices 44
prejuízo para o interesse pela obra. Os trans- IV — Os camponeses 49
gressores são passíveis de procedimento judicial. V — Os serviçais 55
I — A família 94
II — A casa 98
III — O meio envolvente 100
IV — As devoções 103 INTRODUÇÃO
V — O lazer 106
Império ao início do Novo Império, modelos de cons- o seu repouso eterno seria poupado e até mesmo de
truções e de actividades agrícolas e artesanais comple- que os seus nomes seriam honrados pelos visitantes,
tam as alusões iconográficas das paredes. Esta documen- aos quais se destinam as inscrições que figuram nas
tação colorida anima, pois, e com rigor, os dados capelas em que os vivos depunham as oferendas aos
brutos que a arqueologia confia à nossa interpretação. mortos. Resumiam assim a sua experiência terrestre,
Seria, portanto, ilusório esquecer o contexto no qual material e moral, a fim de que nada lhes faltasse depois
aquela se manifesta ou os limites que a sua natureza da morte, que consideravam uma transição entre duas
lhe impõe: as figurações de actividades profissionais espécies de vidas bastante próximas uma da outra.
e de propriedades seguem-se a estereótipos quando não Seria, portanto, cientificamente mais tranquilizador
são a ilustração de uma fórmula funerária destinada tentar reconstruir a vida dos antigos Egípcios unica-
a ajudar o defunto na vida subterrânea; os relatos mente a partir dos verdadeiros vestígios da sua exis-
biográficos são, muitas vezes, pobres em informações tência. Mas, será possível resumir a vida de um homem
verdadeiras, apresentando-se repletos de basófias incan- n partir de alguns lanços de paredes abandonados, no
savelmente repetidas; o mobiliário funerário das classes melhor dos casos, de detritos acumulados cm depósitos
abastadas é fabricado por oficinas especializadas e, públicos c, se tivermos muita sorte, de fragmentos de
certamente, só de longe reflectirá o mobiliário corren- K-j>isl os administrativos?
temente utilizado pelas mesmas famílias enquanto vivas. Nos últimos dez anos, a arqueologia urbana tem-se
Contudo, algumas falhas vêm, por vezes, perturbar desenvolvido no vale do Nilo e os resultados começam
os sólidos costumes egípcios, deixando então transpa- a tornar-se palpáveis; muitas ciências auxiliares per-
recer algumas indicações originais: os pobres são amor- mitem determinar o contexto ecológico da época,
talhados com o seu vestuário habitual e os seus velhos reconstituir ;i alimentação; o estudo e a comparação de
móveis; no fim do Antigo Egipto e durante o Primeiro inscrições oficiais e de volumes arquivados e diferen-
Período Intermédio, o poder acrescido de certos nomar- temente conservados, ao permitirem o progresso dos
cas provinciais deve ter contribuído para os tornar conhecimentos sobre as estruturas sócio-económicas do
mais loquazes e os relatos enriquecem-se com episódios país nos diversos períodos em questão, colmatam certas
e comentários sobre os tempos conturbados que atra- lacunas da documentação. Assim, só imbuídos de
vessam; na XVIH dinastia, e em particular durante o modéstia e empregando, no que elas realmente repre-
cisma amarniano, os temas iconográficos renovam-se e sentam, todas as informações disponíveis, podemos
tendem para uma reprodução da paisagem mais pró- tentar realizar um dos estudos mais árduos, mas tam-
xima das realidades quotidianas. bém mais excitantes, que a história nos propõe: evocar
Por muito atraente que seja, este quadro não é a vida de um dos mais velhos povos do mundo civili-
senão o reflexo dourado que os Egípcios desejavam zado ao longo de dois mil anos, ou seja, do início do
deixar de si mesmos e do ambiente. Não o destinavam Antigo Império (2700 a. C., aproximadamente) até ao
com certeza aos milhões de turistas que todos os anos fim do Novo Império (1088 a. C.).
visitam os seus túmulos, conservando a esperança, não Como é evidente, seja qual for a propensão dos
obstante as pilhagens, as usurpações e as reutilizações, habitantes do vale do Nilo para conservar firmemente
de que as sepulturas se manteriam invioladas, de que as tradições, uma «evolução», resultante tanto das flu-
10 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 11
tuações de um equilíbrio difícil entre poder real e poder ouro extraído das minas, recenseamento dos prisionei-
provincial como da natureza e do desenvolvimento das ros de guerra, e mesmo da população autóctone, fun-
relações de força que se manifestaram periodicamente dação dos primeiros centros urbanos onde se reúnem
entre o Egipto e os vizinhos, modificou progressiva- os antigos aldeões que assim despovoam os campos.
mente e, por vezes, com alguma brutalidade, os hábitos A terra do Egipto pertence ao Faraó, os homens do
e as mentalidades durante tão longo período. Assim, Egipto encontram-se ao seu serviço. Instaura-se uma
tornam-se indispensáveis as referências cronológicas administração sólida e hierarquizada. A conservação de
constantes. alguns títulos testemunha as diversas funções que per-
durarão, mas só a partir da ui e, sobretudo, da iv dinas-
Foi durante as duas primeiras dinastias que se ins- tia, com a multiplicação dos textos conhecidos, se tor-
taurou urn poder único no Egipto, que tomou inicia- nai-a possível reconstituir as bases institucionais e as
tivas políticas e económicas determinantes e criou estru- características mais importantes da sociedade egípcia
turas institucionais suficientemente fortes para condi- nos seus primórdios. Contudo, as modificações impor-
cionar a história do país até à conquista por Alexandre. tantes na própria concepção da monarquia e nas suas
Segundo um processo há muito presente na Meso- rclucdcs com a administração provincial tornam-se sen-
potâmia, os habitantes do vale e do delta do Nilo apre- síveis na dinastia seguinte e a história do país vê-se
sentam-se, cerca de 4500 a. C., reunidos em grandes marcada pela procura de um compromisso harmonioso
burgos agrícolas cujos vestígios sugerem, no mínimo, entre um governo necessariamente forte e uma tendên-
o esboço de uma organização socioprofissional e a exis- cia sempre premente para a regionalização.
tência de um artesanato em que a cerâmica tende a
ocupar o primeiro lugar. Durante o iv milénio, várias
culturas, algumas das quais em relação com o Próximo
Oriente, testemunham o notável domínio de diversas
técnicas, em particular no fabrico de objectos de pedra
dura ou de marfim, vasos, recipientes, estatuetas, cabos
para facas. A qualidade de alguns destes objectos, assim
como as dimensões de certos síleces, sugerem uma espe-
cialização capaz de confirmar o notável desenvolvimento
da cerâmica. A necessidade da repartição das tarefas no
seio das comunidades aldeãs começa então a impor-se.
Esta situação coincide, 3000 anos a. C., com a reunião
sob a mesma autoridade do vale e do delta do Nilo,
provavelmente em detrimento deste último.
Nessa época, o rei toma um certo número de medi-
das, destinadas a centralizar a gestão do novo patrimó-
nio: plano de irrigação e de controlo dos cursos de
água, avaliação dos rebanhos, das terras cultiváveis, do
A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 13
A identidade de algumas destas classes, pelo contrário, a dos membros da família real. A considerável parte
parece-nos mais surpreendente e não se adapta à situa- reservada à administração, tanto aos níveis mais eleva-
ção social dos períodos mais antigos. dos como aos mais modestos, talvez se deva à identidade
do autor da compilação: Amenemope era «escriba das
Uma espécie de memorandum enciclopédico, datado da obras divinas na Casa de Vida». Mas, não está em
Xin dinastia, o Onomasticon de Amenemope, passa em revista,
depois dos elementos e das entidades divinas, o rei, os parentes, desacordo com frequentes testemunhos de omnipre-
os cortesãos, os oficiais e seus colaboradores, os sacerdotes, os scnça desta administração em todo o país e da sua esta-
operários, os artífices e diversas profissões, antes de citar as gran- bilidade, mesmo nos períodos mais conturbados. Na
des classes sociais, as etnias conhecidas e as grandes categorias lista, os sacerdotes precedem os operários e os artesãos.
humanas, tudo numa ordem cuja lógica nem sempre se revela
muito clara: assim, entre cargos administrativos figuram títulos
religiosos, enquanto funções militares interrompem séries de res- Verifica-se esta hierarquia num documento da XVII dinastia:
ponsabilidades económicas. uiii.i, cena de recenseamento figurada no túmulo de um escriba
i li i r i i i i i o <!<• Tu l mês IV, Tchanonny. Um comentário hieroglí-
Contudo, esta longa enumeração realça algumas evi- liru precisa (|nc se lr;il;i de «recensear todo o país, cm presença
ile MI.i Majestade; controlar todo o inundo, a saber: os soldados,
dências, evidências estas que são confirmadas por outros • w -..u i i.lnii". pino;.. M:, rin|irejvu1o:; reais <; os artífices de toda
textos mais breves. O soberano, interlocutor privile- , l,- ia i in indo n |uís, lodo o gado grosso, galináceos e gado
giado dos deuses, é a primeira personagem do Egipto. i m i ' . | ' > ., A p i n t u r a segui: uma ordem sensivelmente diferente: em
Detém todos os poderes e goza de todos os privilégios, p i i n i e i t o lugar vêm os sacerdotes, depois os empregados do
l''art)(), soldados, gado grosso e cavalos. Provavelmente o escriba
mas assume também os deveres mais pesados para com pretendeu lisonjear Tchanouny ao começar por citar os soldados.
o país e os súbditos. Partilha praticamente todos os
poderes, privilégios e responsabilidades com altos fun- Imporia observar i|ue, embora seja de admitir que
cionários civis, religiosos e militares que escolhe, fre- o iiiiimciiulo !'<•( i-iK.eatncnlo se refere ao país na sua tota-
quentemente, entre os membros da própria família. Este líilailc, lioniens e animais, parece na verdade limitar-se
tipo de governo autocrático reencontra-se por ocasião ."is camadas mais modestas da população e ao gado. As
das grandes restaurações que se seguem aos períodos altas funções administrativas, religiosas e militares
de perturbações internas graves ou de invasões estran- encontravam-se, de resto, misturadas no Onomasticon
geiras. Evolui rapidamente, logo que a prosperidade de Amenemope e sem que seja possível distinguir entre
suscita novas funções ou, pelo contrário, quando a elas qualquer hierarquia. A primazia dos outros padres
autoridade legítima se torna ineficaz, para um regime sobre os operários e os artífices não é anormal num
de tipo feudal em que os governadores de província, estado de direito divino. Reencontramo-la na exposição
os nomarcas, aumentam as suas prerrogativas em detri- de Heródoto. De resto, textos como estes eram copiados
mento do órgão central. Estas situações podem levar à por jovens escribas nas Casas de Vida dos templos.
tomada do poder por um fidalgote, um militar ou um Todas as observações decorrentes da sua análise,
grande sacerdote cuja eficácia tenha suprido as fraque- realçam, seja qual for o contexto, um pequeno número
zas do Estado. Assim, não nos sentimos desconcertados de informações imutáveis sobre o lugar ocupado pelos
ao ver que, no Onomasticon de Amenemope, a enume- indivíduos na sociedade egípcia e sobre as categorias que
ração das mais altas funções do reino surge logo após formavam. Desde a fundação de um Estado organizado,
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\ VIDA NO AN
SABER 214 — 2
DOMÍNÍQUE VALBELLE VIDA NO ANTIGO EGIPTO 19
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geralmente sobre as outras, mas o Egípcio coloca quase intimamente associada ao rei que este rapidamente pas-
sempre em plano de igualdade óbvia, o exercício ver- sou a designar-se por «Faraó».
dadeiro de uma profissão regular, o papel de gestor de O palácio «síp-s3» surge nos textos essencialmente
um grande domínio, uma missão de duração limitada ,i partir do Império Médio. Contudo, já no Antigo
confiada pelo rei ou por um alto funcionário e a prá- Império a locução se aplica à sede do poder central,
tica regular de uma devoção particular, por exemplo. > - n i relação directa com certos serviços efectuados por
Para compreendermos melhor este fenómeno, recorde- conta do rei: escolta e protecção, assim como a exe-
mos certos cartões de visita que pormenorizam os mais cução das suas ordens.
diversos méritos do seu proprietário, ao lado da menção O «Palácio/Domínio Real» (pr-nsw) é uma insti-
bem adornada do seu verdadeiro ofício. Este costume, tuição rujo papel essencialmente económico é directa-
largamente generalizado em todas as épocas, mostra que iu« n t . - c o n t r o l a d o pelo monarca. Em particular, constitui
não existia nenhuma barreira estanque entre as grandes i i i n . ) l o n i e privilegiada i lê doações cm benefício de fun-
ordens do Estado. Além disso, a expressão da única i l . M , < > ! • • . ou ( ! • • |>.ii i u nl.iivs, i i i i i n conic:.io muitas vezes
e mesma função pode apresentar variantes radicais, con- I n i u i i i i n . M I i . l i « i i i . - . i i . l M H | i i i i " ; i mu numero importante
soante se saliente a situação da pessoa relativamente > l i n li 1.1 . M I ' f . c .il)',ims c i v i s , sobretudo na província.
ao empregador, a categoria profissional a que pertence l" nus mii;i destas palavras se escreve pelo seu
ou a natureza precisa do seu trabalho. | i i o | > i i n ulii>£>i'uniíi, representando um edifício (ch).
l ' ( « l ia, contudo, não materializar a habitação usual do
rei, tuas .sim uma construção intermédia entre um pavi-
II — O palácio, a corte e as instituições reais lli.io >: uma capela utilizada pelo soberano de forma
m.ic; ou menos virtual, por ocasião de cerimónias, em
No Antigo Império, cinco palavras ou locuções ser- ( • i i i i i ( u l a r as dos jubileus. Porém, uma alusão a um
«lesses pavilhões, chamado «lótus de Isési», numa carta
vem para traduzir os diferentes aspectos da noção de
do rói ao arquitecto Senedjem-ib sugere, talvez, instala-
palácio real e suas funções essenciais. A «Casa Grande»
ções de envergadura. Desempenhava ainda uma função
(pr'3) é a mais frequente. Habitualmente citada em
económica em relação à Residência.
relação à capital, Mênfis, designa a habitação do soberano,
da família e dos amigos íntimos: Ptahchepses, favorito dos O «Interior» (hnw), geralmente traduzido por
últimos reis da iv dinastia, e também os seus sucessores, «Residência», ultrapassa largamente esta simples noção,
na v dinastia, «foi educado com as crianças da realeza na assim como a sua influência ultrapassa a de um Minis-
Casa Grande do rei, na Residência e no Harém do rei». tério do Interior. Abrange um organismo e, ao mesmo
Os títulos referentes a esta expressão abrangem, para tempo, um conjunto de construções. Esta entidade eco-
além dos serviços administrativos, o pessoal relacionado nómica de primeiro plano comportava uma administra-
com a vida quotidiana do rei — médicos, cabeleireiros, ção dependente, como o Domínio Real, do monarca.
barbeiros, manicuros, servidores diversos — e os artífi- Possui bens específicos, rebanhos, propriedades, pes-
ces. Não parece ter interferido na vida do país como soal. Dispõe de um arquivo e de celeiros. Desempenha
entidade económica própria. Por outro lado, está tão simultaneamente um papel de agente centralizador na
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DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 21
colocado sob a autoridade do soberano através dos seus O carácter divino da realeza egípcia nas origens não
representantes, vizir, directores de departamentos admi- carece de demonstração. Vivo, o rei é Hórus; morto,
nistrativos, generais, encarregados de missões, escribas... é Osíris. Da sua sobrevivência eterna depende a har-
O pessoal das instituições reais é composto por funcio- monia do mundo, isto é, do Egipto. Assim, em frente
nários que recebem um salário em espécie, calculado d:i pirâmide que encerra os seus restos mortais, cons-
em função dos impostos, assim como recompensas oca- trói-se um templo funerário no qual cinco estátuas com
sionais atribuídas, segundo os méritos de cada um, pelo a sua efígie são purificadas, vestidas, ungidas, ornamen-
próprio rei. O pessoal das fundações religiosas e fune- tadas e onde se depõem, diariamente, oferendas num
rárias está, habitualmente, a cargo dessas mesmas funda- altar próximo de uma porta secreta que permite que
ções, provindo os rendimentos da exploração das terras o defunto passe do mundo dos mortos para o dos vivos,
e do gado, que são ofertas do monarca e bastam, depois |i:ir:i :;t' a l i m e n t a r . Na base deste conjunto monumental,
de deduzidos os impostos, para os fazer viver e pros- ao t n i i i l sf r i i c o n l r a .libado por uma avenida, no vale,
perar. mu h i n j i l d de acolhimento <• uma cidade da pirâmide
Os domínios da coroa, os dos templos e os dos i v r r l i i - i i i r ^ . - i v l n u a l i a s k r i l I U T l t O do templo funerário,
particulares abastados parecem concebidos segundo um
. i l n j . i n i o | > r : ; : ; i > a l , o r g a n i z a m o serviço diário e prepa-
modelo comum e não é raro encontrar funções seme-
ram a.1; l r : ; l a s .
lhantes nestes diferentes meios. A gestão administrativa
engloba vários departamentos distintos: culturas e cria- Já na iii dinastia, um complexo funerário único
ção de gado, avaliação e conservação das colheitas, pre- celebrou, no planalto desértico de Saqqara, o jubileu
paração dos alimentos, prestação de serviços aos patrões, do n:i Djescr para a eternidade. Mas, as construções
oficinas de tecelões, marceneiros, sapateiros, fabricantes l i r i í c i a s que o compõem parecem organizadas para um
de vasos, jóias... Um certo número destas fundações, exercito de .sumiu-as c não para pessoal afadigado. No
independentemente da sua natureza, beneficia de privi- i n i r i i i da iv dinastia, estes vastos edifícios cobrem
légios excepcionais decretados pelo rei: são dispensadas vários hectares, sobretudo em Dachur e Giza. Foram
de pagar impostos ao Estado e a totalidade do seu os arquivos de templos funerários da v dinastia, em
pessoal é protegida contra qualquer trabalho ou requi- Ábousir, que chegaram até nós. Compostos, no essen-
sição externa, mesmo emanando dos serviços centrais. cial, por contabilidade, informam-nos não só sobre a
economia destas fundações e o lugar que ocupam na
III — Os templos, suas Casas de Vida, economia do país, mas também sobre a vida dos tem-
oficinas e domínios plos e o pessoal que os anima. Alimentados pelos domí-
nios funerários do rei ou de outros soberanos, por inter-
No Egipto faraónico, coexistiam duas espécies de médio da Residência e do templo solar do rei, os
templos: as residências dos deuses e os templos fune- rendimentos em víveres e em peças de tecido serviam,
rários construídos para o culto dos reis depois da morte obviamente, as necessidades post mortem do monarca,
e chamados, no Novo Império, «castelos de milhões de mas também alimentavam os numerosos empregados do
anos». estabelecimento.
DOMÍNÍQUE VALEELLE /l VIDA NO ANTIGO EGIPTO 25
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cãs e formulários astronómicos. Toda a espécie de sábios alimentos e de objectos manufacturados. As oficinas
por lá passavam. Não muito longe, no laboratório, do domínio di: A m o n , no NOVO I m p é r i o , eram tão
outros especialistas inventavam ou fabricavam perfu- prestigiadas que :.;io numerosos o:; altos funcionários aí
mes, unguentos e feitiços. d i - h - i i . l n , i l ; ' , i i i i i . i responsabilidade q u e mandaram repro-
Próximos deste mundo secreto e, contudo, aparen- i l n u ii,is |).iirdrs «Ia sua capela funerária uma visão
temente muito afastados dele pela natureza das suas .l .1,1:, :n liviiladc.s. No tempo cie Ramsés III, o domínio
actividades, os escritórios, os armazéns e as oficinas do df Amon empregava mais de 100000 homens.
templo fornecem uma imagem muito diferente. For-
niam, porém, o suporte material indispensável. Os
escrilórios «erem prioritariamente os interesses do IV — O exército e a marinha
domínio divino, exploração de terras repartidas pelo
conjunto do país, reprodução dos rebanhos, concessões
mineiras, etc., e contabilizam as colheitas, o produto As estruturas precisas do exército são pouco conheci-
das expedições e o espólio que os soberanos não deixam das, em especial nas épocas mais antigas. Justapõem-se
de trazer das campanhas militares no estrangeiro, para lílnlos honoríficos e funções reais, sem que seja pos-
glória do deus. Mas, assumem frequentemente tarefas sível reconstituir com segurança a hierarquia militar
q i h ' são, no essencial, da competência das instâncias <|ue evocam. Assim, é essencialmente a partir de rela-
governamentais, quo frequentemente ultrapassam, au- tos autobiográficos de soldados e sobretudo de oficiais,
nifiiiundo assim a sua influência. Vejam-se os grandes que conseguimos adivinhar a sua importância na socie-
processos que: se seguiram aos retumbantes roubos de dade e os períodos da vida que consideram dignos de
túmulos no fim da época dos Rameses e se desenrolaram interesse.
no recinto do templo de Amon, em Carnac. O seu No Antigo Império, não parece ter existido um
papel político crescente obriga constantemente os sobe- exército permanente, a julgar pelo que nos diz um
ranos a procurar, junto deles, a confirmação da sua director dos empregados do palácio de Pépi I, Ouni:
legitimidade. Conservam arquivos de toda a espécie e
conservam depósitos de bens pertencentes à coroa, para- «Sua Majestade rechaçou os Aamou que habitam-na-areia,
lelamente aos numerosos entrepostos e celeiros que upós o que Sua Majestade reuniu um exército muito numeroso
encerram os produtos provenientes do domínio divino. (composto de povo) de todo o Alto Egipto, do sul de Elefantina
:io norte da monarquia de Afroditopólis, do Baixo Egpito nas suas
Todavia, o Estado estipula um imposto sobre o con- duas Administrações inteiras, das praças fortes de Sedjer e Khen-
junto dos bens de produção, que podem ser considerá- sedjcrou (?), de Núbios de Irtjet, de Medja, de Iam, de Ouaouat
veis, se tivermos em conta, por exemplo, as doações i: de Kaaou, assim como de Líbios. Sua Majestade enviou-me à
efectuadas por Ramsés III aos principais templos do (Vente deste exército, enquanto os nomarcas, os tesoureiros do rei
Egipto. i ID Baixo Egipto, os Amigos Únicos do Grande Castelo, os chefes
i- 11;-, governadores de domínios do Alto e Baixo Egipto, os cor-
Fora do templo, nas suas terras e dentro dos seus ir:.:n>:; directores de caravanas, os directores dos sacerdotes do
muros, uma multidão de camponeses, operários, artí- A l i i i <• do Baixo Egipto e os directores das Administrações iam
fices e servidores empregam-se nas mesmas tarefas que :i IVcnie dos contingentes do Alto e Baixo Egipto, dos domínios
nos domínios reais, produzem as mesmas espécies de c das cidades que governavam e dos Núbios dessas regiões.*
28 DOMINIQUE VALBELLE
l A VIDA NO ANTIGO EGIPTO
Nenhum dos homens citados, tanto nas fileiras um sistema defensivo coerente, sujeito a um comando
como no comando, é um profissional da guerra. Se unificado situado em Bouhen. A descoberta de um
exceptuarmos o exército formado pelo rei em pessoa, arsenal em Mirgissa permitiu formular uma avaliação
para erradicar as pressões asiáticas sobre a fronteira cia guarnição regular: 70 homens armados, dos quais 35
oriental do país, e confiado a Ouni, os outros exér- de piques e 35 de arcos. Números semelhantes foram
citos são formados e chefiados pelos responsáveis avançados para outras praças fortes: entre 50 e 100
administrativos, dos quais dependem habitualmente. homens.
Todos eles incluem já efectivos estrangeiros. Nos alvores da xviu dinastia, é um oficial naval,
Kstu iniciativa da envergadura liberta um odor a Ahmés, que nos fornece testemunhos mais directos
improvisação, como sugere a continuação do relato: sobre a expulsão dos Hicsos e a conquista de Avaris,
sua capital: exército e marinha fluvial estreitamente
«Era eu que tomava as decisões, embora a minha função interdependentes, não podem ser dissociados e partici-
fosse a de director dos empregados do palácio real devido à cor- pam nos combates de maneira coordenada. Como é evi-
recção da minha conduta, de tal modo que nenhum (homem) dente, o relato procura valorizar os feitos do autor e as
me viesse às mãos (?) com o seu companheiro, que nenhum recompensas que obteve: o ouro «da valentia», terras
(homem) se apoderasse do pão ou das sandálias de alguém sem
ser posto na rua, que nenhum (homem) roubasse vestuário na junto à casa e os prisioneiros feitos. A lista nominativa
<-u1;uli: ou uma cabra ao dono. [...] Inspeccionava todos os con- destes prisioneiros, 9 homens e 10 mulheres, figura
íiujmtcs; nunca houvera inspecções feitas por outro inspector.» em anexo, como título de propriedade sobre estes
escravos.
Mais tarde, na x dinastia, o Enseignement pour Com as grandes campanhas na Ásia dos soberanos
Mérikarê mostra os soldados entregues à pilhagem da do Novo Império, o exército assume importância e
necrópole tinita. estrutura-se. Muitas vezes chefiado pelo próprio rei,
No Primeiro Período Intermédio, o recrutamento leva à sua frente um general em chefe auxiliado por
local pelos nomarcas prevalece sobre as iniciativas reais. todo um estado-maior. Divide-se em vários corpos, pro-
O país encontra-se dividido em vários grupos de regiões tegidos por um dos grandes deuses do país. Desde a
coligadas que se defrontam. A composição e o aspecto introdução, no Egipto, do cavalo e da roda, até ao
dos exércitos são-nos revelados por modelos de madeira, Segundo Período Intermédio, é composto por duas gran-
protótipos dos nossos soldados de chumbo, expostos des armas: a infantaria, compreendendo companhias de
no túmulo de um nomarca de Assiut: duas secções de 200 ou 250 homens distribuídos por 4 ou 5 secções,
40 homens, Egípcios portadores de lanças e escudos e e os carros. Com Ramsés IV, atinge-se o número de
Núbios arqueiros. No Império Médio, é a formidável 20 companhias, ou seja, 5 000 homens. Grandes textos
cadeia de fortalezas da Segunda Catarata que nos históricos largamente difundidos pelo país pormenori-
informa sobre o exército, sua organização e seus meios. xnin as subtilezas da arte estratégica egípcia. Os vestí-
As construções, em primeiro lugar, dão-nos uma ideia ;>,ioi; de fundações militares reais — cavalariças, acam-
da arte das fortificações no fim do m milénio e das pamentos, arsenais e depósitos de carros — são visíveis
dimensões consideráveis de certos aglomerados que um pouco por toda a parte, e sobretuod em Tebas e
albergavam. Alguns papiros dizem-nos que compunham i-m Pi-Ramsés. Constrói-se uma nova cadeia de forta-
50 DOAÍINÍQUE VALBELLE 1 VIDA NO ANTIGO EGIPTO 31
lezas, desta vez em direcção ao Próximo Oriente, no cisar, dentro dos limites do possível, a situação do povo
norte da península do Sinai, assim como na fronteira no seio da sociedade egípcia e os diferentes estatutos
líbia, de forma mais modesta, porém. Verdadeiras pra- que ela encerra. O povo é, muitas vezes, a categoria mais
ças-fortes albergam colonos na Núbia. A marinha mal conhecida porque nos deixa vestígios insignificantes
desempenha um papel crescente: tanto no transporte da sua existência. Indigente e analfabeto, desaparece
cias tropas em direcção aos portos da Síria e da Pales- em sepulturas rudimentares e anónimas e, sobretudo,
tina, como nos combates contra os Povos do Mar. não se retrata. Precisemos ainda que a demarcação entre
A proporção de mercenários estrangeiros, vindos de aqueles que conseguem, a custo, passar à posteridade
iodos os horizontes, aumenta constantemente e os tes- e aqueles que estão votados a soçobrar no esquecimento
temunhos da sua integração no país, depois da desmo- é ténue e variável consoante as épocas e os seus impon-
bilização, são abundantes. Parecem adoptar os costumes deráveis históricos. Assim, a modéstia das cabanas que
egípcios, usam geralmente nomes egípcios que recordam habitavam as comunidades obrigadas, devido às suas
a sua origem ou a dos pais, mas introduzem novos funções, a permanecer no deserto, não impediu estas
deuses, depressa venerados pelos Egípcios, que frequen- construções, muitas vezes feitas de pedra seca por falta
tam. A partir do reinado de Ramsés II, os antigos de água, de resistir melhor ao tempo e à concentração
combatentes vêem-se dotados de rendas e de terras. urbana que as ricas moradias erguidas nos vales. Além
A. classu militar torna-se cada vez mais o instrumento disso, situada por definição no coração da vida activa
do poder. Assim, não deve surpreender-nos que, no do país, esta mão-de-obra é a vedeta dos registos que
íini da x vi u dinastia, um general se torne faraó. chegaram até nós, sob a forma de avaliação global ou
O prestígio crescente do «uniforme» não deixa de de listas nominativas. É objecto de registos escrupulo-
suscitar, desde muito cedo, uma certa irritação entre sos e de controlos frequentes. Numerosa, é igualmente
outras categorias de funcionários. A Sátira dos Ofícios, motivo de orgulho para os empregadores. Hábil e dedi-
composição literária do Médio Império destinada a cada, aparece, por vezes, representada e nomeada ao
valorizar o ofício de escriba, em detrimento das pro- lado dos patrões, nas paredes dos túmulos.
fissões manuais, inclui, a partir do Novo Império, a O Antigo Império não nos legou, que se saiba,
situação do soldado, que descreve de forma muito pouco arquivos respeitantes à população trabalhadora que
lisonjeira. Mas a obra, que também adverte os leitores executou os grandes trabalhos da época: escavação da
contra a situação dos sacerdotes, é um órgão de propa- rede de canais indispensável a uma agricultura organi-
ganda feito para confortar os futuros escribas na esco- zada; construção dos grandes centros urbanos e da
lha da sua carreira. Não surpreende, pois, que contenha primeira capital, Mênfis; edificação das pirâmides e dos
episódios deveras tendenciosos. seus complexos funerários. Camponeses e servidores
ficaram ainda mais esquecidos. Apenas os prisioneiros
V — Os homens livres e os servos de guerra conservaram, por diversas vezes, a sua ima-
gem simbólica e os seus efectivos gravados na pedra.
Os quadros socioprofissionais até aqui apontados Não duvidamos de que estes homens e estas mulheres
reuniam a quase totalidade dos Egípcios. Contudo, antes tenham ido engrossar as hostes dos operários não espe-
de observar os homens no seu trabalho, importa pre- cializados e da criadagem egípcia.
32 DOMINIQUE VALBELLE
A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 33
A OCUPAÇÃO DO TEMPO
estrangeiros de Irtjet, Uoaouat. Iam e Medja forneciam a madeira ossos de trabalhador; és alto e magro. Se puxares ou carregares
necessária [...]» (Segundo A. Roccati, La littérature historique um fardo, desfalecerás, etc.»
sous 1'Ancien Empire, Paris, 1982, pp. 191-197.)
enquanto outras versões se baseiam mais directamente
Ao longo da sua carreira, Ouni assume sucessiva- nas vantagens materiais e nas prerrogativas da pro-
mente, ou simultaneamente, responsabilidades adminis- fissão:
trativas no seio do palácio, judiciárias na província, e
mais tarde também na corte, militares e novamente «Quero aconselhar-te no plano intelectual e no plano físico,
administrativas, mas, desta vez, num plano mais ele- para que (saibas) manejar a paleta com facilidade, que obtenhas
vado, já que é colaborador directo do rei e do vi/ir a .confiança do rei, que tenhas acesso aos arquivos e aos celeiros,
que (sejas capaz) de receber o trigo à entrada do celeiro e que
em todo o sul do país, antes de ser encarregado de estejas em condições de proceder à oferenda divina nos dias de
missões de confiança respeitantes ao ordenamento da festa, (bem) vestido e munido de cavalos, enquanto a barca te
sepultura do último dos quatro soberanos que serviu. espera no rio; serás acompanhado por uma escolta e livre de
circular à tua vontade, por ocasião das tuas inspecções. Disporás
de uma casa na cidade e o soberano conceder-te-á um posto
A formação dos escribas compreende a cópia de importante; estarás rodeado de servidores e de criados e os que
textos de propaganda, cartas-modelo e contabilidades- vivem no campo, nas terras que mandaste cultivar, quererão
-tipo, reunidas em colectâneas. No Novo Império, cer- apertar-te a mão. Olha, faço de ti um auxiliar de vida. Regista
tas composições inspiradas na Sátira dos Ofícios pros- (bem) os escritos, de modo a evitares imposições e a tornares-te
um excelente magistrado [...].»
seguem a sua difusão, renovando-lhe parcialmente a
inspiração. A insistência com que procuram desencorajar
os jovens que aspiram a outras profissões ou os escribas As funções do escriba são extremamente variadas
tentados por uma reconversão acaba por se tornar consoante o serviço público ou privado que o emprega.
suspeita, tanto mais que outro tema literário, visivel- Pode ser fixado na cidade ou conduzido ao campo,
mente muito generalizado, consistia em cartas fictícias mantido no seio de uma instituição ou afectado a uma
de exortação enviadas a escribas preguiçosos. «uarnição distante. Comportam, porém, na maior parte
A forma mais tradicional do género começa pela (Ias vezes, responsabilidades de importância variável
injunção: «Sê um escriba!», seguida de uma longa e «lue o colocam numa posição fora do comum e sugerem
pormenorizada lista dos males que espreitam os jovens lioas perspectivas para o futuro: «todos procuram ele-
que cometam a imprudência de fazer outra opção. var-se». Saber ler, escrever e contar, conhecer as leis,
Estão, pois, em causa todas as profissões possíveis e confere um indiscutível poder sobre uma população em
imaginárias, com excepção da de escriba. Uma versão !>nmde parte analfabeta. Ora, não é necessário pertencer
mais subtil limita-se a sublinhar, de forma geral, as van- -.\a sociedade egípcia para ser escriba. Assim, não
tagens de ser escriba para aqueles que apresentam uma é raro, ao percorrer árvores genealógicas, encontrar
constituição delicada: verdadeiras «dinastias» de escribas, como a que redigiu
<>•, arquivos do «Grande e Nobre Túmulo de Milhões
«Sê um escriba, o teu corpo é delicado e o teu braço cansa-se • l- Anos de Faraó», do ano 16 de Ramsés III até ao
(rapidamente); não te consumas como uma vela seguindo o exem- mo 20 de Amenemope, isto é, durante cento e cin-
plo daqueles cujo corpo perdeu (toda) a força, pois não tens • | U f i i i : i anos, aproximadamente.
44 DOMÍNÍQUE VALBELLE
A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 45
descreve, não implica realmente uma promoção social mós de lado os dias de festa em que toda a equipa se
equivalente. Mesmo tendo começado na profissão como dirige, com mulheres e filhos, a caminho do cortejo para
observar a barca sagrada e os oficiais que vieram propo-
simples pedreiro, Nakhébu nunca parece ter sido um
sitadamente para o efeito, os dias em que celebram as
proletário. suas próprias cerimónias religiosas, aqueles em que o
Na verdade, a família constitui um factor importante
na orientação dos jovens, que deviam iniciar muito cedo vizir honra o estaleiro com a sua presença, aqueles em
uma aprendizagem. O pai e os irmãos iniciam os ado- que a comunidade acompanha um dos seus à última
lescentes no seu próprio ofício. Só aqueles que não morada, ou ainda todos aqueles durante os quais decidem
conseguem empregar-se na mesma instituição, na mesma fazer greve, ocupar o local de trabalho ou m?.nifestar-se
junto dos templos funerários da margem oeste, quando
oficina, procuram trabalho fora.
As biografias, gravadas ou pintadas em túmulos, que as suas rações de trigo e de aveia tardam a ser distri-
apresentam já uma certa importância, dizem respeito, buídas.
por definição, apenas à classe mais abastada. Não deve- Consideremos um dia normal de trabalho. O soberano ou
mos esperar, portanto, que este género literário nos o vizir veio à necrópole escolher o local mais propício para o
informe sobre as camadas mais modestas da população. ordenamento do túmulo. O plano do túmulo foi elaborado por
uma pequena comissão de notáveis e pelos superiores da equipa.
Na maior parte das vezes, estas contentam-se em assi- O traçado de vários corredores e salas, durante o qual apenas
nalar, nos seus monumentos, as funções que exerceram metade da equipa podia intervir ao mesmo tempo, está terminado.
eles próprios e os familiares. Excepcionalmente, fazem-se 0 campo está livre para os especialistas. Os homens abandonam
representar na obra de arte, mas é mais corrente encon- :i aldeia de madrugada. Têm à sua frente oito horas de labor
:i realizar. Percorrem o carreiro que os leva, à beira das falésias
trá-las anonimamente entre os companheiros de trabalho, il<: greda, até ao colo que domina o Vale dos Reis. É aí que, nas
na evocação de um estaleiro ou de uma oficina, no cabanas de pedra seca que construíram para as ocasiões em que
túmulo do alto funcionário responsável. É, portanto, não regressam à aldeia, depositam a refeição do meio-dia. Dei-
graças aos arquivos que podemos reconstituir, de resto •:am-se escorregar ao longo do caminho a pique que conduz aos
estaleiros. Os porteiros., que asseguraram a guarda do cofre-forte
muito facilmente, o dia de trabalho de um operário. < ide se alinham os materiais indispensáveis à construção das
Embora esta reconstituição não abranja nenhuma comu- 1 i redes do futuro túmulo, cumprimentam-nos friamente, interro-
nidade para além da dos homens do Túmulo, empre- 1 indo-os sobre os seus substitutos. Pode começar a chamada.
gados que os reis do Novo Império entretinham prin- ! : o escriba estiver ocupado, far-se-á mais tarde. O contingente
cipalmente a escavar e decorar os seus hipogeus no l ii-cce reduzido, hoje de manhã. Amennakht partiu para um vale
distante, juntamente com Pached, em busca de gesso, a fim de
Vale dos Reis, em Tebas. l.ihricar a massa que cobrirá as irregularidades da rocha. Neferren-
Trata-se de simples operários. Os seus chefes, os |n-r já se ausentou para beber um pouco de água. Quanto a
escribas, tiveram a mesma origem, antes de mandarem 'irmiedjem e a Ramosé, deviam ter ido visitar o tio, gravemente
neles, sucedendo habitualmente aos pais nos mesmos car- i l u i i M o , a uma aldeia próxima. Pavamessu espera o nascimento
.('• mn filho e Amenhotep está a cuidar da infecção que Pakharu
gos, mas estas famílias encontram-se firmemente instala- • MI i imiti nos olhos. Nakhy e Kenherkhepechef arranjaram maneira
das naquilo que se nos revela como uma sinecura, se • ! ICT mordidos por um escorpião, enquanto Inherkhaou fabrica
tivermos como referência as outras comunidades operá- ervcjt, na companhia de Kenna, tendo em vista a festa de
rias de que a história do Egipto nos deixou testemunhos M. H V>IT, a deusa da elite tebana. Doze ausentes em sessenta:
UM '" muito mau!
suficientes para que a comparação possa ser feita. Ponha-
l
, l VIDA NO ANTIGO EGIPTO 49
48
DOMÍNÍQUE VALBELLE
*
venturas de um pobre habitante do oásis, que veio ao
vale tratar de negócios e que, depois de ter sido roubado
um a um, dos bens que trouxera com ele, é recompen-
sado, pelo magistrado a quem durante muito tempo
importunou com as suas queixas, com as possessões
do seu perseguidor:
«Então [o grande intendente] Rensi, filho de Méru, enviou
dois guardas em [busca de Djehoutynakht]. Trouxeram-no, por-
tanto, e foi feito um inventário [dos seus bens, assim como]
da sua [gente, a saber:] seis pessoas, sem contar... (?), cevada
do Alto Egipto, trigo, burros, [gado grosso], porcos e gado
miúdo. [E entregou-se] esse Djehoutynakht [como escravo] a
esse habitante do oásis, [assim como] todos os seus bens [...].»
(Segundo G. Lefebvre, op. cit., p. 69.t k >>• -Cena mrd, período amarniano (segundo o BIFAO 69,
^S- /> p- 81).
Estranhamente, não é na boca dos trabalhadores
rurais que os escritores da época colocam as recrimi-
nações habituais de todas as sociedades camponesas, mas
na de um escriba indignado por ver um dos seus antigos
colegas tentado pelo regresso à terra:
DOMINÍQUE VALBELLE 'l VIDA NO ANTIGO EGIPTO 55
ximam-se, na categoria das suas funções, dos músicos, bebida, parece ditar as suas ordens a dois escribas ajoelhados
à sua frente. No terraço, um contabilista toma nota da entrega
cantores, adivinhos, professores de escrita, mas também de material em curso. A parte direita da residência, completa-
mordomos, criados, porteiros ou lavadeiros. As mulhe- mente destruída, devia abranger outros sectores de actividade,
res ocupam-se da higiene da patroa e do seu guarda- em particular os aposentos reservados às mulheres.
-roupa. Esteticistas e cabeleireiras transportam espelhos
e guarda-jóias. Outras são amas ou criadas das crianças, Mas, é sobretudo nos grandes domínios do reino,
ou cantoras. evocados nas paredes das sepulturas dos altos funcio-
Cozinha e armazém ao mesmo tempo, o m w é o nários que os gerem, que se afadigam mais claramente
local onde se preparam e conservam os alimentos. Com- as multidões anónimas de empregados que percorrem
preende as cozinhas propriamente ditas, as padarias, as os armazéns, preparam toda a espécie de conservas,
fábricas de cerveja, as leitarias, as caves dos vinhos, os empilham peças de roupa acabadas de sair das oficinas
depósitos de água, de peixe, de fruta, etc. Também é aí ou escolhem os alimentos necessários à vida quotidiana.
que se guardam as contas relativas a estes serviços e a
roupa. Os criados que aqui trabalham preparam e ser-
vem as iguarias destinadas à mesa do patrão. A apresen-
tação das bebidas ocupa um lugar de destaque nas cenas
de interior. As criadas encarregadas desta tarefa usam
habitualmente o cabelo entrançado, ocultado por um
lenço, por motivos de higiene. As mulheres também
trabalham nas cozinhas e nas padarias, onde as vemos
moer a farinha que em seguida passam por uma peneira
e, depois, preparar a massa para o pão, que enformam
em recipientes cónicos, enquanto os colegas do sexo
masculino executam as mesmas tarefas ou preparam
pães redondos e achatados que cozem numa outra espé-
cie de fornos, ao mesmo tempo que outros trituram
cereais em almofarizes, com a ajuda de grandes pilões
de madeira.
A representação, em corte, da casa de Djehoutynefer, no
tempo de Amenóíis II, resume algumas das actividades domés-
ticas num quadro privado. A cave é reservada ao artesanato
têxtil: num primeiro compartimento, há homens que fiam, no
seguinte estão sentados em frente de grandes teares, no terceiro,
lavam, roupa. No rés-do-chão, criados e criadas transportam
louças, frutos e flores para o amo. As escadas encontram-se reple-
tas de criados que transportam para os andares de cima baús,
jarros e pedaços de carne. No primeiro andar, o amo, junto do
qual um criado agita um leque enquanto outro lhe serve unia
DOAÍÍNIQUE VALBELLE
60
CAPÍTULO III
O NÍVEL DE VIDA
E AS SUAS MANIFESTAÇÕES
divertimento, ou para impressionar os familiares, quan- é realçado por elementos arquitecturas de calcário de
tias consideráveis; ou antes, na ausência de moeda, for- Tura, granito de Assuão ou alabastro de Hatnub. A par-
necia produtos à altura do preço fixado para o bem tir da iv dinastia, o relato da construção do túmulo
em questão. Mas, a maior parte dos seus haveres era e da inclusão de uma porta secreta ou sarcófago, oferta
dedicada ao ordenamento da sua sepultura, à construção do soberano, encontra-se gravado na capela, ou mesmo
do mobiliário funerário e os rendimentos dos domínios nos batentes da porta, a fim de que os parentes do
funerários à manutenção de um culto post mortem e defunto e os sacerdotes funerários dele possam tomar
à construção de uma capela ou ao fabrico de monumen- conhecimento quando vêm depor as oferendas quoti-
tos mais modestos — esteias ou estátuas — destinados dianas:
a serem colocados num recinto sagrado, sob a protec- «Quanto a este túmulo, foi o rei do Alto e do Baixo Egipto,
ção de uma divindade, em particular da do deus dos Micerinus — [que viva eternamente] — que (me) concedeu o
mortos, Osíris, na cidade santa de Abidos. Assim, a se- terreno. Ora, aconteceu que [Sua Majestade ia a passar] pelo
pultura e as fundações piedosas constituem os primeiros caminho que ladeia a pirâmide para inspeccionar o trabalho de
construção da pirâmide chamada "Micerinus é divino", quando
sinais exteriores de riqueza. Portadoras de uma mensa- o pedreiro e [carpinteiro real] os dois grandes sacerdotes de
gem que comporta realizações, qualidades morais e bens Mênfis e os artesãos (já) aí se encontravam para inspeccionar
materiais do defunto, traduzem complacen temente a sua os trabalhos de construção do templo [...] Depois, Sua Majes-
fortuna e as formas que esta assumia enquanto vivo. tade ordenou que se arrasasse um monte de entalho [para cons-
truir] este túmulo.»
mente, por medida de segurança, pensando provavel- tos da senhora Sénebtisy sobre um contingente de 95
mente que mais vale confiar-se aos deuses do que aos pessoas assim reduzidos à escravatura: um extracto do
sacerdotes, constroem-se, em vida, monumentos desti- registo dos presos entrados na Grande Prisão de Tebas,
nados a evocar a memória dos defuntos nos santuários remontando à dinastia precedente, indica a identidade
da cidade natal, ou em Abidos, por ocasião das peregri- de cada um deles, por vezes o seu ofício, e o motivo
nações que se faziam frequentemente. Entre estes mo- da acusação; enquanto um auto autoriza o intendente
numentos, as estátuas são sobretudo a expressão de dos campos Haankhef a dispor destes homens e destas
intervenções individuais, enquanto as esteias reúnem mulheres, que transmite à mulher. Pela mesma época,
frequentemente um grande número de parentes, fami- os arquivos da cidade da pirâmide de Sesóstris II, no
liares e colaboradores. Fayum, compreendem diversos legados, entre os quais
uma espécie de acta notarial que contém duas séries
de disposições testamentárias sucessivas:
II — O povo
«Título de propriedade redigido pelo tesoureiro-ccónomo
do chefe dos trabalhos do distrito setentrional, Ihyseneb, dito
É difícil descobrir o estatuto dos empregados que, Ankhren, filho de Chepeset: todos os meus bens, adquiridos no
nas paredes dos túmulos, são figurados no exercício da campo e na cidade, pertencerão a meu irmão, sacerdote em Soped,
sua profissão, ao serviço do patrão, nos campos, nas senhor do Oriente, Ihyseneb, dito Ouah, filho de Chepseset;
oficinas ou nas dependências. Muitos deles são empre- todos os meus criados pertencerão a meu irmão. Estas disposições
estão consignadas num registo, no gabinete do porta-voz do Sul,
gados reais e ainda hoje ignoramos as condições exactas no ano 44, no 2.° mês do Verão, no 13.° dia.
da sua presença em casa de simples particulares: estarão »No ano 2, no 2.° mês da Primavera, no 18." dia. Título
lá para desempenhar uma tarefa precisa ou foram afec- de propriedade redigido pelo sacerdote de Soped, senhor do
tados a um domínio privado como o poderiam ter sido Oriente, Ouah: redijo um título de propriedade a favor de minha
a um domínio da coroa ou a uma fundação religiosa? esposa, mulher do sector oriental, Chefet, dita Téti, filha de
Satsoped, respeitante a todos os bens que me legou meu irmão,
E, para terminar, ficarão sob as ordens da mulher ou o tesoureiro-ecónomo do chefe dos trabalhos de Ankhren [...]
do filho mais velho do patrão, depois da sua morte? Toda a baixela ainda existente, legada por meu irmão., será
Embora nenhum texto legal nos informe concretamente transmitida a quem ela quiser, entre os filhos que me deu.
sobre estes assuntos, podemos avançar, a partir de Lego-lhe os quatro asiáticos cedidos por meu irmão...; ela
transmiti-los-á aos filhos que quiser. No que respeita ao meu
alguns casos individuais, que não existia nenhuma regra túmulo, quero ser colocado junto de minha mulher, _sem mais
absoluta sobre tal matéria e que a distribuição destes ninguém senão ela. Quanto aos edifícios que meu irmão me
homens pelo reino dependia de acordos específicos entre deixou, a minha mulher habitá-los-á, sem que ninguém possa
as autoridades e os notáveis que se viam dotados desta expulsá-la [...].»
categoria de mão-de-obra. De qualquer modo, estes
homens não são propriedade dos empregadores. O pessoal de serviço vem enumerado após as pro-
Já o mesmo não acontece com as pessoas privadas priedades, tal como no Conto do Oasiano. De notar
de liberdade por decisão de justiça e com os estrangeiros que a acta de propriedade compreende uma cópia da
feitos prisioneiros em campanhas militares. Chegou até acta anterior, garantindo a autenticidade dos direitos
do testador para dispor dos bens considerados.
L
nós um volume da xin dinastia que estabelece os direi-
68 DOMINIQUE
,
70 DOAÍINIQUE VALBELLE A VIDA
71
Outras figurações, mais ou menos esquemáticas, em O valor das grandes propriedades rurais nunca é esti-
elevação ou mesmo em corte, e alguns modelos de barro, pulado, nem em contratos, nem em actos de sucessão,
madeira ou calcário de residências urbanas ou rurais, os documentos jurídicos originais que chegaram até nós
construídas com um só piso ou com um primeiro andar referem-se apenas a negócios modestos. Os extractos
e um terraço, ajudam-nos a interpretar os numerosos ves- que figuram em esteias ou em túmulos referem-se, por
tígios de habitações descobertas por ocasião de esca- vezes, as possibilidades dos compradores mais modestos,
vações em diversos contextos. conservam-se discretos quanto ao preço. É o que tam-
bém acontece com grandes doações como as do papiro
Nem sempre é fácil determinar quais as casas que Harris. A única certeza que podemos ter, antes da Pri-
foram distribuídas aos seus ocupantes quando o amo meira Época, quanto ao preço de um campo, data do
entrou em funções e quais as que representam verdadei- reinado de Tutmés III: o aroure equivale a 15 g de
ras propriedades privadas. Só as casas construídas no prata, o que é relativamente pouco, comparado com
perímetro do domínio de uma fundação real ou reli- o preço dos escravos (pp. 68-69) e com o gado. Na
giosa e os alojamentos dos criados não se prestam a con- xvni dinastia, o valor de um touro ou de uma vaca
fusões; mas que dizer da casa prometida, na sua cidade parece variar entre 45 g e 60 g de prata, enquanto na
natal, ao escriba merecedor (p. 43)? Em que categoria época dos Rameses, um jovem escravo custava entre
classificar as casas que formam os bairros centrais da 27 g e 36 g e um touro podia atingir 128 g de prata.
cidade da Amarna? Porém, casas de trabalho ou resi- O elevado montante destas quantias, que excedem, por
dências privadas, são espaçosas e luxuosas residências, vezes, as possibilidades dos compradores mais modestos,
sinal certo de um nível social elevado e de acumulação justifica provavelmente a prática, visivelmente generali-
t de riqueza. De resto, os contratos que conhecemos rara- zada, da compra efectuada em comum, por vários indi-
mente se referem a propriedades e edifícios luxuosos. víduos, de um animal ou de um rebanho. Na mesma
Trata-se de cabanas, de entrepostos, de dependências di- época, a cotação de um burro situava-se entre 23 g
versas, de capelas e de quiosques de festas, assim como e 26 g de prata, a do porco entre 4 g e 6 g, a da cabra
de pequenas parcelas de terreno para construção valendo entre l g e 3 g, consoante a idade e o tamanho do
de l a 5 deben de cobre — l a 4,5 kg. animal. Quando nos é dada a possibilidade de compa-
rar números de épocas diferentes ou, por vezes, dentro
de um breve período, notamos variações importantes
IV — Os bens produtivos: as terras e o gado nesses mesmos números. É a cotação dos cereais, depen-
dente das colheitas, elas próprias sujeitas às cheias, que
Importa distinguir os vastos domínios e os grandes determina estas flutuações. Estudadas no que toca ao
rebanhos que não são directamente explorados pelos período dos Rameses, revelaram-se consideráveis. Im-
proprietários quando não pertencem a fundações ou à porta, pois, ser prudente em matéria de comparações,
coroa, das pequenas parcelas de alguns aroures —um já que a situação económica do país é susceptível de
pouco mais de um quarto de l ha — e das cabeças de provocar diferenças notáveis entre os diversos reinados.
gado que os camponeses ou qualquer outra categoria Assim, os cereais viram as suas cotações multiplicadas
de pessoas, adquirem e de que se ocupam pessoalmente. por 3 ou mesmo por 5 entre o reinado de Ramsés III
74 DOMÍNÍQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 75
e o de Ramsés VII e, em seguida, diminuírem para do Império Médio até ao fim do Novo Império: 100 g
metade entre os de Ramsés IX e Ramsés XI. Pelo con- de cobre valem l g de prata e 2 g de prata valem
trário, os bens trocados por ocasião da mesma transac- l g de ouro.
ção são perfeitamente comparáveis, com os três aroures Examinando os termos dos mercados que chegaram
pagos, no tempo de Tutmés III por uma só vaca, cujo até nós, é visível a variedade dos bens alinhados para
preço estava fixado em 45,5 g de prata. O valor da pagar as facturas apresentadas aos compradores. Na ver-
terra parece inalterável no tempo de Amenófis IV, se dade, em raros casos o vendedor parece ter exigências
considerarmos que os dois únicos testemunhos conhe- precisas quanto à maneira como pretende ser pago:
cidos bastam para abordar a questão. Dez sacos de trigo, a venda da jovem escrava síria Gemeniherimentet cons-
correspondentes a uma colheita média durante toda a titui um bom exemplo. Mas, o bazar heteródito habi-
época faraónica, vendem-se à mesma tarifa no tempo tualmente proposto pelo comprador e, segundo parece,
de Tutmés III. A equivalência entre o preço da terra aceite como pagamento pelo vendedor, encerra todas as
e o daquilo que ela produz num ano, antes de dedu- categorias imagináveis de produtos. De resto, é graças
zidos os impostos, as sementes para o ano seguinte e, a esta prática que hoje se conhece o valor que tinham
eventualmente, o aluguer do campo, não pode, contudo, na época. Desde os tempos mais recuados, são os pró-
ser estudada no que respeita ao período dos Rameses prios metais, sob diversas formas, e também os tecidos,
porque este, rico em informações sobre a cotação dos que são utilizados mais frequentemente como moeda de
cereais, é toalmente omisso quanto à terra arável. troca nos grandes negócios cujos passos conhecemos.
Usam-se igualmente as peles, assim como a madeira e os
móveis.
V — Os metais e os produtos de luxo O cobre e o bronze são, evidentemente, o metal e a
liga mais frequentes. Surgem, em primeiro lugar, sob
a forma de baixelas, mas também de armas, de utensílios
Se a cotação dos cereais serve de referência para ou de objectos de higiene, de espelhos, de metal recupe-
a avaliação de certos bens e dos alimentos que produ- rado, indistintamente, reservando-se a prata e o ouro
zem, são, como vimos, os metais, principalmente o cobre para a baixela de luxo e para as jóias. O chumbo ou
e a prata, conforme o nível das transacções, que se utili- o estanho intervêm mais raramente em transacções. Seja
zam para estimar o ou os objectos destas transacções. qual for o objecto considerado, se não for fabricado por
Mais uma vez, é necessário ser prudente, pois a cotação encomenda do cliente, só o seu peso em metal é consi-
dos metais também variou com o tempo, o que se derado, excluindo-se o tempo de trabalho e a qualidade
traduz, na prática, por diferenças na paridade de da execução. Esta medida justifica-se pelo facto do
troca entre estes metais. Contudo, à parte uma baixa metal assim recuperado ser geralmente fundido e trans-
sensível da cotação do ouro no reinado de Amenófis II, formado em outro objecto, como testemunham muitos
provavelmente resultante do afluxo de riquezas depois textos. Quanto às pedras semipreciosas, aparecem pouco
das vitórias egípcias na Ásia, e um aumento mais fraco nos mercados, embora o seu valor nos seja indicado
da do cobre no fim do reinado de Ramsés IX, verifica- pelas doações destas pedras que Ramsés III fez aos
-se uma estabilidade bastante considerável desde o início grandes deuses do país.
76 DOMINIQUE VALBELLE
\a a gente abandona a ci
82 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 83
restituição do espaço natural seriam insuficientes para A paisagem do delta diferia muito da do vale. Cur-
despertar a nossa imaginação se o estudo da paisagem sos de água, pântanos e lagos surgiam abundantemente.
actual do Egipto, acompanhado pelo do subsolo por A vegetação compunha-se sobretudo de papiros, cana-
meio de cortes e sondas inspirados nos métodos de pros- viais, plantas aquáticas de várias espécies, mas também
pecção geológicos, e ainda pelo das variações do curso vinhas, pomares e jardins. Junto ao Mediterrâneo esten-
do Nilo, não viesse em nosso auxílio. No Sul, o vale, dem-se ainda vastas marinhas de sal, exploradas desde
por vezes muito largo, encontra-se, em certos locais, a Antiguidade. Os aglomerados, respeitando os capri-
encaixado entre as falésias dos planaltos líbico e ará- chos da morfologia do terreno, são formados por case-
bico. De província em província, passa-se de uma pai- bres dispersos, construídos ao abrigo das cheias, em
sagem de planície para uma paisagem de montanha. colinas naturais que em árabe se chamam gezira —
Mas, são sobretudo o rio e os canais que o prolongam, ilha —, ou nas margens escarpadas resultantes da esca-
que animam efectivamente os campos, outrora limita- vação e da limpeza regular dos cursos de água. Contudo,
dos à zona inundada, todas as Primaveras, pelas cheias. estabeleceram-se cidades importantes nos principais bra-
Nestas terras baixas anualmente ameaçadas pelas águas, ços do Nilo, por razões históricas, religiosas ou comer-
as cidades e as aldeias constroem-se em todas as eleva- ciais. Formam, praticamente, colinas artificiais em que
ções: terraços aluviais, colinas, aglomerações de terras as novas habitações se sobrepõem aos vestígios de outras
ao longo dos canais. Sabe-se pouco sobre o habitat cam- mais antigas. Chamam-se kom ou tell.
ponês, não obstante algumas belas descrições: Tanto no delta como no vale, a rede hidrográfica
forma um elemento essencial na paisagem, que modela
«Raia mandou construir uma bela casa em frente de Afrodi- à sua vontade. Fonte de vida, reserva inesgotável de
topólis, mandou-a construir na margem, [...] (?) como obra para peixe e de caça marinha, constitui a primeira rede de
a eternidade e rodeada de árvores por todos os lados. Em frente comunicação do país, muito anterior às estradas. Assim,
da casa foi escavado um canal e o sono só é perturbado pelo é muitas vezes representada nesta função. A frota flu-
fragor das ondas. A vista é repousante. Sentimo-nos [logo] ale-
gres só [de passar] pela porta. Enebriamo-nos nos salões. Os vial era, portanto, importante no Egipto, dando origem
enquadramentos das portas, em calcário de Tura, contêm inscri- ao ordenamento de bacias portuárias, cais de embarque
ções e são esculpidos. Os belos batentes foram refeitos de novo e ancoradouros vários que, por sua vez, suscitavam a
e as paredes incrustadas de lápis-lazúli. Os celeiros encontram-se criação de estaleiros navais, entrepostos, oficinas e
repletos dos melhores cereais. As capoeiras abrigam gansos cin-
zentos. Os estábulos estão repletos de vacas. Um tanque cheio de animados mercados. As margens do rio, e as dos canais,
água está reservado à reprodução de palmípedes. Os cavalos estão que, de resto, a iconografia não distingue, eram locais
nas cavalariças. Barcas, barcaças e batéis destinam-se ao trans- de atracção que punham em contacto as populações cam-
porte do gado e estão amarrados ao cais, etc.» ponesas com tripulações vindas de outras regiões e do
estrangeiro.
A exposição, que começa por uma descrição da Às vezes, porém, os Egípcios sabem esquecer as con-
quinta como local de permanência agradável, passa tingências materiais, dando largas à imaginação. Foram,
rapidamente à elaboração de um inventário do patrimó- talvez, os escritores do Novo Império que nos deixaram
nio, sem contudo abandonar totalmente o tema inicial. as descrições mais desinteressadas sobre a natureza
86 DOAÍINÍQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 87
envolvente, nos Cantos de Amor. Estas composições, De todas estas imensas terras áridas, só as primeiras
que se situam no campo, foram particularmente inspi- foram frequentemente objecto de reproduções nos
radas pelas árvores e jardins que se confundem corn túmulos, na evocação do próprio túmulo e das cerimó-
os jovens, numa linguagem poética de subtis requintes: nias que com ele se relacionam, ou mais figurações
simbólicas da vaca Hator saindo da montanha tebana,
ou ainda em cenas de caça ou de criação de gado miúdo.
«[...] Pertenço-te, como a terra
Esta zona intermédia entre as culturas e o verdadeiro
Que semeei de flores, deserto assemelhava-se muito mais a uma savana ou a
E de plantas de toda a espécie cujo aroma é suave uma paisagem de Sael do que aos campos pedregosos
Como é encantador o canal que aí se encontra, e estéreis das regiões mais longínquas.
E que as tuas mãos escavaram. Povoados desde a pré-história, colonizados desde
o Antigo Império, os oásis do deserto líbico esten-
Para nos refrescar, soprando o vento Norte:
dem-se de Norte a Sul, ao longo de uma larga depressão
Um local de passeio maravilhoso [...]» que prossegue em direcção a Darfur. Célebres por
alguns dos seus vinhos, os vinhedos não são o único
(Tradução francesa de P. Posener-Kriéger, segundo
S. Schott, Lês chants d'amour de 1'Egypte on- recurso destes distritos longínquos, administrados por
ctenne, Paris, 1956, p. 77.) governadores. A metrópole dos de Dakhla, remontando
ao fim do Antigo Império, foi recentemente descoberta
em Balat. Abrange uma área de 3 ha, rodeada por uma
III — Os desertos muralha de forma sensivelmente quadrada, da qual extra-
vasam alguns bairros igualmente cercados por muralhas.
Oficinas de oleiros confirmam a existência de um arte-
Neste país, em que as culturas ocupam uma ínfima sanato local relativamente desenvolvido. As manadas
parcela, as extensões desérticas, apesar de inquietantes de burros fazem igualmente parte das imagens referen-
e inóspitas, fazem parte do quotidiano. Primeiramente, tes aos oásis e os sais de natrão, produzidos no mais
o deserto próximo, aquele que começa quando desapa- setentrional dos oásis, constituem matéria indispensável
recem as terras inundáveis, o das necrópoles, das plan- às práticas funerárias egípcias.
tas espinhosas e herbáceas; os oásis vêm em seguida, De facto, os recursos minerais são numerosos nos
reminiscências pontuais de um antigo vale fluvial para- planaltos montanhosos que enquadram o vale do Nilo.
lelo ao Nilo, no deserto ocidental; por fim, as monta- De naturezas geológicas variadas, foram desde muito
nhas, ricas em recursos minerais variados, mais ou cedo terreno propício para pedreiras e minas. Tanto
menos distantes das zonas habitadas; e, depois, as umas como outras recebiam esporadicamente expedições
regiões situadas nos confins do país, junto das fronteiras de importância variável em função das necessidades.
ou sobre o litoral do Mar Vermelho, guardadas por Algumas foram exploradas mais regularmente do que
fortalezas ou abrigando portos, domínios de populações outras, em determinadas épocas, consoante a política
nómadas, ora atraídas pelas planícies do Egipto, ora dos soberanos, e conservaram marcas da extracção de
hostis à sua autoridade. pedras, metais ou minerais diversos, vestígios dos habi-
DOAÍÍNÍQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 89
tats operários e dos santuários construídos pelos fronteiriço de Tcharu, no actual canal do Suez, até à
homens — soldados, trabalhadores braçais, artesãos — Palestina, na parede norte da sala hipóstila do templo
separados, por períodos mais ou menos longos, da famí- de Carnac, por ocasião de uma campanha que o rei
lia, da casa e dos dos deuses. travou nestas regiões contra beduínos revoltados.
O aspecto geral das construções, a presença de poços
A única figuração que conservámos destes territórios desolados e árvores encontram-se cuidadosamente descritos. O diá-
é uma espécie de «mapa do tesouro» de uma secção do ouadi rio de um oficial das tropas aquarteladas numa delas,
Hammamat, no deserto arábico, onde se encontram pintadas no tempo de Merenptah, testemunha a importância
esquematicamente, num tolo de papivo, as montanhas escarpadas destes movimentos em todo o sector. Os desertos do
sobre os caminhos que as percorrem, as minas de ouro e os jazigos Egipto, como se vê, não são regiões desabitadas.
de prata, as cabanas dos mineiros e o traçado de um poço, o san-
tuário dos deus Amon e a esteia do rei Séti I, que também man-
dou ordenar ao longo de uma estrada mais meridional uma série
de fontes para facilitar o percurso das tropas enviadas para tra-
balhar em outras minas de ouro.
IV — O estrangeiro
Estes distritos eram objecto de vigilância, assegu- Estabelecendo com os vizinhos relações muitas vezes
rada por uma polícia especial. ambíguas, o Egípcio sente-se ao mesmo tempo atraído
Mais a leste, nas costas nuas do Mar Vermelho, na por países que considera exóticos e assustado com a
península do Sinai, nos socalcos líbicos do delta e na aventura que constitui, na Antiguidade, viajar para
Baixa Núbia, tribos beduínas, de diversas origens, vivem, regiões longínquas. De um ponto de vista mais terra a
mais ou menos pacificamente, da criação de animais. terra, consoante o potencial militar do Egipto, o estran-
geiro constitui uma ameaça grave ou uma fonte consi-
De vez em quando, por carências pessoais ou por pres-
derável de enriquecimento para o país. No fim do
são de elementos externos, ameaçam os interesses egíp-
Antigo Império, apesar das reticências e inquietações
cios nestes sectores estratégicos. Assim, a expedição
que estas populações lhes inspiravam, vários nomarcas
enviada para o litoral do Mar Vermelho por Pepi II de Elefantina aceitam conduzir, em país núbio, expedi-
foi massacrada por um grupo de nómadas, precisamente ções das quais não regressam com vida. São enviados
quando os seus membros reuniam as peças do barco pelo soberano para explorar novas rotas e trazem dos
que deveria conduzi-los ao país de Pount, transportadas seus périplos um grande número de produtos desconhe-
do vale através dos carreiros. Para evitar estes ataques cidos no Egipto. Por vezes, precisam de combater, por
e os de invasores mais perigosos, construíram-se praças- vezes intervêm em confrontos entre etnias diferentes,
-fortes nas diferentes zonas fronteiriças, a partir do muitas vezes estabelecem acordos com algumas delas.
Império Médio. Garantiam não só uma certa segurança, Mas, nenhuma das narrativas autobiográficas que nos
como também serviam de feitorias comerciais nas trocas transmitem estes feitos compreende a descrição das
económicas regulares que o país mantinha com os vizi- regiões atravessadas, nem observações sobre hábitos ou
nhos. As de Seti I, na parte norte do Sinai, foram mentalidades. Acontece o mesmo com as relações entre
representadas na sua ordem geográfica, desde o posto o Egipto e os outros vizinhos.
T
90 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 91
A imagem do faraó massacrando um inimigo, que ficará consa- «Vivo em Kenkenato. Não estou bem instalado. Não há
grada como alegoria profiláctica da supremacia egípcia sobre os homens para fazer tijolos, nem existe palha nos arredores. A que
vizinhos, já na i dinastia se encontra gravada no Sinai, num ro- trouxe para as primeiras necessidades já acabou, embora não haja
chedo do ouadi Maghara. Outro método mágico carregado de burros para a roubar. Passo os dias a observar os pássaros e
significado semelhante só se tornou conhecido a partir da V dinas- pesco. Anseio pelo caminho que conduz à Palestina. Estou de-
tia: figurinhas de feitiço, em madeira, argila crua ou cozida, baixo de uma árvore que não dá frutos (?) comestíveis,, pois
cera, alabastro ou calcário, cobertas de inscrições hieráticas que mesmo as tâmaras que não amadurecem desapareceram. Há mos-
encerram listas de nomes de príncipes ou de princesas, simboli- quitos (?) ao nascer do Sol e moscas (?) ao meio-dia. Os mos-
zando os seus países, acompanhadas de fórmulas mais ou menos cardos (?) picam e chupam [o sangue] das veias [...].»
injuriosas destinadas a atingi-los através do suporte escolhido
para aniquilar o perigo potencial que representam. Estas figuri-
nhas podem ser substituídas por vasos. Encontram-se igualmente Quer se trate de um explorador isolado ou de um
outras fórmulas mágicas. Muitas vezes despedaçadas e lançadas exército em deslocação, o trajecto raramente é evocado
para fossos por ocasião das cerimónias de fundação de um monu- por outros pormenores para além da menção de locais
mento ou de um conjunto monumental, protegem-se virtualmente
contra a intervenção das forças do mal, sejam elas quais forem. atingidos, atravessados ou ultrapassados. As descrições
As mais numerosas, feitas de cera, desapareceram nas chamas. de regiões estrangeiras são excepcionais e caem rapida-
Este costume perdurará até à Primeira Época. Paralelamente, mente, como no caso do Egipto, no inventário dos
listas de nomes de cidades ou de países estrangeiros submetidos recursos locais:
ao Egipto, ou como tal considerados, inscritos em espaços ovais
aos quais se aplica a silhueta de um prisioneiro, expõem nos
templos, nas bases dos pilonos e das colunas, a imagem inofen- «Era uma terra excelente, chamada laa. Produzia figos e
siva dos vencidos oferecidos ao deus. Outros costumes semelhan- vinha; o vinho era mais abundante do que a água; havia muito
tes destinam-se a afirmar o poder universal do Faraó em todas mel e azeite em quantidade; frutos de toda a espécie cresciam
as épocas. A de concepção mais pacífica consiste em fazer figurar nas árvores. Havia também cevada e frumento e os animais mais
ou em enumerar os tributários dos países vassalos oferecendo ao diversos eram incontáveis.» (Segundo G. Lefebvre op. cit.,
rei ou ao vizir um contributo anual em homens, rebanhos, cavalos, p. 11.)
carros e produtos de luxo.
Quanto às representações de paisagens por ocasião
Estas precauções rituais ou políticas não devem de expedições pacíficas ou guerreiras, são quase exclusi-
fazer-nos esquecer, porém, que, na prática quotidiana, a vamente reservadas às paredes dos templos, oferecen-
integração das comunidades estrangeiras no Egipto, do-se ao deus os benefícios daí retirados. Do país de
antes do i milénio, é uma evidência corroborada por Pount conservámos apenas a imagem dada pelos relevos
do templo funerário da rainha Hatchepsout, em Deir
múltiplos testemunhos.
el-Bahari. É também o único exemplo conhecido de
A julgar por um tema literário conhecido, o Egíp-
figuração de uma aldeia africana antes da Primeira
cio, quando viaja para fora das fronteiras do seu país, Época.
quando é nomeado para um cargo num protectorado
longínquo, ou quando se exila por razões políticas,
Esta encontra-se construída à beira de um curso de água no
sente a nostalgia da terra natal e aspira a regressar qual nadam tartarugas e peixes. As cabanas que o compõem são
para aí passar os últimos dias, seja qual for o acolhi- construídas sobre colunas para as quais se sobe por uma escada.
mento dispensado pelos anfitriões: A ausência de perspectiva é compensada pelas dimensões variáveis
das habitações, pela disposição irregular das árvores de incense
92 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 93
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e um terço para a mulher. O casamento, que não parece afecto. Mas, os escultores e os pintores raramente se
ser motivo para nenhuma festa familiar, era precedido, afastam de um repertório de atitudes convencionais,
como no Egipto moderno, pela entrega de uma espécie com excepção dos períodos amarniano e dos Rameses,
de dote pelo pretendente, que esperava, assim, obter que conservaram algumas cenas íntimas da família real,
a concordância do pai da noiva. A união é, então, con- eivadas de uma comovedora espontaneidade, mais pró-
cretizada pela coabitação do casal. Ao contrário do xima da nossa sensibilidade. A literatura romanesca,
que acontece com a família real, no interior da qual a por seu lado, dedica-se mais à ilustração do ciúme e do
poligamia e as relações consanguíneas se justificam pela adultério do que da ternura ou da paixão. Por sua vez,
constante preocupação de uma transmissão legítima do relatórios oficiais e textos jurídicos dão conta dos agra-
poder faraónico, estas práticas nunca foram aprovadas vos, das disputas e das discussões que agitavam os lares
pelas classes abastadas, nem pelos meios mais modestos, da época, e mesmo o harém real, local privilegiado de
que condenam e punem adultérios e violações. Por outro intrigas e rivalidades. A correspondência real ou fictícia
lado, a separação do casal é frequente, sobretudo entre também realça as relações harmoniosas, ou até amorosas,
os indigentes e o novo casamento em caso de viuvez como se pode ver nesta carta dirigida por um escriba
ou de divórcio constitui uma regra. O celibato é à sua defunta mulher:
considerado um comportamento associai. A homossexua-
lidade só é evocada em contextos mitológicos, o que «Oh! venerável sepultura de Osíris, a cantora de Amon-
não permite apreciar a atitude da sociedade egípcia a Akhtay, que repousa em ti! Ouve-me e transmite [esta] mensa-
gem. Pergunta-lhe, já que estás junto dela: "Como te sentes?
este respeito. Esta, sem mostrar uma complacência acen- Onde estás?". Dir-lhe-ás: "Que pena Akhtay não se encontrar
tuada pela expressão da sexualidade, parece condenar vivai". Assim se exprime o teu irmão, o teu companheiro.
os falsos pudores. Um erotismo requintado, precursor Que dor por ti, tão bela, sem igual. Em ti, não havia nada
do que floresce no Cântico dos Cânticos ou na poesia de feio. Chamo todo o tempo por ti, responde [àquele] que te
chama [...].»
árabe, está bem patente nos Cantos de Amor:
«[...] A ti dediquei o meu coração. As famílias egípcias tinham geralmente muitos filhos
Por ti faço o que ele desejar, mas estes não parecem tão numerosos em casa — dois
Quanto estou deitada nos teus braços; em média—, devido à elevada mortalidade infantil e
O desejo que sinto de o fazer, porque, desde muito cedo, eram confiados a escolas ou
É o brilho dos meus olhos [...].» colocados em locais de aprendizagem de um ofício.
Quando os pais se separavam, os documentos referen-
(Tradução francesa de P. Posener-Kriéger, op. cit., tes ao divórcio nunca mencionavam quem assegurava
p. 76.)
a educação dos filhos, embora estes sejam confiados ao
Desenhos, estátuas e um papiro pudicamente clas- pai em todos os casos que se conhecem. Contudo, é
sificado de «erótico» traduzem essencialmente uma provável que os recém-nascidos ficassem com as mães,
ingénua e alegre obscenidade. pelo menos durante alguns anos. Mas, o assunto nunca
As relações conjugais exprimem-se, na maior parte é ventilado e, visivelmente, não oferecia dificuldades.
das vezes, na iconografia, sob a forma de respeitoso Por outro lado, a esterilidade de um casal constitui
SABER 21Í — 7
98 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 99
tema de viva preocupação para os infelizes assim atin- o qual se abrem os diversos aposentos privados da casa, clara-
gidos pela sorte. Quando as orações e as dádivas às mente separados uns dos outros; os estábulos têm ainda outro
acesso. Das 70 divisões que formam este conjunto, cerca de um
divindades em causa não surtiam mais efeito do que os terço é ocupado por dependências, e o resto reparte-se por pátios
esforços dos médicos e dos feiticeiros, eram obrigados interiores que parecem exercer uma função de locais de transição,
a canalizar a sua afeição para filhos de terceiros. Igno- de encontro e de recepção, uma entrada com quatro colunas que
ramos, porém, se, de um ponto de vista legal, se trata devia servir de escritório do dono da casa e pequenos grupos de
quartos. As residências de Amarna são relativamente menos espa-
de uma espécie de tutela ou de uma verdadeira adopção. çosas — 1200 m2 em média — embora os diferentes corpos de
edifícios que as compõem se distribuem pelo interior de um
grande jardim cercado — de 2000 a 4000 m2. Não faltam elemen-
II — A casa tos de prestígio —pórticos, rampas de acesso, átrios, vestíbulos,
áreas de recepção —, nem de conforto — as casas de banho
fazem a sua aparição. A habitação principal, que compreende
Já por diversas vezes tivemos ocasião de referir a sempre corpos distintos, mas menos nitidamente isolados uns dos
construção e o aspecto geral das habitações em meio outros, está completamente separada, desta vez, dos sectores
urbano e em meio rural, a sua atribuição a título pro- domésticos — cozinhas, armazéns c estábulos —, situados junto
da cerca, nas traseiras da casa e dos silos que, por sua vez, se
fissional, ou de considerar o seu valor. Resta-nos obser- expõem ao olhar dos visitantes. Uma capela, rodeada de um
vá-las na sua verdadeira função, como cenário da vida pequeno jardim, possui uma entrada particular monumental e um
privada. Somos levados a classificá-las em duas grandes acesso, mais discreto, à residência. Muitas pinturas mostram cenas
categorias: as grandes residências e as quintas que reú- de banquetes abrilhantados por conceitos que reúnem a família,
nem, em volta do núcleo familiar, toda uma população ou cenas mais íntimas de mulheres em sessões de higiene, sendo
objecto de cuidados por parte das criadas.
de empregados, por um lado, e as modestas cabanas em
que vive a família em sentido restrito, por outro lado. Conhecemos ainda melhor a organização de uma casa
Como ignoramos qual o plano de uma exploração operária e a vida que aí se processa, graças aos vestígios
agrícola média, do alojamento dos trabalhadores manuais arqueológicos, etnográficos e epigráficos da aldeia de
e dos criados relativamente ao dos patrões, a maneira Deir el-Médineh.
como se desenrolavam as refeições e as relações que
todas estas populações mantinham entre si, somos for- Ocupando uma superfície que oscila entre 40 e 120 m2, apre-
çados a recorrer, para ilustrar a primeira categoria, ao sentam-se habitualmente como uma enfiada de compartimentos
plano das residências da cidade da pirâmide de Sesós- de dimensões variáveis, todos eles situados no rés-do-chão. O pri-
tris II, ao das residências dos altos funcionários da meiro, junto à ruela, apenas recebe luz da porta da entrada;
destinado ao culto dos antepassados e dos deuses ou génios pro-
capital de Amenófis IV e às cenas íntimas dos túmulos tectores da fecundidade e do parto, comportava um altar con-
do Novo Império. venientemente decorado, esteias e bustos de deuses do lar.
O segundo, situado ao nível da ruela, mais espaçoso e mais alto
As casas de Illahoun, que cobrem, cada uma delas, uma do que o primeiro, era iluminado por janelas altas dotadas de
superfície de 2400 m2, são constituídas por sectores suficiente- grades, possuía uma coluna central, escoras de pedra junto às
mente distintos para que se torne possível, à primeira vista, janelas e, muitas vezes, portas secretas recordando o patrono da
atribuir-lhes as respectivas funções: cozinhas e armazéns possuem aldeia. Amenófis I e a mãe, Ahmés Nefertari, e ainda dipinti
mmtas vezes uma entrada de serviço e comunicam por uma só variados. E a sala-de-estar, aquela em que se recebia, onde se
porta com um vestíbulo que serve o pátio, com pórtico, para tomavam as refeições e certamente, como as casas dos actuais
DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 101
100
feias, onde se dormia de noite. Um ou dois retiros ocupavam estrito quadro da aldeia, do bairro ou, quando muito,
o espaço deixado livre pela escada que conduzia ao telhado, em da região.
terraço, e ao corredor que conduzia à cozinha, por vezes comple- As fontes de que dispomos são praticamente omis-
tada, para arrumação dos géneros, por um silo ou uma cave; sas quanto a estes temas, que só raramente surgem
a cozinha, equipada com um forno para pão, com almofarizes, nos
quais as mulheres ao serviço das famílias da aldeia vinham pilar figurados e que, mesmo neste caso, só excepcional-
os cereais, com masseiras e reservatórios de água, era descoberta. mente comportam algumas indicações sobre o contexto,
Para além dos ordenamentos próprios de^cada compartimento e a identidade dos protagonistas e o significado real das
de alguns nichos nas paredes, continham um mobiliário modesto situações evocadas. Quanto aos testemunhos epistolares,
de madeira ou de pedra — bancos, cadeiras, camas, baús —, de
palha —esteiras, cestos—, cerâmica e panos. Era provavelmente não contentes por aludirem sibilinamente a temas conhe-
neste recinto fechado que se desenrolava uma boa parte do dia cidos apenas pelos correspondentes, o que é normal nas
das mulheres da aldeia e dos seus filhos recém-nascidos. Contudo, cartas, mas limita o seu interesse documental, misturam
deviam visitar-se umas às outras e conversar, junto ao fogão, assuntos pessoais e assuntos profissionais, o destinatário,
sobre os últimos mexericos da terra.
uma esposa, um parente, um homem de confiança, clis-
pondo-se a resolver toda a espécie de problemas: a vida
III — O meio envolvente privada parece ter sido muito mais pública do que hoje
se poderia admitir. Por fim, é a escolha das pessoas que
Para alérn da família e de todos os residentes em o Egípcio pretende que figurem nos seus monumentos
sua casa, o Egípcio estabelecia certamente laços de vizi- que mais nos diz sobre as suas afinidades electivas.
nhança ou de amizade com outras pessoas, como Alguns mostravam preferência pelos seus superiores,
demonstram inequivocamente certos indícios, se bem outros por simples amigos, outros ainda por fiéis servi-
que raros. Abre-se pouco, todavia, quanto à sua vida dores, consoante o seu carácter e a natureza das rela-
social, que parece desenvolver-se sobretudo em volta ções que mantinha, de facto, com uns c outros. Mas,
do mundo profissional. Mas, há circunstâncias que o mais uma vez, as informações são escassas e, em muitos
podem subtrair ao universo familiar: as grandes festas casos, convencionais.
religiosas e as manifestações oficiais da realeza nas quais, Assim, teremos de restringir o estudo unicamente
por vezes, se encontram pessoas de todos os meios, a à comunidade de Deír el-Médineh que, como é evidente,
guerra, as viagens em que o Egípcio se confronta com não nos pode dar conta de outros meios sociais. Para
costumes e mentalidades que o desconcertam, mas nas além do trabalho propriamente dito e das relações com
quais sabe estabelecer relações cordiais com os interlo- as autoridades da região, que parecem ocupar durante
cutores ocasionais, e também os mercados, que põem muito tempo os homens da aldeia, visivelmente bem
em confronto negociantes de todas as origens com as informados sobre a actualidade e as suas consequências
populações autóctones. Mas, ignora-se completamente sobre a existência, estes sacrificam-se bastante às exi-
se estes contactos conduzem, por vezes, a relações regu- gências da vida comunitária. Se os chefes têm por mis-
lares ou se são apenas epifenómenos. As raras activi- são zelar pela distribuição equitativa das rações, pelo
dades extraprofissionais do Egípcio, justas desportivas, bom funcionamento dos serviços comunitários — abas-
caça, pesca, responsabilidades municipais, práticas reli- tecimento de água, distribuição correcta do trabalho dos
giosas e demonstrações de convívio desenrolam-se no escravos por cada lar, etc. — e assegurar a calma no
,
102 DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 103
trabalho e na aldeia por meio de medidas preventivas, aldeia, em particular os chefes, e as respectivas mulhe-
com a ajuda do guarda, dos porteiros e dos polícias do res, usam títulos religiosos honoríficos que os unem
Túmulo ou, se necessário, convocando o tribunal local, aos cultos dos santuários da região, participando muito
todos, incluindo as mulheres, participam quotidiana- provavelmente nos serviços celebrados, em especial por
mente no cumprimento destas tarefas. Encarregam-se ocasião de cerimónias particulares ou das festas do deus,
da distribuição dos géneros alimentícios, emprestam ou como cantores, por exemplo.
alugam burros para esta mesma distribuição ou, respei-
tando o juramento feito ao entrarem para a equipa,
denunciam os comportamentos delituosos que surpreen- IV — As devoções
dem, ou são jurados, se for caso disso. Toda esta gestão
e estas tentativas, mais ou menos desajeitadas, de manter Os actos piedosos ocupam um lugar importante na
uma disciplina indispensável num meio submetido às vida quotidiana do Egípcio, quer seja rei, cortesão ou
tentações que constituem as sepulturas reais e o seu homem do povo. Habitante de um país rico em divin-
conteúdo não se passam sem dificuldades, e turbulências dades, privilegia, em primeiro lugar, os deuses da sua
frequentes agitam este pequeno grupo logo que uma cidade, que honra de maneira diferente conforme a sua
personalidade um pouco mais forte do que as outras situação social. Faraó, construirá templos através de
procura exprimir-se. As festividades locais e as devo- todo o Egipto, recheando-os de riquezas; nobre, man-
ções colectivas são outras tantas ocasiões quotidianas dará erguer uma pequena capela, um nicho, uma esteia
de reunião dos aldeões, assim como a atribuição de ou simplesmente uma estátua; mais modesto, quotizar-
uma concessão no cemitério e a consequente procura da -se-á com outros para proceder do mesmo modo. Poderá
entrada perdida da antiga sepultura que aí se encontra, ainda desempenhar uma função sacerdotal num santuá-
ou os trabalhos de construção do novo túmulo, que rio próximo onde cumprirá regularmente os seus deve-
reúnem os amigos dispostos a dar uma ajuda. res religiosos. Longe da sua cidade, recorda os seus
Embora as relações entre os aldeões constituam o deuses, mas entrega-se à protecção dos deuses locais
essencial dos seus contactos sociais, estes homens e e pode mesmo ocupar cargos honoríficos junto deles.
estas mulheres não vivem totalmente fechados sobre São sobretudo cartas que nos transmitem estas práticas,
si mesmos. Para além das visitas que fazem aos mem- muitas vezes proclamadas em grajfití, e o seu autor
bros da família disseminados pela região, ou das que nunca entra em pormenores sobre o assunto sem pri-
deles recebem, por ocasião de nascimentos e funerais, meiro colocar o correspondente sob a protecção dos
vão muitas vezes às aldeias ou templos vizinhos, ao deuses da cidade que o recebe, o que nos informa
mercado situado à beira do rio, ou mesmo à outra simultaneamente sobre o local de emissão do documento.
margem, para tratar de assuntos, isto é, para fazer um As grandes festas do calendário e aquelas em que
pouco de mercado negro ou algum negócio, como teste- as divindades de uma região se visitam, em viagens de
munham os contratos que legalizam estas operações e barco que se prolongam por procissões de santuário em
algumas cartas referentes aos termos da encomenda, às santuário, dão origem a feriados em que a população
instruções de execução, ou às recriminações que se da região veste os melhores fatos a fim de participar
seguem à entrega da mercadoria. Alguns homens da ou assistir. Estas festas processam-se ao longo do ano,
104 DOMINIQUE VALBELLE
romancia, astrologia, venda de feitiços são subprodutos Os soberanos do Novo Império, por seu lado, entre-
correntes destes locais sagrados. Mas, a religião, sob gavam-se mais à arte da caça, que praticavam nos deser-
todas as suas formas, não se reduz a templos e capelas. tos do Egipto e mesmo na Núbia. A caça e a pesca
Mesmo em casa, pinturas, esteias e estatuetas atraem são simultaneamente um desporto e a expressão sim-
para o lar a benevolência dos deuses, dos génios e dos bólica da vitória do Faraó, e dos súbditos, sobre as
defuntos. Os gestos de devoção individual ou familiar forças do mal. Processam-se, ainda, nos pântanos do
não são raros. A conservação do culto dos mortos cons- Fayum ou do delta: aí, já não se trata de leões, nem
titui, evidentemente, a manifestação mais banal, mas de órix nem de búfalos, perseguidos e crivados de
as peregrinações à cidade de Abidos, junto de Osíris, flechas, mas de crocodilos e hipopótamos, apanhados a
o príncipe dos Ocidentais — dos mortos — tornam-se arpão, de caça marinha pescada à rede, como peixes,
correntes a partir do Império Médio. ou atingida em pleno voo com a ajuda de uma arma de
arremesso. Os combates desportivos também tinham
os seus adeptos. Luta e jogos de competição eram alvo
V — O lazer de atenções e os feitos de Amenófis II no tiro ao arco
foram considerados dignos da construção de uma esteia
O rei aborrece-se. Para o distrair, os filhos contam- destinada a comemorá-los.
-Ihe, cada um por sua vez, os prodígios acontecidos A dança, bem como a música e o canto, têm muitas
no tempo dos antepassados. É o encadeamento esco- vezes uma conotação religiosa, mesmo quando se expri-
lhido pelo autor dos contos do papiro Westcar para mem num quadro profano. Contudo, os concertos ser-
introduzir as suas histórias. Uma delas refere-se ao viam de complemento requintado dos banquetes, tão
fundador da ni dinastia, Senéfru, que já nesse tempo apreciados pelos Egípcios, a julgar pelos relevos e pin-
carecia de diversões. O seu mago, precursor dos nossos turas dos túmulos e pelos instrumentos de música que
produtores de revistas parisienses, não foi apanhado acompanhavam os restos mortais de operários, mesmo
desprevenido: dos mais modestos, que viveram na xvin dinastia.
O teatro limitava-se a dramas mitológicos e não parece
«Que Sua Majestade se dirija para o lago do palácio — vida,
saúde, força. Manda equipar uma barca com todas as jovens boni- ter saído dos recintos sagrados, ao contrário do que
tas que se encontrem no palácio. O coração de Sua Majestade aconteceu com outros géneros literários: contos, epo-
divertir-se-á ao vê-las remar, para cima e para baixo [...].» peias míticas, fábulas, máximas e composições poéticas
lidos ou recitados em público. Os jogos de sociedade
A ideia seduziu o monarca: existem desde as épocas mais remotas e alguns deles
«Vou certamente organizar um passeio aquático. Tragam-me
eram colocados na sepultura com o único fim de dis-
vinte remos de ébano com incrustações de ouro e cabo de sân- trair o morto. Havia o jogo da serpente e outros jogos
dalo (?) enfeitado de ouro fino. E tragam-me vinte mulheres, de dados e piões semelhantes aos actuais. Figuram, de
bonitas de corpo e de peito, de cabelos entrançados e que ainda resto, nas vinhetas do Livro dos Mortos. A invenção de
não tenham tido filhos. E tragam-me ainda vinte cortes de tecido
arrendado para entregar às mulheres, depois de se despirem.» palavras cruzadas literárias constituía uma maneira de
(Segundo G. Lefebvre, op. cit., p. 78.) passar o tempo mais intelectual. Mas todos estes jogos,
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AS MODALIDADES DO QUOTIDIANO
I — A alimentação
O Egipto dispunha de alimentos de toda a espécie sumo corrente, enquanto as gorduras animais e vegetais
e, se importa do estrangeiro, é porque se pode oferecer são indiferentemente utilizadas.
esse luxo, luxo que parece abranger, em diversos graus, Todos estes produtos nos foram transmitidos por
a maior parte das categorias sociais, uma vez que se imagens, pelo nome e pelos vestígios que a secura excep-
encontram etiquetas de jarros de vinho e de recipientes cional do clima por vezes preservou até hoje, mas os
de óleo estrangeiros mesmo nas aldeias dos operários hábitos culinários que presidiam à sua preparação man-
do Faraó. De testo, talvez se trate de presentes ofere- têm-se herméticos a ponto de ser legítimo perguntai-
cidos pelo próprio Faraó por ocasião de jubileus, por se, para além de alguns princípios elementares de coze-
exemplo. A base da alimentação é o pão e a cerveja, dura, se pode verdadeiramente falar de culinária. Na
fabricados respectivamente com frumento e cevada. verdade, é visível, por vezes, nas paredes dos túmulos,
A distinção entre pães e bolos não é muito nítida e, o acto de grelhar uma ave, assar um pedaço de carne
entre as dezenas de variedades existentes, algumas eram de vaca ou cozer algumas pecas com osso. Mas, nada
contempladas com a adição de leite, tâmaras ou mel. mais, a carne nunca é preparada, os legumes nunca
Assim, encontram-se algumas espécies de cerveja, e são cortados em pedacinhos, às rodelas. Não é conhe-
outras bebidas fermentadas, à base de tâmaras, como cida a mais elementar receita de cozinha, de pastelaria
por exemplo a seremet. Quanto ao vinho, embora a sua ou de molho. Os textos que louvam os méritos de uma
preparação seja um tema apreciado por pintores e mesa ou comentam uma refeição referem-se ao cerimo-
escultores, é essencialmente uma bebida servida em fes- nial ou à disposição dos alimentos, mas nunca aos
tas. Se as carnes não entram nas ementas quotidianas, talentos do dono ou da dona de casa. Talvez a cozinha
os Egípcios nem por isso deixam de as consumir mais não fosse objecto de transmissão oral. A curiosidade
do que durante muito tempo se pensou, como mostram gastronómica dos Franceses não pode ser satisfeita.
estudos recentes. Este consumo não se limitava à carne Porém, os banquetes, mesmo num contexto familiar,
de vaca, de caça e às aves de capoeira que ornamentam parecem momentos privilegiados da vida dos Egípcios
sobretudo os altares dos deuses e as mesas dos mortais: e as atenções de que os rodeiam — flores, cones cie per-
incluía igualmente cabras, carneiros e porcos, mais bara- fume, concertos — são comparáveis aos nossos arranjos
tos e abundantes nas aldeias. Mas, era sobretudo o florais, candelabros e ambientes musicais. Não se pense,
peixe, tão comum no Nilo, no Mediterrâneo e no Mar contudo, que anfitriões e convidados se sentavam ale-
Vermelho, que se encontrava em todas as mesas. Tanto gremente à volta de uma grande mesa, ou se sentavam
a carne como o peixe, quando não se comiam frescos, em almofadas em volta de um tabuleiro. As figurações
podiam ser secos ou conservados. De acordo com os mostram-nos sentados lado a lado em cadeiras ou ban-
tabus próprios das divindades de cada região, certos quinhos, não muito longe de aparadores carregados de
animais eram localmente protegidos ou proscritos. manjares, e servidos por um grande número de criados,
O Egipto cultivava um grande número de legumes e enquanto músicos e cantores os distraíam. Ao contrário
de plantas aromáticas e toda a espécie de frutos, como do que acontece com estes, vivos e graciosos, os con-
se pode ver nas figurações e nos restos recolhidos de vivas parecem demasiado ocupados em aspirar o aroma
túmulos e habitações. O leite e os lacticínios encon- da flor de lótus que têm na mão e em equilibrar, sobre
tram-se presentes mas não parecem fazer parte do con- a peruca, o cone de gordura aromática que derrete len-
DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 113
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tratado das doenças do estômago, tratado de patologia identificados e só muito raramente existe alguma seme-
externa e de cirurgia óssea, etc. — e de colecções lhança entre o vestuário de linho fino, plissado e trans-
de receitas classificadas por capítulos — olhos, ouvi- parente que homens e mulheres usam com elegância
dos...—, que ora referem remédios caseiros, ora de nas pinturas, nos baixos-relevos e nas estátuas de cer-
feiticeiros. Estes métodos, para nós contraditórios, eram tas épocas e os testemunhos mais ou menos grosseiros
então considerados pelos médicos, e pelos doentes, per- que chegaram até nós. A nudez não é encarada como
feitamente compatíveis, ou mesmo complementares. nas nossas civilizações modernas. É própria da infância.
Apesar das intervenções exigidas pelos costumes e pelos Quanto aos adultos, o homem encontra-se muitas vezes
embalsamamentos, os Egípcios não pareciam possuir um de tronco nu, vestido com uma tanga curta quando exe-
conhecimento muito desenvolvido da anatomia do cuta um trabalho manual, ou com uma tanga mais
corpo humano. Por outro lado, a ginecologia e a obste- comprida nos outros casos, e a mulher usa, muitas vezes,
trícia preocupavam muito os médicos, que descrevem uma saia vaporosa de alças largas que deixam ver o
doenças, deformidades e remédios. As inflamações peito; de resto, o corpo apresenta-se frequentemente
oculares, os traumatismos de toda a ordem e as pertur- coberto com véus transparentes que o valorizam; as
bações da digestão, juntamente com as várias espécies criadas, por vezes, limitam-se a ocultar o sexo. Como
de febres, são os males mais frequentes. Desde o Antigo roupa interior, o homem usa uma pequena tanga trian-
Império que se conhecem médicos. Seja qual for o seu gular; não conhecemos peças de roupa interior feminina.
título e a sua função, recebem uma formação mais ou Os operários do Túmulo recebiam, como outras
menos científica ou mágico-religiosa nas Casas de Vida categorias de funcionários, vestuário de trabalho: túni-
e nos templos e tratam ao mesmo tempo a manifesta- cas (mss) e tangas curtas (rwdw), tangas compridas ou
ção dos males por meio de poções, unguentos, fricções, grandes xailes (d3iw) para os chefes. Na corte de
etc., e as causas — um gesto que despertou a raiva Séti I, em Mênfis, as mulheres-escravas são dotadas
de uma divindade, por exemplo — por meio de encan- destas duas primeiras categorias de vestuário e a ter-
tamentos, do uso de um amuleto adaptado à situação ou ceira aparece no guarda-roupa das damas. O carácter
de um ex-voto ao deus enfurecido. unissexo dos fatos mais simples é compreensível: a
maior parte limita-se a cortes de tecido de linho de
dimensões variadas que podem usar-se de acordo com
III — O vestuário as situações e as modas; a única verdadeira peça de
vestuário que o Egípcio parece ter conhecido é a túnica.
Para definir as diferentes maneiras de vestir dos Existiam, contudo, vários modelos, como mostram cla-
Egípcios, dispomos de várias categorias de documentos:
ramente as representações: curtas ou compridas, amplas
o próprio vestuário, quando conservado, as listas desti-
nadas a controlar a lavagem da roupa, a distribuição ou justas. Os exemplares conservados dividem-se em
de vestuário, ou a sua menção em contratos, e a icono- dois grupos. O primeiro compreende peças de um só
grafia. Estas três fontes, a priori complementares, não corte, em que o decote foi aberto e os lados cosidos,
encaixam, muitas vezes, umas nas outras. Poucos nomes deixando uma abertura para os braços. O segundo
de tecidos e de peças de vestuário foram correctamente abrange várias peças de vestuário semelhantes aos actuais
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