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ROMA

NO APOGEU DO IMPÉRIO

JÉRÔME CARCOPINO

CÒMPANHIA
A reconstituição do dia-a-dia dos
habitantes de Roma nos séculos I e
II d.C., feita pelo eminente latinista
francês Jérôme Carcopino, reserva
uma série de surpresas para o leitor
de hoje. A “Roma” que todos
julgam conhecer tão bem como
um padrão de civilização na
Antiguidade tem, na verdade,
muito pouco a ver com a realidade
da Roma imperial, recuperada
através de enorme variedade de
fontes — textos da época,
inscrições, relatos de viajantes,
escavações arqueológicas. Chama
a atenção, no vasto painel traçado
por Carcopino, a semelhança da
vida cotidiana dos romanos no
início da era cristã com a dos
habitantes das grandes metrópoles
modernas. Ambos enfrentam
os mesmíssimos problemas: falta
de segurança nas ruas,
engarrafamentos de tráfego, baixa
qualidade do ensino público,
aluguéis residenciais exorbitantes,
tramóias de inquilinos e
proprietários, advogados
inescrupulosos etc.
Para essa Nova York da
Antiguidade afluía toda a riqueza
de um dos maiores impérios que
o mundo já conheceu. A cidade de
mármore, renovada por Augusto,
tomou-se uma verdadeira babel de
línguas, povos, culturas e religiões
que conviviam nos limites de uma
moralidade bem distante daquela
Roma no apogeu
do Império
Coleção “A vida cotidiana”

Paris no tempo do Rei Sol — Jacques Wilhelm


A Itália no tempo de Maquiavcl — Paul Lari vai lie
A República de Weimar (1919-1933) — Lionel Richard
A Holanda no tempo de Rembrandt — Paul Zumthor
No tempo dos cavaleiros da Távola Redonda — Michel Pastoureau
O faroeste (1860-1890) — Claude Fohlcn
O Egito no tempo de Ramses — Pierre Montet
A Rússia durante a Revolução de Outubro — Jean Marabini
Berlim no tempo de Hitler — Jean Marabini
Indios e jesuítas no tempo das Missões — Maxime Haubert
Os deuses gregos — Giulia Sissa e Marcel Detiennc
Os homens da Bíblia — André Chouraqui
No mundo do jazz — François Billard
Os astccas na véspera da conquista espanhola — Jacques Soustelle

A sair:

A vida cotidiana no tempo de Pedro II (1831-1889) — Frederic Mauro


Viena no tempo de Mozart e de Schubert — Marcel Brion
Jérôme Carcopino

Roma no apogeu
do Império
Prefácio de
Raymond Bloch

Companhia Das Letras


DmLm de GtalogâçJo na Publicação (CIP) Iniernacional
(Câmara Brasileira do livro. SP. Braiil)

Carvopino. Jcrôme. 1881-1973.


Roma no apogeu J<» Império / Jérômc Carcopino;
prcíkiode Raymond Bloch; [tradução Hildegard Feist).
— SJo Paulo: Companhia Jat Letras: Circulo do Livro.
1990. — (A vida cotidiana)

Bibliografia.
ISBN 85-7164-153-6

I. Roma • História • Império. 30 1.C.-476 2. Roma -


Usos e costumes L Titulo. II. Série.

CDD.937.06
93-1945 -390.0937

índices para catálogo sistemático


1. Império Romano: História. 31 a.G-476 937.C6
2. Roma antiga: Costumes 390.0937
3. Roma antiga: Império: História. 31 a.C.-476 937.06
4. Roma antiga: Vida social e costumes 393.0937

EDITORA SCHWARCZ LTDA.


Rua Tupi, 522
01233 Sào Paulo, SP
Tel: (011) 8261822
Fax: (011) 8265523
CÍRCULO DO LIVRO S.A.
Caixa postal 7413
01051 São Paulo, Brasil
Edição integral
Título do original: "La vie quotidienne a Rome a Papogce de l’empire”
Copyright © 1939 Librairie Hachcttc
Tradução: Hildegard Feist
Revisão de originais: Mineo Takatama
Revisão de provas: Círculo do Livro
Capa: Ettore Bottini sobre quadrinho de mosaico encontrado em Pompéia:
"São três músicos ambulantes que levam máscaras de teatro e um menino
os olha", Nápoles, Museu Arqueológico (Companhia das Letras); layout de
Natanael Longo de Oliveira sobre "Preparação de um concerto", Nápoles,
Museu Nacional (Círculo do Livro)
Licença editorial por cortesia de Éditions Hachcttc

Venda permitida apenas aos sócios do Círculo

Composto, impresso c encadernado pelo Círculo do Livro S.A.

2468 10 97531

91 93 95 94 92
Ao professor Émile Sergent,
ao mestre de meu filho Antoine,
ao médico e ao amigo.

SUMÁRIO

PREFÁCIO........................................................................... 11

PREFÁCIO DO AUTOR................................................... 13

PRIMEIRA PARTE
O QUADRO DA VIDA ROMANA

SEÇÃO I
O meio físico: a cidade, suas casas e sua polícia................ 19

CAPÍTULO I
Esplendor, extensão, população da Urbs............................ 21
Esplendor da Urbs: o foro de Trajano — As mura­
lhas de Roma e sua verdadeira extensão — O cres­
cimento da população romana

CAPÍTULO II
As casas e as ruas, grandezas e misérias da Antiguidade. 41
Aspectos modernos da casa romana — Aspectos ar­
caicos da casa romana — As ruas de Roma e a cir­
culação

SEÇÃO II
O meio moral....................................................................... 73

CAPÍTULO I
A sociedade: as castas censitárias e o poder do
dinheiro............................................................................... 75
Hierarquia igualitária e cosmopolitismo — A escra­
vidão e as alforrias — Confusão dos valores sociais
— Os modelos de vida e a plutocracia

7
CAPÍTULO II
O casamento, a mulher c a família: virtudes c vícios... 99
O enfraquecimento do pátrio poder — O noivado
c o casamento — Emancipação e heroísmo da mu­
lher romana — Feminismo e desmoralização — Os
divórcios e a instabilidade da família

CAPÍTULO III
A educação, a cultura, as crenças: sombras e luzes........ 127
Sintomas de decomposição — A escola primária
— O ensino formalista do gramático — A retórica
irreal — Decadência da religião tradicional — Pro­
gresso das místicas orientais — Ascensão do cris­
tianismo

SEGUNDA PARTE
O EMPREGO DO TEMPO

CAPÍTULO I
As divisões do dia, o despertar e a toalete........................ 171
Os dias c as horas do calendário romano — O des­
pertar — A toalete do romano: o tonsor — A toale­
te da matrona: a omatrix

CAPÍTULO II
As ocupações........................................................................ 209
Os deveres da clientela — Comerciantes e trabalha­
dores braçais — A justiça e a política — As leituras
públicas

CAPÍTULO III
Os espetáculos...................................................................... 241
"Panem et circenses”— O regime do lazer — As cor­
ridas — O teatro — O anfiteatro e suas matanças
— Reações tímidas e supressão tardia

8
CAPÍTULO IV
O passeio, o banho e o jantar...................... 291
Passeios, jogos e prazeres —- As termas — A cena

NOTAS.............................................................................. 321

BIBLIOGRAFIA................................................................ 355

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR............................. 357

O AUTOR E SUA OBRA............................................. 361

9
PREFÁCIO

Foi em 1939, pouco antes da última grande guerra, que


se publicou Roma no apogeu do Império. Lembro-me bem
desse fato. Jérôme Carcopino era diretor da École Française
de Roma, e eu acabava de chegar ao Palácio Farnese, acom­
panhado de outros membros da École. Especialistas em An­
tiguidade, Idade Média e Renascimento, reuníamo-nos numa
das salas da biblioteca, cujas janelas se abriam para o majes­
toso pátio do palácio. Jérôme Carcopino costumava sair de
seu gabinete para nos fazer visitas amistosas. Um dia, sem
dizer nada, colocou sobre nossa mesa de trabalho um novo
livro, seu Roma. Não sabíamos ainda que estávamos rece­
bendo um fiel companheiro de estudos.
A nova edição, que hoje vem à luz — e, cabe dizer, resti-
tui a integralidade do texto original, acrescentando apenas
uma bibliografia complementar no final do volume —, não
envelheceu, não mostra nenhuma ruga. Nela as novas gera­
ções de estudantes encontrarão um indispensável instrumento
de trabalho. Vale a pena refletir sobre as razões de um fato
tão raro.
Jérôme Carcopino possuía um domínio excepcional das
diferentes disciplinas auxiliares da história antiga: o estudo
crítico dos textos literários, a análise das inscrições, o senti­
do do objeto. Tinha, assim, o contato mais direto com as
realidades da história de Roma e se sentia um pouco como
um cidadão da Urbs. Desse fato advém essa espécie de desen­
voltura soberana com que soube reconstituir o quadro da
vida romana e seus detalhes.
Isso não quer dizer que muitas vezes — ele mesmo o re­
conhece — não tivessem surgido dificuldades. Até que pon­
to podia confiar nas testemunhas da época — num Marcial,
num Juvenal, empenhados acima de tudo em elaborar os mais
mordazes epigramas e sátiras sobre seus contemporâneos? Co­

ll
mo calcular a população da Roma imperial, estimada de for­
mas tão diferentes pelos eruditos modernos? Como conciliar
a elevada conduta moral de tantos pensadores romanos, a
qualidade da civilização do Alto Império, com os aplausos
desumanos que por toda a arena saudavam a morte do gla­
diador vencido?
Diante de problemas desse tipo, o verdadeiro historia­
dor sabe julgar ponderadamente, adotar as soluções condi­
zentes com os dados seguros da tradição c destrinçar as
aparentes contradições. Neste livro Jérôme Carcopino con­
seguiu reconstituir, como um pintor fiel, todos os traços de
um rosto desaparecido e devolver-lhe a vida, utilizando to­
das as cores de uma rica paleta. A meu ver, nada poderá di­
minuir o frescor e a autenticidade de sua obra.

Raymond Bloch
Ecole Pratique des Hautes Études
PREFÁCIO DO AUTOR

Sc nao queremos que a “vida do romano** se perca nos


anacronismos ou se imobilize na abstração, devemos come­
çar por estudá-la no círculo concreto de um período estrita­
mente definido. Nada muda tão rápido quanto os hábitos
dos homens. Sem falar da revolução que alterou completa­
mente o mundo atual — as recentes descobertas da ciência,
o vapor, a eletricidade, o trem, o automóvel e o avião —,
é evidente que, mesmo cm épocas de técnicas menos apri­
moradas e de maior estabilidade, as formas elementares da
existência cotidiana continuam se modificando com rapidez.
O café, o fumo, o “champanha” passaram a ser consumidos
apenas no século XVII; a batata passou a freqüentar a cozi­
nha no final do XVIII; a banana, a fazer parte de nossa so­
bremesa no começo do XX. A Antiguidade romana também
conheceu a lei da mudança; e era já um lugar-comum de sua
retórica opor ao luxo e aos refinamentos dos séculos impe­
riais a grosseira simplicidade da República, quando um Cu-
rius Dentatus “colhia magros legumes e os cozinhava num
pequeno fogareiro”1. Entre épocas tão distintas, não há re­
gra comum referente à alimentação, à moradia ou ao mobi­
liário:

“Tales ergo cibi quails domus atqtie supellex”2’,

e, como é preciso escolher, irei ater-me deliberadamente à


geração que, nascida no final do principado de Cláudio ou
no começo do reinado de Nero — em meados do século I
a.C. —, chegou aos tempos de Trajano (98-117) e Adriano
(117-138). Ela assistiu ao apogeu do poderio e da prosperida­
de de Roma. Testemunhou as últimas conquistas dos césa­
res: a Dácia (106), que derramou sobre o Império o Pactolo
das minas de ouro transilvanas; a Arábia (106), que, comple­

13
tada com os sucessos da campanha contra os partas (115),
fez afluírem, sob a proteção dos legionários da Síria c de
seus aliados do deserto, as riquezas da índia e do Extremo
Oriente. Do ponto de vista material, ela se elevou, portan­
to, ao nível superior das antigas civilizações. E, ao mesmo
tempo, por uma feliz coincidência (alguns anos depois a li­
teratura latina se esgotará), essa geração deixou documentos
que nos oferecem o retrato mais nítido da época. Um imen­
so material arqueológico vem à luz do foro de Trajano, em
Roma, das ruínas de Pompéia e Herculano, as duas cidades
de prazer sepultadas vivas na erupção de 79, e também das
ruínas de óstia, reveladas por pesquisas recentes, que, no con­
junto, datam da implantação dos planos urbanísticos do im­
perador Adriano, nessa grande cidade mercantil. A esse
material acrescentam-se depoimentos vivos e pitorescos, pre­
cisos e saborosos, prodigalizados pela pena de Pctrônio, as
Silvas de Estácio, os Epigramas de Marcial, as Cartas de Plí­
nio, o Jovem, as Sátiras de Juvenal. Aqui a sorte realmente
favoreceu o pintor, pois fornece ao mesmo tempo o direito
e o avesso do quadro.
Este, porém, só será verídico e fiel se estiver solidamen­
te ligado ao ambiente que não apenas o rodeia, mas o deter­
mina. Mesmo estacionada num ponto fixo da história, a vida
dos romanos não teria consistência nem base se fôssemos in­
capazes de limitá-la no espaço, no campo ou na cidade. Ho­
je a multiplicidade dos meios de comunicação, a difusão dos
jornais, a extensão da energia elétrica, as pequenas aldeias,
a presença de aparelhos de rádio em humildes choupanas le­
vam até aos sítios solitários um pouco do barulho, do pen­
samento e dos prazeres das capitais, e não obstante existe uma
enorme distância entre a monotonia da vida camponesa e
a agitação fervilhante dos centros urbanos. Ora, a distância
que separava os citadinos e os camponeses da Antiguidade
era bem maior. Criava entre eles uma desigualdade tão re­
voltante que, segundo o historiador Rostovtseff, jogou-os uns
contra os outros numa luta surda e encarniçada em que, com
a cumplicidade dos párias, rompeu-se o dique erguido pelos
privilegiados contra o fluxo dos bárbaros. Para uns, com efei­
to, todos os bens da terra e todas as comodidades. Para ou­
tros, um trabalho duro, sem fim nem lucros, e a privação

14
constante das alegrias, que, nas cidades, aqueciam o coração
dos miseráveis: a alacridade da palestra, o calor das termas,
o prazer dos banquetes das corporações, a abundância das
espórtulas, o brilho dos espetáculos. Não podemos mistu­
rar cores tão contrastantes; mais uma vez é preciso optar:
os dias dos romanos, súditos dos primeiros Antoninos, que
pretendemos acompanhar em momentos sucessivos, se pas­
sarão exclusivamente na cidade, ou melhor, na “Cidade” por
excelência — na Urbs —, em Roma, centro c cimo do uni­
verso, rainha orgulhosa e satisfeita de um mundo que pare­
ce então ter pacificado em definitivo.
Contudo, não poderiamos captar essa existência se não
tentássemos, de antemão e livres das convenções que a desfi­
guram, ter uma idéia sumária, porém adequada, dos meios
em que ela transcorreu e dos quais necessariamente tomou
as cores: o meio físico da imensa aglomeração na qual se in­
sere; o meio social das classes distintas cuja hierarquia a co­
manda; o meio moral dos sentimentos e das idéias que ex­
plicam seus méritos e suas fraquezas. Assim, abordaremos
apenas o uso que esse romano de Roma faz do tempo, de­
pois de traçar as grandes linhas do quadro onde ele viveu
e fora das quais sua vida cotidiana seria quase ininteligível
para nós.

La Ferté-sur-Aube, 1? de setembro de 1938.

15
PRIMEIRA PARTE

O QUADRO DA VIDA
ROMANA
SEÇÃO I

O MEIO FÍSICO: A CIDAJDE,


SUAS CASAS E SUA POLICIA

Os traços que marcam a fisionomia material da Roma


imperial esbarram em oposições que seriam irredutíveis sem
os acordes da história e da vida.
Por um lado, o considerável número da população, bem
como a grandiosidade arquitetônica e a beleza marmórea dos
edifícios públicos, aparentam-na com as grandes metrópoles
do Ocidente contemporâneo. Por outro, a maneira como con­
denava as multidões a viver apinhadas num terreno aciden­
tado e numa área restrita pela natureza e pelos homens, o
estrangulamento das ruas intricadas, a penúria dos serviços
prestados pela edilidade, as perigosas dificuldades de sua cir­
culação a aproximam das cidades medievais descritas pelos
cronistas e das quais algumas cidades muçulmanas conserva­
ram até hoje o pitoresco fascinante e sórdido, as deforma­
ções imprevistas e o fervilhamento anárquico.
E esse contraste essencial que se deve mostrar em pri­
meiro lugar.
CAPÍTULO I

ESPLENDOR, EXTENSÃO,
POPULAÇÃO DA “URBS”

Esplendor da "Urbs”: o foro de Trajano

Não precisarei insistir no esplendor que se irradiava pe­


la Cidade no começo do século II d.C. A beleza das ruínas
que o refletem é incomparável; no entanto, seria fastidioso
enumerá-las e, com maior razão ainda, descrevê-las uma a
uma. Basta nos determos por um momento no grupo daquelas
a que o nome de Trajano está ligado e nas quais culmina o
gênio de seu século1. Com efeito, se por toda parte, à luz
cálida que as envolve, elas conservam a harmoniosa força dos
monumentos, dos quais, entretanto, em geral nos mostram
apenas a estrutura desnuda, em nenhum outro lugar, talvez,
como no foro de Trajano — que, situado no centro da Urbs,
ligava o foro de César ao de Augusto —, elas nos inspiram
uma idéia tão nobre e ao mesmo tempo tão satisfatória para
nós da civilização cujas riquezas nos expõem, da sociedade
cuja disciplina relembram, dos homens — nossos ancestrais
e semelhantes — cujo valor intelectual e cujo domínio artís­
tico expressam. Nesse período, de fato, entre 109 e 113, Tra­
jano soube realizar uma obra que não só suscita nossa
admiração, como corresponde a nossas tendências. Pela am­
plitude da concepção, pela ágil complexidade e pela genero­
sa utilização das panes, pela suntuosidade dos materiais, pela
ousadia e pela harmonia das linhas, pela disposição e pelo
movimento da decoração, esse conjunto — que podemos res­
suscitar graças às recentes escavações de Corrado Ricci — fa­
cilmente rivalizaria com as mais ambiciosas criações dos
arquitetos modernos, e sua ruína não parou de lhes fome-

21
ccr lições c modelos. Expressão brilhante e fiel de sua época,
dir-se-ia que, ademais, vai aproximá-lo da nossa.
Malgrado as dificuldades que os acidentes do terreno c
a vizinhança incômoda dos monumentos anteriores coloca­
ram para seu desenvolvimento, o conjunto agrupava da ma­
neira mais coerente c harmoniosa uma praça pública ou foro,
uma basílica judiciária, duas bibliotecas, a famosa coluna que
se erguia entre os dois edifícios c um imenso mercado co­
berto. Não se sabe em que data este último foi concluído,
mas com certeza o construíram antes da coluna, cuja altura,
como veremos, foi deteminada pela altura daquela constru­
ção. Trajano inaugurou o foro e a basílica em 1? de janeiro
de 112; a coluna, em 13 de maio de 113. O conjunto se trans­
forma numa sequência de desafios e magnificências.
Primeiro, começando pelo sul, a simplicidade majestosa
do Forum propriamente dito: uma vasta esplanada pavimen­
tada de 116 metros de comprimento por 95 de largura, ro­
deada por um pórtico sustentado do lado da entrada, ao sul,
por uma fileira de colunas simples e por uma colunata du­
pla nos três outros lados; a leste, o muro de fundo, de rocha
vulcânica revestida de mármore, arrendondava-se ao centro
num hemiciclo de 45 metros de profundidade. No centro
da praça erguia-se a estátua eqüestre do imperador, feita de
bronze dourado; à guisa de cortejo, situavam-se nos interco-
lúnios do perímetro as estátuas mais modestas de homens
ilustres que, com a espada ou a palavra, serviram o Império.
Subindo três degraus de mármore amarelo, entrava-se na Ba­
sílica Ulpia, assim chamada em homenagem à família de Tra­
jano: Ulpius. Com 159 metros de comprimento, de leste a
oeste, e 55 de largura, de norte a sul, situada 1 metro acima
do foro, a basílica o superava em opulência. Era um imenso
hall hipostilo, do tipo orientalizante, ao qual se acedia, a les­
te, por um de seus grandes lados. Dividido por quatro colu­
natas internas — noventa e seis colunas no total — em cinco
naves de 130 metros de comprimento, atingindo a do cen­
tro 25 metros de largura, pavimentado em toda a extensão
com mármores de Luna e coberto com telhas de bronze, o
hall era circunscrito por um pórtico, cujos vazios eram preen­
chidos por esculturas, o ático era adernado com baixos-relevos
notáveis ora pela suavidade dos contornos, ora pela intensi-

22
*< • - . I I • • • •* • •

dadc do movimento, e, eníim, o cntablamento superior re­


petia várias vezes, em cada face, a breve e orgulhosa inscri­
ção "e manubiis”: erguido com o butim (tomado aos dácios
de Dccébalo
*). Mais além, elevando-se acima do nível infe­
rior da basílica com a mesma altura com que dominava o
foro, estendiam-se, paralelamentc a ela, os retângulos das duas
bibliotecas “ulpianas”, também nomeadas a partir do “gen-
tílico” de seu fundador comum: uma para as obras gregas,
a outra para as obras latinas e os arquivos imperiais; ambas
decoradas, acima dos plutei, ou armários, que continham os
manuscritos, com uma série de bustos dos escritores que con­
quistaram a maior fama nas duas línguas do Império.
Separava as duas bibliotecas um estreito quadrilátero de
24 por 16 metros, no meio do qual se erguia, e se conserva
ainda hoje, quase intata, a maravilha dessas maravilhas: a Co­
luna de Trajano. Forma o pedestal um cubo de pedra quase
perfeito, com 5,50 metros de altura. Na face sul do pedestal
há uma porta de bronze, sobre a qual se lia a inscrição co­
memorativa; nas três outras faces, coleção de armas; e nas
quatro bordas, toros entrelaçados de louros. O fuste, todo
de mármore, mede 3,70 metros de diâmetro e 29,77 metros
de altura. Encerrando uma escada de cento e oitenta e cinco
degraus de mármore branco, em espiral, que parte da câma­
ra do pedestal, o fuste sustenta um capitel dórico e monu­
mental; sobre este último havia, a princípio, uma águia de
bronze com as asas abertas e, depois, uma estátua de Traja­
no, então falecido, também de bronze, que provavelmente
foi retirada e fundida na tormenta das invasões; em 1588 seu
lugar foi ocupado pela estátua de são Pedro, que se encontra
até hoje ali. A altura total media aproximadamente 38 me­
tros, que correspondem aos 128 pés e meio indicados nos
documentos antigos. Entretanto, por mais grandiosas que se­
jam as proporções da Coluna de Trajano, seu efeito é am­
pliado pela disposição externa dos blocos que a compõem.
De fato, sobre os dezessete tambores de mármore colossal,
estendem-se as vinte e três voltas de uma espiral que, em li­

* Rei dos dácios; derrotado por Trajano em 103, obteve permissão para con­
tinuar usando a coroa; em 105, revoltou-se e, novamente vencido, suicidou-se.
(N. da T)

23
nha reta, mediría cerca dc 200 metros; ao longo da espiral,
da base ao capitel, sucedem-se as principais cenas das duas
guerras dácias, dispostas cronologicamente, desde o início da
primeira campanha até o final da segunda. Aliás, os baixos*
relevos foram executados com habilidade para esconder as
quarenta c três janelas que, abertas entre eles, permitem a
iluminação da escada interna; e as duas mil c quinhentas fi­
guras ali enumeradas, que, hoje, devido às injúrias das intem­
péries, recuperaram os tons quentes mas uniformes do Paros
no qual foram cinzeladas e outrora brilhavam com as cores
vivas de sua pintura, proclamam o triunfo dos escultores ro­
manos nesse gênero do relevo histórico em que são mestres.
Após a morte repentina dc Trajano nos primeiros dias
de agosto de 117, quando voltava para a Itália depois de en­
tregar a Adriano o comando do exército que mobilizara con­
tra os panas, suas cinzas foram transportadas da Ásia a Roma,
colocadas numa urna de ouro e depositadas na câmara do
pedestal da coluna. Mas se, atribuindo a Trajano essa sepul­
tura, do lado de cá da linha pomerial, no interior da qual
as leis proibiam enterrar os simples mortais, seu sucessor
Adriano e o Senado declararam em uníssono que o defunto
escapava à condição comum, tomaram uma iniciativa que
Trajano não desejara nem previra. Apenas mais tarde, a Co­
luna de Trajano se tornaria o túmulo de seu autor, que deci­
dira erigi-la com duas finalidades comemorativas: eternizaçâo
das vitórias sobre o inimigo externo, com as representações
que a recobrem, e imortalizaçao do esforço sobre-humano
pelo qual vencera a natureza para o embelezamento e a pros­
peridade de Roma, com as dimensões insólitas da obra. So­
bre isso, as duas últimas linhas da inscrição — da qual restam
apenas algumas letras, mas que no século VII foi copiada na
íntegra por um desconhecido a quem chamamos o Anôni­
mo de Einsiedeln — anunciavam sua intenção numa frase cujo
sentido é claro: "Ad declarandum quantae altitudinis mons
et locus tantis operibus sit cgestus”. Como em latim o verbo
*‘egerere” tem as duas acepções contraditórias de “esvaziar”
e “elevar”, é claro que, ao se interpretar literalmente a frase
orgulhosa, a coluna se destinava a demonstrar com sua altu­
ra e a custo de muito trabalho que o espigão (mons), que avan­
çava da colina do Quirinal para a do Capitólio, havia sido

24
nivelado c pouco a pouco recoberto no local (locus) por cons­
truções gigantescas, que a leste completavam a obra cuja vi­
são e cujo acesso a fé científica de Corrado Ricci terminou
de revelar cm 1932. Trata-se evidentemente do majestoso hc-
miciclo dc tijolos que, do lado do Quirinal e do Subura
*, ro­
deia o foro dc Trajano propriamente dito c com soberana
elegância suporta os cinco andares nos quais se localizavam
cento c cinquenta lojas, ou tabernae, dc um “mercado”. No
térreo abrem-se os aposentos pouco profundos, onde, no mes­
mo nível do foro, provavelmente se vendiam frutas e flores.
No primeiro andar, orladas por uma loggia dc vastas arca­
das, situavam-se as longas salas abobadadas, onde se armaze­
navam o vinho e o óleo. No segundo e no terceiro andares
vendiam-se produtos mais raros, cm especial a pimenta e as
especiarias provenientes do longínquo Oriente — pipera —,
cuja lembrança se transmitiu à Idade Média no nome da la­
deira tortuosa que servira aos comerciantes antes de ser to­
mada pelos súditos dos papas: a Via Biberatica. No quarto
andar, localizava-se a sala solene, onde se faziam as distri­
buições dos congiários-* e na qual, a partir do século II, se
instalaram os gabinetes da assistência imperial: station# ar-
cariorttm Caesarianorum. No quinto e no sexto andares fi­
cavam os viveiros do mercado de peixe; uns recebiam água
doce dos aquedutos, através de canalizações, e outros rece­
biam água do mar, transportada de Óstia. Do alto do mer­
cado avistamos a imensidão das obras de Trajano e perce­
bemos que estamos no mesmo nível do nimbo de são Pe­
dro, na Coluna de Trajano; e enquanto nos compenetramos
do significado da inscrição, que doravante não mais será con­
testado, descobrimos a grandiosidade irregular dos trabalhos
realizados pelo arquiteto Apolodoro de Damasco sob a or­
dem do melhor dos césares. A massa de suas edificações so­
be e esconde as vertentes do Quirinal, nas quais se apóia, e que,
antes, e sem os modernos explosivos, foram aplainadas para
elas. As proporções são tão harmoniosas que esquecemos seu

* Bairro da Roma antiga, habitado por gladiadores, barbeiros, ladrões e in­


divíduos de conduta suspeita. (N. da T.)
’• Donativos feitos ao povo romano por ocasião de certos eventos. (N. da T).

25
peso para sentir apenas o equilíbrio. É uma autentica obra-
prima que atravessou os séculos, despertando sempre uma
profunda admiração. Outrora, os romanos sabiam que sua
cidade c o mundo não ofereciam nada mais belo à admira­
ção dos homens. Amiano Marcelino conta que cm 356, de­
pois de entrar solenemente em Roma com o embaixador persa
Hormisdas, o imperador Constâncio pisou pela primeira vez
as lajes do foro de Trajano c nao conseguiu reter um grito
de admiração, nem pungentes lamentos à idéia de que nunca
teria estátua equestre comparável à de seu predecessor. “Por
que te lamentas’’, respondeu o delegado do Rei dos Reis, “se
não serias capaz de dar a teu cavalo uma estrebaria como aque­
la?’’ Os homens do Baixo Império sentiam a própria impo­
tência ante a explosão monumental em que brilhava o gênio
dos ancestrais, no auge de seu destino. E, por mais que nos
orgulhemos de nossas obras, também acreditamos que nao
há na Roma antiga nada que desperte maior admiração. No
Coliseu, não obstante a perfeição da elipse prodigiosa, so­
mos tomados por um invencível mal-estar ao lembrar-nos
das carnificinas de que foi palco. As termas de Caracala têm
algo de exagerado e vertiginoso que pressagia a decadência.
Ao contrário, diante do foro e do mercado de Trajano, nada
perturba a nobreza de nossas impressões. Os edifícios se im­
põem sem nos esmagar. Atenuam sua enormidade com a pura
flexão das curvas. Assinalam um dos cumes da arte em que
se encontram os construtores das melhores épocas e que, co­
mo discípulos fervorosos ou como dóceis imitadores, esca­
laram tanto Michelangelo, que transpôs para a fachada do
Palácio Farnese algo dessa ordem sóbria e vigorosa, quanto
os arquitetos de Napoleão I, que com o bronze dos canhões
de Austerlitz fundiram a Coluna Vendôme. É o espelho su­
blime em que se reflete o rosto da Roma maior; ela nos apa­
rece como uma cidade mundial, irmã das nossas, que, satis­
fazendo necessidades análogas às nossas, experimentava já os
sentimentos que constituem a honra das elites contempo­
râneas.
De fato, é impressionante que Trajano tenha visivelmente
procurado não só lembrar a vitória que acabava de restaurar
de um lance as finanças dos césares e de onde saíam todas

26
essas riquezas, como ainda justificá-la pela superioridade da
cultura que seus soldados levavam aos vencidos. Nas está­
tuas de seus pórticos, ele constantemente aproximara as gló­
rias da inteligência e das armas. No pé do mercado onde o
público buscava sua subsistência, nos flancos do foro onde
os cônsules davam audiências c os imperadores pronuncia­
vam arengas — fosse, como Adriano, para anunciar a dimi­
nuição dos impostos, ou como Marco Aurélio, para entregar
ao Tesouro público os bens pessoais —, estendia-se o hemi-
ciclo, onde, como demonstrou Marrou, os professores de li­
teratura costumavam reunir seus discípulos e dispensar-lhes
os ensinamentos, ainda no século IV.
Com um luxo deslumbrante, a basílica era contígua às
bibliotecas; e a coluna historiada que se lhes interpõe — cuja
posteridade podemos enumerar, como a coluna de Marco Au­
rélio, também em Roma, e as de Teodoro e Arcádio em Cons-
tantinopla, para citar apenas os exemplos antigos —, mas da
qual até agora ninguém descobriu o modelo, deve, segundo
a interpretação recentemente retomada por Paribeni, sem dú­
vida ser encarada como a realização original, pelo arquiteto
Apolodoro de Damasco, de uma concepção própria do im­
perador: erigindo-a entre a cidade dos livros, Trajano teria
desejado desenrolar nas espirais que a revestem os dois volu-
mina que registravam no mármore suas façanhas guerreiras
e exaltavam até o céu sua força e sua clemência. Aliás, um
relevo três vezes maior que os outros separa as duas séries
de registros c nos desvenda seu significado. Representa uma
Vitória escrevendo sobre o escudo. Ense et stylo, pela espada
e pela pena, poderiamos glosar. É o símbolo lúcido do obje­
tivo pacificador e civilizador que Trajano sinceramente atri­
buía a suas conquistas. Esclarece o pensamento que presidia
a seus desígnios e segundo o qual, esforçando-se para aban­
donar a injustiça e a violência, o imperialismo romano per­
segue a todo custo sua legitimação espiritual.
Mas no mesmo local onde vemos resplandecer o ideal
do novo império sentimos bater o coração da capital, cujo
crescimento acompanhara sua imensa extensão e que acabou
por igualar-se em importância numérica às mais poderosas
das nossas cidades. De fato, com a inauguração do foro, Tra­
jano concluía a renovação que tentara fazer da cidade para

27
torná-la digna de sua hegemonia e para aliviar os tormentos
de uma população sempre crescente. Já com essa intenção,
ampliou o grande circo, construiu uma naumaquia, canali­
zou o Tibre, ergueu novos aqucdutos, criou as tcrmas pú­
blicas mais vastas que Roma tinha visto, submeteu a uma
regulamentação previdente e rigorosa as iniciativas privadas
no campo da construção. Dessa vez, coroou sua obra: perfu­
rando o Quirinal, entregou ao tráfego novas vias; acrescen­
tando uma vasta praça pública às que seus predecessores —
César, Augusto, os Flávios, Nerva — construíram, na tenta­
tiva de resolver o congestionamento no foro propriamente
dito, desobstruiu o centro da cidade; rodeando a praça de
êxedras de uma basílica, de bibliotecas, enobreceu o lazer das
multidões que para lá acorriam todos os dias; prolongando-
as com o mercado — que, pelas dimensões c pela engenhosi-
dade do arranjo, se compara ao mercado que Paris só ganhou
no século XIX —, facilitou o abastecimento do povo. Na ver­
dade, esses trabalhos seriam ininteligíveis sem a enorme aglo­
meração, cujas condições tais obras aprimoraram. E a antiga
presença dessa aglomeração que percebemos no meio das ruí­
nas desertas. Elas a supõem e bastariam para demonstrá-la,
se não estivesse estabelecida há muito tempo por provas ir­
refutáveis.

As muralhas de Roma e sua verdadeira extensão

Não existe questão mais debatida que a da população da


capital do Império Romano2. Nem mais urgente para o his­
toriador, se é verdade, como pretendia já o sociólogo berbe-
re Ibn-Khaldoun, que o crescimento das cidades, consequência
necessária do desenvolvimento das sociedades humanas, mede
de algum modo o nível dc sua civilização. Infelizmcnte, po­
rém, não há outra que tenha suscitado mais polemicas c con­
tradições. Desde o Renascimento os eruditos que se dedicaram
a esse tema se alinharam em dois campos contrários. Uns,
como que enfeitiçados pelo objeto de seus estudos, atribuem
à Antiguidade, que amam como uma lembrança da Idade do

28
Ouro, a envergadura c o desenvolvimento que os progres­
sos da ciência proporcionaram ao mundo moderno; c Jus­
tus Lipsius, entre outros, estima tranquilamente que a Roma
imperial abrigava quatro milhões de habitantes. Ao contrá­
rio, convencidos da enfermidade das gerações passadas, os
outros a priori lhes recusam os desenvolvimentos que reser­
vam para sua época; c Durcau de la Malle, que entre os fran­
ceses foi o primeiro a tratar com seriedade a questão da
demografia antiga, diminui para cerca de duzentas c sessen­
ta c uma mil almas o número mais alto que, a seu ver, a rea­
lidade concede à cidade dos ccsares. Entretanto, Dureau de
la Malle e Justus Lipsius tinham suas opiniões firmadas; e
entre os exageros extremos uma crítica isenta de preconcei­
tos pode chegar a uma verdade bastante aproximativa.
Os adeptos do que eu chamaria de a pequena Roma em
geral são estatísticos que opõem a questão preliminar ao exa­
me dos testemunhos. Descartam a priori as indicações explí­
citas dos autores antigos e fundamentam suas conclusões na
consideração da situação. Guardam apenas uma base de cál­
culo: a que resulta da relação entre a superfície conhecida
e a possível população. Em função disso, decidem que a Ro­
ma imperial, cuja superfície lhes parece exatamente delimi­
tada pela muralha de Aureliano e coincide mais ou menos
com aquela sobre a qual se estende a Roma que visitaram,
não pode ter abrigado uma população superior à desta. A
primeira vista, o argumento parece decisivo. Pensando me­
lhor, percebemos que se baseia numa ilusão — a de acreditar
que se conhece a extensão territorial da Roma antiga — e
nesse postulado errôneo, que consiste em transferir para tal
superfície o coeficiente demográfico extraído das últimas es­
tatísticas.
Pois esse método, para começar, comete o erro de des­
prezar a elasticidade do terreno, ou, melhor dizendo, a com-
pressibilidade da matéria humana. Dureau de la Malle obteve
os dados que confirma transportando para o interior da mu­
ralha de Aureliano a densidade da Paris de Luís Filipe: cen­
to e cinqüenta habitantes por hectare. Se tivesse escrito setenta
e cinco anos depois, quando a densidade aumentou, como
em 1914, para quatrocentos habitantes por hectare, teria che­
gado a um resultado três vezes maior. Ferdinand Lot come­

29
teu a mesma petição de princípio ao atribuir à Roma de
Aureliano a densidade da Roma de 1901, que contava qui­
nhentas e trinta c oito mil almas. Depois, o território dc Roma
não se duplicou com as construções do pós-guerra; contu­
do, o reccnseamento de 1939 reconhece mais do dobro de
habitantes, ou seja, um milhão duzentos e oitenta e quatro
mil c seiscentas pessoas. Nos dois casos, o espaço atribuído
à Roma antiga sustenta uma relação não, como se imagina,
com a população de outrora, e sim com a que poderia exis­
tir na data em que o pesquisador se documenta e cuja esco­
lha aritmética permanece puramente arbitrária. Mesmo num
solo imutável, as condições de hábitat mudam de uma épo­
ca para outra; c está claro que a relação estabelecida entre
uma superfície que se julga conhecer c uma população que
se ignora só poderia ser uma incógnita.
E acrescentarei uma incógnita cuja pesquisa está de an­
temão repleta de erros, se, como acredito, a Roma antiga nao
se limitou ao perímetro que se lhe atribui. A muralha de Au­
reliano nao delimitou a Roma imperial mais que o pomerium
ou a muralha falsamente atribuída a Sérvio Túlio haviam de­
terminado o território da Roma republicana. Isso, porém,
requer algumas explicações retrospectivas.
Como todas as cidades da Antiguidade greco-latina, des­
de os primórdios, de sua lenda até o fim de sua história, a
Roma antiga sempre se compôs de dois elementos insepa­
ráveis: uma aglomeração urbana rigorosamente definida —
Urbs Roma — e o território rural a ela ligado — Ager Ro­
manns. Este último terminava na fronteira das cidades li­
mítrofes, cuja individualidade municipal a anexação políti­
ca não devia suprimir: Lavinium, Óstia, Frcgenes, Veies,
Fidena, Ficulea, Gabies, Tíburc, Bovillae. Se, para medi-las,
aplicássemos os dados fornecidos pelo bizantino Zacarias, te-
ríamos uma elipse cujos eixos, respectivamente iguais a 17 650
metros e 19 100 metros, determinariam, em cerca de 57 qui­
lômetros de perímetro, uma superfície de quase 25 000 hec­
tares. Naturalmente não temos meios de precisar seus
contornos ou calcular a população esparsa. Seus cidadãos eram
romanos de Roma tanto quanto os eives, que residiam no cen­
tro aglomerado. Apenas estes, porém, compunham a plebe ur-

30
bana no interior da linha que oficialmcntc determinava o local
da Cidade, da Urbs.
Ali residiam os deuses cm seus santuários, o rei e, mais
tarde, os magistrados herdeiros do poder desmembrado, o
Senado e os Comícios que, com ele, c depois com eles, go­
vernavam o Estado formado pela cidade. Assim, na origem,
a Cidade representava outra coisa muito diferente c melhor
que um agregado mais ou menos denso de habitações: era
um “templo” inaugurado segundo as regras da disciplina au­
gural e estritamente delimitado como tal pelo sulco que o
fundador latino, obediente às prescrições de um ritual origi­
nário da Etruria, cavara em toda a volta com um arado atre­
lado a um touro e uma vaca de reluzente alvura, levantando
a relha nos trechos onde talvez viriam a se erguer as portas
e tendo o cuidado de jogar para dentro os torrões desprendi­
dos pela aradura. Desse orbe sagrado, definido antes das for­
tificações e dos muros futuros, dos quais oferece em versão
menor uma espécie de imagem antecipada, e por causa disso
chamado pomerium (pone muros), a Urbs tirou seu nome, sua
definição primitiva e sua defesa sobrenatural, garantida pe­
las proibições que afastavam de seu solo a corrupção dos cultos
estrangeiros, a ameaça dos exércitos em armas, a impureza
do sepultamento dos mortos. Contudo, se na época clássica
conservou seu significado religioso e continuou a salvaguar­
dar a liberdade política dos cidadãos fechando-se às reuniões
das legiões, o pomerium deixou de limitar a Cidade. Relega­
do ao plano dos símbolos, nessa função prática fora suplan­
tado por uma realidade concreta: a muralha atribuída por
uma falsa tradição ao rei Sérvio Túlio e construída por or­
dem do Senado republicano entre 378 e 352 a.C., com blo­
cos de tufo tao solidamente dispostos que trechos inteiros
ainda emergem na Roma do século XX, em especial na Via
delle Finanzc, nos jardins do Palácio Colonna, na Piazza del
Cinquccento, diante da estação, e que a abundância de seus
vestígios permitiu reconstituir. A partir do século III a.C.
já nao é o pomerium que determina a área urbana de Roma,
e sim a muralha cujos poderosos alicerces afastaram a inves­
tida de Aníbal e que não se confunde com ele. Se, como o
pomerium, deixa para fora a planície que sob o nome de Cam­
po de Marte se estende entre o Tibre e as colinas, para os

31
exercícios militares e o serviço dos deuses, ela c alhures mais
extensa e engloba territórios que o pomerium não abarcava:
o arx e o monte Capitólio, a extremidade nordeste do Es-
quilino, o Velabro, sobretudo os dois outeiros do Aventi-
no, o do Norte desde sua fundação, c do Sul que a muralha
cobria, quando os cônsules de 87 a prolongaram ate ali para
oferecer maior resistência ao ataque de Cina. Nesses moldes
estimou-se que continha 426 hectares. E pouco em relação
aos 7 000 hectares de Paris. E muito se comparado aos 120
hectares da muralha da antiga Capua, aos 117 hectares, da
de Caere, aos 32 hectares com que se contentava então a de
Prenesta. Mas para que tantas comparações? O cálculo da
superfície da Urbs não implica o de sua população. Com efei­
to, a partir do momento em que, prontos para conquistar
o universo, os romanos deixaram de temer seus inimigos,
os muros com que se cercaram após o medo inspirado pelos
gauleses perderam sua utilidade bélica, e os habitantes da Urbs
começaram a ultrapassar a muralha, como outrora esta fize­
ra com o pomerium. Em nome do direito dos imperatores
que haviam ampliado as fronteiras do Império e, na verda­
de, para aliviar a plebe urbana, em 81 a.C. Sila entregou ã
habitação humana uma parte do Campo de Marte situada
entre o Capitólio e o Tibre, cujas dimensões infelizmente
não temos conhecimento. Desse lado, a Urbs ultrapassava pu­
blicamente sua muralha, como na prática a excedera alhu­
res. César apenas legalizou um estado dc fato que, sem dúvida,
remonta ao século II a.C., quando recolocou a 1 478 metros
depois das muralhas os limites atribuídos a Roma pelas dis­
posições da lei póstuma que a tábua de Heracléia nos con­
servou.
Por sua vez, Augusto apenas retomou c ampliou ainda
mais a iniciativa de seu pai adotivo quando no ano 8 a.C.
terminou de identificar a Urbs com as catorze regiões entre
as quais repartira os bairros antigos e novos: treze regiões
na margem esquerda do Tibre, a décima quarta na margem
direita, além do rio, regio Transtiberina, cuja lembrança so­
brevive no atual Trastevere.
Augusto, que se vangloriava de ter pacificado o mundo
e fechou solenemente o templo de Jane, não temeu desati­
var a velha fortificação republicana. Liberada por sua glória

32
c suas anexações da preocupação com a própria segurança,
Roma a rompeu por todo lado. Sc cinco das catorze regiões
dc Augusto ficam no interior da antiga muralha, cinco se
estendem dc um lado a outro dc seu traçado, quatro com-
plctamcntc fora: a V (Esquilino), a VII (Via Lata), a IX (Cir­
cus Flaminius) c a XIV (Transtiberim); c, como que para
melhor sublinhar a intenção do imperador, o uso popular
logo deu à primeira delas o nome dc Porta Capena, que, de­
pois de ter marcado sua periferia, passaria a ocupar-lhe o
centro3.
As catorze regiões de Augusto duraram tanto quanto o
Império; c cm seu quadro que devemos recolocar a Roma
dos primeiros Antoninos, e suas fronteiras foram as que a
limitaram. Entretanto, as regiões não são pontos suscetíveis
de uma medida exata e, de qualquer modo, não haveria en­
gano mais grosseiro que o dc querer assimilá-las às que er­
gue ante nossos olhos a muralha de tijolos com que Aureliano
pretendia proteger a capital do assédio dos bárbaros e que
a partir dc 274 a.C. constituiu o pomerium e os muros. Ain­
da hoje, com os muros em ruína e a sucessão desemparelha-
da dc torres, essa obra imponente, cujas alvenarias dc tijolo
se iluminam, gloriosas, aos raios do sol poente, comunica
ao turista menos vibrante a visão imediata da majestade de
que Roma se revestia mesmo em sua decadência. Mas abste-
nhamo-nos de diminuir a imagem que dela nos propõem seus
séculos dc ouro.
Embora se estenda por 18 837 metros de comprimento
e circunde uma superfície de 1 386 hectares 67 ares e 50 cen­
tiares, a muralha de Aureliano não difere das fortificações
sensivelmente contemporâneas erigidas na Gália para fazer
face às tribos germânicas e tão bem estudadas por Adrien
Blanchet. Assim como estas não protegem toda a cidade, mas
apenas as partes vitais, como a couraça o peito do comba­
tente, a muralha de Marco Aurélio não abrigava a totalida­
de da Roma com as catorze regiões, e, mais do que acom­
panhar sua configuração, os engenheiros de Aureliano se preo­
cuparam em unir os principais pontos estratégicos e em uti­
lizar as construções anteriores, como os aquedutos, que
proporcionavam uma fácil integração ao sistema. Do Pin-
cio à Porta Salaria, na sétima região, encontraram-se cipos

33
dc alfândega uns 100 metros além da muralha. Da Porta Pre-
nestina à Asinária, a quinta região estendia-se 300 metros além,
pois c a essa distância que se ergue o obelisco dc Antínoo,
construído “no limite da cidade”, conforme a inscrição hie­
roglífica. Da mesma forma, da Porta Metrovia à Ardeatina,
a primeira região a ultrapassava em 600 metros em média,
pois a cortina se estende nesse setor a 1 478 metros ao sul
da Porta Capena e a primeira região compreendia a aedes Mar­
tis, distante 2 200 metros, e chegava ate o rio Almo (atual
Acquataccio), 800 metros mais ao longe. Enfim, e sobretu­
do, seria fácil demonstrar que a décima quarta região, cujo
perímetro se duplica além do Tibre, ultrapassava-a em 1 800
metros ao norte e 1 300 metros ao sul. Nessas condições, não
se pode confinar as catorze regiões com as quais a Roma im­
perial se confunde aos territórios delimitados pela muralha
de Aureliano; tampouco seria lícito restringi-las aos aproxi­
madamente 2 000 hectares cercados pelo cordão móvel dos
postos de alfândega: pois desde a época de Augusto os juris­
tas estabeleceram como princípio que a Roma das catorze
regiões não estava presa a um cinturão invariável, mas que,
de direito como de fato, constituía uma espécie de criação
perpétua, ampliada de modo automático pelas novas habita­
ções que prolongavam incessantemente, numa região ou em
outra, os conjuntos das antigas construções, e isso a uma dis­
tância de até 1 478 metros da última delas: Roma continents
bus aedificiis finitur, mille passus a continentibus aedificiis
numerandi sunt4-, essa noção jurídica, essencialmente realis­
ta, não só basta para anular a priori qualquer tentativa de
determinar a população romana com base num dado tão in­
certo e variável, como a superfície das catorze regiões, mas
ainda pressupõe que aqueles que a enunciaram acreditavam
num crescimento indefinido da cidade imperial.

O crescimento da população romana

Ademais, os documentos disponíveis mostram claramente


esse crescimento, que, num ritmo constante desde a época

34
de Sila até o principado, acelerou-se sob o feliz governo dos
Antoninos. Para convcncer-se disso, basta cotejar as duas es­
tatísticas, separadas por três séculos de intervalo, que o aca­
so nos transmitiu, dos vici de Roma, ou seja, os bairros
determinados pelas ruas que os circunscreviam no interior
das catorze regiões, os quais Augusto dotou de uma admi­
nistração especial, sob a autoridade dos “prefeitos” — os vi-
comagistri — e a tutela dos Lares das Encruzilhadas. Por um
lado, Plínio, o Velho, revela que já no lustro de 73 d.C., ao
qual presidiram como censores Vespasiano e Tito, Roma es­
tava dividida em cento e sessenta e cinco vici. Por outro, os
Regionários — a coleção extremamente preciosa do século
IV, a que Lanciani chamava o almanaque Gotha da Antigui­
dade, e que de fato reúne um resumo do Bettin' com um su­
mário do Joanne’* — totalizam trezentos e sete vici. Assim,
entre 73 e, digamos, 345 d.C. — data intermediária entre o
ano 334, a partir da qual se compilou o mais antigo dos Re-
gionários, a Notitia, e o ano 357, ao qual remonta a composi­
ção do mais recente, o Curiosum — o número de vici aumen­
tou em quarenta e seis unidades, o que significa um cresci­
mento territorial em Roma da ordem de 15,4 por cento. Si­
multaneamente, desde a época de César até a de Sétimo
Severo, verifica-se um crescimento demográfico corres­
pondente, que, embora não atestado de modo direto, com
certeza resulta da ampliação da rede de assistência pública
à plebe romana. Na época de César e Augusto a anena * ’*
atendia a cento e cinquenta mil indigentes, aos quais distri­
buía trigo gratuitamente. No início do reinado de Sétimo
Severo, por ocasião do congiário de 203, cuja generosidade
Dion Cassius exaltou, o número dos assistidos chegava a cento
e setenta e cinco mil, o que significa um aumento de 16,6
por cento. O paralelismo dessas porcentagens é duplamente
instrutivo. Primeiro, prova, como se podia presumir a prio-

* Almanaque comercial publicado na França a partir de 1819. (N. da T.)


“ Adolphe Joanne (1813-81J autor de kinéraires (Guides Joanne), conten­
do informações referentes a arqueologia, história e turismo. (N. da T.)
*’* Conjunto de víveres armazenados pelo Estado romano para casos de ur­
gência. A partir de 696 a.C, os alimentos passaram a ser distribuídos regular­
mente à plebe urbana. (N. da T)

35
ri, que a extensão material da Roma das catorze regiões ex­
pressou na terra seu desenvolvimento demográfico. Indica,
a seguir, como se devia também induzir da consolidação da
paz romana durante a primeira metade do século II, que de­
ve remontar a ela o maior crescimento atestado pelos Rcgio-
nários no século IV, mas já revelado nas prodigalidades de
203. Donde essa feliz consequência, para nós e nosso assun­
to, dc que se deve estimar a população de Roma sob os pri­
meiros Antoninos — ou seja, num período de enorme pros­
peridade para o qual nos faltam estatísticas — numa cifra su­
perior às que as épocas imediatamente anteriores nos forne­
cem, mas próxima da que os dados tardios dos Regionarios
nos sugerem.
Ora, do começo do século I a.C. a meados do I d.C., po­
demos acompanhar o movimento irresistível que não cessou
de aumentar a população da Urbs e que, ampliado mais tar­
de, a levou até o ponto a partir do qual sua coesão foi mina­
da e seu abastecimento, comprometido. Como demonstrei
alhures, a explosão da guerra dos aliados, em 91 a.C., fez re­
fluírem para Roma, numa confusão torrencial, todos os ita­
lianos que se recusavam a partir com os insurretos e procu­
ravam abrigo contra suas represálias; isso provocou um au­
mento de população análogo ao que, quinze anos antes, ele­
vou Atenas — refúgio dos gregos da Ásia Menor — ao nível
das grandes capitais européias. Diante de uma Itália e de pro­
víncias divididas entre o governo democrata de Roma e os e-
xércitos mobilizados pela nobreza senatorial, os censores dc
86 tiveram de abrir mão do recenseamento universal dos ci­
dadãos no Império; em contrapartida, procederam à enume­
ração de todas as categorias de habitantes que se apinhavam
na cidade: e são Jerônimo registrou em sua Crônica o resul­
tado da operação efetuada sem distinção de sexo, idade, con­
dição ou nacionalidade, quatrocentas e sessenta e três mil ca­
beças humanas no total: describtione Romae facta inventa
sunt hominum CCCCLXIII milia. Trinta anos depois o nú­
mero cresceu tanto, é verdade, que, como afirma o escolias-
ta de Lucano, Pompeu, que em setembro de 57 a.C. tornara-
se responsável pela anona, soube organizar o estoque de trigo
indispensável para alimentar quatrocentas e oitenta e seis mil
bocas. Após o triunfo de Júlio César, em 45 a.C. houve no­

36
vo salto, cuja extensão não pode ser avaliada por falta de da­
dos, mas cujo sentido não deixa dúvidas, pois cm lugar dos
quarenta ou cinqüenta mil assistidos frumentários aludidos
em 17 a.C. por Cícero nas Verrinas, em 44 a.C. são cento
e cinqüenta mil os favorecidos por César à distribuição do
trigo; como prefeito dos costumes, ele generalizou a prática
exercitada acidentalmentc pelos censores dc 86 a.C. c orde­
nou a duplicação do album tradicional dos cidadãos do Im­
pério mediante uma estatística integral dos habitantes da Urb%
que doravante seria estabelecida, rua por rua e imóvel por
imóvel, sob a indicação e a responsabilidade dos proprietários.
O crescimento prosseguiu sob o principado de Augus­
to, em que os índices permitem avaliar a população de Ro­
ma em cerca dc um milhão de habitantes. Primeiro, a
quantidade dc trigo armazenada anualmcnte durante esse rei­
nado pela anona: 20 milhões de modii (1,75 milhão de hec-
tolitros) fornecidos pelo Egito, segundo Aurelius Victor, e
o dobro dessa quantidade fornecido pela África, de acordo
com Josefo; no total, 60 milhões de modii (5,25 milhões de
hectolitros), e que, á razão de um consumo médio de 60 mo­
dii (5,25 hectolitros) anuais por cabeça, daria um milhão de
beneficiados. Foi após sua declaração nas Res gestae que Au­
gusto, investido pela vigésima segunda vez do poder tribu-
nício e pela décima segunda vez do consulado — ou seja, no
ano 5 a.C. —, “deu 60 denários a cada um dos trezentos e
vinte mil cidadãos” que compunham a plebe urbana. Ora,
segundo os termos empregados com justeza pelo imperador,
tal distribuição abrangeu apenas os homens adultos: viritim^
especifica o texto latino; xarcryôpa, traduz o exemplar grego.
Portanto, excluiu as mulheres e os meninos menores de on­
ze anos que, com elas, compunham a plebe da Urbs, Com­
parando-se com as proporções estabelecidas hoje pelos esta­
tísticos entre homens, mulheres e crianças, segue-se que o
efetivo romano da cidade, no ano 5 a.C., chegou no míni­
mo a seiscentos e setenta e cinco mil eives aos quais deve-se
acrescentar a guarnição de cerca de dez mil homens que ha­
bitava em Roma, porém sem participar do congiário, a mul­
tidão dos peregrinos domiciliados e a população de escravos,
infinitamente mais importante ainda. Assim, o próprio Au­
gusto nos leva a avaliar a população total de Roma durante

37
seu reinado cm cerca dc um milhão de habitantes, se é que
nao ultrapassou essa cifra.
Por fim, as estatísticas incluídas nos Regionarios do sé­
culo IV d.C.5 obrigam-nos a aumentar ainda mais esse nú­
mero no período do século II, cm que a população dc Roma
conheceu seu impulso mais vigoroso. Acrescentando, região
por região, as habitações da Urbs rcccnseadas pelo Curiosum,
chegamos ao duplo total de 1 782 domus c 46 290 insulae, en­
quanto a recapitulação do breviarium com o qual se inicia
a Notitia reúne 1 797 domus e 46 602 insulae. A diferença entre
os documentos se deve com certeza à distração do copista
do Cwnosww, que, entediado com as fastidiosas enumerações
que devia transcrever, alterou ou omitiu ao longo do traba­
lho alguns dados, quando nao os rcduplicou com repetições
análogas às que cometeu ao atribuir cm seguida o mesmo
número dc domus às décima e décima primeira regiões, o mes­
mo número de insulae tanto à terceira e à quarta como à dé­
cima segunda e à décima terceira regiões. Seria errôneo
procurar uma conciliação supérflua entre o Curiosum e a No­
titia. Convém escolher entre os dois Regionários aquele que
envolve a menor possibilidade de erro. Em outros termos,
só devemos considerar o resumo da Notitia; e do número
das habitações de Roma que ela nos fornece é preciso dedu­
zir o que não fornece, mas que dela deriva, dos habitantes
que povoavam as 1 797 domus e as 46 602 insulae de seu rc-
censeamento.
Evidentemente o resultado seria apenas aproximado, e,
aliás, os exagerados escrúpulos da crítica contemporânea em­
baraçaram as condições do cálculo. Na França em especial,
Edouard Cuq e Ferdinand Lot entenderam que o plural do­
mus, na Notitia, incluía todos os imóveis da Urbs, e viram
no plural insulae um sinônimo de cenacula, ou seja, os apar­
tamentos contidos nesses imóveis. Assim, consideram que
as duas informações se encaixam e, adotando uma média de
cinco habitantes por apartamento, aplicam-na às 46 602 m-
sulae da Notitia para chegar a uma estimativa global de du­
zentos e trinta e três mil e dez habitantes. Contudo, as
operações estão viciadas no ponto de partida devido às suas
interpretações verbais equivocadas. Para um latinista, a do­
mus — vocábulo que etimologicamente evoca a idéia do do­

38
mínio hereditário — ca casa cm que mora apenas a família
do proprietário, sem possibilidade dc partilha; a insula, cons­
trução isolada como sugere o nome, c o imóvel dc aluguel,
o “bloco” dividido cm vários apartamentos, ou cenacula, cada
um deles abrigando um indivíduo ou uma família. Poderia­
mos colecionar os exemplos ad infinitum: Suetónio, que lem­
bra a prescrição de César a qual atribui aos proprietários de
insulae a confecção dc listas dc rcccnseamcnto: per dominos
insularum; Tácito, que recua ante a dificuldade de estabele­
cer um número exato de templos, domus, insulae destruídos
no incêndio dc 64 d.C.; o biógrafo da História augusta, se­
gundo o qual num único dia do reinado dc Antonino, o Pio,
as chamas consumiram em Roma trezentas e quarenta habi­
tações — imóveis dc aluguel ou casas senhoriais — incendium
trecentas quadraginta insulas vel domus absumpsit. Em todos
os textos a insula só figura como edifício autônomo. E uma
unidade arquitetônica, não uma unidade locativa; e a prova
dc que o sumário da Notitia a designa nessa acepção é pro­
porcionada pela menção que a descrição detalhada do mes­
mo documento concede — entre outros edifícios dignos de
atrair a curiosidade dos turistas na nona região — à insula
Felicles, ou seja, ao “bloco” de Felicula, cujas dimensões ex­
traordinárias destacaremos adiante. Assim, não podemos in­
cluir as 46 602 insulae nas 1 797 domus da estatística. Elas se
somam, ao contrário, e para avaliar seu conteúdo humano
deve-sc multiplicar seu número não apenas pelo número mé­
dio dos habitantes por cenaculum, como ainda, e em segui­
da, pelo número médio dos cenacula ou apartamentos que
cada uma delas comporta necessariamente.
Assim, também a soma duzentos e trinta e três mil e dez
habitantes, à qual chegaram os pesquisadores que começa­
ram por impor à noção de insula a redução deformante, as­
sinala uma cifra inferior inaceitável em relação ao total dos
cidadãos adultos admitidos na Urbs devido à generosidade
de Augusto, insuficiência tão manifestamente irrisória que
condena o contra-senso de que procede. Quer dizer que, por
reação contra tal sistema, deve-se supor para cada insula os
21 ou 22 cenacula que na Notitia resultariam da relação en­
tre as 1 797 domus definidas como insulae e as 46 602 insulae
definidas como cenacula?Seria cair num excesso tão repreen-

39
sívcl quanto o erro anterior. Ao estudarmos o tipo da casa
romana, no capítulo seguinte, nos convenceremos de que em
média a insula devia conter dc cinco a seis cenacula, ou apar­
tamentos, havendo em cada um deles pelo menos dc cinco
a seis ocupantes. Assim, o registro dos Regionários sobre o
século IV nos obriga a concluir que já no século II, quando
o crescimento dc Roma provavelmente atingiu o auge, ou,
em todo caso, acelcrou-se muito, além dos cinqüenta mil ci­
dadãos, libertos e escravos, distribuídos no mínimo entre mil
domus, havia nos apartamentos dos quarenta e seis mil seis­
centos e dois imóveis de aluguel uma população que devia
oscilar entre um milhão cento e sessenta e cinco mil e cin­
qüenta e um milhão seiscentos e setenta e sete mil seiscentos
c setenta e dois habitantes. Mesmo que adotemos a mais mo­
desta dessas duas estimativas, mesmo que limitemos em tor­
no de um milhão e duzentos mil habitantes a aglomeração
da Urbs sob os Antoninos6, c claro que ela se aproxima das
nossas sem ter se beneficiado com as técnicas e comunica­
ções que facilitam as concentrações e a subsistência das ci­
dades modernas.
Assim, não podemos esconder que a capital do Império
devia sofrer os efeitos de um superpovoamento pior que os
das nossas. Se em sua época alcançou um desenvolvimento
tão grande, guardadas as proporções, quanto Nova York na
nossa; se Roma, rainha do universo antigo,

“Terrartim dea gentiumque, Roma,


Cui par est nihil et nihil secundum”7

— deusa dos continentes e das nações, é Roma, que nada iguala


e da qual nada se aproxima —, tornou-se, no tempo de Tra­
jano, a cidade tentacular e colossal cuja grandeza deixava per­
plexos os estrangeiros e os provincianos, como a da metrópole
americana surpreende a Europa de hoje, parece que ela pa­
gou ainda mais caro o gigantismo com o qual seu papel do­
minador acabou por afligi-la.

40
CAPÍTULO II

AS CASAS E AS RUAS, GRANDEZAS E


MISÉRIAS DA ANTIGUIDADE

Mesmo que o ampliemos para mais de 2 000 hectares,


o perímetro da Urbs imperial era pequeno para conter con­
fortavelmente 1 200 000 habitantes, pois nem todas as seções
eram utilizadas ou utilizáveis. De fato, convém subtrair par­
cialmente as numerosas zonas em que os edifícios públicos,
santuários, basílicas, docas, termas, circos e teatros eram fran­
queados pelos poderes públicos a porteiros, comerciantes,
cscribas, escravos públicos, ou membros de corporações pri­
vilegiadas; e, sobretudo, devemos excluir o leite caprichoso
do Tibre e as dezenas de parques ou jardins que se estendiam
em especial no Esquilino, no Pincio, ao longo das duas mar­
gens do rio, depois o bairro do Palatino, exclusivo do impe­
rador, e por fim o Campo de Marte, cujos templos, pórticos,
*
palestras, ustrina e tumbas cobriam mais de 200 hectares,
onde, poF respeito aos deuses, as habitações humanas conti­
nuaram proibidas. Se hoje consideramos que os povos anti­
gos nào dispunham do espaço quase ilimitado que o progresso
dos transportes terrestres e subterrâneos oferece a Londres,
Nova York ou Paris para o desenvolvimento das metrópo­
les contemporâneas, logo se evidencia que estavam conde­
nados pela indigência dos seus meios de locomoção a jamais
ultrapassar determinados limites territoriais, os mesmos de­
terminados sem dúvida por Augusto e seus sucessores além
dos quais se fragmentou a vida da cidade e onde se rompeu
sua unidade. Incapazes de ampliar o território no ritmo do
crescimento numérico, os romanos tiveram de se conformar,
num terreno que lhes era estritamente limitado pela sua téc­
nica estagnada, a recuperar o espaço perdido por meio de

* Local onde se queimavam os cadáveres. (N. da T.)

41
expedientes contraditórios: a cxigüidade das ruas e a altura
das casas. Assim, constantemente c por toda parte, a Roma
imperial justapôs aos esplendores monumentais a incoerên­
cia de edifícios ao mesmo tempo desconfortáveis e fausto-
sos, desmesurados c frágeis, ligados pelas redes de estreitas
e sombrias vielas; e, ao tentar reencontrar os traços do ver­
dadeiro rosto, desconccrtamo-nos com os contrastes que con­
fundem cm nossa mente as noções dc uma grandiosidade
moderna c dc um simplismo medieval e cm que, de repente,
uma lúcida antecipação de organização à americana se de­
tém sobre uma visão confusa de labirinto oriental.

Aspectos modernos da casa romana

Ao primeiro contato, impressiona-nos o aspecto “atual”


do que foi outrora o tipo comum dos prédios romanos. A
publicação que empreendí em 1910 do bairro das docas em
Óstia; as escavações retomadas a partir de 1907 no local des­
sa colônia, subúrbio e fiel espelho em miniatura de Roma,
e das quais Guido Calza, dez anos depois, tirava com talen­
to as conclusões necessárias; a ressurreição, na própria Ro­
ma, das construções ao longo da Rua da Pimenta, Via
Biberatica, no mercado dc Trajano; a descoberta dos restos
remanescentes sob a escada da Ara Coeli; o estudo dos imó­
veis situados então nos flancos do Palatino, Via dei Cerchi,
e sob a galeria da Praça Colonna — tudo isso nos abriu os
olhos para suas dimensões, suas plantas, sua verdadeira
estrutura1. Com certeza, há trinta anos, quando procuravam
representá-las, os estudiosos transportavam para as margens
do Tibre, através da imaginação, os diferentes modelos de
construção retirados da lava ou dos lapilli do Vesúvio e
vangloriavam-sc de compor a imagem da Urbs à imitação das
que haviam sido trazidas de Hcrculano e Pompéia. Em con­
trapartida, hoje nao existe um arqueólogo sensato que quei­
ra aplicar tal método demasiado sumário e totalmente ilusório.
Por certo, a casa dita de Livio, no Palatino, e a dos Gamala
em Óstia, que depois passou para um certo Apulcio, apro­

42
ximaram-se dos edifícios campanianos c, a rigor, podemos
admitir que as “mansões” dos ricos, os domínios ou domus,
atestados nos Regionários, cm geral emprestavam suas for­
mas. Entretanto os Regionários computam na Urbs apenas
1 797 domus contra 46 602 insulae, ou seja, havia uma man­
são para 26 imóveis dc aluguel; e de acordo com o testemu­
nho dos textos c a interpretação objetiva dos fragmentos do
cadastro da Urbs exposto por Sétimo Severo no Foro da Paz,
as últimas escavações demonstraram que a maioria das insu­
lae está tão longe das domus quanto um palácio romano de
um villino de praia ou as “casas” da Rue de Rivoli e dos gran­
des bulevares parisienses dos “cottages” da Côte d’Emerau-
de. Na verdade, e por parodoxal que essa afirmação pareça
à primeira vista, certamcnte há mais analogia entre a insula
da Roma imperial c as “case”populares da Roma contempo­
rânea que entre ela e a domus do tipo pompeano.
Voltando para a rua apenas uma parede compacta, esta
última abre todos os vãos para os espaços internos. Enquan­
to aquela sempre se abre para fora, e às vezes, quando se dis­
põe num quadrilátero ao redor de um pátio central, abre as
portas, janelas e escadas tanto para fora como para dentro.
A domus se compõe de salas de proporções imutáveis;
seu uso previamente foi definido, c a disposição obedece a
uma ordem invariável: fauces, atrium, alae, triclinium, tabli-
nium, peristilo. A insula compreende cômodos reunidos em
cenacula, ou seja, em habitações separadas e distintas, como
os nossos “apartamentos”; tais cômodos não tiveram a fun­
ção definida a priori e, intercambiáveis entre si, sucedem-se
de alto a baixo do edifício, de acordo com uma superposi­
ção rigorosa. Derivada diretamente da arquitetura helenísti-
ca, a domus se estende no sentido horizontal. Já a insula,
nascida provavelmente no decorrer do século IV a.C., fruto
da necessidade de abrigar dentro de paredes chamadas ser-
vianas uma população em contínua progressão, desenvolve-
se no sentido vertical. Ao contrário da domus de Pompéia,
a insula romana cresceu em altura, e no Império acabou atin­
gindo dimensões vertiginosas. Essa é a sua característica pre­
dominante, que, após ter maravilhado os antigos, deixa o
mundo contemporâneo boquiaberto devido à sua semelhança
com as habitações urbanas mais recentes e ousadas. Já no sé-

43
culo III a.C. as insulae de três andares (tabulata, contabula-
tioncs, contignationes) tornaram-se tão numerosas que nâo
despertavam a atenção da gente; e, enumerando os prodígios
que no inverno de 217-218 a.C. anunciaram a ofensiva de
Aníbal, Tito Lívio2 menciona, sem insistir, a insula situada
junto ao fórum boarium que abrigou um boi que fugira do
mercado; o animal subiu as escadas até o terceiro andar e
precipitou-sc no vazio, entre os gritos apavorados dos inqui­
linos. No final da República, a média que esse incidente pres­
supõe foi ultrapassada. A Roma de Cícero está como que
suspensa nos ares sobre os apartamentos: Romam cenaculis
sublatum atquc suspensam3. A Roma de Augusto alcança al­
turas mais elevadas. Então, como escreve Vitrúvio, “a ma­
jestade da Cidade, o considerável crescimento da população,
exigiram uma extraordinária extensão das moradias, e os pró­
prios fatos obrigaram a recorrer ao crescimento vertical dos
edifícios”4. Recurso tão arriscado, aliás, que, assustado com
os perigos que ameaçavam a segurança dos cidadãos c com
os desabamentos devidos à altura dos prédios, o imperador
proibiu a construção de edifícios de mais de 20 metros de
alturas. Entretanto, proprietários e empreiteiros rivalizavam
em avareza e temeridade para explorar as brechas deixadas
pela lei da proibição. O Alto Império testemunha a ascen­
são inacreditável para a época. Descrevendo a Tiro do iní­
cio de nossa era, Estrabao comenta, surpreso, que as casas
do ilustre porto do Oriente quase alcançam a altura das da
Roma imperial6. Cem anos depois, Juvenal zomba dessa Ro­
ma aérea, que repousa sobre vigas finas e longas como
flautas7. Cinqüenta anos mais tarde, Aulo Gélio se queixa
das casas de vários andares: multis arduisque tabulatis?\ e o
retórico Aelius Aristides calcula que, se todas as habitações
da Urbs fossem reunidas no solo, estender-se-iam até Adria,
no mar Superior
* 9.
Em vão Trajano renovou10 as restrições de Augusto,
tornando-as ainda mais severas, pois limitou a 18 metros a
altura dos edifícios privados: a necessidade foi mais forte que
a lei; e no século IV, entre as curiosidades da Cidade, havia

* Nome dado pelos antigos ao Adriático, em oposição ao Tirreno, chamado


mar Inferior. (N. da T)

44
ao lado do Panteão e da Coluna dc Marco Aurélio uma cisa
gigantesca, cujo tamanho prodigioso despertava a atenção do
visitante: a insula Fclicles, o imóvel de Fclícula. Fora cons­
truído duzentos anos antes, pois no início do reinado de Sé­
timo Severo (193-211) sua fama havia já atravessado os mares;
e quando tentava convencer os compatriotas africanos do ab­
surdo das invenções pelas quais os Valentinianos procura­
vam preencher o infinito que separa a criação do Criador,
Tertuliano não encontrou comparação mais instrutiva: ridi­
culariza sem piedade esses hereges, atravancados por todos
os intermediários, todos os mediadores que seu delírio ge­
rou, por haverem transformado o universo numa espécie de.
“pensão” em cujo topo colocam Deus — ad summas tegulas —
e que ergue “para o céu tantos andares.quantos os que se
veem em Roma no imóvel de Felícula”11. Não obstante os
editos de Augusto e Trajano, a audácia dos construtores re­
dobrou, e a insula Felicles se erguia na Roma dos Antoninos
como um arranha-céu. Ainda que tenha sido uma extraordi­
nária exceção, uma espécie de caso-limite quase monstruo­
so, é certo que já não havia a sua volta edifícios de cinco a
seis andares. No prédio onde morava, no Quirinal, Rua da
Pereira, Marcial devia subir ao terceiro andar, porém não
era aquele que suportava o maior incômodo. Tanto em sua
insula, como nas vizinhas, havia locatários bem menos favo­
recidos, pois residiam em andares mais altos, e Juvenal, ao
pintar o quadro cruel de um incêndio romano, parece dirigir-
se ao infeliz que, como o deus dos Valentinianos, mora no
topo do edifício. “O terceiro pavimento já está em chamas,
e nada sabes”, diz ele. “Desde o térreo há correría, porém
o último a ser assado é o miserável protegido da chuva ape­
nas pela telha em que as langorosas pombas vêm pôr seus
ovos”12.
Aliás, as intermináveis construções imponentes que obri­
gavam o transeunte a se afastar alguns passos para'ver seu
topo dividiam-se em duãs^têgorias: as mais suntuosas. nas
quais~oTérreo, ficando à disposição de um único e mesmo
proprietário, adquiria o prestígio e as vantagens de uma man-
são instaladanãinsulã~^- donde o nome domus, que muitas
vezes lfíee dado em oposição aos apartamentos ou cenacula
dos níveis superiores —, e as mais comuns, com o térreo di

45
vidido cm inúmeras lojas, tabernac, que, muitas vezes men­
cionadas nos textos, podemos imaginar mais facilmente, pois
a estrutura de várias delas subsistiu até hoje na Via Biberati-
ca e em Óstia. Apenas os ricos tinham o acesso ao domus,
c sabemos, por exemplo, que já na época de César, Caelius
pagava um aluguel anual de 30 000 sestércios (20 000 fran­
cos Poincaré, 6 000 francos de antes da guerra13). Já sob a
abóbada das tabernac vegetava uma população humilde. A
primeira vista, cada uma delas, que se abria para a rua por
meio de uma vasta porta em arco, ocupando quase toda a
sua largura, e que à noite era cuidadosamente aferrolhada,
compreendia apenas o armazém de um comerciante, a ofici­
na de um artesão, o balcão ou a mesa dc vendedor. No en­
tanto, em geral ela abrigava num dos cantos uma escada de
quatro a cinco degraus de tijolo ou pedra, que se prolonga­
vam por uma escada de madeira; essa escada se dirigia a um
sótão que recebia claridade através de uma janela oblonga,
aberta acima e no meio da porta, e servia de habitação ínti­
ma para os administradores da loja, os guardiães do arma­
zém, os operários da oficina. Em todos os casos, trabalhadores
livres ou domésticos servis, os usuários de uma taberna ti­
nham à sua disposição apenas um cômodo, onde trabalha­
vam, cozinhavam, comiam e dormiam, numa confusão
semelhante à dos locatários dos últimos andares, como vere­
mos. Em geral, talvez fossem até mais desfavorecidos. Pelo
menos, parece que costumavam passar por grandes dificul­
dades para pagar o aluguel. Conta-se que, para obrigar os maus
pagadores a chegar a um acordo, o proprietário se limitava
a retirar a escada, cortando-lhes o abastecimento. Ora, a ex­
pressão percludere inquilinum, bloquear um locatário, que
espelha a situação, não teria se tornado, entre os juriscon-
sultos, sinônimo de obrigar o locatário ao pagamento se a
operação que evoca, que só é compreensível no âmbito hu­
milde da taberna, não fosse usual na Roma imperial. Portan­
to, havia diferenças entre as duas espécies de imóveis de
aluguel aos quais se aplica o termo insula; contudo, proveem
quase exclusivamente da disparidade entre a domus e as ta-
bemae do andar térreo; e nao impedem que umas e outras
insulae se avizinhem e obedeçam às mesmas regras quanto
à distribuição interna e ao aspecto externo dos pavimentos.

46
Consideremos a Roma atual: é bem verdade que ao lon­
go dos últimos sessenta anos, c sobretudo após o loteamen-
to da Villa Ludovisi, ela conheceu a unidade separada dos
“bairros aristocráticos”. Antes, porem, um sopro igualitá­
rio sempre aproximara as moradias mais nobres e as casas
mais vulgares; e ainda hoje o estrangeiro às vezes se surpreende
ao deparar de repente com a majestade de um Palácio Far­
nese no fim de ruas apinhadas de gente. E por esse traço fra­
ternal que a Roma dos vivos ressuscitou a dos césares, em
que as classes altas c o povo se tocavam por toda pane sem
se esbarrar em lugar nenhum. O orgulhoso Pompeu não se
julgava rebaixado por se manter fiel às Carenas. Antes de
emigrar para as dependências da Regia, por motivos políti­
cos e religiosos, o mais refinado dos patrícios, Júlio César,
residia no Subura. Mais tarde, Mecenas fez seus jardins na
parte mais mal afamada do Esquilino. Por volta da mesma
época, o riquíssimo Asinius Pollion escolheu para sua resi­
dência a plebéia colina do Aventino, que também elegerá para
seu domicílio Licinius Sura, o vice-imperador do reinado de
Trajano. No final do século I d.C. o sobrinho do imperador
Vcspasiano e um poeta parasita como Marcial moravam a
pouca distância um do outro, nas vertentes do Quirinal; e
no final do século II, Cômodo será assassinado num banhei­
ro que instalara no democrático Caelius. Certamente, depois
de destruídos por vários incêndios, os diversos bairros da Ci­
dade renascem das cinzas mais sólidos e magníficos; não obs­
tante a aproximação dos contrários, que se repete diante de
nossos olhos, subsiste, pouco atenuada, após cada renovação;
e toda tentativa para particularizar as catorze regiões da Urbs
está fadada ao fracasso. Os delicados desejosos de evitar a mul­
tidão viram-se obrigados a afastar-se cada vez mais, a refugiar-
se no “campo”, nos pinheirais do Pincio e do Janículo, on­
de se estendiam os parques das villas suburbanas14, enquan­
to o povo, expulso do centro pela presença da corte e pela
profusão dos edifícios públicos e no entanto atraído pelos
assuntos ali discutidos, afluía de preferência às zonas inter­
mediárias entre os foros e a periferia, nas regiões externas
e tangenciais à muralha republicana que a reforma de Au­
gusto integrara à Urbs. De fato, ao se somarem os números
atribuídos região por região pelos Regionários às insulae —

47
ou seja, aos prédios de aluguel — c aos vici — as artérias que
servem às insulae — e se juntarem esses números cm dois gru­
pos distintos formados respectivamente pelas oito regiões da
antiga Cidade c pelas seis regiões da Cidade nova, a média
obtida é, para as primeiras, de 2 965 insulae e 17 vici c, para
as segundas, de 3 429 insulae c 28 vici. Assim, supondo-se o
mesmo número de regiões, ainda era na nova que se concen­
trava o maior número de imóveis, e, mesmo supondo-se a
mesma quantidade de wd, não foi na Cidade velha, onde havia
até 174 insulae por vicus, e sim na nova, onde existiam ape­
nas 123 por vicus, que os imóveis conheceram maior desen­
volvimento. Os Regionários localizaram a gigantesca insula,
o arranha-céu de Felícula, na nona região, dita do Circo Fia-
minius, no centro da Cidade nova. Sondagens isoladas che­
gam à mesma conclusão que as estatísticas de conjunto: os
triunfos do urbanismo imperial aumentaram desmesurada-
mente em todos os sentidos c à moderna os vastos edifícios
da Roma antiga.
Externa mente, todas as monumentais insulae, esses “blo­
cos”, se assemelhavam e voltavam à rua uma fachada prati­
camente uniforme. Em toda pane, os pavimentos superpu­
nham simetricamente os cenacula de grandes vãos; e as esca­
das de pedra, que conduziam do térreo aos apartamentos su­
periores, cortavam com os degraus inferiores a linha das
tabemae ou das paredes da donius. Nas diretrizes essenciais,
o esquema é familiar. Dir-se-ia que são casas urbanas cons­
truídas ontem ou hoje, e as restaurações, no papel das quais
foram objeto as ruínas mais bem conservadas por parte dos
especialistas mais competentes, apresentam tais analogias com
os edifícios onde moramos que à primeira vista somos ten­
tados a desconfiar. Entretanto, um exame mais acurado con­
firma sua consciência e sua fidelidade; c Boethius, por
exemplo, só precisou confrontar na mesma chapa fotográ­
fica determinada seção do mercado de Trajano ou deter­
minado edifício de Óstia com certa casa atual da Via dei
Cappellari, em Roma, ou da Via dei Tribunali, em Nápoles,
para demonstrar, entre essas formas separadas por séculos,
surpreendentes semelhanças que às vezes beiram à identi­
dade15. Se ressuscitassem, ccrtamente os súditos de Trajano
e dc Adriano acreditariam entrar em casa ao transpor o um­

48
bral desses casoni contemporâneos; c teriam ainda o direito
dc lamentar que pelo menos externamente suas habitações
tivessem se deteriorado ao longo dos tempos.
Comparada superficial mente à sua herdeira da terceira
Itália, a insula da Roma imperial revela um gosto mais deli­
cado, um refinamento mais elegante, c na verdade c a casa
antiga que revela um ar mais moderno. Os paramentos, em
que se misturam madeira c pedras ou consistem em tijolos
habilmente talhados, dispunham-sc com uma arte cuja per­
feição nao se vê desde as mansões normandas c os castelos
de Luís XIII. As portas c as janelas eram igualmente nume­
rosas c maiores. Em geral, a fileira de lojas era protegida e
escondida pelo alinhamento de um pórtico. Em seus anda­
res se penduravam, nos corredores mais largos, os alpendres,
ou loggias — pergulae — que se apoiavam nos pórticos, ou
balcões — maeniana —, de pitoresca variedade: uns de ma­
deira, cujas vigas de sustentação foram encontradas entre a
alvenaria; outros de tijolo, jogados sobre pendentes
* cujas li­
nhas de imposta horizontais geram o extradorso paralelo, ora
fundamentados numa série de abóbadas de berço ** susten­
tadas por grandes consolos de travertino bem encaixados na
alvenaria, no prolongamento das paredes laterais. Trepadei­
ras enroscavam-se nas pilastras das loggias, nos balaústres dos
balcões. Na maioria das janelas havia vasos de flores, com­
pondo, segundo Plínio, o Velho, jardins em miniatura, que,
nos cantos mais sufocantes da cidade, abrandavam a saudade
que humildes cidadãos provenientes de uma longa linhagem
de camponeses sentiam do campo16. Em Óstia, no final do
século IV, modestas estalagens, como aquela em que santo
Agostinho situou seu supremo e pacato colóquio com santa
Mônica, eram sempre cercadas de verde; a Casa dei Dipinti,
bem mais antiga, parece que tinha guirlandas e flores em to­
das as faces; e sua reconstituição, publicada por Calza e Gis-
mondi, sugere uma cidade-jardim, semelhante às mais atraen­
tes de hoje em dia, construídas para os operários e os pe­

* Cada um dos triângulos esféricos dispostos nos quatro cantos da abóbada


de um recinto quadrangular. (N. da T.)
” Prolongamento do arco apoiado em duas paralelas ou geratrizes. (N. da T.)

49
queno-burgueses de nossos grandes centros, pelas imobiliá­
rias mais prudentes ou sociedades filantrópicas mais genero­
sas. Contemplando-se essa imagem singular c pouco embe­
lezada, somos tentados a renegar o progresso c a invejar as
criaturas que outrora, sob Trajano ou sob Adriano e Anto-
nino, o Pio, conheceram as doçuras da realidade que cia re­
presenta para os nossos olhos.
Infelizmente as acomodações da insula, a mais luxuosa
descoberta até agora pela arqueologia, não correspondiam
à aparência. Por certo, os arquitetos nao pouparam esforços
para embelezá-la. Revestiram o piso com ladrilhos c mosai­
cos cujos complicados arranjos nos foram transmitidos por
Vitrúvio. Segundo os procedimentos demorados e caros ana­
lisados pelo mesmo autor, revestiram-na de cores que hoje
estão quase desbotadas, mas que na época eram tão frescas
e vivas como as dos afrescos dc Pompéia, aos quais deve o
nome com que foi designada pelos eruditos italianos: Casa
dei Dipinti, casa das pinturas. Eu não ousaria adorná-la com
laquearia cloisonnes, com placas móveis de tuia ou de mar­
fim trabalhado com que novos-ricos, como Trimalcião, en­
feitavam o mecanismo situado acima da sala de refeições, que
despejava sobre os convivas satisfeitos c maravilhados uma
chuva de flores, de perfumes ou de pequenos presentes. Tal­
vez os cômodos já tivessem os tetos de estuque dourado em
que se comprazia o capricho da maioria dos contemporâneos
de Plínio, o Velho. Entretanto, a suntuosidade tinha um pre­
ço, e as insulae mais opulentas pecavam ao mesmo tempo
pela fragilidade da construção, pela escassez do mobiliário,
pelas deficiências de iluminação, aquecimento e higiene.

Aspectos arcaicos da casa romana

As casas altas eram demasiado estreitas. Enquanto as domus


dc Pompéia se estendem por 800 e 900 metros quadrados, as
insulae de Óstia, que todavia foram construídas segundo o pla­
no de conjunto imposto por Adriano a seus arquitetos, rara­
mente cobrem uma área tão extensa; quanto às insulae de Roma,

50
as áreas que resultam dos fragmentos do cadastro dc Sétimo
Severo, onde são reproduzidas, variam em geral de 300 a 400
metros quadrados. Mesmo supondo-se — o que seria pouco
razoável — que nao tivesse havido áreas mais restritas, para
sempre sepultadas nas convulsões do terreno, ainda assim os
números são decepcionantes: 300 metros quadrados de ex­
tensão horizontal para um desenvolvimento vertical dc 18
e 20 metros c pouco, principalmcntc se se levar cm conta
a espessura dos pisos que separavam os pavimentos, e basta
cotejar os dois dados para perceber o perigo oferecido pela
sua desproporção. A base dos edifícios romanos não tinha
a estrutura correspondente à altura, c os riscos de desaba­
mentos eram devidos à ganância dos construtores, que utili­
zavam alvenaria e materiais de qualidade duvidosa. Segundo
Vitrúvio, “a lei não permitia a construção de paredes exter­
nas de mais de meio metro de espessura, e as outras, para
que houvesse o mínimo de espaço ocioso, não deviam ter
espessura superior àquelas”. E ele acrescenta que a partir de
Augusto remediava-se a espessura demasiado fina da parede
por meio de fieiras de tijolos que sustentavam as pedras. E,
com sorridente filosofia, constata que a mistura de pedra e
tijolo permitiu que as habitações atingissem grandes alturas,
e que o povo romano criasse belas habitações sem dificulda­
des — populus romanas egrégias habet sine impeditione
habitationes17
Vinte anos depois, Vitrúvio se desdiría. A elegância e a
comodidade pelas quais se felicita foram conquistadas em de­
trimento da solidez. Mesmo quando no século II o aparelho
laterício começou a prevalecer, ou seja, quando os romanos
se habituaram a revestir de tijolos a totalidade dos paramen­
tos, a Cidade não conheceu o fim dos desmoronamentos ou
demolições; e os locatários de uma insula viviam permanen­
temente temerosos de um desabamento. Lembramos a tira­
da entristecida e rancorosa de Juvenal: “Quem teme, quem
jamais temeu o desabamento de sua casa na fresca Preneste,
em Volsini cercada de outeiros cobertos de bosques... Mas
nós moramos numa cidade construída em grande pane so­
bre pequenas vigas, e quando o administrador de um edifí­
cio fecha uma fenda, convida as pessoas a dormirem tranqüilas
sob a ruína suspensa sobre suas cabeças”. Nào há exagero

5/
nessa afirmação, aliás, e muitos casos de exceção, previstos
na Digcsta, pressupõem a situação precária que lhe desperta­
va raiva. “Supondo, por exemplo, que o proprietário de uma
insula a tenha arrendado em bloco por 30 000 sestércios
(30 000 francos Poincaré = 6 000 francos de antes da guer­
ra) a um locatário principal, que graças a suas sublocações
extraía uma renda de 40 000 sestércios, c depois resolve
demoli-la sob pretexto de um provável desabamento, o lo­
catário principal poderá mover uma ação por perdas e da­
nos. Se houve realmente a necessidade de se demolir o edifício,
o queixoso terá direito à devolução do aluguel, nada mais.
Em contrapartida, se a demolição foi movida por um inte­
resse especulativo ou de melhoria de suas condições, o toca­
dor deverá pagar ao arrendatário, que por sua iniciativa teve
de despejar os sublocatários, a soma de que o locatário prin­
cipal se viu privado em função do êxodo.”18
Esse texto é sugestivo por si só e pelo que permite entre­
ver. Os termos banais de redação não deixam dúvida quan­
to à frequência das práticas mencionadas; e elas pressupõem
que as casas da Roma imperial, tão c mais leves que as anti­
gas casas americanas, desabavam ou eram demolidas como
outrora o eram as de Nova York.
Em contrapartida, elas incendiavam-se tão frequentemen­
te quanto as de Istambul da época dos sultões. Porque eram
inconsistentes. Porque a estrutura pesada dos pisos requeria
vigas grossas de madeira. Porque os riscos de combustão es­
tavam nos aquecedores portáteis, velas, lâmpadas fumaren­
tas e tochas de iluminação noturna. Porque, enfim, e como
veremos, o abastecimento de água era escasso. Daí o núme­
ro de incêndios e sua rápida propagação. Lcmbramo-nos da
manobra empregada no último século da República pelo plu-
tocrata Crasso para explorar esses incêndios e com os des-
pojos aumentar sua imensa fortuna. Ao saber de um sinistro,
ele corria para o local, expressava solidariedade ao proprie­
tário desesperado com a súbita destruição do bem e, ato con­
tínuo, comprava por uma ninharia o terreno onde jazia um
monte de escombros. A seguir, com uma equipe de pedrei­
ros por ele adestrados, construía no local uma insula nova,
que em pouco tempo lhe rendia muito mais que o capital
investido. Mais tarde, no Império, depois que Augusto criou

52
um corpo de bombeiros ou vigeis, a tática dc Crasso teria
o mesmo sucesso. Mesmo no reinado de Trajano, atento à
polícia da Urbs, o incêndio era comum na vida dos roma­
nos. O rico teme por sua morada e, angustiado, coloca um
grupo de escravos para guardar o âmbar amarelo, os bron­
zes, as colunas de mármore frígio, as incrustações dc tarta­
ruga. O pobre é surpreendido durante o sono pela invasão
das chamas em sua “mansarda” e acredita que morrerá quei­
mado. A obsessão do povo c tão grande, que para fugir a
ela Juvenal está disposto a sair dc Roma. “Ah, quando po­
derei viver num lugar onde não haja fogo, onde as noites
sejam calmas.”19 Não exagerou. Os juristas fazem eco a suas
sátiras e, como nos informa Ulpiano, nao havia um dia que
não registrasse vários incêndios na Roma imperial: plurimis
uno die incendiis exortis20.
Pelo menos o escasso mobiliário diminuía a extensão das
catástrofes. Desde que fossem prevenidos a tempo, os pobres-
diabos das ccnaada — como o Ucalegon imaginário que, por
zombaria, Juvenal enfeitou com o nome épico de um troia­
no da Eneida — conseguiríam “carregar seus trastes”21. Os
ricos possuíam mais bens, que não cabiam cm apenas um far­
do. Todavia, além das estátuas dc mármore ou de bronze,
possuíam um mobiliário bastante restrito, luxuoso não tan­
to pela quantidade ou pela dimensão das peças, mas pelos
materiais preciosos nele empregados e pelas formas raras.
Na passagem de Juvenal citada acima, o milionário to­
mou inúmeras precauções contra o fogo para preservar ape­
nas objetos de arte c estatuetas, e nao o que hoje chamaríamos
de móveis. Em todas as casas romanas o mobiliário consis­
tia essencialmente em leitos, que serviam como cama à noi­
te, c durante o dia como mesa de refeições, escrivaninha, etc.
Os pobres se contentavam com catres de alvenaria presos às
paredes e recobertos dc palha. Toda a economia era investi­
da na aquisição de leitos, cada vez mais bonitos. Havia lei­
tos pequenos, para uma só pessoa, que constituíam a maioria:
lectidi. Havia leitos de casal: leans genialis; de três lugares,
para a sala de refeições: triclinia; e aqueles que queriam os­
tentar fortuna e pasmar o próximo possuíam leitos de seis
lugares. Havia leitos de bronze, mas a matéria-prima mais
comum para sua confecção era a madeira: carvalho e bordo,

53
terebinto, tuia, ou madeiras exóticas de linhas ondulantcs c
reflexos cambiantes que lhes davam mil cores ao mesmo tem­
po, como as plumas do pavão; eram os Icctipavonini. E ha­
via ainda diversas combinações, como a madeira do estrado
com o bronze dos pés, ou o marfim dos pés com o bronze
do estrado; a madeira incrustada dc fragmentos de casco de
tartaruga ou bronze com incrustações de prata ou de ouro22,
O requinte atingia seu ponto alto com o emprego dc prata
maciça, como na casa de Trimalcião. O leito era o móvel
por excelência da domus senhorial e da insula proletária, c
pouco importa se uma vez ou outra não impediu os roma­
nos de procurar c utilizar outros. As mesas nada tinham em
comum com as que conhecemos hoje em dia. Só bem mais
tarde, por intermédio do culto cristão, é que se tornaram as
mesas maciças de quatro pés. No Alto Império, as mensae
eram aparadores dc mármore montados sobre um pedestal
e destinados a expor os objetos mais preciosos da casa (carti-
bula), ou vcladorcs dc madeira ou dc bronze com três ou qua­
tro trapezophori
* móveis, ou ainda simples tripés cujas hastes
metálicas e dobráveis cm geral terminavam cm garras de leão.
Quanto aos assentos, seus vestígios nas escavações são ainda
mais raros, e há uma razão convincente para isso. Como as
pessoas comiam e trabalhavam deitadas, constituíam um mó­
vel supérfluo. Dc fato, a poltrona ou thronus, dc braços e
espaldar, era reservada à divindade; a cadeira com cspaldar
ligeramente inclinado, a cathedra, não tinha função na vida
privada: apenas algumas grandes damas — que, aliás, Juve­
nal critica pela indolência —- costumavam se recostar langui­
damente nas cadeiras, e os textos mostram-nas em duas casas
apenas: na sala de recepção do palácio dc Augusto — a ex­
pressão “Toma assento, Cina”, de Corneille, deriva da nar­
rativa de Seneca — e no quarto — atbiadtim — onde Plínio,
o Jovem, recebia os amigos para conversar. Alhures compa­
recem apenas como o atributo do mestre que ensina na scho-
la ou do sacerdote que oficia no templo: os irmãos arvais
da religião oficial, o chefe de determinadas seitas esotéricas
do paganismo, mais tarde o presbítero cristão; e é daí que
se origina o moderno termo “cátedra”. Os romanos se con­

* Pequenas colunas que sustentam peças do mobiliário. (N. da T.)

54
tentavam com bancos (scamna), cscabclos (subsellia) ou sei-
lac, sem braço ou encosto, que levavam consigo para fora,
c que, mesmo a curul, de marfim, como a dos magistrados,
ou de ouro, como a de Júlio César, nao passavam de banqui­
nhos. O resto do mobiliário, o essencial, consistia cm capas
de móveis, tapetes, colchas, almofadas dispostas nas camas,
aos pés das mesas, nos bancos c nas sellae, c ainda nos ador­
nos e nas baixelas. A baixela dc prata era um utensílio tão
comum que Marcial ridiculariza os senhores mesquinhos, que,
por ocasião das saturnais, não presenteavam os clientes se­
quer com cinco libras (pouco mais de um quilo e meio) de
prataria23. Apenas os muito pobres tinham baixela de argi­
la. Entre os ricos, a baixela era cinzclada por mestres, dc ou­
ro reluzente24, incrustada de pedras preciosas. Alguns textos
antigos revelam o brilho dc um conto das Mil e uma noites,
num quadro semelhante àquele cm que o Islã não deixou de
viver, em grandes aposentos despojados nos quais a riqueza
sc mede de acordo com a profusão c a profundidade dos di­
vãs, o rutilar dos tecidos adamascados, o brilho das peças de
ourivesaria e dos cobres damasquinados, ao mesmo tempo
que ignora todos os elementos de conforto aos quais o Oci­
dente sc apegou.
Assim, nas mais notáveis casas romanas a iluminação dei­
xava muito a desejar: as amplas aberturas eram suficientes,
em determinadas horas, para proporcionar a entrada de ar
e luz necessários, mas em certas horas, ou não permitiam
a entrada nem de um nem de outra, ou iluminavam c areja­
vam excessivamente. Por exemplo, nem na Via Biberatica,
no mercado de Trajano, nem na Casa dei Dipinti, em Óstia,
encontraram-se fragmentos de mica ou restos de vidro nas
janelas, prova de que as habitações não eram guarnecidas nem
de finas placas transparentes de lapis specularis, com que as
famílias abastadas do Império às vezes fechavam uma alco-
va, uma sala de banho, uma estufa no jardim, uma liteira;
tampouco descobriram-se pedaços do vidro espesso e opaco
que se ve nas lucarnas das termas de Pompéia e Herculano,
onde esse fecho hermético contribuía para manter o calor
sem criar a escuridão total25. Assim, improvisavam-se pro­
teções com tecidos e peles, que eram agitados pelo vento e
batidos pelo temporal, ou, recurso mais sólido, socorriam-

55
se dc janelas dc urna ou duas folhas de madeira que isolavam
não só o frio, a chuva, a canícula c a tramontana, mas tam­
bém a luz. O morador dc uma casa assim fechada, ainda que
fosse um velho cx-cônsul e se chamasse Plínio, o Jovem, es­
tava condenado a tiritar dc frio em pleno dia de sol ou a se
abrigar de uma tempestade atrás dc uma cortina dc trevas
tào profundas que nem o clarão dos relâmpagos conseguia
atravessar26. Diz o provérbio que uma porta deve estar aber­
ta ou fechada. Mas na insula romana o bem-estar dos locatá­
rios exigia que as janelas nunca permanecessem escancaradas
nem fechadas, e c certo que, a despeito da quantidade e das
dimensões, elas não lhes prestaram serviços nem proporcio­
naram o conforto que se espera delas.
Na insula as condições dc aquecimento também eram de­
ficientes. Como havia abolido o atrium, e os cenacula se su­
perpunham uns aos outros, a insula não podia utilizar o fogo
que os camponeses acendiam em suas cabanas, cuja abertura
no teto se encarregava de dar tiragem ás fagulhas e à fumaça.
Por outro lado, seria errôneo acreditar que ela tenha se be­
neficiado com o aquecimento central que lhe foi atribuído
por um exagero de palavras e um erro de fato. As instala­
ções de caloríferos de que há vestígios em tantas ruínas nun­
ca preencheram essa função. Elas consistem em, primeiro,
um aparelho de aquecimento — o “hipocausto” —, composto
de um ou dois fornos, alimentados, conforme a intensidade
e a duração da chama, por madeira, carvão, gravetos ou fo­
lhas secas, e de um canal dc emissão por onde o calor, a fuli­
gem e a fumaça penetravam no hipocausto adjacente; segundo,
a câmara dc calor — o “hipocauso” —, caracterizada pelos
alinhamentos paralelos de pequenas pilhas de tijolo entre os
quais circulavam juntas e aos quais envolviam da mesma for­
ma; por fim, as salas aquecidas, situadas, ou melhor, suspen­
sas, sobre o hipocausto e por isso denominadas suspensurac.
Na realidade, fossem ou não unidas pelos vãos nas paredes,
as suspenstirae eram separadas por uma camada de tijolos, outra
de argila e um revestimento de pedra ou mármore, cuja es­
pessura tinha como finalidade torná-las impermeáveis ás exa­
lações incômodas ou nocivas, e como efeito retardar o
aquecimento. Nesse dispositivo verifica-se que a superfície
aquecida das suspensurac nunca excedia a superfície dos hi-

56
pocaustos e que o funcionamento exigia tantos c mais hipo-
causos que hipocaustos. Segue-se que o sistema nao era um
aquecimento central, nem podia ser aplicado a prédios de vá­
rios andares. Na Itália antiga só era utilizado num edifício
quando este formava uma peça única c isolada, como a latri­
na encontrada cm Roma em 1929 entre o Grande Foro e o
foro de César. Alhures, sempre ocupa uma pequena parte
das construções que o possuem — a sala de banho nas villas
mais confortáveis dc Pompéia ou o caldarium das termas pú­
blicas — e naturalmcnte não deixou vestígios cm nenhuma
das insidae que conhecemos.
Pior ainda, a insula romana tampouco era equipada com
chaminés. Em Pompéia há algumas poucas padarias cujo for­
no se completava com um tubo semelhante a uma chaminé,
mas não se pode dizer que se identifica com elas, pois, dos
dois exemplos disponíveis, um está truncado de tal modo que
não se sabe onde desembocava, e o outro, em vez dc sair pe­
lo telhado, terminava numa estufa situada no primeiro an­
dar. Respiradouros como esses não foram descobertos nas
villas de Pompéia, nas de Hcrculano, e muito menos nas ca­
sas de Óstia, que reproduzem fielmente a insula romana. As­
sim, conclui-se que nos prédios da Urbs, se o pão e as bolachas
eram cozidos no fogo confinado do forno, os outros alimentos
eram preparados em fogareiro, e para lutar contra o frio os
homens tinham os braseiros como única arma. Vários uten­
sílios eram portáteis ou rolantes. Alguns eram de cobre ou
bronze, trabalhados com habilidade e imaginação fascinan­
tes. Entretanto, a graciosa nobreza da arre industrial não com­
pensa a inferioridade da técnica, a limitação dos recursos. As
moradas altas da Cidade tampouco desfrutavam do calor suave
que nos fornecem os nossos aquecedores e da alegria que re­
luz e crepita na chama da lareira. Ademais, às vezes viam-se
ameaçadas pelo insidioso ataque de gases maléficos, com fre-
qüência pela invasão de uma fumaça que nem sempre a des-
secação prolongada e a carbonização prévia dos combustíveis
(ligna coctilia, acapna) conseguiam evitar, e no rigor felizmente
excepcional de inverno os habitantes da Roma antiga aque­
ciam as mãos entorpecidas de frio sobre os tições dos
braseiros27.

J7
Além disso, a insula também nao era bem servida com
relação à água. Em geral, reconheço, as pessoas pensam o con­
trário. Esquecem-se dc que a adução da água à custa do Esta­
do foi concebida pelos romanos como um serviço puramente
público, do qual o interesse privado fora excluído na origem,
e dc que continuou a funcionar sob o Império ad tisnm po-
pidi, como diz Frontino, ou seja, para o bem da coletivida­
de, sem considerar o dos particulares. Pensamos nos catorze
aquedutos que levavam para Roma o frescor das fontes dos
Apeninos e, segundo os cálculos dc Lanciani, despejavam na
cidade um bilhão dc litros de água por dia; nos duzentos e
quarenta e sete castelos de água, castella, onde se decantavam;
nas fontes que tanto antigamente como hoje enchiam a ci­
dade com a melodia dos jorros e os feixes de luz, nas grossas
canalizações dc chumbo que levavam para as habitações par­
ticulares a água transportada pelos aquedutos e subtraída às
fontes; e imaginamos as casas romanas, como as nossas, des­
frutando do conforto da água corrente. Ora, isso não era ver­
dade. Primeiro, foi preciso esperar o reinado de Trajano e
a inauguração, em 24 de junho de 10928, do aqueduto bati­
zado com o nome do imperador — aqua Traiana —, para
que a água de fonte fosse levada aos bairros da margem di­
reita do Tibre, que até então dependiam de poços. Em se­
guida, mesmo na margem esquerda, as ramificações estabe­
lecidas com a permissão do imperador nos castella dos aque­
dutos eram concedidas, a título estritamente pessoal, apenas
aos proprietários de terras e mediante pagamento; e, pelo me­
nos até o começo do século II, as concessões, onerosas, eram
revogáveis c suprimidas pela administração no mesmo dia
em que faleciam os concessionários. Por fim, e sobretudo,
parece que as aduções privadas se limitavam ao andar tér­
reo, onde se domiciliavam de preferência os capitalistas resi­
dentes nos imóveis dc aluguel. Por exemplo, na colônia dc
Óstia — que, contudo, à imitação da vizinha Roma, possuía
um aqueduto, canalizações municipais e condutos particula­
res — nenhuma construção apresentou as colunas que teriam
permitido transportar a água das fontes para os vários anda­
res; e, seja qual for a época em que foram redigidos, os tex­
tos antigos testemunham contra a possibilidade de sua pre­
sença. Já nas comédias de Plauto, o dono da casa cuida para

58
que os criados encham diariamente as oito ou nove jarras
(dolia) dc bronze ou argila que mantém como reserva29. Sob
o Império, o poeta Marcial continua a contragosto depen­
dente da bomba dc cabo curvo que enfeita o pátio de sua
casa30. Nas Sátiras de Juvenal, os aguadeiros (aquarii) são de­
signados como o rebotalho dos escravos31. Para os juricon-
sultos da primeira metade do século III, continuam sendo
tão necessários à vida coletiva de cada imóvel que, por assim
dizer, a ele se incorporam e fazem parte da sucessão junto
com os porteiros (ostiarii) e os varredores (zelarii)32. Nas ins­
truções ao prefeito dos vigeis, Paulo, o prefeito do pretório,
lembrou a esse comandante dos bombeiros romanos que lhe
competia advertir os locatários para que sempre tivessem à
mão cm seus apartamentos a água necessária para extinguir
um princípio de incêndio: nt aqttam unusquisque inquilinus
in cenaculo habeat iubetur admonere^.
Aparentemente, a recomendação seria dispensável, se os
romanos da época imperial só precisassem abrir a torneira
para ver a água correr na pia. O simples fato de Paulo formulá-
la mostra que, afora algumas exceções, que, aliás, ainda es­
tão por ser encontradas, a água dos aquedutos chegava ape­
nas ao andar térreo das insulae. Os usuários dos cenacula
superiores eram obrigados a buscá-la na fonte mais próxi­
ma; e a obrigação tornava-se ainda mais penosa, uma vez que
os cenacula se situavam nos pavimentos superiores, à medi­
da que se aproximava do topo, dificultando a limpeza e a
lavagem das paredes e do piso das habitações populares das
últimas contignationes, pois estas exigiam mais que as outras.
Também é preciso admitir que, devido a lavagens malfeitas,
diversos apartamentos das insulae romanas acumulavam su­
jeira, c era fatal que a ela acabassem sucumbindo na inexis­
tência de um sistema de esgoto, que só existiu nas pressu­
posições arqueológicas demasiado otimistas.
Longe de mim a idéia de depreciar a admiração que me­
rece a rede de cloacas que levavam para o Tibre as imundí-
cies da Cidade. Iniciada no século VI a.C., constantemente
ampliada e aprimorada durante a República e o Império, foi
concebida, executada e mantida numa escala tão grandiosa,
que, em alguns setores, circulavam carroças de feno, e Agri-
pa — que foi, talvez, aquele que mais constribuiu para

59
aperfeiçoar-lhe o rendimento e a salubridade, jogando nas
cloacas o excesso dos aquedutos atravcs de sete canalizações
— pôde facilmente percorrê-la de barco. Ademais, o sistema
foi tao solidamente preparado que o mais amplo e o mais
antigo de seus esgotos, a cloaca maxima, que do foro ao sopé
do Aventino se tornara o coletor central, desemboca diante
de nossos olhos no rio, à altura da Ponte Rotto c, como na
época dos reis aos quais se atribui a obra, continua mostran­
do o arco plcnicêntrico, de 5 metros dc diâmetro, cujas aduelas
de tufo, cobertas de patina, imunes ao tempo, ainda se man­
têm intatas depois dc dois mil e quinhentos anos. E uma po­
derosa obra-prima para a qual contribuíram, com a longa
experiência reunida pelos etruscos na drenagem dc suas ma-
remas, a ousadia e a paciência do povo romano; e, tal como
chegou até nós, honra a Antiguidade. No entanto, apesar da
coragem para levar adiante um empreendimento desse por­
te, da paciência para concluí-lo, pode-se contestar o fato de
faltar aos homens daquela época a habilidade para utilizá-lo
adequadamente, como teríamos feito cm seu lugar; nao sou­
beram aproveitá-lo em todo o seu potencial para a limpeza
da cidade, para a saúde e a decência dos habitantes.
O sistema coletava as imundícics do andar térreo e das
latrinas públicas instaladas cm seu percurso, mas não estava
ligado às latrinas privadas dos cenactila. Em Pompéia há um
pequeno número de villas cujas latrinas instaladas no primeiro
andar lançavam os detritos no esgoto através do conduto que
as ligava às do térreo ou por uma canalização especial. Em
1910 julguei notar canos de descarga em duas ou três salas
do bairro dos cais do porto, em Óstia34. Nada, porém, é me­
nos seguro que a definição, proposta por mim, então, desses
cilindros de argamassa, aliás, demasiado grosseira para não
datar de uma época tardia, que se encolhem a um canto da
taberna e se unem ao solo através de um soco de alvenaria
igualmente tosco. Como não houve nenhuma pesquisa pro­
funda, não se pode afirmar que penetravam no subsolo, e
como as partes superiores do conjunto a que pertencem de­
sabaram, não se sabe se ultrapassavam o teto da taberna. E,
por fim, como estão ausentes das insulae mais consideráveis
de Óstia e também das ruínas até agora exploradas dc Ro­
ma, devemos ater-nos ao juízo do abade Thédenat, que há

60
u. <

trinta c cinco anos declarou sem rodeios que as cloacas da


Urbs nunca tiveram ligação com os apartamentos das insu­
lae. O esgoto da casa romana não passa dc um mito criado
pela complacente imaginação dos autores modernos, e, dc
todas as restrições que pesavam sobre a Cidade, essa é sem
dúvida a que o homem contemporâneo rejeitaria com maior
repugnância.
Certamente, os mais abastados estavam livres desse pro­
blema. Se moravam em sua própria casa podiam instalar uma
latrina. A água dos aquedutos chegava até sua residência, e
na pior das hipóteses, se a casa se situava muito longe de uma
ramificação do esgoto, os dejetos eram lançados numa fossa
subjacente que, como a que foi exumada em 1892 perto de
San Pietro in Vincoli, pecava pela falta dc profundidade e
estanqueidade e que os comerciantes de adubos adquiriram
o direito de esvaziar, sem dúvida sob o reinado de Vespasia-
no. Sc os privilegiados moravam numa insula, tinham meios
de alugar o andar térreo, que lhes proporcionava as mesmas
vantagens e na verdade também se chamava domus. Os po­
bres, no entanto, tinham um caminho mais longo a percor­
rer. De qualquer modo, eram obrigados a sair de casa. Desde
que nao se importassem com a pequena despesa, pagavam
pelo uso de uma das latrinas comuns administradas por ar­
rendatários fiscais, os conductoresforicarum. K própria mul­
tiplicidade desses estabelecimentos, inventariados nos Regio-
nários, indica a importância de sua clientela. Na Roma de
Trajano, como ainda hoje em alguns vilarejos franceses, a
maioria dos cidadãos dispunha apenas de latrinas públicas.
Porém, a semelhança não vai mais longe. Para nós sào du­
plamente desconcertantes as latrinas da Roma antiga, pelo
pouco que nos lembramos dos exemplos de Pompéia, de Tim-
gad, de óstia e, em Roma mesmo, do que nos forneceu a
forica situada na interseção do foro e do forum Iulium, de
que já falei e que no inverno era aquecida por um hipocaus­
to. Elas são públicas em toda a acepção do termo, como a
moita dos soldados em guerra. Sem qualquer pudor, as pes­
soas aí se encontram, conversam, procuram convites para
jantar35.
Ao mesmo tempo, as latrinas são equipadas com super-
fluidades, decoradas com uma profusão de objetos que não

61
estamos habituados a ver em tal lugar. Ao redor do hemici-
clo ou do retângulo que desenham com elegância, a água cor­
ria ininterruptamente cm canais diante dos quais se dispu­
nham cerca de vinte assentos de mármore perfurado, que ti­
nham de cada lado consolos esculpidos em forma de delfins,
que serviam ao mesmo tempo de apoio e de separação. Aci­
ma deles não eram raros nichos com estátuas dc heróis ou
deuses, como no Palatino, ou um altar da Fortuna, deusa da
saude e da felicidade, como em Óstia36; e frequentemente
alegrava o ambiente a canção de um jorro de água, como em
Timgad. Confessemos: ficamos desconcertados com a espan­
tosa mistura dc delicadeza c grosseria; sentimo-nos perdidos
com a solenidade e a graça do cenário e com a terrível fami­
liaridade dos atores. Sem querer, pensamos nas medersas
* do
século XV que visitei em Fez e cujas latrinas, dispostas igual­
mente para receber uma multidão de cada vez, são revesti­
das de estuques rebuscados e cobertas por um teto de cedro
rendilhado. E de repente sentimos que Roma, onde ate as
latrinas do palácio imperial, ornamentadas e majestosas co­
mo um santuário sob uma cúpula, compreendiam três luga­
res lado a lado, essa Roma mística e terra-a-terra, artista e
carnal, vai se unir, longe de nós, sem pruridos, à época dos
merínidas, nos confins do Maghreb.
Entretanto, os avarentos e os miseráveis não frequenta­
vam as latrinas públicas. Eles não queriam dar nem um as
aos arrendatários das foricae. Contentavam-sc com as jarras
proposital mente desbeiçadas que, graças à permissão de Ves-
pasiano, mediante o pagamento de uma taxa inodora, o pi-
soeiro da esquina colocava diante de sua oficina para que lhe
fornecessem gratuitamente a urina necessária a seu ofício. Ou
se precipitavam prédio abaixo a fim de esvaziar os vasos (la-
sana) e as cadeiras perfuradas (sellae pertusae) na cuba ou no
dolium colocados no vão da escada37. Ou, ainda, se o dono
da insula não permitisse esse recurso, iam até um monturo
das vizinhanças. Pois na Roma dos Césares, assim como num
vilarejo desleixado, muitas ruelas estavam empestadas por uma
dessas fossas lixeiras (lacus) que Catão, o Velho, mandou pa­
vimentar ao mesmo tempo que limpou as cloacas e as con-

* Estabelecimento de ensino superior entre os muçulmanos. (N. da T.)

62
duziu para o Avcntino. No século de Cícero c César, elas
nao haviam desaparecido: Lucrécio as menciona cm seu poe­
ma De rerum natura. Duzentos anos depois, sob Trajano,
ainda estavam ali, c viam-se esgueirar-se as megeras que, de­
cididas a livrar-se dc sua prole, iam enjeitar seus recém-
nascidos com a proteção de uma lei bárbara, c as matronas
estéreis que corriam a recolher cm segredo as crianças e a
satisfazer o desejo de paternidade arraigado no coração dc
seus crédulos esposos38. Havia também os pobres-diabos que
achavam os monturos muito distantes c as escadas muito ín­
gremes, e para se poupar ao cansaço jogavam pela janela o
conteúdo dos vasos noturnos. Azar dos transeuntes que se
encontravam na trajetória dos dejetos! Emporcalhados ou fe­
ridos, como na sátira de Juvenal39, só lhes restava apresen­
tar queixa contra desconhecidos, e em várias passagens da
Digesta os jurisconsultos clássicos não deixam de caracteri­
zar os delitos, convocar os juizes, encontrar os delinquentes
e determinar as indenizações devidas às vítimas. Ulpiano re­
laciona as hipóteses para melhor identificar os culpados. “Se
o apartamento (cenacultim) foi dividido entre vários habitan­
tes”, diz ele, “haverá recurso apenas contra aquele que resi­
de na parte do apartamento do qual se despejou o líquido.
Se o locatário subloca (cenacularium exercens), porém se re­
serva o usufruto da parte maior do apartamento, será ele o
único responsável. Se, ao contrário, o locatário que subloca
reserva para seu próprio uso um espaço modesto, ele e seus
sublocatários serão declarados solidariamente responsáveis.
E o mesmo ocorrerá se os dejetos partirem de um balcão.”
No entanto, alhures Ulpiano não exclui as culpas individuais
reveladas pela investigação e convida o pretor a julgar im­
parcialmente e calcular as sanções conforme os danos. Por
exemplo, “quando, após a queda de um desses projéteis ati­
rados de uma casa, o corpo de um homem livre sofrer uma
lesão, o juiz deverá conceder à vítima, além do reembolso
dos honorários médicos e de outras despesas efetuadas para
a cura, o montante dos salários dos quais foi e será privada
pela incapacidade de trabalho que a acometeu”40. Sábias dis­
posições, nas quais julgaríamos ter se inspirado a jurispru­
dência de acidentes na França, que todavia não as seguiu até
o fim, pois Ulpiano termina com uma restrição que, se fosse

63
admitida pelos tribunais franceses, rapidamente acabaria com
a clientela das clínicas de cirurgia plástica, porém na qual ele
traduziu com a simplicidade de sua linguagem impassível e
generoso sentimento da dignidade humana que o animava.
“Quanto ás cicatrizes e ao afeamento que porventura resul-
tarem desses ferimentos, não se fará estimativa nenhuma, pois
o corpo de um homem livre não tem preço.”
A última frase, de rara elevação moral, ergue-se como
uma flor acima de um pântano e aumenta o desconcerto em
que nos lança o espetáculo entrevisto através das numerosas
e sutis análises dos juristas. Nossas grandes cidades também
estão ensombrecidas pela miséria, maculadas pela sujeira dos
casebres, desonradas pelos vícios que eles geram. Contudo,
a lepra que as corrói felizmente é localizada e em geral não
vai além dos bairros malditos. Enquanto na Roma imperial
temos a impressão de que Babitt e Soho se estendiam a to­
das as regiões. Em quase toda a Urbs as insulae pertenciam
a proprietários que, desejosos de esquivar-se dos aborrecimen­
tos de uma administração direta e mediante um aluguel no
mínimo igual ao da domus do rés-do-chão, arrendavam por
cinco anos os apartamentos superiores a um verdadeiro in­
dustrial da exploração dos cenacula. O locatário principal não
exercia uma profissão tranquila. Precisava manter o local,
recrutar e alojar seu pessoal, preservar a paz e, pagando o
aluguel anualmente, reccbc-lo a cada trimestre. Naturalmente,
os lucros compensavam os aborrecimentos e os riscos. O au­
mento dos aluguéis constitui um eterno tema de lamenta­
ções na literatura romana. Em 153 a.C., já eram tão exor­
bitantes, que um rei exilado precisou dividir seu apartamen­
to com um pintor para nao ser expulso. Na época de César
os mais modestos ainda chegavam a 2 000 sestércios = 2 000
francos Poincaré - 400 francos de antes da guerra. No tem­
po de Domiciano e Trajano, com o dinheiro corresponden­
te a um aluguel podia-se comprar uma bela propriedade em
Sora ou Frosinone41. De modo que, arcando com o peso in­
tolerável, os locatários do locatário principal se viam obri­
gados a sublocar os quartos ociosos do cenaculum; e quanto
mais alto o andar, mais irrespirável se tornava o ambiente
abarrotado, mais ignóbil a promiscuidade. Se o térreo se di­
vidia em várias tabemae, estas estavam cheias de artesãos, re­

64
vendedores, donos dc botequins, como o deversitor da insu­
la descrito por Petrônio42. Sc servia dc habitação a um úni­
co privilegiado, era burguesamente ocupado pela gente do
dono da downs. Dc qualquer modo, acima estavam os apar­
tamentos, cada vez mais lotados, pouco a pouco invadidos
pela ralé, onde se apinhavam famílias, acumulavam-sc poei­
ra, detritos, lixo c corriam os percevejos, que um dos bri­
gões do Satyricon, escondido sob o catrc, c obrigado a lamber
na parede coberta dc vermes. E por quase toda parte, fos­
sem domus elegantes ou insulae — cstalagcns cuja população,
medonhamente misturada, requeria para a manutenção da
ordem um exército dc escravos e de porteiros sob o coman­
do de um intendente servil —, as habitações da Urbs, rara­
mente alinhadas ao longo dc uma avenida, amontoavam-se
num labirinto de ladeiras, de ruas c ruelas estreitas, tortuo­
sas c escuras, onde o mármore dos “palácios” brilhava na
sombra dos antros dc malfeitores.

As ruas de Roma e a circulação

Se com o toque de uma varinha mágica pudéssemos


desenredá-las e estendc-las unidas umas às outras, as vias de
Roma43, contadas e medidas por Vespasiano e Tito quando
foram censores em 73 d.C., cobriríam uma distância de 60 COO
passos, ou cerca dc 85 quilômetros; orgulhoso dessa imensi­
dão, Plínio, o Velho, coteja a altura dos edifícios plantados
sobre seu trajeto para logo proclamar que no mundo antigo
nao havia uma cidade cuja grandeza pudesse comparar-se à
de Roma44. Na verdade, porém, tal grandeza é apenas quan­
titativa, e os elementos dc que se originou destoam entre si
a partir do momento em que, ao invés de se ordenar na pers­
pectiva imaginária cuja linha reta Plínio traçou em seu per­
gaminho, a rede viária romana perdia-se num labirinto
inextricável, cujos inconvenientes ainda eram agravados pe­
la enormidade dos edifícios que ela envolvia. Na verdade,
é à anarquia dos caminhos estreitos, sinuosos, fugidios, co­
mo se tivessem sido traçados a esmo através da massa das

65
gigantescas insulae, que Tácito atribui a facilidade e a rapi­
dez com que o terrível incêndio de 64 d.C. sc propagou cm
Roma45; c se Nero, que aprendeu a lição, decidiu recons­
truir os quarteirões arruinados seguindo um plano mais ra­
cional, com alinhamentos mais corretos c aberturas mais
amplas, nao alcançou o objetivo. No conjunto, e até o fim
do Império, as ruas dc Roma constituíam mais um labirinto
inorgânico que um sistema francamente utilizável. Sempre
sc ressentiram dc suas origens distantes e de velhas distin­
ções que presidiram sua implantação rústica entre as vias aces­
síveis apenas aos pedestres, as itinera; aquelas que permitiam
a passagem de um carro por vez, as actus; e aquelas em que
dois carros podiam se cruzar ou correr lado a lado, as viac
propriamente ditas. Das inúmeras ruas dc Roma, apenas duas
tinham o direito de receber o nome de “via” no interior da
velha muralha republicana: a Via Sacra e a Via Nova, que
atravessavam ou ladeavam o foro e cuja insignificância nos
surpreende a todo momento. Entre as portas da muralha e
a periferia das catorze regiões havia mais ou menos vinte que
mereciam a mesma designação: as estradas que conduziam
ao resto da Itália, a Via Appia, a Latina, a de Ostia, a Labica-
na, etc. Oscilam entre 4,80 metros c 6,50 metros de largura,
prova de que nao ganharam terreno desde a época cm que
as Doze Tábuas lhe permitiram ter no máximo 14,80 me­
tros. A maioria das outras, as ruas autenticas, ou vici, mal
alcançavam 5 metros, e muitas eram mais estreitas, simples
passagens — angiportus — ou sendas —semitae às quais era
prescrito um recuo de 2,90 metros, para que os moradores
dos edifícios pudessem projetar os balcões46. A estreiteza das
ruas era tanto mais incômoda devido aos ziguezagues, que,
nas “sete colinas”, subiam ou desciam grandes inclinações
— donde o nome dc “rampas”, clivi, que convém a várias
delas: Clivus Capitolinus, Clivus Argentarium e, por fim,
recebendo diariamente os dejetos das casas vizinhas47, não
eram tão bem conservadas quanto César prescrevera em sua
lei póstuma, nem sempre dotadas dc calçadas e da pavimen­
tação que o ditador decidira impor na mesma ocasião.
Basta reler o texto célebre, gravado no bronze da tábua
de Heracléia. Num tom cominatório, César intima os pro­
prietários dos imóveis situados na via pública a limpar to­

66
dos os dias a parte situada defronte ao imóvel; ao edil res­
ponsável pelo bairro, ordena que supra eventuais omissões
nesse sentido designando um empreiteiro nas formas habi­
tuais do Estado para executar corvcias obrigatórias, median­
te pagamento fixado dc antemão, que será rateado entre os
faltosos, havendo um acréscimo de cinquenta por cento cm
caso dc atraso. A ordem c imperativa, a sanção, implacável.
Contudo, por mais engenhoso que seja o mecanismo, todo
o procedimento acarrreta atrasos — dez dias, no mínimo —,
que, na maior parte do tempo, deveriam torná-lo ineficaz,
e deve-se convir que robustas equipes dc varredores e lixei­
ros, dirctamcntc recrutados c empregados pelos edis, fariam
o serviço com mais rapidez c eficiência. Mas não há nenhum
indício dc sua existência, c a idéia dc que o Estado devesse
substituir sua autoridade c sua responsabilidade à dos parti­
culares nao podia ocorrer a um romano, ainda que fosse ele
dotado do gênio dc Júlio César. Assim, à falta dc serviços
adequados, apesar da vigilância e do zelo, os magistrados nun­
ca foram capazes dc assegurar salubridade às ruas da Roma
imperial.
A meu ver, tampouco conseguiram estender a toda a Ci­
dade as calçadas (margines, crepidines) o\i mesmo a pavimen­
tação (sternendac viae) com que outrora César desejara equipar
as ruas.
Os arqueólogos que pensam o contrário creditam a inércia
às grandes pedras das estradas italianas, sem se lembrar de
que a colocação daquelas da Via Appia, em 312 a.C., prece­
deu em sessenta e cinco anos sua introdução, na Clivus Pu-
blicius, no interior da muralha republicana4S. Ou então
mais uma vez se entrincheiram atrás do exemplo de Pom­
péia, esquecendo quanto a analogia foi enganosa. Na verda­
de, ela não serve mais aos vici que às insulae da Urbs. Se as
ruas da Roma imperial tivessem se beneficiado amplamente
da suposta pavimentação, o pretor dos Flávios de que fala
Marcial não teria sido obrigado a “andar no meio da la­
ma”49 durante sua caminhada; e Juvenal não teria escorre­
gado no lodo. Quanto às calçadas, é impossível que tenham
acompanhado aquelas que a maré alta das mercadorias ex­
postas teria submergido não fosse o edito de Domiciano elo­
giado no epigrama: “Graças a ele, já não vemos pilares

67
rodeados de garrafas encadeadas. Tampouco negras tabernas
estendendo-se pelas vias públicas. Barbeiro, tabernciro, co­
zinheiro, açougueiro restringem-se a sua soleira. Por fim, exis­
te Roma, que outrora nao passava dc uma vasta loja”50.
O edito em questão teve efeito duradouro? Há dúvidas
a esse respeito. Todavia, a retirada das mercadorias expostas
na rua, que a vontade de um imperador despótico talvez não
conseguisse durante o dia, realizava-sc à noite. Essa c uma
das características que mais distinguem a Roma imperial das
capitais contemporâneas: quando não havia luar, as ruas mer­
gulhavam na mais profunda escuridão. Nenhuma lâmpada
a óleo ou a sebo pendurada nas paredes51; nenhuma lanter­
na suspensa no lintel das portas, a nao ser quando Roma se
iluminava para celebrar uma festa improvisada, demonstrando
uma alegria coletiva, como a que se apoderou da cidade na
noite cm que Cícero a livrou da peste catiliniana. Normal­
mente a noite cai sobre Roma como a sombra dc um perigo
difuso, sorrateiro, temível. Todos voltam para casa, onde se
trancam e se entrincheiram. As lojas silenciam, correntes se
estendem por trás das portas; as janelas dos apartamentos se
fecham, c guardam-se os vasos de flores que as enfeitavam52.
Sc urge um motivo para sair, os ricos vão acompanha­
dos dc escravos que portam tochas para iluminar e proteger
seus passos. Os outros nao confiam nas rondas noturnas (se-
baciaria) que, de tocha em punho, em pequenos grupos, per­
correm o setor, extenso demais para receber vigilância
integral, das duas regiões cujo policiamento compete a cada
uma das sete coortes. Aventuram-se a sair com vaga apreen­
são e cenamente a contragosto. Sair para cear sem ter feito
o testamento é expor-se à crítica de negligência, suspira Ju­
venal; e, se ele exagera ao afirmar que a Roma de seu tempo
era menos segura que a floresta Gallinaria e as lagoas
Pontinas55, basta folhear o Digesto c observar os trechos que
condenam à punição do prefeito dos vigeis os assassinos (si-
carii), os arrombadores (effractores), os ladrões de todo tipo
(raptores), abundantes na Cidade para convir que seus vici
tenebrosos, onde, na época de Sila, Roscius de Amcria en­
controu a mone ao voltar de um jantar, “havia muitas des­
venturas a temer”. Nem todas eram trágicas, ainda que o
noctívago se expusesse à morte ou pelo menos à infecção,

68
“sempre que sobre ele sc abriam janelas atrás das quais nao
se dormia”. E a menos grave era aquela dos tristes heróis
do romance de Pctrônio que deixaram a mesa dc Trimalciao
tarde da noite, meio bebedos, perderam-se por falta dc lan­
ternas no labirinto de ruas sem placas, sem números e sem
lâmpadas, c só ao romper do dia encontraram o caminho
dc casa34.
A circulação estava sujeita a essa oposição dc dia e noite.
Durante o dia havia intensa animação, atropelos caóticos,
um barulho infernal. As tabemae sc enchem assim que abrem
as portas, além das quais expõem as mercadorias. Os barbei­
ros atendem os fregueses no meio da rua. Os bufarinheiros
do Transtcvere trocam mcchas de enxofre por contas de vi­
dro. Os donos de botequim, roucos de tanto chamar uma
freguesia que se faz de surda, exibem salsichas fumegantes
em caçarolas. Mestres-escolas e seus alunos esgoelam-se ao
ar livre. De um lado, um cambista tilinta numa mesa suja
moedas com a efígie de Nero; de outro, um bate-folha gol­
peia o ouro com o martelo brilhante sobre a pedra gasta; na
esquina, um grupo de curiosos se maravilha com um encan­
tador de serpente; por toda parte retinem as marteladas dos
caldeireiros e as vozes dos mendigos que em nome de Belo-
na ou como lembrança de seus infortúnios se esforçam por
enternecer os transeuntes. Estes escoam num fluxo ininter­
rupto que os obstáculos a sua frente não impedem de tomar-se
torrencial. Em ruelas indignas de uma aldeia, há todo um
mundo, à sombra ou ao sol, que vai, vem, grita, se acotovela
e se empurra55: e quinze séculos antes dos engarrafamentos
de Paris que excitaram a verve de Boileau, os engarrafamen­
tos dc Roma estimularam a de Juvenal.
Poderiamos pensar que à noite todo o alvoroço desapa­
recería no silêncio do medo e numa paz sepulcral. Simples­
mente é substituído por outros. Ao desfile dos homens, agora
refugiados nas casas, sucede-se, pela vontade de César, o das
bestas de carga com seus carroceiros e comboios. De fato,
o ditador entendera que em vielas acidentadas e estreitas co­
mo os vici de Roma a circulação de veículos, exigida pelas
necessidades de centenas de milhares de habitantes, produ­
ziría de dia um engarrafamento de trânsito imediato e cons-

69
tituiria permanente perigo. Daí ter tomado a medida radi­
cal, que está em sua lei póstuma. Do amanhecer ao crepús­
culo nao é permitida a movimentação de carros no interior
da Urbs. Aqueles que tiverem entrado à noite e nao saírem
ao amanhecer terão apenas o direito de ali estacioná-los, va­
zios; a regra inflexível admite somente quatro exceções. Pri­
meiro, três exceções temporárias, respectivamente
consentidas: em dias de cerimônias solenes, aos carros das
vestais, do rei dos sacrifícios, dos flãmines; em dias de triun­
fo, aos carros indispensáveis ao desfile da vitória; nos de jo­
gos públicos, aos carros exigidos por essa celebração oficial.
Depois, uma exceção permanente cm todos os dias do ano
aos carros dos empreiteiros que fazem a demolição de uma
cidade sufocante para reconstruí-la mais saudável e bela. Afora
os casos claramente definidos, durante o dia circulam nas ruas
dc Roma apenas pedestres, cavaleiros, donos dc liteiras c de
cadeirinhas; e sejam pobres exéquias realizadas ao cair da tarde,
sejam majestosos funerais cm pleno dia, precedidos ou nao
dc flautistas c trompistas, seguidos ou não de um longo cor­
tejo de parentes, amigos c carpideiras (praeficae), os mortos,
fechados no caixão (capulum) ou colocados num esquife de
aluguel (sandapila), irão à pira de incineração ou à tumba de
sepultamento numa simples padiola carregada por vespillo-
nes56.
Em compensação, ao cair da noite começará o movimento
dos carros de toda espécie que enchem a cidade dc barulho.
Pois não se deve pensar que a legislação de César não
sobreviveu a ele, que, para sua conveniência, os cidadãos mais
cedo ou mais tarde tenham eliminado as disposições draco­
nianas. A mão de ferro do ditador dobrou os séculos, e os
imperadores que o sucederam nunca libertaram os romanos
das sujeições às quais ele os submetera pelo interesse vital
da coletividade. Ora um, ora outro, consagraram-nas,
reforçaram-nas. Cláudio as estenderá da Urbs aos municípios
italianos; Marco Aurélio, a todas as cidades do Império, sem
distinção de estatuto municipal; entrementes, Adriano limi­
tará os animais e as cargas das carroças autorizadas a pene­
trar na cidade57; e no fim do século I ou no II d.C. os es­
critores sempre nos transmitem a imagem da Roma definiti­
vamente policiada por Júlio César.

70
Por exemplo, segundo Marcial, c à noite que as viaturas
sacodem as insulae com suas rodas c que o 'fibre reflete o
aía dos carregadores e puxadores de sirga5*. Para Juvenal, o
trânsito incessante e os rumores que o cercam condenam os
romanos à insônia. “Em que apartamento o sono é possí­
vel? A passagem dos carros nas esquinas das rucks, os xinga-
mentos dos arriciros que nao avançam tirariam o sono do
próprio imperador Cláudio e das focas.’’ E na agitação insu­
portável do dia, contra a qual o poeta vitupera logo a seguir,
só ouvimos acima do bulício dos pedestres “o balanço de
uma liteira puxada por um liburno”. O rebanho em que o
poeta é arrastado prossegue a pé em constante confusão. A
multidão que precede Juvenal constitui obstáculo para sua
pressa. A que o segue lhe comprime as costas. Um o acoto­
vela; outro lhe bate com uma viga; um terceiro esbarra-lhe
na cabeça com uma metreta, uma barrica com capacidade
para 39 litros. Um calçado largo esmaga-lhe o pé. Um prego
dc soldado crava-se em seu artelho, e sua túnica recém-cerzida
está em farrapos. E, de repente, o pânico. Aparece uma car­
roça transportando um longo barrote; a seguir, outra com
um abeto inteiro, e mais uma carregada de mármores da Li-
gúria. “Se o eixo quebrar e a massa, perdendo o equilíbrio,
desabar sobre os transeuntes, o que restará dos pobres cor­
pos esmagados?’’59
Assim, sob os Flávios e sob Trajano, como um século
c meio antes, publicado o decreto de Júlio César, os únicos
veículos que circulam durante o dia em Roma são os dos em­
preiteiros. A lei do grande morto ainda está viva, c a persis­
tência marca a originalidade que garante à Roma imperial
um lugar ímpar entre todas as cidades da geografia e da his­
tória. Sem esforço, a Urbs harmoniza os aspectos mais con­
trários. Adapta-se naturalmente às formas mais diversas do
passado e do presente; e, inclinando-se na aparência a con­
frontos dc opostos, no fundo permanece incomparável. De
repente, as casas arrogantes e frágeis erguiam a um nível pró­
ximo ao de nossas residências as delicadezas modernas de um
luxo extravagante e as grosserias medievais de um conforto
irrisório. E agora, para terminar, são as ruas que nos descon­
certam. Parece que emprestaram de um bazar árabe as cenas
que ali sc desenrolam. São povoadas de multidões barulhen­

71
tas, fervilhantes e coloridas, como as que podemos encon­
trar na Praça Djema’a el-Fna, em Marrakech, cheias de uma
confusão que nos parece incompatível com a própria idéia
de civilização. Eis que de repente, para transformá-las num
piscar de olhos, surge uma ordem imperial e lógica decreta­
da num instante e mantida durante gerações como o sinal
dessa disciplina social que entre os romanos compensou as
falhas de sua técnica, e que o Ocidente de hoje, oprimido
pela multiplicação de suas descobertas e pela complexidade
de seus progressos, também se esforça por praticar para sua
salvação.

72
SEÇÃO II

O MEIO MORAL

À imagem da Cidade, a sociedade que a povoa no século


II está repleta de surpreendentes contrastes. A estrutura é ao
mesmo tempo rigorosamente hierarquizada e francamente
igualitária, interpondo uma insípida classe média entre uma
vistosa aristocracia de abastados e as massas anônimas do pro­
letariado. A evolução de suas famílias passou do estrito con­
formismo à extrema liberdade. Sua consciência, imbuída da
dignidade da cultura, mas privada do apoio de uma verda­
deira ciência, indecisa entre os imperativos de doutrinas as­
céticas e a permissividade dc uma ultrajante amoralidade,
oscila das negações de um ceticismo egoísta às efusões e aos
arrebatamentos de místicos entusiásticos; e suas elites são ao
mesmo tempo exaltadas pela prática das mais nobres virtu­
des e aviltadas pela degradação dos vícios mais ignóbeis. As­
sim, como o deus Jano nos mostra a oposição dos dois rostos,
a Roma de Trajano nos oferece, do ponto de vista moral,
ora o aspecto da cloaca de perversões em que a Antiguidade
começa a apodrecer, ora o do sublime asilo que acabou por
salvar e realizar o puro ideal que devia regenerar a civilização.

73
CAPÍTULO I

A SOCIEDADE: AS CASTAS CENSITÁRIAS E O


PODER DO DINHEIRO

Hierarquia igualitária e cosmopolitismo

À primeira vista, a sociedade romana é crivada de bar­


reiras e divisões. Em princípio, os homens nascidos li­
vres, os “ingênuos”, sejam cidadãos de Roma ou de ou­
tro lugar, são radicalmente separados pela superioridade
de sua origem da multidão de escravos, gado de feições
humanas, sem direitos, garantias ou personalidade, en­
tregue como um rebanho à dependência do amo e, como
um rebanho, assimilado mais a um conjunto de objetos
que a um grupo de seres vivos: res mancipi, A seguir, en­
tre os homens livres, cabe estabelecer uma profunda dis­
tinção entre os cidadãos romanos que a lei protege e a-
queles que ela subjuga. Por fim, os cidadãos romanos se
classificam de acordo com uma escala de valores sociais de­
terminados pelo nível de sua fortuna.
No grau mais baixo estão os humildes, os humiliores, a
plebe sem bens reconhecíveis e contáveis, que Plínio, o Jo­
vem, acha lógico afastar das honras municipais na Bitínia que
administra como legado de Trajano e que em Roma são pas­
síveis de açoite à menor contravenção, e pelo menor crime
podem ser enviados às minas, às feras do anfitea­
tro ouji crucifixão. Acima deles estão as pessoas honestas,
honestiores» os “burgueses” da época, para quem a posse de
no mínimo 5 000 sestércios (5 000 francos Poincaré = 1 0C0
francos de antes da guerra) constitui sinônimo de honorabi-
lidade e, em caso de delito grave, assegura repressões mais

75
brandas e menos infamantes: banimento, rctegatio\ confis­
co. Aliás, estes se subdividem cm várias categorias:,a mais
ínfima, e também a mais numerosa, não poderia ter a pre­
tensão de servir o Estado, isto é, dc deter e cxcrccr nem a
mínima parcela do poder público c, por conseguinte, nao
merece o belo nome de classe: ordo. A noção de ordo só se
aplica mais acima. Primeiro, na base, com a ordem equestre,
cujos membros possuem no mínimo 400 000 sestércios e
quando conquistam a confiança do imperador recebem o co­
mando de suas tropas auxiliares c determinado número de
funções civis que lhes são reservadas: procuradorias meno­
res, patrimoniais e fiscais; governos de províncias secundá­
rias, como as dos Alpes e da Mauritânia; as direções, a partir
de Adriano, dos diversos postos do gabinete imperial e, a par­
tir de Augusto, todas as prefeituras, exceto a da cidade. De­
pois, no topo, com a ordem senatorial, cujos membros são
possuidores de no mínimo 1 milhão dc sestércios e, confor­
me a vontade do imperador, tornam-se chefes de suas legiões,
legados c procônsulcs das províncias mais importantes, ad­
ministradores dos principais serviços da cidade de Roma e
sumos sacerdotes. Entre as diferentes espécies de privilegia­
dos, uma sábia hierarquia gradativamente coloca seus pata­
mares, e para que os limites sejam mais visíveis Adriano
concederá a cada um deles um título de nobreza que só con­
vém a ele: a designação de homem distinto (vir egregins), pa­
ra os simples procuradores; homem perfeitíssimo (vir perfe-
ctissimus), para os prefeitos, exceto os do pretório, cujo títu­
lo de eminência (vir eminentissimus) mais tarde será restau­
rado na Igreja romana, para os cardeais; homem ilustríssimo
(vir clarissimus), para os senadores e seus filhos.
Esse sistema rígido e preciso, cujas sábias combinações
anunciam as complicações do tchin" imaginado por Pedro,
o Grande, e as equivalências dos graus no exercito e na Le­
gião de Honra, decretados por Napoleao, ergue em Roma,
de onde partem e para onde vão oficiais c funcionários, uma

* Exílio sem perda dos direitos civis e políticos. (N. da T)


** Escala de hierarquia administrativa organizada na Rússia por Pedro o
Grande. (N. da T.)

76
espécie de pirâmide em cujo topo se destaca, entre céu e ter­
ra, a incomparável dignidade do príncipe.
Num sentido c como o nome indica, o príncipe é ape­
nas o primeiro — Princeps — do Senado e do Povo. Porem
cm outro sentido a primazia implica uma diferença nao de
grau e sim de natureza entre ele e o resto da humanidade;
pois o imperador, encarnação da lei e depositário dos auspí­
cios, aproxima-se mais dos deuses — dos quais sc vangloria
dc descender e para os quais, proclamado por sua vez divus,
voltará numa apoteose após sua morte — que da condição
dos simples mortais, a qual desde o dia de sua ascensão lhe
foi retirada pelo caráter sagrado dc Augusto. Trajano rejei­
tou desdenhosamente as pretensões de Domiciano de ser sau­
dado com o duplo título de “senhor e deus” (dominus et deus);
contudo, nao repudiou o culto do qual era objeto, em sua
pessoa, o gênio imperial, que servia de elo para a federação
heterogênea das cidades que, tanto no Oriente como no Oci­
dente, compunham o império universal (orbis romanus), e
devia suportar o fato de que suas decisões fossem abertamente
qualificadas de “celestes” por aqueles a quem beneficiavam.
Assim, à primeira vista Roma parece um mundo fixado, sob
uma autocracia teocrática, nos inumeráveis compartimentos
de uma organização inflexível.
Entretanto, analisando-o de uma forma mais acurada, ve­
mos que as paredes que dividem esse mundo não são estan­
ques, e que poderosas correntes igualitárias não cessam de
percorrê-lo para misturar e aprimorar os elementos de uma
sociedade que elas organizam sent isolar. Até a casa imperial
abriu-se para elas. A partir do momento do desaparecimen­
to da família dos Julios com Nero, o principado deixou de
ser apanágio de uma raça predestinada. Ao clarão das espa­
das que se entrechocaram na guerra civil de 69, os “arcanos”
do Império, como diz Tácito, foram revelados.- Já não é o
sangue de César e Augusto que o confere, e sim a adesão das
legiões. Vespasiano, legado no Oriente, e Trajano, legado na
Germânia, foram conduzidos ao poder supremo respectiva­
mente pelas aclamações das tropas e pelo medo que seu exér­
cito inspirava, aliado à confiança que o próprio Trajano
despertava. Ume outro ascenderam à divindade porque ha­
viam assumido o comando que dispunha do Império — ao

77
contrário dc Caligula, Cláudio ou Nero, que subiram ao trono
cm nome da divindade de sua dinastia. Os legionários que
proclamaram Vcspasiano, os senadores que obrigaram Ner-
va a adotar Trajano como general das fronteiras renanas, rea­
lizaram uma revolução; c depois dela, assim como se dirá
que todo cabo da Grande Armada pode chegar a marechal,
pressentimos cm Roma que todo comandante de exército es­
tava apto a um dia cingir a coroa por uma última promoção
concedida ao melhor dos militares romanos.
Assim, nao devemos nos surpreender se, ao mesmo tempo
cm que essa noção de mérito e progresso se aplica pela pri­
meira vez à soberania imperial, ela penetra c circula cm to­
do o corpo do Império para animá-lo e rejuvenesce-lo. Graças
a ela, cstabelcccm-se comunicações de todas as partes entre
as nações e as classes, para ventilá-las, aproximá-las e fundi-
las. A medida que o ins gentium — o direito das nações es­
trangeiras — sc modela segundo o íks civile — o direito dos
cidadãos romanos —, e sob a ação da filosofia o ins civile tende
a moldar-se ao direito natural, ins naturale, abrevia-se a dis­
tância entre o romano e o estrangeiro, entre o cidadão e o
peregrino, e a cada instante um novo afluxo dc peregrinos
entra na urbe romana, seja por favores individuais e alfor­
rias, seja por naturalizações maciças que se estendem de re­
pente a uma classe de auxiliares desmobilizados, a uma
coletividade municipal convertida em colônia honorária.
Nunca o caráter cosmopolita da Urbs fora tão pronunciado.
Em todos os planos sociais os romanos propriamente ditos
são submersos não apenas pela vaga da imigração italiana,
mas pela multidão de provincianos que com seus idiomas,
costumes, hábitos e superstições chegam de todas as regiões
do universo.
Juvenal se revolta contra a lama torrencial que o Oron-
tes despeja no Tibre. Porém, assim que puderam, os sírios
que ele despreza colocaram a máscara de uma condição ro­
mana; e os mesmos que exalam xenofobia são mais ou me­
nos estrangeiros na cidade, que pretendem defender de novas
intrusões. Juvenal c da Campânia, ou um hérnico domicilia­
do. Em sua casa, na Rua da Pereira, no Quirinal, Marcial
suspira por Bilbilis, sua pátria aragonesa. Tanto em Roma
como em sua villa laurentina ou em sua propriedade na Tos-

78
cana, Plínio, o Jovem, mantém-se fiel a sua Cisalpina natal,
a essa Como distante, sempre presente cm seu coração e que
ele embeleza generosamente. A cúria reúne senadores vin­
dos da Gália, da Espanha, da África e da Ásia; e os impera­
dores romanos saem dc cidades ou burgos situados além dos
montes e dos mares e de naturalização mais ou menos re­
cente. Trajano c Adriano são originários de Itálica, na Béti-
ca. Seu sucessor, Antonino Pio, provém da burguesia de
Nímcs, na Narbonensc; e no final do século II veremos
dividir-se o Império entre o césar Clódio Albino, de Hadru-
meto (Susa), e o augusto Sétimo Severo, de Lcptis Magna,
na Tripolitânia, que, segundo sua biografia, jamais conseguiu
se livrar do sotaque semita resultante de sua ascendência pú-
nica. Assim, a Roma dos Antoninos é a encruzilhada em que
se encontram com seu povo os povos inferiores, aos quais
as antigas leis pareciam opor sólidas barreiras étnicas; ou an­
tes, é o cadinho cm que, apesar dc suas leis, novas práticas
dc assimilação constantemente amalgamam esses povos en­
tre si. É uma Babel, se preferirmos; porém, uma Babel em
que todos aprendem, a qualquer custo, a falar e pensar em
latim1.

A escravidão e as alforrias

Todo mundo, até os escravos, no século II, elevam seu


padrão de vida ao nível dos “ingênuos”, favorecidos por uma
legislação cada vez mais clemente, que pouco a pouco lhes
afrouxa os grilhões. O senso prático dos romanos e a huma­
nidade natural a suas almas de camponeses livraram-nos de
ser cruéis com os escravos, os servi. Sempre os pouparam,
como Catão com seus bois de arado; e, por mais longe que
remontemos ao seu passado, vemo-los estimular os esforços
dos escravos recompensando-os com prêmios e salários, que,
acumulados num pecúlio, forneciam em geral o resgate da
servidão. Salvo exceções, em Roma a servidão não foi, por­
tanto, nem intolerável, nem eterna; porém, devemos admi­

79
tir que nunca foi mais branda nem mais fácil de sc romper
que sob os Antoninos.
No último século da República, admitiu-sc que o escra­
vo tinha alma c os cidadãos livres lhe permitiram participar
de seus cultos favoritos. Por exemplo, cm Minturnes a par­
tir de 70 a.C., o santuário de Spes, a deusa da esperança, era
servido tanto por magistri servis como por magistri libertos
e ingênuos reunidos. Mais tarde, com o enriquecimento es­
piritual da cultura e a influência crescente das filosofias fi­
lantrópicas, o lugar dos escravos cresceu na casa dos deuses.
No século I d.C. os epitáfios servis começam a honrar aber­
tamente os manes dos defuntos; e no século II os colégios
funerários c místicos, como o que se constituiu no ano 133
d.C. cm Lanuvium, sob a dupla invocação de Diana e Antí-
noo, agrupam, fratcrnalmentc associados, ingênuos, libertos,
escravos, que, nesse caso particular, se comprometem a pre­
sentear os membros da confraria com uma ânfora de vinho
no dia em que forem libertados. Naturalmente a lei acom­
panhou o progresso das idéias. No início do Império uma
Lex Petronia proibiu o amo de entregar o escravo às feras
sem a autoridade de um julgamento. Por volta de meados
do século I, um edito do imperador Cláudio liberou do tra­
balho os escravos doentes ou inválidos abandonados pelo
amo; pouco depois, um edito de Ncro, redigido talvez por
instigação de Sêneca, que reivindicava a condição de homem
para os escravos, encarregou o prefeito da cidade de receber
e instruir as queixas contra a injustiça praticada pelos amos.
Em 83, um senatus-consulto decretado sob o reinado de Do-
miciano proibiu a castração dos escravos e puniu com o con­
fisco da metade dos bens o amo que infringisse a interdição.
No século II Adriano dobrou a penalidade desse crime, que
declarou “capital”, e ditou ao Senado dois decretos inspira­
dos pela mesma generosidade: um deles impedia os amos de
vender os escravos ao leno ou ao lanista^ ao proxeneta ou
ao empresário de combates de gladiadores; o outro subordi­
nava à aprovação do prefeito dos vigeis a execução das con­
denações pronunciadas pelos senhores contra os escravos. Em
meados do século completou-se a evolução humanitária quan­
do Antonino Pio classificou como homicídio a morte de um
escravo por ordem do amo.

80
Aliás, nessa cpoca a legislação mais reflete que impõe a
mansuetudc introduzida nos costumes. Juvenal fustiga com
suas sátiras o avaro que subalimenta os escravos; o jogador
que ganha uma fortuna no jogo de dados c deixa os escravos
tremerem de frio cm túnicas esfarrapadas; a dama que, ao
menor atraso dos carregadores, ao menor erro das aias, se
enfurece, esbraveja e lança mão do chicote. A indignação do
poeta corresponde à opinião pública, que sc volta com o mes­
mo horror com que ele dá as costas a Rutilus, cuja abominá­
vel ferocidade condenara14. Em sua época, a maioria dos
senhores, sc nao desistem de punir as faltas dos escravos com
castigos corporais, contentam-se em aplicar nos delinqüen-
tes os açoites que Marcial inflige sem remorso a seu cozi­
nheiro por uma refeição mal preparada. Isso não os impede
dc cuidar dos escravos, amá-los, chorar seus infortúnios ou
sua morte2; e nas grandes casas, onde numerosos escravos
são hábeis especialistas, alguns possuem educação liberal —
o pedagogo, o medico, o leitor — c são considerados homens
livres. Com que discernimento Plínio, o Jovem, deseja que
seu primo Paternus os escolha para si no mercado! Com que
solicitude vela-lhes pela saúde, chegando a custear longas e
dispendiosas viagens ao Egito ou à planície provençal de Fré-
jus a fim de procurar a cura para seus males! Com que boa
vontade se presta a seus legítimos desejos, obedecendo a suas
recomendações como se fossem ordens! Com que confiança
conta mais com a dedicação dos escravos do que com a pró­
pria severidade para estimular-lhes o zelo, se porventura um
parente chega a sua casa, pois está convencido, como escre­
ve, de que se esforçarão por ser mais agradáveis ao amo na
pessoa dos convidados! Entre seus amigos verificamos a mes­
ma atitude cordial, eu diria familial. Quando o velho sena­
dor Corélio Rufo adoece, aprecia o fato de que os servos
favoritos lhe façam companhia no quarto, e se há a necessi­
dade de dispensá-los para ouvir alguma confidência, sua es­
posa sai com eles. Exagerando essa benevolência, Plínio, o
Jovem, não deixa de conversar com os escravos, e quando
está no campo convida os mais instruídos para doutas dis­
cussões que enriquecem o passeio após o jantar. Os escra­
vos, por sua vez, se desdobram em gentilezas para com os
bons amos. O estupor de Plínio, o Jovem, ao saber do aten­

81
tado cometido contra o senador Lárcio Macedo por uma pane
da criadagem servil3 indica a raridade desses crimes extraor­
dinários, bem como os cuidados, infelizmente inúteis, que
os servidores fiéis prodigalizam à vítima, provando que, nas
casas em que eram tratados com maior rigor, os escravos tra­
tavam o amo como eram então considerados por ele: como
homens. Assim, um grego que viveu em Roma em meados
do século II ficou surpreso com a relação entre os escravos
e os homens livres, que ante seus olhos atônitos se traduzia
até na semelhança das vestes; pois em Roma, observa Apia-
no, historiador grego que viveu no reinado de Antoni no Pio,
o escravo não se distingue sequer exteriormente do homem
livre, e, exceto o caso em que o amo deve usar a toga pretex­
ta, insígnia da magistratura, ambos se vestem da mesma for­
ma; e ele completa o comentário com uma observação que
o surpreende ainda mais: uma vez liberto, o ex-escravo vive
em pc de igualdade com os cidadãos4.
Realmentc, no mundo antigo só a Cidade romana tem
a honra de haver redimido os párias abrindo-lhes as portas.
Sem dúvida, o escravo liberto (libertas) não adquiria de ime­
diato o acesso aos cargos e magistraturas; ainda estava ligado
ao ex-senhor, ao qual chamava de patrão — patronas —, por
prestação de serviços ou dívidas pecuniárias, e sempre pelos
deveres de um respeito quase filial: o obseqaiarn. Entretan­
to, uma vez pronunciada regularmente a libertação — dian­
te do pretor, num processo fictício de reivindicação, per
vindictam; por inscrição nos registros dos censores (censa)
na ocasião do lustro; ou, fato mais comum, em virtude de
uma cláusula testamentária (testamento) —, pela graça do amo,
vivo ou morto, o escravo obtinha os nomes e a condição dc
um cidadão romano. Na terceira geração, sua descendência
podia exercer os direitos políticos em toda a plenitude e em
nada se diferenciava dos ingênuos. Aliás, com o tempo o for­
malismo das libertações foi se abrandando; e os antigos pro­
cessos de alforria foram substituídos, em função do uso, à
falta de lei, por outros mais rápidos e simples: uma simples
carta do amo ou uma declaração puramente verbal pronun­
ciada, por exemplo, no decorrer de um festim, com os con­
vivas por testemunha. A moda acabou por interferir, e
dir-se-ia que era uma questão de amor-próprio cercar-se de

82
libertos; assustado com as prodigalidades, Augusto procurou
refrear os abusos. Estabeleceu uma idade mínima — dezoito
anos —, abaixo da qual não se tinha o direito de alforriar, c
uma idade máxima — trinta anos —, acima da qual não se ti­
nha o direito dc ser alforriado. Submeteu as alforrias testamen­
tarias — dc longe, as mais numerosas das libertações legais —
a uma tabela que, conforme o caso, determinava seu número
cm proporção com a quantidade de escravos de um mesmo
amo c, além de certas cifras, limitava-o a no máximo cem.
Por fim, ele imaginou uma categoria inferior de semici-
dadãos, chamados latinos junianos, aos quais se concedia ape­
nas a naturalização parcial do direito latino, o ius Latii, e
sobre os quais pesava uma incapacidade testamentária ativa
e passiva, incluindo-se na mesma condição os escravos cuja
alforria violava as regras estabelecidas pelo imperador e aque­
les que haviam sido libertados sem as modalidades legais. Con­
tudo, mais poderosos que a vontade dc Augusto, os costumes
minaram sua legislação. Para deter a diminuição progressiva
da natalidade, ele mesmo tirou os latinos junianos, pais de
família, da inferioridade a que os condenara. A seguir, a fim
de fomentar o alistamento nas coortes, Tibério concedeu a
mesma derrogação aos ex-vígeis. Em seguida, para aliviar ou
fomentar a economia, Cláudio a estendeu aos libertos de am­
bos os sexos, que empregavam seus capitais na armação de
navios mercantes; Ncro, aos que os investiam na constru­
ção de imóveis, c Trajano, aos que com seu dinheiro monta­
vam estabelecimentos dedicados à fabricação de pães. Enfim,
por indulgência para com os próprios liberti e os liberti dos
amigos, fosse concedendo-lhes a ingenuidade fictícia da na-
talium restitutio, fosse colocando-lhes nos dedos os anéis de
ouro dos cavaleiros, todos os imperadores se puseram a apa­
gar os últimos traços da condição servil e a promovê-los à
segunda “ordem’* do Estado. Assim, na época que focaliza­
mos as alforrias, mais numerosas que nunca, colocam os ex-
escravos que delas se beneficiam em pé de igualdade total com
os outros cidadãos, proporcionam-lhes boa posição e fortu­
na e, como vimos no caso de Trimalciao, permitem-lhes com­
prar numerosos escravos.
Tanto que a impressão de um epigrafista após um rápi­
do passeio pelas ruínas romanas é sobretudo a de uma pre­

83
dominância dc escravos c libertos na vida da cpoca imperial,
pois, nas paredes que ainda retêm seus traços, três entre qua­
tro inscrições desse período referem-se unicamente a eles.
Num artigo notável pela abundância e pela precisão das es­
tatísticas, Tenney Frank nos convence de que, se na maioria
dos casos o nome dos escravos da Urbs traía suas origens greco
orientais, pelo menos oitenta por cento da população de Ro­
ma procedia de uma servidão mais ou menos antiga através
de libertações mais ou menos recentes5. A primeira vista,
seduzem-nos as promessas de força que a constante ascensão
parece comportar tanto para a sociedade romana, que ela sem
cessar alimenta com elementos novos, como para a pátria
romana, cujo campo de assimilações ela estende a perder de
vista, e somos tentados a atribuir à Roma dos Antoninos as
vantagens justas e o jogo livre de uma democracia perfeita.

Confusão dos valores sociais

Infelizmente é impossível nao perceber também as som­


bras que na realidade já toldavam o quadro. Sem dúvida, na
Cidade em que, durante o reinado de Nerva, restava apenas
a metade das famílias senatoriais, que trinta e cinco anos an­
tes somavam sessenta e cinco e trinta anos depois incluíam
apenas uma das quarenta e cinco famílias patrícias restaura­
das setenta e cinco anos atrás por Júlio César, era importan­
te que um constante afluxo de sangue novo pudesse se erguer,
como uma seiva poderosa, das camadas mais humildes da po­
pulação, para alimentar e reconstituir as elites. Contudo,
tomando-o quase exclusivamente das massas servis, a socie­
dade e a pátria romanas expunham-se a grandes riscos no fu­
turo e a uma inevitável adulteração no presente.
De fato, para poder preencher sem cessar os vazios das
classes superiores, a servidão precisava reforçar-se a todo ins­
tante com novas contribuições. Ora, as guerras de Trajano,
mormente sua segunda campanha dácia — na qual, segundo
seu médico Críton, o imperador fizera cinqüenta mil prisio­

84
neiros, logo vendidos cm leilão6 —, sao as últimas cm que
o Império triunfou sem dificuldades nem erros. Após os dois
reinados gloriosamente pacíficos dc seus sucessores Adriano
c Antonino Pio, ocorrerão com Marco Aurélio as meias vi­
tórias obtidas a alto preço, as resistências extenuantes e por
fim as invasões e os reveses que vão esgotar a grande fonte
do abastecimento servil; e já sc pode prever o momento em
que a escravidão, condenada pela rarefação das conquistas bé­
licas a encolher-se sobre si mesma, não terá condições de sus­
tentar a coluna ascendente sobre a qual repousava a economia
romana nas gerações anteriores, e, por conseguinte, para man­
ter seu domínio, Roma será obrigada a colocar no mundo
a desesperadora camisa-de-força que no Baixo Império foi a
fixidez hereditária das condições humanas.
Certamente esse perigo ainda não se delineia sob os Fla­
vios e os primeiros Antoninos. Todavia, há outros, mais ime­
diatos, que já ameaçam a aparente prosperidade de seus
reinados. Antes dc ser demasiado lento, o crescimento foi
por demais rápido e desordenado; as etapas pelas quais os
primeiros Césares pensavam controlá-lo foram abreviadas ou
queimadas, e as falhas conjugadas de um regime ao mesmo
tempo autocrático e censitário perturbaram o curso e vicia­
ram a essência das transmutações sociais.
Porque, sob a máscara de ficções que já não enganam nin­
guém, os Césares detêm e exercem uma autoridade absolu­
ta, os escravos, libertos, passaram à frente do resto da Cidade.
Teoricamente, são apenas ‘‘coisas”, quando muito cidadãos
incompletos. Na prática, como diariamente convivem com
a pessoa sagrada do amo, gozam de sua confiança, recebem
parte de suas atribuições, comandam sem consideração ple­
beus e notáveis romanos. Até o reinado de Cláudio, apenas
escravos compunham o “gabinete” do imperador, para o qual
afluíam as súplicas do universo, de onde emanavam as ins­
truções aos governadores de províncias e aos magistrados da
cidade, e onde se elaborava a jurisprudência de todos os tri­
bunais, inclusive a da alta corte senatorial. A partir de Cláu­
dio, até Trajano, inclusive, recrutaram-se libertos e, assim
como os nobres do século XVII se irritarão com o domínio
da “vil burguesia”, dos ministros e seus auxiliares, os sena­

85
dores do Alto Império deviam inclinar-se, enraivecidos e si-
lenciosos, ao poder de antigos escravos, que, guindados de
um salto aos degraus do trono, cobertos dc bens c honra­
rias, como Narciso ou Palas, por seu trabalho oculto e sobe­
rano, sob o nome do imperador dispunham do progresso,
dos bens e da vida dos súditos. Isso não era tudo: se o impe­
rador escolhia confidentes c amigos entre as duas grandes or­
dens do Estado, estes também possuíam escravos e libertos
para os quais deixavam a fadiga e a conduta de seus negó­
cios, e a aristocracia que parecia reinar abaixo dele na verda­
de governava apenas por intermédio da criadagem. Era assim
que aos escravos e libertos do imperador se uniam os escra­
vos e libertos da cone, para dominar a cidade c o mundo.
Vimos até onde se estendiam seus conluios e seu poder quando
aqueles que o despotismo selvagem e a cupidez insaciável dc
Domiciano deixaram viver na cúria resolveram, para salvar
a própria pele, livrar-se dele. O assassinato do tirano, deseja­
do e inspirado pelos senadores, foi planejado na antecâmara
de sua casa, consumado por sua “gente” e pela “gente” dc
seu círculo: o pequeno coroinha de seu larário (pner a sacra-
rio), o camareiro (praepositus a cubículo), o grego Panênio,
e um dos intendentes de sua irmã Domitila, o grego Estéfa-
no. Sem dúvida, após o atentado, o nome da Liberdade (Li­
bertas restituta) foi gravado nas moedas e os “pais conscri-
tos”* julgaram ressuscitar a República entregando o Impé­
rio a um dos colegas mais apagados, o sexagenário e tímido
Nerva. Porém, estava claro que isso não passara de palavras
ocas e aparências vãs. A República, que é o bem comum dos
cidadãos, a liberdade, que exige deles nobre aprendizado, não
podiam renascer de uma conspiração tramada por “peregri­
nos” e escravos; e os imperadores acabaram temendo as vis
emergências no topo do Estado, que ameaçavam a solidez
do regime. Adriano tomou a iniciativa, respeitada por seus
sucessores, de reservar à ordem eqüestre as direções do ga­
binete. Mas, se sua intenção fosse uma reforma profunda,
deveria tê-la estendido aos cargos secundários. Ora, pa­
ra terem certeza de ser obedecidos, para não precisarem te­
mer malversações que não pudessem reprimir incontinen-

’ Membros do Senado romano. (N. da T.)

86
ti, os imperadores e os grandes preferiram, como no passa­
do, guarnecer as administrações de um pessoal estrangeiro
e servil de procurators e institores, que julgavam manejar à
vontade mas que, ao contrário, com a extensão das frontei­
ras e os progressos do sistema fiscal, os manipulava cada vez
mais. Sem dúvida, entre os servi desejosos de obter sua ma-
numissio pela força do zelo, entre os liberti, cuja alforria ins­
pirava ainda mais gratidão por não lhes ditar obrigações, havia
numerosos empregados fiéis, intendentes honestos, agentes
dóceis e dedicados; e se a máquina imperial já não rangia no
século II foi menos, talvez, pela vigilância de seus guardiões
que pela consciência e habilidade profissionais dos trabalha­
dores. Entretanto, o rebanho continuava sendo considerá­
vel demais para não incluir ovelhas negras: wZ/ci excessiva­
mente rigorosos nas exigências, porteiros muito sensíveis à
obtenção dc comissões e gorjetas, procuradores insolentes,
cruéis e prevaricadores; e era um paradoxo ccrtamente fu­
nesto o dc um governo que, na louvável intenção de apri­
morar o desempenho de suas funções, entregava-as a homens
que, nascidos nos grilhões, estavam fadados apenas a servir.
Ao invés de assistir a uma evolução gradativa operada con­
forme a lógica, c que teria manifestado a benevolência das
instituições imperiais, os romanos sofriam a todo instante
a degradação cívica das transposições arbitrári­
as, das abruptas inversões de classes e de papéis. Tanto na
cidade como no campo eram desmoralizados; e á queixa que
erguerão, no reinado de Cômodo, os cidadãos livres, que na
condição de voluntários cultivavam a colônia africana de
Souk-el-Khmis e eram fustigados sem dó nem piedade, em
nome do imperador, pelo administrador servil de seu Saltus
Burunitanus7, responderá de antemão, no início do século,
a cólera de Juvenal, indignado por ver na Roma de Trajano
filas de homens livres, levados pelo interesse e pela bajula­
ção, a cortejar os escravos dos ricos:

“Divitis hic servo claiidit latus ingenuoroum


Filins...

Na época de Juvenal parece que mais vale ser escravo de


um rico que cidadão livre e pobre. Nao é preciso mais

87
para perturbar a bela organização imperial; c, aliás, o perni­
cioso desequilíbrio já está agravado, pois, numa sociedade
cuja hierarquia acompanhava a riqueza, esta última, em vez
de circular por entre as famílias laboriosas c de frutificar atra­
vés do trabalho e da economia, pelo favor do imperador c
pela especulação, concentrava-se nas mãos de um número cada
vez menor de privilegiados. Enquanto nas províncias e mes­
mo na Itália ainda subsiste, robusta e numerosa, a burguesia
que subvenciona os gastos municipais, na Cidade a classe bur­
guesa se dilui entre os plutocratas que gravitam em torno
da cone e a massa de uma plebe doravante empobrecida de­
mais para subsistir sem as alocações do imperador e os pre­
sentes dos grandes, c ociosa demais para não ter necessidade
dos espetáculos que no reinado de Trajano lhes são ofereci­
dos dia sim, dia nao.

Os modelos de vida e a plutocracia

Por ceno nos faltam cifras precisas. Entretanto, algumas


aproximações permitirão supri-las, bem ou mal. No primei­
ro capítulo vimos que ao longo do século II o número de
assistidos subira de cento e cinquenta mil para cento e seten­
ta e cinco mil. Desses números podemos deduzir que o Es­
tado alimentava cerca de cento e trinta mil famílias, repre­
sentadas nas distribuições pelos chefes. Segundo Marcial, havia
em média cinco bocas por família9; assim, o total de assisti­
dos oscilaria entre seiscentos mil e setecentos mil. Se contar­
mos apenas três bocas por família, o total ainda estaria em
torno de quatrocentos mil assistidos. Direta ou indiretamente,
no mínimo um terço, talvez a metade da população da Urbs,
vivia da caridade pública. Contudo, seria errôneo concluir
que dois terços ou a metade dos cidadãos passavam sem ela,
pois no total da população, e excluídos das distribuições, es­
tão os soldados da guarnição — cerca de dez mil homens,
no mínimo; — os peregrinos de passagem por Roma, cujo
número desconhecemos, mas que não devia ser importante
com a frequência das naturalizações resultantes das mana-

88
missioncs; c por fim os escravos, cuja proporção cm relação
à dos homens livres devia chegar pelo menos a um terço,
enquanto na mesma época a igualava em Pergamo10. Portan­
to, se atribuímos um milhão e duzentas mil almas à Roma
dc Trajano, devemos subtrair desse número quatrocentos mil
escravos, o que situa cm torno de cem mil o número dc che­
fes de família romanos cujos ganhos os poupavam de bater
à porta da anona.
Lamentável por si só, o pequeno número de pessoas de
posses cm relação à multidão dos que nada tinham torna-se
assustador quando percebemos a desigualdade das fortunas
no seio da minoria; a maior parte do que chamaríamos de
classe média vegetava diante da inacreditável opulência os­
tentada por alguns milhares de multimilionários. Pois na Ro­
ma de Trajano os 5 000 sestércios que nos municípios
diferenciavam o honestior da plebe não poupavam seus pos­
suidores das dificuldades. O “mínimo vital’’ do pequeno-
burguês romano era 20 000 sestércios, ou 20 000 francos Poin­
care, ou 4 000 francos de antes da guerra, e isso não em capi­
tal, porém em renda. É o que deseja ter na velhice um boa-vida
arruinado que Juvenal coloca em cena numa de suas sá-
tiras11; em outra, falando por sua conta, o poeta limita a
uma fortuna de 400 000 sestércios as aspirações do sábio: “Se
torces o nariz para essa soma”, acrescenta para um interlo­
cutor imaginário, “toma duas fortunas equestres; e se não
te basta, então nem a riqueza de Creso nem os tesouros dos
reis persas satisfarão teu coração!”12 É claro que para Juve­
nal o sábio deve se contentar com uma vida confortável, mas
também que o conforto mais medíocre pressupõe o capital
dc 400 000 sestércios requerido pelos “cavaleiros”. Os dois
depoimentos se confirmam e completam mutuamente, pois
sabemos, após os estudos de Billeter, que na época do poeta
o juro normal era de cinco por cento. Por conseguinte, no
século de Trajano as classes médias de Roma só começavam
com o censo equestre e era preciso gastar no mínimo os 20 000
sestércios que ele rendia anualmente para levar a mais mo­
desta vida burguesa. Abaixo vinha a indigência das massas
prolctarizadas, das quais os “pequeno-burgueses” na reali­
dade estavam muito mais próximos que dos riquíssimos ca­
pitalistas, ao lado dos quais os alinhavam meras ficções legais.

89
Pois, enfim, que peso tinham seus 400 000 sestércios an­
te os milhões, as dezenas dc milhões dos verdadeiros magna­
tas da cidade: os senadores oriundos das províncias onde se
estendiam as propriedades c as empresas que lhes proporcio­
naram o ingresso na “ordem esplendida” dos claríssimos, e
posteriormente um lugar na cúria, nao só para cumprir os
deveres de suas funções e cuidar das terras que por força com­
praram na Itália, como ainda, e sobretudo, para tornar ilus­
tres seu nome e sua pátria de origem com a suntuosidade de
sua casa romana c o brilho da posição que conquistaram na
Urbs; os cavaleiros que ascenderam aos mais altos cargos da
classe e pelos sucessivos estágios se enriqueceram nas admi­
nistrações das finanças e do abastecimento; os libertos, en­
fim, que fizeram fortuna gerindo os bens do imperador e dos
grandes! Assim, Roma, senhora do mundo, drenava as rique­
zas; e, levando-se em conta a diferença das épocas e dos meios,
não creio que a concentração dos capitais fosse menor no
reinado dc Trajano que em nosso século XX, entre os ho­
mens de negócios da City ou os banqueiros de Wall Street.
Como os lordes cm Londres, os romanos possuem bairros
inteiros da cidade, como o Maximus contra o qual Marcial
dispara este epigrama: “Tens uma casa no Esquilino, outra
na colina de Diana, e na Rua dos Patrícios há um teto que
te pertence. Daqui avistas o santuário de Cibele; de lá, o de
Vesta; de um lado vês o novo Templo de Júpiter (no Capi­
tólio), do outro, sua antiga morada (no Quirinal). Dize-me,
pois, onde posso te encontrar, onde posso te procurar. Quem
mora cm todo lugar, Maximus, não mora em lugar nenhum”.
Como os financistas de Nova York, os romanos fazem os
capitais frutifica em grandes e inumeráveis empréstimos, co­
mo Afer, que em outro epigrama ouvimos repetir para seu
prazer os nomes de seus devedores e o montante das dívi­
das: “Coranus deve-me 100 000 sestércios e Mancinus,
200 000; Titius, 300 000; Albinus, o dobro; Sabinus, um mi­
lhão; Serranus, outro... ” Embora talvez sejam personagens
imaginárias, Afer e Maximus são típicos da plutocracia que
infestava Roma. Em seu círculo estreito e rutilante do ouro
da terra, com certeza havia numerosos possuidores de 100
milhões de sestércios, como o Africanus, visado alhures por
Marcial13, e só ousava dizer-se rico quem tinha mais dc 20

90
milhões. Ex-cônsul, talvez o maior advogado da cpoca, com
um testamento que nao está longe dessa soma14, Plínio, o
Jovem, declara que nao c rico; e vemo-lo escrever a Calvina,
cujo pai lhe devia 100 OCO sestércios, que ele acaba de lhe pre­
sentear, dizendo com a maior seriedade do mundo que suas
posses são modestas — modicae facilitates —, que devido ao
modo de explorar as pequenas terras as rendas são tão mo­
destas quanto caprichosas, e que ele é obrigado a compensar
a mediocridade com uma existência frugal15. Dc fato, um li­
berto como Trimalcião, cuja herança Petrônio calcula em
30 milhões, era mais rico que ele16; e o desconhecido Afer
que Marcial caricaturou e cujos rendimentos imobiliários che­
gavam a 3,6 milhões dc sestércios era três vezes mais rico.
Pelo menos sua fortuna inseria-se na mesma ordem de gran­
deza que a deles e, sendo equivalente a cinqüenta vezes o censo
equestre, já não havia como comparar-se à das “classes mé­
dias’’. Os pequeno-burgueses eram litcralmente esmagados
pelos grandes, e o único consolo que lhes restava era consta­
tar a modicidade das fortunas maiores ante a incalculável ri­
queza do imperador.
Com efeito, este não se limitava a acrescentar aos have-
res da família boa parte dos bens de seus predecessores, a her­
dar em toda parte, sobretudo na Ásia e na África, imensos
latifundia, a recolher em todo lugar o melhor dos confiscos
totais ou parciais pronunciados pelos juizes; ainda podia con­
fundir com seu cofre particular o fisco para onde confluíam
os rendimentos dos impostos recolhidos para a manutenção
dos soldados, sem que ninguém ousasse lhe pedir contas; e
ademais, sem ter de prestar contas a ninguém, podia dispor
à vontade das rendas do Egito, propriedade pessoal da Co­
roa, c gastar a mancheias seus butins de guerra. Em especial,
o imperador Trajano, que em 10617 se apoderou do tesou­
ro de Decébalo e se apressou a reorganizar em proveito pró­
prio a exploração dos filões de sua recente conquista18,
tornou-se um autêntico bilionário, cuja autoridade doravante
se assenta menos, talvez, na obediência jurada por seus exér­
citos que nos meios de ação ilimitados que lhe proporciona
uma fortuna sem igual, incontrolável e infinita. Dele aos plu-
tocratas de Roma há uma distância quase tão grande como
a que separa estes últimos das classes médias, e as duas dispa­

91
ridades se revelam na distribuição da mão-de-obra servil en­
tre seus possuidores.
No início do século II a.C., ainda eram raras na Cidade
as casas que possuíam mais de um escravo, como demonstra
uma onomástica frequentemente reduzida a um nome com­
posto pela palavra “puer”, significando “servidor”, e pelo ge­
nitivo do prenome do amo: Lucipor, Marcipor, escravo de
Lúcio, escravo de Marco. Já no século II d.C., praticamente
não existia senhor de apenas um escravo; podia-se contá-los
nos dedos, pois eram apontados, como o pobretão Cotta,
escarnecido por Marcial19. Ou bem não se comprava escra­
vo nenhum, pois, como diz Juvenal, custava caro encher a
barriga dos escravos, ou bem se compravam e mantinham
vários, e é por isso, aliás, que no verso mencionado Juvenal
emprega a palavra barriga no plural:

".. magno
servorum ventres!”20

Dois escravos para conduzi-lo ao circo é o mínimo com


que se contentaria o velho desiludido, cuja moderação apre­
ciamos pouco antes. A média, porém, é quatro ou cinco ve­
zes superior. Os mais modestos proprietários devem mos­
trar-se à frente de oito servi, sob pena de abalar seu crédito.
Em Marcial, até o avarento Cimber arranja oito sírios para
carregar o minúsculo fardo de suas oferendas irrisórias nas
saturnais21; em Juvenal, os clientes considerariam suas cau­
sas perdidas se as confiassem a um advogado incapaz de
apresentar-se no tribunal com uma escolta inferior a essa
Em geral, é o destacamento suficiente para os pequeno-
burgueses. Em contrapartida, os ricos comandam um bata­
lhão, quando nao vários. Para se fazer reconhecer no meio
dessa multidão, dividem o pessoal utilizado na Cidade ou no
campo; na Cidade o subdividem conforme os sirva em casa
(seruiatrienses) ou fora (cursores, viatores), e por fim decom­
põem os grupos compactos em tantos elementos quantas são
as dezenas que contêm e numeram essas “decúrias”. Precau­
ções supérfluas, aliás. Senhor e escravos ignoram-se mutua­
mente. No meio de seu banquete, Trimalcião não sabe a qual
de seus servos dirige ordens: “ ‘De que decúria és?*, pergun­

92
ta ao cozinheiro. ‘Da quadragésima’, responde o outro. ‘Com­
prado ou nascido em casa?* 'Nem uma coisa nem outra; fui
legado a ti pelo testamento de Pansa.’ ‘Diferencia-te, então,
do contrário jogar-te-ei na decúria dos mensageiros’ ”.25
Desse diálogo, deduzimos que dentre todos os escravos de
Trimalcião apenas um em dez conhece o amo, c ainda que
eram no mínimo quatrocentos; entretanto, como nada nos
autoriza a afirmar que a quadragésima decúria — a única men­
cionada no romance dc Petrónio — seja a última, podemos
supor que houvesse muitos mais. Plínio, o Jovem, que, co­
mo vimos, precisaria ter mais 10 milhões de sestércios para
equiparar-se a Trimalcião, possuía no mínimo quinhentos
escravos, pois cm seu testamento libertou cem, e a lei Fufia
Caninia, decretada com toda a probabilidade no ano 8 a.C.
e ainda cm vigor no século II d.C.24, permitia que os pro­
prietários de cem a quinhentos escravos libertassem a quin­
ta parte e implicitamente proibia que os donos de mais de
quinhentos escravos libertassem mais de cem. Nao podemos
deixar de nos surpreender com os números exorbitantes; con­
tudo, é certo que no século II com frequência eram supera­
dos. O tipo de surpresa do jurisconsulto Gaio ao constatar
que um século e meio depois a lei Fitfia Caninia não levara
sua tabela de manumissiones testamentárias além de cem li­
bertações para quinhentos escravos, constitui indício segu­
ro de que por seu silêncio ele deixara de se adaptar às novas
realidades; e, se sob os Flávios o número dos quatro mil cento
e dezesseis escravos que no final do século I a.C. o liberto
C. Caelius Isidorus possuía ainda era entre os particulares
uma exceção tão notável que Plínio, o Velho, a julgou digna
de nota25, não há dúvida de que as familiae serviles dos gran­
des capitalistas chegavam a ter mil cabeças, e o imperador,
infinitamente mais rico que o mais rico deles, devia possuir
cerca de vinte mil.
É o dado máximo que encontramos em Ateneu26, e que,
devido a sua enormidade, só pode se referir ao imperador.
Sem dúvida, é preciso subtrair desse exército os pelotões de
escravos que a domus divina dos Césares possuía dispersos
pelo mundo, para a percepção de suas taxas, para a gestão
de suas imensas propriedades rurais, minas de metal, jazidas
de mármore e pórfiro; contudo, mesmo em Roma, no Pala-

93
tino, onde com os grafitos dos paedagogitmi os modernos en­
contraram os vestígios de seus locais disciplinares, os escravos
imperiais deviam constituir uma legião, para realizar a in­
crível variedade de tarefas que lhes competiam c que a epi-
grafia dos epitáfios nos revelou.
Lendo-os sem prevenção, ficamos perplexos ante a ex­
cessiva especialização que denotam, com o luxo absurdo, com
a etiqueta meticulosa que o tornaram necessário. Para cui­
dar do guarda-roupa, o imperador dispõe de tantas catego­
rias de servos quantas possui de tipos de trajes: para as túnicas
do palácio, os a veste privata; para as togas da Cidade, os a
veste forensi; para as pequenas indumentárias militares, os a
veste castrensi; para os grandes trajes de desfile, os a veste trium-
phali; para os costumes que usa no teatro, os a veste scaenica;
para os que usa para ir ao anfiteatro, os a veste gladiatoria.
Para cuidar da baixela do imperador, há tantas equipes quantas
são suas espécies: a baixela onde ele come, a baixela onde ele
bebe, a de prata, a de ouro, a de cristal de rocha, a incrusta­
da dc pedras preciosas. As jóias são confiadas a uma multi­
dão de servi ou liberti ab omamentis, entre os quais se destacam
os propostos dos broches (a ftbidis) e os das pérolas (a marga-
ritis). Para cuidar da toalete concorrem banhadores (balnea-
tores), ungidores (aliptae), cabeleireiros (ornatores), barbeiros
(tonsores). O cerimonial de recepções compete a vários tipos
de porteiro: os velarii, que erguem as cortinas à entrada dos
visitantes; os ab admissione, que os introduzem à presença
do imperador; os nomenclatores, que os anunciam. Para co­
zer os alimentos, arrumar e servir a mesa há toda uma tropa
heteróelita, que vai dos forneiros (fornicarii) e simples cozi­
nheiros (coei) aos padeiros (pistores), pasteleiros (libarii), con­
feiteiros (dideiarii), e que, além dos mordomos, responsáveis
pela ordem dos alimentos (struetorea), e dos criados da sala
de refeições (triclinarii), compreende os servos que levam os
pratos (ministratores), as criadas encarregadas de retirá-los (ana-
lectae), os escanções que lhe dão de beber e diferem em im­
portância conforme segurem a jarra (os a lagona) ou apresen­
tem a taça (os a cyatho), e por fim os degustadores (praegusta-
tores), que, seguramente melhores que os de Cláudio e Britâ­
nico, devem verificar a inocuidade das bebidas e dos alimentos.
Enfim, para distrair-se há apenas o incômodo de escolher entre

94
os cânticos dos coristas (symphonici), os músicos da orques­
tra, os entrechats das dançarinas (saltatrices), as palhaçadas dos
anões (nanni), dos “bobos” (fattá) c dos bufões (moriones).
Ainda que, como Trajano, o imperador tivesse gostos
simples, evitasse a arrogância e fugisse ao aparato, aos olhos
dos súditos nao poderia separar do cumprimento de sua fun­
ção sagrada os esplendores opulentos que, cm Roma, rodea­
vam sua pessoa. Eles situavam sua atividade oficial num
cenário quase mitológico, onde o “rei dos reis” não ficaria
deslocado e cujas delícias, para recorrer a comparações lúci­
das, apesar de um tanto frágeis, segundo me parece, a cone
dos Valois poderia invejar, como a dc Versalhes invejaria a
pomposa grandiosidade e o fausto solene. Antes do Rei Sol,
o césar de Roma poderia adotar como lema o Nec pluribus
impar de Luís XIV. Sem dúvida, as casas dos magnatas ro­
manos esforçavam-se por imitar a dele. Contudo, não che­
gavam perto, e por maiores que fossem, por mais complexa
a organização que divisamos entre as linhas dos elogios mor­
tuários dos libertos e escravos, não passavam de um frágil
decalque da casa imperial, de uma imagem distante e reduzi­
da. César diminuía até os maiores dc seus súditos, e o senti­
mento que todos tinham de sua inigualável superioridade
ajudava os mais humildes a conformar-se com o fato de que,
em relação ao luxo das classes dominantes, sua condição mi­
serável implicava grandes limitações e inferioridade.
De resto, a transição da plebe para a média burguesia con­
tinuava relativamentc fácil. A prosperidade que se seguira
às felizes campanhas de Trajano, o impulso de um comércio
ao qual suas vitórias e a diplomacia dc Adriano abriram as
rotas do Extremo Oriente, o liberalismo econômico do qual
os primeiros Antoninos deram o exemplo e que conjurava
os malefícios do acúmulo de terras nas mesmas mãos, pela
criação — fora os proprietários fundiários e, se preciso fos­
se, apesar deles — de um direito de usufruto hereditário em
benefício dos que tiveram a coragem de cultivar os campos,
tudo isso secundava ainda a marcha dos negócios, e para os
homens industriosos e enérgicos, arrendatários ou meeiros
das grandes propriedades, armadores e banqueiros, comer­
ciantes atacadistas ou varejistas multiplicava as oportunida­
des de adquirir honestamente uma honesta abastança. Por

95
outro lado, o reerguimento que, por fim, soberanos dignos
de sua soberania impuseram a todos os ramos da adminis­
tração, o restabelecimento de uma simples e vigorosa disci­
plina no exército, o cuidado com que eram escolhidos e
promovidos os chefes civis c militares, coincidindo com os
ótimos tratamentos e os soidos elevados que recompensavam
seus serviços e preservavam seu desapego material, consti­
tuíam outros fatores ou medidas favoráveis ao florescimen­
to ou à eclosão de uma burguesia média nas novas camadas
sociais. Nao havia procurador que recebesse menos de 60 000
sestércios por ano. Nem centuriões, nem primípilos
* que ga­
nhassem menos de 20 000 e 40 000.27 Os primeiros podiam
até dobrar ou triplicar o censo equestre que já possuíam; os
outros podiam adquiri-lo, como dão fé muitas inscrições do
século II. O homem dessa época que melhor encarna o espí­
rito da classe média, o poeta Juvenal, é precisamente um desses
ex-oficiais que fizeram seu pé-de-meia e conquistaram uma
aposentadoria decente no seio da pequena burguesia romana.
E verdade que Juvenal suspira pela vida venturosa que
seus medíocres recursos lhe permitiriam levar no campo e
lhe recusam em Roma. No que, aliás, ele acaba sendo repre­
sentante de sua época. De fato, é nas cidades da Itália e das
províncias que a classe à qual o poeta pertence encontra o
verdadeiro ambiente. Em Roma ela era ultrapassada, sufo­
cada pela superabundância das riquezas das quais não parti­
cipava e, se uma mesma corrente parecia uni-la, por um lado,
à plebe onde recrutava sua clientela e, por outro, aos mag­
natas aos quais fornecia a deles, sentia-lhes mais o peso que
o apoio, e a esperança de se livrar do fardo lhe escapava jun­
to com a de elevar-se até eles. Num plano como que alheio
ao seu, as grandes fortunas aumentavam espontaneamente,
com o crescimento de sua própria essência, ou graças a cir­
cunstâncias das quais se aproveitavam sozinhas: pelo exercí­
cio de comandos cujo monopólio detinham e alguns dos quais,
como os proconsulados, por exemplo, rendiam um milhão
de sestércios anuais; pelas predileções arbitrárias do impera­
dor, que podia delegar indefinidamente seus poderes aos mes­

• Primeiro centuriào, comandante da primeira companhia de cada coorte ro­


mana; também chamado primipilar e primipilano. (N. da T.)

96
mos Favoritos; pelas mudanças dc vento dc uma especulação
tanto mais desenfreada quanto cm Roma, banco do univer­
so, constituía o nervo dc uma economia cm que a produção
a cada dia perdia terreno c o mercantilismo invadia tudo.
O trabalho que ainda gerava abastança já não bastava para
proporcionar as fortunas distribuídas pelo acaso dos favores
imperiais e pelos lances na Bolsa. Os intermediários c os tra­
paceiros, as duas chagas no flanco das multidões, eram os úni­
cos que abiscoitavam milhões. Marcial expressa sua cólera
ao ver advogados aceitarem honorários em bens e os mais
belos dons do espírito serem cultivados para nada: “A que
mestre, Lupus, confiar a educação de teu filho? Eu te peço:
que ele nao toque nem nos livros de Cícero nem nos poe­
mas de Virgílio. Manda-o aprender o ofício dc harpista ou
de flautista ou ainda, se ele tem cabeça, faze-o pregociro (prae-
co)"28. E alhures exclama: “Dois pretores, quatro tribunos,
sete advogados, dez poetas recentemente pediam a um ve­
lho a mão dc sua filha. Sem hesitar, ele escolhe para genro
o pregociro Eulogus. Dize-me, Severo, agiu como um insen­
sato?”28-1. Na verdade, se fora da cidade a pequena burgue­
sia ainda era paga para acreditar nos benefícios do trabalho,
cm Roma já nao confiava nele.
Vamos reler esse encantador epigrama em que o poeta
parasita cinzclou o que eu de bom grado chamaria de “sone­
to de Plantin’’ da literatura latina e que com certeza lhe ser­
viu dc modelo:29
“Eis o que dá alegria de viver, Marcial. Uma fortuna não
adquirida através do trabalho, mas herdada; uma proprieda­
de que nao seja estéril; um fogo que não se apague; nenhum
processo; poucas visitas; uma alma em repouso; um vigor
notável; um corpo são; uma franqueza prudente; amigos que
sejam teus iguais; convivas indulgentes; uma mesa simples;
noitadas sem embriaguez e sem preocupações; uma mulher
que seja casta sem austeridade; um sono que abrevie as tre­
vas; a satisfação com o que se é, sem preferir outra coisa; ne­
nhum medo do dia supremo c tampouco nenhum desejo”.
O poema não grita de alegria; solta um suspiro em que
a resignação se mescla ao contentamento. Não expressa ne­
nhuma aspiração por algo melhor que se diria impossível.
Coloca a felicidade na negação de um labor cuja inutilidade

97
subentende. Sobre esse triste ideal passam as nuvens do real
c desliza a fadiga dc um mundo que envelhece. As classes
sociais, pelo menos em Roma, começam a ancilosar-se. A hie­
rarquia, ainda móvel nos escalões intermediários, paralisa-se
no topo. Os afluxos regulares, que deviam restaurá-la sem
cessar, cedem com demasiada frequência aos impulsos incoe­
rentes c aos choques imprevistos. Desviadas, refreadas, pre­
cipitadas, as correntes igualitárias voltam-se para os exageros
das desigualdades essenciais. A ordem democrática se dobra
com a classe média, que é seu centro, sob o duplo peso das
massas às quais uma economia desregrada interdita uma mu­
dança normal de sorte e de uma burocracia abusiva que agrava
o absolutismo do monarca, cujos fabulosos tesouros ela ma­
nipula e cuja onipotente vontade traduz em ações. Assim,
o brilho que se irradia na Urbs no século II d.C. cobre-se
das sombras que o Baixo Império estenderá ao resto do mun­
do, e a Cidade já nao tem a coragem de afastar a sinistra es­
curidão. Para lutar com sucesso contra seus males, as coleti­
vidades precisam acreditar no futuro. Ora, desiludida em suas
esperanças de um progresso justo e constante, preocupada
com seu marasmo e sua instabilidade, a sociedade romana
passa a duvidar de si mesma na época em que a solidez de
suas famílias se fende e a unidade de sua consciência se rompe.

98
CAPÍTULO II

O CASAMENTO, A MULHÇR E A FAMÍLIA:


VIRTUDES E VÍCIOS

O enfraquecimento do pátrio poder

No século II d.C., o direito gentílico dos velhos tempos


caiu em desuso: totum gentilicitim ius in desuetudinem abiit1,
c dos princípios sobre os quais repousava a família patriar­
cal da Roma antiga — a parentela agnática, o poder ilimita­
do do pater famílias — subsistem apenas reminiscências
arqueológicas, por assim dizer.
Enquanto outrora a única parentela legítima era aquela
criada pela descendência masculina, ou agnatio, agora ela com­
preende a cognatio, ou parentela através das mulheres, e ul­
trapassa o âmbito das bodas justas.
No final da República, reconheceu-se o mesmo direito
formal do pai à mãe com relação aos filhos. As fórmulas do
pretor atribuíram à mãe o direito de guarda da progênie, tanto
no caso de tutela como no de má conduta do marido. Sob
o reinado de Adriano, instigador do senatus-consulto tertu-
liano, a mãe de três filhos adquiriu o direito à sucessão de
cada um deles, mesmo que tivessem nascido fora do casamen­
to, desde que o falecido não deixasse descendência nem ir­
mãos consanguíneos. Enfim, sob Marco Aurélio, o senatus-
consulto orficiano, decretado em 178, chamou expressamente
à sucessão da mãe os filhos, qualquer que fosse a validade
da união de que resultaram, e na primeira fila, antes dos “ag-
natos” do morto. Assim se conclui a evolução que minara
o antigo sistema de sucessões civis e que, por fim, demolin­
do as concepções fundamentais da família romana, consagra
o direito do “sangue” no sentido em que nossas sociedades
modernas o fazem prevalecer. Em Roma, a família doravan­

99
te se fundamenta na coniunctio sanguinis, pois, de acordo com
a bela previsão de Cícero no De officiis, a comunidade natu­
ral era a mais adequada para unir os seres humanos através
da benevolência recíproca e da caridade (et benevolentia dc-
vincit homines et caritate)2.
Na mesma época, os dois traços essenciais da patria po-
testas — a autoridade absoluta do pai sobre os filhos e a auto­
ridade absoluta do marido sobre a mulher colocada em suas
mãos (in manti), como se fosse uma de suas filhas (loco filiae)
— haviam gradativamente se esfumado. No século II d.C.,
pode-se dizer que desapareceram. Com relação aos filhos, o
pater famílias já não detém o direito de vida ou morte que
lhe haviam concedido as Doze Tábuas e as leis sagradas, pre­
tendidas régias. Ele ainda possui a horrível faculdade — que
só lhe será retirada em 374 d.C., sob a benfazeja influência
do cristianismo — de abandonar seus recém-nascidos nos mon­
turos públicos, onde morrem de fome e dc frio3, quando a
piedade dc um transeunte, mensageiro e instrumento do fa­
vor divino, nao os recolhe, salvando-os a tempo; sem dúvi­
da, quando é pobre, recorre tanto quanto outrora a essa forma
aleatória de infanticídio legal e, apesar dos protestos isola­
dos de alguns predicadores estóicos, como Musonius Rufus,
continua a enjeitar sem remorsos sobretudo bastardos e fi­
lhas, pois as inscrições do reinado de Trajano admitem à as­
sistência alimentar da primeira idade, na mesma cidade e no
mesmo ano, apenas dois bastardos, ou spurii, contra cento
e setenta e nove filhos legítimos, e neste último total somente
trinta e quatro meninas contra cento e quarenta e cinco me­
ninos, não nos deixando outra explicação para essa desigual­
dade a não ser a relação inversa dos “enjeitamentos”, dos
quais as vítimas mais frequentes eram os bastardos e as
meninas4. Contudo, a partir do momento em que poupava
os filhos ao nascerem, o pater famílias não podia se livrar
deles depois, nem mediante a venda da mancipatio que ou­
trora os votava à servidão e só era tolerada a título de ficção
legal para fins contrários de adoção ou emancipação, nem
por uma execução capital que, ainda admitida no século I
a.C., como demonstra o destino de um cúmplice de Catili-
na, Aulus Fulvius, tornara-se entrementes um crime capital.
Antes de Constantino equiparar o assassinato de um filho

100
pelo pai ao parricídio, Adriano punira com a deportação para
uma ilha um pai que durante uma caçada matara o filho, em­
bora este tivesse desonrado suas segundas núpcias5; e o im­
perador Trajano obrigara outro que simplesmente maltratara
o filho a emancipá-lo de imediato e a renunciar, no futuro,
á sua eventual herança6.
A partir do fim da República a emancipação de um fi­
lho mudara inteiramente de alcance e dc sentido. Ao invés
de ser aplicada como uma penalidade que, apesar de inferior
à morte e à servidão, não deixava de ser pesada, pois, ao rom­
per os laços que o uniam aos seus, golpeava-o com uma ex­
clusão familiar que necessariamente o condenava a ser
deserdado, ela lhe era entregue como uma vantagem; e gra­
ças à jurisprudência pretoriana da bonorum possessio, estabe­
lecida no início do reinado, tornava-o capaz de adquirir e
gerir bens sem com isso privá-lo da sucessão paterna. Enquan­
to tinha o sentido de castigo, os pais de família relutavam
em utilizá-la. Ao contrário, quando se tornou um benefício
para os filhos, com cujas despesas deviam arcar, puseram-se
a praticá-la com frequência. Uma vez mais, as leis se molda­
vam nos sentimentos; e, reprovando as atrozes severidades
do passado, a opinião pública no tempo de Trajano e Adria­
no não exigia do pátrio poder mais que a piedosa ternura
com a qual um jurisconsulto do século II acabará por
identificá-lo: patria potestas in pietate debet, non atroátate
consistere7.
Isso era suficiente para modificar a atmosfera da família
romana e matizar as relações entre pai e filhos com uma do­
çura afetuosa, tao distanciada da frieza e do rigor disciplinar
que Catão, o Velho, mostrou em sua casa que se aproxima
da amizade alegre, hoje florescente em nossos lares. Basta per­
correr a literatura contemporânea: ela está repleta de exem­
plos de pais de família cuja autoridade já se traduzia na
indulgência e de filhos que na presença dos pais viviam à von­
tade como se fossem donos deles mesmos. Plínio, o Jovem,
cujos casamentos permaneceram estéreis, pede para os filhos
dos amigos uma independência de conduta e de atos que não
recusaria aos seus, pois ela passara a fazer pane dos costu­
mes e do decoro das “pessoas decentes”. “Um pai se zanga­
va com o filho por causa de suas despesas, um pouco altas”,

101
escreve ele. “Depois que o jovem saiu, eu lhe disse: ‘Ora,
bem, e tu? Nunca fizeste nada que nao merecesse uma repri­
menda de teu pai?’ ”8
Por certo Plínio, o Jovem, nao estava errado ao pregar
uma mansuetude, ou, caso se prefira, um liberalismo que nos
agrada. Aconteceu, porem, que os romanos nao souberam
guardar as medidas. Já nao se contentavam em atenuar sua
severidade. Cederam aos gestos inconsiderados de uma com­
placência excessiva. Desistindo de governar os filhos, deixa­
ram-se comandar por eles c se orgulhavam de cumprir seu
dever gastando tudo o que tinham para custear as fantasias
de sua progênie. Só conseguiram criar ociosos e esbanjado-
res, como o Philomusus, cuja desventura Marcial nos relata
e que, após receber a sucessão do pai, viu-se de repente mais
necessitado que quando ganhava generosas mesadas: “Teu
pai, Philomusus, te garantira uma renda de 2 000 sestércios
por mês; e te fazia controlar tuas despesas diárias. Ao mor­
rer, fez-te seu herdeiro universal. Teu pai te deserdou, Phi­
lomusus!”9 Infelizmente os patrimônios não eram os únicos
a pagar o resgate do individualismo que então triunfava. No
século II d.C., enfraquecera em Roma a têmpera do caráter;
enquanto se desfaz o duro rosto do pater famílias tradicio­
nal, multiplica-se a alegre figura do filho de família, o eter­
no menino mimado das sociedades que adquiriram o hábito
do luxo e perderam o da disciplina. Pior ainda: vemos perfilar-
se já o rosto sinistro do pai que, por amor ao lucro, nao te­
me aviltar as esperanças de sua raça e corromper metodica­
mente os adolescentes que tinha por missão educar. Foi o
caso do grande advogado Regulus, rival e inimigo de Plínio,
o Jovem. Ele fazia todas as vontades do filho. Montara-lhe
um viveiro sibilante, canoro e falante de melros, rouxinóis
e papagaios. Comprara-lhe cães de todas as raças. Dera-lhe
pôneis gauleses para a atrelagcm e a equitação. E tão logo
morreu a esposa, cuja imensa riqueza financiara os presen­
tes, ele se apressou em emancipá-lo para que o jovem pudes­
se tomar posse da fortuna materna, usufruí-la irrefletidamente
e deixá-la para o pai, ao sair de uma vida que as insensatas
prodigalidades iriam abreviar10.
Com certeza, trata-se de uma exceção monstruosa que
escandalizou Plínio, o Jovem. Contudo, apenas o fato de ter

102
ocorrido já supera os limites da racionalidade c nao seria pos­
sível se as mulheres não tivessem sido libertadas, tanto c mais
que os filhos, da solidariedade que outrora impunha às fa­
mílias romanas o exercício da patria potestas c que desapare­
ceu ao mesmo tempo que ela.

O noivado e o casamento

Com efeito, enquanto a patria potestas do pai sobre os


filhos foi diminuindo, deixou de armar o marido com rela­
ção à mulher. No passado três formas do casamento roma­
no haviam colocado a mulher sob a manas do marido: a
confarreatio, ou oferenda solene, pelos esposos, de um farro
a Júpiter Capitolino em presença do sumo pontífice e do sa­
cerdote do deus supremo, o flamen dialis; a coemptio, venda
fictícia em que o pai plebeu “mancipat” a filha ao marido;
e enfim o wsws, que, mediante a coabitação ininterrupta de
um ano, podia produzir entre plebeu e patrícia os mesmos
efeitos legais. Ora, nenhuma das três formas perdurou atê
o século II d.C. O usas já havia sido abandonado, e é prová­
vel que as leis de Augusto o tivessem abolido formalmente.
A latidatio Turiae, contemporânea das prescrições do segundo
triunvirato, constitui o exemplo mais recente em que a coemp­
tio c claramente atestada. Quanto â confarreatio, tornou-se
tào rara no começo do reinado que, sob Trajano, houve di­
ficuldade em encontrar-se na Cidade três patrícios resultan­
tes de uniões por ela consagradas. A essas modalidades, das
quais Gaio só fala no passado e que já serviam apenas para
alimentar os comentários retrospectivos dos jurisconsultos,
substituíra-se um casamento que tanto no aspecto exterior
como no espírito se parece singularmente com o nosso, um
casamento do qual o nosso deriva em linha direta, pode-se
pensar.
Precedia-o o noivado, que, sem comportar obrigações
reais, era celebrado em Roma com tanta freqüência que Plí­
nio, o Jovem, o inclui entre as mil ninharias que preenchiam
os dias de seus contemporâneos11. Consistia em um com-

103
promisso recíproco assumido pelos noivos coin o consenti­
mento dos pais c na presença de determinado número de
parentes e amigos, alguns atuando como testemunhas, ou­
tros apenas regalando-se no banquete que encerrava a festa
e para o qual todos eram convidados. Concretizava-se na en­
trega que o noivo fazia à noiva dc presentes mais ou menos
caros12 c dc um anel simbólico, provável sobrevivência do
penhor que antecedia13 a primitiva cocmptio. Fosse um aro
de ferro circundado dc ouro ou um círculo dc ouro seme­
lhante à nossa aliança, a noiva devia colocá-lo de imediato
no dedo em que hoje costumamos usar a aliança, isto c, “no
dedo vizinho ao mínimo da mão esquerda”14, e que por is­
so denominamos com uma palavra derivada do latim, “anu­
lar” sem nos lembrarmos, aliás, da razão pela
qual os romanos o escolheram e que Aulo Gêlio nos expli­
cou com um trabalhoso meandro. “Quando se abre o cor­
po humano, como fazem os egípcios, e praticam-se disseca­
ções, avçrronca, para falar como os gregos, encontra-se um
nervo finíssimo que parte do anular e chega ao coração. Jul­
ga-se adequado conceder a honra do anel a esse dedo dc pre­
ferência a todos os outros devido à estreita relação, à espécie
de elo que o une ao órgão principal.”15 Com essa relação
direta, estabelecida em nome de uma ciência imaginária, en­
tre o coração e o anel de noivado, Aulo Gélio evidentemen­
te pretendeu destacar a seriedade do ato, a solenidade do
compromisso então consagrado, sobretudo a profundidade
do sentimento dc recíproca afeição, tão importante para seus
contemporâneos c cuja expressão voluntária c pública cons­
tituía o essencial não só da cerimônia, mas também da reali­
dade jurídica do casamento romano.
Numerosas alusões literárias revelam ínfimos detalhes da
cerimônia nupcial. No grande dia, a noiva, cuja cabeleira foi
presa na noite anterior numa redinha vermelha, veste o tra­
je exigido pelo costume: uma túnica sem ornato — tunica re-
eta — amarrada na cintura por uma faixa de lã com nó du­
plo, o cingulum herculcum; por cima, um manto, ou palia,
cor de açafrão; nos pés, sandálias do mesmo tom; no pesco­
ço, um colar de metal; na cabeça — os cabelos são protegi­
dos pelas seis tranças postiças separadas por pequenas faixas,
ou seni crines, que as vestais usam durante toda a cerimônia —,

104
um véu alaranjado c flamejante (donde seu nome flammeum)
que pudicamentc esconde o alto do rosto c sobre o qual c
depositada uma grinalda trançada de manjerona e verbena,
na época de Ccsar c Augusto, c, mais tarde, de mirto c flor
de laranjeira. Terminada a toalete, a noiva recebe cm meio
aos seus o noivo e sua família c os amigos. Então todos se
deslocam ou para um santuário das vizinhanças, ou para o
atrium da casa, a fim de oferecer um sacrifício aos deuses.
Consumada a imolaçao do animal escolhido — uma ovelha,
raramente um boi, com maior frequência um porco —,
sucedem-se o auspex e as testemunhas. Estas últimas, figurantes
mudos provavelmente recrutados em número de dez dentre
o círculo dos cônjuges, limitam-se a apor seu sinete ao con­
trato matrimonial cuja redação, aliás, não é obrigatória. Quan­
to ao auspex, cujo título intraduzível designa uma função de
áugure familiar e privado, sem investidura sacerdotal e sem
delegação oficial, assume um papel indispensável. Após exa­
minar as entranhas, assegura o favor dos auspícios, sem o
qual o casamento, reprovado pelos deuses, não seria válido,
c, tao logo pronuncia em meio a respeitoso silêncio as pala­
vras que o proclamam, os noivos trocam em sua presença
o mútuo consentimento numa fórmula em que parecem
mesclar-se a própria existência e a vontade de cada um: Ubi-
tu Gaius, ego Gaia. O rito se conclui, e os assistentes explo­
dem em aclamações de bom augúrio: Feliciter! Que a felicidade
esteja convosco! A alegria prolonga-se num festim que só ter­
mina ao cair da noite, quando chega o momento de arrancar
a recém-casada dos braços da mãe e levá-la para a casa do es­
poso. Flautistas abrem o desfile seguidos por cinco portado­
res de tochas. Ao longo do percurso, o cortejo entoa canções
alegres e picantes. Pouco antes de chegar ao destino, lança
nozes para as crianças atraídas por sua presença — nozes com
as quais a noiva brincava na infância e cujo ruído ao bate­
rem nas pedras da rua prenuncia alegremente a fecunda feli­
cidade que o futuro lhe reserva. Três amigos do noivo se
adiantam. Um, o paraninfo por excelência, o pronubus, brande
a tocha nupcial feita de espinheiros estreitamente entrelaça­
dos. Os outros dois se apoderam da jovem esposa, erguem-
na nos braços e, sem deixar que os pés toquem o solo, fazem-
na transpor o umbral do novo lar, ornado dc panos brancos
c frondcs verdejantes. Três companheiras entram atrás da
nupta: uma delas leva sua roca c a outra, o fuso, símbolos
evidentes de suas virtudes e atividade doméstica. Depois que
o noivo lhe oferece a água c o fogo, a terceira companheira
— que em dignidade se revela a primeira, a pronuba — a con­
duz até o leito nupcial, onde o marido a convida a instalar-
se, tira-lhe a palia e se prepara para desatar-lhe o nodus her-
adeus do cinto, enquanto os assistentes se retiram com a dis­
crição e a pressa requeridas pelo decoro e pelo costume16.
Deixemos de lado o sacrifício sangrento e esqueçamos
o brilho flamejante do véu da recém-casada: não julgaríamos
que o cerimonial sobreviveu ao Império Romano e, com pe­
quenas alterações, continua a reger a maioria das bodas con­
temporâneas? Como Duchesne observava outrora com uma
clarividência que nem por ser isolada deixa de ser impresio-
nante: “Excluindo-se o aruspício, todo o ritual nupcial ro­
mano foi transmitido ao costume cristão. Até as coroas
encontraram seu lugar... Essencialmente conservadora, a
Igreja não modificava nesse tipo de coisa senão o que era in­
compatível com suas crenças”. De fato, reconduzido à sua
noção fundamental, o casamento cristão consiste na livre doa­
ção recíproca de duas almas. Independentcmente das festas
que o acompanham e do culto que habitualmente tem lu­
gar, o sacramento resulta da afirmação de íntima união ex­
pressa pelos cônjuges na presença do padre, que ali está apenas
para registrá-la perante Deus17. Ora, o casamento romano
da época clássica requer uma definição semelhante. Na ver­
dade, constituía-se no momento em que, fortalecidos pela ade­
são da divindade constatada pelo auspex, Gaio e Gaia decla­
ravam a vontade de unir-se um ao outro, e cabe acrescentar:
por essa declaração em si. O resto não passava de uma se­
quência de floreios adventícios e acréscimos supérfluos. Quan­
do Catão de Utica se casou de novo com Márcia, no final
da República, ambos concordaram em abrir mão das super-
fluidades. Pronunciaram-se mutuamente votos despojados de
pompas vas. Dispensaram testemunhas. Não convocaram
nem os íntimos. Limitaram-se a unir-se em silêncio sob os
auspícios tomados por Brutus:

106
“Pignora nulla domus; nulli coiere propinqui
Iuguntus taciti contentiquc auspice Bruto”1*.

Há uma evidente nobreza no acordo de corações que basta


para fundamentar o casamento; sem dúvida, progresso da fi­
losofia, mormente do estoicismo, que já iluminava os cami­
nhos de Catão c de Pórcia, contribui para impor ao direito
romano a concepção já moderna que, estranha a seus desen­
volvimentos primitivos, acabou por perturbar-lhe a econo­
mia. Para os antigos, dos quais Gaio fala como se fossem
figuras desaparecidas, a mulher fora condenada por sua futi­
lidade natural a viver como perpétua menor19. No casamen­
to cum manu só escapava à manus de seus ascendentes ou
de seus agnatos ao cair sob a do marido. No casamento rine
manu permanecia sob a autoridade do tutor dito legítimo20,
que obrigatoriamente era escolhido para ela dentre seus ag­
natos ao morrer o último dos ascendentes. Mas, quando o
casamento sine manu excluía o outro, a tutela legítima que
lhe era inseparável perdia a importância. No final da Repú­
blica bastava uma pupila queixar-se de uma ausência do tu­
tor, por breve que fosse, para obter outro da complacente
designação do pretor; quando, no começo do Império, ins-
tituíram-sc as leis demográficas às quais está ligado o nome
de Augusto, os tutores legítimos se viram sacrificados ao de­
sejo do imperador de facilitar os casamentos prolíficos: não
só isentavam de tutela as esposas com três filhos, como pres­
creveram que se revogasse a função do tutor cujas hesitações
em aprovar os projetos matrimoniais ou entregar-lhe o dote
a pupila tivesse denunciado. No tempo de Adriano as mu­
lheres casadas sequer precisam de tutor para redigir seu tes­
tamento; e os pais já não obrigam as filhas a se casar contra
a vontade, nem pensam em impedir sem motivos plausíveis
o casamento a que estavam destinadas, pois, como declara
Sálvio Juliano, o grande jurisconsulto do reino, as bodas se
realizam não pelo amplexo, mas pelo consentimento dos noi­
vos, e a livre aquiescência da jovem é indispensável à sua con­
clusão: nuptiae consensu contrahentium fiunt; nuptiis filiam
familias consentire oportet21.

107
Emancipação e heroísmo da mulher romana

Natural mente a nova definição do casamento romano


acabou por transformar sua natureza. Há conseqiiências que
invariavelmente têm as mesmas causas. Na França atual tem-se
visto a lei reduzir e afastar todos os obstáculos ante a vonta­
de triunfante dos noivos; e o que ainda podia sobreviver da
autoridade dos pais desapareceu ao mesmo tempo que seu
direito de oposição às núpcias desejadas pelos filhos. A mes­
ma coisa aconteceu no Império Romano. Já subtraída à au­
toridade do marido pela predominância quase exclusiva dos
casamentos snze mantt, a matrona foi liberada de suas tutelas
pela independência de escolha que a união dos novos tem­
pos requeria; e, entrando livre no casamento, vivia em pé
de igualdade com o esposo.
Pois, ao contrário da opinião corrente que calca as con­
dições da época imperial nas lembranças doravante caducas
dos primeiros séculos republicanos, é certo que na época que
focalizamos a mulher romana gozou de uma dignidade e au­
tonomia equivalente ou superiores àquelas reivindicadas pe­
lo feminismo contemporâneo, c que mais de um teórico do
feminismo antigo, como Musonius Rufus, por exemplo, sis­
tematicamente reclamara sob os Flávios em nome da igual­
dade intelectual e moral de ambos os sexos22. O final do
século I e o começo do século II estão repletos de altivas fi­
guras femininas que transpiram força dc caráter e imperio­
samente demandam veneração. No trono sucedem-se impe­
ratrizes realmente dignas de portar, ao lado do marido, o tí­
tulo sagrado de augusta que Lívia só recebeu após a morte
do esposo. Plontina partilha a glória c as responsabilidades
de Trajano; acompanha-o na guerra contra os partas, e nos
últimos momentos do optimtisprinceps sabe traduzir ou cum­
prir sua vontade suprema: graças a ela, na ordem e na paz,
Adriano herda a sucessão do trono que o imperador secreta­
mente lhe deixa. Sabina não é atingida pelos redatores da His­
tória augusta, cujos mexericos desmentem a quantidade de
inscrições devotas que lembram suas boas ações e as nume­
rosas estátuas que a divinizaram ainda em vida. Aliás, Adria­

108
no, segundo a tradição, vivia às turras com ela, queria-a na
verdade cercada de atenções e deferência, c por haver falha­
do nesse intento o ab cpistulis Suetônio, da noite para o dia,
incorreu na perda de seu “ministério da pena”. Por sua vez,
as grandes damas da aristocracia evocam com orgulho, co­
mo imperccíveis modelos, as heroínas dos maus reinados pas­
sados que, confidentes dos esposos, associadas a seu comando
e a sua política, nao pretenderam separar-se deles â aproxi­
mação do perigo c preferiram morrer a abandoná-los aos gol­
pes dos tiranos.
Sob o reinado de Tibério, nem Sextia quis sobreviver a
Aemilius Scaurus, nem Paxea a Pomponius Labeo23. Quan­
do Nero enviou a Sêneca a ordem homicida, Paulina, a jo­
vem esposa do filósofo, cortou as veias ao mesmo tempo que
o marido; ela só nao sucumbiu à hemorragia devido à inter­
venção dc Nero, que, informado do sacrifício, ordenou que
a impedissem a qualquer custo de levar avante sua intenção,
e ela se viu obrigada a deixar que lhe enfaixassem os braços
e fechassem os cortes. O relato dessa cena patética, conser­
vado nos Anais, o retrato que nos traçaram do rosto exan-
gue e doloroso no qual a viúva de Sêneca continuou a levar
as marcas da tragédia durante os poucos anos que lhe
restaram24 expressam a profunda emoção que aos romanos
da época de Trajano inspirava a lembrança, velha já em meio
século, desse drama da ternura conjugal. Tácito sentia pela
paciência de Paulina a mesma admiração que seu amigo Plí­
nio, o Jovem, tinha pela altiva coragem que, na época de Cláu­
dio, demonstrara Arria, a mãe, que ele celebrou na mais bela
das cartas que compõem sua correspondência25.
Mais uma vez peço desculpas por me demorar nessas cé­
lebres páginas. Arria, a mãe, havia esposado o senador Cae­
cina Paetus. Numa circunstância dolorosa, mostrou de que
estóico devotamento era capaz seu amor por ele. Paetus es­
tava enfermo, e enfermo estava também seu filho, não ha­
vendo esperança para nenhum dos dois. O jovem morreu.
Era dotado de grande beleza e de uma pureza moral não me­
nos rara, e os pais o amavam mais por seus méritos que por
seu filho. Arria preparou as exéquias do filho e conduziu o
conejo fúnebre de modo que o marido nada percebesse. Ao
entrar no quarto de Paetus, fingia que o filho ainda vivia,

109
que estava melhor e, como o pai frequentemente pedisse no­
tícias, respondia: “Ele descansou bem, comeu com prazer”.
Depois, sentindo que as lágrimas reprimidas durante muito
tempo estavam prestes a jorrar apesar dos esforços para contê-
las, saía e entregava-se à dor. Depois de chorar tudo, enxu­
gava os olhos, recompunha o rosto e voltava para junto do
marido, deixando, por assim dizer, o luto na porta. Com o
esforço sobre-humano, Arria conseguiu salvar o marido da
doença que lhe arrebatara o filho. Contudo, nao pôde subtraí-
lo à vingança imperial, quando, cm 42 d.C., Paetus foi im­
plicado na repressão da revolta de Scribonianus e preso diante
de seus olhos em Ilirico, aonde Arria o acompanhara. Ela
suplicou aos soldados que a levassem também. “E preciso
dardes a um cônsul escravos para o servirem à mesa, vestirem-
no, calçarem-no. Tudo isso eu mesma farei”, disse ela. Não
vendo atendidas suas súplicas, alugou um barco de pesca e
na frágil embarcação seguiu o navio em que Paetus se en­
contrava até a Itália. Em vão. Cláudio mostrou-se implacá­
vel. Arria anunciou que morrería com o marido. Primeiro,
seu genro Trasea tentou dissuadi-la. “Como poderías con­
sentir que, se um dia eu devesse perecer, tua filha perecesse
comigo?”, insistiu ele. Arria não deixou sua indomável re­
solução se debilitar. “Se minha filha tivesse vivido contigo
tanto tempo e na mesma concórdia que eu com Paetus, con­
sentiría”, replicou, e, para pôr termo a todas as tentativas,
jogou-se de um salto contra a parede, bateu a cabeça contra
ela e caiu desmaiada. Ao voltar a si, declarou: “Eu vos avisei
de que encontraria um caminho para chegar á morte, por
mais duro que fosse, se me recusásseis um fácil”. E quando
a hora fatal chegou para Paetus, Arria tirou um punhal do
manto e feriu-se no peito; em seguida, arrancou a arma do
seio e entregou-a ao marido, acrescentando estas palavras
imortais e quase divinas: “Paetus, não dói”.
Se insisto nesses episódios famosos é porque eles nos mos­
tram em determinado tipo de mulher da época imperial uma
das mais belas encarnações da grandeza terrena. Graças a es­
sas criaturas livres e altivas como Arria, a mãe, a Roma anti­
ga alcançou um dos cumes morais da humanidade nos mesmos
anos em que ia receber o batismo sangrento dos primeiros
mártires do cristianismo, e no século II d.C. nao só a memo-

110
ria dc tais mulheres era objeto dc um verdadeiro culto, co­
mo seu exemplo continuava a suscitar imitadoras de quan­
do cm quando. Ccrtamcntc, agora a justiça dos imperadores
poupava às matronas os sacrifícios que a fúria dc Cláudio
ou a ferocidade dc Ncro lhes infligiram c que os rigores dc
Vcspasiano custaram a Arria, a filha26. Entretanto, a cruel­
dade da vida diária ainda lhes deixava numerosas oportuni­
dades dc passar por sofrimentos semelhantes, e pelo menos
na elite as mulheres romanas não se degeneraram.
Plínio, o Jovem, fala dc algumas mulheres que se dedi­
cavam tanto a seus maridos, a ponto dc desejar morrer com
eles. “Eu passeava de barco pelo lago dc Como”, escreve ele,
“quando um amigo mais velho me chamou a atenção para
uma villa... a cavaleiro do lago. ‘Foi de lá’, disse-me, 'que
um dia uma de nossas compatriotas se jogou com o mari­
do.’ Quis saber o motivo desse ato. O marido estava corroí­
do por um cancro dos órgãos íntimos. A mulher exigiu que
a deixasse vê-lo, pois ninguém diría mais francamente se ha­
via possibilidade de cura. Viu, perdeu a esperança, uniu-se
a ele e juntos se lançaram à água do lago.”27
Sem dúvida, são exceções, ou, se preferimos, casos-limite
cm que a coragem se exacerba furiosamente e a virtude co­
meça a sofrer um excesso de rigor. Por outro lado, contudo,
quantas uniões cheias de afeto, quantas esposas simplesmen­
te nobres e puras! Até Marcial desfia uma galeria de mulhe­
res incomparáveis. Cláudia Rufina, “embora descenda dos
bretões tatuados”, tem alma latina. Nigrina, “mais feliz que
Evadné ou Alceste, mereceu não precisar morrer para pro­
var seu amor”. A alma límpida de Sulpícia transparece em
suas composições literárias: ela não demonstra o frenesi da
maga da Cólquida; não relata o festim do terrível Tiestes;
revela apenas castos amores. “Mulher nenhuma foi mais ale­
gre; mulher nenhuma foi mais pudica; e ela não aceitaria
tornar-se nem a esposa de Júpiter, nem a amante de Apoio,
se lhe arrebatassem seu Calenus.”28 Da mesma forma, a so­
ciedade feminina que gravita em torno de Plínio, o Jovem,
transpira dedicação, distinção, honestidade. Assim, a esposa
de seu velho amigo Macrino seria digna de “ser proposta co­
mo exemplo, mesmo se tivesse vivido outrora: passara com
ele trinta e nove anos sem uma discussão, sem um amuo,

111
num entendimento sem rusgas c de respeito mútuo”29. 0
próprio Plínio, o Jovem, parece ter desfrutado dc uma per­
feita felicidade com sua terceira esposa, Calpúrnia. Quantos
elogios lhe prodigaliza, enaltecendo-lhe a delicadeza, o reca­
to, o amor, penhor de sua fidelidade, c o gosto pelas letras,
resultado dc seu afeto pelo marido. “Quantas angústias ao
saber que ele deve defender uma causa! Quanta alegria ao
descobrir que é causa ganha! Ela não se cansa dc lê-lo, relê-
lo, decorá-lo. Quando Plínio faz uma leitura pública, ela o
observa por trás dc uma cortina, aguçando os ouvidos para
captar as aprovações. Quando Plínio escreve versos, ela com­
põe melodias e os acompanha na citara sem ter tomado li­
ções com nenhum artista, a nao ser com o amor, que é o
melhor dos mestres.”33 Junto ao homem de letras que é seu
marido, Calpúrnia apresenta-se a nossos olhos como a com­
panheira moderna, a “sócia”. Despojada de qualquer pedan­
tismo, sua colaboração aumenta o encanto que adorna sua
juventude e, ao invés de murchá-lo, aviva o frescor dos sen­
timentos que nutre pelo marido e que ele lhe dedica. A um
c outro, a mais breve separação parece infligir verdadeiro so­
frimento. Quando Plínio é obrigado a afastar-se, Calpúrnia
o procura cm suas obras, que acaricia e coloca nos lugares
onde costumava vê-lo. Por seu lado, quando a esposa se au­
senta, Plínio pega suas cartas repetidas vezes como se tives­
sem acabado de chegar. A noite, desperto, evoca sua querida
imagem; e de dia, nas horas em que estava habituado a vê-la,
“seus pés o levam por si sós” ao aposento onde ela em geral
ficava, e é com o coração triste, “como sc lhe tivesse fecha­
do a porta, que volta do quarto vazio”31.
Ao ler os bilhetes cheios dc carinho, somos tentados pri­
meiro a nos insurgir contra o pessimismo de La Rochefou­
cauld e a desmentir a máxima dc que não poderia haver
casamentos deliciosos. A seguir, pensando melhor, percebe­
mos a parte de convenção que entra nessas efusões um tanto
afetadas e livrcscas. No mundo de Plínio os casamentos re-
sultavam mais dc conveniências que da força dos sentimen­
tos. Ele próprio assim escolhería sua mulher, tanto que
concorda cm encontrar uma para Minucius Acilianus, con­
siderando nao só as vantagens físicas e morais da eleita, mas

112
também os laços familiares e a situação financeira; pois, con­
fessa, diz a si mesmo que não se deve negligenciar esse pon­
to — nc id qnidem practereundum cssc videtur22. Parece que
o que mais amava em Calpúrnia era a admiração por seus
escritos, e logo temos a impressão, embora ele pretenda o
contrário, dc que se consolava facilmente das ausências que
lamenta graças ao prazer de limar as páginas onde as deplo­
ra com tanta beleza. Pois mesmo quando viviam sob o mes­
mo teto os cônjuges não estavam juntos. Dormiam em
quartos separados, como diriamos hoje. Ate mesmo na paz
dc sua villa, na Toscana, Plínio, o Jovem, procurava acima
de tudo a solidão para suas meditações; c quando amanhece
o dia chama para junto do leito não a esposa, Calpúrnia, e
sim o secretário (notaries)22. Seu afeto conjugal, regulamen­
tado pelo código da civilidade, era para ele sobretudo uma
questão de polidez mundana, e forçoso nos é admitir que,
tudo somado, lhe faltavam calor e intimidade.
Lembremo-nos, por exemplo, das canas constrangidas
que ele enviou ao avô e à tia de Calpúrnia, para anunciar-
lhes ao mesmo tempo as esperanças de paternidade com que
a esposa devia animá-lo c o triste acontecimento que as cei­
fou bruscamente34. A Calpurnius Fabatus diz: “Quanto
mais desejasses que te déssemos bisnetos, mais sofrereis ao
saber que tua neta abonou. Ignorando a própria gravidez por
falta de experiência, Calpúrnia omitiu o que se deve fazer
em tal caso e, ao contrário, fez o que se deve omitir. Ela pa­
gou esse erro dc modo muito adequado para instruí-la, pois
encontrou-se às ponas da mone”. Ao escrever para Calpúr­
nia Hispula, modifica a forma e nao o conteúdo de suas es­
tranhas explicações. “Calpúrnia passou por um perigo muito
grande — que essa palavra não nos traga desgraça! —, não
por sua culpa, mas pela de sua idade. Donde o abono e o
triste desfecho de uma gravidez da qual ela nada sabia. Pro­
cura desculpar essa infelicidade perante teu pai, já que as mu­
lheres têm mais facilidade para compreendê-la... ” Na
verdade, somos nós que nao compreendemos mais, a não ser
que compreendamos bem demais, até que ponto Plínio, o
Jovem, tão atento à educação intelectual da esposa, desin-
teressou-se do resto. Aí está uma frieza que nos choca, uma
indiferença que nos parece contrária à natureza. E a vingan­

113
ça de urna liberdade que se transforma em indiferença e de
uma igualdade dos cônjuges que às vezes, em lugar de unir
os melhores deles, leva-os a uma espécie dc egoístico torpor,
quando nao termina por jogar os outros nas fantasias e na
perversão.

Feminismo e desmoralização

Às heroínas da aristocracia imperial, às mulheres irre­


preensíveis e às maes excelentes que ainda existem em seu
seio, seria fácil opor as esposas liberadas, ou melhor, desen­
freadas, cujas diferentes espécies as novas condições do casa­
mento romano propagaram: aquelas que, para não prejudicar
a aparência, fogem aos deveres da maternidade; aquelas que
pretendem não ceder ao marido em nenhum terreno e riva­
lizam com ele até nas provas dc força que pareciam interdi­
tas a seu sexo; por fim, aquelas que, não contentes em viver
a vida ao lado do esposo, encontram um modo de viver sem
ele, às custas de traições ou abandonos que não as fazem se­
quer enrubescer.
Ou por uma restrição voluntária dos nascimentos, ou
por causa de uma depauperação da raça, no final do século
I e início do II d.C. as uniões romanas muitas vezes são esté­
reis. Aliás, o exemplo vem de cima. A Ncrva, imperador ce­
libatário, escolhido talvez devido a essa condição, sucederam
Trajano e Adriano, ambos casados e sem filhos legítimos.
De três leitos sucessivos, um consular como Plínio, o Jovem,
não recebeu herdeiros e quando morreu sua fortuna foi di­
vidida entre as fundações piedosas e sua criadagcm. A pequena
burguesia não era mais prolífica. De qualquer modo, deixou-
nos milhares de epitáfios em que os libertos choram o de­
funto, na falta dc posteridade. Marcial propõe seriamente
Cláudia Rufina à admiração dos leitores, pois ela teve três
filhos e, dedicando-lhe a homenagem de um epigrama escri­
to cspecialmente em sua honra, lembra-nos que uma matro­
na de suas relações foi duas vezes reverenciada nos jogos
seculares de 47 e 88 d.C. por ter tido cinco filhos do marido.

114
Assim, uma fccundidade que na França de hoje não merece­
ría nem menção nem recompensa especiais na Roma dc an-
tanho passava por extraordinária e digna das maiores distin­
ções.
Se agora recusam a função materna, em compensação as
romanas dedicam-se, com um entusiasmo que chega às raias
do absurdo, a toda espccic de ocupação que nos tempos da
República os homens ciosamcnte reservavam para si; e na
sexta sátira, para divertimento dos leitores, Juvenal pinta uma
série de retratos, com tênues traços de caricatura, de mulhe­
res que, abandonando o bordado, as leituras, o canto ou a
lira, dedicam-se com o mesmo empenho a assemelhar-se aos
homens, se nao a superá-los em todos os campos. Entre elas
há aquelas que mergulham com volúpia nos arquivos dos pro­
cessos ou se apaixonam por política, curiosas pelas notícias
do mundo inteiro, ávidas pelos mexericos da cidade e pelas
intrigas da corte, informadas sobre o que acontece aos trá-
cios e aos seres
*, avaliando a gravidade que paira sobre o rei
da Armênia ou sobre os partas, bastante impudentes para ex­
por na presença dos maridos silenciosos e com ruidosa inso­
lência as teorias e os planos a generais que envergam o
palndamentnm. Há as que aos acordos dos diplomatas e aos
exercícios da estratégia preferem a conquista da fama literá­
ria: inesgotáveis e volúveis, vemo-las afetar um purismo ri­
dículo em grego e latim, confundir os interlocutores, até
mesmo à mesa, com a exatidão de suas reminiscências e a
decisão de seus juízos, “justificar Dido prestes a morrer...
colocar na balança Virgílio de um lado e Homero de outro”,
e, com uma irremediável presunção, fechar a boca dos gra­
máticos m^js eruditos e dos retóricos mais eloquentes35.
Certamente Plínio, o Jovem, ficou fascinado com sua erudi­
ção pelo que nos lembramos não só dos elogios que prodi­
galiza a Calpúrnia, mas também do entusiasmo que lhe
suscitam a cultura e o gosto da companheira de Pompeius
Saturninus e suas missivas tão bem redigidas que se poderia
tomá-las “por Plauto ou Terêncio em prosa”36. Ao contrá­

* Nome dado pelos romanos aos povos do Oriente identificados com os chi­
neses. (N. da T.)

115
rio, Juvenal — cuja filosofia o bom Chrysale
* devia adotar
entre nós — nao suporta as “sabichonas”. Compara sua ta­
garelice ao barulho de panelas e sinetas, abomina as “pre­
ciosas” que desafiam o método dc Palcmonscm
** nunca
ferir as regras da linguagem e, para sua humilhação, elogia
a mulher “que nao tem estilo próprio, nada sabe dc história
c não compreende tudo o que lê”37.
Isso quanto às intelectuais; porém, as “esportivas” infla­
mam as pedantes literatas no afã de irritar o satírico. Hoje
em dia, é quase certo que ele haveria de vituperar chauffeur
e aviadoras. Não poupa ao sarcasmo nem suas contemporâ­
neas que participam das caçadas masculinas e, como Mévia,
lança em punho e seio descoberto, “trespassam os javalis da
Etruria”, nem aquelas que, vestidas com trajes masculinos,
assistem às corridas de carros, nem e espccialmente as que
se apaixonam pela esgrima e pela luta. É zombando que evoca
a ccroma com que se untam, a parafernália que levam consi­
go: endromis”\ braçal, coxote, boldrié, penacho, os exercí­
cios violentos em que se exaurem. “Vede com que ardor
desfecham os golpes que lhes ensinaram! Quem não contou
os talhos no poste que elas perfuram a golpes de durindana
e assaltam de escudo em punho?... Quem sabe se seu cora­
ção não abriga uma ambição maior, se nao se destinam a com­
bater realmente no anfiteatro?” Talvez alguns que admiram
hoje tantos valorosos recordes femininos deem de ombros
e acusem Juvenal de pusilanimidade e mentalidade estreita.
Pelo menos devemos convir que a crônica escandalosa de sua
época justifica os receios que ele expressou nesta grave in­
terrogação: “Que pudor pode guardar uma mulher de capa­
cete que abdica seu sexo?” O feminismo que triunfa na época
imperial não comportou vantagens e superioridades e era fatal
que, copiando demasiado os homens, a romana acabasse por
contrair seus vícios mais depressa do que a natureza lhe per­
mitia conquistar sua força38.

* Personagem de As sabichonas, peça de Molière. Tipo de homem simples e


sensato que o autor opõe ao pedantismo da esposa, da irmã e dafilha. (N. da T.)
Gramático romano do século I d.C. (N. da T.)
Veste felpuda para proteger da chuva e do vento. (N. da T.)

116
Durante três séculos, as matronas eram as comensais do
esposo nos festins. Depois dc se tornar concorrentes na pa­
lestra, adotam naturalmcntc seu regime dc atleta c o enfren­
tam à mesa como lhe disputam as palmas na arena. Mulheres
que nao tinham o pretexto do esporte adquiriram o hábito
de comer c beber como se fizessem isso diariamente. Petró-
nio mostra-nos Fortunata, a gorda companheira dc Trimal-
ciao, empanturrada dc comida e de vinho, a língua pastosa,
as lembranças confusas, o olhar afogado na embriaguez. As
grandes damas, ou assim consideradas cm virtude do dinhei­
ro, flageladas pelas sátiras dc Juvenal, exibem sem pudor uma
glutonaria repulsiva. Uma delas bebe até a metade da noite
c “devora ostras enormes, enquanto espumam os perfumes
derramados no falerno puro e julga ver o teto rodar sobre
a cabeça e o número dc tochas duplicar-se na sala”. Outra,
mergulhada ainda mais fundo na abjeção, chega atrasada à
“cera”, com o rosto esbrascado. “Tamanha é sua sede que
beberia todo o enóforo colocado a seus pés. Antes de comer,
serve-sc de mais um sextário
* que, depois de devolvido ao
chão, lhe dará um apetite voraz, se seu estômago estiver bem
lavado. Como uma longa serpente caída no fundo de um to­
nel, ela bebe e vomita, provocando as náuseas do marido,
que faz todo o esforço do mundo para conter a bile.”59
Trata-se, sem dúvida, de lastimáveis exceções. Contudo,
já é muito que o satírico tenha sido autorizado a extrair de­
las tipos que seus leitores julgavam reconhecer de passagem;
e, ademais, é evidente que a independência de que gozavam
então as mulheres romanas muitas vezes levou à licenciosi-
dade de seus costumes e pela libertinagem à dissolução dos
laços familiares. Elas começavam vivendo como simples vi­
zinhas do marido:

*
'Vzvzí tamquam vicina manti" 0.

Depois não tardavam em trair a fidelidade que deveríam


ter jurado e que, ao esposá-los, muitas tiveram o cinismo de
lhes recusar. “Viver a vida” é uma fórmula que no século
II d.C. elas já haviam posto em moda. “Antigamente com­

* Medida romana equivalente a 0,55 litro. (N. da T)

117
binamos que farias o que quisesses”, declara uma delas ao
marido, “c por meu lado eu realizaria todas as minhas fanta­
sias. Podes gritar c revirar ccu c terra, sou um ser humano!”

“Ut faceres quod velles ncc non ego possem


Indtdgere mihi. Clames licet et mare caelo
Confundas! Homo sum!"41

O adultério nao está presente apenas nos Epigramas de


Marcial e nas Sátiras de Juvenal. Na casta correspondência
de Plínio, o Jovem, há uma carta empenhada em narrar as
peripécias do processo que, como chefe supremo do exérci­
to, Trajano decidiu contra um centuriao, acusado de ter cor­
rompido a mulher de um de seus superiores, tribuno
senatorial da legião em que servia. E o que desconcerta Plí­
nio, o Jovem, como uma extravagância, certamente não é
o adultério em si, porém o concurso das circunstâncias im­
previstas que o rodeiam: o caso de flagrante indisciplina que
constituira e que levou á cassação de centuriao, as hesitações
do tribuno em reclamar em nome de sua honra a condena­
ção que a esposa merecia e que o imperador de algum modo
devia pronunciar42. Eram incontáveis os infortúnios conju­
gais, numa cidade onde Juvenal naturalmentc adjura o ami­
go que convidou para jantar a esquecer à sua mesa as
preocupações que arrastou o dia inteiro, sobretudo a que lhe
inspiram as manobras da esposa acostumada a sair ao ama­
nhecer e só voltar “à noite, com os cabelos em desalinho,
os olhos e o hálito inflamados”43.
Cem anos antes, em vão Augusto tentara punir os amo­
res culpados, criando uma lei que exilava os adúlteros, privava-
os da metade de sua fortuna e os proibia de casar-se um com
o outro. Do nosso ponto de vista moderno, sem dúvida, era
um incontestável progresso em relação ao direito antigo. Na
época de Catão, o Censor, por exemplo, os romanos ainda
assimilavam a falta da mulher a um crime que o marido ul­
trajado podia punir com a morte, porém achavam desprezí­
vel a do marido, e o despachavam impune como se fosse
inocente. A legislação imperial era ao mesmo tempo mais
humana, pois negava ao marido o direito de fazer justiça,
e mais eqüitativa, pois atribuía sanções aos dois sexos. To­

118
davia o fato dc ter abordado o adultério constitui já um ín­
dice da frequência com que se cometia adultério, e por ou­
tro lado é certo que nao conseguiu diminuí-lo44. No fim do
século I d.C., a Lex Iulia deadulteriis estava praticamente es­
quecida. Para aplicá-la Domiciano foi obrigado a renovar so-
lcnemcnte suas disposições. Certamente Marcial não sabe que
louvores cortesãos inventar para esse “edito sagrado do maior
dos chefes”, ao qual Roma deveria mais que a seus triunfos,
pois ele lhe devolveu o pudor:

"Plus debet tibi Roma quod pudica est’*4*.

Entretanto, parece que, após a morte de Domiciano, suas


disposições foram fazer companhia à Lex Iulia na poeira dos
arquivos e na indiferença dos juizes. Anos depois Juvenal
atreve-sc a ridicularizar seu autor, “esse amante maculado
por um incesto trágico que pretendia revivificar prescrições
amargas para todos e temíveis até para Marte e Vênus”4* e
duas gerações após Juvenal a lei caiu em tal descrédito que
Sétimo Severo precisou restaurar o trabalho de Domiciano47
como este retomara o de Augusto. Se o número de adulté­
rios diminuiu no século II, não foi devido às severidades de
uma legislação intermitente, mas, ao contrário, às facilida­
des do divórcio, que de algum modo, os legitimou por ante­
cipação.

Oi divórcios e a instabilidade da família

Nem mesmo nos tempos legendários aos quais a Roma


clássica tanto gostava de reportar-se para descobrir uma ima­
gem de si mesma mais próxima do ideal que acalentava en­
tão, e do qual a realidade a afastava a cada dia, o casamento
romano foi indissolúvel. No casamento cum manu dos pri­
meiros séculos da cidade, se o repúdio do marido pela mu­
lher colocada sob sua autoridade era uma impossibilidade
absoluta, a rejeição da mulher pelo marido era um direito
inscrito no poder deste último sobre ela. Só a prática, sem

119
dúvida no interesse da estabilidade da íamília, abrandou a
aplicação do princípio; c, até o século III a.C., como vemos
pelos exemplos concretos que a tradição nos conservou, o
repúdio continua subordinado, de fato, a uma falha imputa-
vel à mulher e condenada num conselho realizado pela fa­
mília do marido. As Doze Tábuas provavelmente nos
transmitiram um resumo da fórmula da condenação coleti­
va que permitia ao marido exigir da mulher as chaves da ca­
sa que ela governara como dona e da qual seria expulsa
inapelavelmente: c/aves ademit, exegit48. Em 307 a.C., os cen­
sores despojaram um senador de sua dignidade, pois ele ex­
pulsara a esposa à revelia do julgamento do tribunal domés­
tico49; um século depois, em 235 a.C., o senador Sp. Carvi-
lius Ruga escandalizava os colegas repudiando a mulher, à
qual tinha a reprovar, pela simples razão de que não lhe de­
ra filhos50.
Entretanto, logo seus pares escaparam às reprovações em
que teriam incorrido, e nas gerações seguintes os romanos,
sem que ninguém se indignasse ou os punisse, passaram a
se livrar das esposas mesmo sem motivo sério, como sair com
o rosto descoberto, conversar na rua com uma liberta de má
reputação ou ir aos jogos públicos sem permissão51. Atitu­
de mais sensata seria não arranjar pretextos que alegar moti­
vos tão mesquinhos; no fim da República, enquanto os
maridos haviam usurpado a faculdade dc anular a seu bel-
prazer as uniões que haviam concluído, o casamento sine ma-
nu concedeu o mesmo direito à mulher. Se esta contraíra o
matrimônio sob o poder de seus ascendentes ou de seus pró­
ximos agnatos, eles de fato tinham de dizer apenas uma pa­
lavra para romper os laços e recebê-la de volta — abducere
uxorem. Se, por haver perdido os pais, ela dependia de si mes­
ma e da sua própria lei juris —, cabia-lhe pronunciar a
palavra da ruptura52. Tanto que na cpoca de Cícero o divór­
cio pelo consentimento dos dois cônjuges ou pela vontade
de um só tornou-se a moeda corrente das relações familia­
res. Já velho, Sila casou-se pela quinta vez, com uma jovem
divorciada, Valéria, meia irmã do orador Hortênsio53. Duas
vezes viúvo, de Emilia e de Júlia, Pompeu divorciou-se duas
vezes, antes da primeira e depois da segunda: de Antistia, cuja
mão havia pedido para obter o favor do pretor, do qual de­

120
pendia a posse dc sua imensa fortuna paterna, mis cujas ami­
zades ameaçavam prejudicar-lhe a carreira política; e de Mú-
cia, cuja conduta deixara a desejar durante a longa ausência
do marido em campanhas de alcm-marM. Viúvo de Corne­
lia, César repudiou Pompéia, a quem esposara após a morte
da filha dc Cina, pela simples razão dc que, embora inocen­
te, a mulher dc César nao devia ser suspeita55. O virtuoso
Catão, o Jovem, separou-se dc Márcia e nao se envergonhou
dc esposá-la novamente quando à fortuna que ela possuía
somou-se a dc Hortênsio, com quem Márcia entrementes se
casara e do qual era viúva56. E aos cinqüenta e sete anos, dis­
posto a restabelecer as finanças com o dote da jovem e rica
Publília, Cícero tampouco se envergonhou ou hesitou em
repudiar, após trinta anos de vida comum, a mãe de seus fi­
lhos, Terência, que, aliás, parece ter suportado alegremente
a desgraça, pois se casou mais duas vezes — primeiro, com
Salústio; a seguir, com Mcssala Corvinos —, antes de mor­
rer com mais de cem anos57.
Pelo menos na aristocracia que emerge de nossos docu­
mentos, assistimos então a uma epidemia de separações con­
jugais e, apesar das leis de Augusto, ou melhor, por causa
delas, no Império o contágio tende a tornar-se endêmico. E
que com sua Lex de ordinilnis maritandis Augusto pretendeu
apenas fomentar a natalidade nas classes altas e, se mediante
a alegação dc incapacidade que recaía sobre os refratários,
pressionara os divorciados para que se casassem de novo, não
procurara impedir divórcios que, aos casamentos infelizes cuja
dissolução provocavam, podiam quase de imediato substituir
uniões mais afortunadas e fecundas. Proibira a ruptura de
noivado, pois percebera que uma longa série de noivados des­
feitos a bel-prazer era o meio de que os celibatários empe­
dernidos se valiam para adiar indefinidamente bodas que
sempre anunciavam sem nunca as celebrar e, assim, esquivar-se
a suas leis e às sanções com que ameaçava os recalcitrantes55.
Não conseguiu, e não quis impedir os divórcios dos cônju­
ges. Limitou-se a regulamentá-los. Primeiro, admite que a von­
tade de um dos cônjuges bastaria, como antes, para concre­
tizá-los, e só exigiu que tal vontade se expressasse em pre­
sença de sete testemunhas e através de uma mensagem em
geral entregue por um liberto da casa. Depois, resolveu per-

121
milir que a mulher repudiada reivindicasse seu dote através
de uma ação civil chamada actio rei nxoriac, mesmo na hipó­
tese de que, por leviandade ou excesso de confiança, ela ou
seus parentes nao tivessem tomado a precaução de prever no
contrato sua restituição em caso dc ruptura; e doravante a
restituição lhe foi concedida, excluindo bens dotais cuja "re­
tenção” o juiz conferia ao marido ou a título de recurso pa­
ra a manutenção dos filhos deixados a seu cargo (propter
liberos), ou a título de indenização pelos danos que a esposa
lhe causara, fosse esbanjando (propter impensas), desviando
(propter res amotas) ou portando-se mal (propter moresf3.
Com essa legislação, Augusto obedecia ao mesmo motivo
que o levara a subtrair à administração do marido as por­
ções de dotes investidas em terra itálica. O que procurava
defender nos dotes das mulheres, esse permanente atrativo
dos pretendentes, era a oportunidade de um novo casamen­
to. Contudo, suas intenções, de acordo com sua política de­
mográfica, aliás, inatacáveis socialmente, e por uma conse­
quência que deveria ter previsto, apressaram a ruína do espí­
rito de família entre os romanos. Pois, se o medo de perder
um dote devia incitar um marido a conservar uma mulher
que tomara objetivando apenas o dote, nada saudável pode­
ria resultar de tão mesquinho sentimento. De quando em
quando a avareza prolongava a sujeição do marido à esposa
opulenta de que fala Horácio:

. dotata regit viram


coniux”60.

Todavia, sempre aviltando a dignidade do casamento, não


conseguia manter sua coesão, a tal ponto que, cansado da es­
posa, o homem adquiria a certeza de encontrar outra com
um dote mais confortável, nessas condições, cuja responsa­
bilidade em pane cabe a uma legislação demasiado enalteci­
da, não há por que se surpreender se ao longo dos primeiros
séculos do Império os textos latinos mostram apenas casa­
mentos provisoriamente cimentados pelo dinheiro ou dis­
solvidos apesar e por causa dele.
Assim, dona de seus bens em vinude da condição sine
manu, segura de recuperar, graças às leis julianas, pelo me­

122
nos o principal, sc não a totalidade dc um dote que o mari­
do já nao pode gerir na Itália sem seu consentimento nem
hipotecar sem sua permissão61, a matrona lembra as ameri­
canas da Fifth Avenue que impõem aos esposos a tirania de
seus dólares. Devidamente instruída pelo intendente que a
assiste com conselhos e a obsequia com atenções — esse pe­
queno procurator que sob Domiciano está sempre junto â
esposa de Mariano62 —, ela negocia, age, comanda. Como
constata Juvenal, “o marido nada pode dar sem seu consen­
timento, nada pode vender se ela não concordar, nada pode
comprar sc ela não quiser”63.
Enquanto o satírico nega existir no mundo pessoa mais
insuportável que uma mulher rica,

“Intolerabilius nihil est quam femina dives”64,

Marcial explica que não suportaria uma delas, pois não pre­
tende sufocar sob o vcu nupcial:

"Uxorem quare locupletem ducere nolim


qnaeritis? Uxori nubere nolo meae”6*.

No entanto, prisioneiros de um dote e nao do afeto, quan­


do não eram despachados por sua soberana, mais cedo ou
mais tarde os homens se evadiam de um casamento dourado
e procuravam outro; e tanto na cidade como na cone os ma­
trimônios inconsistentes da Roma imperial passavam o tempo
deslocando-se ou, se se preferir, desfazendo-se para refazer-
se, até a velhice e a morte. O liberto que a lei de Augusto
encarregara de transmitir a quem de direito a ordem escrita
da separação nunca trabalhara tanto. Juvenal não deixa de
incluir em suas sátiras a figura apressada desse liberto: “Sur­
jam tres rugas no rosto de Bibula, e Sertório, seu marido,
se apressará a voar para outros amores. Reúne teus perten­
ces, notificar-lhe-á um liberto da casa, e parte!”66 Nesse ca­
so, à esposa repudiada só restava obedecer à ordem cuja
fórmula o poeta alterou ligeiramente e cujo teor jurídico Gaio
nos conservou: tuas res tibi agito, “leva tuas coisas”, mas sem
pegar nada que pertencesse ao marido e cuja posse ela reco-

123
I

nhccia ao partir: “Guarda tuas coisas contigo”, tuas res tibi


agito67.
De resto, não sc julgue que a iniciativa do divórcio cou­
be sempre ao homem. As mulheres também repudiavam os
maridos c, após ditar-lhes sua lei sem piedade, os abandona­
vam sem escrúpulos, como a volúvel esposa que Juvenal nos
apontou com o dedo e que no espaço de cinco outonos cole­
cionara cinco maridos6S, ou a Telesila, denunciada por Mar­
cial, que, trinta anos após a restauração das leis julianas por
Domiciano, casou-se pela décima vez69. Inutilmente os cé­
sares propunham aos súditos o modelo de sua monogamia.
Ao invcs de imitar Trajano e Plotina, Adriano e Sabina, An-
tonino e Faustina, unidos um ao outro para o resto da vida,
os súditos preferiam imitar os imperadores precedentes, que,
até mesmo Augusto, haviam se divorciado uma ou várias ve­
zes. O processo era tão comum que frequentemente, segun­
do relatos dos jurisconsultos da época, as surpresas dos
divórcios em série após diversos estágios intermediários re­
conduziam ao primeiro leito a bela e seu dote70. Até os mo­
tivos que hoje em dia uniriam uma mulher de valor ao destino
do esposo — a velhice, a doença, a partida para o front —
eram cinicamente alegadas por elas para deixar o lar71; c, sin­
toma mais grave da desmoralização, não chocavam uma opi­
nião desumana e indiferente. Assim, na Roma dos Antoninos,
que nesse aspecto sc parece ao Reno do estado de Nevada,
as palavras de Sêneca permaneceríam cruelmente verídicas:
“Nenhuma mulher podia corar por romper o casamento,
pois as damas mais ilustres haviam adquirido o hábito de con­
tar seus anos não pelos nomes dos cônsules, e sim pelos dos
maridos. Divorciam-se para se casar. Casam-se para se divor­
ciar: exeunt matrimonii cansa, nubunt repudii72.
Como estamos longe do quadro edificante que a família
romana nos apresentava nos tempos heróicos da República!
O bloco sem fendas ruiu em toda parte. A mulher estava
estreitamente submetida à autoridade dc seu senhor e amo;
ela se equipara ao homem, compete com o marido, quando
nao o domina73. Estava colocada sob o regime de comunhão
de bens; agora vive sob o da completa separação de bens.
Orgulhava-se de sua fecundidade; agora a teme. Era fiel; agora

124
c volúvel e depravada74. Os divórcios eram raros; agora
sucedem-se a um ritmo tao rápido que recorrer a eles com
essa desenvoltura equivalia dc fato, com diz Marcial, a co­
meter o adultério legal:

"Q/we nubit totiens, non nubit: adultera lege este”7*-

125
CAPÍTULO III

A EDUCAÇÃO, A CULTURA, AS CRENÇAS:


SOMBRAS E LUZES

Sintomas de decomposição

Outras causas que não as leis precipitaram a decadência,


ou antes, determinaram a inversão dos valores familiares.
Há causas econômicas, derivadas do maléfico poder das
riquezas mal adquiridas e mais mal repartidas, como já mos­
tramos. Há também causas sociais, devidas ao pernicioso ví­
rus que o contato com a escravidão inocula em populações
livres. Por fim, e sobretudo, há causas morais que levavam
à desordem dos espíritos numa cosmópolis em que ora a mais
completa indiferença, ora as superstições mais grosseiras im­
pediam o puro florescimento de novas místicas.
No primeiro quartel do século II d.C., glorificado pelas
vitórias de Trajano, os mercados e as casas da Urbs foram
inundados por cativos e cativas, que, aos milhares, afluíam
da Dácia, da Arábia e das distantes margens do Eufrates e
do Tigre. Como consequência, agravaram-se em Roma os
inconvenientes relativos à abundância da servidão e compro­
vou-se na sociedade imperial a lei da natureza segundo a qual
a escravidão avilta e macula o casamento, quando não o su­
prime, em todos os tempos e em todos os países onde é lar­
gamente praticada. Mesmo quando não eram dissolutos, os
ricos romanos, assustados com a perspectiva de uma existência
em que teriam de lutar ou de contar a cada dia com a vonta­
de de uma esposa legítima, preferiam às justas bodas o con­
fortável concubinato, que Augusto transformara em união
inferior, embora lícita1, que a opinião pública não hostili­
zava e no qual, após a viuvez, logo se refugiará o sábio
coroado, o imperador Marco Aurélio2. Libertavam in-

127
tencionalmente uma escrava querida, certos dc que, cm fun.
ção do obsequium devido pela liberta ao patrão, ela lhes se-
ria sempre dócil e fiel e sabendo ademais que, sc nascessem I
filhos dessas relações, lhes bastaria adotá-los para que nao U
sem bastardos. Aliás, talvez se dispensassem com frequência I
de preencher uma formalidade cujos efeitos ameaçavam di-
minuir sua autoridade. A grande quantidade dc epitáfios cm
que o marido e a mulher, que é ao mesmo tempo sua liberta,
reservam o acesso à própria tumba nao à sua descendência,
mas a seus libertos, deixa margem à suspeita dc que em de­
terminados casos, cm que a esterilidade da união não estava
cm questão, os cônjuges de segunda categoria teriam prefe­
rido a uma adrogatio formal de seus descendentes uma sim­
ples manttmissio, completada depois pelas partes dc herança
dos testamentos. Assim, nas melhores famílias da Cidade
infiltrou-sc esporadicamente uma verdadeira mestiçagem, que,
análoga àquela cuja contaminação outros povos escravagis-
tas sofreram mais recentemente, acentuou os fenômenos de
decomposição nacional e social que a profusão das alforrias
romanas havia produzido em toda parte.
Pelo menos, os cidadãos conseguiam manter as apa­
rências, conduzindo-se com um mínimo de decência exte­
rior. Vários, porém — e não dentre os mais humildes —,
julgavam demasiado rígidas e pesadas as cadeias do concu­
binato regular, que, contudo, eram bastante leves. Preo­
cupados apenas com conforto e prazer, tão indiferentes
aos deveres de sua condição como à dignidade exigida pe­
las honras que detinham, achavam mais agradável reinar co­
mo paxás nos haréns servis que sua fortuna lhes permitia man­
ter. Quando um colega de Plínio, o Jovem, no Senado, o
ex-pretor Lárcio Macedo, foi assassinado por um grupo de
escravos descontentes, suas “odaliscas” acorreram ao cadá­
ver, chorando e gritando de dor: concubinae cum idtdatu et
clamore concurrent3. Por fim, até nos casamentos legítimos
a presença das escravas nao tardou a introduzir graves ele­
mentos de perturbação. Quantas flechadas Marcial desfere
nos adultérios a domicílio, seja zombando do amo que re-
compra a serva que nao pode dispensar como amante, seja
designando disfarçadamente a grande dama que se empolga­
ra com um cabeleireiro, libertara-o e lhe dera o equivalente

128
ao censo equestre, seja apontando Muralla, cujos íilhos nume­
rosos atribui nao a Cina, seu marido, c sim ao cozinheiro, ao
intendente, ao confeiteiro, ao flautista, até ao pugilista e ao bufão.
Os epigramas visam aos escândalos mais gritantes da Cidade.
Contudo, o tema seria abordado com menor frequência se os
escândalos fossem mais raros, c a leitura dos poetas dessa épo­
ca nos dao a impressão dc que em muitas casas romanas sc ou­
via o diálogo de invectivas que o dístico pressupõe:

“Ancillariolum tua te vocat uxor et ipsa


Lccticariola est... ”

“A mulher te chama dc amante de escravas, e ela pró­


pria vive correndo atrás dos carregadores de liteira— ”4
E evidente que os abusos da servidão levaram um afrou­
xamento da moralidade até as famílias privilegiadas das quais
estavam banidos os amores ancilares. Mais que a baixa pros­
tituição das “lobas”, que ao cair da noite assombravam as
estradas dos burgos, atrás dos túmulos5, a proximidade dos
concubinatos que invadiram as melhores casas, a atmosfera
de negligência e libertinagem criada à sua volta por tantas
ligações servis degradaram tanto o casamento que os espo­
sos consideravam-no apenas uma experiência anódina e pas­
sageira. Assim, para resistir ao contágio aviltante, os romanos
precisariam ter a força de um ideal que, exceto por algumas
individualidades poderosas, determinadas escolas filosóficas
e seitas de verdadeiros crentes, sua inteligência debilitada por
uma cultura demasiado elementar, superficial e verbal não
tinha mais condições de conceber que sua fé enfraquecida
de realizar.

A escola primária

A criação dos filhos, a salvaguarda da mulher, escapava


à matrona tão logo eles deixavam o colo materno. Cornelia,
mãe dos Gracos, fica solitária em sua glória. Nos séculos aus­
teros da República, Catão, o Velho, reivindica para si ape­
nas a formação do filho, a quem se orgulhava de ter ensinado

129
a ler, escrever, combater e nadar; c sob o Império foi preei-
so esperar o reinado de Antonino Pio para que, reunidas as
provas da indignidade de um pai, sem, contudo, proclamar
sua destituição, os juizes tivessem o direito de confiar à màc
a guarda dos filhos6. Em todos os casos, aliás, quando os fi.
lhos cresciam a mãe naturalmente se desobrigava dos cuida­
dos com sua educação. A mulher rica os confiava ao pedagogo
de prestígio, que podia comprar a peso de ouro, e acreditava
ter cumprido seu dever para com eles se fizera essa escolha
definitiva com todas as precauções desejáveis e os conselhos
abalizados7. Quanto às pobres, eximiam-se do encargo man­
dando os filhos a uma das escolas particulares, abertas por
profissionais, em fins do século II a.C., e que então prolife­
ravam em Roma.
E tais hábitos faziam muito mal a todos. Primeiro, a pro­
funda ociosidade, como diz Plínio, o Jovem, tornou-se fu­
nesta para as mulheres. Umas, as piores, encontravam na
inatividade um estímulo ou uma desculpa para os excessos.
Outras, as mais honestas, ora procuravam preenchê-la com
as paixões artificiais nas quais as vimos perder-se, ora passa­
vam o tempo com a agitação e a tagarelice dos “clubes”, on­
de se reuniam8, quando não se conformavam em ficar num
beato torpor de gincceu, como a velha Umídia Quadratila,
que até a morte, aos oitenta anos, passava os dias em que
não podia ir aos jogos públicos mexendo as peças num tabu­
leiro ou ordenando que representassem para ela os mímicos
com os quais enchera a casa9. Em segundo lugar, e princi­
palmente, as crianças sofriam muito com o abandono ma­
terno. De qualquer modo, com efeito, eram seus inferiores,
escravos, ou, na hipótese mais favorável, libertos que fica­
vam encarregados de educá-las, e o gritante paradoxo acar­
retava conseqüências desastrosas. Se o aluno pertencia a uma
família abastada, podia relegar o chamado professor à posi­
ção subalterna que cabia a um criado, mesmo sendo precep­
tor. Em suas Báquidas, Plauto colocara em cena um ado­
lescente precoce, Pistoclero, que, para arrastar o pedagogo
Lido até a casa de sua amante, precisava apenas recordar-lhe
a humildade da condição servil. “Pois, enfim”, dizia-lhe, “sou
teu escravo ou és o meu?”,0A pergunta nao admitia répli­
ca, e mais de um magister de Roma, como observa Gas-

130
ton Boissier, deve tc-la ouvido. E quando os alunos cram de
origem modesta? Tampouco tinham consideração pelo mestre
de baixo estrato social, cuja escola frcqüentavam, o qual, re­
cebendo um salário irrisório de oito asses por cabeça e por
mês e obrigado a complementar seus recursos com ínfimas
tarefas de escrivão público11, tinha, para os alunos, a única
autoridade conferida pela correia ou pela palmatória, aplica­
das com tanto vigor, na época de Marcial e Juvenal, pelos
sucessores do brutal Orbílio, que fez Horácio estremecer12.
A profissão era notoriamente denegrida. Sob a evidente
impressão da antipatia que ela lhes inspirava, os analistas do
século I a.C. inventaram para o magister de Faleri — crono­
logicamente o primeiro mestre-escola da história romana —
um papel ingrato de traidor teatral13. Sob o Império, os pe­
dagogos não gozavam de melhor reputação, chegavam a ser
encarados por pessoas de bem como o rebotalho da socie­
dade14. Na verdade, não é difícil discernir os motivos que
contribuíam para aviltá-los: a indiferença do Estado que não
controlava sua atividade e só se dignou a remunerá-la rigo­
rosamente em 425 d.C., e em Bizâncio após o saque de Ro­
ma por Alarico15; as condições falhas em que se habituaram
a ensinar ao mesmo tempo a meninas e meninos reunidos
no mesmo local exíguo e desconfortável, sem distinção de
idade ou sexo, as meninas de sete a treze anos e os meninos
de sete a quinze; a brutalidade da disciplina que o grupo he-
teróclito acarretava e que, pelo excesso dos castigos físicos,
sempre provocava a hipocrisia e a covardia dos alunos e às
vezes despertava o sadismo do mestre. “A dor e o medo”,
declara Quintiliano com tristeza, ‘‘levam as crianças a fazer
coisas que não poderiamos reportar honestamente e que lo­
go as cobrem de vergonha. É muito pior ainda se as pessoas
nao cuidaram de averiguar os costumes dos vigilantes e dos
mestres. Nao ouso dizer nem as infâmias às quais homens
abomináveis se rebaixam por seu direito de castigo manual,
nem as agressões que o medo das infelizes crianças por vezes
atrai para outras: entenderam-me muito bem: nimium est quod
intellegitur... ”16
Assim, o Indus litterarins, a escola primária romana, po­
dia estragar a juventude que deveria instruir; em contra­
partida, era raríssimo que transmitisse de fato a beleza do

131
conhecimento. Iniciadas ao amanhecer, arrastando-se sem in-
terrupção até a tarde, ministradas no alpendre dc uma loja,
invadidas pelo barulho da rua, da qual a isolavam apenas pe­
daços de lona, tendo como mobiliário uma cadeira para o
mestre, bancos ou escabclos para os alunos, um quadro-negro,
tabuinhas e alguns ábacos, as classes funcionavam todos os
dias do ano, com desesperadora monotonia, interrompendo
as atividades apenas nas núndinas
,
* **
nas Quinquátrias e nas
férias de verão. A ambição do professor limitava-se a ensi­
nar mecanicamente os alunos a ler, escrever e contar, c, dis­
pondo de vários anos para concretizá-la, não se preocupava
cm aperfeiçoar os pobres métodos nem em renovar a enfa­
donha rotina. Assim, por um processo que Quintiliano con­
dena, ensinava para os ouvintes o nome c a ordem das letras,
antes de mostrar-lhes as formas, c quando os alunos a muito
custo chegavam a distinguir os caracteres segundo o aspec­
to, ainda tinham de agrupá-los em sílabas e palavras17. A ta­
refa era prolongada como que por capricho; quando passavam
à escrita esbarravam nos mesmos mecanismos irracionais e
retardatários. Dc repente, eram colocados diante de um mo­
delo; como não haviam sido preparados para reproduzi-lo,
o mestre tomava-lhes a mão e guiava-os para traçar os con­
tornos do exemplo proposto, de modo que se sucediam inu­
meráveis sessões até adquirirem a habilidade desejada para
executar a simples cópia18. Por fim, o estudo da aritmética
não lhes exigia mais reflexão nem lhes dava maior alegria.
Durante horas ficavam contando as unidades nos dedos, um
e dois na mão direita, três e quatro na esquerda; a seguir,
passavam para o cálculo das dezenas, das centenas c dos mi­
lhares, empurrando pedrinhas, ou calculi, nas linhas corres­
pondentes dos ábacos19.
Quando mais não fosse pelas inscrições de Aljustrel, es­
tá provado que os imperadores do século II d.C., Adriano
em especial, viram com bons olhos as escolas primárias
difundirem-se nas províncias mais distantes do Império, e com
imunidades fiscais encorajaram pedagogos a instalar-se em
vilarejos remotos, perdidos nos confins de um distrito minei­

’ Dias de mercado; ocorriam a cada nove dias. (N. da T)


** O quinto dia depois das idos de março, que era o dia das expiiçõa, (N. da

132
ro, como o dc Vipasca, na Lusitânia20. É provável também
que as lamentações de Quintiliano fossem ouvidas de quan­
do em quando, e que fosse mais ou menos contagioso o exem­
plo de certos “pedagogos” de ilustres famílias, notadamente
o que Hcrodes Atticus providenciou para seu filho e que pa­
ra ensinar mais depressa e ao mesmo tempo divertir o aluno
resolveu dar-lhe um alfabeto de marfim ou dc massa e fazer
ainda desfilar c manobrar diante dc seus olhos um grupo de
escravos, cada qual trazendo às costas um imenso cartaz com
o traçado gigantesco de uma das vinte e quatro letras lati­
nas21. Mas, para cada professor que se esforçava para sair da
rotina, quantos continuavam presos a ela! E na quantidade
dos ludi litterarii que se multiplicaram no século II d.C., quan­
tos falharam na missão educativa que lhes cabería cumprir
junto aos filhos dos cidadãos! No conjunto, é forçoso reco­
nhecer que nem mesmo na melhor época do Império as nu­
merosas escolas com que sc cobrira não cumpriram os deveres
que impomos às nossas. Debilitavam a moralidade ao invés
de aprimorá-la. Machucavam o corpo ao invés de fortalecê-
lo. E, se aparelhavam um pouco as mentes, eram incapazes
de ornamentá-las. Os alunos as deixavam com uma bagagem
pesadamente adquirida de um pequeno número de noções
práticas e terra-a-terra, não obstante tão leve que no século
IV Vegécio lamentará o número de iletrados que ingressam
nas legiões e não contrabalançam a deficiência com boa for­
ma física22. E à falta de imagens risonhas, de idéias sérias e
nutritivas, ou de uma dessas curiosidades intelectuais das quais
a vida tira vocações, levavam apenas a lembrança sombria
de anos perdidos em tediosas repetições e balbucios, ponti­
lhados de punições cruéis. Assim, a educação popular falhou
na Cidade; c, se houve uma pedagogia romana, não é entre
os “pedagogos” que devemos procurá-la, e sim entre os gra­
máticos e retóricos que, guardadas as proporções, oferece­
ram à aristocracia e à burguesia imperiais o equivalente de
nossos ensinos secundário e superior.

133
O ensino fonnalista do gramático

A julgar pelos adeptos, inflados de saber c eloquência,


pouco faltou para ela realizar a idéia da perfeição, para da
levar diretamente ao soberano bem. No final do século II,
um desses bem-falantes, Apuleio de Madaura, escreverá: “Nu­
ma refeição, a primeira taça é para a sede, a segunda, para
a alegria, a terceira, para a volúpia, a quarta, para a loucura.
Ao contrário, nos festins das musas, quanto mais nos dão
de beber, mais nossa alma ganha em sabedoria e razão. A
primeira taça nos é servida pelo preceptor (litteratus), que co­
meça a polir a rudeza de nosso espírito. Depois vem o gra­
mático (grammaticns), que nos adorna com variados conhe­
cimentos. Por fim, é a vez do retórico (rhetor), que nos põe
na mao a arma da eloqüência”23. Não se poderia estar mais
satisfeito consigo mesmo; porém, infelizmente, não havia ta­
ças e a realidade em nada justificava o lirismo de Apuleio.
Primeiro, gramáticos e retóricos dirigiam-se a um públi­
co restrito, e mesmo no século II d.C. o ensinamento que
transmitiam conservava o caráter de seleção que no inicio
lhe inculcaram as desconfianças da oligarquia dirigente. No
decorrer do século II a.C., quando os pais conscritos*, cu­
jas armas e diplomacia se voltaram na direção dos gregos,
sentiram a necessidade de nao deixar os filhos para trás dos
súditos e vassalos que doravante iriam governar, favorece­
ram a fundação em Roma de escolas do tipo helenístico, de­
rivadas e concorrentes das que floresciam no Oriente, em
Atenas, Pérgamo e Rodes, e desejaram que se aprendesse à
maneira dos gregos o que os mais instruídos dentre eles sa­
biam. Ao mesmo tempo, entretanto, deram-se conta da for­
ça eleitoral virtuaimente incluída na instrução superior; e,
decididos a não afrouxar o monopólio político, trataram de
reservar para sua casta as novas vantagens. Os primeiros pro­
fessores de gramática e retórica que se instalaram em Roma
com sua permissão foram refugiados da Ásia ou do Egito,
vítimas de Aristônicos e de Ptolomeu Physcon, cujo exílio
a Cidade abrigava; uns e outros ensinavam em grego. Mais

Patris conscripti: qualificação dos senadores da antiga Roma. (N. do E.)

134
urde, quando italianos ocuparam seu lugar, amoldaram-se
a seu costume e emprestaram sua língua; continuaram a le­
cionar em grego e latim nos cursos de gramática, somente
cm grego nos de retórica. Houve algumas tentativas de rom­
per essa sujeição, que constituía um isolamento. Por ocasião
da revolução democrática à qual está ligado o nome de Má­
rio, um cliente deste, o retórico Plotius Gallus, expressou
a pretensão de se dirigir aos alunos em latim; e alguns anos
depois era publicada a “retórica a Herennius”, que, repleta
de exemplos extraídos da história mais recente, carregada de
referências aos temas debatidos nos comícios, evidentemen­
te procedia da mesma corrente liberal, concreta e vulgariza-
dora. No entanto, a oligarquia estava atenta. Não pretendia
deixar que a despojassem do governo hereditário: como a elo­
quência dominava as assembléias que anualmente renovavam
seus poderes, ela quis que seus filhos fossem os únicos a
possuir-lhe os segredos e perseguiu os temerários inovado­
res. A “retórica a Herennius” não se difundiu, e até hoje
ignoramos o nome de seu autor. Quanto a L. Plotius Gal­
lus, teve de interromper suas aulas por ordem dos censores,
que em 93 a.C. acreditaram “que era preciso retornar à re­
gra dos ancestrais e era ilícito adotar uma novidade contrá­
ria a seus hábitos”24. Para que as escolas de eloqüência
reabram em Roma será preciso esperar a ditadura de César,
servida pelos tratados de Cícero25, e o regime imperial que,
sob os Flávios, subvencionará generosamente o mais ilustre
dos mestres na pessoa de Quintiliano. Todavia, o hábito se
instalara e nao mais desaparecerá: mesmo que se realize tan­
to em latim como em grego, o ensino da retórica continua
sendo apanágio de poucos; e para melhor selecionar o audi­
tório o curso de gramática, que constitui apenas o primeiro
grau, permanecerá bilíngue até o fim do Alto Império.
Em seguida, e sobretudo, a eloqüência a que gramática
e retórica sucessivamente visam é esvaziada de todo o con­
teúdo substancial. A política havia se retirado, abandonan­
do o foro à chegada dos pretorianos. As controvérsias do
direito, cada vez mais confinadas aos grupos de especialis­
tas, não mais a alimentaram quando o reinado começou com
Augusto e terminou com Adriano de absorver a jurispru­

135
dência cm seus conselhos. Por fim, a filosofia c as ciências
matemáticas e naturais que na Antiguidade grega lhe eram
relacionadas apenas no país de origem, notadamente no Mu­
seu de Alexandria e em Atenas, beneficiavam-se com as ge-
nerosidades de Trajano e Adriano. Em Roma, de onde
Vespasiano banira os filósofos que cm toda parte excluiu dos
privilégios com os quais recompensou os retóricos e os
gramáticos26, os estudos filosóficos nunca conseguiram se re­
cuperar da velha interdição com que o Senado os golpeou
em 161 a.C. e que repetiu em 153 a.C. expulsando juntos,
a despeito da imunidade diplomática que os revestia, o aca­
dêmico Carneadcs, o estóico Diógencs e o peripatético Cri-
tolaos27. Nao haviam cessado de suscitar prevenções descon­
fiadas e irônicas28; e para dedicar-se a eles fora de conversa­
ções amistosas, conferências episódicas e privadas ou medi­
tações solitárias em sua torre de marfim, o cidadão podia
escolher entre duas alternativas: manter um professor em
casa, se dispunha dc fortuna suficiente, ou exilar-se numa
dessas cidades distantes onde os filósofos tinham permis­
são para expor suas ponderações ao ar livre. Físicos ou
metafísicos, seus sistemas já nao eram matéria cm cursos
públicos e regulares, como política ou história; e a elo­
quência, despojada do pensamento e da ciência pura, bem
como apartada da ação, girava num círculo estafante de exer­
cícios literários c virtuosismos verbais. Assim, malgrado o
favor que encontravam entre a juventude abastada, malgra­
do a proteção que lhes concediam os imperadores, malgra­
do o lugar de honra que ocupavam na cidade onde Ccsar lhes
destinara as tabemaeàz seu foro e Trajano um hemiciclo do
seu29, os estudos preparatórios de gramática e retórica foram
esterilizados pelo incurável formalismo ao qual a própria elo­
quência se reduzira.
Os jovens passavam a estudar com o gramático numa
idade que variava segundo as aptidões e as condições das fa­
mílias, mas que às vezes, como indicam as inscrições funerá­
rias dos primeiros séculos de nossa era, chegava à inquietante
precocidade dos meninos prodígios30. Com ele, iniciavam-
se na literatura, ou melhor, nas duas literaturas que leciona­
va; pois no a literatura grega marchava parelha

136
à latina ou a precedia. Num livro recente, aliás notável, Saint
Augustin ct ia fin dela culture antique, Marrou julgou distin­
guir a partir de Quintiliano os indícios de um enfraqueci­
mento do helenismo na cultura romana31; mas tenho a
convicção de que foi vítima do ponto de vista ao qual neces­
sariamente o prendeu seu tema, centrado na individualidade
de seu doutor, c receio que tenha estendido indevidamente
á Itália conclusões válidas para a África de Agostinho, nasci­
do em Tagasta, instruído em Madaura e Cartago, falecido
como bispo de Hipona. Contra sua opinião é fácil invocar
toda uma série de fatos que a desmentem na Roma do sécu­
lo II d.C.: a empolgação pelo grego ostentada pelas “belda­
des” que Juvenal e Marcial ridicularizam32; os sucessos ob­
tidos durante todo o decorrer do século II, tanto na Gália
como na Itália, pelos retóricos gregos itinerantes, dos quais
Luciano representa o tipo mais original33; a publicação em
grego de tratados de “filósofos”, de Musonius Rufus a Fa-
vorinus de Aries; os epigramas gregos do imperador Adria­
no e os Pensamentos de Marco Aurélio; por fim, e sobretudo,
a persistência do grego na liturgia e na apologética dos cris­
tãos de Roma, cuja Igreja só adotou o latim após o grande
abalo que em meados do século UI dissociou o Império e sa­
cudiu os alicerces da civilização antiga34. Seria estranho que
o grego tivesse recuado em Roma numa época em que, para
ceder-lhe espaço, desaparece na Itália a literatura latina; com
efeito, as inscrições atestam sua vitalidade no ensino desde
o epitáfio do jovem Q. Sulpício Máximo, falecido aos onze
anos, após vencer cinqüenta e dois concorrentes e arrebatar
o prêmio de poesia grega nos jogos capitolinos de 94 a.C.35,
até o do filho de Delmatius, que, sucumbindo na idade de
sete anos, teve tempo apenas de seguir os cursos de grego,
e provavelmente aprendeu sozinho as letras latinas36. Assim,
parece que os gramáticos romanos nunca deixaram de ba­
sear o ensino da literatura latina no da grega, mais ou menos
como nos colégios franceses do Ancien Régime o ensino do
francês se enquadrou no do latim.
O que suas lições perdiam em atualidade viva poderíam
ganhar em variedade. De fato, enquanto no Indus litterarius
o saber do magister se atinha a um único livro — um exem-

137
piar das Doze Tábuas cujas letras as crianças soletravam an­
tes de tentar copiá-las —, o grammaticus dispunha de uma
dupla biblioteca. Contudo, sua distribuição era desigual, com
marcante predomínio das obras estrangeiras e esmagadora
primazia concedida à Antiguidade. Se Homero, os trágicos,
os cômicos, sobretudo Menandro, os líricos e Esopo lhe for­
neciam um jogo abundante de textos gregos, havia muito ele
limitara a escolha dos autores latinos aos poetas das primei­
ras gerações — Lívio Andrônico, Enio, Terêncio — e tinha
o requinte de explicar cm grego os escritores cujas obras eram
mais ou menos adaptações do grego37. Só no último quar­
tel do século I d.C. um liberto de Atticus, Q. Caecilius Epi-
rota, decidiu realizar de um só golpe duas revoluções na classe
de gramática que dirigia: ousou falar latim na aula e admitir
autores latinos, ainda vivos ou mortos havia pouco, Virgí­
lio e Cícero38. Sua audácia foi seguida timidamente, e nos
dois primeiros séculos do Império, uma ou duas gerações após
a perda de um escritor ilustre, suas obras pouco a pouco alon­
gam os programas, nos quais sucessivamente se inscrevem
em prosa os tratados de Sêneca, em verso as Epístolas de Ho-
rácio, os Fastos de Ovídio, a Farsala de Lucano, a Tebaida
de Estácio. Entretanto, as tentativas intermitentes de reju­
venescimento não bastaram para modificar o caráter funda­
mental de um ensino que podemos tanto melhor qualificar
de “clássico” quanto se prendia mais à tradição dos sucessos
já consagrados; é até provável que seu classicismo tenha sido
reforçado quando, no reinado de Adriano, a renovação do
aticismo, ao qual nos fazem assistir tantas estátuas c baixos-
relevos de fria elegância, foi acompanhada por um retorno
do gosto literário ao arcaísmo que um imperador letrado enal­
tecia, porém gostava mais de Catão, o Velho, e Ênio que de
Virgílio e Cícero. Conforme os momentos, a escola de gra­
mática de Roma sempre olhou mais ou menos para o passa­
do, e o latim que ensinava nunca foi, a bem dizer, uma língua
viva: como o grego do qual era inseparável, era a língua da
qual os “clássicos” se serviram e que estava fixada nos mol­
des em que seu talento a vazara de uma vez por todas. De
modo que nessa orientação puramente livresca do ensino dos
grammatici havia como que o princípio de uma csclerose que

138
a vã complicação de seus métodos iria agravar ainda mais.
Primeiro, comportavam exercícios de leitura cm voz alta
e recitações. Tendo em vista a formação ainda longínqua
do futuro orador, o curso de gramática iniciava-sc com au­
las de dicção que depurava o gosto dos alunos e ampliava
sua compreensão, porém, ao mesmo tempo, desenvolvia ne­
les a tendência ao virtuosismo e às poses teatrais, em detri­
mento de sua profunda sensibilidade. A seguir, o professor
abordava a exegese propriamente dita. Tratava-se de conci­
liar os textos que tinham em mãos, nos quais os caprichos
da cópia manuscrita produziram divergências ausentes de nos­
sas edições impressas. Então a emendado, que hoje chama­
ríamos de crítica verbal, apelava à reflexão dos ouvintes; e
constituiría um treino salutar para os intelectos se, perma­
nentemente mesclada com discussões sobre as qualidades e
falhas dos trechos, não estivesse viciada pelos preconceitos
estcticos que a comandavam, ao passo que, conduzida obje­
tivamente, teria contribuído para restaurá-los. Por fim, ten­
dendo a um julgamento de conjunto que em geral encerrava
as aulas, desenrolava-se, ou melhor, arrastava-se, o comentá­
rio propriamente dito, a enarrado, cujos defeitos prejudica­
rão mais tarde a obra de um Sérvio.
O gramático despejava aos borbotões a análise da obra
que escolhera e passava ao esclarecimento — explanado —
frase a frase ou verso a verso, destacando com meticuloso
pedantismo o sentido de cada palavra, definindo uma a uma
as figuras a que se prestavam as palavras e a diversidade dos
“tropos” em que entravam: metáfora, metonímia, catacre-
se, litotes, silepse. Considerava o fundo secundariamente, em
função dos vocábulos que o expressavam, e de algum modo
submetia a experiência das coisas reais à forma dos enuncia­
dos que permitiram aos alunos apenas uma vaga percepção
das entrelinhas. Somente por meandros interferiam em seu
ensinamento as disciplinas que os romanos chamavam de “ar­
tes liberais”, cujo leque, longe de abranger todas as partes
do que se tornou a ciência, ligou entre elas só os ramos do
saber com o qual os gregos identificavam o éyxúxÀtos xai-
ôeía, ou seja, não a educação enciclopédica, mas a educação
normal, corrente, que, sem grandes modificações, a Antigui­

139
dade legou à Idade Média. O gramático romano em tudo to
cara sem nada aprofundar, c os alunos só faziam aflorar d*
passagem os conhecimentos implícitos em sua literatura: a
mitologia indispensável ao entendimento das lendas poéti­
cas; a música, se dela dependia o metro das odes ou dos co­
ros; a geografia, quando era preciso acompanhar Ulisses nas
atribulações do retorno; a história, sem a qual muitas passa*
gens da Eneida seriam incompreensíveis; a astronomia, quan­
do uma estrela desponta ou cai na cadência de um verso; a
matemática, na medida em que condiciona a música e a as­
tronomia. Cegos em seu excesso dc senso prático, sempre
à procura de lucros imediatos, os romanos nao viam a utili­
dade a longo prazo da pesquisa desinteressada: nao enten­
diam seu valor; nao sentiam seu chamado; colecionavam as
receitas a que ela levara antes deles e tomavam a ciência pronta
em seus livros, sem experimentar a necessidade de ampliá-la
ou de controlá-la. Por exemplo, seu Pico delia Mirandola,
o rei Juba, que fora educado na casa dc Otávia e cujos Esta­
dos da Mauritânia estavam infestados de manadas de elefan­
tes, ao invés de vê-los com os próprios olhos preferiu
imaginá-los a partir das frivolidades que recheavam suas lei­
turas e que vulgarizou em seus escritos; e, cinqüenta anos
antes, Salústio, nomeado por César para o governo da nova
província da África, não procurou informar-se das cidades
que não obedeciam à sua autoridade, tanto que, ao ter de lo­
calizar, no De belo Iugurthino, Cirta, futura Constantina e
antiga capital dos númidas, que acabava de ser elevada a co­
lônia autônoma, tranqüilamente a situou... pouco longe do
mar39. Se tal era em Roma a apatia das cabeças mais eminen­
tes, compreendemos que a opinião média não reagisse con­
tra um sistema de educação que relegava a ciência ao papel
de serva da literatura, no sentido em que a Idade Média fez
da filosofia a humilde auxiliar da teologia; e nada contribuiu
para esgotar a seiva do ensino dos romanos que essa subor­
dinação insensata, essa fatuidade do objetivo que atribuíam
à própria literatura, exigindo-lhe que formasse unicamente
oradores numa época em que a arte da oratória já não tinha
razão de existir.

140
A retórica irreal

Pois enfim, como escreveu Tácito, a grande eloquência


— magna cloquentia —, a verdadeira eloquência, aquela que,
se necessário, zomba da eloquência, “é igual à chama; como
ela, exige materiais que a alimentem; como ela, é excitada
pelo movimento e só brilhando é que ilumina”40, e, assim
como a chama se apaga quando lhe falta o oxigênio, assim
nao mais existe eloquência quando perece a liberdade. Ora,
toda a história sobre a qual Tácito meditou confirmava sua
opinião; a eloquência nao sobreviveu em Roma à dissolução
das assembléias mais que antes, entre os gregos, ao surgimento
do despotismo nos Estados dos diádocos. Aristóteles, mes­
tre dc Alexandre, distinguiu três gêneros de eloquência: aquela
em que o orador tentava provocar uma decisão; aquela em
que justificava uma resolução anterior; e aquela em que se
limitava a relatos ou elogios indiferentes à marcha dos fatos
e à conduta dos homens; e reconhecera a superioridade do
primeiro gênero sobre o segundo e do segundo sobre o ter­
ceiro. Ao contrário, em 150 a.C. vemos o retórico Hermá-
goras inverter a ordem de valores e atribuir o primeiro lugar
ao gênero que chamou de “epidíctico”, ou seja, á pura elo­
quência de aparato, tanto mais meritória a seus olhos quan­
to, desenvolvendo-se num plano autônomo e irreal, em sua
presunção ostensiva implicava uma espécie de teoria da arte
pela arte num campo em que essa doutrina é insustentável41.
Conscientemente ou não, Hermágoras havia absorvido as con­
sequências da revolução que se operara nos reinos helenísti-
cos; e os romanos de bom grado adotaram seu paradoxo ao
acomodar-se a um regime político semelhante ao dos Basi-
leis, no qual a soberania do imperator absorvia toda a Repú­
blica. Menos de uma geração depois que Catão, o Velho,
identificando o orador com o homem de bem capaz de fa­
zer prevalecer o bem que ele pensa — vir bonus et dicendi
peritas —, subordinara a eloquência à ação, aceitaram sem
protestar os tratados de retórica grega em que elas estavam
separadas; quando César os dobrou à sua monarquia, natu-
ralmcnte consumaram um divórcio que condenou a eloquên­
cia ensinada nas escolas a agitar-se no vazio com uma coleção

141
de receitas estereotipadas e a verborragia dc sonoridades sem
eco.
Os professores dc retórica uniformemente imobilizavam
a composição de todos os discursos em seis partes, do exór-
dio à peroraçao. A seguir, analisavam a variedade das com­
binações a que eventualmente podiam adaptar-se. Em seguida,
dirigiam as gamas dos exercícios que deviam proporcionar
a perfeição em cada uma delas; por exemplo, a narração, a
sentença, cbria, a expressão dos caracteres ou etopéia, a tese,
a discussão42. Previram os menores detalhes, e seus desen­
volvimentos sucediam-se segundo progressões invariáveis, nu­
ma cadência quase automática. Tinha-se a impressão de que
levavam a sério a fórmula que fabrica um orador da cabeça
aos pés — fiunt oratores — e de que estavam convencidos de
poder conquistar esse belo nome para todos, habituando os
alunos a tais acrobacias. Talvez nada caracterize melhor o
método tacanho que a chria\ a declinação não de vocábu­
los, mas do pensamento, ou antes, das proposições que o ex­
primiam sob a máscara de uma elevada autoridade, como se
a máxima de um sábio pudesse matizar-se e enriquecer-sc com
a variedade dos casos e dos nomes pelos quais a faziam pas­
sar incansavelmente: Marcos Pórcio Catão disse que as raí­
zes da ciência eram amargas; dc Marcos Pórcio Catão essa
máxima que...; pareceu a Marcos Pórcio Catão que...; foi
dito por Marcos Pórcio Catão que...; os Marcos Pórcio Ca­
tão disseram que..., etc., etc. Assim, ao iniciar-se na arte
de falar bem, o senhor Jourdain"* será convidado a florear
intermináveis variações sobre o tema da cbria, proposto pe­
lo professor. “Bela marquesa, vossos belos olhos fazem-me
morrer de amor; de amor, bela marquesa, vossos belos olhos
fazem-me morrer, etc.” Só que Molière quis ridicularizar o
senhor Jourdain e seu mestre de belas-lctras, enquanto ne­
nhum retórico, na Roma dos séculos I c II d.C., sequer so­
nhava rir das chriae cujos enunciados Suetônio nos transmitiu

’ Exerdcio de retórica que consistia em desenvolver um pensamento de vá­


rias maneiras. (N. da T)
“ Protagonista de O burgues gentil-homem, de Molière. Tipo dc homem
simples e rico que resolve tomar aulas de boas maneiras para estar à altura
de seus pares sociais. (N. da T.)

142
solencmentc antes de Diomedes43, e cuja prática Quintilia-
no confessa cm seu “Tratado”44.
Por fim, quando julgava que os alunos estavam suficien-
temente familiarizados com as idas e vindas desse psitacis-
mo, o professor de retórica exigia que provassem seu talento
em arengas pronunciadas em público. Mas, no Império, os
ensaios perderam o título de causae que ainda levavam na
época de Cícero e que em francês originou o termo choses
(“coisas”). Quer se tratasse de suasoriae, nas quais se discu­
tiam casos de consciência mais ou menos espinhosos, quer
de controvérsia?, que consistiam cm defesas ou acusações fic­
tícias, nunca passaram de declamações, declamationes, com
a nuança pejorativa que o termo adquiriu a partir de então.
Evidentemente, se os mestres conseguissem se livrar de suas
manias, esse tipo de provas poderia restabelecer o contato
entre as escolas c a realidade concreta. Ao contrário, porém,
diriamos que se esmeravam em evitá-la, e quanto mais inve­
rossímil fosse uma matéria, mais tendiam a adotá-la. Pois,
na origem, gramaticus e rhetor eram a mesma pessoa45. Mais
tarde suas escolas se separaram, porém sempre subsistiu en­
tre elas o vestígio da fusão primitiva. O gramático abria ca­
minho para as lições do retórico. E estas, por sua vez, refaziam
o circuito de idéias e imagens percorrido pelo gramático. O
aluno podia mudar de classe; o ensino não mudava de espí­
rito, e por toda parte era servo de uma literatura artificial
e prisioneiro de um classicismo tacanho.
Por exemplo, em vez de ater-se a preocupações do mo­
mento, os temas de suasoriae indicados por Sêneca, o Pai, para
os alunos versavam apenas sobre o passado, e muitas vezes
sobre um passado estranho e distante. Os descobertos mais
recentemente abordam episódios imaginários das últimas se­
manas de vida de Cícero: Cícero hesitante em pedir graça
a Antônio; Cícero aquiescente em queimar suas obras para
obtê-la. Aliás, por toda parte as situações da história roma­
na são preteridas pela história grega: Alexandre Magno
interroga-se para saber se navegará no oceano Indico ou se
entrará na Babilônia apesar dos oráculos; os atenienses dis­
cutem se vão submeter-se ao ultimato de Xerxes, e os tre­
zentos espartanos de Leônidas decidem se se deixarão matar

143
até o último homem, para retardar a passagem dos persas
nas Termópilas. Entretanto, ocorre que esses velhos dados
singulares parecem ainda bem recentes e comuns. Então, mer­
gulhando nesse passado que adora percorrer até chegar às bru­
mas da lenda, o retórico manda os alunos comporem o
discurso em que Agamcnon se pergunta se vai obedecer às
injunções proféticas de Calcante e sacrificar sua filha Ifigê­
nia para garantir à frota ventos favoráveis.
Percebemos o que havia de fictício nas suasoriae. Quan­
to às controversiae, que deveríam preparar o advogado para
exercer a profissão, afastavam-se propositalmente dos fatos
da vida real e perdiam-se num mundo ilusório de estranhas
hipóteses e casos monstruosos. Os temas que Suctônio ex­
traiu dos manuais antigos já sao desfigurados por essa incli­
nação mórbida para o excepcional e o bizarro. Num desses
processos ridículos, alguns ociosos num belo dia dc verão
vão respirar a brisa marítima na praia de Óstia, comprar de
um pescador os peixes capturados cm sua rede e, concluído
o negócio, reivindicar pelo baixo preço combinado a pro­
priedade da barra de ouro que por um maravilhoso acaso
ele recolhera em sua nassa. Outro processo coloca frente a
frente um mercador de escravos que, para subtrair as taxas
alfandegárias o mais precioso espécime de sua carga, ao de­
sembarcar em Brindisi resolveu vestir um belo rapaz com
a toga pretexta, que é o traje dos jovens cidadãos, c o moço
assim travestido que, chegando a Roma, não quer mais tirar
o disfarce e sustenta mordicus tê-lo recebido como sinal de
uma libertação irrevogável46.
Esses dois casos fantásticos concedem à verdade um pe­
queno espaço que lhe é sistematicamente recusado nas con­
troversial!, cuja matéria Sêneca, o Pai, desenvolveu à exaustão.
Ao invés de modelar na essência dos processos dc sua época,
a prova a que submete os alunos, o retórico se esmera cm
multiplicar os anacronismos c as improbabilidades. Evita in­
serir os esquemas de suas “controvérsias” no âmbito do di­
reito civil. Ao contrário, para traçá-los serve-se de fatos às
vezes imaginários, geralmente deformados, alambicados e for­
çados, que, a despeito da lógica, coordena a legislações re­
motas e caducas, quando não fabricadas total mente em sua
oficina. Assim, entre os temas relatados por Sêneca, o Pai,

144
encontrei apenas um que, sem alterações sensíveis, se funda­
mentava num testemunho autêntico dos anais latinos: a acu­
sação intentada contra L. Quinctius Flaminius, que, quando
comandava na Gália, no decorrer de um banquete e para sa­
tisfazer o desejo de sua amante, ordenara que diante dela se
cortasse a cabeça de um dos prisioneiros. Todos os outros
temas impudentemente contrariam a verdade. Sabemos, por
exemplo, que durante as proscrições dc 43 a.C. Cícero foi
executado por um certo Popilius Lacnas, cujos interesses de­
fendera como advogado num caso provavelmente civil e de
qualquer modo insignificante, pois nenhum de nossos auto­
res se demorou em precisar sua natureza. O retórico se apo­
dera da coincidência, mas como o traço de ingratidão que
ela revela nao é suficientemente negro a nossos olhos,
expressa-o à vontade e com toda a tranquilidade dita a seus
ouvintes a seguinte matéria: “Acusado de parricídio, Popi­
lius é defendido por Cícero e absolvido. Depois, proscrito
por Antônio, Cícero é assassinado por Popilius. Sustentar
contra Popilius uma acusação de maus costumes”. No caso
a actio dc moribits seria inaplicávcl; ademais, fora forjada pe­
las necessidades da causa47; por fim, ninguém jamais teste­
munhou que Popilius Laenas tenha cometido outro crime
além do assassinato legal de Cícero. O retórico pouco se im­
porta em desfigurar o direito e violentar a história se com
seus erros voluntários consegue reforçar a arenga que pede
aos alunos.
Nesse caso, pelo menos, concordou em situar o tema num
cenário romano. Em geral, prefere tingi-lo de exotismo e des­
locar o auditório. Então recolhe na Grécia dc antanho os
episodios que se encarrega de apimentar. Aqui supõe que uma
lei da Elida prescrevia cortar as mãos dos sacrílegos e inven­
ta a seguinte controvérsia: os habitantes da Elida pediram
a Atenas que lhes cedesse Fídias para elaborar a estátua que
dedicariam a Júpiter Olímpico. Atenas atende ao pedido com
a condição de devolverem o escultor ou pagarem-lhe cem ta­
lentos. Terminado o trabalho, afirmaram que Fídias desvia­
ra em seu proveito uma parte do ouro destinado à estátua
divina, cortaram-lhe as mãos como a um sacrílego e man-
daram-no de volta para Atenas. O advogado de Atenas re­
clama os cem talentos, o de Elida os recusa. Lá o retórico

145
mistura com suas ficçõcs dcscabeladas a biografia dc Iíícra-
tcs e a dc Címon, filho dc Milcíadcs, c para incitar mais pie­
dade c horror revira a cronologia e imagina um inacreditável
requisitório contra Parrásio, que, indevidamente transforma­
do num infame carrasco, teria torturado seu modelo, um ven­
cido de Olinto escravizado, a fim de expressar com maior
intensidade os sofrimentos dc Prometeu num quadro que o
pintor destinava ao Templo de Atena. Acolá, se nao falseia
a história, o professor dc retórica compõe pequenos roman­
ces policiais com excessivas personagens e peripccias mira­
bolantes. Em sua escola só se fala dc tiranias c conspirações,
raptos c reconhecimentos, obscenidades e horrores. Ali se
ouve defender um marido que acusa a mulher de adultério
porque um rico mercador das cercanias a instituira como her­
deira em homenagem à sua virtude; um pai desejoso de de­
serdar o filho que nao se deixa seduzir pela perspectiva de
um casamento vantajoso e pretende manter como mulher
a filha de um bandido que havia esposado, depois de, graças
a ela, salvar a própria vida e reconquistar a liberdade; um
soldado ímpio e valoroso que para lutar melhor saqueia um
túmulo próximo ao campo de batalha e despoja-o das armas
que o ornavam como um troféu; uma donzela raptada e pros­
tituída que, revoltando-se com seu comércio vergonhoso, ma­
ta um soldado que a abordara, foge do lupanar e, em liberdade,
finalmente obtém uma dignidade de sacerdotisa num san­
tuário.
Os professores de retórica orgulhavam-se de seus acha­
dos. Obcecados pela busca do efeito, gabavam-sc de consegui-
lo tanto mais facilmente quanto imaginavam situações me­
nos prováveis e mais confusas e quanto suas personagens mais
fugiam ao comum. Avaliavam um discurso segundo o nú­
mero e a gravidade das dificuldades que haviam superado e
acima de tudo valorizavam a eloqüência que conseguia de­
senvolver o inconcebível — matérias inopinabiles — e por as­
sim dizer tirar alguma coisa do nada, a exemplo de Favorinus
de Aries, que, sob Adriano, um dia suscita o entusiasmo da
platéia com um elogio a Térsites e outro com uma ação de
graças à febre quarta. Em suma, viviam confundindo arte com
artifício e originalidade com ausência do natural; e, pensan­
do bem, parece que não seriam capazes de formar senão ca-

146
botinos ou tagarelas. Naturalmcnte, cm época recente, sur­
giram entre nós críticos dispostos a tomar sua defesa “em
certa medida” com a capciosa argumentação de que sua pe­
dagogia se orientava em outro sentido, diferente da nossa,
e dc que, visando apenas a excitar a faculdade de invenção
dos alunos, tinham o direito de pensar, como diz Aulo Ge­
lo, que quanto mais absurdo era um tema, mais o aluno “ti­
nha mérito em tratá-lo”48. Contudo, essa concepção era em
si um absurdo49 e como tal a consideraram os últimos gran­
des escritores da latinidade.
Sêneca reprova um ensino que não prepara homens pa­
ra a vida, mas apenas alunos para a escola: non vitae sed scho-
lae disdmus*0. Na primeira página de seu romance, Petrônio
ironiza a repetição enfadonha de frases empoladas que en­
che os cursos de sua época51. Tácito constata com tristeza
que “os tiranicídios, os remédios da peste, os incestos das
mães de família debatidos com grandes frases nas escolas na­
da têm a ver com o "fórum", e que tais ênfases constituem
um desafio à verdade”52. Juvenal zomba dos chamados ora­
dores “em cujo coração nada pulsa”, dos ignorantes, “dos
asnos da Arcádia que nos enchem a cabeça com seu terrível
Aníbal e com as arengas que todos os dias fazem pronunciar
sobre ele”, dos infelizes mestres que morrem sufocados “com
o repolho que serviram cem vezes”53. Portanto, não sejamos
mais romanos que os próprios romanos e não tentemos rea­
bilitar um sistema cujo delirante pedantismo foi criticado pe­
los melhores deles.
Por certo, se nos limitamos a citar de passagem algumas
extravagâncias convencionais, ficamos livres para dar de om­
bros. Contudo, se as lemos de enfiada no tratado de Sêneca,
o Pai, logo nos invade uma invencível sensação de enfado
e náusea. E se refletimos que era em processos tão monóto­
nos, em exageros tão previstos e penosos, em dados tão er­
rôneos e malsãos que, em última análise, repousava a educação
superior em Roma, inquietamo-nos com o futuro das letras
latinas que em meados do século II d.C. vão morrendo pelo
abuso da literatura; trememos pela sorte de uma civilização
cuja decrepitude pressagiam as laboriosas excentricidades;
assustamo-nos com a inanição a que estará fadada a elite de
uma juventude que não recebia outro alimento intelectual

147
além das carnes avariadas c ocas que lhe dispensavam os dis­
parates de seus “mandarins”. Por medo de ser tachado de
ignorante, por ambição de surpreender e ofuscar, substituía-se
a reflexão pelas reminiscencias, a voz humana pelos gritos
trazidos de longe c pelos urros preestabelecidos, a sincerida­
de pela afetação, o natural pelas caretas e contorções que nem
sequer tinham o mérito da novidade. Por uma paixão doen­
tia do insólito e do extraordinário, rejeitava-se o bom senso
como uma tara, as experiências da vida como fraquezas e seu
espetáculo quase como uma fealdade. Entretanto, a vida ine­
vitavelmente se vingava nesses renegados, e os romanos co­
meçavam a cansar-se das frivolidades da escola. Os mais
positivos confundiam com a peça a paródia da qual saíam
nauseados e, decididos a duvidar e a rir de tudo, como Lu­
ciano, ou desinteressando-se de todas as formas dc cultura,
como o vulgo, limitavam seu horizonte á satisfação imedia­
ta de suas necessidades e de seus prazeres54. Os mais curio­
sos c os mais nobres, desiludidos, porem não desanimados,
iam buscar nas religiões salvadoras uma resposta para per­
guntas que a realidade misteriosa apresentava às inteligên­
cias, uma satisfação para as aspirações das almas que nem a
ciência abortada nem a literatura exausta dos gramáticos e
dos retóricos conseguiram preencher.

Decadência da religião tradicional

Realmente um grande fato espiritual domina a história


do Império: o surgimento de uma religião pessoal, consecu­
tivo à conquista de Roma pelo misticismo do Oriente. Na-
turalmcnte, o Panteão romano subsiste, imutável na apa­
rência, e as cerimônias que durante séculos aí se desenrola­
vam nas datas prescritas pelos pontífices cm seu calendário
sagrado continuam a realizar-se segundo o costume dos an­
cestrais. Todavia, o espírito dos homens o desertou e, se man­
tém sacerdotes, é verdade que já nao tem fiéis. Com seus
deuses indistintos e os mitos incolores, simples fabulaçõcs
sugeridas pelos detalhes da topografia latina ou pobres de­

148
calques das aventuras vividas pelos olímpicos na epopéia dos
gregos; com suas precc-s formuladas no estilo dos contratos
e secas como um processo; com sua incuriosidade metafísica
e indiferença ao valor moral; com a estreiteza e a banalidade
de seu campo dc ação restrito aos interesses da Cidade e ao
desenvolvimento de uma política55, a religião romana con­
gelava os arroubos da fé com sua frieza estudada e seu pro-
saísmo utilitário. Adequada, quando muito, para tranquilizar
os soldados com relação aos perigos da guerra e os campo­
neses quanto aos danos das intempéries, na Roma heterogê­
nea do século II d.C. ela perdera o domínio sobre os corações.
O povo não deixou dc demonstrar o mais intenso ardor
pelas festas dos deuses alcgrcmcntc subvencionadas pelas fi­
nanças públicas, porém Gaston Boissier peca por excesso de
otimismo quando o atribui à devoção. Entre os festejos a que
comparece a arraia-miúda há os que lhe agradam mais por­
que “são mais alegres, mais ruidosos e parecem pertencer-
lhe mais”56. Seria errôneo iludir-nos sobre os sentimentos
que tais comemorações inspiram no povo; em especial, con­
cluir dc seu gosto pelas bebedeiras e danças, que todo ano
acompanhavam pelas margens do Tibre a festa dc Ana Pere-
na, que houvesse sinceridade em sua adoração por essa velha
deusa latina seria tão imprudente quanto avaliar hoje a ex­
tensão c o vigor do catolicismo em Paris a partir da afluên­
cia dos parisienses ao réveillon. Não faltam indícios da
constância com que a burguesia romana cumpre sob o Im­
pério os deveres para com as divindades reconhecidas pelo
Estado. Por exemplo, um “conservador” como Juvenal, que
declara execrar as superstições estrangeiras, à primeira vista
parece ligado com todas as fibras à religião nacional, e pode­
riamos pensar que a ama profundamente quando lemos o
belo início da sátira XII, onde pinta com delicioso frescor
os preparativos para um dc seus sacrifícios à Tríade Capito­
lina. “Ele me é mais doce, Corvinos, que o aniversário de
meu nascimento, o dia em que o altar de relva espera com
ar de festa os animais prometidos aos deuses. Conduzo à Rai­
nha uma ovelha branca como neve; outra, de pelagem idên­
tica, será oferecida à deusa que nos combates se arma com
a máscara da Górgona líbia. Mais adiante, reservada para Jú­
piter Tarpcio, uma vítima petulante estende e sacode a cor-

149
da e agita uma cara ameaçadora, novilho arisco já maduro
para os templos e para o altar c que o vinho puro deve re­
gar, que agora se envergonha dc sugar as tetas da mãe e com
o corno nascente golpeia o tronco das árvores. Se cu tivesse
uma fortuna tão grande quanto minha devoção, arrastaria
ao sacrifício um touro maior que Híspula, pois quero feste­
jar o regresso de um amigo ainda tremulo com os horríveis
perigos por que passou e surpreso por estar com vida... ”57
Contudo, releiamos com atenção esses versos extraordi­
nários. Não é para os deuses que se ergue seu afetuoso fer­
vor: este se dirige à paisagem campestre onde se preparou
a oferenda, aos animais familiares que Juvenal vai escolher
em seu rebanho para imolá-los c cuja beleza aprecia como
proprietário e como poeta; por fim, e sobretudo, ao amigo
cujo retorno inesperado deseja comemorar e que por anteci­
pação aspirará nessa descrição apetitosa e clara o aroma do
festim ao qual é convidado em sinal de alegria. Quanto às
divindades que ocupam o fundo obscuro do quadro, devem
contentar-se com uma medíocre paráfrase, como Minerva,
ou, como Juno Rainha, com sua qualificação ritual, ou até
com o epíteto puramente geográfico acrescentado a Júpiter,
cujo templo no Capitólio encimava a rocha Tarpéia, como
todos sabem. Juvenal teria dificuldade em avivar suas figu­
ras. Seus traços apresentam-se desbotados aos olhos do poe­
ta; para ele já não passavam dc entidades cuja mitologia
recusava em bloco, pois não é “que em algum lugar haja ma­
nes e um reino subterrâneo, e a vara de Caronte, e rãs ne­
gras no abismo do Estige, e que uma só barca possa bastar
para transportar milhares de mortos; nem as crianças acre­
ditam mais nisso, exceto aquelas que não alcançaram a idade
de pagar seu ingresso nos banhos... ”58
No fundo, aliás, o ceticismo dc Juvenal era generaliza­
do. Ganhara as classes humildes, nas quais os mais bem-
intencionados deploram e, contudo, manifestam a indiferença
da maioria por esses deuses romanos que agora têm “os pés
amarrados” — pedes lanatos. Professavam-no sem se enver­
gonhar grandes damas — stolatae —, que “pouco se importa­
vam com Júpiter”59. Partilhavam-no os mais importantes c
os mais conformistas dentre os contemporâneos de Juvenal.
Se na verdade “praticavam” tanto e mais que ele, grandes

150
senhores como Tácito c Plínio, o Jovem, já não “acredita­
vam”. Pretor no reinado de Domiciano, cônsul e procônsul
sob Trajano, Tácito forçosamente oíiciou nas cerimônias do
politeísmo público, c sua aversão pelos judeus no mínimo
equipara-se à de Juvenal. O que nos assegura quanto a sua
ortodoxia. Mas que nos deixa inquietos por ela. Dos judeus
que abomina, ele não teme louvar indiretamente a crença
num “Deus eterno c supremo, cuja imagem não pode ser
reproduzida c que não há de perecer”. E em Germánia tam­
bém expressa admiração pela tribo bárbara que não admite
aprisionar os deuses nas muralhas nem representá-los sob uma
forma humana com medo de ultrajar-lhes a grandeza, que
prefere dedicar a seu culto as florestas e os bosques de seu
território e para a qual “as misteriosas solidôes em que os
adora sem vc-los parecem identificar-se com a própria divin­
dade”. Nos dois casos tal simpatia inconfcssa, porém real,
revela em Tácito um pagão sem convicção60.
Seu amigo Plínio, o Jovem, não demonstra a menor in­
diferença para com as formas religiosas às quais, em consi­
deração à alta Antiguidade a que remontam e à autoridade
do Estado que as consagrou, submeteu seus hábitos e seus
gestos, porém ao mesmo tempo recusou-se a aderir. Como
prova da religiosidade de Plínio, Gaston Boissier cita a cana
em que o historiador discorre para seu amigo Romano so­
bre o encanto da fonte de Clitúmnia e do velho templo on­
de o Júpiter local profere seus oráculos à sombra dos ci­
prestes61. Na verdade, é uma página agradável, mas brota da
mesma veia que os versos de Juvenal citados pouco antes.
Fresca como eles, também exprime a doce emoção que a con­
templação de uma bela paisagem suscita nos amigos da natu­
reza. Todavia, nao considera as devoções das quais o local
é palco e objeto e termina com uma flecha sorrateiramente
disparada contra os fiéis que acabam de realizá-las: “Lá, Ro­
mano, poderás instruir-te, pois lerás muitas inscrições feitas
por uma multidão em todas as colunas e em todas as paredes
honrando a fonte e o deus. Muitas coisas deixar-te-ão mara­
vilhado. Algumas te farão rir. Ou antes, bem educado como
cs, não rirás dc nada”62. Em outra passagem de sua corres­
pondência, após consultar os arúspices, Plínio se declara dis­
posto a reconstruir uma capela de Ceres situada em sua

151
propriedade, na Toscana. Entretanto, a forma como expòt
o projeto a seu arquiteto indica muito menos veneração!
deusa que solicitude para com os fiéis. Plínio prevê a aquisi­
ção de uma nova Ceres, pois “à estátua atual, de madeira e
muito antiga, falta mais de um pedaço”. Porém, considera
sobretudo a construção de uma colunata nas proximidades
do santuário, pois até agora os visitantes não encontram nos
arredores “nenhum abrigo contra o sol e a chuva”63. Assim,
mais que o favor de Ceres, Plínio, o Jovem, deseja o dc seus
colonos, e o cuidado com que se põe a facilitar-lhes as pere­
grinações não revela mais de suas próprias convicções que
a assiduidade aos ofícios da senhoria de Ferney no caso de
Voltaire.
Aliás, há melhores demonstrações da indiferença básica
de Plínio, o Jovem, pelos cultos cujas obrigações cumpre ex­
teriormente. Vamos reler a carta em que anuncia sua recen­
te cooptação no colégio dos áugures. Sua alegria é inteiramente
temporal. Ele mal alude ao poder sagrado que essa dignida­
de lhe confere — sacerdotitnn plane sacrum — e não insiste
no privilégio incomparável de interpretar os sinais da von­
tade celeste, instruir os magistrados e o imperador em pes­
soa sobre o valor de seus auspícios. Ao contrário, o que lhe
parece invejável nessa missão, cuja carga sobrenatural um de­
voto acolhería cm êxtase e júbilo, é, primeiro, que lhe foi
concedida para a vida toda — insigne est quod non adimitur
viventi — e, depois, que lhe foi confiada por recomendação
de Trajano; e também que a obteve substituindo Frontino;
e enfim, e sobretudo, que o orador por excelência, M. Túlio
Cícero, outrora a recebeu64. A satisfação que o invade nada
tem de religioso. Emana de um cortesão, dc um mundano,
de um letrado, não de um crente. Plínio, o Jovem, exulta
com sua nomeação a áugure mais ou menos da mesma for­
ma que um escritor se felicita hoje por seu ingresso na Aca­
demia Francesa; e, se bem entendemos, os sacerdócios oficiais
dos romanos reduziam-se para seus dignitários a espécies de
“academias”.
Até o ardor que o culto imperial suscitara no início tam­
bém se arrefecera e ele não passava da peça mais nova e mais
bem montada da grande máquina oficial que funcionava gra­
ças à velocidade adquirida e da qual a alma se retirara. A queda

152
dc Nero, com quem sc extinguiu a família de Augusto,
desferira-lhe um golpe irremediável, privando-o do apoio di­
nástico ao qual estava ligado nas monarquias dos diádocos
adivinizaçao dos basilcis. O arrivista que esperara fundar uma
nova dinastia, Vespasiano, simulara no Egito um poder de
taumaturgo, porém em Roma nao tentou levar ninguém a
crer nisso, c conhecemos a brincadeira que, agonizante, teve
a coragem dc fazer sobre sua próxima apoteose: “Sinto que
estou prestes a tornar-me deus”65, disse, rindo. O assassina­
to de seu filho Domiciano, que, esquecido das próprias ori­
gens, exigira que mesmo na Itália o chamassem de “senhor”
e “deus” — dominas et deus —, mostrou até que ponto era
justificado o ceticismo paterno. A religião imperial talvez so­
brevivesse aos crimes do “Nero calvo”, sc ele indefinidamente
manejasse dinheiro bastante para enriquecer seus pretoria-
nos e agradar ao populacho da Cidade. Ela ruiu quando se
percebeu que, se sublevações militares puderam fazer impe­
radores, bastava uma conspiração palaciana para derrubar o
senhor cuja divindade postulava. Sob os primeiros Antoni-
nos, ela não passa de um pretexto para festins, um símbolo
de lealdade, uma cláusula dc estilo constitucional. No dia se­
guinte à sua ascensão, Trajano proclamou divino — divas —
o falecido Nerva, seu pai adotivo, porém teve o cuidado de
situar o fato na escala das vcrossimilhanças humanas. Não
so reservava aos mortos as honras da apoteose, como nelas
via a recompensa suprema do Estado a seus benfeitores; e,
deixando a seu panegirista o cuidado de precisar o espírito
laico cm que procedia a essa formalidade de boa administra­
ção geral, permitiu a Plínio, o Jovem, declarar aos Patres que
a prova mais decisiva da divindade de um césar defunto resi­
dia na excelência de seu sucessor — certíssima divinitatis fi-
des est bonus successor —, e na fórmula das preces públicas
dirigidas aos deuses por sua vida e sua saúde inseriu esta re­
serva: só deviam ser atendidas se ele governasse bem a Repú­
blica e para a utilidade de todos (si bene rem publicam et ex
Militate omnium rexeritj66.
Seria iníquo não reconhecer a generosa inspiração de tal
política. Ao mesmo tempo, contudo, seria ingênuo acredi­
tar que ela ainda se prestava a arroubos e cfusôes. Havia pas-
255
sado o tempo em que o vencedor dc Actium, que pusera fim desígnios da Providencia que despertarão nos corações a emo­
às guerras civis e proporcionara a Roma a paz e o império ção que o culto dc Augusto deixara dc inspirar.
universais, aceitando como homenagem o título dc augusto,
coiocava-se à margem e acima da condição dos homens, alçava-
se naturalmente, no entusiasmo das massas e no canto dos
poetas, ao nível dos deuses; em que a credulidade popular Progresso das místicas orientais
imaginava no céu dc Roma, no rastro de um cometa, a mar­
cha do deus César, seu pai, pelo firmamento; em que do úl­
timo cidadão ao imperador herdeiro todos atribuíam aos Entretanto, a fé não desaparecera dc Roma. Sequer di­
auspícios de seu filho Tibério a força que vivificava os pla­ minuira. Longe disso. Com efeito, à medida que, pela carên­
nos dos generais e ostentava seu sucesso irresistível, mais ou cia de uma educação que nada tinha de racional nem de real,
menos da mesma forma como hoje um almirante japonês as inteligências se depauperaram e se desarmaram, ela am­
atribuirá ao espírito do micado sua vitória em Tsushima. Ago­ pliou seus domínios e sua intensidade aumentou. Mas a fé
ra a pessoa e a história do imperador voltam à terra. Se, por romana mudara de direção e de objeto. Afastara-se do poli-
força do hábito e das exigências do cerimonial, humildes sú­ teísmo oficial e refugiara-se nas “capelas” formadas pelas seitas
ditos ainda invocavam a “divina casa”67 e as “celestes deci­ filosóficas c nas confrarias onde se celebravam os mistérios
sões” de César, a maioria se dava conta dc que não cabia mais dos deuses orientais. Ali, por fim, os fiéis recebiam uma res­
posta para suas curiosidades e estabeleciam uma trégua para
falar propriamente de “casa” imperial; e em sua gratidão os
mais autênticos louvavam em César apenas a “infatigável so­ suas inquietações, ao mesmo tempo que encontravam uma
explicação do mundo, das regras de conduta, a libertação do
licitude para com os interesses da humanidade”68. Os pró­
mal e da morte. Tanto que no século II d.C. assistimos a es­
prios príncipes, soberanos servidores do Estado, tinham
te paradoxo: Roma começou a ter uma vida religiosa no sen­
consciência de chegar ao império como a uma última pro­ tido que hoje entendemos, no momento em que sua religião
moção.
de Estado deixou de viver nas consciências.
Trajano procurava tão pouco cingir seus atos com um Essa transformação, de longa data preparada e dotada de
halo sobrenatural que mais se vangloriou de haver derrota­ infinita importância, é obra da influência helenística à qual
do os germanos antes de sua ascensão porque naquela data Roma vinha cedendo ao longo de dois séculos sem perceber
ninguém ainda podia chamá-lo de filho de um deus: neodnm e pela qual a revelação dos dogmas orientais e o ensino das
dei filius (erat)!69 Basta folhear seu Panegírico: a monarquia filosofias gregas acabaram por interpenetrar-se e fundir-se.
que ele acaba de inaugurar é descrita em cada página como Na época que focalizamos, as filosofias banidas das cátedras
a melhor das repúblicas. Com ela tendia a instaurar-se sob assumem em Roma a figura e os imperativos das religiões
a terminologia dos reinados precedentes um regime novo em para mestres que são verdadeiros mentores espirituais e pa­
que pela primeira vez, conforme as palavras de Tácito, a li­ ra adeptos cujas atividades elas regulamentam e comandam,
berdade se harmonizaria com o principado, mas em que, por desde a barbeação até a escolha das vestes. Ainda que, como
uma compensação fatal, a religião imperial devia acabar de o epicurismo, neguem a vida de além-túmulo e releguem os
perder a transcendência e secularizar-se, pelo menos em Ro­ imortais à inação dos intermúndios, afirmam-se como liber­
ma e junto ao Senado. E nao obstante um retorno ofensivo tadoras da morte e de seus terrores e instituem para os devo­
do despotismo esclarecido, com certeza nao serão nem a fa­ tos festas piedosas cujos “heróis” são seus “fundadores” e
miliaridade zombeteira de Adriano, nem a discrição de An- que incluem os mesmos hinos e os mesmos sacrifícios das
tonino Pio, nem o estóico abandono de Marco Aurélio aos cerimônias dedicadas à divindade70. Mesmo que os predican-

154 155
tes sejam gregos de Atenas ou romanos que falam e cscre
vem em grego, elas não conseguem esconder o fundo dc
especulações orientais cm que mergulha sua dialética. Joseph
Bidez demonstrou tudo o que o estoicismo deve não só aos
semitas que o propagaram, como às crenças do semitismo71*
e é certo que o ncopitagorismo professado na Cidade por
Nigidius Figulus foi profundamente modificado pelo pensa­
mento alexandrino72. Por outro lado, as semelhanças que
Franz Cumont assinalou entre cultos de origens tão diver­
sas como os de Cibele e Atis, de Mitra, dos Baalim e da Dea
Syria, de Isis e Scrápis, sao por demais numerosas e precisas
para não revelar a unidade de uma intervenção comum a to­
dos. Quer venham da Anatólia ou do Irã, da Síria ou do Egi­
to, quer sejam masculinas ou femininas, adoradas conforme
ritos sangrentos ou inofensivos, as divindades “orientais” que
encontramos no Império Romano apresentam traços idên­
ticos, sustentam concepções que se superpõem e parecem in-
tercambiáveis. Sao deuses que, longe de ser impassíveis,
sofrem, morrem e ressuscitam; deuses cujos mitos envolvem
o cosmo e encerram-lhe o segredo; deuses cuja pátria astral
domina todas as pátrias terrestres e que asseguram a seus ini­
ciados, sem distinção de nacionalidade e condição, uma pro­
teção proporcional à pureza de cada um.
Seria inútil tentar colocar na base das analogias que as
aproximam alguma harmonia preestabelccida entre as men-
talidades do Oriente que as criaram. A verdade c que nenhuma
dessas religiões “orientais” aportou em solo italiano antes
de uma longa estada em terra grega ou grccizada e que, im­
portadas pelo helenismo logo após a conquista de Alexan­
dre, só franquearam suas fronteiras quando se livraram da
bagagem mais grosseira e se carregaram de filosofia cosmo­
polita75. Daí o tom uniforme que as reveste, a acomodação
de seus mitos particulares à idéia dc uma divindade univer­
sal mediante um simbolismo cujos signos nao variam. Daí
também sua subordinação a uma astrologia que triunfa tão
claramente no diadema refulgente de Atis cm Óstia como
na maioria de nossas mithraea e no teto do santuário de Bel,
em Palmira, onde a águia de Zeus abre as asas no círculo das
constelações zodiacais. Daí, enfim, e sobretudo, a facilidade
com que os romanos sc converteram aos deuses do Oriente,

156
nào só porque o Oriente era rico e povoado, mas porque
a civilização helcnística da qual Roma estava imbuída tam­
bém elaborara cultos vindos de todas as partes do Oriente,
moldando-os, por assim dizer, a sua imagem e sob a pressão
de suas inclinações espirituais.
No século II d.C., os cultos submergiam a Cidade. Os
da Anatólia haviam sido naturalizados pela reforma da liturgia
de Cibele e Atis, decretada pelo imperador Cláudio. Bani­
dos sob o reinado de Tibério, os cultos egípcios foram pu-
blicamcnte admitidos por Caligula; e, consumido por um
incêndio em 80 d.C., o Templo de Isis foi reconstruído por
Domiciano com um luxo que atestam os obeliscos ainda de
pé, seja no mesmo local, na Minerva, seja nos arredores, diante
do Panteão, c as colossais estátuas do Nilo e do Tibre que
se encontram nos museus do Vaticano e do Louvre. Em mea­
dos do século I, Hadad e seu paredro Atárgatis — a deusa
síria que tinha o privilegio de ser a única divindade a que
Nero, o negador de todas as outras, condescenderia em prestar
homenagem — possuíram um templo descoberto por Paul
Gauckler em 1907, que sc situava na margem direita do Ti­
bre, abaixo do Lucus Furrinae, no monte Janículo. Por fim,
e certo que, na época dos Flávios, santuários de Mitra foram
instalados em Roma e em Cápua74. Os múltiplos colégios
que adoravam esses deuses heterogêneos não só coexistiam
sem conflitos, como se associavam para conquistar adeptos.
Em Óstia parece que os devotos de Átis e os de Mitra se co­
tizaram para adquirir o local onde erigiram, lado a lado, os
edifícios para os respectivos cultos. No templo do Janículo,
os ídolos sírios conviviam pacificamente com as estátuas de
divindades gregas e egípcias75. Entre as diversas religiões, ha­
via menos rivalidades do que afinidades e entendimentos.
Umas e outras eram oficiadas por sacerdotes zelosamente
segregados da multidão dos profanos, cuja doutrina era au­
torizada por uma revelação e cujo prestígio se devia à singu­
laridade das vestes e do estilo de vida. Umas e outras impu­
nham a seus mistas* iniciações prévias e regimes periódi­
cos, mais ou menos ascéticos. Umas e outras, cada qual a

* Iniciados nos pequenos mistérios de Elêusis. (N. da T.)

157
seu modo, traduziam as mesmas especulações astrais e hcno
teístas, difundiam as mesmas mensagens dc esperança.
Aqueles que não eram seduzidos por elas votavam-lhes
um ódio cheio de suspeitas. Assim, por exemplo, Juvenal
que se enfurece ao ver Oronta jogar no Tibre a torrente d*
suas superstições, investe violcntamente contra todas, sem
distinção. Como Tibério se valera de um adultério favoreci­
do pelas intrigas de alguns isíacos para expulsá-los em bloco,
ele fustiga indiferentemente todos os sacerdotes orientais acu­
sados de charlatanice e fraudulência, caldeus, comagenos, frí- I
gios ou isíacos, “vestidos de linho e crânio tonsurado, que
percorrem as ruas sob a máscara de Anúbis, rindo á socapa
da contrição popular”76. Não se cansa de denunciar a explo­
ração desavergonhada a que se entregam, ou vendendo “me­
diante um gordo ganso ou um bolo delicado” a indulgência
dos deuses às crédulas pecadoras, ou prometendo, em nome
de dons proféticos e de faculdades divinatórias, ‘‘a esta um
belo moço por amante, àquela o magnífico testamento de
um ricaço sem filhos”77. Fulmina sua obscenidade, voltan­
do-se ora contra o sinistro cortejo da Mãe dos Deuses, do
qual emerge “um imenso eunuco de rosto venerável, para
esses infames subalternos”78, ora contra “o que acontece nos
mistérios quando a flauta incita os ânimos e sob a dupla in­
fluência da trompa e do vinho as mênades de Priapo, fora
de si, torcem os cabelos e uivam”79. Ri das penitências e ma-
cerações a que os beatos se submetem com sombrio arreba-
tamento: aquela que “ao nascer do dia, em pleno inverno”,
quebra “o gelo do Tibre para ali mergulhar três vezes... ”
e, “nua e trêmula”, arrasta-se a seguir “ao longo do campo
de Tarquínio, o Soberbo, com os joelhos sangrando”; e aquela
que, “por ordem da alva Io”, vai “até os confins do Egito
recolher perto da tórrida Méroe a água que levará para as-
pergir no Templo de Isis”80.
Essa inesgotável severidade não deve nos surpreender.
Com a força de seu gênio, Juvenal traduz a reação natural
desses “velhos romanos”, misoneístas e xenófobos, aos quais
toda exuberância revoltava como uma degradação e que gos­
tariam dc regulamentar os movimentos da fé sob a sábia or­
dem de uma parada cívica ou legionária. Todavia, distantes
no tempo, suas prevenções devem nos parecer terrivelmen-

158
tc injustas. Primeiro, porque ele recrimina apenas nas reli­
giões orientais superstições cuja origem é muito anterior à
intrusão do Oriente na história de Roma e cujo desenvolvi­
mento muitas vezes se efetuou à margem delas. Depois, e
sobretudo, porque, cego dc raiva, ignorou o progresso mo­
ral que, apesar dos excessos c desregramentos, as religiões
orientais realizaram por seu fervor.
Por exemplo, sempre se praticou em Roma a adivinha­
ção, revitalizada incontestavelmente por sua astrologia. Con­
sequência de um politeísmo que desde Homero submeteu
o próprio Júpiter as necessidades do Destino, ela era insepa­
rável dos auspícios e das operações dc extispicina
* realiza­
das em nome da cidade. Tanto que no século II d.C. espíritos
indiferentes, se não hostis, às religiões estrangeiras recorriam
aos adivinhos sem constrangimento nem desconfiança, e os
poderes públicos tinham tão poucas dúvidas que puniam os
nao autorizados. Assim, ao ridicularizar os adeptos dos cal-
deus que tremiam de medo ao enunciado das conjunções de
Saturno, ou a tola enferma que, acamada, acredita poder
“alimentar-se só na hora determinada por Petosíris”81, Ju­
venal tapa os olhos para não ver que em todos os estágios
da sociedade romana os mornos e os ímpios eram consumi­
dos pelas credulidades e pelas fobias que critica nos devotos.
Assim, Trimalcião, o liberto novo-rico, serve o jantar aos
convidados numa baixela que representa o Zodíaco, vangloria-
se de ter nascido * ‘sob o signo de Câncer”, eminentemente
favorável, ao qual deve o fato de “manter-se firme nas duas
patas e possuir bens em terra e mar”, depois ouve, boquia­
berto, histórias de vampiros e lobisomem e, enfim, como aca­
ba de ouvir o canto do galo no meio de comilanças e
bebedeiras noturnas, inquieta-se e estremece com o mau
presságio82. Os exemplos não são menos significativos nos
níveis mais altos da escala social. Não obstante algumas dis­
cretas reservas e certas ironias fugidias, Tácito abstém-se de
negar formalmente a verdade dos “prodígios” que mencio­
na com a mesma precisão de seus antecessores e confessa não
ousar omitir e tratar como fábulas fatos estabelecidos pela

* Adivinhação realizada a partir do exame das entranhas das vitimas imo­


ladas nos sacrifícios. (N. da T)

159
tradição85. A maioria dc seus pares são atormentados pc|â.
mesmas preocupações. Devido a um sonho, Suetônio alarn^ I
sc c imagina-se perdendo o processo cm que está envolvido
Regulus, o odioso adversário de Plínio, o Jovem, no tribu-
nal, utiliza os horóscopos e os aruspícios para confirmar seu
renome c abiscoitar testamentos. Quanto a Plínio, o Jovem,
tende a rejeitar as puerilidades da oníromancia e, citando Ho­
mero, acredita que, cm qualquer circunstância e sejam quais
forem os sonhos, “o melhor dos presságios c aquele que con­
siste em defender a pátria”. Ao mesmo tempo, entretanto,
importuna o vice-imperador, o consular Licínio Sura, que '
a seus talentos dc guerreiro acrescentava a reputação dc ser
fonte de sabedoria, e pede-lhe por escrito seu juízo acerca
das aparições e dos fantasmas cm cuja realidade uma série
dc experiências que descreve detalhadamente o obrigou a
crer84.
A carta sobre esse assunto bastaria para nos alertar con­
tra os ataques apaixonados dc Juvenal. Lendo as tolices que
a compõem, enchemo-nos de indulgência para com um va-
ticínio que os estóicos pelo menos procuravam legitimar me­
diante a imanente ação da Providencia c para com um
ocultismo c uma teurgia que as religiões orientais tinham o
mérito de utilizar para a exaltação das almas.
Seria inútil negar a superioridade das religiões orientais
sobre a inerte teologia que elas repeliram. Ritos como o tau-
robólio da Grande Mãe ou a exposição c o cortejo do pi­
nheiro arrancado que evoca a mutilação de Átis têm algo de
bárbaro e impudico e pode-se dizer que exalam “como que
uma fetidez de matadouro e de antro”85. Não obstante, as
religiões que os praticavam exerceram sobre os indivíduos
uma ação tônica e benfazeja, que por fim os elevava acima
deles mesmos. Para convencer-nos disso, basta que nos re­
portemos à vigorosa análise feita por Franz Cumont86. As
religiões orientais fascinam o fiel com suas festas brilhantes
e as procissões pomposas; enfeitiçam-no com seu canto lan­
goroso e a música inebriante; seja pela tensão nervosa que
as prolongadas macerações e as obsessivas contemplações pro­
vocam, seja pelo erctismo das danças vertiginosas, seja pela
absorção de bebidas fermentadas após uma abstinência, sem-

160
pre tendem a um êxtase cm que “a alma, desvencilhada da
sujeição do corpo c libertada da dor, perde-se no deslumbra­
mento”. Franz Cumont observa com precisão que no mis­
ticismo pode-se passar “do sublime à depravação”. Contudo,
também é verdade que das depravações inerentes aos cultos
naturistas e sob o impulso convergente da especulação grega
eda disciplina romana os misticismos orientais souberam re­
tirar um ideal e elevar-se até as altas regiões do espírito, on­
de o encontro dc um saber total, de uma virtude perfeita e
de uma vitória sobre o mal físico, o pecado e a morte, surge
num brilho glorioso, como o cumprimento das promessas
divinas. Por errônea que fosse a ciência incorporada à “gno-
se” de cada uma delas, excitava e ao mesmo tempo saciava
nos iniciados a sede dc saber. As abluções c lustrações mate­
riais que lhes prescreviam acrescentam uma pacificação in­
terior mediante a renúncia e a ascesc. Por fim, e sobretudo,
ensinando que a liturgia nao teria eficácia sem a devoção, ad­
quiriram o direito de profetizar a futura ascensão de seus mis­
tas á bem-aventurada imortalidade, que nas esferas celestes
possuem seus deuses eternamente renascentes. Logo desen­
cadeiam um movimento de espiritualidade que atrai as cons­
ciências rebeldes.
Por um lado, os melhores da Urbs, inclusive aqueles que
se julgavam os mais distantes da mística oriental, sentiam con-
fusamente que as garantias divinas deviam ser mais mereci­
das que obtidas. Esperando que Juvenal arrefeça seus furores
na serena convicção de que “o homem é mais caro aos deu­
ses que a ele mesmo”87, no começo da segunda metade do
século I Pérsio não duvida de que os deuses — que também
não distingue — exigem dele ‘‘uma alma em que reinem har­
moniosamente o direito profano e o direito sagrado, um es­
pírito purificado até o âmago, um coração cheio de generosa
honestidade”88; c no reinado de Domiciano, Estácio formu­
la implicitamente esse ato dc fé na força exclusiva da reli­
gião pessoal: ‘‘Pobre como sou, de que forma poderia
agradecer aos deuses? Não, eu não o conseguiría, ainda que
a Úmbria me entregasse toda a riqueza de seus vales e as pra­
darias do Clitumno me fornecessem seus touros brancos co­
mo a neve; contudo, os deuses muitas vezes aceitaram minha

161
oferenda, que consistia cm um pouco dc sal c farinha sobre
a relva”89. Intérpretes de seus contemporâneos, os poetas
consideram o favor divino como a recompensa da virtude I
dos homens. I
Por outro lado, na língua do século II a palavra latina
"salus” que tinha outrora apenas uma acepção terra-a-ter- '
ra de saúde física, adquire um significado moral e escato- '
lógico em que estão implícitas a liberação da alma neste mun­
do e sua beatitude na eternidade celeste; e de quando em quan­
do a idéia transcendente da salvação estende-se dos cultos
orientais a todas as formações real mente religiosas da Anti­
guidade romana. Anima aquela que, sob Adriano, constitui-
se cm homenagem a Antínoo, o belo escravo bitínio que no
Egito sacrificara a própria vida para salvar a do impera-
dor73. Reúne à sua volta as confrarias onde, sob Antonino
Pio, encontravam-se, sobretudo em Bovillae, os dendrófo-
* de Cibele c Átis91 c os simples colégios funerários que
ros
no reino de Adriano reuniram numa só família, e sob a du­
pla invocação da Diana dos mortos e do salvador Antínoo,
os plebeus e os escravos de Lanuvium92. Adquiriu tanto
prestígio que estes como aqueles se intitulam com o epitcto
em que se expressa sua grande esperança: collegium salutare.
Os próprios imperadores não podem esquivar-se ao seu cons­
trangimento. Conquanto as moedas e os monumentos do sé­
culo II d.C. os mostrem desejosos de assimilar-se aos olímpicos
— o augusto ao Marte, do qual descendem os fundadores da
Urbs, a augusta à Vênus, mãe comum dos césares c do povo
romano93 — ou dc mergulhar sua recente santidade nas va­
gas sagradas das velhas lendas latinas, eles já não acreditam
que a apoteose, a qual o Senado lhes concede protocolarmente,
baste para assegurar-lhes a salvação sobrenatural, de que sen­
tem necessidade como os outros seres humanos. Depois de
Adriano erigir estátuas, templos e cidades a Antínoo, antes
de Cômodo entrar na congregação dc Mitra94, Antonino
Pio atesta com a linguagem transparente de suas moedas que
a primeira Faustina, a mulher que perdera no início de seu
reinado e cujo templo ainda hoje ergue no foro seu friso sim­
bólico, só podia ter subido ao céu no carro de Cibele, pela

* Portadores dc ramos nas festas religiosas. (N. da T)

162
proteção da Mãe dos Deuses, senhora da salvação: Materdeitm
salutaris95. Então, real mente, graças à colaboração das mís­
ticas orientais e da sabedoria romana, nascem e crescem so­
bre as ruínas do panteão tradicional novas c fecundas crenças.
No seio do paganismo esfacelado, vemos organizar-se, ou me­
lhor, esboçar-se, uma autentica economia da redenção dos
homens pelo duplo efeito dc seus méritos e do socorro divi­
no. Assim, segundo uma coincidência que os agnósticos in­
terpretam cm função do determinismo histórico, mas na qual
a partir dc Bossuet os crentes reconhecem a intervenção da
Providência que adoram, Roma criou o clima favorável pa­
ra o cristianismo na época em que a Igreja dos cristãos era
ali já bastante difundida c sólida para criar seus primeiros
cemitérios coletivos e até nos degraus do trono levantar o
exemplo e as orações dos fiéis na voz de seus apologistas.

Ascensão do cristianismo

Pois, se na verdade nem Estácio, nem Marcial, nem Ju­


venal suspeitaram; se Plínio, o Jovem, que, entretanto, teve
na Bitinia uma altercação com os cristãos de sua província96,
nao faz cm suas Cartas nenhuma alusão à existência do cris­
tianismo; se Tácito e Suctônio não falam dele a não ser por
ouvir dizer, o primeiro com injuriosos qualificativos que ex­
cluem qualquer conhecimento objetivo, o segundo com con­
fusões que revelam sua desinformação e falta de perspi­
cácia97, não obstante é certo que a “cristandade” de Roma
remonta ao reinado de Cláudio (41-54)98 e que no de Nero
está já bastante desenvolvida para que, atribuindo a seus mem­
bros o odioso incêndio da Cidade, em 64, esse imperador
lhe inflija com atrozes requintes de suplícios a primeira das
perseguições que se abateram sobre ela sem a destruir. Evi­
dentemente seu crescimento subterrâneo progrediu com es­
pantosa rapidez; isso não se deve talvez à importância da Urbs
no mundo, mas sim à importância, na Urbs, da colônia ju­
daica, que a benevolência de Júlio César ali aclimatara e que
no início do Império se mostrava ao mesmo tempo tào irre-

163
quieta que cm 19 d.C. Tibcrio teve de reprimi-la, c tão nu­
merosa que na ocasião ele expediu para a Sardenha quatro
mil judeus dc uma só vez. Foi com ela que o cristianismo,
oriundo dc Jerusalém, penetrou em Roma, rompendo-lhe,
aliás, a unidade e colocando uns contra os outros os defen­
sores da antiga lei e os adeptos da nova fé. A religião dos
judeus exercera atração sobre numerosos romanos seduzidos
pela grandeza de seu monoteísmo c pela beleza do Decálo-
go. A dos cristãos, que irradiava as mesmas luzes, mas que
ainda divulgava uma esplêndida mensagem de redenção e fra­
ternidade, não tardou a substituí-la por seu próprio proseli­
tismo. Vistas de fora e a distancia, inicialmente elas se
confundiram, c é possível, por exemplo, que as invectivas
dc Juvenal contra os judeus recaiam cm parte sobre os cris­
tãos, que o poeta ainda não distinguia c que, também obe­
dientes aos mandamentos dc Deus, podiam passar por meros
“adeptos dos costumes judaicos”99 aos olhos de observado­
res superficiais. Porém, depois da destruição do Templo de
Jerusalém, em 70, e sob os primeiros Antoninos, a “Igreja”
forçosamente começou a distinguir-se da Sinagoga, e sua pro­
paganda, que não comportava nenhuma consideração étni­
ca, logo superou a outra.
Naturalmcnte não poderiamos estimar o número de con­
versões que o cristianismo operou em Roma. Contudo, se­
ria errôneo restringi-las às camadas mais humildes. As
epístolas de sao Paulo que saúdam seus irmãos na casa de César
— in domo Caesaris — demonstram que o apóstolo recruta­
ra discípulos na criadagem dos imperadores, entre esses es­
cravos e libertos que, sob uma aparência dc falsa hu­
mildade, alinhavam-sc entre os mais poderosos servidores do
regime100. Alguns anos depois um conjunto de indícios
convida-nos a pensar que a Igreja crista estendia sua influên­
cia às classes dirigentes. Segundo Tácito, Pomponia Graeci-
na, esposa do cônsul Aulus Plautius, o vencedor dos bretôes,
que viveu no reinado dc Nero e morreu sob o governo dos
Flávios, fora suspeita de pertencer “a uma religião crimino-
samente estrangeira” por causa de sua austeridade, tristeza
e trajes de luto. Díon Cássilo e Suetônio relatam que Domi-
ciano sucessivamente perseguiu por crime de ateísmo M’Aci-
lios Glábrio, cônsul em 91, que foi executado, e o casal de

164
seus primos irmãos Flávio Clemente, cônsul cm 95, conde­
nado à pena capital, e Flávia Domitila, exilada na ilha de
Pandataria101. Por fim, Tácito comenta em suas Histórias
que o próprio irmão dc Vespasiano, Flávio Sabino, que era
prefeito da Cidade “quando Nero mctamorfoscou os cris­
tãos cm tochas vivas para iluminar seus jardins, no fim da
vida parecia obcecado com o horror do sangue derrama­
do”102.
Por certo, nenhum desses textos inscreveu formalmente
entre os cristãos as grandes personagens que intrigaram seus
autores. Contudo, c lídimo perguntar-se, como faz Emile Ma­
le, sc Flávio Sabino, cm sua obsessão, em sua moderação, não
foi conduzido à nova religião pela coragem dos primeiros
mártires romanos103; é mais provável ainda que devamos su­
bentender o cristianismo tanto na religião estrangeira recri­
minada a Pomponia Graecina como ilícita quanto na acusação
dc ateísmo levantada contra crentes cuja fé ostensivamente
os impedia de prestar culto aos falsos deuses do politeísmo
oficial. No caso de Flávio Clemente e de Flávia Domitila,
cm especial, essa probabilidade é ampliada pelo fato de que
a sobrinha do casal, chamada Flávia Domitila como a tia,
segundo o testemunho de Eusébio, foi banida para a ilha de
Pontia por crime de cristianismo104. Aliás, seja como for, e
supondo que, como certos críticos radicais, se queira remontar
ao segundo terço do século II a catacumba de Priscila onde
sobreviveu a lembrança da família de Acílio Glábrio, a crip­
ta de Lucina onde foi descoberta uma inscrição grega poste­
rior em nome de certo Pomponius Graecinus, e a tumba de
Domitila, cujo nome irresistivelmente evoca a lembrança das
vitimas de Domiciano, é impossível afastar a hipótese que
a convergência dos paralelos observada por De Rossi105 cria
cm favor de conversões retumbantes ocorridas no final do
século I; e é certo e incontestável que o círculo de vários gran­
des desse mundo, com seu encorajamento e desde o reinado
de Adriano (117-138), atendeu ao chamado de Cristo e foi
engrossar as fileiras de sua “igreja” romana.
Esta não passava na Cidade de uma frágil minoria; tal
minoria vivia exposta às prevenções da massa e à hostilidade
do poder, não só porque os fiéis de Jesus se abstinham das
práticas tradicionais, mas também porque, fascinados com

165
a visao da pátria celestial e esquecidos da cidade natal, nunca
respondiam a pergunta que lhes era formulada sobre sua ori­
gem, a nao ser por seu nome de cristãos, c assim passavam
por desertores e inimigos públicos106. Mas os castigos pro­
vocados pela sua intransigência, aos quais sucumbiu o papa
Telésforo no reinado de Adriano, eram ao mesmo tempo
demasiado incoerentes para exterminá-los e suportados fir­
memente para nao suscitar a admiração dos adversários. E
mais que suas Apologias, inauguradas no reinado de Adriano
por Quadratus, tanto quanto o heroísmo de seus mártires,
a força do Credo e a doçura evangélica que envolvia sua vi­
da nao deixaram de ampliar seus progressos. Pois, enfim, mes­
mo aqueles que encontram analogias entre o cristianismo e
os mistérios pagãos concordam que ele só se moldou a tais
mistérios superando-os107. E quanto! Ao politeísmo dos deu­
ses greco-romanos, ainda que reduzidos ao estado de símbo­
los, ao henoteísmo difuso das religiões orientais, opunha sua
doutrina do deus único, soberano e paternal. Às idolatrias,
ainda que atenuadas pela metafísica do éter divino e dos pla­
netas eternos, opunha um culto segundo o espírito, livre das
aberrações astrológicas, dos sacrifícios sangrentos e das tur­
vas iniciações, que substituía por um batismo de água pura,
orações, um banquete celebrado em comum. Assim como
os mistérios pagãos, em nome de seus livros sagrados respon­
dia a qualquer questão sobre a origem das coisas e o destino
do homem; porém, o redentor, cuja "boa nova” revelava,
em lugar de perder-se, inalcançável e ambíguo, no labirinto
das mitologias, surgia na realidade miraculosa da vida terre­
na dc Jesus, filho de Deus. Como eles, garantia a salvação
após a mone; porém, em lugar de mergulhá-lo no abismo
silencioso da eternidade sideral, vivificava-o através da res­
surreição individual, prefigurada pela de Cristo. Como eles,
enfim, ditava uma regra a seus crentes; porém, sem excluir
a contemplação, o ascetismo, o êxtase, não abusava deles e
condensava sua moral na caridade e no amor ao próximo
exigidos pelos Evangelhos.
Nisso consistia o atrativo mais fone da nova religião. Os
cristãos eram todos irmãos e assim se chamavam. Suas reu­
niões muitas vezes tomavam o nome de ágape, que em gre­
go significa "amor”. Ajudavam-se mutuamente "sem estar-

166
dalhaço nem arrogância”. De comunidade em comunidade
havia uma incessante circulação “de conselhos, de ensinamen­
tos, dc auxílios materiais”, e “tudo isso”, como escreve Du­
chesne, “era muito mais vivo que as confrarias pagas”. E sobre
os cristãos, quantos deviam dizer então: “Como sua religião
é simples e pura! Que confiança têm cm seu deus e nas pro­
messas dele! Como se amam mutuamente e como são felizes
entre si!”108
Certamente, no século II d.C. a alegria evangélica inun­
dava apenas pequenos grupos isolados da massa da enorme
cidade; contudo, era já contagiosa e começara a modificar
milhares dc existências sem que a maioria percebesse. E um
aspecto que devemos ter em mente se queremos compreen­
der a vida em Roma nessa época. A Igreja é ainda pouco vi­
sível. Porém, está presente; atua; e, se suas boas ações não
se realizam à luz do dia, nao devemos ignorar as virtualida-
des salutares de que estava carregada. Em sigilo, elabora os
remédios para os piores males que minavam a civilização na
Cidade. Em nome de um ideal novo, restaura antigas virtu­
des abaladas ou perdidas: a dignidade e a coragem dos indi­
víduos, a coesão das famílias, o senso das verdades morais
na conduta dos adultos e na educação das crianças; ademais,
impregna as relações entre os homens de uma humanidade
que as duras sociedades antigas ainda nao haviam conheci­
do. Nessa Roma cuja grandiosidade aparente doravante mal
esconde a desagregação interna que a longo prazo arruinará
seu poderio e dilapidará suas riquezas, o que primeiro im­
pressiona na época dos Antoninos é o burburinho das mul­
tidões aos pés da majestade imperial, a febre de dinheiro, a
ostentação do luxo que oculta as misérias, a prodigalidade
dos espetáculos onde se acomoda a preguiça e se atiçam os
maus instintos, a inanidade dos divertimentos intelectuais,
onde uns se tornam anêmicos e outros embrutecidos pelo
frenesi de prazeres carnais. Contudo, não é preciso que esse
brilho enganoso, nem as sombras sinistras escondam a pe­
quena luz que, por frágil e trêmula que seja, ergue-se entre
as almas de elite como a aurora nascente de um outro mundo.

167
SEGUNDA PARTE

O EMPREGO DO TEMPO
CAPÍTULO I

AS DIVISÕES DO DIA,
O DESPERTAR E A TOALETE

Na Roma dos primeiros Antoninos, enorme, cosmopo­


lita, heterogênea, onde os contrastes são ao mesmo tempo
tão numerosos e tão violentos, pode-se, contudo, reconsti­
tuir com bastante clareza o dia comum do “romano médio”.
Naturalmente, numa reconstituição desse tipo sempre se in­
clui uma boa dose de ilusão e de arbitrariedade. No entanto,
abstraindo-se variedades profissionais e singularidades que a
opulência dos multimilionários e a miséria dos indigentes cria­
vam no topo e na base da hierarquia social, havia em geral
um mínimo de cuidados, ocupações e lazeres que, com algu­
mas diferenças, encontram-sé na existência cotidiana da maio­
ria dos habitantes da Urbs, e é tanto mais fácil acompanhar
sua evolução e assinalar seus principais momentos quanto
cm seu conformismo geral não a marcava, ao contrário da
nossa, a rigidez de um horário inflexível.

Os dias e as horas do calendário romano

Certamente desde a reforma juliana de 46 a.C. o calen­


dário dos romanos, como o nosso que dele deriva, reportava-
se ao período da translação da Terra ao redor do Sol. Os do­
ze meses de nosso ano mantêm a ordem, duração, os nomes
atribuídos pelo gênio de César e a prudência de Augusto;
no início do Império, cada mês, inclusive fevereiro nos anos
comuns e nos bissextos, continha o mesmo número de dias
a que estamos habituados; além disso, a fé astrológica, difun­
dida através das religiões e dos sistemas, introduzira, ao lado

171
da velha divisão das calendas (1? dc cada mês), nonas (os dias
5 ou 7 de cada mês) c idos (os dias 13 ou 15 de cada mês)1,
o uso das semanas de sete dias subordinados aos sete plane­
tas, cujos movimentos regeríam o universo; esse uso ancorava-
se tão profundamente na consciência popular que no come­
ço do século III d.C. Díon Cássio o considerará especifica­
mente romano2, e com apenas uma modificação — a subs-
tituição do dia do Sol (dies Solis, Sonntag, Sunday) pelo dia
do Senhor (dies Dominica, domingo) —, na maioria dos paí­
ses de língua românica sobreviveu integralmente à decadên­
cia dos astrólogos e ao triunfo do cristianismo. Por fim, cada
um dos sete dias da semana dividia-se em vinte e quatro ho­
ras, cujo início não se situava no amanhecer, como entre os
babilônios, nem no crepúsculo, como entre os gregos, e sim
no meio da noite, à meia-noite3, como acontece entre nós.
Porém, as analogias entre o tempo da Antiguidade romana
e o de nossa cpoca terminam aí; as “horas” latinas, introdu­
zidas tardiamente no dia romano, apesar de ter o mesmo no­
me e somar o mesmo total que as nossas, representam uma
realidade muito diferente.
A palavra e a coisa foram uma invenção dos gregos, liga­
da á mensuração das etapas do movimento aparente do Sol
no ccu que aprenderam a efetuar em fins do século V a.C.
O quadrante solar dc Meton, que permitiu aos atenienses rea­
lizar o mesmo tipo de cálculo, consistia em uma calota de
pedra —polos (tóXos) — no centro da qual se erguia a ponta
metálica de um estilo ou “gnômon” (7pÓ/zo?p). Quando o
Sol surgia no horizonte, a sombra do estilo entrava na con­
cavidade do hemisfério voltada para o zênite e, numa situa­
ção inversa, traçava o paralelo diurno do Sol. Quatro vezes
por ano, nos equinócios e nos solstícios, um traço feito na
pedra materializava os deslocamentos de sombra assim efe­
tuados e, como a curva determinada no equinócio de outo­
no coincidia com a do equinócio de primavera, obtinham-se
três linhas concêntricas, cada qual dividida a seguir em doze
partes iguais. Cabia então unir os pontos correspondentes
das três paralelas por meio de doze linhas que se afastavam
progressivamente para obter as doze horas — horae (óçat) —,
que assinalavam num ano o curso do Sol, cuja sucessão opo-
los registrava com fidelidade, donde seu nome “conta-horas”,

172
ou ópoXóvíOP, palavra que no vocábulo latino "horolo&urn”,
“relógio”, conserva o significado e a forma da denominação
grega4. A exemplo de Atenas, as outras cidades hclênicas se
empenharam para ter seus “relógios”; c os astrônomos
mostravam-se capazes dc aplicar o mesmo princípio à posi­
ção dc cada uma delas. Com efeito, o percurso aparente do
Sol variava segundo a latitude dos locais, e o comprimento
da sombra projetada pelo gnômon sobre o polos consequen­
temente diferia dc uma cidade para outra. Assim, cm Ale­
xandria, correspondia a apenas três quintos da altura do estilo;
em Atenas, a três quartos; em Tarento, aproximava-se dos
nove onze avos; em Roma, chegava a oito nove avos. Para
cada cidade era preciso construir um quadrante solar. Os ro­
manos foram os últimos a perceber esse fato; e como senti­
ram a necessidade de contar as horas do dia dois séculos após
os atenienses, só aprenderam essa arte cem anos depois de
começar5.
No final do século IV a.C. limitavam-se a dividir o dia
em duas partes: antes e depois do meio-dia. Naturalmente
a grande questão consistia cm precisar o momento da passa­
gem do Sol pelo meridiano. Cabia a um arauto dos cônsules
vigiar esse momento c anunciá-lo de imediato ao povo que
vagava pelo Foro c aos advogados que deviam comparecer
ao tribunal antes do meio-dia, para assegurar a validade das
instâncias. Como competia ao arauto cumprir a tarefa quando
o astro se intercalava “entre os rostros e a graecostasis ”, não
há dúvida de que suas funções eram relativamente recentes,
pois nao se poderia falar de rostros antes que os rostra, ou
esporôes, dos navios capturados aos antiatos por C. Duílio
em 338 a.C. fossem fixados na tribuna das arengas; como um
troféu da vitória naval; tampouco se poderia falar de grae­
costasis, destinada à recepção das embaixadas gregas, antes de
realizar-se a primeira delas, ao que parece enviada ao Sena­
do por Demétrio Poliorceta em cerca de 306 a.C.6 Na épo­
ca da Guerra de Pirro, houvera um ligeiro progresso com
a subdivisão de cada metade do dia em duas seções: por um
lado, a manhã e o período anterior ao meio-dia (mane e jnre
meridiem); por outro, a tarde e a noitinha (de meridie e sw-
prema/• Mas foi n° começo da Primeira Guerra Púnica, em

173
263 a.C., que o horologium dos gregos e as horas dos gregos,
uni trazendo as outras, penetraram na Cidade8. Um do$
cônsules desse ano, M. Valerius Mcssala, levara, com seu by.
tim da Sicilia, o quadrante solar de Catânia e mandara install.
Io no comitium, onde por mais de três gerações as linhas tra­
çadas no polos para outra latitude forneceram aos romanos
horas que não correspondiam à realidade. Malgrado a afir­
mação de Plínio, o Velho, segundo o qual tais horas teriam
sido cegamente aceitas ao longo de noventa e nove anos’,
podemos acreditar que durante esse período os romanos se
obstinaram menos no erro que na ignorância. Acabaram por
desinteressar-se do quadrante solar dc Mcssala e, como que
o ignorando, continuaram a guiar-se pelo trajeto aparente
do Sol nos monumentos das praças públicas.
Em 164 a.C., três anos depois de Pidna, a generosidade
inteligente do censor Márcio Filipo Quinto pela primeira vez
os dotou de um “relógio” criado cxprcssamcntc para eles
e por isso mesmo quase exato; segundo o Naturalista, pare­
ce que receberam o presente como um invejável benefício1-.
Durante os trinta anos em que suas legiões combateram em
território grego — primeiro, contra Filipe V, depois contra
os etólios e Antíoco, da Síria, por fim contra Perseu —,
familiarizaram-se com as aquisições dos inimigos c às vezes,
sem dúvida para seu detrimento, usufruíam as vantagens de
um horário menos incerto do que aquele com o qual se con­
tentaram até então. Ficaram felizes por vê-los transportados
e fixados em sua pátria; e para merecer a mesma gratidão
recebida pelo censor Márcio Filipo Quinto, em 159 a.C. seus
sucessores, P. Cornélio Scipio Nasica e Caio Popílio Lenas,
completaram sua iniciativa instalando junto ao quadrante so­
lar um relógio de água destinado a complementar os servi­
ços durante os dias nublados e à noite11.
Fazia mais de cem anos que os alexandrinos utilizavam
o vôqlov wQoaxTToeíav, que, para evitar as falhas do horolo­
gium propriamente dito, Ctesíbio derivara da antiga clepsi-
dra e que em latim se tornou o horologium ex aqua. 0
mecanismo do relógio de água não podia ser mais simples.
Imaginemos primeiro a clepsidra, ou seja, um vaso transpa­
rente em que a água chega regularmente com um fluxo sem­
pre idêntico a si mesmo, e coloquemo-la ao lado de um

174
quadrante solar. No momento em que o gnômon projeta sua
sombra numa curva do “polos”, marca-se o nível do líquido
na depsidra com um traço na parede externa do recipiente.
Quando a sombra chega à curva seguinte do “polos”, faz-se
uma segunda marca, c assim por diante, ate assinalar os do­
ze níveis correspondentes às doze horas do dia escolhido pa­
ra a experiência. Para ampliar a abrangência do relógio, basta
tomar uma clepsidra de forma cilíndrica e traçar sobre ela,
de janeiro a dezembro, doze verticais correspondentes aos
doze meses do ano; a seguir, anotar em cada uma delas os
doze níveis horários observados para um mesmo dia de cada
mês, e por fim unir com uma curva os signos horários regis­
trados nas verticais correspondentes nos meses, para que o
nível da água assinalado sobre o do mês em curso mostre
a hora do dia que no mesmo instante a agulha teria projeta­
do sobre a calota do quadrante, sem levar em conta a inten­
sidade dos raios solares.
Assim, criado graças ao relógio solar, o relógio de água
o substituía, e por uma simples transposição na leitura das
verticais mensais permitia estender à noite as divisões horá­
rias do dia. Seu emprego generalizou-se rapidamente em Ro­
ma. Ora o princípio do quadrante solar era aplicado segundo
proporções grandiosas — por exemplo, no Campo de Mar­
te, onde no ano 10 a.C. Augusto erigiu o obelisco de Mon-
tecitorio como o gnômon gigantesco, cuja sombra marcana
as horas diurnas sobre as linhas de bronze inscritas no piso
de mármore circundante12 —, ora era transposto sobre dis­
positivos cada vez menores, para se chegar a minúsculos so­
laria, a quadrantes em miniatura, que realizavam as mesmas
funções de nossos relógios. Em Forbach e Aquiléia, foram
encontrados exemplares que não mediam mais de três centí­
metros de diâmetro. Ao mesmo tempo, contudo, os edifí­
cios públicos da Urbs, até as casas dos cidadãos ricos,
guarneciam-se de relógios de água cada vez mais aperfeiçoa­
dos. Na época de Augusto, clepsydrarii e organarii rivaliza­
vam em habilidade na fabricação e no arranjo de acessórios.
Assim como nossos relógios batem as horas, os horologia ex
aqua descritos por Vitrúvio eram equipados de bóias auto­
máticas que a cada passagem de hora lançavam no ar seixos
ou ovos ou ainda emitiam silvos’3.

175
Na segunda metade do século 1 e no século II d.C essa
voga cresceu. Como o piano hoje em dia, na época de Traja-
no os relógios de agua constituíam prova concreta dc abas-
tança e distinção. No romance de Petrônio, que nos apresenta
Trimalciao como um homem “riquíssimo” — latttissimwho­
mo —, as demais personagens justificam facilmente a admi­
ração que ele lhes inspira: não tem ele “um relógio em sua
sala de refeições e um trompista expressamente contratado
para que, ao ouvi-lo, saibamos de imediato que porção da
vida perdemos?” Aliás, Trimalcião era tão apaixonado pelo
relógio que gostaria de levá-lo para o outro mundo, e no tes­
tamento prescreveu aos herdeiros que lhe erigissem uma tum­
ba suntuosa com trinta metros de fachada, o dobro dessa
medida de profundidade, “e um relógio no centro, a fim de
que ninguém pudesse ver a hora sem que fosse obrigado a
ler seu nome”14. Esse singular apelo à posteridade justifica-
se pelo fato de os contemporâneos de Trimalcião terem se
habituado a consultar o relógio com frequência: evidente­
mente a divisão das horas se incorporara a seus costumes.
Todavia, os romanos não viviam de olhos fitos nos gnomons
dos quadrantes ou nas bóias das clepsidras, como vivemos
hoje, atentos aos ponteiros do relógio. Eles nao eram escra­
vos das horas como nós, pois faltavam a estas constância e
precisão.
Primeiro, é certo que a correspondência entre o gnômon
e o relógio de água estava muito longe da exatidão. A fideli­
dade do gnômon dependia da sua adaptação à latitude do lo­
cal. E quanto ao relógio de água, cujas mensurações con­
fundiam entre si todos os dias do mês, ainda que o Sol nao
os iluminasse por igual, apresentava flutuações que falseavam
a regulagem operada segundo o gnômon. Assim, se alguém
perguntava a hora, podia ouvir variadas respostas ao mes­
mo tempo, pois, como constata Sêneca, em Roma era im­
possível saber a hora exata; e era mais fácil conciliar entre
si os filósofos que os relógios: facilius inter philosophos quam
inter horologia convenit1’. A hora romana sempre foi apro-
ximativa.
Era uma hora permanentemente móvel e contraditória.
Na origem, as horas foram calculadas para o dia propriamente
dito; e mesmo quando o relógio de água possibilitou o cál-

176
culo das horas noturnas por uma simples transposição dos
dados que o quadrante solar lhe fornecera para a medida do
dia, não conseguiu unificá-las. Os horologia ex aqua deviam,
por definição, ser abastecidos, ou seja, esvaziados separada­
mente para o dia e para a noite. Daí uma primeira defasa-
gem entre o dia civil, cujas vinte c quatro horas sc sucediam
de meia-noite a meia-noite, e as vinte e quatro horas do dia
natural, que oficialmente se decompunham em dois grupos
de doze horas, as doze horas do dia c as doze horas da
noite16.
Isso não é tudo. Enquanto nossas horas compreendem
uniformemente sessenta minutos de sessenta segundos e se
definem com exatidão através do fugidio instante do minu­
to em que soam, a ausência de divisão no interior das horas
romanas fazia com que cada uma delas se estendesse por to­
do o intervalo compreendido entre a precedente e a seguin­
te; e, ao invés de ser imutável, esse intervalo era conti-
nuamente extensível de uma à outra extremidade do ano e
adquiria para o mesmo dia dimensões opostas entre o dia pro­
priamente dito e a noite. Uma vez que as doze horas do dia
haviam sido necessariamente repartidas pelo gnômon entre
o amanhecer e o crepúsculo, as horas da noite deviam estar
contidas entre o crepúsculo e o amanhecer; e umas e outras
aumentavam e diminuíam no mesmo ritmo e em sentido con­
trário segundo as estações. As horas diurnas e as horas no­
turnas só eram idênticas entre si e às nossas duas vezes por
ano, nos equinócios. Antes e depois do equinócio opunham-se
umas às outras até os solstícios, quando a disparidade atin­
gia o grau máximo. No solstício de inverno (25 de dezem­
bro), para um dia de 8 horas e 54 minutos de luz contra 15
horas e 6 minutos de escuridão a hora diurna diminuía para
44 minutos 4/9; em compensação, a hora noturna aumenta­
va para 1 hora e 15 minutos 5/9. No solstício de verão a si­
tuação se invertia: a hora noturna se contraía enquanto a
diurna se dilatava na mesma proporção.
Assim, no solstício de inverno as horas diurnas sucediam-
se na seguinte ordem:
I — Hora prima: das 7h33min às 8hl7min
II — //ora secunda: das 8hl7min às 9h2min
UI — Hora tertia: das 9h2min às 9h46min

177
IV — Hora quarta’, das 9h46min às 10h31min
V — Hora quinta’, das 10li31min às llhl5min
VI —Hora sexta: das llhlõmin ao meio-dia
VII — Hora septima: do meio-dia às 12h44min
VIII — Hora octava: das 12h44min à lh29min
IX — Hora nona: da lh29min às 2hl3min
K — Hora décima: das 2hl3min às 2h58min
XI —Hora undecima: das 2h58min às 3h42min
XII —Hora duodécima: das 3h42min às 4h27min

Em contrapartida, no solstício de verão as horas diur­


nas se dispunham assim:
I — Hora prima: das 4h27min às 5h42min
II — Hora secunda: das 5h42min às 6h58min
III — Hora tertia: das 6h58min às 8hl3min
IV —Hora quarta: das 8hl3min às 9h29min
V — Hora quinta: das 9h29min às 10h44min
VI — Hora sexta: das 10h44min ao meio-dia
VII —Hora septima: do meio-dia à lhl5min
VIII —Hora octava: da lhl5min às 2h31min
IX — Hora nona: das 2h31min às 3h46min
X — Hora décima: das 3h46min às 5h2min
XI —Hora undecima: das 5h2min às 6hl7min
XII — Hora duodécima: das 6hl7min às 7h33min

Quanto às horas noturnas, reproduziam, por rigorosa


antítese, a disposição das horas diurnas, com sua extensão
dc verão no solstício de inverno e, reciprocamente, com sua
extensão de inverno no solstício de verão.
Daí, consequências que repercutiam profundamente na
vida romana. Por um lado, como os meios de medir as ho­
ras inconstantes permaneceram empíricos e insuficientes du­
rante toda a Antiguidade, ela nunca foi regulada com a
precisão matemática que o quadro aqui traçado, segundo nos­
sos métodos, poderia sugerir e que hoje se impõe a nosso
uso do tempo. Assim, malgrado a agitação urbana, ela não
deixou de ter uma flexibilidade e uma elasticidade desconhe­
cidas em nossas capitais contemporâneas. Por outro, como
o período em que se desenrolava havia se moldado indefini­
damente na diversidade das estações, passava por fases de ati-

178
vidadc variável conforme as dimensões das horas diurnas, sen­
do mais fraca nos meses sombrios c mais fone ao retornar
o tempo luminoso; e, não obstante apresentar o fervilhar da
grande cidade, a vida romana sempre foi camponesa na es­
sência e no aspecto.

0 despertar

Para começar, a Roma imperial acordava tão cedo co­


mo um vilarejo: à aurora, quando não antes. Reportemo-nos
a um epigrama de Marcial já utilizado neste livro, onde o
poeta enumera as causas de insônia que atormentava os infe­
lizes romanos. Já ao raiar do sol padecem com os ruídos en­
surdecedores que enchem as ruas e as praças, aos quais se
misturam as marteladas dos caldeireiros e a algazarra dos es­
tudantes nas escolas17. A fim de proteger-se do barulho, os
ricos se enfurnam em suas casas isoladas pela parede espessa
e pelos bosques e jardins que as rodeiam. Mas são perturba­
dos pelas equipes de escravos que cuidam da casa. O dia co­
meça tão logo, ao toque do sino, uma multidão de servidores
cai sobre os apartamentos, ainda sonolentos, armados com
um arsenal de baldes, panos (mappae), escadas para alcançar
o teto, varas (perticae) com as extremidades equipadas com
esponjas (spongia), espanadores e vassouras (scopae), os pri­
meiros feitos de palmas verdes, as últimas de ramos entrela­
çados de tamarindo, urze ou mirto campestre. Espalham
serragem no chão e a retiram juntamente com a sujeira; de
esponja cm punho, lançam-se à pilastras e às cornijas; lim­
pam, esfregam, escovam. Muitas vezes o dono da casa espe­
ra uma visita ilustre e se levanta cedo para estimulá-los, e,
imperiosa ou áspera, sua voz perpassa o burburinho: “Var­
re o chão”; “Tu, lustra as colunas”; “Arranca com o pano
essa teia de aranha”; “Limpa a prata e os vasos cinzela-
dos”18. Mesmo que disponha de um intendente para vigiar
as tarefas, o amo é despertado pelo vozerio dos criados, a
não ser que, como Plínio, o Jovem, em sua villa de Lauren-
tia, tenha tomado o cuidado de interpor o silêncio de um

179
corredor de separação entre seu quarto c os aposentos, onde
ressoa diariamente a agitação matinal19.
Aliás, em geral os romanos acordam cedo. Na cidade an.
tiga a iluminação artificial era tão deplorável que tanto oj
ricos como os pobres tratavam de aproveitar ao máximo a
luz do dia. Todos adotavam a máxima de Plínio, o Velho:
viver é velar — profecto enim vita vigilia cst20. Em geral só
ficavam na cama os jovens farristas de que fala Aulo Gélio
ou os bêbedos obrigados a curar a carraspana da véspera21.
Mesmo assim levantavam-se bem antes do meio-dia, poisa
“quinta hora”, à qual, segundo Pérsio, decidiam sair, costu­
mava terminar antes das onze da manha22, e dormir até tar­
de, como Horácio em Mandela23 e Marcial em sua distante
Bilbilis24, não ia além da “terceira hora”, que no verão ex­
pirava por volta das oito horas.
O hábito de acordar à aurora estava tão arraigado que
sc alguém ainda permanecia deitado já estava desperto e re­
tomava o fio de suas ocupações à luz frágil e vacilante da
mecha dc estopa e cera chamada lucubrum, da qual derivam
as palavras “líicabratio” e "Itictibrare” — “lucubraçao” c “lu-
cubrar”25. De Cícero a Horácio, dos dois Plínios a Marco
Aurelio, os romanos destacados “lucubraram” todos os in­
vernos, cada um mais que o outro26; e em todas as estações,
depois dc passar o fim da noite cm “lucubrações”27, antes
do alvorecer o Naturalista ia ao palácio do imperador Ves-
pasiano, que já o esperava para receber os relatórios c exa­
minar a correspondência28.
Entre pular da cama e sair de casa nao havia intervalo.
Levantar-se era uma operação simples, rápida, instantânea.
Aliás, c preciso admitir que, com as dimensões habitualmente
reduzidas, as janelas inteiriças que, fechadas, mergulhavam
o aposento na escuridão e, abertas, o expunham à chuva, ao
sol, às correntes de ar, o quarto de dormir (cubicultim) nada
tinha dc cativante para reter os hóspedes. Raramente ador­
nado com as obras-primas da arte com que Tibério decorara
seu dormitório, o que quase provocou um escândalo29, em
geral o quarto tem como único mobiliário a cama (ciibilc)
que usualmente é equipada com um baú para guardar rou­
pas e denários (arca); a cadeira em que Plínio, o Jovem, acomo-

180
14
Acima: detalhe de um
sarcófago dc meados do
século II. A poltrona alta,
na qual a dama amamenta
o bebe, e o livro na mão do
homem são sinais da
elevada condição social do
% casal.
A direita: outro detalhe de
sarcófago, no qual um
menino declama seu dever
de retórica diante do pai.
Também aqui o livro, em
sua mão esquerda, é sinal
de dignidade social.
No alto, à esquerda:
elegante cena de toalete
para uma ocasião especial,
na qual moça de quinze
anos torna-se adulta
Acima: detalhes de três
sarcófagos de crianças, nos
quais elas aparecem
brincando e jogando
A esquerda: relevo
funerário do século II, no
qual meninos aparecem
jogando malha
O Coliseu de Roma, inaugurado cm 80 d.C., podia receber até
87 000 espectadores

Luta dc gladiadores
Corrida dc bigas

Guardas prctoruvios
Objetos de prata encontrados cm Pompéia

Peças dc mobiliário, objetos e moedas

As refeições podiam str, momentos privilegiados dc convívio social


Acima: oficina familiar onde se fabricam
vasos de metal (século I ou II)
A esquerda: detalhe do sareófago de
Comélio Atimeto, no qual dois artesões
forjam facas
Embaixo: detalhe de um calendário, cerca
de 25 d.C. A semana não existia: os duts
dc descanso eram os das festas religiosas e
distribuíam-se ao longo de todo o ano,
sem período de férias.

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-Th/ARMbFR-
Pintura mural preservada na cidade de Hercidano, coberta pelas lavas
do Vesdvio, jnntamente com Pompéia, cm 79 a.C.
d.i secretários c visitantes, e Marcial deposita seu manto; por
fim, o vaso noturno (lasannmf:, ou o urino! (scaphitimf1,
confeccionados em diversos modelos, com materiais que vão
desde a argila (matella fictilisf2 até a prata incrustada de pe­
dras preciosas33. Quanto ao leito, por mais suntuoso que se­
ja, nao proporciona o conforto que se esperaria dc tamanha
riqueza34. Sobre tiras entrelaçadas colocam-se um colchão
(torus) e uma almofada (culcita, cervical), cujo recheio (tomen­
tum) consistia em feno ou palha entre os pobres e entre os
ricos na lã tosquiada nos rebanhos dos leucos, no vale do
Mosa, ou ainda em penas dc cisne35. Mas faltam-lhe um es­
trado e lençóis. Revestem o colchão apenas duas cobertas ou
tapetes fte/jer/rf/’ uma sobre a qual repousa a pessoa que dor­
me (stragulum)16 c a outra sob a qual ela se estende (operi-
mentum) c que esconde ou uma colcha (lodices), ou uma co­
berta policromática e adamascada (polymitaf7. Enfim, no pé
da cama, ou, como diziam os antigos, diante do colchão (an-
tetorum), um tapete (toral) muitas vezes compete em luxo com
os lodices-18.
A presença do toral no quarto era de certo modo obri­
gatória. Pois, calçasse soleae, espécie de sandália de capuchi­
nho presa ao tornozelo por meio de cordões, crepidae, tipo
de alpargata de couro sustentada por uma correia, calcei, sa­
patos de couro com correias entrecruzadas, ou caligae, bor-
zeguins inteiramente fechados, o romano permanecia descalço
a partir do momento em que retirava o calçado para se dei­
tar — as vezes, protegia as pernas com faixas de couro ou
tecido (fasciae), que, porém, nada tinham que se assemelhas­
se a nossas meias39. Em contrapartida, nao estava tão habi­
tuado como os orientais de hoje a despir-se para dormir, ou
melhor, semidespir-se. Tirava apenas o manto, que colocava
sobre o operimentum como coberta suplementar40, ou o jo­
gava negligentemente na cadeira41.
Os antigos distinguiam dois tipos de vestimenta: aque­
las em que se introduz o corpo e outras que envolvem o cor­
po. Essa é a diferença, em grego, entre endum.ua e epiblemata;
em latim, a mesma diferença entre indumenta, usados noite
c dia, e amictus, usado apenas num período do dia.
Dentre os indumenta, em primeiro lugar figura o snbli-
gacidum ou licium, não uma calça, como às vezes é definido,

189
e sim uma tanga, cm geral dc linho c sempre atada à cintura.
Originariamente era talvez a única roupa íntima tanto dc no­
bres como de trabalhadores braçais. Estes nao tinham outra
vestimenta; aqueles usavam a toga por cima do licium, co­
mo na época de César e Augusto faziam alguns conservado­
res empedernidos para ostentar sua fidelidade aos costumes
antigos42. No século II d.C. apenas os atletas usavam o li­
cium em público43. Até os operários44 já estavam acostuma­
dos a cobri-lo com a tunica, que sc tornou o indumentum
por excelência. A túnica consistia numa espécie de camisola
de linho ou lã, com dois panos costurados juntos. Para vesti-la,
introduzia-se primeiro a cabeça; depois, prendia-se a túnica
à cintura por meio dc uma faixa; em seguida, ajeitava-se a
vestimenta de tal modo que nas costas caísse até a altura dos
joelhos c na frente sc estendesse um pouco além daquele
ponto45. Aliás, a moda introduzira algumas variações numa
vestimenta que, comum a ambos os sexos e às diversas con­
dições sociais, começara uniforme. A túnica das mulheres
era mais longa que a dos homens c podia chegar aos calca­
nhares (tunica talaris)46. A dos militares era mais curta que
a dos civis; e a dos cidadãos comuns era mais curta que a
dos senadores, sendo esta ornada de uma larga tira de pur­
pura: o laticlavo47. No Império nao é raro os romanos usa­
rem duas túnicas, uma sobre a outra: a interior chamava-se
subucula; a outra era a túnica propriamente dita, tunica exte­
rior. Os friorentos chegavam a usar duas subuculae, até três,
como Augusto, de acordo com os detalhes fornecidos por
Suetônio sobre as manias desse imperador48. No entanto, no
inverno ou no verão, as túnicas eram sempre de mangas cur­
tas; só no Baixo Império as mangas ultrapassaram o cotove­
lo49. Isso explica não só a utilidade das luvas, usadas até por
escravos no frio rigoroso50, como ainda a necessidade de um
amictus que envolvesse os indumenta.
Especificamente romano na República c no início do Im­
pério, o amictus era a “cobertura” chamada toga, palavra apa­
rentada ao verbo “regere”, “cobrir”; tratava-se de um amplo
círculo de lã branca com 2,70m dc diâmetro, que pela pró­
pria amplitude se distinguia de todas as variedades derivadas
do himation dos helenos51. Léon Heuzcy contrapôs numa

190
bela página as concepções antagônicas que as duas “vestes”
expressam à sua maneira52. Com sua predileção pelas arqui­
teturas rctilíneas, “os gregos mantêm... no tecido com que
se envolvem as bordas retas e os ângulos salientes que a peça
tinha no tear”; c tiraram “efeitos admiráveis das formas ele­
mentares que satisfaziam à simplicidade dc seu gosto c à cla­
reza dc sua mente”. Ao contrário, os ctruscos, e depois os
romanos, que logo incluíram o arco no sistema dc constru­
ção e apreciavam erigir templos segundo uma planta circu­
lar, arredondaram os ângulos das vestes. Assim, obtiveram
“caimentos mais ricos e majestosos, porem de aparência me­
nos simples e bela”. Em virtude dc suas características irre­
dutíveis, a toga de imperiosa amplitude — sob a qual os
assassinos enviados por Mitridates à procura dos residentes
italianos da Asia reconheceram dc imediato suas vítimas, em­
bora nunca as tivessem visto53 — fora o traje nacional dos
romanos, e no Alto Império continuou sendo a indumentá­
ria de gala inseparável dc todas as manifestações da atividade
cívica. A toga era a vestimenta digna dos donos do mundo,
ampla, eloqücnte, solene, mas demasiado complicada e um
tanto enfática no arranjo e na profusão das dobras. Envolver-
se com arte exigia verdadeira destreza; um magistrado tão
pouco vaidoso como Cincinato acreditava que não teria su­
cesso sem a ajuda dc sua mulher, Racília, aliás a única a que
esse herói da antiga frugalidade recorria54. Manter o equilí­
brio da toga na agitação do movimento, no ardor do discur­
so, na azáfama da multidão, exigia atenção constante5’. Su­
portar-lhe o peso constituía um fardo intolerável56. Con-
servar-lhc a alvura imaculada demandava onerosas e frequentes
lavagens que logo a puíam e a condenavam ao desuso57. As­
sim, em vao os imperadores assinaram decretos para impô-
la58: Cláudio no tribunal59, Domiciano no teatro63, Cômo­
do no anfiteatro61. Na Roma do início do século II d.C. ha­
via quem a evitasse no campo, quem a trocasse62 pelo
pallium copiado do himation helênico, pela lacerna, que é
um pallium colorido, pela paenula, que é uma lacema com­
pletada por um capuz (cuctillus). Na Cidade substitui-se a to­
ga nos jantares pela synthesis, que conjuga a simplicidade da
túnica na parte superior e a amplidão da toga na pane
inferior63. Nos municípios os magistrados declinam seu uso

191
no exercício de suas funções e os cidadãos a vestem somente
nos funerais, no leito mortuário64.
Em contrapartida, evitam envolver-se nela no leito, à noi­
te. Assim, vestir a toga ou o cwkw, que a sucedeu no gosto
popular, era a única operação que ao despertar demandava
tempo c esforço pouco menor que os dos arqueólogos con­
temporâneos na tentativa de reconstituí-la. Quem renuncia­
va a todas as formas de amictus, como acontecia com os edis
municipais, ou quem adiava o trabalho de envolver-se cor­
retamente numa delas, compunha-se num piscar de olhos.
Bastava calçar-se sobre o toral; por exemplo, tão logo enfia­
va os calcei e sc vestia num instante, sem ajuda de ninguém,
o imperador Vespasiano estava pronto para receber os audi­
tores e desincumbir-se dos deveres imperiais65. Mal saíam da
cama, os romanos dessa cpoca estavam prontos para cum­
prir as funções da vida pública.
Substituíam o desjejum por um copo de água, tomado
às pressas66. Como sabiam que no final da tarde iriam ao ba­
nho — ou ao balneum privado, se tinham dinheiro suficien­
te para construir um em casa, ou às term as públicas —, nao
se demoravam em abluções.
Em Pompéia, encontrou-se uma única casa, a de Diome-
des, onde o quarto de dormir incluía uma zotheca, ou alco-
va, provida de uma mesa e de uma bacia. O texto dc Suctônio
acerca do despertar de Vespasiano é omisso com relação a
toalete; embora a mencione ao relatar as últimas horas da
vida de Domiciano, o mesmo Suctônio c elíptico demais pa­
ra atribuir-lhe importância66*. Amedrontado com a prediçao
de que a quinta hora do dia 18 dc setembro de 96 d.C. devia
scr-lhe inexoravelmente funesta — com efeito, foi ensanguen­
tada por sua morte —, o imperador se enclausurara no quar­
to e durante toda a manhã não deixou a cama, tendo tomado
a precaução de esconder um gládio sob o travesseiro. Ao fal­
so anúncio de que a sexta hora chegara — na verdade, era
a quinta que sc iniciava —, decidiu levantar-se e proceder a
seus cuidados corporais — da corporis curam — num aposen­
to vizinho. Contudo, Partênio, seu camareiro e cúmplice da
conspiração, rcteve-o no quarto sob pretexto de um visitan­
te que insistia cm vc-lo para comunicar-lhe pessoalmente gra­
ves revelações. Infelizmente Suctônio não descreve os cui­

192
dados (cura) que Domiciano dava ao corpo quando os assas­
sinos o detiveram. Entretanto, a brevidade da alusão, a faci­
lidade com que Domiciano se entrega demonstram sua
insignificância; e como a palavra “sapo”designava apenas uma
tintura e o uso do sabão ainda era desconhecido67, as ablu-
çôes rcsumiam-sc em molhar com água fresca a cabeça e as
mãos. Nisso consiste a cura corporis que no século IV Ausó-
nio versejou numa encantadora ode de seu Eph&neris: “Es­
cravo, anda, dc pé! Dá-mc meus calçados e meu manto de
musselina. Traze-me o amiettes que preparaste, pois vou sair.
E derrama água corrente, pois lavo as mãos, a boca e os olhos:

Da rore fontano atinam


Menus et os et lamina!68”

K seguir, o poeta entra na capela e, feitas as preces, par­


te em busca dos amigos.

A toalete do romano: o “tonsor”

No século II d.C., a verdadeira toalete dos elegantes de


Roma realizava-se junto ao tonsor, a quem confiavam o cor­
te da barba e o arranjo dos cabelos. Era o essencial da atra
corporis para Júlio César, cujas exigências de dândi nessa oca­
sião nao escaparam à pena de Suetônio69. No século II d.C.,
tornou-se uma tirania. Quem pode contar com tonsores en­
tre a criadagem confia-lhes os cuidados pela manhã e, havendo
necessidade, durante todo o dia.
Aquele que não pode arcar com tamanha despesa pro­
cura, cm horas variáveis e com a frequência necessária, um
dos inumeráveis estabelecimentos de tonsores, instalados nas
tabemae da cidade ou ao ar livre, para uma clientela mais
vulgar70. Os ociosos ali se detêm várias vezes e por longo
tempo. Mas, considerando o tempo empregado nesses afa­
zeres e os cuidados que os obcecam, como ousaríamos cha­
mar de ociosos aqueles que despendem seu tempo entre o

193
pente c o espelho: lios tu otiosos vocas inter pectinem specu-
lumquc occupatos?71 Ao amanhecer à oitava hora72, a clien­
tela c tão grande que a tonstrina se torna um ponto de
encontro, um salão, um local dc mexericos, uma íonte ines­
gotável de notícias73. Por outro lado, é tão heteróelita, tão
variegada, que há poucos espetáculos tão pitorescos, c desde
o século de Augusto os amantes da pintura usaram-nacomo
inspiração para elaborar cenas de gênero, como aquelas que
os alexandrinos pintaram outrora74. Ademais, deve pagar
preços tão elevados que nas Sátiras de Juvenal c nos Epigra-
mas de Marcial várias vezes comparece o tipo do ex-tomor
enriquecido e transformado em respeitável cavaleiro ou cm
abastado proprietário de terras75.
A barbearia, ou tonstrina, é cercada de bancos onde os
clientes aguardam para ser atendidos. Nas paredes há espe­
lhos diante dos quais os transeuntes que não “consomem”
estacam para contemplar sua imagem e corrigir a aparên­
cia76. No meio do salão, com as vestes protegidas por uma
toalha grande ou pequena — mappa ou sudarium —, ou por
uma espécie de penhoar (involucre) de batista (linteum) ou
musselina (sindon)77, o cliente acomoda-se num escabclo, e
o tonsor, rodeado de ajudantes — circcitores —, encarrega-se
de cortar-lhe os cabelos ou simplesmente arrumá-los segun­
do a moda do dia que é ditada pelo soberano. Com uma ex­
ceção — a dc Nero, que gostava de arrumar os cabelos
artisticamente78 —, parece que os imperadores, segundo fi­
guram nas moedas e nos bustos, adotaram, pelo menos até
Trajano, tanto o exemplo de Augusto, que concedia aos ton­
sores apenas alguns rápidos momentos79, como a estética
apresentada simultaneamente por Quintiliano e por Marcial,
ambos inimigos dos cabelos longos e dos cachos empilha­
dos80. No começo do século II d.C., a maioria dos romanos
contenta-se, pois, com um simples corte, e uma penteada,
tão necessária quanto o corte — efetuado com tesoura de ferro
(forfex) cujas lâminas eram desprovidas de um eixo comum
no centro e anéis de preensào na base —, deixava muito a
desejar e não evitava as desigualdades que chamamos de “es­
cadas” e que nas Epístolas de Horácio expõem suas vítimas
à chacota pública:

194
“Si curatns inaeqtialli tonsore capillos
Occnrri, rides...

Assim, os elegantes preferem frisar os cabelos. Já em suas


efígies Adriano, seu filho Lúcio César e o filho deste, Lúcio
Vero, apresentam uma cabeleira artificialmente crespa, ob­
tida com o concurso do pente (flexo ad pectinem capillo?2),
ou com a ajuda do calamistriim, haste de ferro que os ciniflo-
nes aqueceram num estojo de metal sob a cinza ardente e na
qual a mão hábil do tonsor enrola os cabelos para frisá-los.
No início do século II d.C., a operação era corrente, não só
em jovens aos quais nada se podia censurar, como também
em homens maduros cujos cabelos, já ralos, nao se presta­
vam bem a esse tratamento ostensivo demais para não ser
ridículo. Ao Marino que o ridiculariza, Marcial escreve:
“Vemos-te reunir à direita e à esquerda teus cabelos escassos
e cobrir teu crânio luzidio com os cachos das têmporas; con­
tudo, agitados pelo vento, eis que emolduram tua cabeça des­
nuda com enormes volutas que pendem de ambos os lados.
Marino, confessa tua idade com maior franqueza e sê apenas
um: nao existe nada mais feio no mundo que um calvo
frisado... ”83
Aliás, cabia ao tonsor completar a ilusão de juventude
dos clientes, derramando sobre os cachos laboriosamente ob­
tidos tinturas84 e perfumes, maquiando o rosto, aplicando-
lhe pequenos círculos de tecido que ora escondiam os defei­
tos da pele, ora realçavam o brilho de uma tez muito pálida,
e que se chamavam splenia Innata — moscas, como dizemos
hoje em dia. Os artifícios grosseiros não deixavam de atrair
para seus adeptos vigorosas sátiras, desde os remoques de Cí­
cero sobre as franjas úmidas dc certos inimigos “bonitôes”83
até os epigramas de Marcial contra os êmulos de sua época:
o Carocinus, que exala todas as essências dos potes de chumbo
vendidos por Niceros, célebre perfumista86; o Postumus,
que lhe é suspeito justamente porque “ele sempre cheira bem,
e cheirar mal significa cheirar bem”87; o Rufus, cuja cabe­
leira luzidia enche com seu perfume o teatro de Marcellus
c em cuja testa brilham as estrelas das “moscas” que a
constelam88.

19$
Contudo, na época que focalizamos a tarefa do fowor,
a que recomeçava todos os dias, consistia ainda em cortar
ou fazer a barba. Sem dúvida, esse costume surgiu tardiamen-
tc. Como os gregos, os romanos usaram barba durante mui­
to tempo. Os gregos cortaram-na a exemplo e por ordem
de Alexandre. Só cento e cinqüenta anos depois os romanos
os imitaram. No começo do século II a.C., Tito Quíncio Fia-
mi nino, no anverso de suas moedas proconsulares, c Catão,
o Velho, nas alusões literárias a sua censura ou a sua pessoa,
são representados barbudos89. Na geração seguinte o núme­
ro de imitadores já diminuiu. Cipião Emiliano queria barbear-
sc todos os dias; c nao deixou dc fazê-lo nem mesmo quan­
do, em sinal dc protesto contra as injustas acusações dc que
sc tornou alvo, teria o direito de renunciar a esse cuidado93.
Quarenta anos depois, o hábito que ele inaugurara difundia-
se pela ditadura como sc o espírito da civilização helcnísti-
ca, no qual sc inspirava a contragosto, tivesse estendido sua
influencia dos fundamentos do regime político aos menores
detalhes da rotina cotidiana. Sila era imberbe. César, seu ver­
dadeiro sucessor, preocupava-se cm apresentar-se sempre bem
barbeado91. Tornado imperador, Augusto se criticaria se
não passasse pela lamina do tonsor92. No final do século I
a.C., apenas circunstancias graves levariam os poderosos a
deixar de cumprir uma formalidade que para eles assumira
foros de dever de Estado: César, após o massacre de seus sol­
dados pelos eburões93; Catão de Utica, após a derrota dc seu
partido em Tapso, em 46 a.C94; Antônio, após seu fracasso
cm Modena95; Augusto, ao saber da derrota dc Varo96. Sob
o Império, de Tibério a Trajano, os imperadores nunca des-
cumpriram essa formalidade, e seus súditos sc julgariam in­
dignos deles se não lhes seguissem o exemplo.
Os romanos se submetiam a tal prática como a um rito.
A primeira vez que a barba dc um jovem caía sob as lâminas
do tonsor ocorria uma cerimônia religiosa: a depositio bar­
bae. Conhecemos as datas em que os imperadores e seus pa­
rentes as realizaram: Augusto, em setembro do ano 39
a.C.97; Marcelo, enquanto participava da expedição contra
os cantábrios, em 25 a.C.98; Caligula e Nero, ao assumirem
a toga viril99. Os cidadãos comuns imitavam-nos com meti­
culosa exatidão. Assim, num epitáfio romano pais chorosos

196
lembram que o filho defunto depusera a barba ao termino
dc seu vigésimo terceiro ano, ou na mesma idade que Au-
gusto100; c tal como Nero consagrara a Júpiter Capitolino
os pêlos de sua depositio, colocados numa píxidc de ouro1-1,
em sua capela particular Trimalcião expõe aos convidados
uma píxidc dc ouro em que também encerrara sua lanugo,
entre as estatuetas dc prata dc seus Lares c uma estatueta de
mármore de Venus132. Para a sua os pobres se contentavam
com uma píxidc de vidro, análoga à encontrada cm 1832 nu­
ma casa antiga da Via Salaria133. Na época dc Juvenal, ricos
c pobres festejavam a solenidade dc acordo com seus meios,
até mesmo além dc seus meios, com banquetes aos quais se
convidavam todos os amigos da família134.
No momento da depositio barbae, era com a tesoura que
o tonsor cortava a barba a ser oferecida como primícias à di­
vindade; os adolescentes que tinham o queixo coberto ape­
nas por uma penugem mais ou menos abundante em geral
esperavam que a juventude sc evolasse ao deixar-se barbe­
ar135. Contudo, depois de certa idade, e a menos que se fos­
se soldado136 ou filósofo137, seria inconveniente subtrair-se
à navalha. Marcial compara aqueles que se furtam aos bo­
des africanos que pastam entre as duas Sirtes, nas margens
do Cinipe108. Até os escravos procuravam os tonsores que
trabalhavam ao ar livre139, a menos que, por economia, o
amo convidasse o próprio barbeiro a usar a mão na pele
deles, como os intendentes dc Adriano no território das mi­
nas do imperador, cm Vipasca110. Ninguém fazia a própria
barba. Com o material rudimentar e a técnica grosseira de que
dispunham os romanos, estavam condenados a recorrer à ex­
periência dos especialistas. Por certo, os arqueólogos des­
cobriram muitas navalhas nas ruínas pré-históricas ou etrus-
cas; e, por uma contradição à primeira vista paradoxal, en­
contraram poucas ou nenhuma nas escavações romanas. É
que as navalhas dos terramares e dos etruscos eram de bron­
ze; e as outras — navalhas propriamente ditas (novaculae) ou
facas usadas para barbcar-sc e cortar as unhas (cultri ou oJ-
telli) — eram de ferro, e acabaram destruídas pela ferrugem.
Esses ferramenta, segundo o termo genérico aplicado a to­
das as suas variedades, consistiam em instrumentos frágeis
c de via breve. Mas esse era seu menor defeito. De nada

197
adiantava o íowsor afiá-los na pedra de amolar, uma lamini-
tanam comprada na Espanha c umcdecida com saliva112;
o gume, tao temível quanto ineficaz, passava sobre uma pe­
le seca, que não fora lubrificada nem com espuma de sabão
nem com unçao de óleo. Pelo que sei, o único texto que con­
tém algum esclarecimento sobre esses detalhes estabelece —
incontcstavelmente, a meu ver — que a única loção que o
tonsor passava no rosto do cliente era água pura. Lembra­
mos o delicioso episódio em que Plutarco descreve a prodi­
galidade de M. Antonius Creticus, o pai de Antônio, o
Triúnviro. Um dia, um amigo desse perdulário lhe pediu um
empréstimo; Antonius Creticus confessou que sua esposa,
que desconfiava de seus esbanjamentos e lhe puxava os cor­
dões da bolsa, não lhe deixara um só denário. Diante disso,
inventou um ardil para sair da penúria c satisfazer o amigo.
Ordena a um escravo que lhe traga água numa bacia de pra­
ta. Tão logo se executa a ordem, toma a bacia e molha o ros­
to como se fosse barbear-se. Depois, despachando o escravo
sob um pretexto qualquer, entrega a peça de prata ao amigo,
que se vai, e pronto. Evidentemente o estratagema de Anto­
nius Creticus só se concebe sc seu tonsor tivesse apenas dc
passar-lhe água no rosto antes de barbeá-loin.
Em tais condições o tonsor devia ter uma destreza pou­
co comum. Aliás, só depois de um estágio prolongado junto
ao patrão e após manejar navalhas cegas de aprendiz é que
conquistava o direito de abrir seu estabelecimento114. Po­
rém, havia na profissão muitas dificuldades e riscos. Os vir-
tuoses não tardavam a adquirir uma celebridade que os poetas
consagravam em seus versos, como o Pantaghatus, a cuja me­
mória Marcial compôs este delicado epitáfio: “Nesta tumba
jaz, arrebatado na flor da idade, Pantaghatus, ternura e dor
de seu amo, tão hábil em cortar os cabelos errantes com um
ferro que mal os tocava, como cm polir faces hirsutas. Ó terra,
poderás ser-lhe doce e leve; porém, nao podes ser mais leve
e doce que sua mão de artista”115. Infelizmente Pantagathus
pertencia à elite da profissão, e a maioria de seus confrades
estava longe de pretender a mesma destreza. Os tonsores de
encruzilhadas, em especial, expunham a clientela vulgar aos
mais desagradáveis contratempos. Bastava um momento de
desatenção ou um incidente na rua para que um empurrão

198
ou o choque dc um objeto imprevisto desviasse os movimen­
tos do barbeiro e provocasse no cliente ferimentos, cujas res­
ponsabilidades e sanções pecuniárias os juristas da época de
Augusto já consideraram prudente determinar c prever116.
No início do século II d.C. nao se efetuara nenhum progres­
so, e os clientes do tonsor podiam escolher apenas entre um
tratamento cauteloso porem interminável e ferimentos mais
ou menos profundos, resultantes de um golpe rápido porém
perigoso c sangrento. Os barbeiros mais renomados pecavam
por uma incrível lentidão; Augusto se distraía da melhor for­
ma desenrolando um livro ou tomando seu estilo e suas ta­
bulas enquanto se acomodava1’7. Cem anos depois essa len­
tidão ainda era objeto de zombarias: “Enquanto o barbeiro
cuida do rosto de Lupércio, outra barba cresce em seu clien­
te. .. ”118 “Meu barbeiro era um adolescente dotado de tal
destreza que superava até mesmo Thalamus, o barbeiro de
Nero. Um dia emprestei-o a Rufos para que lhe polisse as
faces, e por sua ordem ele se empenhou em voltar aos mes­
mos pêlos, a obedecer, uma por uma, às críticas do espelho,
tanto que no fim meu barbeiro voltou barbudo... ”119
Com a maioria dos tonsores, o suplício demorava menos,
porém, era mais doloroso: “Quem não deseja descer tão ce­
do às sombras do Estige deve evitar o barbeiro Antíoco, por
pouco bom senso que lhe reste. Com menor crueldade, as
facas talham os braços dos fanáticos de Cibele quando deli­
ram ao som da música frigia. Mais suavemente Alcon, com
sua mão cirúrgica, desbasta os ossos fraturados. Todas as ci­
catrizes que vedes cm meu queixo, iguais às que traz na fronte
o velho pugilista, não foi minha mulher quem as fez, embo­
ra seja ela temível com suas unhas enfurecidas; foi o ferro
de Antíoco e sua mão celerada. Apenas o bode é inteligente
dentre todos os seres. Vive com sua barba para escapar ao
carrasco... ”120 E as cutiladas eram tão frequentes, que Plí­
nio, o Velho, nos transmitiu a receita, aliás nauseante, do
emplastro que cabia aplicar para estancar as hemorragias que
elas provocavam: um feixe de teias de aranha empapado em
óleo e vinagre121.
Na verdade, era preciso muita coragem para se confiar
ao tonsor; e, incômodo por incômodo, sofrimento por sofri­

199
mento, muitas vezes os romanos — como Gargilianus, que
Marcial nos mostra tremendo diante do barbeiro122 — pre­
feriam recorrer todas as manhas12' aos bons serviços do dro-
pacista e deixar que lhes passasse o dropaxn\ um linimento
depilatório feito de resina e pez, ou lhes esfregasse o psilo-
thrum, ingrediente extraído da clematite125, ou qualquer ou­
tra dessas pastas à base de goma de hera, ou de gordura de
asno, ou de fel de cabra, ou de sangue dc morcego, ou dc
pó dc víbora, das quais não nos poupa Plínio, o Velho126,
Segundo a recomendação do Naturalista, preferiam ate com­
binar seu emprego com a depilação direta127 e, como as mu­
lheres hoje cm dia e Júlio César no passado, mandar arrancar
os pêlos com as pinças dc volsella128. Alguns petimetres le­
vavam a resistência ao ponto dc pedir ao tonsor que utilizas­
se sobre a pele e concomitantemente, segundo os pontos, a
tesoura, a navalha e a pinça, para poder ouvir, ao sair da tons-
trina: “Uma parte dc tuas faces foi tosquiada; a outra, depi-
lada. Assim vendo-te, quem imaginaria uma só c única
cabeça?”129
Mas no início do século II a maioria dos romanos já não
suportava a opressão dos tonsores. Assim, quando o impera­
dor Adriano, fosse porque desejava esconder uma terrível ci­
catriz, segundo a versão de seu biógrafo, fosse porque
simplesmente queria se libertar dc um jugo intolerável, de­
cidiu deixar crescer a barba crespa que figura em suas moe­
das, bustos e estátuas, seus súditos c sucessores trataram de
seguir-lhe o exemplo; a partir de então, o que durante dois
séculos c meio havia sido a cura corporis dos homens em Ro­
ma desapareceu, por cento e cinqüenta anos, dc sua ordem
do dia sem deixar vestígios nem lamentos.

A toalete da matrona: a "ornatrix”

Até aqui vimos a toalete do romano. Mas isso é só a me­


tade do tema. Para abordar a outra metade e assistir ao des­
pertar da romana, devemos nos transferir para sua casa e,
na maior parte do tempo, mudar o cenário.

200
Lcmbramo-nos do divertido capítulo da Fisiologia do ca-
sarnento cm que da maneira mais douta do mundo sao pesa­
das as vantagens c os inconvenientes dos diversos sistemas
entre os quais os cônjuges devem optar para manter a boa
harmonia da vida matrimonial: um leito num único quarto,
ou dois leitos no mesmo quarto, ou dois leitos c dois quar­
tos. Balzac admite o primeiro caso, prcíere o último c pros­
creve absolutamente o compromisso das camas gêmeas. Ora,
ocorre que dessa forma o grande romancista francês codifi­
cou, sem saber, os usos que prevaleciam na Roma imperial.
Apenas no primeiro andar de uma das casas recém-
descobertas em Hereulano encontraram-se cttbicula de dois
leitos. É provável que pertencessem a uma hospedaria, onde
nada prova que se destinassem a um casal. Por sua vez, os
textos mencionam a existência de vários leitos juntos ape­
nas nos cenactda superpovoados pelas sublocações. Sempre
atribuem ao casal a comunidade do leito conjugal (lectus ge­
nialis) ou quartos separados para os esposos. Em geral, estes
se pronunciavam por um ou outro arranjo segundo as dis­
ponibilidades do apartamento, ou seja, em última análise, se­
gundo a posição social. Os pobres e os simples burgueses que
nao dispõem dc muito espaço não concebem o casamento
fora do leito comum; c Marcial, por exemplo, num de seus
epigramas aceita a mão de uma velha rica desde que jamais
se deitem juntos.

“Communis tecum nec mihi lectus erit.

Em outro epigrama o mesmo poeta se enternece com


o carinho de Caleno e Sulpícia durante os quinze anos de
sua união e sem excessivo pudor evoca os embates amoro­
sos que o “leito nupcial” e a “lâmpada copiosamente regada
com perfumes de Niceros” testemunharam131. Em contra­
partida, os grandes senhores organizavam sua existência de
modo que cada um dos cônjuges pudesse gozar de indepen­
dência dentro de casa. Assim, sempre vemos Plínio, o Jo­
vem, sozinho no quarto onde acorda “por volta da primeira
hora, raramente antes, raramente depois” e onde, aprovei­
tando-se do silêncio da solidão e da escuridão que reina ao
redor do leito, atrás das janelas fechadas, sente-se livre e co­

201
mo que entregue a si mesmo para pensar à vontade c es­
crever1'2. Entretanto, devemos imaginar que sua querida
Calpúrnia dorme ou desperta em outro quarto, onde ele a
encontra amorosamente quando a abriga sob seu teto c para
o qual seus passos em vão o conduzem quando a esposa está
ausente, como se ainda estivesse próxima133.
Evidentemente, a alta sociedade da época considerava de
bom-tom o casal ter quartos separados, e nesse aspecto os
novos-ricos procuravam imitar os grandes. Em seu roman­
ce, Pctrônio não deixou de observá-lo. Trimalciao vangloria-se
perante os convidados das dimensões colossais da casa que
mandou construir: “ ‘Vede*, diz ele, colocando os pontos nos
is, ‘vede meu quarto, onde durmo’ depois piscando para
a esposa, aponta mais ao longe o lugar onde sc situa “o ni­
nho desta víbora”134. Mas Trimalciao se engana ou zomba
de nós. E não lhe adianta ir contra a própria natureza. Na
prática um dos dois quartos que encomendou ao arquiteto
não era ocupado. Trimalciao podia fingir, mas não dormia
em seu quarto: partilhava o leito dc Fortunata cm outro apo­
sento. Como os maridos que cm público tratam a esposa dc
“senhora” e de repente deixam escapar um “você”, ele se
contradiz ingenuamente na passagem em que, pródigo em
confidências cscatológicas, não teme atribuir suas insônias
às detonações que a pesada cara-metade solta a seu lado: “Ris,
Fortunata, tu que com esse concerto mc impedes dc pregar
o olho a noite inteira”135.
Mas pouco importa: dormisse no quarto comum ou no
próprio, a mulher romana procedia a uma toalete que em
muito se assemelhava à do marido. Como ele, dormia com
a roupa de baixo: a tanga, o sutiã ($trophinmt mamillare) ou
a cinta (capetium), uma ou duas túnicas e às vezes, para de­
sespero do marido, um manto136. Como ele, ao levantar-se
tinha apenas de calçar as sandálias sobre o toral e envolver-
se no amictus; antes, procedia apenas a abluçõcs sumárias.
Como para ele, o essencial da cura corporis consistia em cui­
dados que julgaríamos supérfluos; em matéria dc toalete, as
romanas do Império, assim como as atuais orientais, acha­
vam que o supérfluo era a coisa mais necessária.
Estabelecendo o inventário das sucessões femininas, os
juristas nos ajudam a classificar os planos desiguais e sucessi­

202
vos nos quais a vaidade das romanas centrava as baterias. Eles
agrupam em três categorias os objetos pessoais deixados pe­
las romanas: a toalete (mundus muliebris), os adornos (orna­
menta) co guarda-roupa (vestis). Sob a rubrica vestis, enume­
ram os diferentes tecidos com que se vestiam. A toalete, gra­
ças à qual a mulher se torna mais asseada (mundus muliebris
est quo mulier mundiorfit), inclui bacias (matellae), espelhos
(specula) dc cobre, prata c às vezes de duplo vidro, nao de
mercúrio, mas dc chumbo, c também, quando ela é suficien­
temente abastada para recusar a hospitalidade dos banhos pú­
blicos, a banheira particular (lavatio). Quanto aos amamenta,
compreendem os instrumentos e os produtos que contribuem
para o embelezamento, os pentes e alfinetes ou fibulas, os
ungüentos c as jóias. No banho demorava-se cm associar o
mundus e os ornamenta, a toalete e os adornos; porém, ao
saltar da cama, pela manhã, podia bastar-lhe “arrumar-se”:
ex somno statim omata non commundata137.
Começava por ajeitar a cabeleira. Na época que focali­
zamos isso nao era nada simples. Fazia muito tempo que as
matronas haviam abandonado a simplicidade do penteado
republicano, recuperado efemeramente pelo imperador Cláu­
dio: uma risca separava na frente os cabelos presos atrás num
coque. Não se contentavam nem mesmo com os arranjos de
tranças na fronte, entrevistos cm alguns bustos de Lívia e
Otávia. Com Messalina surgem os cabelos frisados, cujas com­
plicações e exibição caracterizam a iconografia feminina da
cpoca dos Flávios. Se nos anos seguintes abandonaram tais
penteados, as damas da corte que davam o tom — Marciana,
irmã de Trajano, Matídia, sua sobrinha — conservaram, po­
rém, o hábito dc arrumar as tranças em diademas altos co­
mo torres. “Vê, pois”, escreve Estácio numa de suas Silvas,
“vê, pois, a glória dessa fronte sublime e as tribunas de sua
cabeleira.”138 E Juvenal diverte-se com o contraste entre a
pequena altura de determinada elegante e a pretensão de seu
penteado, que não terminava mais. “Quantos andares super­
postos! Quantas contexturas nesse edifício com que cobre
a cabeça. Dc frente, parece Andrômaca. Dc costas, diminui
a olhos vistos: é outra mulher.”139
Assim como os maridos não podiam dispensar o tonsor,
as romanas não conseguiríam montar os arranjos monumen-

203
lais sem recorrer à habilidade das cabeleireiras, as ornatri^
sobre as quais muitos epitáfios nos informam as datas e as
casas onde foram empregadas. As romanas concedem-lhes lon­
gas sessões, como os homens ao barbeiro; tampouco estão
livres de sofrimento, principalmente se, como a Júlia relem­
brada por Macróbio, mandam arrancar os cabelos bran­
cos140. A função dc ornatrix estava longe dc ser uma sine-
cura. Muitas vezes as torturadoras tornavam-se mártires, quan­
do a ama, exausta de ficar muito tempo na mesma posição,
percebia que o resultado dc tanto esforço deixava a desejar.
Epigramas e sátiras estão repletos de gritos dc matronas en­
furecidas e gemidos de suas aias. “A senhora tem um encon­
tro”, diz Juvenal. ‘‘Quer ficar mais bela que de hábito. A
pobre Psccas (criada), os cabelos arrancados, os ombros nus,
o peito descoberto, a penteia. Ora esse cacho está alto de­
mais. Por que assim? Vapt! Sem demora, o chicote pune a
falha dc uma mecha mal penteada!”141 E Marcial conta:
“Um cacho, um único, estava errado. Um grampo mal fixa­
do não se sustentou. Lalage pune o crime com o espelho que
Iho revelou; e Plccousa (a trançadeira) cai sob o golpe, imo­
lada a essa terrível cabeleira!”142 Nessas condições, feliz a or­
natrix a quem a calvície da patroa permite ajustar com
menores riscos desde tranças postiças (crines, galeri, corym-
bia) até perucas inteiras, fossem tingidas de loiro com o sapo
de Mainz — obtido por uma mistura de sebo de cabra e cin­
zas de faia143 —, fossem dc um negro de cbano, como as ca­
beleiras importadas da índia em quantidades tão grandes que
o governo imperial inscreveu os capilli indici entre os pro­
dutos que pagavam taxas144.
A tarefa da ornatrix não terminava aí. Cabia-lhe ainda
depilar a ama145 c sobretudo “pintá-la”: branco na testa e
nos braços, com giz e alvaiade146; vermelho nas faces e nos
lábios, com ocre,fi<cHs ou borra de vinho147; negro nos cí-
lios e no contorno dos olhos148, com cinza (fidigo) ou pó de
antimônio149. As paletas eram as coleções de potes c frascos,
alabastros, gntti e píxidcs, de onde extraíam linimentos, po­
madas e cremes. Em geral, a dona da casa mantém o arsenal
trancado no armário do quarto nupcial (thalamus)1*9. De
manha, ela o expõe sobre a mesa, ao lado do chifre moído
com que, à imitação de Messalina, pule os dentes151, e antes

204
de chamar as ornatrices ao trabalho tem o cuidado dc barrar
a entrada, pois aprendeu coni Ovídio que “a arte só embele­
za a figura das mulheres com a condição de nao se mos­
trar”152. Ao sair para o banho, leva o arsenal, cada pote
ocupando o devido lugar na caixa — às vezes de prata maci­
ça —, chamada pelo nome genérico de capsa ou pelo termo
“alabastrotcca”; assim sao as píxides que contem seu rosto
do dia, o que ela faz ao levantar-se, refaz após o banho e só
desfaz à noite, no momento de deitar-se: ‘‘Tu resides, ó Ga­
ia, numa centena de píxides, e a figura que nos mostras não
dorme contigo!”153
Depois de maquiada, sempre com a ajuda das omatrices,
a matrona toma as jóias incrustadas de pedras preciosas e,
uma a uma, coloca-as no lugar: o diadema sobre os cabelos,
os brincos nas orelhas; o colar (monile) ou os berloques (ca-
tellae) no pescoço; o medalhão (pectoral) no peito; os brace-
letcs nos pulsos; os anéis nos dedos, sem esquecer os aros
que leva nos braços e nos tornozelos, os periscelides seme­
lhantes aos khalkhals de ouro com que as mulheres árabes
da “grande tenda” sempre se adornam154. Por fim, as cama­
reiras (a veste) correm a ajudá-la. Vestem-lhe a longa túnica,
insígnia de condição elevada, a stola, orlada por um galão fins-
tita) bordado a ouro. Atam-lhe o cinto (zona); e, para termi­
nar, envolvem-na ou com um longo xale que a cobre dos
ombros aos pés, o SKpparum155, ou com a palia, ou pallium
feminino, grande manto quadrado de dobras harmoniosas
e cor ofuscante. Com efeito, nao era pela linha que a vesti­
menta das mulheres se diferenciava dos trajes masculinos, e
sim pela riqueza do tecido e pelo brilho da cor. Ao linho
e às Ias preferiam o algodão, vindo da índia desde que a paz
parta, obtida por Augusto e confirmada pelas vitórias de Tra­
jano, garantira a segurança das exportações, e sobretudo as
sedas, que desde o reinado de Nero os seres misteriosos ex­
pediam anual mente ao Império, fosse pelas rotas terrestres
que de Issidon Scythica (Kachgar) chegavam ao mar Negro,
ou através da Pérsia iam ter ao Tigre e ao Eufrates, fosse pe­
la cabotagem do Indo ao golfo Pérsico e pelas águas do Indo
aos portos egípcios do mar Vermelho. Os tecidos não eram
apenas mais macios, leves e coloridos. Melhores que todos
os outros, prestavam-se à manipulação dos offectores capazes

205
dc, com seus ingredientes, reforçar-lhes os matizes originais,
dos infcctores hábeis em transformá-los, de todos esses tintu-
rciros, ptirpurarii, flammarii, crocotarii, violarii, cujas espe­
cialidades igualavam em número os corantes vegetais, animais
e minerais que o manejavam: o branco da greda, da saponá-
ria e do sal de tártaro; o amarelo do açafrão e do resedá; o
negro da noz-de-galha; os tons dc azul do pastcl-dos-
tinturciros; os vermelhos claros ou escuros da garança, da
urzcla e da púrpura. Sempre dóceis aos conselhos de
Ovídio156, combinavam as cores das vestes à pele, tanto que
lhes bastava passear pela cidade para alegrar as ruas com a
policromia das túnicas e xales e mantos, de cores vivas que
às vezes se realçavam com cintilantes bordados, como a pal­
ia de um negro esplendido com que Isis figura em Apu­
leio!157
Aliás, cabia à matrona completar a indumentária com
acessórios que, a princípio alheios aos homens, acentuavam
o pitoresco de sua silhueta. Enquanto os homens em geral
andavam com a cabeça descoberta, protegendo-se com a to­
ga ou o pallium ou ainda com o cucullus da paenula, se o sol
dardejava ou se chovia muito fone, a mulher romana, à fal­
ta de um diadema ou mitra, colocava nos cabelos — não mais
presos na redinha (reticulum)™ — uma simples fita de um
vermelho purpurino (vitta) ou um tutulus™, que, semelhan­
te ao penteado das flamínicas, erguia-se no alto da cabeça cm
forma de cone. No pescoço muitas vezes atava um lenço (fo-
cale). Do braço pendia a mappa, que lhe servia para limpar
o pó ou suor do rosto (orarium, sudarium) e em que, talvez,
começara a assoar o nariz, segundo um costume cujo início
erraríamos ao remontar a uma época muito distante, pois
a única palavra latina que teríamos o direito de traduzir por
lenço, muccinium, nao foi atestada antes do final do século
III d.C.160 Numa das mãos ela costumava portar um leque
de penas de pavão (flabcllum), com a qual também afastava
as moscas (muscarium)161. Na outra levava a sombrinha (um-
bella, umbraculum) nas estações quentes, a menos que a levasse
uma acompanhante (pedisequa) ou um amigo galante; em ge­
ral, a sombrinha era de um verde alegre e nem sempre se po­
dia fechá-la à vontade, como as nossas, razao pela qual ela a
deixava em casa quando o vento soprava muito forte...

206
Assim adornadas, as belas podiam afrontar os olhares de
suas semelhantes c suscitar a admiração dos transeuntes. Mas
c certo que a complexidade dos enfeites, combinada com a
vaidade universal, devia prolongar-lhes o '‘despertar” por mui­
to mais tempo que o dc seu marido. Porem, isso não impor­
tava, pois em Roma as mulheres não eram tão atarefadas
quanto os homens e, para dizer a verdade, só participavam
dos lazeres da vida pública dos cidadãos.

207
CAPÍTULO //

AS OCUPAÇÕES

Os deveres da clientela

Na Roma dc Trajano, as mulheres ficavam a maior par­


te do tempo em casa. Se eram pobres, cuidavam dos afazeres
domésticos1, pelo menos até a hora que lhes era reservada
nas termas públicas. Se eram ricas e liberadas das preocupa­
ções materiais graças a uma numerosa criadagem, saíam pa­
ra fazer visitas, dar um passeio, assistir a um espetáculo e,
mais tarde, jantar em casa dc amigos. Os homens, ao contrá­
rio, não sc demoravam cm casa. Se precisassem trabalhar,
apressavam-se a cuidar dos negócios, que em todos os ramos,
no Foro como no Senado, começavam à primeira hora. Se
eram desocupados, mal se levantavam já se viam envolvidos
pelos deveres da clientela. Pois não eram só os libertos que
tinham patrões, dos quais dependiam. Do parasita ao gran­
de senhor, todo romano se considerava como que ligado a
alguém mais poderoso pelas mesmas obrigações dc respeito
c, para empregar o termo técnico, de obseqtiium, ás quais os
ex-escravos continuavam sujeitos com relação ao amo que
os libertara.
Cabia ao “patrão” receber os clientes, às vezes convidá-
los à mesa, ajudá-los com auxílios e presentes. Quando lhes
faltava o necessário, oferecia-lhes mantimentos que levavam
num cesto, a sportula, ou antes, para poupar-se ao incômo­
do, entregava-lhes gratificações em dinheiro por ocasião da
visita. Na época de Trajano, o costume era tão difundido que
a soma não variava de uma casa a outra, e generalizara-se na
Cidade uma espécie de tarifa “esportulária”: seis sestércios
por cabeça e por dia11. Quantos advogados sem causa, pro-

209
fessorcs sem alunos, artistas sem trabalho para os quais esse
mísero tributo constituía o rendimento mais substancia!!2
Os clientes que exerciam uma profissão acrcsccntavam-no
a seu salário, c para nao chegarem atrasados à oficina ou à
loja corriam a buscá-lo no começo do dia3. Como o poder
de um magnata se media pela importância da clientela, ele
mancharia sua reputação se preferisse o conforto do sono
tardio à multidão ruidosa de suas recepções. Na província
— na distante Bilbilis, por exemplo —, ainda seria passável.
Mas cm Roma ele não ousaria esquivar-se às queixas de um,
às exigências dc outro, às saudações de todos4. De resto, um
protocolo minucioso e severo continha e organizava essa
afluência. Primeiro, se os clientes eram livres para seguir a
pé e não de liteira, só podiam apresentar-se decentemente
dc toga; essa obrigação estrita pesava tanto em seu orçamen­
to que logo devoraria suas espórtulas se o patrão não tivesse
adquirido o hábito dc oferccer-lhcs, cm alguma ocasião sole­
ne, uma toga sobrcssalente, além das cinco ou seis libras de
prata que gastavam com os presentes de início dc anos. A
seguir, tinham de esperar pacicntcmcnte sua vez, determi­
nada não pela ordem de chegada, e sim pela posição social:
os pretores antes dos tribunos, os cavaleiros antes dos cida­
dãos comuns, os ingênuos antes dos libertos6. Por fim, de­
viam tomar cuidado para nao chamar o patrão pelo nome,
mas de senhor (dominus), sem o que corriam o risco de sair
de mãos abanando7.
Assim, todas as manhas Roma despertava no vaivém das
habituais cortesias. Para aumentar as espórtulas os mais hu­
mildes multiplicavam as visitas. Os mais ricos não estavam
dispensados dc fazê-las depois de recebê-las. Pois, por mais
que um romano tivesse subido na hierarquia local, sempre
conhecia alguém de posição mais elevada merecedor dc uma
homenagem, c para dizer a verdade só o imperador não ti­
nha ninguém acima dele. Pelo menos, as mulheres estavam
excluídas desse turbilhão de salamaleques. Em geral, elas se
abstinham tanto dc cortejar quanto dc ser cortejadas. No sé­
culo II d.C. só fugiam a essa regra as viúvas desejosas de apre­
sentar queixas ou pedidos ao patrão do falecido esposo, e as
mulheres de alguns pedintes ávidos, que, para obter remu-

210
ncraçõcs suplementares por meio dc um zelo ostensivo, se
faziam acompanhar pomposamente pelas esposas, que se des­
locavam dc liteira. Juvenal não poupou sarcasmos aos exa­
geros interesseiros: “E eis que um arrasta atrás dc si a mulher
enferma ou grávida. Outro reclama para a ausente, mostrando
a liteira vazia c fechada: ‘É Gala!’ ‘Nao tens confiança!’...
‘Gala, mostra o rosto!* ‘Ora, não a perturbes: ela está dor­
mindo*. . . *’8 O subterfúgio c tão grosseiro que vale pergun­
tar sc Juvenal não o inventou para fazer rir. Contudo,
verdadeiro ou fictício, ele permite entrever a repugnância das
matronas em seguir os romanos no circuito matinal dc visi­
tas da clientela.

Comerciantes e trabalhadores braçais

Encerradas as visitas, todos iam cuidar de suas ocupações.


Certamente a Roma imperial, onde residiam a cone, os se­
nadores, os funcionários de uma administração tentacular,
era a cidade de quem “vive de rendas’’, como disse Ros­
tovtsev9. Viviam de rendas os grandes proprietários cuja for­
tuna territorial localizada nas províncias lhes valera o ingresso
na cúria e impusera a residência na Urbsl0\ viviam de ren­
das os escribas pertencentes à corte dos diferentes magistra­
dos, cujos cargos eram comprados como os da monarquia
no Ancien Regime11; viviam de rendas os administradores
e acionistas das sociedades publicanas, cujas submissões eram
garantidas por seus capitais e cujos lucros lhes engordavam
os proventos; viviam de rendas os inumeráveis funcionários
que pontualmcnte retribuídos pelo fisco imprimiam a todas
as partes do governo do Império a marca do dono; viviam
dc rendas, enfim, os cento e cinqüenta mil proletários que
a anona sustentava à custa do Estado e que, desempregados
permanentes e satisfeitos, limitavam seus esforços a num
dia por mês receber os víveres que conquistaram o direito
de ter até a morte. Ao mesmo tempo, contudo, havia um
aspecto de Roma muito diverso. A presença da gente que

211
vivia de rendas no meio da Urbs, assalariada ou assistida, nao
lhe tirara o caráter de metrópole econômica. A supremacia
política, o gigantesco desenvolvimento urbano condenavam-
na a uma intensa atividade, nao só de especulação c tráfico,
como de manipulações variadas e trabalho efetivo. Era para
Roma que afluíam as estradas da Itália e as linhas de navega­
ção do Mediterrâneo, das quais Roma, rainha do universo,
absorvia o melhor da produção. Arrogara-se o direito de fi­
nanciar e dirigir suas forças. Rcservava-sc a prerrogativa de
consumir suas riquezas. Para manter esse domínio devia evi­
dentemente esforçar-se sem cessar.
A desesperadora amplitude dessa exploração sistemática
c atestada pelos próprios romanos e transparece nas ruínas
de alguns dos conjuntos monumentais. Petrônio a descreve
no início do poema que anexou a seu romance: “O mundo
inteiro estava nas mãos dos romanos vitoriosos. Possuíam
o mar e as terras e o duplo campo das estrelas, e não esta­
vam satisfeitos. Seus navios pesados de cargas singravam as
águas. Se havia ao longe um golfo escondido, um continen­
te desconhecido, quem pretendesse exportar seu ouro fulvo
era inimigo, c os destinos preparavam guerras assassinas pe­
la conquista de novos tesouros. As alegrias vulgarizadas ja
não tinham encanto, nem os prazeres desgastados pelos jú­
bilos da plebe. O simples soldado acariciava os cantôes de
Corinto... Aqui os númidas e lá os seres teciam para o ro­
mano tosões novos, c para ele as tribos árabes despojaram
suas estepes”12. As mesmas imagens que perto de Roma flu­
tuam ainda no que sobrou do foro das corporações em Óstia.
Trata-se de uma vasta esplanada de mais dc cem metros
de comprimento e oitenta dc largura. No meio, ergue-se um
templo que tive a oportunidade de identificar como o da
"Anona Augusta”, ou seja, da provisão imperial diviniza-
da13. Do lado oposto á entrada do santuário há um pórtico
sustentado por colunas de cipollino, contíguo ao teatro e a
cuja sombra os espectadores outrora passeavam. Dos outros
três lados, fechados por um muro de fundo, estendia-se uma
dupla colunata dc tijolos revestidos dc estuque, e para essa
colunata abria-se uma fileira de sessenta e um pequenos cô­
modos, separados entre si por uma base de alvenaria sobre

212
a qual se erguia uma parede de madeira que pelo aspecto uni­
forme c dimensões semelhantes (4x4 metros aproximadamen­
te) dcstinavam-sc a usos idênticos. Estes nos revelam a serie
dc mosaicos, cubos negros sobre fundo branco, que atapeta-
va a colunata diante da porta de cada cômodo. Com figuras
c dizeres, os mosaicos nos intruduzem nas salas correspon­
dentes c uma a uma as atribuem às diferentes associações pro­
fissionais que ali se instalaram com a permissão das
autoridades romanas. Na extremidade oriental, reconheceu-
se a statio dos calafetadores e cordociros; no cômodo contí­
guo, a dos peletciros. Em seguida, vinham os negociantes de
madeiras, cujo nome se insere num cartucho em forma de
cauda dc andorinha; depois, os mensoresfrumentarii, medi­
dores dc trigo, um deles sendo representado no exercício de
sua função: um joelho no chão, ocupado com sua rasoura,
ou rutellum, em nivelar exatamente o conteúdo de um mo-
dins, ou alqueire regulamentar. Na extremidade oposta,
alojava-sc a statio dos sacomarii, ou pesadores, cujo papel com­
pletava o dos mensores; e como ali se descobriu o encanta­
dor altar esculpido que hoje se encontra no Museu das Termas
e que em 124 d.C. dedicaram ao gênio de seu ofício, nào res­
ta dúvida dc que ela e suas semelhantes se destinavam ao culto.
Todas as outras pertenciam a corporações de armadores (na-
victdarii), que só sc distinguem entre si graças à menção da
cidade dc origem: por exemplo, os armadores dc Alexandria:
os de Narbona e Aries, na Gália; os de Cagliari e Porto Tor­
res, na Sardenha; os dos portos célebres ou esquecidos da Áfri­
ca do Norte; Cartago, cuja frota mercante o mosaicista
esquematizou; Hippo-Diarrhytus, atual Bizerta; Curbis, hoie
Courba, ao norte do golfo de Hammamct; Missua, Sidi-
Daoud, a sudoeste do cabo Bon; Gummi, Bordj-Cedria, no
golfo de Cartago; Musluvium, hoje Sidi-Rekane, entre Zia-
ma c Bougie, cujas armas um tanto complicadas e nào obs­
tante claramente instrutivas comportam peixes, um cupido
cavalgando um delfim c duas cabeças de mulher, uma algo
apagada c a outra coroada de espigas e próxima à foice das
cegadoras; Sabratha, enfim, o porto da Sirtcs, por onde se
exportava o marfim do Fczzan, que é simbolizado por um
elefante sob o nome dc seus naviadares. Por incompleta que
seja, receio que essa enumeração pareça enfadonha. No en­

213
tanto, sc cm vez dc percorrer no papel a lista dessas localida­
des pode-se decifrá-las em Óstia, caminhar por sobre esses
quadros ingênuos cm que cada uma das corporações quis,
com um traço furtivo, definir sua ocupação e materializar
a lembrança de sua pátria longínqua, e-sc tomado de admi­
ração c medo ante a realidade grandiosa e temível que essas
modestas insígnias traduzem. E bem verdade que elas nos
explicam a destinação das salas que precedem, pequenas ca­
pelas de confrarias corporativas, ou, caso sc prefira, simples
repositórios onde continua a passar a procissão ideal das guil-
das anonárias ao redor de sua deusa e a brilhar a chama de
sua religião cívica. Mas eis que, além disso, a esplanada que
outrora adornavam encerra entre suas linhas toda a exten­
são dos mares e das terras compreendidas entre o istmo de
Suez e as Colunas de Hércules. Temos a impressão de que
ali se apinha de repente a multidão dos povos que, afastados
uns dos outros, estranhos uns aos outros, acorriam à força
dos remos para responder às exigências de Roma, e diriamos
que em torno desse espaço inolvidável gravitam sempre a mas­
sa dos bens de que Roma se apoderava por toda parte e o
cortejo das nações piamente dóceis que ela consagrara à sua
felicidade14.
De fato, para Roma afluíam através dc seus três portos:
Portus, Óstia e Emporium, sob o Aventino, telhas e tijolos,
legumes, frutas e vinhos da Itália; trigo do Egito e da África;
azeite da Espanha; carne de caça, madeira e lã das Gálias; ali­
mentos salgados da Bética; tâmaras dos oásis; mármores da
Toscana, da Grécia e da Numidia; pórfiros do deserto ára­
be; chumbo, prata c cobre da península Ibérica; marfim das
Sirtcs e das Mauritânias; ouro da Dalmácia e da Dácia; esta­
nho das Cassiteridas e âmbar do Báltico; papyri do vale do
Nilo; vidros da Fenícia e da Síria; tecidos do Oriente; inccn-
sos da Arábia; especiarias, corais e gemas da índia; sedas do
Extremo Oriente15.
Na Cidade e em seus arredores estendiam-se a perder de
vista os galpões dos horrea, onde se enchia a barriga da Urbs
e se acumulavam os penhores de seu bem-estar e de seu lu­
xo: os horrea do Portus de Trajano, cuja importância foi res­
saltada pelas escavações realizadas em 1923 pelo falecido
príncipe Giovanni Torlonia; os horrea de Óstia, que na épo­

214
ca de Adriano cobriam apenas um terço dc sua extensão, já
sc estendem numa superfície de cerca de dez hectares; os hor­
rea de Roma, cuja exploração sempre foi incompleta e cujo
número e amplitude sao relatados pelos textos. Alguns eram
especializados no entreposto de um só produto, como os hor­
rea candelaria, cheios dc tochas, velas e sebo; os horrea char­
taria, para os rolos dc papiro e os cadernos de pergaminho,
no Esquilino; e, junto ao Foro, os horrea piperataria, onde
sc empilhavam as cargas de pimenta, gengibre c especiarias
fornecidas pelos árabes. A maioria deles, ao contrário, espé­
cie dc armazéns gerais onde se amontoavam os produtos mais
heteróelitos, só sc diferenciavam pelos locais que ocupavam
e pelo nome que herdaram dos primeiros proprietários e o
conservaram, ainda que depois tivessem passado para o do­
mínio dos Césares: os horrea Nervae, na Via Latina; os hor­
rea Ummidiana, no Avcntino; os horrea Agrippiniana, entre
o Clivus Victoriae c o Vicus Tuscus, nas proximidades do
Foro, e todos aqueles que se reuniram entre o Aventino e
o Tibre; os horrea Seiana, os horrea Lolliana, e os mais con­
sideráveis de todos, os horrea Galbae, cuja fundação remon­
tava ao final do século II a.C. e que, ampliados sob o Império,
dispunham numa superfície de mais de três hectares e ao re­
dor dc três vastos pátios intermediários as fileiras de taber-
nae, onde se estocavam nao apenas trigo, vinho e azeite, mas
toda espécie de material e alimento, se nos reportamos às men­
ções que a epigrafia nos transmitiu dos comerciantes aos quais
esses “celeiros” forneceram asilo: aqui, uma mercadora de
peixes, piscatrix; lá, um marmoreiro, marmorarius; mais adian­
te, um negociante de saios e mantos, sagarius16.
E claro que com tal quantidade de entrepostos — aos
quais, aliás, nos primeiros anos do século II d.C. se acrescen­
taram as aléias centrais do mercado de Trajano17 — a Roma
dos Antoninos, onde se confundiam o banco e a Bolsa da
Antiguidade, era também sua principal praça de comércio.
E, sc não conheceu o desenvolvimento do que chamamos
a grande indústria, ao lado do estado-maior dos financistas
c grandes comerciantes mobilizou todo um exército de fun­
cionários cm seus gabinetes, de varejistas em suas lojas e de
operários nos canteiros exigidos pela manutenção dos mo­
numentos e moradas, ao redor dos cais onde se descarrega­

2/5
vam, armazenavam e escoavam as colossais importações; por
fim, nas oficinas onde sofriam a última transformação antes
de ser entregues aos consumidores tanto pesadas matérias-
primas quanto as raras c delicadas mercadorias que seus sú­
ditos e longínquos clientes de seus súditos, fora c dentro das
fronteiras imperiais, forneciam de todas as partes.
Vejamos as listas das corporações de Roma e Óstia, su­
búrbio de Roma, como Waltzing as apresenta no começo
do volume IV de sua magistral obra. Sao mais de cento c cin­
quenta, relacionadas c bem definidas, e nao é preciso mais
para atestar o poderio dc um movimento de negócios para
o qual colaboram, no seio de um mesmo grupo, a aristocra­
cia dos patrões e a plebe dos assalariados, sem que se possa
distinguir em cada um deles o comerciante do financista, o
negociante do industrial, o revendedor do fabricante. Entre
a maioria dos atacadistas, os magnarii do trigo, do vinho,
do azeite; entre os armadores, domini navinmt que constrocm,
equipam, mantêm frotas inteiras; entre os engenheiros e res­
tauradores de navios,[abri navales e curatores navium, é im­
possível distinguir o comerciante do capitalista. Por outro
lado, o setor da alimentação, cedendo ao impulso dc seu de­
senvolvimento, fracionou-sc numa multiplicidade de espe­
cialidades heteróelitas. Umas eram representadas por varejistas
que aparentemente tinham o único trabalho de distribuir as
mercadorias, comerciantes de tremoços (lupinarii), dc frutas
(fruetuarii), de melões (peponarii). Porém, outras se compu­
nham de pessoas que se esforçaram por produzir ou conquis­
tar o que ofereciam: os olitores, ao mesmo tempo vendedores
de legumes e horticultores; os piscatores, pescadores e comer­
ciantes de peixes; e o maior número delas exigia mais ou me­
nos o exercício de uma verdadeira profissão. Os vinarii
ambulantes iam de vicus em vicus oferecendo produtos com
toda uma carga dc barricas e ânforas cm seus carros. Os ta-
berneiros (thermopolae) ofereciam cm crateras sábias doses
de água e vinho que colocavam à temperatura desejada. Os
baixos-relcvos que decoram a famosa tumba de Eurisaces mos­
tram que numa grande padaria o pistor, ou padeiro, se des­
dobrava em moleiro (molinarins). Os pastelciros (siliginarii),
os doceiros (pastillarii), os estalajadeiros (cattpones) lotavam
os balcões e as mesas graças à reputação dc cuidados e habili-

216
dadc que adquiriram com suas receitas. Sc passamos ao co­
mércio dc luxo, percebemos o mínimo de laboriosa tecnici-
dade que reclamava por toda parte: períumistas c droguistas
(pigmentarii), que enalteciam as misturas; vidraceiros (spcctt-
larii), que poliam os espelhos pendurados cm sua fachada;
floristas (rosarii, violarii), que compunham ao gosto dos tran­
seuntes os buquês e trançavam as coroas encontradas nos co-
ronarii; cborários (cborarii), que conheciam a arte de modelar
as presas enviadas pelos caçadores africanos; comerciantes de
anéis (anitlarii) e dc pérolas (margaritarii), como batedores
dc ouro (brattiarii inauratores) c ourives (aitrifices). Quanto
às profissões ligadas ao vestuário, não havia uma em que se
pudesse separar o comércio da fabricação. Pensemos, por
exemplo, nos lintearii, que ofereciam cambraias, nos costu­
reiros dc túnicas ou de saios (sagarii), ou ainda nos
cordoeiros (siitores), nos sapateiros especialistas cm calçados
para homens (caligarii) c nos sapateiros para calçados de mu­
lheres (fabri solarii baxiarii). Sobretudo, lembremo-nos de to­
das as indústrias que na Roma imperial o comércio de
vestimentas alimentava: indústrias vulgares dos lavadores (fon-
tani), pisociros (fullones), tintureiros (tinctores, offectores, in-
fectorcs); indústrias refinadas dos bordadores (pltimarii) e dos
tecelões de seda (serarii), que misturavam algodão aos teci­
dos de seda, que desde o final do reinado de Cláudio a Chi­
na regularmente lhes enviava com as monções.
Mas sobretudo abundavam cm Roma as corporações cu­
jos membros produziam o que vendiam ao público e aque­
las que só tinham serviços braçais (operae) a oferecer. Entre
as primeiras estavam os curtidores de peles (corarii), os pe-
lciros (pelliones), os cordoeiros (restiones), os calafetadorcs (stup-
patores), os marceneiros e os ebanistas (citrarii), os metalúrgicos
do bronze e do ferro (fabri aerarii, ferrarii). Na segunda ca­
tegoria alinhavam-se as corporações da construção: emprei­
teiros dc demolição (stibnitores), pedreiros (stnictoresf car­
pinteiros (tignarii); as dos transportes que garantiam deslo­
camentos terrestres — muletciros (mnlionesf condutores de
bestas de carga (iumentariif almocreves (catabolensesf carre-
teiros (vecttirarii), cocheiros (cisiarii) e aquáticos — barquei­
ros (lentmculariif canoeiros (lintrarii), bateleiros (scaphariif
balseiros (catídicarii), sirgadores (belciarii) e carregadores de

217
lastro (saburrarii); e, para concluir, as corporações encarre­
gadas do policiamento e da manutenção dos cais: os guar­
diães (custodiarii), os carregadores (baiuli, gendi), os estivadores
(saccarii) Evidentemente ao virar a última página do catálo­
go interminável estamos convencidos de que a Roma dos An-
toninos abrigava mais trabalhadores do que gente que vivia
de rendas18; o barulho de que se queixa a sátira da época e
que do começo ao fim do ano ensurdecia a Cidade era feito
da cadência das ferramentas, do atropelo dos esforços, dos
xingamentos e bufidos19.
Todavia, os trabalhadores romanos se opõem por três
traços essenciais aos das grandes cidades contemporâneas.
Primeiro, à exceção talvez do principal bairro das do­
cas, nas proximidades do Tibre e do Aventino, nao se aglo­
meravam em populações densas, compactas, exclusivas.
Estavam espalhados por toda parte, porém em lugar nenhum
constituíam uma cidade dentro da cidade. Ao invés de
concentrar-se num gigantesco bazar ou numa enorme fábri­
ca, dividiam-se numa sequência indefinida e interrompida de
armazéns, oficinas e equipes, que curiosamente faziam al­
ternar-se na Cidade os bazares com as mansões e os prédios
de aluguel20.
Além disso, esses enxames ruidosos são quase exclusiva­
mente masculinos. O feminismo da época dos Antoninos foi
um fenômeno de elite, um artigo de consumo extraordiná­
rio e aristocrático. As grandes damas podiam querer emular
os homens, mas nao faziam escola entre as mulheres da ple­
be, que não sc davam ao trabalho de lutar pela própria exis­
tência. Elas mesmas se dedicavam à música, às letras, às
ciências, ao direito, à filosofia, como também ao esporte, para
consumir seus lazeres21; e se considerariam aviltadas rebai-
xando-sc ao nível de uma profissão. Entre os mil epitáfios
que os editores do Corpus inscriptionum latinarum da Urbs
reuniram encontrei apenas uma mulher provida de um se­
cretariado (libraria)22, uma copista (amanuensis)23, uma este-
nógrafa (notaria)24, duas pedagogas25 contra dezoito
pedagogos do sexo forte26, quatro médicas27 contra cinqüen­
ta e um mediei28. Aliás, para a imensa maioria das romanas
o estado civil devia comportar a menção cada vez menos fa
miliar ao nosso: sem profissão. Pois na epigrafia urbana dc

218
Império vemo-las preencher normalmentc funções às quais os
homens são inadequados pela própria natureza — costureira
(sarcinatrix)29, cabeleireira (lonstrix50, ornatrix”), parteira (obs-
tetrix)'2 e nutriz (nutrix)'3; ou conformar-se dc quando em
quando com ocupações nas quais sempre foram mais qualifi­
cadas ou hábeis. Na verdade, contei apenas uma peixeira (pis-
catrix}34, uma verdureira (negotiatrix leguminaria)35, uma
modista (vestifica)56 contra vinte alfaiates ou vestifici37, duas ne­
gociantes de Ias (lanipcndae)™ e duas dc sedas (sericariae)39. Não
há por que nos surpreendermos com a ausência dc joalheiras,
pois por um lado era insensível a demarcação entre os argenta-
rii que vendiam jóias c os argentarii que se encarregavam dos
bancos e do câmbio, c por outro lado as operações bancárias
foram proibidas às mulheres pela mesma jurisprudência pre-
toriana que lhes vetara intentar uma ação na justiça em nome
dc outrem40. Porém, é seguramente e característico que as mu­
lheres nunca figuram nas corporações que os imperadores se
empenharam em estimular: por exemplo, equipagem naval na
época de Cláudio41, a fabricação de pão sob Trajano42. Não
encontrei nenhuma pistrix entre os pistores da Cidade43; tam­
pouco há nomes de mulheres nas listas de navicularii que che­
garam até nós. Se as matronas cederam às admoestações de
Cláudio, que chegou a prometer o ius trium liberorum — os
privilégios das mães de três filhos — à mulher rica, celibatária
ou casada sem progênie que consentisse em equipar navios car­
gueiros à sua própria custa, sempre foi nos bastidores, por in­
termédio de um testa-de-ferro, procurator ingênuo ou institor
servil; e nada prova melhor quanto a romana gostava de ficar
cm casa, protegida, longe da agitação do Foro e da excitação
dos negócios, malgrado a emancipação moral e civil que usu­
fruiu sob o Império.
Na verdade, estava tao mergulhada no famiente que pa­
rece não ter frequentado muito as lojas nem como cliente
nem como empregada. Sem dúvida, era o proletário, não sua
esposa, que no dia marcado ia bater na porta de Minucius
designada em seu cartão, ou melhor, em sua tabuinha de de­
pendente da anona. Num baixo-relevo do Museu dos Con­
servadores, que muito provavelmente comemora a gene­
rosidade dos congiários de Adriano, o imperador, de pé
sobre um estrado, anuncia as prodigalidades ao povo roma­

219
no, simbolizado pela presença de três cidadãos de idades di-
ferentes: um menino, um jovem, um homem maduro, sem
maior intervenção feminina que havia na realidade das dis­
tribuições do alimento imperial44. E as mulheres também cs-
tão ausentes da maioria das pinturas encontradas cm
Herculano e Pompéia e nos baixos-relevos funerários cm que
o escultor representou cenas de rua e retratou a agitação das
vendas e dos balcões.
As mulheres só comparecem aos quadros quando sua pre­
sença é de certo modo obrigatória e preestabeleeida: na ofi­
cina do pisoeiro que entrega tecidos a uma matrona45; na
oficina do marmorista (mamiorarins), ao qual uma viúva en­
comenda o túmulo do esposo falecido46; na oficina do sapa­
teiro que lhe fornece calçados47; por fim, na oficina dos
costureiros e nas lojas de novidades que a romana da época
dc Trajano freqüentava, ao que parece, com tanto zelo e as­
siduidade como hoje a parisiense frequenta o Printcmps ou
as Galeries Lafayette; ela faz as compras ora acompanhada
pelo marido, que fica sentado num banco a seu lado, con­
forme mostram os baixos-relevos da Galeria degli Uffizi, em
Florcnça48, ora com uma amiga ou ainda todo um cortejo
de amigas, como revelam alguns afrescos da Campânia4.
Ao contrário, nas Saepta jitlia, transformadas pela letar­
gia dos comícios num passeio em que os bronzistas, os joa­
lheiros e os antiquários se esforçam por convencer o aficio­
nado, circulam e negociam apenas homens: o colecionador
Eros, o maníaco Mamurra, o velho Euctus49*. Além disso,
na padaria50, no açougue51, na taberna52, só há vendedores
e compradores. Nas imagens que os pompeanos nos deixa­
ram de suas praças públicas, mulheres passam adornadas, ora
solitárias, ora, como na famosa pintura da casa dita dc Lívia,
no Palatino, conduzindo uma criança53; é evidente que, de
mãos vazias, sem carregar um cesto, estão ociosas e passeiam
sem preocupação. Devemos admitir: na Roma imperial as
mulheres não participavam dos negócios externos mais do
que hoje participam as mulheres das grandes cidades islâmi­
cas, e cabia aos romanos, como hoje aos burgueses muçul­
manos, fazer compras e abastecer a casa55*.
Contudo, se essa ociosidade das romanas envolve a Ci­
dade numa atmosfera de exotismo oriental, as condições em

220
que os romanos trabalhavam nos levam aos países mais evo­
luídos do Ocidente contemporâneo. Pois eles também eram
conscientes e organizados, c suas tareias nao os assoberba­
vam nem os absorviam. Eles aprenderam a enquadrar o tra­
balho cm limites tanto mais estritamente observados quanto
o sistema de suas corporações, coordenado pela legislação de
Augusto e pelos editos dc seus sucessores, permitia a cada
profissão estabelecer regras válidas para todos os membros.
Já pela vontade da natureza c pelo funcionamento do calen­
dário solar, no inverno eram impedidos dc estender a jorna­
da dc trabalho além dc oito dc nossas horas54. Não só e
provável que logo trataram dc não alongá-la na primavera
e no verao, como ainda, a meu ver, conseguiram restringi-la
ainda mais no começo do século II d.C. Seria injusto que os
trabalhadores dos transportes, que a lei obrigava a usar seus
carros só à noite, suportassem uma tarefa noturna mais pe­
sada que a de seus colegas do dia, e de fato a aurora estava
longe de surgir quando os convivas dc Trimalcião, saindo
da ceia copiosa que ele lhes oferecera e incapazes de encon­
trar o caminho de casa numa escuridão ampliada pela em­
briaguez, de repente foram conduzidos no rumo certo pelos
carrcteiros do anfitrião que retornava à frente de seu com­
boio, evidentemente depois de cumprir suas tarefas55. Ade­
mais, temos vários indícios de que nessa mesma época as
oficinas, as lojas e as vendas — abertas, é verdade, ao ama­
nhecer — fechavam bem antes do pór-do-sol. Quando, por
exemplo, um parasita famélico, ridiculamente adiantado com
relação à hora de comer, vai à casa de Marcial mendigar um
convite, ainda não passou a quinta hora e os escravos já se
dirigem ao banho, tendo concluído seus afazeres56.
Os artesãos livres certamente não estavam em situação
pior; e, para dizer a verdade, se colocamos de lado determi­
nadas profissões — como os taberneiros, os “antiquários",
que, desejosos de tentar os frequentadores das Saepta Julia
até o último instante, só fechavam à undécima hora561, ou
os barbeiros (tonsores), cuja atividade, implicando também
os lazeres dc sua clientela, durava até a oitava hora57 —, a
quase totalidade dos trabalhadores romanos suspendiam seus
afazeres na sexta ou na sétima hora, sem dúvida na sexta du­
rante o verão e na sétima durante o inverno:

221
'In quitam varios extendit Roma laborcs
Sexta quies lassis, septima finis crit”’8.

Sc, como se deve, correspondemos a quarenta e cinco


de nossos minutos a hora romana do solstício de inverno
c a setenta e cinco do solstício de verão59, esses dados levam
o tempo útil do dia romano a cerca de sete de nossas horas
no verao e menos de seis de nossas horas no inverno.
Verão ou inverno, os trabalhadores romanos usufruíam
de sua liberdade durante a totalidade ou a melhor parte da
tarde, e nossa semana de quarenta horas, com sua repartição
diferente, talvez não lhes agradasse tanto. Seus hábitos cam­
poneses, primeiro, depois a idéia de sua incomparável supe­
rioridade, preveniam-nos contra a fadiga do trabalho inces­
sante e as tarefas extenuantes, tanto que na cpoca de Marcial
os comerciantes c lojistas, os artesãos e os operários do povo
rei, fortalecidos pela vitalidade das associações profissionais,
chegaram a uma organização de trabalho que todos os dias,
durante dezessete ou dezoito de nossas vinte e quatro horas,
proporcionava-lhes a satisfação de viver em repouso e, se pre­
ferirmos, os lazeres daqueles que viviam de rendas.

A justiça e a política

Ao que tudo indica os intelectuais estavam menos orga­


nizados que os negociantes e os operários. Não falo dos tra­
balhadores incansáveis, heróis e vítimas de sua bulimia de
erudição, cujo modelo é personificado por Plínio, o Velho.
Sabemos que, unicamente por prazer, ele penava sobre os
livros cerca de vinte horas por dia, começava a trabalhar à
luz de velas, mesmo em agosto, e algumas vezes a partir da
uma da madrugada. Depois de prestar homenagens à corte,
continuava sem interrupção com prodigioso empenho e só
se permitia uma pausa por volta do meio-dia, o tempo de
fazer uma refeição ligeira, de estender-se ao sol enquanto um
secretário prosseguia em voz alta, perto dele, a última leitu­
ra da manhã, e de tomar um banho rápido e frio, seguido

222
dc uma curta scsta c dc uma rápida colação. Em seguida, in­
fatigável e apaixonado, Plínio retomava o trabalho ate a ho­
ra da ceia, como uma segunda jornada dc estudo, obcecada,
intensa, ininterrupta60. Ele c uma exceção inédita, o caso
único do enciclopedista dos romanos, possuído pelo demô­
nio do saber até o sacrifício da própria vida, c, aliás, as eru­
ditas pesquisas a que se dedicou dc corpo e alma, plenamcntc
livres e desinteressadas, mereciam cm latim o belo nome de
lazer. Assim, nao poderiamos tomá-lo como padrão da ati­
vidade normal de seus contemporâneos. Contudo, se nem
dc longe podiam comparar-se a Plínio, o Velho, os “burgue­
ses” instruídos, que na Roma imperial exerciam o que hoje
chamaríamos de profissões liberais, geralmente eram asso­
berbados pelos deveres da vida pública. Por certo, faltam-
nos informações sobre a assiduidade exigida dos officiates que
ocupavam os gabinetes da administração, e seríamos incapa­
zes de avaliar com bases precisas o rendimento dos escrinia,
ou ministérios imperiais. No entanto, encontramos na lite­
ratura suficientes detalhes sugestivos para sentir o peso das
obrigações a que estava sujeito o mundo judiciário em parti­
cular e a carga mais pesada ainda que em determinados pe­
ríodos do ano atormentava os senadores preocupados em
cumprir conscientemente o ilustre mandato.
Uma preciosa indicação de Marcial revela que nos dias
fastos os tribunais ordinários atuavam sem cessar desde o ama­
nhecer até o final da quarta hora61, o que à primeira vista
limita as audiências a três de nossas horas no inverno e as
prolonga por cinco horas seguidas no verão. Contudo, exa­
minando mais de peno, o texto não excluía a simples sus­
pensão, e outros depoimentos nos obrigam a pensar que esta
podia seguir-se de retomadas. Já nas Doze Tábuas o proces­
so iniciado antes do meio-dia podia prosseguir até o pòr-do-
sol, se as duas partes estivessem presentes62. Na época de
Marcial era comum o advogado de uma das panes reclamar
e obter dos juizes pelo menos seis clepsidras só para si63. Co­
mo podemos deduzir de uma passagem de Plínio, o Jovem,
que cada uma dessas clepsidras — cuja igualdade de fluxo pos­
tula a relação com o horário dos equinócios44 — devia
escoar-se em cerca de vinte de nossos minutos, resulta de tal
hábito que uma só defesa preenchia mais ou menos o tempo

223
de uma sessão no inverno c que pelo menos outra sessão,
com a réplica e o desfile das testemunhas, era indispensável
para concluir-sc o processo. Dc resto, havia advogados que
nao queriam aceitar seis clepsidras. Por exemplo, o Caecilia-
nus tagarela contra o qual Marcial disparou um epigrama:
“Exigias aos brados sete clepsidras para ti, e o juiz, Caecilia-
nus, tas concedeu, embora a contragosto. E eis que falas sem
parar, e meio inclinado para trás engoles a água morna que
te trouxeram em frascos de vidro! Para saciar tua facúndia
c tua sede, bebe, pois, na clcpsidra, Caecilianus”65. Se esse
defensor incontinenti tivesse acatado tão divertido conselho,
vinte minutos seriam subtraídos às duas horas c meia que
o juiz inadvertidamente lhe concedera. Porém, foram ganhos
apenas na imaginação do poeta; ao contrário, por pouco que
a parte contrária solicitasse favor semelhante, o processo que
Marcial relembra — ou inventa — terá durado no mínimo
cinco de nossas horas, interrompidas ou não pelas suspen­
sões da sessão. Temos razão dc admirar a profundidade e o
requinte do senso jurídico dos romanos que ensinaram o di­
reito ao mundo. Contudo, não escondamos que esse belo gê­
nio era atormentado por um demônio maligno e que, como
os normandos, juristas e leguleios, eles nunca deixaram de
se afligir com seu humor chicaneiro. Este brilhava já nas as­
tuciosas defesas de Cícero. Sob o Império era fatal que inva­
disse a Cidade de onde os césares haviam proscrito a política.
De reinado cm reinado, foi uma maré que subia sem parar,
jogando na praça pública mais casos do que os homens po­
diam resolver. Para fazer frente ao acúmulo dos litígios, já
no ano 2 a.C. Augusto precisou dedicar-lhes o foro que cons­
truíra e que leva seu nome66. Setenta c cinco anos depois,
o acúmulo se repetiu, e Vespasiano sc perguntava como lu­
tar contra o afluxo de causas tão numerosas que “mal lhes
basta a vida dos advogados”67. Na Roma dc inícios do sé­
culo II o eco dos processos repercutia por toda pane no Fo­
ro, no tribunal do pretor urbano, perto do piíteal de
Libon68, no tribunal do pretor peregrino, entre o puteal de
Curtius e a sala de Marsias69, na basílica Júlia, onde se reu­
niam os centúnviros; e a justiça repressiva trovejava ao mes­
mo tempo no foro de Augusto, onde o prefeito da Cidade
exercia sua jurisdição70; na caserna dos Castra practoria, on-

224
dc o prefeito do prctório pronunciava suas sentenças; na cú­
ria, onde os senadores golpeavam seus pares que haviam pre­
varicado ou desagradado; no Palatino, onde o imperador
recebia os apelos do universo nesse hcmiciclo dc sua basílica
privada que os séculos respeitaram.
Durante duzentos e trinta dias, para as instâncias civis71,
em todo o tempo para os processos criminais, a Urbs se con­
sumia com a febre judiciária que se apoderava nào só dos
litigantes ou dos acusados, mas também de seus advogados
e da multidão de curiosos imobilizados durante horas à vol­
ta dos tribunais, pela avidez do escândalo ou pelo gosto das
controvérsias oratórias.
Tais audiências não eram uma sinecura para ninguém.
Exauriam a todos: litigantes e testemunhas, juizes e advoga­
dos, sem contar os espectadores. Enquanto funciona a juris­
dição dos ccntúnviros, entremos na basílica Júlia, onde ela
se domiciliara72. Da Via Sacra que se estende ao longo des­
se monumento iniciado por Júlio César, concluído e depois
reconstruído por Augusto, subimos sete degraus até o pórti­
co de mármore que emoldurava73. Depois, mais dois de­
graus, e entramos na vasta sala que trinta e seis pilastras de
tijolos revestidas de mármore dividiam em três naves, sendo
que a do meio, a maior, tinha dezoito metros de largura por
oitenta e dois de comprimento. Nas tribunas que a domina­
vam, no primeiro andar, nas alas laterais refugiaram-se os es­
pectadores, homens e mulheres, que não tiveram a sorte de
achar lugar próximo à “corte”, em contato imediato com
as partes. Os ccntúnviros que a compunham não eram cem,
como o nome indicaria, e sim cento e oitenta, repartidos em
quatro câmaras distintas74. Segundo as causas que lhes eram
submetidas, reuniam-se separadamente ou em conjunto. Neste
último caso, presidia-os o pretor hastarins em pessoa, insta­
lado num estrado improvisado onde, de uma parte a outra
dc sua cadeira curul, sentavam-se seus cento e oitenta asses­
sores. A seus pés, nos bancos, os litigantes, as testemunhas,
os defensores, os amigos. Era a “coroa”, hoje diriamos “a
barra”. Mais adiante, em pé, o povo. Se as quatro seções ope­
ravam isoladamente, cada uma delas tinha quarenta e cinco
assessores presididos por um decênviro, e o mesmo disposi­
tivo se repetia quatro vezes, separado do vizinho por corti-

225
nas ou biombos. Numa e noutra eventualidade, magistrados barulho, num burburinho permanente, sob as rajadas dos
e público sc apinhavam, e era numa atmosfera sufocante aplausos dc encomenda.
sc desenrolavam os debates. Para cúmulo do infortúnio, a Plínio, o Jovem, se vangloria dc ter estabelecido seu re­
acústica era lamentável, o que obrigava os advogados a re- I nome pronunciando, perante os centúnviros, os mais lon­
dobrar os esforços, os juizes a redobrar a atenção, os espec- I gos, bem como os melhores de seus discursos7*. A custa de
tadores a redobrar a paciência. Muitas vezes a voz tonitruante que tensão da mente e do corpo! Recordando no fim da car­
de um dos defensores, enchendo o vasto saguão, encobria reira seu começo na basílica Júlia dá a impressão de que a
as controvérsias das outras seções; Galerius Tracalus, cônsul lembrança o angustia79 e de que sobre isso poderia dizer, co­
em 68 d.C. e dono de uma poderosa voz, costumava ser aplau­ mo de sua estada em Ccntumcellae (Civita Vecchia), no tri­
dido pelo público das outras “câmaras”, o qual nao o via | bunal que Trajano construíra cm sua villa: “Que dias
c não deveria ouvi-lo75. Ademais, para aumentar a cacofo- i veneráveis! Mas também que dias duros!” — “Vides quam
nia, intervinha o entusiasmo estipendiado da claque, que, à honestiy quam seven dies!”
imitação de Larcius Licinus, advogados impudentes se habi- 1 Quando era obrigado a resolver os casos que dependiam
tuaram a levar aos processos que desejavam ganhar; com tal diretamente dele ou aqueles que lhe chegavam das provín­
prática, em vão reprovada por Plínio, o Jovem, pretendiam cias, o imperador ficava sujeito à estafa dos juizes ordinários.
tanto impressionar o júri como servir à própria reputação. Precisamente a sessão que Trajano devia presidir durante uma
Um dia em que Domitius Afer discursava na presença de de suas vilegiaturas em Ccntumcellae e que Plínio testemu­
Quintiliano e fazia uma seção dos centúnviros ouvir sua pa­ nhou nos esclarece a esse respeito80. A estada durou apenas
lavra imponente e sua voz calma, chegaram-lhe aos ouvidos três dias. Os três casos submetidos a seu juízo eram insigni­
clamores imoderados vindos do lado. Surpreso, ele sc calou. ficantes: uma acusação mal fundamentada de caluniadores en­
Restabelecido o silêncio, retomou o fio do discurso. Novos ciumados com um cfésio destacado, Claudius Ariston,“ho­
gritos. Nova interrupção de sua parte. E uma terceira vez mem generoso e popular, conquanto honesto”, como o des­
repetiu-se a cena. No fim, ele desejou conhecer o autor do creve Plínio, o Jovem; um processo de adultério contra a mu­
discurso na câmara vizinha. “Licinus”, foi a resposta. En­ lher de um tribuno militar, Galita, acusada de conceder seus
tão, renunciando à palavra, Afer declarou: “Centúnviros, nos­ favores a um simples centurião; e uma contestação sobre a
sa arte está perdida”. Pelo menos, não estava para os gritadores validade de codicilos acrescentados ao testamento de um des­
dc bravos, os ôo^o^Xets, como eram chamados em grego; conhecido, Júlio Tiro. Não obstante, embora Trajano qui­
para os que se alimentavam de bravos, os laiidiceni76, como sesse chamar e examinar apenas um caso por dia, com isso
era chamada a claque em latim, pois, boa ou má, a argumen­ perdeu o melhor de seu tempo. Sobretudo o litígio testamen-
tação que aclamavam os nutria, e, além disso, podiam, sem tário apresentou várias dificuldades. A autenticidade dos co­
romper as condições do contrato, desinteressar-se do caso tão dicilos era contestada por Eurythmos, um de seus intendentes
logo chegasse a vez de um advogado com o qual não tinham na Dácia. Desconfiados da jurisdição local, os herdeiros so­
feito nenhum acordo; então permaneciam presentes, mas licitaram ao imperador que cuidasse do caso. Contudo, de­
abstraíam-se do processo cm curso e retomavam seus passa­ pois dc obter satisfação, em consideração ao príncipe do qual
tempos favoritos, como, por exemplo, a espécie de jogo de Eurythmos era liberto fingiram hesitar em erigir-sc em acu­
damas registrado no piso de mármore da basílica Júlia, con­ sadores, e só a convocação formal de Trajano levou dois de­
forme revelaram as escavações77. Porém, a claque certamen­ les a apresentar-se ao tribunal. Eurythmos reclamou a palavra
te era a única que se divertia na sala; não é difícil imaginar para provar suas imputaçôes. Os dois herdeiros a que Traja­
o sofrimento que podia infligir a juizes atentos e a advoga­ no a concedera recusavam-se a tomar a palavra, sob pretex­
dos conscienciosos uma instância conduzida no meio desse to de que sua solidariedade com os outros co-herdeiros os

226 227
impedia de tratar dos interesses dc todos. Encantados com
essas manobras e contramanobras dilatórias, os advogados
dc bom grado sc perderam nos labirintos do processo. Vá.
rias vezes o imperador os repreendeu para que nao se afas­
tassem do assunto. Por fim, farto de suas chicanas, voltou-se
para o conselho e convidou-o a colocar um termo cm suas
sutilezas c só mais tarde pôde suspender a sessão e convidar
os assessores para as agradáveis distrações finctindissimae re-
mission#) que lhes havia preparado, mas que pôde oferecer-
lhes apenas na hora do jantar81.
Nenhum dos intimados faltara com a deferência devida
à majestade do soberano. Ora, forçoso nos é confessar que
nem sempre era assim. As vezes os acusados nao esperavam
vinte e quatro horas para amaldiçoar César, e, para falar a
verdade, o espetáculo de sua justiça terminava numa “cena”.
Um papiro dc Oxirrinco revela aquela que um egípcio cha­
mado Appianos, na verdade hinasiarco e sacerdote de Ale­
xandria, teve a audácia de fazer a Cômodo, que acabava de
condená-lo à morte. Assim que o imperador pronunciou a
sentença capital, Appianos levantou-se numa atitude de es­
candaloso desafio. “ ‘Mas sabes bem com quem estás falan­
do?’, perguntou-lhe Cômodo. ‘Certamcntc que sei. Com um
tirano.’ ‘Nao’, atalhou Cômodo, ‘com o imperador.’ ‘Por
certo que não’, retorquiu Appianos; ‘teu pai, o divino Mar­
co Aurélio Antonino, tinha o direito de chamar-se impera­
dor, porque cultivava a sabedoria, desprezava o dinheiro e
amava o bem. Mas tu não tens esse direito, pois és o oposto
de teu pai: tirania, vício e brutalidade.’ ”82 Assim, aconte­
cia que o imperador era não só ensurdecido e extenuado com
a tagarelice e as manobras dos litigantes, como um simples
centúnviro, mas ainda injuriado por eles; e, enquanto a cor­
te do imperador nos evoca as magnificências de Luís XIV,
seu tribunal no palácio lembra-nos mais o cansaço dos pro­
cessos sutis, sonoros e longos, a familiariedade e o tumulto
populares que cercam a justiça do paxá em seu divã no pátio
do serralho.
De resto, por absorventes c muitas vezes fastidiosas que
fossem as ocupações dos advogados e dos juizes, havia pe­
ríodos na vida dos senadores em que estes se pertenciam me­
nos ainda. A partir de Augusto, o Senado vira reduzir-se

228
consideravelmente o número dc suas sessões ordinárias (dies
legitimi). Em férias obrigatórias nos meses de setembro e ou­
tubro, no resto do ano só era convocado normalmente dois
dias por mês, nas calendas c nos idos85; ademais, a atividade
legislativa dos césares cada vez mais deixava a dos senadores
de lado. Entretanto, de quando em quando deviam contar
com sessões extraordinárias, tão mais concorridas por serem
mais raras, sobretudo com as que o soberano decretava ou
permitia a fim de punir os crimes políticos com terríveis san­
ções cuja responsabilidade nominal preferia declinar. Então
começavam para os Patres verdadeiros trabalhos forçados,
e para escapar à servidão dessas convocações sensacionais não
lhes restava outro recurso senão defender a legitimidade de
seus motivos de ausência.
Reuniam-se na cúria de Júlio César, cujas planta e dimen­
sões a reconstrução de Diocleciano reproduziu e que, esten­
dendo-se por apenas 25,5 metros de comprimento por 60,67
metros de largura84, só continha trezentos lugares distribuí­
dos pelos três estrados superpostos que, em data recente, o
professor Bartoli descobriu sob o piso da antiga Igreja de
Sant’Adriano. Como nas grandes ocasiões mais da metade
dos seiscentos membros respondiam à convocação, deviam
apinhar-se tanto quanto o Parlamento inglês na Câmara dos
Lordes por ocasião da fala do rei. Após um sacrifício e ora­
ções preliminares, ali entravam na primeira hora do dia. Saíam
ao cair da noite85. E recomeçavam no dia seguinte, no ou­
tro, e nos outros. Não poderíam resistir a esse regime peni­
tenciário se o regulamento de sua assembléia, ou melhor, o
costume vigente, não os autorizasse implicitamente a ir e vir,
a desaparecer e voltar á vontade. Na sala desenrolava-se uma
sequência infinita de discussões, um contínuo dilúvio de elo­
qüência e artimanhas. Plínio, o Jovem, relata várias dessas
sessões do Senado transformado em alta corte: aquelas a que
compareceram Marius Priscus, proconsul da África, e seus
êmulos em prevaricações; aquelas que, a pedido da provín­
cia inteira, tiveram de instruir e punir as concussões de Cae-
cilius Classicus, ex-governador da Bética. A leitura nos leva
a lamentar os senadores presos a sua cadeira curul. O pri­
meiro processo que Trajano presidiu na condição de cônsul
estendeu-se da aurora ao crepúsculo durante três dias conse­

229
cutivos. No decorrer de um deles, Plínio, o Jovem, que fora
encarregado do requisitório contra um dos cúmplices dc Pris-
cus, falou durante cinco horas seguidas, e sua fadiga se evi­
denciou dc tal forma que por várias vezes o imperador o
aconselhou a poupar a garganta e os pulmões, Quando ter­
minou, Claudius Marcellinus replicou pelo acusado numa
exposição da mesma envergadura. As últimas palavras que
o segundo orador pronunciou, Trajano suspendeu a sessão
até o dia seguinte, temendo que uma terceira arenga se es­
tendesse noite adentro86. Comparativamente, o segundo ca­
so, de Classicus, pareceu a Plínio, o Jovem — que dessa vez
se limitou a ouvir e opinar —, muito mais suportável, na ver­
dade “curto e fácil” (et circa Classicum quidem brevis et expe­
dite labor). Imaginamos que tenha sido fácil mesmo, pois
os espanhóis haviam mastigado a peça de acusação e desman­
telado todas as posições da defesa, apoderando-se da corres­
pondência íntima e cínica do acusado e em especial de uma
carta em que, misturando concussões e amores, Classicus
anunciara a uma amante que voltaria para junto dela, em Ro­
ma, em termos que o desmascaravam sem remissão: “Ale­
gria! Alegria! Chego livre como o ar, pois já embolsei quatro
milhões de sestércios liquidando a metade de meus adminis­
trados. .Curto, porém, o processo de Classicus não foi,
não obstante a evidencia dos fatos estabelecidos por peças
decisivas. Ocupou três sessões do Senado, como o de Ma­
rius Priscus, e, apesar de silencioso, Plínio, o Jovem, saiu li­
teralmente extenuado, como do outro. Escreveu ele a seu caro
Cornélius Minicianus: “Podes imaginar nosso cansaço de­
pois de todas essas exposições, todos esses debates, todos es­
ses comparecimentos de testemunhas para interrogar, sus­
tentar, recusar! (Concipere animo potes quam simns fatiai-
ti!)”87 Imaginamos, sim, mas o que para nós continua inima­
ginável é que os romanos tolerassem esse sistema extenuante
sem torná-lo nem mais claro nem mais leve. Devemos crer
que tinham cabeça e nervos mais sólidos que os nossos? Ou
que, arrastados por um século de leituras públicas, haviam
se encouraçado definitivamente contra a exasperação, o can­
saço c o tédio?

230
/!$ leituras públicas

O hábito das leituras públicas, preocupação lancinante


e ocupação perene dos romanos cultos, ainda é tão estranho
a nossos costumes que exige algumas palavras de explicação.
Durante dois séculos os eruditos, os letrados de Roma,
ignoraram o que entendemos por “publicar”. Até o final da
República executavam cm sua casa ou junto a um protetor
as cópias de suas obras, que depois distribuíam aos conheci­
dos. Atticus, a quem Cícero confiava seus discursos e trata­
dos, resolveu transformar em verdadeira indústria a oficina
que montara por conta própria. Simultaneamente César, tão
grande revolucionário no plano espiritual como no tempo­
ral, facilitou-lhe o recrutamento de uma clientela fundando
a primeira biblioteca estatal de Roma, a exemplo da que existia
no Museu de Alexandria, biblioteca que Asinius Pollion
organizou88 e pouco depois disseminou pelas províncias89. A
multiplicação das bibliotecas públicas e municipais acarre­
tou a dos livreiros-editores (bibliopolae, librarii). Logo a no­
va profissão teve suas celebridades: os Sosii, citados por
Horácio que abriram loja de volumina no local em que o
Vicus Tuscus desemboca no Foro, perto da estátua do deus
Vcrtumnus, atrás do Templo de Castor90; Dorus, de quem
se comprava Tito Lívio e Sêneca91; Tryphon, que vendeu a
Instituição oratória de Quintiliano e os Epigramas de Mar­
cial92; e os concorrentes de Tryphon, C. Pollius Valerianus,
Secundus, não distante do Foro da Paz, Atrectus no
Argiletum93. Esses comerciantes, que formavam e instruíam
equipes de escravos especializados, vendiam bem caro as có­
pias — dois ou quatro sestércios por um texto que em vinte
páginas teria nosso formato in-12, cinco denários ou vinte
sestércios por um liber, que não chegaria a quarenta páginas
na mesma dimensão94 —, mas guardavam todo o lucro para
si. Caso pagassem para executá-las, sequer compravam o ma­
nuscrito de um autor renomado, apenas consentiam em
reproduzi-lo95; e se não tinham de conceder o menor direi­
to aos escritores, pois os juristas estenderam à escritura super­
posta aos papyri e aos pergaminhos indistintamente o velho
princípio de direito que solo cedit superfícies, ou seja, que to­

231
da adição segue a propriedade do solo ao qual sc acres-
centa96. Assim os livreiros enriqueciam expedindo para o
mundo inteiro, “nos confins da Bretanha, sob o frio dos cel­
tas”, versos “que o centurião entoava em sua guarnição dis-
tante”, sem que seus lucros redundassem num cêntimo para
o poeta transido na miséria97.
Em tais condições era fatal que os principiantes e os po­
bres vissem na declaração de sua prosa ou de seus poemas
a oportunidade de escapar às exigências do librarias, ou de
dobrã-lo, e isso com tanto menor hesitação quanto lhes era
indiferente prejudicar uma eventual edição que nunca lhes
rendería nada. Por outro lado, era natural que o governo im­
perial, que aspirava controlar a produção literária, mas abo­
minava o escândalo dos autos-de-fé ordenados por Tibério9*
ou as condenações à morte com que Domiciano atingira Her-
mógenes de Tarso e seus librarii", preferisse chegar sem
alarde ao mesmo resultado pelos processos indiretos já com­
provados no vale do Nilo. Os prefeitos e os procuradores
prepostos às bibliotecas públicas detinham o poder de con­
denar a um desaparecimento lento, porém seguro, os livros
suspeitos ou perigosos, aos quais fecharam as portas133.
Arrogaram-se o poder de semear ruidosamente o bom grão
dos textos favoráveis ao regime, composições úteis à sua pro­
paganda; e não deve surpreender o fato de Asinius Pollion,
que ligou seu nome à primeira das bibliotecas romanas, ter
introduzido com seus convites para ouvirem-se suas “Guer­
ras civis”101 um hábito que atendia às condições dos escri­
tores e ao desejo dos governos para não triunfar com rapidez.
Assim, nasceu da coexistência de editores onipotentes e de
bibliotecas controladas esse monstro que cresceu de imedia­
to e seria mais tarde um flagelo da literatura: a leitura públi­
ca. Os cálculos da política e o amor-próprio dos literatos
lançaram a moda. Nada mais o deterá.
Desde o início de seu reinado, Augusto prestou-lhe o im­
pulso de sua assiduidade, “ouvindo com boa vontade e pa­
ciência aqueles que lhe liam não só versos e história, como
arengas e diálogos”102. Houve melhor anos depois. Cláudio,
que por instigação de Tito Lívio resolvera escrever história,
gabou-se de declamar seus capítulos à medida que os redigia.

232
Como era príncipe dc sangue, lotava a sala. Mas também,
como era tímido e gago c numa dc suas experiências um in­
cidente grotesco provocou risos que nao estavam previstos
na ordem do dia (um banco desabou sob o peso de um ou­
vinte muito gordo), ele deixou de ser seu próprio leitor. Mas
nao desistiu de fazer ouvir suas lucubraçôcs, que passaram
a ser lidas na voz experiente dc um liberto105, e depois,
quando herdou o império, emprestou a hospitalidade dc
seu palácio às leituras alheias — aliás, tendo tempo, ficava
feliz de comparecer como cidadão comum e entrar impre­
vistamente, como fez um dia pelo consular Nonianus, en­
cantando o auditório com a honra inesperada104. Também
Domiciano, afetando paixão por poesia, mais de uma vez
leu seus versos em público105. E provável que Adriano o te­
nha imitado. De qualquer modo é certo que consagrou defi­
nitivamente a leitura pública dotando-a dc um edifício para
seu uso exclusivo: o Athenaeum, espécie de pequeno teatro
construído com seus denários num local infelizmente esque­
cido c pelo qual os súditos lhe foram gratos como se ele por
fim tivesse resolvido abrigar “as artes liberais” numa escola
condigna: Indus ingennartim artiitm106.
Na verdade, a construção do Athenaeum foi apenas o
indício da importância que as leituras públicas haviam ad­
quirido na Cidade, as quais agora submergiam numa inun­
dação de talentos. Não constituía uma inovação de arquitetura
e apenas acrescentou um monumento oficial às numerosas
salas que desde muito tempo as leituras enchiam com seus
eloquentes rumores. Então um letrado, por menos abastado
que fosse, tinha prazer em reservar para isso um cômodo ex­
clusivo: o auditorium107. Mais de uma amigo de Plínio, o Jo­
vem, arcou tranquilamente com a grande despesa: Calpurnius
Piso, por exemplo, e Titinius Capito108. A decoração não
mudava muito de uma domus a outra: um estrado onde o
autor-leitor — que para a ocasião caprichava na toalete, ali­
sava a cabeleira, vestia uma toga nova, colocava nos dedos
todos os seus anéis — assentava-se para seduzir os ouvintes
não só com a qualidade dos escritos como pela postura im­
ponente, pelo carinho dos olhares, pela modéstia do tom,
pela suavidade das modulações109. As suas costas pendiam as
cortinas que escondiam do restante da platéia os convidados
que desejavam ouvi-lo sem serem vistos— sua esposa, por c-
xemplo110. À frente, o público que ele convocara com bi-
llictcs entregues a domicílio (codicilli) distribuía-se entre a$
cadeiras de espaldar (cathedrae) das primeiras filas c os ban­
cos das outras, e recebia o programa da sessão (libelli) dc cria­
dos encarregados da organização111. Havia uma encenação
que nao estava à altura de todas as bolsas. Os autores pobres
dependiam da boa vontade dos ricos. Grandes senhores, co­
mo Titinius Capito, levados pelo melhor espírito de frater­
nidade, emprestavam de bom grado seu auditorium112.
Ricaços menos generosos os alugavam, e Juvenal criticou a
especulação a que se dedicavam alguns desses Harpagon mas­
carados de Mecenas que exigiam grandes somas para o breve
uso de um local sujo e de um mobiliário miserável113. Na
verdade, um auditorium só era indispensável a uma leitura
pública, quando sc queria causar impacto c emocionar o pú­
blico. Os delicados de reputação firmada preferiam uma pla­
téia restrita de delicados como eles, e Plínio, o Jovem, por
exemplo, convidava para as leituras um grupo dc amigos que
alojava em seu triclinium, ou sala de refeições; uns se aco­
modavam nos leitos que ali se encontravam permanentemen­
te; outros, nas cadeiras deslocadas especial mente para a
ocasião114. Quanto aos pobres-diabos que não tinham tricli­
nium nem dispunham de dinheiro para alugar uma sala,
arranjavam-se do mesmo jeito. Tão logo avistavam um ajun­
tamento em que pudessem provocar curiosidade, corriam para
lá e sem se perturbar desenrolavam seu volumen: no Foro,
sob um pórtico, na afluência das termas115. A recitado in­
vadiu até os cruzamentos, e quando consultamos os depoi­
mentos dos contemporâneos logo nos convencemos dc que
todo mundo lia cm público, o tempo todo, qualquer coisa.
O tempo todo: de manhã como à noite, no verão como
no inverno. Naturalmente quem ambicionava um público
maior tratava de evitar os meses quentes, em que tantos ro­
manos partiam para suas vilegiaturas. No entanto, quem da­
va mais valor à qualidade que à quantidade prestava-se, talvez
melhor que os outros, à reunião de uma elite, e Plínio, o Jo­
vem, “leu” em julho, porque esperava que a pausa da ativi­
dade judiciária lhe proporcionasse maior liberdade de espírito
e permitisse a seus êmulos do tribunal honrarem-lhe o “au­

234
ditório” com sua presença”6. A maioria das leituras ocor­
ria à tarde, quando os negociantes haviam recuperado a dis­
ponibilidade de tempo”63; porém, existiam insaciáveis aos
quais nao bastavam as tardes para mostrar suas obras-primas
e que se vangloriavam de reter o público um dia inteiro (to-
turn diem irnpenderc)u7sem falar no dia seguinte e nos
outros118. Com certeza, não nos espantamos mais com a fa-
diga obrigatória dos tribunais e do Senado quando conside­
ramos a docilidade com que os desocupados se submetiam
à fadiga facultativa dos auditoria.
E bem verdade que os ouvintes se punham à vontade com
o anfitrião e que sua assiduidade muitas vezes assumia as for­
mas mais ou menos polidas de negligência e desatenção. Em
suas cartas, Plínio, o Jovem, desfia episódios elucidativos sobre
as liberdades do público. Por exemplo, no decorrer de de­
terminado mês de abril cm que a recitatio não falhou um só
dia, os ouvintes não agüentavam mais. Maquinalmente con­
tinuavam atendendo aos convites; mas ou passavam o tem­
po da leitura em conversas particulares, ou, contentes por
terem se mostrado, retiravam-se antes do final, uns com cau­
tela e furtivamente, outros “quase batendo a porta”, às cla­
ras e sem se envergonhar”9. Uma vez, chegando atrasado a
um auditório lotado, Plínio, o Jovem, percebe com um mis­
to de orgulho e embaraço que sua entrada chama os presen­
tes ao pudor, corta as brincadeiras que faziam entre si e, como
por encanto, restabelece o silêncio123. Aliás, cai sobre os ou­
vintes que, preocupados em salvaguardar as aparências de uma
boa educação, abstêm-se de fazer barulho, mas demonstram
um desinteresse e uma frieza que beiram a insolência, quan­
do não se entregam ao torpor de um cochilo. Assim, por
ocasião de uma recitatio à qual compareceu o célebre juris-
consulto Javolenus Priscus, o autor resolveu cumprir o pro­
tocolo, c antes de desenrolar seu volumen pediu à principal
das notabilidades presentes a permissão de iniciar a leitura:
"Prisce /«Zw?” (“Queres que comece, Priscus?”) Como se acor­
dasse sobressaltado ou vagasse a mil léguas dali, Javolenus
Priscus apressou-se em responder ao acaso: “Não, não que­
ro nada” (“Ego vero non iubeo”); então explodiram as risa­
das, e o pobre leitor ficou totalmente desconcertado121.
Em outras sessões os assistentes fingiam ouvir, porém
suas atitudes desmentiam-lhe a atitude; e diante das mais be­
las passagens de um livro adornado com todas as pcrfciçòes
permaneciam fixos numa imobilidade de estátua, numa incrcia
desdenhosa c distante, sem manifestar o menor sinal de en­
tendimento, agitar a mão, mover os lábios, levantar-se, "nem
que fosse porque estavam sentados por muito tempo”122.
Plínio, o Jovem, que nos desenhou esse mapa sem nomes,
indigna-se ao pensar que tais traidores dedicaram um dia in­
teiro a magoar o escritor cujo convite aceitaram, a transfor­
mar em inimigo mortal o amigo do qual eram íntimos ao
entrar. Contudo, a capacidade de atenção tem limites, até para
os romanos, e em todas as línguas a eloqüência extensa é en-
tediante. Com certeza, era desarrazoado de pane de um au­
tor infligir ao longo de um dia as belezas de obras que fanavam
na medida do cansaço e do tédio; e a recitado despejada sem
cessar só podia evitar a náusea por meio da indiferença. Ao
invés de despertar o amor às letras, as leituras públicas pro­
vocavam indigestões e o mais das vezes deviam antes deses­
timular que encorajar aqueles cuja paciência esgotavam e que,
bocejando, sucumbiam à repetição de tais doses maciças. No
entanto, o que aumentava seu poder corruptor era que nào
se havia inventado nada melhor para atenuar a monotonia
de sua frequência do que a incoerência de seus programas.
Todos os assuntos, todos os gêneros eram bons. Georges Du­
hamel escreveu páginas de uma ironia amarga e fulminante
sobre essas coleções de discos americanos que, sem a pieda­
de da menor trégua, emitem as peças mais discordantes, uma
sonata de Beethoven com uma dança de jazz, uma cena de
opereta após a morte de Siegfried. Ora, essa ‘‘cena da vida
futura” já foi representada no passado, sob os olhares de Tra­
jano e Adriano. Basta substituir o mecanismo pela voz, a mú­
sica pela literatura: esse caos de sonoridades dissonantes é o
próprio fundo das leituras públicas. Ali os advogados reedi­
tavam suas arengas123, e os políticos, seus discursos124. As
pessoas da alta sociedade que nunca haviam escrito na vida,
a não ser para cumprir deveres profissionais ou familiares
ou manter relações sociais, não hesitavam em repetir ali as
orações fúnebres que seu parentesco com o falecido as leva­
ra a pronunciar uma primeira vez ante os despojos125.’

236
Quanto aos literatos, valorizavam as menores composições
c em todas as coisas se afirmavam inesgotáveis. Em prosa,
quando terminavam as argumentações e as arengas, traziam
livros de história, tanto mais bem recebidos quanto os fatos
expostos remontassem a um passado distante o suficiente para
que nenhum dos presentes tivesse de corar126. Em versos,
ouviam-se misturadas as brincadeiras de Plínio, o Jovem127,
as astrologias de Calpúrnio Piso128, as elegias de Passenus
Paulus129, a Tebaida de Estácio133 e a ladainha das epopéias
banais que se alimentavam de sua imitação e de reminiscên-
cias virgilianas, como “Sobre o Racine mono o Campistron
pulula”: Heracleidas, Diomcdéias, os rugidos do “Labirin­
to, o mar em que mergulha o jovem ícaro no fracasso de
sua máquina voadora”131; a que devemos acrescentar um
longo cortejo de tragédias sem cenário132 e comédias sem
atores133. Assim, as variedades da produção literária se su­
cediam às tribunas dos auditoria da mesma forma que as va­
riedades da produção musical hoje são pulverizadas pelos
toca-discos.
Em vão Plínio, o Jovem, procura iludir-se quanto à ex­
celência e à utilidade de exercícios em que se orgulha de ter
sucesso e deseja persuadir-se de que a reedição de suas argu­
mentações jurídicas em leituras públicas o incita a remanejá-las
e aperfeiçoá-las, de que as críticas de que qualquer obra será
objeto ao longo da recitatio apagarão suas falhas134. Aí só há
os defeitos, aliás sinceros, e as sutilezas, aliás engenhosas, de
um menino mimado que não se consolaria com a perda ou
a interdição de seu brinquedo favorito. Os magros provei­
tos, as vantagens aleatórias não poderíam compensar os in­
convenientes, os perigos e os males que Horácio pressentira
já no início das leituras públicas135. Qual não seria o hor­
ror do poeta se voltasse à terra apenas cem anos após sua
morte, quando as leituras públicas sinistramente semeavam
ao redor as ruínas que havia entrevisto? Então consumavam
os malefícios de uma educação puramente formal. Já o hábi­
to de escrever e depois de ler os volumina, cujo desenrolar
nunca permitia apreender mais de uma passagem a cada vez,
sem mais antecipações que recuos, havia fragmentado, esmi-
galhado a composição das obras romanas a tal ponto que,

237
de acordo com nossas exigências, as melhores dentre elas caem
mais ou menos sob o golpe do julgamento formulado por
Caligula cm oposição a Sêneca136: areia sem cal, arena sine
calce. As leituras públicas, em que o autor devia despertar
e manter o interesse do público não pela beleza da constru­
ção, mas pelo brilho dos detalhes, agravaram os malefícios
do volumen c precipitaram a funesta evolução, ao fim da qual
um gosto irremediavelmente pervertido reconhecia apenas
as tiradas de efeito e os conceitos das sententiae. Além disso,
separando de seu meio natural as obras de que se apodera­
vam — a argumentação do tribunal, o discurso político da
cúria, a tragédia e a comédia do teatro —, acabaram por afrou­
xar os laços que ainda podiam unir a criação literária à vida,
por esvaziadas da realidade humana, fora da qual não existe
obra-prima. Enfim, por uma nocividade que lhes é própria
e cuja ação perniciosa os modernos não perceberam mais que
os antigos, contribuíram para destruir a própria literatura.
Por um lado, as satisfações de amor-próprio que proporcio­
navam aos autores gradativamente os desviou de aspirações
mais elevadas que os sucessos imediatos, grosseiros e, alias,
inebriantes, propiciados pelas aclamações num auditorium
animado pelo entusiasmo fictício de uma platéia de amigos
predispostos à complacência c confrades esperançosos de re­
ciprocidade. Pode-se discutir a extensão dos prejuízos que
causam ou causarão ao livro os progressos da radiodifusão.
Não parece lícito duvidar do enorme dano que, a partir do
momento cm que alcançou o auge, a leitura pública causou
para a edição dos volumina. Tampouco c contestável, por
outro lado, o mal terrível que, como um câncer, se inseriu
no pulular das falsas vocações que ela despertou. Em Roma,
quando a leitura pública entrou nos costumes como a ocu­
pação principal e objeto quase exclusivo dos letrados, as le­
tras abdicaram sua dignidade e perderam a seriedade. A
mundanalidade transformou-a numa moeda corrente cujo teor
se alterava à medida que crescia o círculo de aficionados. Os
convidados passaram a convidar também, e, com a subida
de cada um deles ao estrado, os ouvintes acabaram por tornar-
se autores. Aparentemente, era o triunfo da literatura. Na
realidade, a vitória dc Pirro, o insensato exagero anunciaram

238
seu fim. A partir do momento em que compreendeu tantos
escritores quantos ouvintes — hoje diriamos tantos autores
quantos leitores — e alternativamente os confundiu entre si,
a literatura estava condenada a morrer sufocada pela malig-
nidade dc seu tumor.

239
CAPÍTULO III

OS ESPETÁCULOS

“Panem et circenses”

Todos sabem de cor a tirada desferida por Juvenal con­


tra “a turba degenerada dos filhos de Remo”, seus contem­
porâneos, o lacônico requisitório em que vibra mais desprezo
que raiva. “Desde que nao tem mais sufrágios a vender, ele,
que outrora distribuía o poder, os fasces, as legiões, tudo en­
fim, esse povo aviltado deseja com ansiosa cobiça apenas duas
coisas no mundo: pão e circo.

".. duas tantum res anxitis optat


panem et circenses.

No entanto, por famosos que sejam, devemos repetir os ver­


sos no início do capítulo que elucidam. Pois, despojados da vee­
mência de sua invectiva, que queima como ferro em brasa e na
qual ressoa o mais belo brado republicano emitido no Império,
registram um fato incontestável e predominante, expressam a
verdade da história tal como Fronton a enunciará quarenta anos
depois com a placidez do sábio ante a evidência: “O povo ro­
mano é absorvido sobretudo por duas coisas: víveres e espetá­
culos (Populum Romanum dtiabus praecipue rebus, anonna et
spcctaadis, teneri)”2.
Com efeito, os césares encarregavam-se ao mesmo tem­
po de alimentá-lo e distraí-lo. Com as distribuições mensais
do Pórtico de Minucius, asseguravam-lhe o pào de cada dia.
Com as representações que ofereciam em seus diversos re­
cintos religiosos ou laicos — no foro, nos teatros, no está­
dio, no anfiteatro, nas naumaquias —, proporcionavam e

241
disciplinavam seu lazer, mantinham-no em constante expec­
tativa por meio de divertimentos sempre renovados, c até
nos anos magros, em que problemas no Tesouro os obriga-
vam a racionar as prodigalidades, esforçavam-se por propor­
cionar-lhe ainda mais festas que nenhuma plebe, em nenhu­
ma época, em nenhum país, havia presenciado.
Examinemos os calendários que a epigrafia nos forneceu
e que mencionam as celebrações do povo romano. Cada co­
luna está repleta de feriados3. Há os que assinalam a evolu­
ção dos meses, a dúzia dos idos, a metade das calendas, um
quarto das nonas: ao todo vinte e um. Há os quarenta e cin­
co dias dc feriae publicae cuja tradição se perde na obscurida­
de das origens latinas e se perpetuou no Império; entre outras,
as Lupercalia, em fevereiro; as Parilia, as Cerialia e as Vina-
lia, em abril; as Vestalia e as Matralia, em junho; a novena
das Volcanalia, em agosto; as saturnais, que se estendiam de
17 a 24 de dezembro. Há os ludi, ou jogos, que terminam
no dia em que começaram; as cavalgadas, de 19 dc março
e de 19 de outubro; a corrida de sacos das Robigalia, em 25
de abril; as corridas a pé c com mula das Consualia, em 21
de agosto e 15 de dezembro; o concurso de pesca com vara
dos ludi piscatorii, em 8 de junho; as corridas de cavalos do
equus October, em 15 outubro, dos ludi martiales, em 1? de
agosto, aniversário de nascimento de Augusto, fundador do
regime, em 23 de setembro; a essas cabe acrescentar, em da­
tas que variam segundo os reinados, os aniversários de nas­
cimento (dies natalis) e de ascensão (dies imperii) do soberano
e da apoteose de seu predecessor, o que aumenta o total em
mais doze dias. Por fim, e sobretudo, há os ciclos de jogos
equestres e cênicos, às vezes equestres e cênicos ao mesmo
tempo, que nas horas graves da história a República insti­
tuiu em honra aos deuses e que a ambição dos ditadores e
a política dos Césares aumentariam: os Indi Romani, criados
em 366 a.C. e que se estendem de 4 a 19 de setembro; os ludi
Plebei, que surgiram entre 220 e 216 a.C. e se realizavam de
4 a 17 dc novembro; os ludi Apollinares, que datavam de 208
a.C. e ocorriam de 6 a 13 de julho; os ludi Ceriales, que, consa­
grados a Ceres em 202 a.C., distribuíam-se entre 12 e 18 de
abril; os ludi Megalenses, dedicados à Grande Mãe Idéia no ano
de 191, quando se construiu seu santuário palatino, e celebra­

242
dos a partir de então dc 4 a 10 de abril; os ludi Florales, cuja
homenagem regular a deusa Flora parece que passou a rece­
ber a partir dc 173 a.C. c que tinham lugar cm condições
especiais de 28 de abril e 3 dc maio; os ludi Victoriae Sulla-
nae, nos quais sc revela a pretensão dc Sila à divindade e que
persistiam duzentos anos após sua morte, dc 27 dc outubro
a 1? de novembro; os ludi Victoriac Caesaris, que de 20 a 30
de julho continuavam lembrando aos romanos as façanhas
do conquistador das Gálias c que desde 45 a.C. haviam sido
completados pelas quatro celebrações aniversárias de Farsa-
la, Zela, Tapso e Munda; por fim, os ludi Fortunae reducis,
instituídos por Augusto com seu retorno pacificador em 11
a.C., que preenchiam um deccnio de 3 a 12 de outubro.
Rccapitulemos: vinte c dois dias isolada e obrigatoriamen­
te santificados, mais quarenta c cinco dias de feriaepublicae;
mais doze dias de ludi sem amanhã; mais cento e três dias
de ludi agrupados em séries mais ou menos longas. O cálcu­
lo é rápido e, ignorando certos empregos duplos em que ha­
via a coincidência de duas festas, e em que, por exemplo,
cortavam o dia 8 de junho entre as Vestalia e os ludipiscato-
rii, chegamos a este resultado aritmético: os feriados obriga­
tórios da Roma imperial ocupavam mais da metade do ano.
E os cento e oitenta e dois dias que totalizamos representam
apenas um mínimo que é sempre ultrapassado.
De fato, quantas lacunas em nossa conta! Não incluímos as
festas de Atis, que ocorriam no mês de março em dois tem­
pos: um quatriduum do nascimento, do sacrifício, da morte
e da ressurreição do deus paredro de Cibele, a cannopborie,
a dendrophorie, o sanguis e as hilaria, por um lado, e por ou­
tro uma procissão ao rio Almo, onde se banhava o ídolo da
Grande Mãe em 28 de março; contudo, depois que o impe­
rador Cláudio concedeu cidadania romana a Atis, é bem di­
fícil nao considerar como oficiais os mistérios de sua religião.
Depois, deixamos de lado as festas de subúrbio, em que a
população de Roma participava com alegria, desde os ban­
quetes campestres colocados sob a invocação de Anna Pe-
renna até a solenidade das festas latinas no cume dos montes
Albanos. Também ignoramos as cerimônias que, sem envol­
ver as finanças nem a responsabilidade do Estado, legalmen­
te atraíam o favor do povo romano; ao redor de seus

243
santuários de bairro nas capelas das religiões estrangeiras, mas
lícitas, nas scholac de suas corporações e de seus colégios; es­
tas também impostas aos soldados pelo Estado, cuja lista aca­
bamos dc encontrar em Tebessa da Numidia c cm Doura,
no Eufrates, às quais a plebe urbana obtinha talvez o direito
de assistir nos Castra Praetoria, assim como a gloriosas co­
memorações militares e a edificantes manifestações dc leal­
dade4. Alcm disso, consideramos apenas os anos comuns,
apesar dc haver os extraordinários, cujo programa normal
se combinava com o retorno dos ciclos quadrienais, como
os Actiaca outrora e o agon Capitolinas agora, e de quando
em quando com* a recorrência, distribuída numa longa se­
quência de dias, seja dc renovações "seculares”, como em
17 a.C. c em 88 c 204 d.C., seja dos "centenários” da Cidade
Eterna, como em 47, 147 e 2484â. Por fim, c principalmen­
te, porque a fantasia soberana que de repente os inseria no
calendário sc esquiva a toda avaliação constante, deveriamos
omitir as festas que os césares ordenavam como acréscimo,
cujo caráter imprevisto aumentava o interesse c que cresce­
ram em importância com a prosperidade dos reinados: os
triunfos que o imperador obrigava o Senado a atribuir-lhe;
os concursos que anunciava de inopino; sobretudo os mune-
ra, combates de gladiadores, que decretava sob um pretexto
ocasional, cuja frequência acabou por igualar a dos lt<di e que
no século II d.C. se desenrolavam por meses inteiros. Ora,
o que omitimos em nossa estatística se encontrava na reali­
dade; e em última análise devemos admitir que na época fo­
calizada não há ano romano que para um dia útil nao
corresponda um ou dois feriados.

O regime do lazer

À primeira vista, essa conclusão tem algo de espantoso.


Pensando melhor, parece a consequência inevitável da evo­
lução política e social que levou os donos do Império a servir-
se, ampliando-as, das festas que a religião outrora introduzí-

244
ra cm Roma a fim dc consolidar seu domínio sobre as mas­
sas que lhes rodeavam o palácio enchendo a Cidade.
Na origem dc cada “festa” romana está a religião5, cm
maior ou menor grau de envolvimento. Ela aflora à superfí­
cie das velhas solenidades que os romanos não deixavam de
realizar, mas que já nao compreendiam c das quais haviam
esquecido o significado e o motivo. Assim, no dia 8 de ju­
nho o concurso dc pesca com vara, que o pretor urbano pre­
sidia pcssoalmentc, terminava na pedra da Vulcanal com uma
fritura que prosaicamente fazia a delícia dos premiados, mas
que uma notícia de Festus, impossível dc colocar em dúvi­
da, assimila ao sacrifício de substituição com que se conten­
tava o deus Vulcano em lugar dc vítimas humanas: Pisciculi
pro anbnis humanist. Assim também cm 15 de outubro
ocorria no Foro uma corrida dc cavalos cuja inspiração pri­
mitiva sc revela na largada. Ai do corcel vencedor! O flámi-
no de Marte imolava-o logo após a vitória. Pane do sangue
era derramada no átrio da Regia, parte era enviada às ves­
tais, que a reservavam para as Iustrações do ano. Quanto à
cabeça, cortada pelo punhal do sacrificante, os moradores
da Via Sacra disputavam-na com o mesmo ardor que hoje
admiramos nas “contrade” áe Siena, para saber a qual de seus
respectivos bairros caberá a honra de expor na parede de um
edifício o troféu do “cavalo de outubro”. O significado des­
ses costumes estranhos logo se esclarece quando remontamos
aos longínquos períodos de sua formação. Ao voltar da cam­
panha guerreira que começava todos os anos na primavera
c terminava no outono, os latinos da velha Roma ofereciam
aos deuses uma corrida como ação de graças e sacrificavam-
lhes o cavalo vencedor para purificar a Cidade com a efusâo
de seu sangue e protegê-la com o fetiche de seu esqueleto.
Nesses costumes imemoriais transparece de imediato o
ritual dos ancestrais. Ora, não era por ser menos visível que
a religião estava menos presente nos jogos mais recentes, que,
invocando o Olimpo em horas de crise, a República havia
sucessivamente instaurado em homenagem a Júpiter, Apo-
lo, Ceres e Flora; mais tarde os ditadores ampliaram a lista
em homenagem às próprias vitórias para elevá-las, junto com
eles, a um plano sobre-humano. Tanto nas lutas como nas
corridas, nas representações dramáticas como na púrpura

245
triunfal, tratava-se não só dc contentar os deuses, mas dc cap­
tar sua energia momentaneamente encarnada no magistra­
do triunfante, nos atores dos dramas c nos vencedores dos
torneios. Por fim, quando cm 105 a.C. o Estado inaugurou
as lutas dc gladiadores, organizadas antes por simples parti­
culares junto ao túmulo dos parentes7, designou-as com o
nome dc mwwws, que lhes ficará ligado nas épocas seguintes
c em que se exprime sua sinistra função dc aplacar com a
morte de homens a cólera dos imortais e apaziguar com no­
vas matanças dc vivos a inquietação dos mortos. “Oblaçao
que c proposta por dever”, define-a Festus na cpoca dc Au­
gusto. “Honra devida aos manes”, declara Tertuliano no fim
do século II. “Sangue derramado sobre a terra para acalmar
o deus portador da foice nos confins do céu”, escreverá Au-
sônio no Baixo Império8. Poderiamos pensar que a medo­
nha concepção herdada do sombrio gênio etrusco atravessou
os séculos sem mudar nem se enfraquecer. Apenas na apa­
rência. Na época imperial as afirmações dc eruditos nem te­
nant passado pela cabeça dc um público que sccularizara os
jogos sagrados para seu prazer. Ele ia ao circo como a um
culto, com a toga dos grandes dias, que um decreto de Au­
gusto tornara obrigatória e que um edito de Cláudio só per­
mitia esconder sob um manto cm dias de mau tempo c depois
que o príncipe tivesse dado o sinal para sentar-se9. Devia
ainda, sob pena de expulsão, manter uma atitude decente e
não beber ou comer durante as corridas10. Mas os romanos
tinham consciência não de seguir uma liturgia e sim dc curvar-
se a uma etiqueta; quando, segundo a regra, se levantavam
para aclamar a procissão inaugural em que as estátuas dos
Divi acompanhavam as das divindades oficiais, nao manifes­
tavam devoção, mas sim fidelidade à dinastia, apego ao gru­
po profissional de que faziam parte sob a proteção de tal deus
ou deusa e admiração pela organização da parada. Quando
se encontrava entre eles algum “carola” bastante ingênuo para
imaginar que, ao passar diante dele, a divindade cara a seu
coração esboçara um sinal de entendimento ou um movi­
mento de proteção, o acesso de credulidade era bastante ra­
ro e desusado para atrair a curiosidade dos vizinhos e excitar
a verve dos contadores de histórias11.

246
A antiga religião romana podia ainda emprestar o santo
pretexto de suas tradições ao esplendor dos espetáculos da
época imperial. Já ninguém lhe dava atenção e todos a res­
peitavam, por assim dizer, inconscicntemcntc. Lá, como alhu­
res, as novas crenças relegaram-na ao segundo plano, se é que
não a eliminaram completamcnte. Se havia uma fé viva que
fazia bater o coração dos espectadores, era a da astrologia,
graças ã qual eles contemplavam, encantados: na arena, a ima­
gem da terra; no fosso de Euripo que a delimitava, o símbo­
lo dos mares; no obelisco erguido no canteiro central, ou
spina, o emblema do sol reluzente no céu; nas doze cavalari­
ças, ou cárceres, as constelações do Zodíaco; nas sete voltas
da pista que compunham cada corrida, o percurso dos sete
planetas e a sucessão dos sete dias da semana; no circo em
si, uma projeção do universo e como que a síntese de seu
destino12. E se existia um entusiasmo que elevava a alma do
público, era o que, no santo cortejo preliminar, desencadea­
vam a visão escultural dos bons imperadores mortos e simul­
taneamente a figura em carne e osso do ótimo imperador
vivo, ao qual se deviam o número e o brilho das represen­
tações.
Entre a multidão e o príncipe estabeleciam o contato sa­
lutar que o impedia de se fechar num isolamento perigoso
e não permitia que ela ignorasse a augusta presença de Cé­
sar. Quando o imperador entrava no circo, no teatro, no an­
fiteatro, a multidão levantava-se num salto e, agitando os
lenços, como ainda hoje fazem os fiéis diante do santo papa
no Vaticano, dirigia-lhe uma saudação emocionante, que ti­
nha a modulação de um hino e o tom de uma prece13. De
resto, essa espécie de adoração não excluía sentimentos mais
humanos, mais fortes e mais doces ao mesmo tempo. O imen­
so público tinha a felicidade de não só, como diz Plínio, o
Jovem, no Panegírico, “ver o príncipe em pessoa no meio
do povo”13*, mas também de aproximar-se dele nas peripé­
cias da corrida, da luta ou do drama, partilhando de suas emo­
ções, desejos, receios e alegrias. Assim, a autoridade se afrou­
xava na familiariedade de sentimentos comuns e ao mesmo
tempo banhava-se de novo nas vagas de popularidade que
se quebravam a seus pés; numa época em que os Comícios
se calavam, em que o Senado recitava a lição que lhe ensina­

247
ram, só na alegria dos wwni c dos ludi a opinião pública
conseguia ganhar corpo e às vezes traduzir-se cm petições
que, repercutidas de repente por milhares de vozes, reclama­
vam a Tibcrio o Apoxiomeno de Lisipo14 e obtinham de
Galba o suplício de Tigelino15; e, tão logo ela sc formava,
os imperadores tratavam de canalizar c dirigir suas corren­
tes com uma habilidade que lhes permitia lançar sobre a mul­
tidão a responsabilidade de sanções que pretendiam tomar;
porém, queriam dar a impressão de que haviam sido obriga­
dos a tomá-las16. Foi assim que, sem fazer parte integrante
do regime imperial, os espetáculos sustentavam sua estrutu­
ra e, sem sc incorporar à religião imperial, alimentavam a
chama que ainda poderia haver nela.
No entanto, há mais: no caminho da autocracia erguiam
o obstáculo à revolução. Na Cidade, onde as massas com­
preendiam cento e cinqüenta mil ociosos que a assistência
pública dispensava do trabalho e talvez outros tantos traba­
lhadores que do começo ao fim do ano cruzavam os braços
depois do meio-dia e aos quais, entretanto, era negado o di­
reito dc empregar a própria liberdade na política, os espetá­
culos ocupavam seu tempo, cativavam suas paixões, desviavam
seus instintos, derivavam sua atividade. Um povo que boce-
ja está maduro para a revolta. Os ccsares nao dcixaram_,ip]ebc.
romana bocejar, nem dc fome nem de tédio. Os espetáçu^
los foram a grande diversão para a ociosidade.dos,súditos—
e, por conseguinte, o instrumento seguro dc seu absolutismo.
Cercando-os com cuidados, o que consumia somas fabulo­
sas, conscientemente providenciaram a segurança de seu po­
der.
Díon Cássio conta que um dia, criticado por Augusto
por ensurdecer Roma com o barulho de suas rivalidades e
disputas, o pantomimo Pílades respondeu-lhe: “É de teu in­
teresse, ccsar, que o povo se interesse por nós... ” Nessa ré­
plica o artista espirituoso traduziu o pensamento íntimo dc
Augusto e revelou um dos segredos dc seu governo. Os jo­
gos foram a grande questão de seu reinado interior. Ele não
deixava de comparecer a eles com zelo ostensivo e estudada
gravidade. Sentava-sc no meio do ptdvinar, entre a esposa
e os filhos. Se fosse obrigado a retirar-se antes do fim,
deseulpava-se c indicava seu substituto na presidência dos jo­

248
gos. Sc ficasse até o final, mantinha-sc sempre atento, ou por­
que gostava dc fato do espetáculo, como confessava com in­
genuidade, ou porque desejava evitar os murmúrios que seu
pai César provocara, pondo-sc a ler c a responder relatórios
no meio do espetáculo. Ele queria regozijar-se com o povo.
Sobretuto, nada poupava para que o povo sc regozijasse. “Os
espetáculos de seu reinado ‘superavam’ em variedade e es­
plendor tudo o que até então se havia admirado’’17; e cm
suas Res gestae ele mesmo lembra com satisfação que reali­
zou jogos quatro vezes cm seu nome c vinte e três vezes pe­
los magistrados que deviam custeá-los, pois estavam ausentes
ou nao tinham meios de subvencioná-los13. Os cônsules e os
pretores estavam sobrecarregados com as despesas inerentes
ao cargo, e Marcial prazerosamente imaginou a historieta da
jovem Proculéia, que, tão logo o marido assumiu o posto
no pretório, anunciou-lhe o divórcio, pedindo-lhe que guar­
dasse para si todos os seus bens. “Mas o que aconteceu, Pro­
culéia? Dize-me: Qual é o motivo dessa repentina separação?
Não queres informar-me. Pois bem, vou explicar-te. Teu ma­
rido era pretor. Os jogos megalesianos custaram-lhe, por bai­
xo, 100 000 sestércios, ainda que tivesse dado representações
bastante parcimoniosas. Isso não é um divórcio, Proculéia,
é um negócio!”19
Cada vez mais o príncipe devia ajudar os magistrados ou
substituí-los, e todos os césares, sucedendo-se uns aos outros,
levaram mais longe o exemplo de Augusto para que não se
dissesse que os espetáculos de seu principado eram menos
brilhantes que os dos reinados anteriores. Excetuando Tibé-
rio, o republicano coroado cuja incurável misantropia abran­
gia tanto o populacho quanto a nobreza, todos os imperadores
rivalizaram em prodigalidade para encher o programa dos
jogos tradicionais, estendê-los por vezes até o fim da noite,
duplicá-los com uma infinidade de espetáculos extras. Nem
os mais avarentos se atreviam a recuar ante as despesas. Sob
Cláudio, que era econômico, os jogos romanos custaram
760 000 sestércios, e os jogos apolinários, a cujo fundador
bastaram outrora 3 000 sestércios, consumiram 350 CCC23.
Sob Vespasiano, o arrivista, filho de um escrivão, com sóli­
da reputação de avaro, começaram a erguer-se os muros do
anfiteatro Flaviano, ao qual a enormidade de suas dimensões,

249
mais ainda que a proximidade da estatua colossal do Sol, con-
feriu o nome dc “Coliseu”. Na profusão de prazeres, no es­
banjamento de dinheiro, os mais sábios unem-se aos piores,
e o mais faustoso, o mais louco aparentemente talvez fosse
Trajano, o modelo dos imperadores, o optimusprinceps, que
em seus títulos trazia o enunciado de uma perfeição digna
dc Júpiter. Na realidade, como notou Díon Cássio, “sua sa­
bedoria nunca deixou de prestar atenção nas estrelas do tea­
tro, do circo c da arena, pois ele sabia que a excelência de
um governo se revela tanto na preocupação com os diverti­
mentos como na preocupação com as questões sérias e que,
sc as distribuições de trigo e dinheiro satisfazem os indiví­
duos, é preciso espetáculos para o contentamento do povo
em massa”21.
Essa última palavra nos fornece a chave do problema.
Como Nicolet, a política dos césares consistia em propor­
cionar mais diversão aos súditos; assim, inscrevia-se na ne­
cessidade que rege os governos de massa. Vimos alguns que
recentemente aplicaram ou aplicam os mesmos princípios,
na Alemanha pela Kraft durch Freude, na Itália pelas obras
de Dopo Lavoro, na França pelos serviços do Ministério
do Lazer. Contudo, por mais que nos orgulhemos dessas
realizações contemporâneas, sequer chegam perto daquelas
do Império Romano. Através delas o Império preservou sua
existência, garantiu a ordem de uma capital superpovoada,
assegurou a tranquilidade dc mais de um milhão de homens;
e o auge da grandeza, no início do século II d.C., coincide
com o da munificência nas corridas dos ludi, nas representa­
ções dos teatros, nas lutas reais da arena, nos combates si­
mulados e nos concursos literários e musicais dos agones.

As corridas

Os jogos por excelência eram os do circo: circenses. Nao


se concebem fora dos edifícios do qual levam o nome, que,
construídos expressamente para eles, apresentavam dimen­
sões variáveis na planta uniforme de um longo retângulo com

250
os lados menores arredondados cm hcmiciclos: o circo dc
Flaminius, que, construído cm 221 a.C. pelo censor Flami-
nius Nepos no local correspondente hoje ao do Palácio Cac-
tani, era determinado por dois eixos de 4C0 metros e 260
metros; o circo dc Gaio, que Caligula ergueu no Vaticano
com 180 metros de comprimento e 90 dc largura, cujo obe­
lisco central adorna a Praça dc Sao Pedro; por fim, o mais
antigo c o maior de todos, o grande circo, ou Circus Maxi­
mus, que serviu dc modelo aos outros dois. A natureza de
algum modo determinou sua forma na depressão do vale Mur­
cia, compreendida entre o Palatino, ao none, e o Aventino,
ao sul; e sc o local hoje c utilizado para as exposições da Ro­
ma contemporânea, os sucessivos embelezamentos que re­
cebeu outrora assinalam os progressos da crescente paixão
que as corridas inspiraram à Roma antiga.
Originariamente a pista era fornecida pela depressão do
vale, cujo solo macio e esponjoso amonecia as quedas; a pla­
téia, ou cavea, estendia-se entre as vertentes das duas colinas
limítrofes, em cujos flancos se equilibravam as multidões de
espectadores; quanto ao campo das evoluções realizadas pe­
los competidores, era demarcado no centro por duas balizas
dc madeira (metae), a mais ocidental, ou meta prima, erguendo-
se adiante da fossa que abrigava o altar do deus Consus, que
só era exposto por ocasião dos jogos. Em 329 a.C., pela pri­
meira vez ergueram-se diante e a oeste da primeira meta as
cavalariças chamadas cárceres, que durante muito tempo con­
sistiam cm simples barracas desmontáveis22. Nessa época ou
pouco depois, as duas metae foram reunidas por um aterro
longitudinal que pressupunha a drenagem do vale Murcia.
Os romanos a compararam à espinha dorsal da arena, a spi­
na, e cortaram sua monotonia dispondo, primeiro, as está­
tuas das divindades supostamente favoráveis aos torneios —
como Pollcntia, a “Força Brilhante”, derrubada por aciden­
te em 189 a.C.23 —, depois, em 174 a.C., os septem oza, os
grandes ovos de madeira que indicavam ao público as dife­
rentes fases das provas. No entanto, foi no século II a.C. e
no I d.C. que a monarquia gradativamente conferiu ao Cir­
co Máximo a grandiosidade monumental que impressionou
os antigos e da qual a arqueologia encontrou apenas ruínas.

25/
Por ocasião dos jogos que celebrou em 55 a.C., Pompcu
quis proteger os espectadores interpondo balaustradas dc ferro
entre eles e a arena, onde deviam apresentar-se vinte elefan­
tes, incitados por seus condutores; contudo, para o pavor da
platéia, as balaustradas cederam em mais dc um lugar sob
o impacto dos paquidermes enlouquecidos24; c cm 46 a.C.,
para prevenir novo pânico, César ampliou a arena a leste e
a oeste e cercou-a com um fosso cheio de água: o Euripo2’.
Ao mesmo tempo refez ou construiu cárceres de tufo c abriu
as colinas fronteiriças de modo a acomodar cento e cinqüenta
mil espectadores sentados26. Coube a seu filho adotivo com­
pletar a obra. Em 33 a.C., em acordo com Otávio, Agripa
duplicou o sistema de sinalização dos septem ova com sete
delfins de bronze que sc alternavam com eles na spina e eram
contornados a cada volta da pista27. Mais tarde, Augusto le­
vou de Heliopolis o obelisco de Ramsés II, que ocupou o
centro do circo e hoje decora a Praça do Povo; e sobre a ca-
vea, do lado do Palatino, erigiu para ele, sua família e convi­
dados a tribuna dc luxo, ou ptdvinar, mencionada nas Ra
gestae, que desde o início do Império apresentou aos olhos
dos romanos avassalados por tamanha majestade um primeiro
esboço do futuro katbisma dos basileis, no hipódromo de
Constantinopla28.
Parece, contudo, que Augusto nao providenciou arqui­
bancadas de pedra para os espectadores comuns, pois teve
de colocar-se no ponto mais ameaçado para tranqüilizar a
multidão alarmada por algumas fendas; e talvez, sem esse gesto
de coragem e inteligência, cedesse ao medo e com sua agita­
ção acabasse por provocar a tão temida catástrofe29. Parece
que os primeiros assentos de pedra foram instalados para os
senadores por Cláudio, que, ao refazer os cárceres, substituiu
as metae dc madeira por balizas de bronze dourado c o tufo
pelo mármore30. Outros foram preparados para os cavalei­
ros quando, ao reconstruir o Circo Máximo após o incên­
dio de 64, Nero aproveitou a restauração para ampliar a pista
com o aterro do Euripo; a cavea, que dotou de novas arqui­
bancadas; e a spina, que aumentou o bastante para conter os
tanques que havia aberto, onde caíam os jorros de água ex­
pelidos pelos delfins de bronze durante as apresentações: dei-
pbines Neptano vomtint?1.

252
Por fim, Domiciano c depois Trajano concluíram a am­
pliação da cavea, o primeiro com as pedras retiradas da de­
molição da nau maquia contígua à Casa Dourada, o segundo
aprofundando as aberturas nas colinas através de um traba­
lho enaltecido por Plínio, o Jovem, cm seu Panegírico, que
aumentou o número de lugares para cinco mil52.
Então, com 600 metros dc comprimento, 200 dc largu­
ra, o Circo Máximo possuía dimensões colossais e as formas
decorativas que até a destruição final não mais se alterarão35.
Visto de fora, projeta no topo das curvas que o fecham três
fileiras de arcadas revestidas de mármore, cuja superposição
lembra a ordem que admiramos no Coliseu e sob as quais
se instalaram tabernciros, vendedores dc petiscos, astrólogos
c prostitutas. No interior, onde hoje a pista se encontra re­
coberta de uma camada de areia, na qual às vezes brilham
lâminas de crisocalco, o que mais impressiona é a imensidão
da cavea, estendendo ao longo do Palatino, sob o ptdvinar
imperial e diante dele, ao longo do Aventino, suas três filei­
ras de arquibancadas. A primeira fileira, embaixo, com as­
sentos de pedra; a segunda, com assentos de madeira; a
terceira, no alto, parece que era reservada aos espectadores
que assistiam ao espetáculo em pé. Os Regionários do século
IV não hesitam cm computar trezentos e oitenta e cinco mil
lugares. Sem dúvida, devemos atenuar seu exagero e de qual­
quer modo ater-nos aos duzentos e cinqüenta e cinco mil lu­
gares sentados resultantes do depoimento de Plínio, o Velho,
sobre a época dos Flávios c do acréscimo atribuído a Traja­
no por Plínio, o Jovem. Mesmo reduzido, o número surpreen­
de pela enormidade. Como o Estádio Olímpico, em Berlim,
nos dias dc afluência o Circo Máximo assemelhava-se a uma
cidade efêmera e monstruosa, acampada na Cidade Eterna;
e o que há dc espantoso nesse conjunto gigantesco é a enge-
nhosidade dos detalhes que o adaptavam a sua função. Dos
lados menores opunham-se harmoniosamente duas cercas em
arco. A do leste, voltada para o Célio, era interrompida por
um arco do triunfo com três vãos, que em 81 d.C. Domicia­
no consagrara à vitória de sua dinastia sobre os judeus sob
os quais passava o cortejo da Pompa Circensis. A do oeste,
voltada para o Velabro, era preenchida, ao rés-do-chão, pe­
los doze cárceres onde cavalos e carros esperavam que caísse

253
a corda estendida entre duas hennas de mármore, diante de
cada uma das doze portas, para então alinhar-se na raia branca
das saídas, c no primeiro andar sobre os cárceres, pela tribu­
na reservada ao magistrado curul que presidia os jogos e a
seu séquito imponente. A spina, de 214 metros dc compri­
mento, determinava o circuito da arena cuja largura variá­
vel — 87 metros na meta prima, 84 metros na meta secunda
— tornava mais árdua e incerta a realização das voltas na pista
em seu percurso total de 568 metros.
A multidão romana sc divertia com as dificuldades que
lhe estimulavam as emoções e adorava os espetáculos em que
tudo se conjugava para espicaçar-lhc a curiosidade e provocar-
lhe transportes: o burburinho de uma multidão em que ca­
da um era arrebatado por todos, a incrível grandiosidade de
um cenário onde pairavam perfumes e reluziam adornos, a
santidade das velhas cerimônias religiosas, a presença real do
augusto imperador, os obstáculos a superar, os perigos a evi­
tar, as proezas a realizar para obter a vitória, as vicissitudes
imprevisíveis de cada uma das provas que valorizavam a po­
derosa beleza dos garanhões, a riqueza dos arreios, a perfei­
ção do porte, e, acima de tudo, a bravura dos condutores
e dos escudeiros.
À medida que o circo ampliara sua superfície e aperfei­
çoara os órgãos, a série das provas se completara e enrique­
cera. Assim como aos ludi de um dia sucederam-se as semanas,
as novenas, as quinzenas de ludi, cada Indus aumentara seu
programa. A corrida comportava obrigatoriamente sete voltas
na pista34. Porém, o número das corridas de um dia viera
aumentando da República ao Império, e sob o Império, de
um reinado a outro. Sob Augusto havia apenas umas doze
corridas por dia. O número subiu para trinta e quatro sob
Caligula35 e para cem sob os Flávios. Temendo que fosse
impossível contê-las antes da chegada da noite, Domiciano
diminuiu de sete para cinco o número de voltas invariavel­
mente obrigatórias para cada corrida36. Façamos as contas:
cinco voltas, ou spatia, por corrida, ou missus, resultam em
cinco vezes 568 metros, ou seja, 2 840 metros. Cem missus
estendem-se por 284 quilômetros! Se contarmos também a
pausa ao meio-dia e os intervalos que necessariamente separa­

254
vam os missus entre si, haveremos dc convir que do amanhecer
ao cair da noite o dia ainda estava bem cheio.
Porém, os romanos nunca desanimaram, e, aliás, a va­
riedade do Indus que lhes era oferecido impedia sua sacieda-
dc. O interesse das simples corridas de cavalos era acrescido
com as acrobacias. Ora os jóqueis conduziam dois cavalos
ao mesmo tempo, saltando de um para o outro: eram os de­
saltores; ora cabia-lhes manejar armas e simular combates;
ora deviam sucessivamente escanchar-se, ajoelhar-se e deitar-se
na montaria a galope; ora, sem sc apear, apanhar um pano
colocado na pista, ou num salto prodigioso passar sobre um
carro atrelado a quatro cavalos. Quanto às corridas de car­
ros, distinguiam-se pelos tipos de atrelagens: de dois cava­
los, bigas; de três cavalos, trigas; de quatro cavalos, quadrigas;
por vezes tinham seis, oito, dez cavalos (decemiuges). Cada
uma delas se destacava pela solenidade da entrada e pela pom­
pa ostentiva. Ao som da trombeta, dava o sinal da largada
o cônsul, o pretor ou o edil que do alto da tribuna presidia
os jogos, bastando-lhe atirar um lenço branco na arena. O
gesto era decisivo, c seu autor constituía um espetáculo cm
si. Sobre a túnica escarlate como a de Júpiter, vestia uma tú­
nica bordada de Tiro, “ampla como uma cortina”. ídolo vi­
vo, segurava um bastão de marfim “encimado por uma águia
em voo” e na cabeça usava a coroa de folhas de ouro tâo
pesada que “um escravo ou o jogador a seu lado precisava
ajudá-lo a sustentá-la”37 e tão volumosa que bastaria o pre­
tor Paullus arrancar da sua um florão para dar a Marcial uma
taça preciosa38.
A seus pcs, antes de tomar impulso, as atrelagens ocupa­
vam o lugar designado pela sorte numa ordem impecável e
numa ornamentação deslumbrante. Cada qual representava
com honra uma das factiones entre as quais se dividiam. Es­
tas foram criadas para subvencionar a altos custos a seleção
e o treinamento dos competidores, animais c homens, e pa­
ra obter, a título de compensação mais ou menos vantajosa,
os prêmios pagos aos vencedores pelos magistrados presiden­
tes e muitas vezes aumentados pela generosidade do sobera­
no. Se é duvidoso que as proporções da pista permitissem
um deslocamento confortável de mais de quatro quadrigas
ao mesmo tempo, é certo que de hábito havia apenas quatro

255
factioncs, que muitas vezes, pelo menos a partir do scculo
II d.C., associavam-se entre si duas a duas; por um lado, os
Brancos (factio albata) e os Verdes (factio prasina); c, por ou­
tro, os Azuis (factio veneta) e os Vermelhos (factio russata),
cujo campo de treino parece ter sido sob o atual Palácio
Farnese39. Cada uma dessas factioncs, além dos cocheiros (au-
rigae, agitatores), que eram disputados a peso de ouro, man­
tinha um numeroso pessoal de cavalariços e treinadores
(doctores et magistri), veterinários (mediei), alfaiates (sarcina-
tores), seleiros (scllarii), guardas de estrebaria (conditores), pa-
lafreneiros (sticconditores), tratadores e aguadeiros (spartores)
que acompanhavam os animais nos cárceres, itibilatores, que
tinham por missão incitar os cavalos com gritos estimulantes.
Enquanto os animais pisoteavam o solo, com um ramo
na cabeça, a cauda erguida por um nó apertado, a crina cons-
telada de pérolas, o peito coberto de faleras
* reluzentes e de
amuletos, mostrando no pescoço um colar flexível c um fi-
lete, tingidos com a mesma cor de sua factio, o auriga atraía
os olhares, de pé sobre o carro, cercado pelos criados, dc el-
mo na cabeça, chicote na mão, faixas ao redor dos jarretes
e das coxas, vestes também da cor da factio, o corpo cingido
pelas rédeas, que em caso de acidente cortaria com o punhal
suspenso a seu lado.
O público ficava encantado antes mesmo do início da
prova. Todos olhavam com ansiosa admiração o carro de sua
preferência. Na cavea lotada as conversas eram animadas entre
espectadores que, apinhados uns nos outros, confrontavam
prognósticos com entusiasmo. A multidão formada pelo acaso
não deixava de ter seu encanto, aliás, para as beldades à pro­
cura de marido ou os libertinos à cata de aventura. Na Re­
pública, foi durante os jogos que uma bela divorciada, Valéria,
irma do orador Hortênsio, arrancou um fio da toga de Sila
com o desejo de participar de sua infalível fortuna e assim
cativou o último amor do ditador; no Império, Ovídio não
deixará de aconselhar seus discípulos na arte de amar a fre-
qüência ao circo, onde surgem tantas ocasiões galantes nos

* Placas redondas que os soldados romanos recebiam a título de condecora­


ção. (N. da T.)

256
agradáveis colóquios que precedem as corridas c depois na
febre provocada por elas40.
Tal febre apoderava-se do público tão logo a poeira co­
meçava a levantar-se sob as rodas dos carros, e até a última
volta os espectadores ofegavam de esperança e medo, dc in­
certeza c paixão. Que aflição à menor dificuldade! Que ale­
gria à feliz ultrapassagcm das balizas! Como as metae se
encontravam sempre à esquerda dos carros, o sucesso da ma­
nobra dc uma quadriga dependia do vigor e da flexibilidade
dos dois cavalos chamados finales, que, em lugar dc atrela­
dos ao jugo, como os dois do meio, eram ligados por uma
corda (funis) rcspcctivamcnte à extremidade — o finalis da
direita — e ao eixo — o finalis da esquerda. Se o carro se
aproximava muito da baliza, podia arrebentar-se ali. Se, ao
contrário, a curva era muito aberta, o carro perdia a lideran­
ça ou era abalroado pelo que vinha atrás c ainda se arriscava
a “naufragar”. Os agitatores ficavam tensos com um esforço
terrível e contraditório: para a frente, a fim de excitar e guiar
os corcéis; para trás, a fim dc evitar a colisão com o carro
que tentava ultrapassá-los. Assim, que alívio para o cochei­
ro quando chegava ao fim, depois de ter evitado o choque
com as balizas por dez vezes, mantido ou conquistado a dian­
teira, malgrado os perigos da pista e as artimanhas dos con­
correntes! As inscrições em que comemorará as vitórias não
nos deixarão ignorar nada sobre as condições em que as ob­
teve: conservou-se à frente e venceu (occupavit et vicitf pas­
sou do segundo para o primeiro lugar e venceu (successit et
vicit); ou era o “azarão” do qual não se esperava nada e que
no último instante triunfou (ertipit et vicit). Os vencedores
são saudados por uma tempestade de aclamações, e a multi­
dão envolve no fragor do entusiasmo os cocheiros e os
animais.
Adquiridos nos haras da Itália, da Grécia, da África e so­
bretudo da Espanha, treinados a partir dos três anos, intro­
duzidos nas corridas aos cinco, os animais compreendiam ao
mesmo tempo as éguas atreladas ao jugo e os puros-sangues
presos à corda; cada um possuía seu pedigree, quadro de honra,
extensa notoriedade que corre de boca em boca até os con­
fins do Império, e duradoura a ponto de seu eco chegar até

257
nós. Os nomes famosos inscrevem-se nas bordas dos candeei­
ros produzidos pelos ceramistas (Coraci, nica)11 c nos pisos
de mosaico descobertos, nas casas da província, como nas
termas da Numidia, cujo proprietário, Pompeiano, confes­
sou suas fraquezas pelo cavalo Polydoxus: ’’Vencedor ou nào,
nós te amamos, Polydoxus! Vincas, non vincas, te amamus,
Polydoxe!’**2 Estão gravados na pedra onde se eterniza a lem­
brança do cavalo Tuscus, que ganhou o prêmio trezentas e
oitenta c seis vezes43, ou do cavalo Victor44, que por qua­
trocentas e vinte e nove vezes justificou seu nome de bom
augúrio; ou estão incisos nas laminas de bronze que os ini­
migos carregavam de maldições e confiavam à vingança das
divindades infernais no fundo dos túmulos que as encerra­
ram45.
Os condutores também conheciam a glória. Embora fos­
sem do baixo estrato, a maioria escravos que a repetição dos
sucessos podia libertar, eram guindados da humildade pela
fama que haviam conquistado e pela fortuna que acumula­
vam rapidamente, acrescentando aos presentes que recebiam
dos magistrados ou do soberano os salários exorbitantes que
exigiam dos domini factionum para não desertar de suas
cores46. No final do século I e na primeira metade do II
d.C., Roma se orgulhava da presença dos aurigas de elite que
ela denominava rniliarii, não porque fossem milionários, e
sim porque haviam ganhado o prêmio no mínimo mil ve­
zes: Scorpus, 1 043 vezes; Pompeius Epaphroditus, 1 467;
Pompeius Musclosus, 3 559; e Diodes, que, tendo conquis­
tado 3 000 vitórias nas corridas de bigas e 1 462 nas corridas
de quadrigas ou de carros ainda maiores, por volta de 150
d.C. teve a sabedoria de retirar-se da arena com 35 milhões
de sestércios47. Friedlander traçou um paralelo entre esses
desempenhos e ganhos, c o exemplo dos jóqueis de Epsom
no final do século XIX: Wood, falecido aos vinte e nove anos,
multimilionário; Archer, que durante seis anos de corridas
totaliza 1 172 prêmios e 60 000 libras esterlinas. Contudo,
no mesmo nível dos modernos, pelo número e pela remu­
neração dos sucessos, os jóqueis da Antiguidade romana os
superam pelo prestígio de que gozaram e pelas homenagens
que os envolveram.

258
Na Cidade seus escândalos eram enaltecidos e não criti­
cados, e sc, por exemplo, resolviam divertir-se agredindo os
transeuntes ou ate roubando-os, a polícia fechava os olhos4’.
Nas paredes da rua, dos apartamentos das insulae, espalhavam-
se milhares de retratos desses heróis, nos quais, como escre­
ve Marcial, reluzia o nariz de ouro de Scorpus:

“Aureus ut Scorpi nasus ubique micet”49.

Seu nome estava em todas as bocass:, e se um desses


campeões falecia, os poetas da corte, habituados a compor
o elogio ao imperador, não acreditavam rebaixar-se por de­
dicar à memória de um cocheiro este adeus patético e pre­
cioso: “Que cm sua dor a Vitória rompa suas palmas! Que
a honra tome o luto! E que a Glória desolada lance em ofe­
renda às chamas dc uma pira iníqua as coroas que adorna­
vam tua cabeleira. Ó crime do destino! Essa baliza que teu
carro sempre mal roçava, por que devia ser colocada tão perto
do começo de tua vida?*,5Cj
A extraordinária consideração de que os aurigas eram ob­
jeto evidentemente se deve a suas qualidades físicas e morais,
à aparência majestosa e à força, à agilidade e ao sangue-frio;
ao treinamento severo e precoce a que eram submetidos; aos
perigos inerentes à profissão, os naufragia sangrentos para
os quais corriam de coração aberto e muitas vezes sucum­
biam na flor da idade: Tuscus, após cinquenta e seis vitórias,
aos vinte e quatro anos; Crescens, depois de ganhar 1 600 000
sestércios, aos vinte e dois anos; M. Aurelius Mollicius, com
cento c vinte e cinco vitórias, aos vinte anos51. No entan­
to, a violência dos sentimentos que inspiravam a um povo
inteiro alimentava-se em fontes menos puras. Devia-se so­
bretudo à paixão do jogo proporcionado pelas corridas, no
qual os jóqueis reinavam soberanos. Os espetáculos dos quais
eram os heróis e os árbitros não podiam separar-se da spon-
sio, ou das apostas. “Aposta-se no futuro vencedor”, já ob­
servava Ovídio em sua descrição do grande circo em festa52.
E Marcial aconselha em seu livro: “Para seduzir o leitor,
espera que terminem as apostas em Scorpus”53. E Juvenal
admite: “Que os jovens vão ao circo, isso é natural; os gri­

259
tos, as apostas arriscadas, a presença das moças engalanadas
tudo isso é próprio da idade”54. A vitória de um carro re-
sultava no enriquecimento dc uns e no empobrecimento de
outros; c o atrativo dos ganhos fortuitos exercia-sc tanto mais
tirânico sobre a multidão romana quanto ela sc compunha
de maior número de desocupados. Na factio preferida, os ri­
cos apostavam uma fortuna e os pobres, o resto da espórtu-
la. Por isso as explosões dc ruidosa alegria e os furores
contidos quando sc proclamava o vencedor. Por isso o con­
certo de louvores entoados c dc imprecaçÕes veladas em tor­
no dos cavalos favoritos e dos jóqueis malogrados. Por isso,
a fim de acalmar as dcccpçõcs mais intensas e evitar distúr­
bios que começavam a se esboçar, o banquete, cpulum, ser­
vido após o espetáculo, c durante o espetáculo as sparsiones
e as missilia, as chuvas de guloseimas, bolsas cheias, “bônus”
para um navio, uma granja, uma casa, que pela vontade de
Agripa, Nero, Domiciano, caíam sobre a platéia c aos mais
espertos proporcionavam revanche e consolo55. Por isso, en­
fim, a terrível parcialidade a favor ou contra tal factio, mani­
festada pelos césares quando eram jogadores apaixonados,
desde Vitcllius, que executou os inimigos dc seus Azuis, até
Caracala, que condenou à morte os aurigas dos Verdes.
Na cpoca que focalizamos nem Trajano nem Adriano
mergulharam nessa loucura criminosa; c logo virá o tempo
cm que Marco Aurélio, o filósofo, sc felicitará pela própria

continua possuída por essa paixão, e os melhores imperado­


res aproveitam-se dc sua servidão. As oportunidades que a
política lhe proporcionava sc devem às corridas. As apostas
passaram do Foro ao circo, onde as “facções” substituem os
antigos partidos. Ccrtamentc é o sinal de uma decadência mo­
ral que entristece o orgulho patriótico de um Juvenal c a ele­
vada sabedoria dc um Marco Aurélio. Ao mesmo tempo,
contudo, é um derivativo para as necessidades de agitação
que atormentam as massas; pelo menos, o regime imperial
soube manipulá-lo para o benefício de sua estabilidade e da
pública.

260
O teatro

Segundo alguns eruditos, os grandes jogos cíclicos incluí­


ram sob a República mais representações cênicas que corri­
das57. Contudo, c difícil estabelecer distinção entre elas5*; e
ainda que admitamos essa proporção no início, certamcntc
ela se inverteu sob o Império. O gosto romano preferia os
drcewes às tragédias, às comédias c aos seus sucedâneos mais
recentes. Plínio, o Jovem, que não revela nada sobre a pai­
xão de seus contemporâneos pelo teatro, lamenta a impor­
tância que atribuem a um “miserável” traje de jóquei “não
só um populacho ainda mais miserável”, como ainda pes­
soas que julgaríamos distintas c que sc dizem “sérias”. “Quan­
do penso nessa diversão fútil, tola, monótona, que as imo­
biliza”, declara ele, “sinto certa alegria por não experimen­
tar essa alegria.”59 Se em sua época as corridas conquistaram
a elite, não c difícil imaginar a atração que exerciam sobre
o homem do povo, cuja ambição cm geral se limitava a pos­
suir rendas suficientes para poder ter dois escravos robustos
que, carregando-o às costas, lhe permitissem “instalar-se sem
perigo no circo tumultuoso”60 até o fim da vida. E com cer­
teza Trajano interpretou o anseio da grande maioria dos sú­
ditos quando, cm 112, pretendendo gratificá-los com ludi
extraordinários, pagou-lhes o circo por trinta dias consecu­
tivos e o teatro, só por uma quinzena61. E verdade que os
Fíistos dc Óstia, aos quais devemos a informação, acrescen­
tam que as representações tiveram lugar em três palcos ao
mesmo tempo. Contudo, por vastos que fossem, os três tea­
tros de Roma reunidos caberíam umas cinco vezes na cavea
do Circo Máximo. O hemiciclo do teatro de Pompeu, cons­
truído em 55 a.C. a nordeste do circo Flaminius, onde as cur­
vas da Praça di Grotta Pinta ainda lhe desenham o contorno,
abrigava ao redor dc seus 160 metros de diâmetro quarenta
mil loca, o que provavelmente limita a vinte c sete mil o nú­
mero de assentos62. O hemiciclo do teatro dc Balbo, traça­
do no ano 13 a.C. no atual Monte dei Cenci, comportava
apenas onze mil e quinhentos c dez loca, com sete mil e sete­
centos assentos. Enfim, concebido pelos arquitetos de Júlio
César, concluído em 11 a.C. pelos de Augusto, o hemiciclo

261
do teatro de Marcelo, que o Palácio Sermonctta hoje coroa
c cuja massa imponente dc travertino c disposição harmo­
niosa os notáveis trabalhos urbanísticos da Via del Mare res­
saltaram, possuía em 150 metros dc diâmetro apenas vinte
mil e quinhentos loca, com catorze mil assentos. Assim, os
três teatros podiam abrigar no máximo sessenta mil especta­
dores. Número ínfimo, se comparado aos duzentos e cinquen­
ta e cinco mil lugares que totalizamos no grande circo.
Número ainda prodigioso, sc confrontado com a capacida­
de dos maiores teatros do mundo contemporâneo, com os
dois mil cento e cinquenta e seis lugares do Opera de Paris,
os dois mil c novecentos do San Cario de Nápoles, os três
mil c seiscentos do Scala dc Milão, ate com os cinco mil do
Colon de Buenos Aires. O menor teatro da Roma imperial
ainda era o dobro do maior teatro americano, e a simples
consideração das dimensões atesta que, mesmo sendo menos
imperiosa que a paixão das corridas, a paixão do teatro arre­
batava os romanos. Para satisfazê-la, os monarcas inspiraram
ou financiaram a construção dc teatros dc pedra, tanto mais
onerosa, contudo, porque a “temporada” intercalada entre
os ludi Megalenses e os ludi Plebci durava apenas de abril a
novembro62* e nesse reduzido período as representações ti­
nham lugar apenas cm determinado número dc dias; e por­
que, malgrado o rápido declínio — essa paixão só se extinguiu
após o Império —, o teatro de Pompeu, restaurado sob Do­
miciano, sob Dioclcciano, sob Honório, foi reparado uma
última vez pelos cuidados do rei ostrogodo Tcodorico, en­
tre 507 e 511 d.C.
A primeira vista somos tentados a louvar a vocação do
povo romano por uma arte dramática que bastaria para a gló­
ria da Grécia antiga c que ilustram em latim os nomes de
Accius e Pacúvio e as obras de um Plauto ou de um Terên-
cio. Na realidade, contudo, o que ocorreu com os atenien­
ses repetiu-se com os romanos; quando Roma começou a
construir seus teatros permanentes e a sua imagem, o mun­
do por ela governado se cobriu de edifícios semelhantes, cu­
ja opulenta vastidão e cujo contorno perfeito nos encantam,
nao só na Itália e na Gália, mas também em Lícia, Panfília,
Sabrata, na Tripolitânia, a arte dramática aos quais se desti­

262
navam estava morrendo, como sc houvesse incompatibili­
dade entre sua sobrevivência e a ascensão das massas. Os con­
cursos ainda preenchiam os dias dc representações, porém
só envolviam donos de companhias teatrais (domini grc%i$).
A produção se esgotara. As últimas tragédias compostas pa­
ra o palco, o Tiestes de Varius e a Medéia de Ovídio, remon­
tam ao reinado dc Augusto; e não há menção de novas
comédias após as de L. Pomponius Bassus, sob o reinado de
Cláudio. A partir da época de Ncro, os literatos que se obs­
tinavam em elaborar obras dramáticas contentaram-se em le­
ias, como Sêneca leu suas tragédias, nos auditoria, perante
letrados como eles. No final do século I a.C. o público vi­
veu exclusivamcnte do repertório antigo. Tanto que na imen­
sidão das salas ao ar livre, na confusão c no burburinho da
platéia, já não conseguia acompanhar uma delicada intriga
em versos a não ser que a conhecesse de antemão, que já a
tivesse visto antes, c que reconhecesse as peripécias graças
às indicações com que o prólogo lhe refrescava a memória
e aos sinais invariavelmente preestabeleeidos que orientavam
seu entendimento: as máscaras aterradoras ou hilariantes, cuja
cor, marrom ou branca, identificava o sexo masculino ou
feminino das personagens, enquanto as vestes drapejadas à
grega ou à romana situavam a ação e a condição social: brancas
para os velhos, multicoloridas para os jovens, amarelas para
as cortesas, púrpura para os ricos, vermelha para os pobres,
uma túnica curta para os escravos, uma clâmide para os sol­
dados, um pallium arregaçado para os parasitas e mosquea-
do para os negociantes. Porém, o espetáculo perdia seu
interesse nas ficçôes estereotipadas, e o público, que só ti­
nha de se lembrar ou que desistia de compreender, concen­
trava a atenção na interpretação dos atores e nos detalhes
do cenário. O teatro romano tornara-se grande demais para
ele; sucumbiu sob a forma clássica de que se revestira desde
cerca de três séculos e que sua própria extensão agora torna­
va intolerável. Prolongava-se graças a convenções cada vez
mais enfadonhas e só se libertou por meio de transforma­
ções radicais que o expulsaram da literatura.
No final do século II d.C., provavelmente sob a influên­
cia do teatro helenístico63, a evolução da tragédia realizara-

263
sc cm duns etapas, cuja lógica implacável por fim a transfor­
mou cm alegorias dc balé. Por toda a Antiguidade o texto
das tragédias romanas dividia-se em partes dialogadas (diver-
bia) c rccitativos e cantos (cantica), cm que o duro público
romano relaxava as tensões c transportava-se no tempo c no
espaço. Os donos de companhias do período republicano le­
varam o coro da orquestra para o palco, com a intenção de
envolvê-lo mais na ação. Os do Império não hesitaram em
incorporá-lo inteiramente, com o risco de dissolve-lo nas fan-
tasmagorias do cenário c no encantamento do lirismo musi­
cal. Cortaram sem piedade os manuscritos tradicionais que
montavam todos os anos e restringiram tanto e tão bem o
diálogo que depois de suas tesouradas uma tragédia consistia
na sucessão mais ou menos bem organizada de suas pausas
líricas ou cantica. Imaginemos El Cid reduzido a suas estân­
cias, Atbalie, a seus coros, e começaremos a compreender a
metamorfose da cena imperial.
Podemos pensar que os mais famosos dos cantica repeti­
dos de geração cm geração eram conhecidos de todos, sem
que ninguém os ensinasse. Nos funerais de César, a multi­
dão entoou os cantica do Armorum indicium, dc Pacúvio,
que pareciam ter sido compostos dois séculos antes só para
traduzir sua dor: “Pois não os salvei para morrer pelas mãos
deles?

“Men ’ servasse nt essent qui me perderent?”64

Lembramos também como, no decorrer das saturnais de


55 d.C., Britânico se esquivou à astúcia de Nero, que, para
ridicularizá-lo, dc repente lhe ordenou que fosse para o meio
da sala e cantasse alguma coisa no final do banquete, para
o qual convidara também vários de seus companheiros de
devassidão. O jovem príncipe nao sc deixou intimidar. Em vez
de calar-se ou de proferir as obscenidades que os outros convi­
vas esperavam e teriam despejado, entoou um poema adequa­
do a seu infortúnio, pois o herói que devia pronunciá-lo fora
despojado do trono paterno e do posto supremo. Como no­
tou Justus Lipsus, era o cantiaim da Andrcnnaca de Ênio, cu­
jos versos mais belos Cícero nos preservou em suas Ttisctdanes'.

264
“O Pater! O Patria! O Priami domus***.

O efeito da dcclamaçao foi irresistível, e mesmo à mesa


de Nero produziu “um enternecimento tanto mais sincero
quanto a noite e o prazer haviam banido o fingimento”66.
E a mesma emoção que os cantica das representações tea­
trais despertavam na multidão. Modulando as melopéias que
durante tanto tempo o comovera ou acalentara, sustentando-
as com a polifonia dos instrumentos, salientando-as com os
traços deslumbrantes de um cenário maravilhoso, sobretu­
do animando-as com entonações patéticas e a intensa gesti-
culação do cantor, o espetáculo tirava o público da apatia
e, com um poder multiplicado pela presença de milhares de
homens e mulheres que se lembravam juntos e vibravam em
uníssono, despertava nele um eco que abalava ou serenava
os nervos e terminava por comunicar-lhe à consciência a força
e a dor dos sentimentos eternos. Derivado da incomparável
tragédia grega, o drama romano jazia em fragmentos entre
os mármores das cenas imperiais, mas, com as árias da ópera
nascida sobre suas ruínas, renascia ainda a intervalos a pura
embriaguez que outrora a audição das antigas obras-primas
suscitara.
Só que, por um deslize fatal, a ópera se despojou de tu­
do o que ainda a ligava á poesia. Em todos os tempos a lei
do gênero exigira que o ator dos cantica fosse um solista67.
Cada vez mais eles eram talhados à medida do cantor sobre
o qual recaíam o peso do esforço e a honra do sucesso. Ele
suportava a sua volta apenas os figurantes: os pirricistas, que
se balançavam a sua ordem e cadência; os symphoniarii, que
lhe davam a réplica e retomavam seus motivos; os instru­
mentistas da orquestra, que o substituíam ou o acompanha­
vam: citaristas, trompetistas, cimbaleiros, flautistas, acor-
deonistas (scabelarii). Não passavam de satélites de seu astro.
Ele sozinho encarnava toda a ação, cantava, representava, dan­
çava. A custa de um regime severo, que bania alimentos e
bebidas ácidas e o obrigava a ingerir vomitivos e purgativos
tao logo um ligeiro aumento de corpulência ameaçasse “sua
linha”, prolongava a juventude, preservava a elegância da si­
lhueta; e, fiel à mais fastidiosa das disciplinas, repelia sem

265
esmorecer os exercícios de flexibilidade que conservam o vi­
gor dos músculos, a elasticidade das articulações, o volume
e a beleza da voz68. Capaz dc personificar todos os tipos hu­
manos, de representar todas as situações, tornou-sc aquele
cujas imitações abrangem a natureza, "o pantomimo” que
com sua fantasia cria uma segunda natureza. Assim, embora
a lei continue a chamá-lo de histriao e a declará-lo “infame”,
muitas vezes ele é o herói do dia e a coqueluche das mulhe­
res. No reinado de Augusto, o pantomimo Pílades encheu
a Cidade com sua fama, pretensões e disputas. Sob Tibério,
a multidão se atracou pelos belos olhos dos pantomimos que
dividiam as predileções, e a rixa degenerou num motim on­
de vários soldados, um centurião e um tribuno ficaram es­
tendidos no chão69. Nero, que lhes invejava a celebridade,
nao obstante viu-se forçado a puni-los para deter as efusôes
sangrentas provocadas pelas rivalidades. Mas nem ele nem
seus súditos podiam dispensá-los, e, tendo-os chamado de volta
pouco depois de bani-los, admitiu-os na intimidade da cor­
te, primeiro exemplo do arrebatamento que Tácito depre­
ciou sob o nome de histrionalis favor™, da idolatria incurá­
vel e contagiosa como uma doença (morbus)71, à qual sucum­
birá a imperatriz Domícia nos braços do pantomimo Paris
ao final do século I.
Nao é contestável que entre os ídolos do povo romano
não tenha havido grandes artistas. Por exemplo, Pílades I,
na época de Augusto, com certeza enobreceu “4 pantomi­
ma”, gênero que instaurara em Roma. Vários episódios ates­
tam sua consciência e sua dedicação. Um dia em que seu aluno
e êmulo, o pantomimo Hilas, ensaiava o papel de Edipo e
revelava grande segurança, ele se aproximou dele e para
conduzi-lo de volta à verdade disse-lhe: “Imagina, Hilas, que
és cego”. Outra vez, Hilas desempenhava em público uma
pantomima cuja frase final era, em grego, o grande Agamê-
non, tÒv ntyav’ Ayanqivavot, e, para realizar materialmen­
te a cláusula do verso, ele se erguia em toda a sua estatura;
nesse momento, Pílades nao pôde deixar de gritar-lhe da ar­
quibancada da cavea onde estava sentado como simples cu­
rioso: “Mas tu o fazes comprido, não grande!” Ao ouvir isso,
a platéia obrigou-o a subir ao palco para executar a mesma
pantomima; e quando chegou ao trecho cuja interpretação

266
I
criticara, sem artifícios Pílades assumiu o ar de um homem
simples que medita, pois a característica do chefe é pensar
mais alto que os outros e para todos72. No mínimo, Pílades
tinha o senso da pura beleza, a que floresce, para as almas,
nas profundezas do real.
Porém, seus sucessores não estavam à sua altura. A maio­
ria desistiu dc ser exímio ao mesmo tempo no canto e na
dança; e, assim como nas origens da tragédia romana Lívio
Andrônico, que representava suas próprias peças, parava de
declamar porque as exigências do público lhe arruinaram a
voz e limitava-se a interpretar seu papel através de gestos que
um cantor expressava ao som das flautas73, os pantomimos
da época de Domiciano e Trajano em geral quiseram ser ape­
nas dançarinos, deixando ao coro a tarefa de entoar os canti-
ca cujos sentimentos seus passos, atitudes e gestos traduziam.
Assim como o canto absorvera a tragédia, a música se sub­
meteu à dança e o talento dos “pantomimos” manifestou-se
apenas na linguagem muda dos movimentos. Exceto a voz,
tudo neles falava: a cabeça, os ombros, os joelhos, as pernas,
sobretudo as mãos. Seu virtuosismo arrancou de Quintilia-
no um brado de admiração: “Suas mãos pedem e prometem;
chamam e despedem; traduzem horror, medo, alegria, tris­
teza, hesitação, aprovação, arrependimento, medida, aban­
dono, número e tempo. Excitam e acalmam. Imploram e
aprovam. Têm um poder de imitação que substitui as pala­
vras. Para evocar a doença, contrafazem o médico que tateia
o pulso e para representar a música dispõem os dedos à ma­
neira do tocador de lira”74. No século II d.C., o pantomi­
mo alcançou tal maestria que sem a ajuda da palavra é capaz,
como no Festim de Tiestes a que Luciano assistiu, represen­
tar Atreu e Tiestes, Egisto e Aeropa para os aplausos de um
público que entrevê todas as suas intenções75.
Por certo, Terpsícore é uma das musas, e depois de ler
Paul Valéry não poderiamos ignorar as poéticas magias da
dança. Ela exalta a alma glorificando o corpo; no fluxo e re-
fluxo dos saltos caprichosos e estudados, incita e pacifica o
vagalhão das paixões humanas e em momentos divinos re­
produz, pela flexibilidade de suas linhas sonoras, a própria
harmonia do universo. No entanto, é forçoso admitir

267
que as espantosas transformações dc Fregoli
* nao procedem
das sublimes inspirações de Tcrpsícorc e nao há dúvida dc
que com o exagero de suas acrobacias os pantomimos roma­
nos mataram a arte.
Primeiro, inverteram imprudentemente a ordem dos va­
lores. Depois de comentar os cantica com sua mímica,
arrogaram-se o direito de subordiná-los a ela. Em vez dc ser­
vir á obra, confiscam-na. Os donos de companhias, músicos
e libretistas são, agora, apenas seus operários. Os poetas se
consideram felizes sc, como cm Roma, encomendam-lhes e
pagam-lhes um “Agave”76; porem, essa felicidade custa aos
autores a liberdade criadora. Os pantomimos ditam a lei, con­
trolam a encenação, impõem os versos, sopram a música e
escolhem os assuntos segundo dotes e defeitos, para valori­
zar uns c esconder os outros diante de um público cujo nú­
mero necessariamente lhe aviltou o gosto. Depois, e sobre­
tudo, pretendem cada vez mais nao tocar os corações, c sim
impressionar os olhares, gelar ou esbrasear os sentidos. Mo­
dificam os dramas negros, onde semeiam o horror, c os dra­
mas libidinosos, onde lhes é fácil e seguro excitar uma platéia
que logo se torna cúmplice do erotismo premeditado. A pri­
meira categoria pertencem, no repertório cujos elementos
Luciano registrou em sua maioria: o Festim de Tiestes c a Aga­
ve, louca e filicida, da qual já falamos; a Níobe, cega de dor
entre os filhos massacrados; as Fúrias da lenda épica ou da
mitologia; a Fúria de Ajax e a Fúria de Hércules, em que Pila-
des já exagerava77. Quanto à segunda, a lista é infindável.
São os amores infelizes ou culpados de Dido e Enéas, Vênus
e Adônis, Jasão e Medeia. E a equívoca estadia de Aquiles
disfarçado de mulher entre as filhas de Licômcdes, em Ci-
ros. São os incestos abomináveis: Ciniras e Mirra, sua filha,
cuja primeira representação, segundo Josefo, ocorreu na vés­
pera do assassinato de Caligula78. Procnc e Tereu, seu cu­
nhado, que lhe cortou a língua para assegurar-se de seu silen­
cio e do qual ela se vingou servindo-lhe à mesa o corpo de
ítis, filho que Tereu em justas bodas tivera de Filomela, ir­
mã de Procnc; Macareu e Cânace, sua irmã, cujo papel Nero

* Leopoldo Fregoli (1867-1936), ator italiano, famoso por metamorfoses que


se tomaram legendárias. (N. da T.)

268
sc envergonhou dc representar numa dc suas escandalosas
exibições79, embora ela parisse cm cena c Éolo jogasse o be­
bê à sua matilha. Pior ainda é a bestialidade dc Pasífae
oferecendo-se a um touro no labirinto de Creta.
Tais assuntos só podiam embrutecer ou corromper os
espectadores que ora vibravam com um medo puramente fí­
sico, ora, com perturbada delícia, sentiam insinuar-se em suas
veias o fogo dos desejos estéreis. As mímicas medonhas le­
vavam as mulheres ao transe. Ante as gestieulações lascivas,
elas deliravam: “Tuccia já nao comanda seus sentidos; Apu-
la exala longos suspiros dolentes como no amplexo; Timela
fica muda de atenção; Timela, novata ainda, faz seu aprendi­
zado”80. Nessas condições imaginamos que, por respeito à
santidade de seu poder, Trajano — que, no entanto, segun­
do as maledicências, nutriu demasiada ternura por Pílades
II, o grande pantomimo de sua cpoca31 — tratou de impe­
dir que no futuro, num palco entregue à lubricidade, os his-
triões ainda ousassem interromper os bailados obscenos para
dançar à sua maneira o elogio do imperador reinante92.
Transformando-se na ópera, depois na pantomima, a tragé­
dia terminara por rebaixar o teatro romano ao nível do mu­
sic hall.
Talvez um pouco menos rápida, a decadência da comé­
dia nao foi menos profunda. No século II d.C. os romanos
ainda iam assistir a uma representação de Plauto e Terêncio,
porém, mais para honrar a tradição que por prazer. Se, co­
mo escreve espirituosamente Roberto Paribeni, os romanos
se afastaram da tragédia porque “em seus palácios, habitua­
dos a suculentos manjares”, Edipo em Colona e Ifigênia em
Táuris produziríam o efeito “de tisanas de camomila”83, de­
vemos pensar que os condimentos moderados das Menecmas
ou da Andriana lhes pareciam insípidos. Uma tentativa de
Batila para renovar a comédia por meio da música e da dan­
ça, no século de Augusto, não sobreviveu a ele. Como não
conseguiram regenerar a comédia, os romanos deixaram-na
entregue à decadência e substituíram-na pela mímica, que já
havia demonstrado sua força nas capitais dos diádocos e que,
introduzida em Roma no século I d.C., logo foi adaptada
às conveniências das massas.

269
A mímica — em grego /u/íos, em latim tnimtis — desig­
na ao mesmo tempo o gênero c, alterando-se a forma para
o masculino, também o ater. E uma farsa bufa, ou bufa e
dramática, calcada o máximo possível na realidade84. Pro­
priamente dito, é uma “fatia dc vida” quente c apimentada
que se transportava para o palco, cujo sucesso será determi­
nado cada vez mais por seu realismo, ou, se preferirmos, por
seu naturalismo.
Na mímica, as convenções são abolidas. As personagens
nào usam máscara. Os atores se vestem como na cidade. São
tao numerosos quanto necessário e formam um grupo ho­
mogêneo. Os papéis femininos sao representados por atri­
zes cuja reputação de desregramento já estava firmada na
época dc Cícero — sensível ao talento de Arbuscula e aos
encantos de Citeris, o orador prontificou-se a defender um
burguês de Atina que raptara uma “mimula” em nome de
um direito consagrado pelo uso nos municípioss5. Os temas
são retirados do cotidiano, com decisiva predileção pelas coisas
mais grosseiras e pelos tipos mais baixos: a diurna imitado-
ne vilium rerum et levitim personarum86. Em geral, são tra­
tados dc modo caricatural, chegando mesmo à impudcncia
e à atrocidade, como veremos. A política era admitida, co­
mo nas revistas francesas de fim dc ano. Durante a Repúbli­
ca, a mímica muitas vezes era crítica, e Cícero esperava de
suas alusões o início dc uma revanche contra o despotismo
dc César. No Império, por necessidade a mímica alinhou-se
do lado do soberano. Zombava dos indivíduos malvistos na
cone. O mímico Vitalis gabou-sc dc seu particular sucesso
nesse tiro ao alvo: “Aquele que minha imagem reproduzia
a seus olhos estremeceu de horror ao ver que eu era mais
ele que ele mesmo”; e em minha opinião não foi por acaso
que a mímica mais representada entre 30 e 200 d.C., o Lati-
reoltis, de Catulo, montada no reinado de Caligula e bem co­
nhecida de Tertuliano, provava, pelo destino reservado ao
bandido, seu protagonista, que sob os bons governos os maus
são punidos e a última palavra cabe sempre à polícia87.
Ccrtamente havia na concepção da mímica, em seu des­
prezo ao convencional e em seu esforço pela simplicidade,
elementos fecundos de renovação; e pelo menos dois auto­
res de mímicas, no final do século I a.C., Dccimus Laberius

270
c Publilius Syrus, elevaram à dignidade da melhor literatura
as peças que escreviam e representavam. Todavia, quanto mais
crescia a voga da mímica, mais sc encolhia a parte rcícrcntc
ao texto em sua elaboração. Como Molière, os grandes mí­
micos que citei eram autores que representavam as próprias
obras. Os mímicos imperiais foram atores que adaptavam
a seu desempenho os enredos que haviam tramado mental­
mente e que, segundo o impulso do momento e o humor
do público, bordavam com variações imprevistas sobre o te­
ma que haviam anunciado. O mímico poderia ter dado à co­
média antiga contribuições análogas às que a Comédie-Fran-
çaise deve ao teatro livre. Na realidade, suplantou-a com pro­
duções cuja improvisação se assemelha à de Tabarin* na fei­
ra ou à dc palhaços nos circos parisienses, e onde as palavras
não tinham mais importância que as legendas do cinema, no
desenrolar de nossos filmes, ainda que sejam bilíngues.
Em geral, a subprodução cinematográfica divide-se hoje
entre filmes dc aventura e dc romance. Os primeiros nos apre­
sentam uma seqüência mais ou menos ligada, mais ou me­
nos descosida, de roubos, assassinatos a murros, facadas ou
tiros de revólver, perseguições vertiginosas e prisões movi­
mentadas, catástrofes indizíveis e salvamentos miraculosos.
Os segundos nos prodigalizam os idílios langorosos e as pai­
xões descabeladas, passando, segundo o gosto da clientela,
da água-com-açúcar dos noivados ingênuos ao cinismo dos
adultérios, do sentimentalismo emocionado ou vulgar à li­
bertinagem do despir-se e à licenciosidade, ritmada pelos lon­
gos beijos de Hollywood, dos encontros e das quedas. Ora,
por surpreendente que pareça a coincidência, são exatamen­
te os mesmos ingredientes que há dezoito séculos entraram
na composição das mímicas romanas. Então a Cidade se de­
leitava com as mímicas de Latinus e Panniculus, recheadas
com histórias de raptos, maridos enganados, amantes escon­
didos num providencial baú88, cujas atrizes, como lhes era
permitido antigamente só nos jogos noturnos dos FloralLt,
acostumaram-se a despir-se da raiz dos cabelos à planta dos
pés — ut mimae nudarenttir^ —, com um despudor que fa-

’ Pseudônimo do francos Antoine Girard (1584-1626), charlatão e ator far-


scsco. (N. da T)

271
zia Marcial cnrubesccr90. Ou então preferia as mímicas ater­
radoras, onde trocavam murros, ressoavam palavrões, esta­
lavam as palmadas aplicadas no rosto dos figurantes, onde
os golpes se degeneravam e o sangue acabava jorrando. Sc
o Laureoltis se manteve em cartaz por cerca de duzentos anos,
sua duração se explica pela ferocidade do bandido incendiá­
rio e degolador, que era a estrela da peça, e pela virulência
do castigo em que o protagonista expirava sob torturas que
nada tinham de imaginário, pois Domiciano autorizara a subs­
tituição, no final da peça, do ator por um condenado de di­
reito comum, Prometeu irrisório e digno de pena, pregado
na cruz, dilacerado pelo urso da Caledonia a que fora entre­
gue como pasto. Esse espetáculo ignóbil não revoltou os es­
pectadores. Juvenal alude a ele em suas sátiras sem maldade,
e Marcial louva o príncipe que o tornou possível91. Assim
representada, a mímica parecia aos romanos atingir a perfei­
ção de seus meios e dc seus efeitos; para dizer a verdade, essa
fatia de vida cortada numa carne palpitante deixa atrás de
si as mais sinistras realizações que as trucagens da fotografia
concedem ao cinema. Ao mesmo tempo, contudo, ao térmi­
no de sua carreira a mímica definitivamente expulsou do palco
romano a arte com humanidade; tocou o fundo dc uma per­
versão à qual as massas da Cidade cederam ao invés de repu­
diar, pois ao longo dc muitos anos as matanças abjetas do
anfiteatro aviltaram seus sentimentos e perverteram seus ins­
tintos.

O anfiteatro e suas matanças

Pois enfim, penetrando nas arenas após quase dois mil


anos de cristianismo, temos a impressão dc descer ao infer­
no da Antiguidade. Pelo bem dos romanos, gostaríamos de
arrancar do livro de sua história a página onde sc diluiu, man­
chada com um sangue indelével, a imagem da civilização cu­
jos vocábulos significativos eles criaram e cuja realidade viva
propagaram. Não só reprovamos, como não conseguimos

272
compreender a aberração em que caiu o povo quando trans­
formou o mimus, o sacrifício humano, numa festa celebrada
alegremente pela cidade inteira, e dentre todos os prazeres
que lhe eram oferecidos preferiu o assassinato de homens ar­
mados apenas para matar c serem mortos à sua frente. Em
164 a.C. o povo deixou o teatro onde sc representava a Heci-
ra dc Tcrcncio para assistir a uma dessas lutas de gladiado­
res. No século I a.C. o povo aprecia tanto essas lutas que
os candidatos procuram conquistar-lhe a simpatia convidando-
o a carnificinas espetaculares, e, em 63 a.C., para reprimir
uma intriga onerosa, o Senado decreta a cassação antecipada
dos magistrados que as tivessem financiado nos dois anos an­
teriores à eleição92. Naturalmente os aspirantes à monarquia
utilizaram-nas para seus fins ambiciosos: Pompeu, que com
elas cansou à saciedade seus concidadãos93; César, que reno­
vou seu atrativo com o luxo deslumbrante de que as reves­
tiu94. Enfim, estimulando nas multidões o gosto sanguiná­
rio, os imperadores forjaram na gladiatura o mais seguro e
o mais sinistro dos instrumentos de reinado.
Augusto foi o primeiro. Fora da Cidade observou as leis
póstumas de Júlio César e continuou exigindo um munus
anual dos magistrados municipais, que, aliás, praticamente
sc viram sozinhos para subvencioná-lo a partir de 27 d.C.,
quando Tibério o proibiu a particulares cujo rendimento fosse
inferior ao “capital equestre” de 400 000 sestércios95. Na Ci­
dade, impôs a obrigação duas vezes por ano aos pretores em
exercício, substituídos no cargo, a partir de Cláudio, pelos
questores, mais numerosos, e a conteve num limite dc cento
e vinte pares de duelistas por espetáculo — depois Tibério
diminuiu para cem96. Contudo, a restrição não visava repri­
mir a paixão dos súditos, mas sim aumentar o prestígio do
soberano. Pois, se assim regulamentou a editio dos munera
“ordinários”, Augusto controlou a seu bel-prazer a dos mu­
nera “extraordinários”, que ofereceu ao povo três vezes em
seu nome pessoal e cinco em nome dos filhos e netos97, e
sobre os quais, pelo insustentável brilho de suas representa­
ções, atribuiu-se uma espécie de monopólio de fato, prestes
a converter-se em monopólio de direito, como ocorreu com
as proibições formais dos Flávios98. Assim, pelos decretos de
Augusto, os munera constituíram um espetáculo tão oficial

273
c obrigatório quanto os ludi do teatro ou do circo, c o espe­
táculo imperial por excelência; ao mesmo tempo, o Império
os dotou de grandiosos edifícios adequados á sua finalidade,
cuja forma, improvisada pelo acaso e repetida em centenas
dc exemplares, hoje nos aparece como uma criação nova e
poderosa da arquitetura imperial: os anfiteatros.
Até César, os promotores dc numera haviam ou empres­
tado a hospitalidade do circo ou construído no Foro paliça­
das que eram demolidas no dia seguinte. Em 53 ou 52 a.C.,
Curion, o Jovem, que secretamente Ccsar remunerava com
o ouro das Gálias c cuja candidatura ao tribunal o ditador
patrocinava, resolveu causar grande impacto nos eleitores.
Sob o pretexto de homenagear os manes do pai recém-
falecido, anunciou jogos ccnicos acrescentados de um mu-
nus e teve a original idéia de construir para esse dia surpreen­
dente não um, e sim dois teatros de madeira, ambos espaçosos,
unidos por curvas no topo e montados sobre gonzo. Antes
do meio-dia, para os jogos cênicos, permaneciam ligados um
ao outro, a fim de que o barulho de uma representação não
perturbasse a outra. A tarde, quando devia ocorrer o munus
— a divisão do programa indica já que as pessoas atarefadas
na pane da manhã preferiam privar-sc de comédias a dispensar
a gladiatura —, os dois teatros giravam sobre eles mesmos
e se uniam frente a frente, de maneira que os dois hemici-
clos formavam uma oval, enquanto as paredes dos respecti­
vos palcos se afastavam para ceder lugar a uma única arena.
A manobra estimulava ao máximo a curiosidade de uma pla­
téia que, indiferente aos perigos que isso acarretava, exulta­
va por participar de tão mirífica revolução. Um século depois,
Plínio, o Velho, ainda se exasperava com a imprudência dos
curiosos: “Ei-lo, o povo vencedor da terra e conquistador
do universo, suspenso numa máquina e aplaudindo o perigo
que afronta”99. Certamente era uma grande audácia; contu­
do, pensando bem, dela originariam todas as arenas do
mundo.
Com efeito, para o munus que ofereceu à plebe por oca­
sião do quádruplo triunfo, em 46 a.C., César adotou de ime­
diato e sem maquinaria o dispositivo do teatro duplo que
seu amigo Curion imaginara100. O genial ditador encontra­
ra a fórmula; porém, como a aplicou a uma construção de

274
madeira provisória, c a Augusto que pertence a idéia de
realizá-la com pedra, c aos escritores do século dc Augusto
sc deve o nome latino que designaria o novo gênero dc mo­
numento: amphitheatrum101.
O mais antigo dos anfiteatros permanentes é aquele que
um parente do imperador, C. Statilius Taurus, ediíícou em
Roma cm 29 a.C. Situado ao sul do Campo de Mane, foi
destruído no incêndio dc 64 d.C.,C2 Pouco depois, os Fla­
vios decidiram substituí-lo por outro, de forma semelhante
c planta ampliada. Vespasiano começou a construí-ío. Tito
concluiu a estrutura; Domiciano, a decoração. A partir de
80 d.C., nem os tremores de terra, nem as depredações do
Renascimento, que reutilizou seus blocos no Palácio de Ve­
neza, no Palácio Barberini e no Palácio do Capitólio, aba-
laram-lhe a massa ou diminuíram-lhe a grandeza. Arranha­
da, mas não danificada pela marca do tempo, sua beleza res­
plandece no local onde surgiu há mais de dezoito séculos e
meio, entre Eléia, o Célio e o Esquilino, perto do Colosso
do Sol, na depressão do lago da Casa Dourada, drenado para
tal fim: stagnum Neronis. E o anfiteatro Flaviano, hoje de­
signado geralmente como Coliseu, nome que a Idade Média
nos legou. No ano 2 a.C., graças a custosos trabalhos reali­
zados na margem direita do Tibre, Augusto duplicara o an­
fiteatro de Taurus, destinado aos combates terrestres, com
uma “naumaquia” que devia representar as batalhas navais
e cuja elipse externa, definida por eixos de 556 e 537 metros,
circunscrevia nao uma área de terra batida, recoberta de areia,
e sim uma extensão de água cortada por uma ilha artificial,
e sc quebrava no meio dos bosques e jardins cultivados ao
redor. Embora a naumaquia de Augusto cobrisse uma su­
perfície três vezes superior à área do Coliseu, e este tivesse
sido disposto, pelo menos no começo, para servir tanto de
arena como de naumaquia, o público não se deu por satisfei­
to, e Trajano teve de construir um anfiteatro de reforço, o
amphitheatrum Castrense, à pequena distância da atual Igreja
de Santa Cruz de Jerusalém, e uma naumaquia suplementar,
a nordeste do Castelo de Santo Angelo: a naumachia Vatica-
na. Das duas naumaquias e do amphitheatrum Castrense con­
servamos apenas a lembrança. Contudo, a visão do que res­

275
tou do Coliseu basta para nos explicar, em sua mais perfeita
realização, a disposição típica dos anfiteatros romanos.
Talhado num travertino compacto e duro, cujos blocos,
extraídos das pedreiras de Albulac, perto de Tibur (atual Ti­
voli), foram transportados para Roma por uma estrada de
6 metros de largura, construída para eles, o Coliseu forma
uma oval bem arredondada de 527 metros dc perímetro so­
bre dois eixos de 188 c 156 metros, e ergue os quatro anda­
res de suas muralhas à altura de 57 metros. Visivelmente
copiados da rotunda do teatro de Marcelo, os três primeiros
superpõem três fileiras de arcadas, primitivamente guarne­
cidas de estátuas, que diferem entre si apenas pelas ordens
das colunas: dórica, jônica e coríntia. O quarto andar, que
não existe no teatro de Marcelo, consiste em um muro cheio
que pilastras a platibanda fecham em registros alternativa­
mente perfurados por janelas e adornados com escudos dc
bronze que Domiciano aplicou e que desapareceram. Sobre
cada janela, três consolos correspondentes a outras tantas aber­
turas praticadas na cornija; eles suportavam as bases dos mas­
tros nos quais, em dias dc sol intenso, um destacamento da
frota de Miscna pendurava os panos do velum gigantesco que
abrigava os lutadores da arena e os espectadores da cavea. Esta
começava 4 metros acima da arena pela plataforma do po­
dium protegida por uma balaustrada de bronze, sobre a qual
se situavam os assentos em mármore dos “privilegiados” —
eu ia escrever “assinantes” —, cujos nomes chegaram até
nós. Mais além erguiam-se as três séries de arquibancadas,
ou rarewMZM. A primeira era separada do podium e da se­
gunda pelo duplo cinturão de praecinctiones, corredores cir­
culares no patamar limitados por muretas. Cada uma de­
las era dividida pelos corredores em rampa que ali “vo­
mitavam” o fluxo da platéia, donde seu nome vomitoria. A
primeira compreendia vinte andares, a segunda, dezesseis. En­
tre a segunda e a terceira interpunha-se um muro de 5 me­
tros de altura, onde se abriam portas e janelas. Sob o terraço
que o ligava á muralha externa sentavam-se as mulheres. So­
bre o terraço ficavam em pé os peregrinos e os escravos
que, nao tendo sido admitidos à distribuição dos “bilhe­
tes” de ingresso, ou tésseras, não podiam instalar-se nas ar­
quibancadas.

276
Enquanto os Regionários mencionam no Coliseu oiten­
ta c sete mil loca, estima-se em quarenta c cinco mil o núme­
ro dc assentos e em cinco mil o de lugares em pé, e na
arquitetura do monumento percebem-se ainda as engenho­
sas facilidades que oferecia para a entrada e a saída da multi­
dão. Nas setenta arcadas do perímetro, quatro, no prolon­
gamento dos eixos, eram interditadas ao público e desprovi­
das de sinais exteriores. As outras eram numeradas de I a
LXVI. Ao entrar, cada convidado do magistrado ou do so­
berano tinha apenas de dirigir-se para aquela cujo número
constava de seu “bilhete”, depois para o maenianum, o an­
dar, a arquibancada também indicada ali. Entre a cavea e a
muralha externa, dois muros concêntricos ao rés-do-chão de­
terminavam a dupla colunata, e, nos outros andares, a gale­
ria dc utilidade múltipla, pois sustentava a cavea, dava acesso
às escadarias que conduziam aos vomitoria e, enfim, propor­
cionava à multidão um passeio antes do espetáculo e nos en-
treatos um refúgio em caso de sol ou chuva fone. De todos
os lugares, os melhores evidentemente estavam no nível do
podittm', eram as tribunas que se confrontavam nas duas ex­
tremidades do pequeno eixo: a tribuna do imperador e da
família imperial, ao norte, e a do prefeito da Cidade e dos
magistrados, ao sul. Contudo, pode-se afirmar que até os pul-
lati, os pobres, vestidos de túnicas marrons, que se acotove­
lavam no “poleiro” do terraço superior, podiam acompanhar
as peripécias dos dramas mortais que se sucediam na arena.
Com seus eixos de 86 e 54 metros de comprimento, a
arena encerrava uma superfície de 35 ares e era delimitada
por uma cerca metálica que ficava a 4 metros da base do po­
dium, que protegia o público da fúria das feras. Os gladiado­
res entravam por uma das arcadas do grande eixo do edifício,
enquanto as feras permaneciam no subsolo da arena. Dota­
do de canalizações que em 80 permitiram inundar a arena
num piscar de olhos e transformar o anfiteatro em nauma-
quia, o subsolo recebera — sem dúvida quando se construiu
a naumachia Vaticano, sob Trajano — não só jaulas de alve­
naria onde ficavam os animais que deviam ir para a arena,
como todo um sistema de planos inclinados e monta-cargas
pelos quais eram transportados. Por certo não há como não
admirar os arquitetos dos Flávios, que, depois de drenar o

277
stagnum Neronis, ali ergueram um monumento colossal e per­
feito, onde outrora triunfou nos detalhes de seu arranjo a
engenhosidade dc sua técnica, cuja solidez desafiou os sécu­
los e que nos inspira a exaltação, ou antes, a plenitude, que
sentimos também em São Pedro dc Roma, de um poder tão
grande que deveria nos arrasar e dc uma arte tao segura dc
si que as proporções infalíveis nas quais se equilibra a funda­
mentam cm soberana harmonia. Contudo, para preservar o
encanto suscitado pela sua visão, teríamos dc esquecer as fi­
nalidades desumanas do monumento e os espetáculos de in­
suportável crueldade para os quais os arquitetos imperiais
realizaram essa obra-prima.
Na época que focalizamos a organização dos jogos san­
guinários não deixa nada a desejar, infelizmente103. Nos mu­
nicípios italianos, nas cidades das províncias, os magistrados
locais anualmente incumbidos dos munera recorrem a ne­
gociantes especializados — os lanistae — para cumprir seu
dever. Esses lanistae são industriais denegridos cuja profis­
são, na literatura c nos textos dos juristas, é marcada pela
mesma infâmia que a dos proxenctas ou lenones; na verdade
sao os alcoviteiros da morte. Aos duúnviros e aos edis o Ia-
nista fornece pelo melhor preço, para as lutas em que geral­
mente sucumbe a metade dos lutadores, o grupo dc gladi­
adores —familia gladiatoria — que ele mantém com seu di­
nheiro e no qual se confundem numa disciplina carcerária
os escravos que comprou e os pobres-diabos famélicos, ou
os filhos de famílias arruinadas, que, certos de ser bem ali­
mentados em sua “escola de treinamento”, Indus gladiato-
rins, tentados pelas recompensas e pelas fortunas que lhes
valerão as vitórias, descontando o prêmio que lhes pagará
se ainda estiverem vivos quando expirar o contrato, cinica­
mente alugam o corpo e a vida, abrem mão de todos os di­
reitos (auctorati) e por ordem do lanista deverão marchar para
a morte sem estremecer. Em Roma, ao contrário, nao há la­
nistae. A profissão desapareceu, confiscada pelo imperador,
que a exerce por intermédio de procuradores. Esses funcio­
nários têm à sua disposição edifícios oficiais — a caserna do
Indus magnum construída provavelmente no reinado de Cláu­
dio, a do Indus matntinus, erigida por Domiciano, ambas na
Via Labicana —, os animais selvagens e extraordinários —

278
enviados ao imperador pelas províncias subjugadas, pelos reis
clientes c até pelos potentados da índia — que enchem seu
zoológico, ou vivarium, próximo e externo à Porta Prcnes-
tina; por íim, c sobretudo, incessantcmcnte recrutados pelas
condenações capitais c pelas capturas nas guerras, os efeti­
vos de um verdadeiro exército de combatentes.
Os gladiadores que o compõem dividem-se cm instruto­
res e alunos, e conforme as aptidões físicas pertencem a “ar­
mas” diferentes: os samnitas, que empunham o escudo fceu-
turn) c a espada (spatha); os trácios, que se protegem com o
escudo circular (parma) c manejam o punhal (sica); os mur-
millones, que usam um capacete com a figura de um peixe
marinho, a murma; os retiários, que em geral se lhes opõem,
com sua rede e seu tridente. Com exceção das sportulae —
idéia que germinou no cérebro perturbado de Cláudio —,
que consistiam cm intensas misturas de aterradora brevida­
de, onde a morte se sucedia em algumas horas a um ritmo
medonho, os munera, como os jogos, habitualmente se es­
tendiam do amanhecer ao pôr-do-sol, quando não se prolon­
gavam noite adentro, como ocorreu sob Domiciano. Impor­
tava, pois, variar os aspectos, e os gladiadores eram treina­
dos para lutar tanto na água das naumaquias como na terra
firme do anfiteatro; na arena eram chamados ora a medir-se
com as feras — as caçadas, ou venationes —, ora a matar um
ao outro — os duelos da hoplomaquia.
Autores e monumentos revelam várias espécies de vena-
tiones. Havia-as inofensivas, que consistiam na apresentação
de feras domadas e animais amestrados e que rompiam de
repente a monotonia dos massacres com incríveis espetácu­
los circenses, que Plínio, o Velho, e Marcial relembram com
divertido estupor: panteras puxando docilmente as bigas às
quais eram atreladas; leões soltando lebres ainda vivas que
haviam agarrado entre as presas; tigres lambendo a mão do
domador que os fustigara; elefantes ajoelhando-se ante a tri­
buna imperial ou traçando com a tromba frases latinas na
arena. Havia-as terríveis, onde os homens felizmente não com­
pareciam, travando-se duelos fatais apenas entre feras: urso
contra búfalo, búfalo contra elefante, elefante contra rino­
ceronte. Havia-as repugnantes, onde os homens eram fisica­
mente poupados, mas, protegidos atrás de grades ou no nível

279
da tribuna imperial, como Cômodo mais tarde, disparavam
as flechas nos animais que urravam dc dor c inundavam a
arena com o sangue de uma vil hecatombe. Ou havia-as emo­
cionantes, que de repente eram embelezadas por um cená­
rio silvestre plantado na arena e enobrecidas pela coragem
e pela destreza dos gladiadores. Ccrtamentc eles arriscavam
a vida na luta contra os touros e os ursos, as panteras e os
leões, os leopardos e os tigres; contudo, muitas vezes acom­
panhados de uma matilha de cães escoceses, sempre arma­
dos dc tições em brasa e lanças, arcos e punhais, corriam
apenas o perigo ao qual o próprio imperador sc expunha —
como Adriano, por exemplo — na pequena guerra que eram
as caçadas. Tinham como questão de honra ou redobrar o
perigo com sua audácia — cm vez de utilizar as armas, en­
frentavam um urso com os punhos ou cegavam um leão sob
as dobras de um manto —, ou atiçá-lo à vontade — então,
com o gesto que os toureiros espanhóis repetirão, excitavam
os touros agitando panos vermelhos —, ou ainda a prolongá-
lo, esquivando-se com a agilidade das fintas e a presteza das
manhas — para evitar o ataque de uma fera, escalavam um
muro, saltavam com a ajuda de uma vara, esgueiravam-se nu­
ma dessas “conchas” (cochleae) instaladas na arena, enfiavam-se
às pressas num cesto esférico guarnecido de pontas que lhes
conferia a salutar aparência de um ouriço (ericius). Essa ve-
natio com que a generosidade do príncipe costumava grati­
ficar o povo à tarde, no final dos munera e para coroá-los104,
era apenas uma imagem ligeiramente ampliada das duras rea­
lidades da caçada antiga; e nao poderiamos criticar o anfitea­
tro por essas “touradas” elegantes e patéticas das quais a
cavalaria do pretório às vezes participava como de grandes
manobras. O que nos choca é a quantidade de vítimas, o ba­
nho de sangue em que os animais eram lançados: cinco mil
num só dia dos munera com que Tito inaugurou o Coliseu
em 80105; dois mil duzentos e quarenta e seis e dois mil du­
zentos e quarenta e três em dois munera de Trajano106. En­
tretanto, as carnificinas, cuja profusão nos provoca náuseas
e que no final do século III d.C. acabará repugnando os pró­
prios romanos107, atendiam a uma necessidade. Graças a tal
matança, os césares purgaram os estados do terror dos mons­
tros: no século IV, o hipopótamo estava banido da Núbia,

250
o leão, da Mesopotamia, o tigre, dc entre os hircanos, e o
elefante desaparecera da África do Norte. Pelas zenationes
do anfiteatro o Império Romano estendeu à civilização o be­
neficio dos trabalhos de Hércules.
Mas também a desonrou com todas as formas dc hoplo-
maquia e com uma variedade dc venatio da qual nao pode­
riamos dizer sc é mais cruel ou covarde.
A hoplomaquia era a luta de gladiadores propriamente
dita. Às vezes, o combate era simulado, com armas embota­
das como em nossas sessões de esgrima; chamava-se então
prolusio, ou Itisio, conforme preludiassc uma luta real ou
preenchesse toda a sessão, quando não várias. De qualquer
modo, era apenas o preâmbulo do munus, sequência inter­
minável de duelos efetivos ou coleção de duelos simultâneos
em que as armas não eram revestidas nem os golpes amorte­
cidos e nos quais cada gladiador procurava escapar da morte
tentando matar o adversário. Na véspera, um lauto banque­
te, que para muitos constituía a derradeira refeição, reunia
os lutadores. O público era admitido a essa cena libera, e mui­
tos curiosos circulavam com mórbida alegria ao redor das
mesas. Entre os convivas, alguns embrutecidos ou fatalistas
empanturravam-sc gulosamente durante horas e horas. Ou­
tros, preocupados em aumentar as oportunidades poupan­
do a saúde, resistiam ás tentações da boa mesa e moderavam
o apetite. Os mais miseráveis, assombrados pelo pressenti­
mento do fim próximo, com a barriga e a garganta paralisa­
das pelo medo, recomendavam a família aos transeuntes e
redigiam testamentos108. No dia seguinte um desfile abria o
munus. Conduzidos de carro desde o Indus magniis ao Coli­
seu, os gladiadores apeavam-se diante do anfiteatro e davam
a volta pela arena em ordem militar, vestidos de clâmides
tingidas de púrpura e bordadas de ouro. Andavam despoja­
dos, as mãos livres, seguidos por escudeiros que carregavam
suas armas; quando chegavam à altura da tribuna imperial
voltavam-se para o imperador, a destra estendida para ele,
em sinal de homenagem, e dirigiam-lhe a aclamação lúgubre
e verídica: “Salve, imperador! Os que vão morrer te saúdam!”
("Ave> Imperator, morituri te salutantl”)109 Encerrado o des­
file, procedia-se ao exame das armas, a probatio armorum,
a fim de eliminar os gládios embotados para que a funesta

281
empreitada pudesse realizar-se ate o final. Depois de reco­
nhecer e distribuir as armas dc boa têmpera, eram sorteados
os pares de duelistas, ou porque se decidiu opor gladiadores
da mesma categoria, ou, ao contrário, porque sc resolveu que
gladiadores de armas diferentes se confrontassem — um sam-
nita c um trácio, um murmillo e um rctiário —, ou ainda
porque, para incrementar o espetáculo, rccorrcu-se a forma­
ções estranhas ou a seleções opostas e, por exemplo, colocou-
se negro contra negro, como no mimus com que Nero ho­
menageou o rei da Armênia, Tiridates, ou anão contra mu­
lher, como no munas que Domiciano organizou em 90 d.C.
Por fim erguia-se a cacofonia de uma orquestra, ou me­
lhor, de um jazz, onde as flautas se uniam às trombetas estri­
dentes e as trompas ao órgão hidráulico, e por ordem do
presidente do munas abria-se com música a serie de duelos.
Tao logo os dois gladiadores da primeira dupla começavam
a estudar-se, uma febre análoga à que reinava nas corridas
apoderava-se do anfiteatro. Assim como no circo, os espec­
tadores ofegavam de inquietação ou dc esperança, uns pelos
azuis, outros pelos verdes, a platéia do muntis dividia os an­
seios e as aflições entre os parmularii, os preferidos dc Tito,
e os sctiiarii, apoiados por Domiciano. Faziam-se apostas —
sponsiones — como nos ZWf, e, para que um acordo secreto
entre os lutadores não frustrasse a prova, um instrutor fica­
va ao lado deles, pronto para ordenar aos lorarii, ou açoita-
dores, colocados às suas ordens, que lhes excitassem o ardor
homicida com ignóbeis estímulos ao assassinato; bate (ver-
bera); degola (itigttla); queima (tire); e, sendo necessário, que
os reanimassem fustigando-os com os açoites de couro até
sangrar. A cada ferimento dos gladiadores, o público, temendo
por suas apostas, reagia com odiosa paixão. Quando caía o
lutador contra o qual haviam apostado, os espectadores não
continham uma vil alegria e sclvagemente acusavam os gol­
pes: ele levou (babei); desta vez, levou (hoc habet); e sentiam
o bárbaro júbilo da vitória de seu campeão quando viam o
adversário sucumbir sob um golpe mortal.
Imediatamente, servos fantasiados de Caronte ou de Her­
mes Psicopompo aproximavam-se do lutador caído, certifi-
cavam-se da sua morte batendo-lhe na testa com um marte­
lo e faziam sinal aos libitinarii para que o levassem de maca

282
para fora da arena, cuja areia ensanguentada era revolvida
às pressas. Às vezes, por mais encarniçada que fosse, a luta
terminava empatada: ambos robustos c hábeis, os duclistas
caíam juntos ou se mantinham dc pé: stantes. O combate era
declarado nulo e passava-se à dupla seguinte. O mais das ve­
zes, o vencido, atordoado ou ferido, nao havia sido mortal­
mente atingido; mas, sentindo-se sem condições dc continuar
a luta, depunha as armas, deitava-se dc costas e erguia a mão
esquerda para pedir graça. Em princípio, cabia ao vencedor
concedê-la ou nao, c lemos o epitáfio de um gladiador que,
morto por um adversário que havia poupado em outro com­
bate, de além-túmulo envia a seus sucessores este conselho
ferozmente prático: “Que meu destino vos sirva de adver­
tência. Nada de misericórdia para os vencidos, sejam quem
forem: moneo ut quis quem vicerit occidat!”110 Contudo,
diante do imperador o vencedor abdicava seu direito e mui­
tas vezes, antes de exercê-lo, o imperador consultava a mul­
tidão. Se o vencido se defendera bravamente, os espectadores
agitavam o “lenço”, erguiam um dedo no ar e gritavam: Mitte
(“Perdoa-o”). Se o imperador acatava seu desejo e também
levantava o polegar, o vencido era perdoado e saía da arena
vivo: missus. Se, ao contrário, a platéia considerava que o ven­
cido fora medroso e merecera a derrota, baixava o dedo, gri­
tando: Iugtda (“Degola”). Então, invertendo o polegar, pollice
verso, o imperador tranqüilamente ordenava a imolação do
gladiador derrotado, que nada mais tinha a fazer, além de
estender o pescoço para receber o golpe de misericórdia do
vencedor l,0\
O gladiador vitorioso escapara por pouco e era recom­
pensado incontinenti. Recebia bandejas de prata cheias de
moedas de ouro c presentes preciosos, e atravessava a arena
correndo sob as aclamações da cavea. Conhecia de imediato
a vitória e a glória. Por sua popularidade e riqueza, esse es­
cravo, um cidadão decaído, um condenado de direito comum,
equiparava-se aos pantomimos e aos aurigas da moda. As mu­
lheres se apaixonavam por ele, e tanto em Roma como em
Pompéia, cujas inscrições revelam-lhes as conquistas, o al­
goz da arena tornava-se também o carrasco dos corações: de-
eus puellarum, suspirium puellarum111. Mas nem a fortuna
nem a sorte o salvavam. Em geral, precisava expor a própria

283
vida e sacrificar outras existências em novas vitórias para obter
não mais as palmas que demonstravam seu sucesso, e sim a
vara, ou rudis, que lhe era entregue a título de honraria e
significava a libertação. Na época que estudamos os impera­
dores tendiam a apressar a concessão para os melhores duc-
listas. Marcial enaltece a engenhosa mansuetude do invencível
Domiciano,

“O dttlce invicti principis ingeniitm... ”,

porque em presença de dois gladiadores que, apesar ou por


causa de sua bravura, não conseguiram triunfar um sobre o
outro, ele deteve o combate, prQclamou ambos vencedores
e a cada um entregou a ri/dis da liberdade com a palma da
vitória112. Da mesma forma, se nao estou enganado cm mi­
nha explicação dos Fastos de Óstia, Trajano, que demonstra­
va sua generosidade com essa medida clemente e que, aliás,
com os cinqüenta mil prisioneiros feitos na Dácia não tinha
dificuldades em reconstituir sua gladiatura, ordenou que to­
dos os lutadores que não haviam sucumbido em suas nau-
maquias e em seus munera do ano 109 d.C. fossem libertados
ao término do embate.
São traços de humanidade que nos emocionam tanto
quanto nos revolta o horror das contendas. Contudo, pri­
meiro não era raro os gladiadores se furtarem à magnanimi­
dade do soberano: moralmente haviam caído tão baixo que
preferiam retomar o ofício de matador a renunciar às facili­
dades da boa vida que levavam nas casernas, à exaltação do
risco, à embriaguez da vitória; possuímos o epitáfio de um
deles, chamado Flamma, que, tendo recebido vinte e uma
palmas, por quatro vezes sc “reengajara”113. Depois, os mu­
nera desenvolveram-se de tal forma que se tornou necessá­
rio fazer libertações maciças para renovar o espetáculo.
Limitar-me-ei aos números seguros do reinado de Trajano.
Através dc Díon Cássio sabíamos que cm 107 d.C. Trajano
alegrara a plebe com dez mil gladiadores em combate. Re-
centcmente soubemos através dos Fastos de Óstia que em 113
ele lhe ofereceu uma “espórtula” que em três dias alinhou
mil duzentas e duas duplas, ou dois mil quatrocentos c qua­
tro gladiadores, e cm 109 um munus que se estendeu de 7

284
de julho a 1? dc novembro, cento c dezessete dias seguidos,
onde foram consumidas quatro mil novccentas c doze du­
plas, ou nove mil oitocentos e vinte e quatro gladiadores.
Tranqüilizamo-nos quanto ao número dos sobreviventes, aos
quais Trajano concedeu a liberdade, porém pensamos com
doloroso constrangimento na montanha de cadáveres que a
profusão dc duelos pressupõe, cm todos os vencidos que a
morte liberou do abominável serviço e cujo número o reda­
tor dos Fastos de Óstia se absteve de informar. Certamente
Cícero afirma que “se pudesse haver melhor ensinamento
do desprezo à dor e à morte, não haveria nenhum que me­
lhor falasse aos olhares que um munus”; e mais tarde Plínio,
o Jovem, pretenderá que os massacres eram “essencialmen-
tc propícios a inflamar as coragens, mostrando que o amor
à glória e o desejo dc vencer podem alojar-sc até no corpo
de escravos e criminosos”114. Recusamo-nos a levar a sério
as tristes apologias, e com o coração apertado pensamos tan­
to no aviltamento dos espectadores como nos sofrimentos
das vítimas agonizantes ou mutiladas. Os milhares de roma­
nos que por dias c dias, da manha à noite, encontravam di­
versão em imolações cruéis e ante a morte que prodigalizavam
sem a afrontar não derramavam uma lágrima por aqueles cujo
sacrifício multiplicava suas apostas demonstraram em seus
vergonhosos espetáculos tão-somente um degradante desprezo
à dignidade e à vida humanas.
Ademais, quantas vezes as pretensas lutas dissimularam
sórdidos assassinatos e impiedosas execuções?
Em primeiro lugar, e mesmo nos municípios, até o final
do século III conservou-se o hábito dos munera sine missio­
ns, lutas de gladiadores das quais nenhum deles devia esca­
par. Tão logo caía um dos duelistas, um substituto — tertiarius
ou suppositicius — confrontava-se com o vencedor, e assim
por diante, até o extermínio total115. Depois, em longos es­
petáculos que em Roma se estendiam por um dia inteiro, ha­
via momentos em que o programa normal era “aprimorado”
com atrocidades excepcionais: na venatio da manhã e na ho-
plomaqtàa da tarde, em que a morte era inevitável e a bravu­
ra, inútil. Os gladiatores meridiani eram recrutados exclu­
sivamente entre ladrões, assassinos e incendiários, cujos cri­
mes lhes valeram a morte no anfiteatro: moxii ad gladium

285
ludi damnati. O ajuste dc contas sc realizava na pausa do meio-
dia. Seneca descreveu essa ignomínia. O miserável pelotão
dc condenados era introduzido na arena. Destacava-sc então
uma primeira dupla: um homem armado c outro apenas de
túnica. O primeiro devia matar o segundo, e o matava com
certeza. Depois, o vencedor era desarmado e conduzido a
um terceiro, armado ate os dentes, e a matança continuava,
inexorável, até a última cabeça rolar na areia116. O massa­
cre da manhã era mais medonho. Quando instalou no Foro
um pelourinho para o bandido Selouros, onde foram soltos
panteras e leopardos famintos, talvez sem saber Augusto in­
ventou o suplício espetacular que depois se generalizou117.
Criminosos de ambos os sexos e de todas as idades, que, de­
vido à sua maldade real ou suposta e à humildade de sua con­
dição, foram destinados ad bestias pelo juiz, ao amanhecer
eram conduzidos à arena e entregues às feras que subiam do
porão. Essa venatio, que nos mostram um baixo-relcvo dc
Oxford, uma terracota da África e um mosaico da Tripoli-
tânia, incluía não caçadores, venatores, e sim bestiários, bes-
tiarii, presas sem defesa lançadas às feras118. E o gênero de
tortura ilustrado pelo heroísmo da virgem Blandina no anfi­
teatro de Lyon, por Perpétua e Felicidade no anfiteatro de
Cartago, e na Cidade por tantos cristãos, santificados ou anô­
nimos, da Igreja romana. Em lembrança desses mártires uma
cruz ergue no meio do Coliseu seu silencioso protesto con­
tra a barbárie a que sucumbiram seus fiéis antes de aboli-la,
e hoje nao podemos ver esse emblema sem que nos envol­
vam, como num arrepio de horror, as sombras invisíveis que
pairam a seu redor. Em vão lembraríamos, à guisa de escu­
sa, o instante escolhido para essa venatio matinal, quando
o anfiteatro mal começava a encher-se, e a hora reservada
aos gladiatores meridiani, quando três quartos do anfiteatro
estavam vazios (dum vacabat arena), pois os trabalhadores
ainda não tinham tido tempo de tomar seu lugar c os ocio­
sos já haviam saído para comer alguma coisa em casa. Se es­
se horário testemunha uma espécie de pudor e manifesta como
que um arrependimento dos romanos por organizar essas vi­
sões dc pesadelo, havia entre eles muitos aficionados que por
nada no mundo perderiam um espetáculo que os deleitava
e que nos causa revolta. Para ver tudo, como o imperador

286
Cláudio, preferiam entrar no anfiteatro antes do amanhecer
c dispensar a refeição do meio-dia119; c, nao obstante todos
os argumentos que possamos imaginar, o povo romano con­
tinua culpado de ter tirado das execuções capitais um diver­
timento público e para tanto muitas vezes ter feito do Coliseu
um alucinante jardim dc suplícios pela manha e um abate-
douro dc carne humana à tarde.

Reações tímidas e supressão tardia

Reconheçamos, aliás, que a elite romana sc assustou com


os progressos dessa lepra e várias vezes se esforçou por ate­
nuar sua violência.
Por exemplo, acatando os longínquos precedentes dos
generais filclenos do século II a.C. e retomando as tentativas
episódicas dc Sila, Pompcu e César, Augusto procurou adaptar
a Roma os jogos gregos, cm que a luta, concebida como um
esporte moderno, fortificava os corpos ao invés de aniquilá-
los, e cujos programas dedicavam uma parte à mente. Em
28 a.C., para comemorar sua vitória sobre Antônio e Cleo­
patra e agradecer a Apoio, ele fundou os Actiaca, que deviam
celebrar-se em Actium e Roma a cada quatro anos. Contu­
do, em 16 d.C. os Actiaca nao sao mais atestados120. Nero
desejou ressuscitá-los nos Neronia, também uma festa perió­
dica, que compreendia provas de resistência física, concur­
sos de poesia e de canto. Senadores dignaram-se a participar
das primeiras; nos segundos, ninguém ousou disputar a co­
roa com o imperador, que se considerava um artista sem ri­
val. No entanto, apesar desses augustos patrocínios, os
Neronia logo caíram em desuso, e só Domiciano conseguiu
dar a Roma um ciclo duradouro de jogos à grega. Em 86 d.C.,
ele instituiu o Agon Capitolinas, cujos prêmios, atribuídos
pelo imperador, recompensavam alternadamente a corrida
a pé e a eloqüência, o pugilato e a poesia latina, o lançamen­
to de disco e a poesia grega, o arremesso de dardo e a músi­
ca. Para abrigar os esportes construiu um estádio especial,
o Circus agonalis, onde hoje se situa a Piazza Navona. Para

287
os exercícios “espirituais” do Agon, edi ficou o Odcon, cujas
ruínas se escondem sob o Palácio Taverna, no monte Gior­
dano. Sob seu reinado, sustentado por suas gcncrosidadcs,
os jogos gregos conheceram uma moda efêmera, c Marcial
cantou os vencedores. Eles lhe sobreviveram, porem, embo­
ra tenhamos a prova de que Juliano, o Apóstata, ainda lhes
tenha prestado toda a sua solicitude e os juristas nao paras­
sem de indicar sua alta honorabilidadc121, nao podiam com­
petir seriamente com os munera. Primeiro, o Agon Capitolinas
ocorria uma vez a cada quatro anos; depois, Domiciano
destinara-o a um público restrito, pois previra apenas dez
mil c seiscentos loca em seu Odcon c trinta mil e oitenta e
oito loca no Circus agonalis, ou seja, cinco mil lugares e quinze
mil lugares cuja soma representa menos da metade da super­
fície do amphitheatrum Flavium122.
Enfim, somos forçados a constatar que ele nunca foi mui­
to popular. A saída do Coliseu a multidão o desdenhava co­
mo um quadro sem relevo nem cor; tampouco gozava de
um conceito muito favorável junto à elite, que nele denun­
ciava uma dcgenercscência estrangeira infectada de nudismo
e imoralidade. Não são apenas Juvenal e Marcial, apesar de
sua adulação de cortesão, que ridicularizam os senhores e as
damas que para lá acorriam. E Plínio, o Jovem, que sob Tra­
jano aplaude a decisão do Senado de interditar em Viena Lug-
dunense o escândalo dos jogos gregos e cita com prazer a
aclamação injuriosa de seu colega Iunius Mauricius: “Sc pu­
déssemos livrar deles também a Cidadc!”,22a Entre a eurit-
mia dos jogos gregos e a brutalidade das lutas dc gladiadores
devia haver uma irredutível incompatibilidade. Dc fato, à imi­
tação de Roma, a maioria das cidades provincianas construí­
ram arenas, que encontramos no sul da Argélia e até no
Eufrates, mas a própria Grécia, que só a contragosto cedeu
ao contágio, parece que resistiu pelo menos na Atica. Po­
rém isso não passa dc magra compensação para o entusias­
mo geral; c os jogos gregos, que na Itália se refugiaram em
Nápoles c Pozzuolo125, em Roma foram esmagados pelos
munera.
Na verdade, o munus parecia indestrutível. Bons impe­
radores procuram humanizá-lo. Enquanto Adriano proibiu
que sc admitisse entre os gladiadores um escravo sem seu con-

288
sentimento, Tito, Trajano e Marco Aurélio empenharam-se
em estender no programa de suas festas a parte da lusio, ou
seja, do simulacro do munus, cm detrimento do munus pro­
priamente dito. Em sua predileção pela esgrima sem derra­
mamento de sangue, Tito nao hesitou cm comparecer às
lusiones de Reata, sua pátria. Após os Fastos de Óstia, em 30
de março de 108 Trajano inaugurou uma lusio que se pro­
longaria por treze dias consecutivos com trezentas e cinqüenta
duplas de gladiadores. Obedecendo ao dever de filantropia
que lhe ditava a convicção estóica, Marco Aurélio esforçou-
se por estreitar o regulamento e as verbas dos munera fora
de Roma, reduzindo-lhes a importância, e, sempre que de­
via oferecê-los por sua conta à plebe romana, deliberada e
sistematicamente os substituiu por simples lusiones. Toda­
via, nessa luta empreendida contra espetáculos em que o ho­
mem, segundo a expressão de Sêneca, nutria-se do sangue do
homem — iuvat humano sanguinefrui124 —, a filosofia esta­
va em desvantagem. Depois de Marco Aurélio, cujo filho,
Comodo, ambicionava a reputação de um gladiador, os ro­
manos, não contentes em abandonar as lusiones, trocaram
o palco pelo anfiteatro. A partir do século II d.C., vemos
nas províncias e notadamente na Gália e na Macedonia os
arquitetos de teatro modificarem sua estrutura para que pu­
dessem servir à hoplomaquia e às venationest25. Em Roma a
representação dos dramas negros transferiu-se para a arena,
c foi no Coliseu que se realizaram as mímicas mais aterra­
doras126: nao só o Laureolus, que era crucificado em carne
e osso para o divertimento do público, como ainda o Mucius
Scaevola, que mergulhava a mão direita num braseiro, e a
Morte de Hércules, em que o herói se contorcia nas chamas
da fogueira. Como o anfiteatro bastava para as representa­
ções dramáticas, deixou-se de restaurar os teatros em ruínas,
e no reinado de Alexandre Severo (235 d.C.) o teatro dc Mar­
celo foi abandonado127.
Dir-se-ia que os munera eram eternos e que nada mais
deteria sua expansão. Entretanto, a nova religião teria êxito
onde o estoicismo fracassara. Conquistados pelos Evangelhos,
os romanos coraram com essa vergonha inveterada e recu­
saram-se a suportá-la por mais tempo. Se as “touradas” du­
raram tanto quanto as corridas do circo, as matanças da are­

289
na cessaram pela vontade dos imperadores convertidos. Em
1? de outubro de 326, Constantino comutou cm trabalhos
forçados ad mctalla as condenações ad bestias c cortou cm
sua fonte principal o recrutamento da gladiatura. No final
do século IV ela desaparecera do Oriente. Em 404, um edito
dc Honório suprimiu as lutas dc gladiadores no Ocidente.
Assim, a cristandadc romana apagou o crime dc Icsa-
humanidade com que os césares do paganismo haviam ma­
culado o Império cm seus anfiteatros.

290
CAPÍTULO IV

O PASSEIO, O BANHO E O JANTAR

Nos dias em que não havia espetáculos oferecidos pelo


príncipe ou pelos magistrados, os romanos nao tinham difi­
culdade em aproveitar as tardes. Os passeios e o jogo, depois
o exercício e o banho nas termas, sem lhes dar o tempo de
entediar-se, levavam-nos até a cena, a refeição que encerrava
o dia imediatamente antes do sono da noite.

Passeios, jogos e prazeres

À primeira vista, as ruas atravancadas da Roma imperial


não eram apropriadas ao passeio. O pedestre era estorvado
pelas bancas dos comerciantes1, empurrado por seus pares,
sujado pelos cavaleiros, perseguido pelos mendigos que se
postavam ao longo das ladeiras, sob as arcadas e as pontes2,
massacrado pelos militares que avançavam pela rua como se
estivessem em território conquistado e naturalmente crava­
vam os pregos dos borzeguins nos pés do civil temerário o
bastante para não lhes dar passagem3. Mas a vista desse mo­
vimento incessante e colorido constituía por si só um pra­
zer. Na torrente que arrastava o transeunte rolavam todas
as nações da terra habitada: “o camponês da Trácia e o sár-
mata que sc alimenta com o sangue de seus cavalos’*, os egíp­
cios que se banharam nas águas do Nilo e “os cilicianos que
se cobrem de açafrão, os árabes, os sicambros e os negros
etíopes”4; e mesmo que não fizessem nada com suas merca­
dorias os camelôs alegravam-no com seu falatório, como os

291
acrobatas c os encantadores dc serpentes corn sua habilida­
de5. Depois, se, nao obstante a proibição geral relativa aos
carros durante o dia, havia a possibilidade dc não caminhar
a pé, ele podia se divertir com toda essa agitação sem ser mo­
lestado. Então, ora montava a mula de sua propriedade, ou
emprestada por um vizinho solícito, ou ainda alugada do mu-
lcteiro númida que se encarregava dc conduzi-la pela rédea6;
ora sc instalava numa enorme liteira (lectica) incrustada de
“pedra especular”, dc onde via sem ser visto e atravessava
a multidão sobre os ombros dc seis ou oito carregadores sí­
rios; ora sc acomodava na cadeira dc carregar (sella) que as
matronas se habituaram a usar em suas visitas e onde era pos­
sível ler ou escrever durante o trajeto7; ora contentava-sc
com o carrinho de mão (chiramaxinm) que Trimalciao pre­
senteara o seu favorito8. Por fim, e sobretudo, para escapar
a multidão bastava ganhar as áreas dc repouso que consti­
tuíam os “passeios” da Cidade: os foros e as basílicas, de­
pois dc suspensas as audiências judiciárias; os jardins que
pertenciam aos imperadores, mas que estes, sem chegar ao
ponto de abrir mão deles, como César cm seu testamento,
deixavam à disposição do público, para seu encantamento,
quando na primavera a “Flora perfumava o ar e suspendia
cm guirlandas de rosas a glória púrpura dos campos de Pes­
to”9; a esplanada do Campo de Marte com seus recintos dc
mármore (Saepta Iulia), áreas sagradas e pórticos, abrigos con­
tra o sol, refúgios contra a chuva e em todos os climas, co­
mo diz Sêneca, delícias do mais miserável ocioso: aim
vilissimus quisque in campo otitim staim oblectet10.
Dos pórticos resta ainda a entrada daquele que Augusto
consagrou sob o nome de sua irmã Otávia e que entre suas
colunas dc mármore encerrava o recinto — 118 metros de
comprimento e 135 metros de profundidade — dos templos
gêmeos de Júpiter e Juno11. No entanto, havia outros ao
norte, e Marcial enumerou alguns ao descrever o itinerário
seguido pelo parasita Sclius à procura dc um amigo que o
convide a jantar: o Pórtico dc Europa, o Pórtico dos Argo-
nautas, o Pórtico das Cem Colunas, com sua alameda de plá­
tanos, o Pórtico de Pompeu, com seus dois bosques12. Os
monumentos não eram apenas refrescados com verde e som-
bra. Estavam repletos de obras de arte: os afrescos que co-

292
briam as paredes de fundo, as estátuas que decoravam os in-
tercolúnios c os pátios internos. Só no Pórtico de Otávia,
Plínio, o Velho, contou, além de certo número dc encomen­
das executadas por Pasíteles e seu discípulo Dioniso, o gru­
po de Alexandre e seus generais na batalha do Granico por
Lisipo, uma Vênus de Fídias, uma Vênus de Praxiteles e o
Amor, que esse escultor destinara à villa de Téspias13.
De fato, o passeio do povo-rei estava como que cercado
dc um prodigioso butim. Contudo, se alguns romanos ain­
da se detinham para contemplar as obras-primas, outros pro­
curavam apenas incluir tais curiosidades em seus divertimen­
tos. Marcial relata um episódio elucidativo a esse respeito.
Nas Cem Colunas, uma ursa dc bronze, erguida em meio
a outras imagens dc feras, atraía os passantes. Um dia, o be­
lo Hylas se divertia cm provocar o animal como se fosse vi­
vo e “enfiou na garganta da ursa a mão delicada. Porém, uma
víbora cclerada estava enrodilhada nas trevas do bronze e nela
respirava uma alma mais feroz que a do próprio monstro.
O menino só se apercebeu tarde demais, com a dor da pica­
da e agonizante”14. Brincadeira de criança; porém, veremos
que as crianças não eram as únicas a brincar sob os pórticos,
nos jardins, nos foros e nas basílicas.
A sombra das colunatas os romanos desocupados peram-
bulavam ou conversavam em grupos. Olhavam os passan­
tes, mulheres e homens. Nas Saepta, quando havia uma
exposição de venda, visitavam-na sem pressa, avaliando os
objetos expostos e pechinchando15. Por toda parte informa-
vam-se avidamente sobre as últimas novidades; e por toda
parte encontravam tagarelas que lhes satisfaziam a curiosi­
dade. Assim, o Philomusus descrito por Marcial inventa os
segredos com que regala seus ouvintes: as últimas delibera­
ções do Rei dos Reis no Palácio dos Arsácidas, os mais re­
centes movimentos de tropas no Reno, as melhores indicações
para o próximo concurso capitolino16. Porém, não há con­
versa que não se acabe; e então vinham os jogos.
Os romanos reconheciam seu amor ao jogo. Sempre fo­
ram possuídos por ele. Porém, nunca sua loucura havia sido
tão tirânica. No século II d.C. “não é uma bolsa que se en­
trega aos azares da mesa de jogo”, escreve Juvenal. “Leva-
se, arrisca-se o cofre-forte. Que batalhas ante o crupie dis­

293
tribuidor das munições!” E o poeta sc pergunta com melan­
colia: “E apenas loucura perder 100 000 sestércios (numa
partida) e recusar uma túnica ao escravo que treme de
frio?”17 Para refrear essa paixão avassaladora os césares man­
tiveram as proibições da época republicana. Fora do perío­
do das saturnais, visado expressamente por Marcial18 c
subentendido por Juvenal no trecho citado acima — pois a
pergunta que ele se faz pressupõe o frio da bruma que era
a estação das saturnais, no final dc dezembro —, os jogos de
azar eram proibidos sob pena de uma multa fixada no quá­
druplo das apostas19, e um senatus-consulto dc data impre­
cisa, que confirmava as leis Titia, Publícia e Cornelia, renovara
a proibição que, fora desse período, pesava sobre as apostas
(sponsiones), exceto aquelas cuja ocasião era proporcionada
pelos exercícios corporais20. No capítulo anterior vimos a
furiosa popularidade que esse singular privilégio conferiu às
corridas do circo e às lutas de gladiadores. Pela brecha que
abria numa legislação aparentemente repressiva veremos pas­
sar numerosos jogos c spowwowes na vida cotidiana.
Sem dúvida, seria imprudente organizar num local de pas­
seio público uma partida de dados (aleac) ou de ossinhos (ta­
li)21, cujas diferentes faces equivaliam aos números das faces
do dado, pois só o acaso e não a habilidade manual dos joga­
dores determinava sua queda do copo (fritillus), no chão ou
na mesa de jogo (alveus), onde eram despejados. Tampouco,
acredito, se aceitaria que dois amigos tivessem a audácia de
jogar sob os pórticos navia ant capita, isto é, cara ou coroa,
ou par impar, o divertimento para o qual Augusto convida­
va os membros de sua família, concedendo-lhes 250 denários
por pessoa, a fim de que se dedicassem sem remorso nem
reservas22, e que consistia numa sequência monótona de
apostas feitas no número par ou ímpar de ossinhos, seixos
ou nozes, que o jogador encerrava na mao23.
Entretanto, havia uma forma derivada do par impar em
que o papel do acaso era corrigido, limitado pelo olhar, pela
presteza dos jogadores, por um cálculo de probabilidades c
por certa argúcia psicológica: a micatio, em que dois homens
“erguem os dedos da mao direita, variando a cada vez o nú­
mero dos que deixam abaixados, e anunciam em voz alta o
total dos dedos levantados por um e outro”24, até que um

294
dos dois ganha ao dizer o número exato. Certamente, a mi­
catio era tolerada na Roma dos Antoninos. De Cícero a san­
to Agostinho, passando por Petrônio e Fronton, a tradição
latina é unânime em caracterizar a probidade sem mácula
dc um homem escrupuloso que, aplicando-lhe o dito “gasto
pelo tempo’’ dc que com ele “se poderia jogar a micatio no
escuro’’; c o prefeito da Cidade nao excluiu a micatio do Fo­
ro, antes do século IV25. Por outro lado, enquanto os duo-
dccim scripta, o gamão romano, que, como o nosso, subor­
dinava o deslocamento dos peões (calculi) aos números for­
mados pelos dados e ossinhos, evidentemente estavam sub­
metidos à lei, o “xadrez” romano, ou latrunculi, estava fora
dc seu alcance, pois a manobra dos peões dependia apenas
das previsões e da habilidade de cada jogador; e esse jogo de
combinações e cálculo, no qual ao longo do século I se ilus­
traram um após o outro o cstóico Julius Canus e o consular
Pisao26 e que na época de Marcial se orgulhava de seus
campeões27 e dc seus mestres28, nao deixou de ter prestígio
junto ao público para a alegria dos aficionados que nele se
exerciam e dos curiosos que comentavam as jogadas. Quan­
do consideravam o jogo complicado demais e o material exi­
gido muito incômodo — um tabuleiro de sessenta casas e
peões de cor e formato diferentes —, os jogadores adotavam
jogos dc damas rudimentares, as tabulae lusoriae que impro­
visavam em qualquer lugar com algumas linhas traçadas no
chão ou inscritas no piso e cuja existência numerosas inscri­
ções revelaram sob as arcadas da basílica Júlia e no Foro.
Isso não é tudo: se numerosos baixos-relevos que apre­
sentam crianças divertindo-se parecem fazer das nozes — as
“bolas” dos antigos — o apanágio da primeira adolescência,
o costume segundo o qual nas saturnais os ricos também re­
cebiam nozes de presente, leva-nos a pensar que nas praças
e sob os pórticos frequentemente os adultos se divertiam co­
mo crianças, abrindo nozes sem quebrá-las, lançando uma
noz no alto de uma pilha sem desfazê-la, atingindo com uma
noz as dos adversários, como no jogo da berlinda, ou atiran­
do nozes direto ao alvo: um buraco acidental ou cavado pa­
ra esse fim29.
Essas eram as distrações permitidas, recreações inofensi­
vas que hoje lembram as partidas de nossos jogadores de bo-

295
la c que outrora fizeram passar na atmosfera febril da cidade
imperial uma corrente de ar fresco que parece vir dos con­
fins dos campos e das épocas antigas. Infclizmente, c prová­
vel que a longo prazo os passatempos perderam sua inocência
c que, carregando-se de apostas clandestinas, contribuíram
para infringir a moral, para violar a regra que aparentavam
respeitar. Dc qualquer modo, c certo que bastava aos ocio­
sos um pequeno desvio durante o passeio para satisfazer às
escondidas o vício para o qual o imperador julgava ter con­
tribuído no circo e no anfiteatro, mas que agora levavam con­
sigo por toda pane. Com efeito, muitas vezes as estalagens
(canponae), as tabernas (popinae c thermopolia)^ onde os tran­
seuntes iam comprar ou consumir bebidas frescas ou vinho
quente no balcão, escondiam nos fundos um “cassino” on­
de todos os dias do ano, c não só durante as saturnais, po­
diam trocar-sc sponsiones, jogar dados e ressoar os ossinhos.
A legislação imperial, que punia os jogadores, os aleatores,
como ladrões30, não afetava quem os acobertava, o comer­
ciante em cuja casa se refugiaram; limitava-sc a negar-lhe o
direito de processar na justiça os clientes que no ardor das
competições ou no desespero da derrota se voltassem com
violência contra ele ou contra o mobiliário da taberna31; e
a impunidade relativa incitava-o a angariar fregueses com as
seduções de partidas proibidas, ainda mais que, autorizado
a arregimentar prostitutas, podia legalmente anexar um lu­
gar de depravação32.
Cita-se sempre a inscrição de Aesernia, na qual um via­
jante de passagem por essa localidade faz contas com a anfi­
triã e concorda com 8 asses (menos de um franco de antes
da guerra) reclamados pelos favores que a criada lhe conce­
deu em sua noite no albergue33. Poder-se-ia alegar também
a popina, recém-descoberta na Via dell’Abbondanza, em Pom­
péia, diante da qual um cartaz apetitoso mostra ao transeun­
te as três donzelas (ascllae) ligadas ao estabelecimento34.
Contudo, seria uma ilusão crer que Roma tivesse por que
invejar essas facilidades dos municípios italianos35. Em Ro­
ma, como alhures, as cauponae, as popinae e as thermopolia
eram correntemente assimiladas a “espeluncas” (ganeae); en­
quanto os lupanares, graças a uma restrição inspirada ao po­
der por sua solicitude para com a juventude esportiva, deviam

296
permanecer fechados ate a nona hora36, as tabernas roma­
nas ofereciam debochadas atrações a todos pela manha e du­
rante a tarde inteira. O bar clandestino talvez nao tenha
assumido cm Roma a extensão que tem nas capitais contem­
porâneas. Mas prosperou c, acobertado pela polícia dos edis,
estava aberto aos ociosos. Quantos devassos, segundo o de­
poimento de Sêneca, para ali rumavam, ao invés dc procu­
rar a palestra, e ali consumiam seus dias de ócio: cum illo
tempore vilissimus quisque ... in popina lateat*7.

As termas

Por sorte o povo romano dispunha de melhor uso para


sua liberdade, e as termas construídas pelos Césares lhe pro­
porcionaram uma “recreação” no sentido mais pleno do ter­
mo. O nome “termas” é grego; porém, a realidade que re­
presenta, e que pela primeira vez associou a palestra onde
os corpos se modelam e os banhos onde se purificam, é es­
pecificamente romana: um dos mais belos presentes do regi­
me imperial nao só à arte que esses monumentos enriquecem
para sempre com a amplidão, as proporções, a economia ra­
cional que em suas ruínas nos suscitam profunda admiração,
mas também à civilização a que serviram a sua maneira. Com
eles colocou a higiene na ordem do dia da Cidade e ao alcan­
ce das massas; e no cenário feérico em que os inseriu trans­
formou exercícios e cuidados corporais num prazer apreciado
por todos, numa distração acessível aos mais humildes33.
Em meados do século III a.C. os romanos emprestaram
dos gregos o costume de instalar uma sala de banhos em sua
casa da cidade ou em sua villa do campo. Contudo, esse lu­
xo só era permitido aos ricos, e a austeridade republicana
que impedia Catão, o Censor, de banhar-se na presença do
filho, opunha-se à criação de banhos fora do círculo da fa­
mília. Com o tempo, no entanto, o amor ao asseio tornou-
se mais forte que a pudicícia. No decorrer do século II a.C.
os banhos públicos, naturalmente distintos para homens e

297
mulheres, apareceram em Roma; as balncae, que o gênero
feminino distingue dos balnea, os banhos privados39. Ben­
feitores do povo os doaram a seu bairro. Comerciantes os
construíram para lucrar com a cobrança de ingressos. Em
33 a.C. Agripa os rccenseou: eram cento e setenta, c o nú­
mero só aumentou no futuro. Plínio, o Velho, desiste de con­
tar os banhos de sua época40, que mais tarde chegaram perto
de mil41. O ingresso cobrado pelos proprietários ou pelos
locatários era ínfimo e assim permaneceu: um quadrans ou
quarto dc as42, 3 sons de antes da guerra, e as crianças nao
pagavam43. Em 33 a.C. Agripa, que era edil e nessa condi­
ção estava encarregado da vigilância dos banhos públicos, da
verificação do aquecimento, do controle de limpeza c da di­
reção de sua polícia44, desejou marcar sua magistratura com
uma liberalidade sensacional. Incumbiu-se de pagar todos os
ingressos, assim consagrando, pelo menos no ano dc sua edi-
lidadc, a gratuidade dos banhos públicos na Cidade45, e lo­
go depois fundou as "termas”, que levam seu nome e cujo
ingresso seria sempre gratuito46. Foi o princípio de uma re­
volução que, ligada ao conceito tutelar que o Estado fizera
de seu papel junto às massas, realizou-se ao mesmo tempo
na história da arquitetura e na dos costumes e, na medida
da repetição de seu modelo, estendeu-se nessas construções
cuja progressiva imensidão respondeu de reinado em reina­
do à crescente afluência das multidões.
Depois das termas de Agripa, foram construídas no Cam­
po de Mane as termas de Nero47. E Tito erigiu as suas nos
flancos da antiga Casa Dourada, com um pórtico externo
de frente para o Coliseu, do qual subsistem diversas pilas-
tras com estrutura de tijolo. Em seguida, Trajano ergueu no
Aventino as termas que dedicou à memória de seu amigo
Licinius Sura e a nordeste das termas de Tito, no local de
partes da Casa Dourada, destruídas por um incêndio em 104,
as termas que levam seu nome e foram inauguradas no mes­
mo dia que seu aqueduto, 22 de junho de 10948. Mais tarde,
foram construídas sucessivamente as termas que chamamos
de Caracala e que deveriamos nomear com sua designação
oficial, “termas de Antonino’’, pois, se Sétimo Severo lan­
çou suas bases cm 206 d.C., foram inauguradas prematura­
mente por seu filho Antonino Caracala em 216 e concluídas

298
pelo último Antonino da dinastia, Alexandre Severo, entre
222 e 235; as termas dc Diocleciano, nas ruínas das quais se
encontram hoje o Museu Nacional romano, a Igreja de San­
ta Maria dos Anjos c o oratório dc Sao Bernardo, cuja éxe-
dra gigantesca ainda se projeta nas curvas da praça que
conserva seu nome; por fim, no século IV d.C., as termas
de Constantino, no Quirinal. As mais bem conservadas são
as de Diocleciano, numa superfície de 13 hectares, e princi-
palmentc as de Caracala, com mais de 11 hectares, uma das
maravilhas da Roma antiga, cujas ruínas grandiosas provo­
cam uma impressão indelével até no turista menos sensível.
Umas c outras excedem o quadro cronológico que nos pro­
pusemos; porém, nesses últimos anos as ruínas das termas
dc Trajano foram suficientemente vasculhadas para que pos­
samos acompanhar suas linhas mestras e constatar que coin­
cidem com as das termas de Caracala49. Entre as duas há,
por assim dizer, apenas uma diferença de escala, e nas ter­
mas de Caracala contemplamos uma imagem pouco amplia­
da daquelas de Trajano. Assim, podemos seguramente
imaginar a disposição típica desses conjuntos monumentais
na época em que entusiasmavam Marcial e perceber as ino­
vações que foram realizadas.
Com efeito, as termas não eram apenas banhos em que
os arranjos mais engenhosos permitiram reunir as mais di­
versas formas: a transpiração a seco e o banho propriamen­
te dito, frio e quente, as piscinas e as banheiras. Ademais,
no enorme quadrilátero ao longo do qual se estendiam ex­
ternamente pórticos animados pela população e pela clien­
tela das inumeráveis lojas, encerravam jardins e passeios,
estádios e salões de repouso, salas de ginástica e de massa­
gem, até bibliotecas e verdadeiros museus. Ofereciam aos ro­
manos como que um resumo dos bens que tornam a vida
prazerosa e bela.
No centro erguiam-se os edifícios das termas propriamen­
te ditas. Nenhuma balnea podia rivalizar com elas, nem no
volume de água transportado pelos aquedutos e despejados
em reservatórios que, nas termas de Caracala, ocuparam dois
terços do lado sul com suas sessenta e quatro câmaras abo­
badadas; nem na complexa precisão do sistema de fornos,
hipocausos, hipocaustos (completados ou não pelas tubula­

299
ções que subiam pelo interior da parede, preenchendo-lhe
o vao), que transportava, distribuía e dosava o calor nas sa­
las onde era administrado de modo desigual. Na proximida­
de das entradas dispunham-se os vestiários onde os banhistas
se despiam: apodytcria. A seguir, o tepidariinn, amplo apo­
sento abobadado de temperatura morna, interpunha-se en­
tre o frigidarium, ao norte, c o caldarium ao sul. Vasto demais
para ser coberto, o frigidarittm continha a piscina. O calda-
rium, precedido de salas (sudatoria, lacônica) cuja tempera­
tura elevada provocava a transpiração típica do banho turco,
formava uma rotunda iluminada pelo sol do meio-dia e da
tarde, aquecida pelos vapores que circulavam entre as siispcn-
sttrae subjacentes ao piso; rodeavam-na saletas onde as pes­
soas podiam banhar-se isoladamente, c a própria rotunda, por
sua vez, rodeava um gigantesco tanque de bronze onde a água
se mantinha à temperatura adequada graças ao forno coloca­
do imediatamente abaixo, no centro do hipocauso que se ir­
radiava sob a peça. Por fim, esse dispositivo gigantesco era
cercado de palestras, contíguas á scholae, onde os banhistas,
já despidos, podiam dedicar-se aos exercícios favoritos.
Porém, há mais: o imponente grupo de edifícios era con­
tornado por uma esplanada com ramagens e fontes, que ser­
via como campo de jogos, e ao longo da qual se estendia um
passeio contínuo, o xisto. Atrás do xisto, sucediam-se as êxe-
dras das salas de ginástica e dos salões, estendiam-se as salas
de biblioteca e de exposição. Nisso residia a verdadeira ori­
ginalidade das termas. A cultura física, associada à curiosida­
de intelectual, ali recebeu sua carta de naturalização romana.
Venceu as prevenções de que fora objeto a importação dos
esportes à grega. Sem dúvida, a opinião geral com relação
ao atletismo se manteve: encorajava a imoralidade com suas
exibições e desviava do aprendizado sério e viril do ofício
da guerra os adeptos que se empenhavam mais em conquis­
tar aplausos para a própria beleza que em adquirir as quali­
dades de um bom soldado. Contudo, já não se chocava com
o nudismo obrigatório nos banhos e admitiu ali tanto jogos
desdenhados pelo atletismo como quase todos que ele com­
portava a partir do momento em que uns e outros, em vez
de ser apresentados como espetáculo e praticados por eles
mesmos, pareceram atender aos mesmos objetivos salutares

300
dos banhos, cuja ação benéfica deviam preparar e cujo efei­
to útil à saúde deviam reforçar. No capítulo anterior regis­
tramos o fracasso parcial do Agon Capitolinus. Contudo, a
transformação dos costumes que Augusto, Nero e Domicia-
no em vão tentaram operar, transplantando para Roma uma
cópia dos concursos olímpicos, coube às termas imperiais
realizá-la, quando na época que estudamos, o povo romano
adquiriu o hábito, quase a necessidade, de procurá-las todos
os dias e ali passar os melhores momentos.
Sc nossos textos estão de acordo quanto ao horário de
encerramento das termas, ao pôr-do-sol50, com relação ao de
abertura fornecem informações que à primeira vista parecem
contraditórias. Segundo um verso de Juvenal, as termas eram
frequentadas pelo público a partir da quinta hora antes do
meio-dia51; a informação é confirmada pelo epigrama de
Marcial em que o poeta, esforçando-se por escolher o mo­
mento mais oportuno para o banho, opta pela oitava hora
em vez da sexta, quente demais, assim como a sétima52. Por
outro lado, a História augusta relata na Vida de Adriano que
um decreto desse imperador estabelecera que ninguém, ex­
ceto em caso de doença, estava autorizado a banhar-se nas
termas públicas antes da oitava hora53, enquanto na de
Alexandre Severo lembra que no século anterior essa autori­
zação não era concedida antes da nona hora54. Por fim, ou­
tros epigramas de Marcial parecem sugerir que muitos homens
se banhavam à décima hora55 e que, qualquer que fosse a ho­
ra determinada para a abertura dos banhos e anunciada pelo
toque do tintinnabulum, o acesso às termas era permitido
ao público bem antes de soar o sino56. Mas, a meu ver, a
consideração do plano das termas, unida à do regulamento
de polícia que estabeleceu a separação dos sexos, pode tirar-
nos dessa confusão e reduzir a discrepância dos dados até
conciliá-los.
Na época de Marcial e de Juvenal, no reinado de Domi-
ciano e ainda no de Trajano, nenhuma proibição formal im­
pedia as mulheres de se banharem ao lado dos homens. As
que repudiavam tal promiscuidade não frequentavam as ter­
mas, mas usavam as balneae especialmente previstas para seu
uso exclusivo. Entre elas, todavia, havia muitas que, seduzi­
das pelo atrativo dos esportes que precediam o banho nas

301
termas, preferiam comprometer sua reputação, banhando-
se com os homens, a abrir mão de um prazer57. Por conse­
guinte, à medida que crescia a voga das termas, ocorreu uma
rccrudesccncia de escândalos que acabou por sensibilizar as
autoridades. Para cortá-los pela raiz, entre 117 e 138 Adria­
no emitiu o decreto mencionado pela História augusta que
separou os banhos conforme o sexo: lavacra pro sexibiis
separavit58. Entretanto, como a planta das termas compor­
ta apenas um frigidaritim, um tepidarinm e um caldaritim,
evidentemente é preciso compreender que a separação foi ob­
tida não no espaço, e sim no tempo, reservando-se horas di­
ferentes para os banhos dos homens e os das mulheres. E
a solução que bem longe de Roma, porém precisamente no
reinado de Adriano, preconiza o regulamento dos procura­
dores imperiais do metallum Vipascense, na Lusitânia, quan­
do acrescenta aos encargos do conductor, ou adjudicador da
balnea desse distrito mineiro, a obrigação de aquecer as cal­
deiras para os banhos das mulheres a partir do início da pri­
meira hora até o final da sétima, e para os banhos dos homens
desde o início da oitava hora ao término da segunda hora
da noite59. As dimensões das termas de Roma excluíam a
iluminação que uma separação idêntica exigiria. Mas, a meu
ver, não há dúvida de que adaptaram às condições de sua enor­
midade o princípio que ela pressupõe. Basta coordenar ao
plano das termas romanas, tal como temos o direito de
reconstituí-lo com o imenso estabelecimento de banhos que
se ergue no centro e os prodigiosos anexos que o rodeiam,
as indicações esparsas em nossos autores para logo fundi-los
num quadro bastante verossímil.
Segundo Juvenal, as portas dos anexos abriam-se ao pú­
blico, sem distinção de sexo, à quinta hora do dia. À sexta
hora abria-a o edifício central, mas só para as mulheres. A
oitava hora, ou à nona, conforme fosse inverno ou verão,
o sino tocava de novo. Era a vez de os homens acederem
aos banhos, onde podiam permanecer até a undécima c mes­
mo a duodécima hora. Devemos inferir desse emprego do
tempo que os homens e as mulheres se despiam sucessiva­
mente no interior do edifício central e que as palestras in­
clusas entre suas paredes eram as únicas onde se admitia o
nudismo dos esportes atléticos; porém, essa conclusão nada

302
tem de surpreendente e filtra-se nos textos que nos mostram
os divertimentos dos romanos nas termas.
Lembremos, por exemplo, o encontro de Trimalciao com
os três rapazes que ele vai convidar para jantar. O encontro
acontece na hora do banho, nas termas de uma cidade da Cam­
pania, é bem verdade, porém, copiadas daquelas da capitai.
Sem se despir, Encolpo e seus companheiros começam a
misturar-se aos grupos que se formaram cá e lá na palestra.
De repente, seu olhar sc detém num “velho calvo de túnica
cor da aurora, que jogava bola com jovens escravos de lon­
gos cabelos esvoaçantes. O velho, de sandálias, jogava só com
bolas verdes e não queria mais as que tocavam o chão: um
escravo segurava um saco cheio dc bolas e as fornecia a
cie’’60. Era um jogo a três, designado pelos romanos como
irigtw; “cada qual postado no topo de um triângulo”, os três
jogadores suavam para atirar com uma das mãos e apanhar
com a outra as bolas que lançavam uns aos outros a toda a
velocidade, sem avisar61. Entretanto, os romanos conheciam
várias outras maneiras de jogar bola nas termas: o jogo da
péla propriamente dito, em que a palma da mão servia de
raquete, como na pelota basca, c rebatia a bola do adversá­
rio; o harpastum, em que os jogadores deviam agarrar a bola
ou harpasta “no meio de competidores, apesar dos empur­
rões, da rapidez e das fintas”, o que provocava grande can­
saço e erguia nuvens de poeira; e muitas outras varieda­
des, que faziam a bola saltar, atirando-a contra a parede,
etc.62 As vezes, a bola, cheia de areia (harpasta) ou de penas
(paganica), era substituída por um balão de ar, ou follis, que
os jogadores disputavam com a mão, como no basquete, po­
rém com mais elegância que ardor63. Outras vezes o balão,
de formato enorme, continha terra ou farinha, e os jogado­
res o bombardeavam aos murros64, como no punching ball.
E havia quem preferisse esgrimir com as espadas num mou-
rao para exercícios. Eram esses jogos que preludiavam o ba­
nho, e Marcial os reuniu num epigrama dirigido a um amigo
filósofo que declarava seu desprezo por eles: “Não se vê nem
a péla, nem o balão, nem a pelota rústica preparar-te para
os banhos quentes, nem os golpes de uma espada embotada
desferidos num tronco, tampouco te lanças para um lado e
outro a fim de agarrar no ar a harpasta empoeirada”65. En­

303
tretanto, a enumeração está longe dc scr completa; poderia­
mos acresccntar-lhc a corrida simples, a corrida atrás do arco
de metal (trocbus), cujos desvios caprichosos as mulheres gos­
tavam de dirigir com o bastão curvo chamado chave66; o
manejo dos halteres que elas sc esforçavam por levantar,
exaurindo-se mais depressa que os homens67. Cabe notar,
porem, que em todos os jogos homens c mulheres vestiam
uma túnica como Trimalcião ou uma espccie de malha co­
mo a que a tríbade Philaenis tem dc usar ao csfalfar-sc no
harpastiim68' ou mesmo um manto simples c quente feito
para os esportes, a endromis, que Marcial enviou a um ami­
go com as seguintes palavras: “Ofcrcço-te essa exótica endro-
mis para que jogues o trigon aquecido por seu contato ou
para que, na poeira levantada sob teus passos, tua mão pro­
cure agarrar a barpasta, ou para que lances de um lado ao
outro a massa leve como pluma do follis macio”69.
Ao contrário, a luta atlética — para a qual convinha un-
tar a pele com ccroma, ungüento feito de óleo e cera que ti­
nha a propriedade de torná-la flexível, depois de uma camada
de pó que o impedia de escorregar por entre as mãos do ad­
versário — realizava-se apenas entre competidores despoja­
dos de toda vestimenta. Desenrolava-se nas palestras do
edifício central, junto às câmaras que nas ruínas das termas
de Caracala os arqueólogos identificaram com os oleoteria
c os conisteria70, e onde não só lutadores como lutadoras, cu­
jo perverso prazer com os toques do massagista é recrimina­
do por Juvenal, iam submeter-se às unções c à maquiagem
regulamentares71.
O atletismo estava, pois, cm estreita ligação, em comu­
nicação direta com o banho que se seguia à sessão de luta,
e este geralmente se decompunha em três etapas. Primeiro,
o banhista molhado de suor ia despir-se (sc ainda não o ti­
vesse feito) num dos vestiários ou apodyteria do estabeleci­
mento termal. Depois, entrava num dos sudatoria que
ladeavam o caldarium e ativava a transpiração nessa atmos­
fera de estufa: era o banho a seco. Em seguida, entrava no
caldarium, onde reinava uma temperatura também elevada
e no qual podia ainda, aproximando-se do labrum, derramar
água escaldante na pele suada e esfregá-la com o estrígil. Limpo
e seco, voltava sobre seus passos, parava no tepidarium para

304
preparar a transição e por fim corria a mergulhar na piscina
de água fria do frigidarium. Tais sao as três fases do banho
higiênico, recomendado por Plínio, o Velho72, pelas quais
passam os banhistas do romance de Petrónio73 c também os
dos epigramas de Marcial, com a particularidade, porém, de
que o poeta deixa a seus supostos interlocutores a liberdade
de substituir ou acrescentar a transpiração do banho turco
às abluções do caldarium74.
Com efeito, era impossível esfregar-se convenientemen­
te com o estrígil diante do labrum. Uma ajuda tornava-se in­
dispensável, e para quem não tinha levado consigo seus
escravos essa assistência não era gratuita. Um episódio da His­
tória augusta prova que se pensava duas vezes antes de fazer
tal despesa.
Adriano, conta-nos seu biógrafo, banhava-se frequente­
mente nas termas públicas, com todo mundo. Um dia avis­
tou ali um veterano que conhecera no exército, esfregando
as costas no mármore que revestia as paredes de tijolo do
caldarium e perguntou-lhe por que se friccionava dessa for­
ma. O ex-soldado respondeu que era por falta de dinheiro
para comprar escravos, e o príncipe imediatamente lhe for­
neceu escravos e dinheiro. Naturalmente no dia seguinte, ao
anunciar-se a chegada do imperador, diversos velhos se pu­
seram a esfregar-se no mármore do banho para atrair as li­
beralidades da véspera. Porém, Adriano apenas os aconselhou
a friccionarem-se uns nos outros. O biógrafo acrescenta que
a partir desse dia a fricção mútua se tornou um dos passa­
tempos da moda nas termas: ex quo ille iocus balnearis
innotuit75. Podemos pensar, no entanto, que só os pobres o
adotaram. Os ricos tinham o recurso de mandar que os ser­
vissem, esfregassem, massageassem e perfumassem. Quando
os futuros convivas de Trimalcião saem do frigidarium, en­
contram seu ocasional anfitrião banhado de perfume e sen­
do enxugado não com o tecido comum, e sim com toalhas
da lã mais macia, e o veem às voltas com três massagistas
que, tendo disputado a honra de tratá-lo, “enrolam-no num
cobertor escarlate e o colocam em sua liteira”76. Devida­
mente enxuto pelos cuidados dos especialistas e carregado
nos ombros dos criados, Trimalcião ia direto para casa, on­
de o jantar o esperava.
Já a maioria dos banhistas, cm especial aqueles cuja casa
era menos abastada e cuja mesa era menos farta que a de Tri­
malciao, demoravam-se nas termas e aproveitavam suas tran­
quilas atrações até a hora de fechar. Ou sc reuniam, entre
amigos, nos salões de conversação e nos ninfeus. Ou iam ler
um livro nas bibliotecas cuja dupla localização foi encontra­
da, nas termas dc Caracala, nas duas extremidades do alinha­
mento das cisternas e se reconhecia ao primeiro olhar pelos
nichos retangulares abertos nas paredes para receber os plu­
tei, ou cofres de madeira, que continham seus preciosos
volumina77. Ou passeavam calmamente nos ambulacros do
xisto, em meio às obras-primas com que os imperadores sis­
tematicamente povoavam as termas. Não ignoramos aque­
las que as escavações retiraram das termas dc Caracala, que,
sobre pisos de mosaico, sob abóbadas de caixão, entre pare­
des revestidas de mármore c colunatas dc capitéis decorados
com figuras heróicas, abrigaram outrora o Touro Farnese,
a Flora Farnese, o Hércules Farnese, o torso do Belvedere
e os dois tanques onde canta eternamente a água romana na
praça do Palácio Farnese78. Todavia, as termas de Trajano
não eram menos ricamente ornadas, e é delas que provém,
em especial, o famoso grupo do Laocoontc, hoje no Vati­
cano79. E impossível que depois dos exercícios e do banho
os romanos, no bem-estar corporal e na lassidão feliz então
experimentadas, não sc deixassem penetrar pela beleza que
os rodeava e que em meio a essas maravilhas mais de um de­
les nao tivesse sido visitado pelo Espírito e tocado pela gra­
ça da Arte.
Sem dúvida, os próprios romanos criticaram suas termas
e denunciaram as flores do mal que ali desabrocharam. Sem
dúvida, também, sabemos que sob os pórticos externos que
rodeavam o monumento estavam instalados demasiados ta-
berneiros e proxenctas80; que ali era muito fácil encontrar
o que comer, beber e o resto; que muitos, desejosos de sen­
tir calor para ter sede, repetiam os banhos só para multipli­
car os tragos, aliás correndo o risco de sofrer uma congestão
fatal e morrer de seus abusos81; que excessos como os de Cô­
modo, que tomava até oito banhos por dia, só podiam amo­
lecer os músculos e perturbar os nervos, e que, por fim, é
válido criticar-lhes uma concepção que suas vítimas cínica­

306
mente adotaram: balnea, vino, Venus corrumpunt corpora nos­
tra sed vitam faciuntP2 Nao obstante, estou convencido de
que as termas imperiais redundaram cm poderoso benefício
para as massas. Em sua reluzente majestade dc mármore, não
foram apenas o palácio da Água romana83. Foram sobretu­
do o palácio do Povo, com que hoje sonham nossas demo­
cracias, mas onde os romanos dc outrora, adquirindo ao
mesmo tempo o gosto da limpeza física, dos esportes úteis
e da cultura desinteressada, puderam durante várias gerações
retardar sua decadência com uma volta ao velho ideal que
no passado inspirara sua grandeza c no presente lhes é pro­
posto por Juvenal: “Mente sã em corpo são’’84.

A “cena”

Depois do cansaço tônico experimentado nas termas vi­


nha o jantar. O sol já se põe no horizonte e ainda não vimos
os romanos comerem. No entanto, sabemos de alguns que
faziam quatro copiosas refeições diárias85, e os textos em ge­
ral mencionam três refeições, que, aliás, mudaram de nome
no decorrer dos séculos. Assim como entre nós o almoço,
o jantar e a ceia foram substituídos — quando a ceia foi re­
tardada para o meio da noite — pelo desjejum, pelo almoço
e pelo jantar, o jentaculum, a cena e a vespema, após o desa­
parecimento da vespema e durante toda a época clássica
tornaram-se cm Roma jentaculum, prandium e cenaP*. No
período que focalizamos alguns romanos mantinham o há­
bito das três refeições, como, por exemplo, Plínio, o Velho,
que, porém, não pecava por gula86, e em geral os idosos aos
quais os médicos as prescreviam87. Contudo, a maioria to­
mava uma taça de água pura ao saltar da cama88 e a conse­
lho dos higienistas suprimia uma das duas primeiras. Galiano
passava com um jentaculum por volta da quarta hora89, e os
soldados se contentavam com o prandium ao meio-dia90.
Aliás, nem o jentaculum nem o prandium eram muito nutri­
tivos. O jentaculum de que fala Marcial compõe-se de pão
e queijo91; o prandium, às vezes restrito a um pedaço de

307
pao92, cm geral incluía ainda carne fria, legumes c frutas, re­
gados por um pouco dc vinho93. O jentaculum de Plínio, o
Velho, não passava de uma colação (cibum levem et facilem).
Seu prandium era um simples lanche (deinde gustabatf4. Jen­
taculum e prandium eram ingeridos tao depressa que não havia
necessidade nem dc arrumar a mesa antes (sine mensa), nem
de lavar as maos depois (post quod non sunt lavandae ma-
nus)95. Evidentemente eram refeições frias, ingeridas de pé
c com a mão, e a única refeição digna desse nome era, para
todos, o jantar: a cena. Assim, quando evocamos a memória
dc Vitélio e seus pares, temos a impressão de que os roma­
nos passavam a vida à mesa. Ao contrário, quando olhamos
a realidade mais dc perto, percebemos que a maioria só se
punha à mesa ao final do dia, como há um século um gastrô­
nomo requintado como o príncipe dc Béncvent na embai­
xada francesa cm Londres96. Imaginamo-los como glutões
insaciáveis e descobrimos que ate a noite quase não comiam
nada.
E bem verdade que eram capazes então dc comer em do­
bro e recuperar o tempo perdido. Todavia, convém descon­
fiar das opiniões enganosas e de um julgamento precipitado.
Imaginando as cenae dc outrora como medonhas comi-
lanças, cometeriamos o mesmo erro se atribuíssemos a to­
dos os festins dos árabes a importância de suas diffas
*, ou
a todos os nossos jantares a extensão, a consistência e o as­
pecto dc um lauto banquete no campo. A verdade é que em
tais cenários, com costumes c protocolo idênticos, as cenae
não se assemelhavam, e que, segundo as circunstâncias, o tem­
peramento e o nível moral, e os romanos eram capazes de
fazer do jantar uma grosseira comilança ou um festim pleno
de distinção e delicadeza.
Abstraindo-se monstros históricos — um Vitélio, um Ne­
ro, que ao meio-dia já se instalava à mesa97 —, a cena come­
çava para todos na mesma hora: após o banho, ou seja, ao
final da oitava hora no inverno e da nona no verão. E o ho­
rário adotado no círculo de Plínio, o Jovem98; e é o mesmo

* Banquetes oferecidos a convidados especiais entre os muçulmanos da Áfri­


ca do Norte. (N. da T)

308
que Marcial anuncia para seu amigo Julius Ccrialis: à oitava
hora na balnea dc Stephanus, a mais próxima dc sua casa,
para após o banho jantar com ele". Em contrapartida, a ho­
ra cm que a cena terminava diferia segundo sc tratasse dc um
jantar simples ou dc um banquete, segundo se tivesse um con­
viva frugal ou um comilão. Em princípio, uma cena decente
devia encerrar-se antes da noite. Quando Plínio, o Velho,
por exemplo, sc levantava da mesa, ainda era dia no verão
c no inverno a primeira hora da noite não havia ainda
transcorrido103. No entanto, a regra admitiu numerosas e
notáveis exceções; c para considerar dc imediato os casos ex­
tremos a cena de Ncro sc prolongava até a meia-noite131, a
dc Trimalciao, até a madrugada132, a dos “farristas” que Ju­
venal expõe à nossa reprovação, até o momento “em que
se ergue a estrela da manhã, no instante em que os generais
mandavam avançar as insígnias e levantavam acampamen­
to”103.
Qualquer que seja a duração, a cena oferecida por pes­
soas abastadas sempre tem lugar num aposento especial da
casa ou do apartamento: o triclinium, cujo comprimento é
o dobro da largura104 e deve seu nome aos leitos (lectus) de
tres lugares (triclinia) cm que se deitam os convivas. Esse é
um detalhe fundamental que hoje temos alguma dificuldade
cm entender e que assemelha a cena às refeições orientais onde
os divãs substituem as cadeiras. Mas por nada no mundo os
romanos conscntiriam em omiti-lo. Atinham-se a ele como
a um elemento indispensável de seu bem-estar, e também co­
mo a uma demonstração de elegância e a um indício de su­
perioridade social. Comer sentado só era bom no passado
para as mulheres aos pés dos maridos135. Agora que as ma­
tronas se acomodavam nos triclinia ao lado dos homens, eram
as crianças que comiam sentadas, instaladas em escabelos dian­
te do leito dos pais136, ou os escravos, que só nos dias de fes­
tas tinham a permissão do amo para deitar-se como ele137,
ou os rústicos de aldeia e provincianos da Gália distante13s,
ou clientes de passagem nas tabernas109 e albergues113. Ves­
tissem ou não o traje dos grandes jantares, a synthesis, cuja
musselina leve se harmonizava com o calor comunicativo
dos banquetes c que às vezes eram trocadas entre os pra­
tos111, os romanos sc julgariam aviltados se não se deitassem

309
para jantar, homens c mulheres lado a lado, e aprovavam
o austero Catão de Utica por manifestar seu luto pelo de­
sastre do exercito senatorial, com o juramento, pronunci­
ado na noite de Farsala, c mantido até seu suicídio, dc co­
mer sentado enquanto triunfasse a tirania de Júlio Cé­
sar
Ao redor de uma mesa quadrada, com um lado livre pa­
ra o serviço, dispunham-se três leitos inclinados cujo encos­
to ultrapassava ligeiramente a superfície da mesa; em cada
leito, mais ou menos luxuoso, dotado de colchão e cobertas,
havia três lugares indicados por almofadas de separação. O
mal-educado que não queria ser molestado pelos convivas às
vezes ocupava sozinho o leito do meio ou permitia apenas
um vizinho a seu lado, ou melhor, “abaixo” dele115. Pois os
lugares eram dc algum modo hierarquicamente “superpos­
tos” pela minuciosa etiqueta que presidia sua distribuição.
E com a mais previdente urbanidade, pois permitia que o
mais modesto dos presentes compensasse sua inferioridade
avizinhando-se do mais ilustre. O leito dc honra era aquele
que nao encarava nenhum outro atrás da mesa (Iccttis medias);
e o melhor lugar era o da direita, o lugar consular (locus con-
stdaris). Em seguida, vinham o leito situado à esquerda do
anterior (leans summits) e por último o da direita (leans imus):
nos dois a posição privilegiada era à esquerda, ao lado do mon­
tante, o fulcrum114. E os outros eram distribuídos na sequên­
cia. Em cada leito os ocupantes sc deitavam obliquamente,
com o cotovelo esquerdo apoiado numa almofada, os pés,
descalços e lavados ao entrar115, no pé da cama. Preferia-se
a mesa redonda à quadrada e, por conseguinte, um leito úni­
co disposto em arco à sua volta, ou, como se dizia, na forma
de um sigma lunar, o stibadium, cujas extremidades eram ocu­
padas pelas pessoas de maior destaque e que tinha capacida­
de para acomodar nove comensais; porem, cm geral, admitia
apenas sete ou oito pessoas116. Se houvesse mais de nove
convivas, providenciavam-se outros stibadia ou outros tri­
clinia (triclinia stemere) na sala de refeições, habitualmente
prevista para trinta e seis pessoas, com quatro mesas117, ou
para vinte e sete, com apenas três mesas118.
Um porteiro (nomenclator) os anunciava e designava-lhes
o leito e o lugar. Numerosos servidores (ministratores) leva­

310
vam os pratos e as taças às mesas, que a partir dc Domiciano
passaram a ser guarnecidas de toalha (mappa)n\ enquanto,
antes, apenas se secava a superfície de madeira ou mármore
após cada serviço120. Dispunham de facas121, palitos dc
dentes122 e colheres dc vários formatos: a concha, ou trtdla,
a colher, ou ligida, cuja capacidade ultrapassava ligeiramen­
),
te um ccntilitro (um quarto dc ciato
* a colhcrinha pontu­
da ou cochlea para ovos c moluscos123. Como os atuais
árabes e os franceses dos inícios dos tempos modernos, os
romanos não usavam garfo. Comiam com os dedos, costu­
me que demandava repetidas abluçõcs: antes c durante a re­
feição e após cada serviço. Escravos com jarros circulavam
junto aos leitos, e cada um deles despejava sobre as mãos dos
convivas água fresca c perfumada, que cm seguida enxugava
com a toalha pendurada no outro braço124. Além disso, os
convidados tinham um guardanapo pessoal que dispunham
à sua frente para não sujar a coberta do leito e que hesita­
vam em levar para casa, o que não acontecia com as iguarias
que não tiveram tempo de ingerir: os apophorcta12*.
Seria preciso um apetite de Gargantua para dar conta dos
cardápios desses festins, onde o anfitrião subjugava os hós­
pedes com a profusão dos pratos e a riqueza da prataria.
Compunham-se de no mínimo sete serviços, ou fercula —
quis ferada septem secreto cenavit avus?126: os antepastos, ou
gustatio, três entradas, dois assados e a sobremesa, ou seam-
dae mensae. Vemo-los desfilar, acrescidos de um assado su­
plementar, no festim dc Trimalcião, que é uma “refeição
ridícula” mas cuja comicidade reside não na superabundân-
cia dos alimentos — dificilmente mais espantosa que em cer­
tos banquetes oficiais cuja lembrança Macróbio nos trans­
mitiu127 com quatro séculos de intervalo —, e sim na santa
ingenuidade do dono da casa, na delirante infantilidade de
suas invenções e na ridícula pretensão de sua baixela. Na ban­
deja de antepastos erguia-se um asno de bronze de Corinto
com um cesto de cada lado: um com azeitonas verdes, ou­
tro com azeitonas pretas. Acima, à guisa de teto, dois pratos
em cujos fundos se liam o nome de Trimalcião e seu peso
em prata; arcos em forma de ponte sustentavam arganazes

* Medida usada pelas gregos e romanos equivalente a 4,5 centilitres. (KdaT.)

311
regados com mel e polvil liados com sementes de papoula;
numa grelha dc prata fumegavam salsichas ardentes e, abai­
xo, à guisa de carvão, havia ameixas dc Damasco com bagos
de roma12S. Os convidados ainda estavam com a boca cheia
e os servidores já lhes apresentavam a primeira entrada: uma
galinha de madeira num ninho de palha, de onde saíam ovos
de pavão, cada um deles encerrando uma toutinegra na ge­
ma apimentada129. A segunda entrada surgiu num centro dc
mesa dc uma complicação monumental c pueril: acima dc
um disco representando os doze signos do Zodíaco, doze pra­
tos com os alimentos adequados a cada um deles: figos afri­
canos sobre Leão, rins sobre Gêmeos, quartos de boi sobre
Touro, vulvas dc leitoas sobre Virgem e lagosta sobre Ca­
pricórnio; abaixo, um prato dc frangos, de um lado, e tetas
de leitoa, de outro, contornando uma lebre “ornada dc asas
de modo a representar Pégaso”, enquanto nas beiradas qua­
tro estatuetas dc Mársias despejavam dc pequenos odres um
molho picante sobre peixes que nadavam num Euripo cm
miniatura130.
Depois foram servidos os três assados, da mesma forma:
no primeiro aparador uma leitoa considerável cercada de lei-
tõezinhos envoltos em massa e recheados dc tordos; no se­
gundo, um porco enorme despejando uma torrente de
salsichas e chouriços131; no último, uma vitela cozida, de ca­
pacete na cabeça, que um escudeiro cortador, o scissor, fan­
tasiado de Ajax, talhava em pedaços e distribuía na ponta
da espada132. Por fim, a sobremesa, sob a forma dc uma pe­
ça montada, um Priapo de massa que levava doces, frutas e
passas de todo tipo133. Entre a cena propriamente dita e a
sobremesa, chamada secundae mensae, as mesas foram retira­
das c substituídas por outras, e enquanto os triclinarii pro­
videnciavam a mudança, outros espalhavam no chão serragem
tingida de açafrão e vermelhão134. Então, todos, devidamen­
te empanturrados, pensariam apenas em dcspedir-sc c ir dor­
mir. Porém, no momento em que parecia acabar a festa,
recomeçava; depois dc fazer os convidados tomarem um ba­
nho quente, Trimalcião os conduziu a um segundo triclinium
onde jorrava vinho, dizem, para que, cansados de comer, pu­
dessem ao menos continuar bebendo segundo os rituais da
cowmtaw, fecho habitual das cenae generosas.

312
Uma primeira libação inaugurava a refeição. Após os an-
tepastos degustava-se o vinho com mel: mulswn. Entre os
outros serviços, os ao mesmo tempo cm que
reabasteciam os convivas com paezinhos quentes135, apres-
savam-se a encher-lhes as taças com os vinhos mais diver­
sos, desde os do Vaticano c de Marselha, muito desacredi­
tado136, até o imortal falerno137. Graças à resina e à pez que
lhe eram misturados, o vinho se conservava em ánforas tam­
padas com rolhas de cortiça ou de argila e providas de uma
etiqueta (pittacium) que identificava a origem e o ano da
safra138. As ánforas eram abertas durante o festim; com um
coador (colam) que filtrava o líquido, despejava-sc seu con­
teúdo na cratera onde se abasteciam as taças. Com efeito, os
romanos que bebiam puros esses vinhos espessos eram tidos
como anormais e viciados, apontados com o dedo139; e na
cratera efetuava-se a mistura do vinho com a água, resfriada
com neve ou, ao contrário, aquecida de antemão, cuja pro­
porção nunca era menos que um terço e podia chegar a qua­
tro quintos. Após a cena, a commissatio140, espécie de be­
bedeira protocolar, consistia numa série de taças esvaziadas
de um trago141, segundo as instruções do presidente, único
habilitado a prescrever o número de taças igualmente imposto
a todos, o número de cíatos a colocar em cada taça, que va­
riava de um a onze142, e sobretudo a maneira de beber, fos­
se em círculo, começando pelo conviva mais elevado (a
snmmo), fosse sucessivamente, cada um enchendo a taça que
acabava de esvaziar e entregando-a ao vizinho com um voto
de bom augúrio, fosse ainda elegendo um assistente a cuja
saúde cada qual bebia tantas taças quantas letras houvesse em
seus tria nomina de cidadão romano143.
Perguntamo-nos como os estômagos mais sólidos podiam
suportar os excessos de comida, como as cabeças mais equi­
libradas podiam resistir às bebedeiras abusivas das commis-
sationes.
Primeiro, talvez o número de vítimas fosse menos ele­
vado que o de convivas. Muitas vezes, com efeito, havia nes­
ses repastos ostensivos, nesses “diffas” ruidosos mais chamados
que escolhidos. Por vaidade o dono da casa convidava a jan­
tar o maior número de pessoas possível. Depois, por avare­
za ou egoísmo, abstinha-se de tratar os hóspedes como a si

313
mesmo. Plínio, o Velho, critica os contemporâneos que “aos
convidados servem outro vinho que nao o seu, ou substi­
tuem os bons vinhos por medíocres no decorrer da refei­
ção”144. Plínio, o Jovem, censura um conhecido que, que­
rendo para si, nas ccnae de sua casa, os pratos saborosos c
para os outros pobres rações, arrumava os vinhos em três
séries de pequenos frascos dc qualidade graduadas segundo
a dignidade dos convivas145. Marcial conhece uma matrona
que se deleita com pães deliciosos dc formas perturbadoras
c com um vinho de Sctia ardente o bastante para inflamar
“as neves”, mas quer que os outros, em sua casa e diante de­
la, masquem bolas de farinha negra c “bebam o triste vene­
no dc um jarro da Córsega”146. Por fim, Juvenal dedicou
mais dc cem versos aos repastos cm casa de Virron. Esse gros­
seirão habituara-se a saborear velhos vinhos e pães dc fina
flor dc frumento, empanturrar-se de fígado de ganso, trufas
e cogumelos, muges
* pescados em Taormina, frangos gor­
dos, frutas deliciosas, que dir-se-ia cultivadas no Jardim das
Hespérides, enquanto à sua volta os convidados deviam
contentar-se com um pesado vinho do ano, nacos de pao ene­
grecidos cheirando a mofo, repolhos cozidos no azeite, co­
gumelos suspeitos, um osso de galinha velha e, para terminar,
uma maça podre, “como aquelas que roem os macacos ames­
trados que se exercitam sobre os muros”147. Plínio, o Jo­
vem, podia protestar contra a incongruência dc tais práti­
cas148; porém, a concordância dos depoimentos demonstra
que estavam bastante difundidas. Pelo menos, tiveram a van­
tagem de limitar os estragos da glutonaria nas ccnae.
Por outro lado, essa atenuava certamente sua virulência
graças à própria lentidão com que desenrolava seu desmesu-
rado programa. Assim como o jantar de Trimalcião, nume­
rosos banquetes duravam de oito a dez horas; e eram
pontilhados de intermédios: após as entradas, um concerto
que acompanhava os movimentos de um esqueleto de prata;
depois de um assado, contorsões de equilibristas e o “cordax”
dançado por Fortunata; antes da sobremesa, adivinhações,
um sorteio e a surpresa do teto que se abriu para dar passa­
gem a um aro imenso no qual estavam pendurados frascos

* Nome vulgar de uma espécie de tainha. (N. da T)

314
dc perfume, distribuídos dc imediato149. Acrcditava-sc que
a cena nao estaria completa sem as palhaçadas dos bufões,
as coquctcrias dos favoritos150, sobretudo sem as danças las-
civas, executadas ao som dc castanholas, cm que eram espe­
cialistas na Roma imperial as moças de Cadiz151, como hoje
o sao as Oulcd Nai‘1* entre os árabes da Argélia; e Plínio,
o Jovem, que não se divertia com essas coisas c não as tole­
rava cm sua casa152, era obrigado a suportá-las na casa dos
outros. Mas, muitas vezes deviam concluir o festim panta-
gruclico que ajudavam a digerir numa orgia cuja indecência
era agravada pelo incrível descaramento dos convivas.
Como entre os árabes, o arroto à mesa era uma delica­
deza justificada pelos filósofos, para os quais seguir a nature­
za era a última palavra da sabedoria153. Levando mais longe
sua doutrina, Cláudio expediu um decreto autorizando a emis­
são de outros ruídos gasosos que os árabes se contêm em não
soltar154; e os médicos da época de Marcial recomendaram
o exercício das liberdades prescritas por um imperador bem
intencionado e ridículo155. A música que dava o sinal não
faltava no jantar de Trimalcião, que “não proibia ninguém
dc aliviar-se à sua mesa”156. Mas Trimalcião era bom o bas­
tante para levantar-se do triclinium e sair da sala de refeições
quando sentia uma necessidade mais premente. Nem todos
os anfitriões romanos partilhavam seus escrúpulos, e Mar­
cial nos mostra muitos que, com um estalar de dedos, cha­
mavam o escravo que lhes levava o urinol e os ajudava a
servir-se dele157. Por fim, era frequente ver ao final da cena
vômitos sujarem os preciosos mosaicos do piso158; e a indi­
gestão provocada num cômodo ao lado continuava sendo o
meio mais seguro de ir até o fim da incrível comilança: vo-
munt ut edanty edant iit vomant159.
Não podemos esconder a repugnância que nos inspiram
tais descrições, nem contestar que na opulenta Roma, que
drenava a produção de seu Império, não se encontrem, em
todos os níveis da sociedade e até no mundo frequentado por
Plínio, o Jovem, demasiados bêbedos e glutões. Basta ouvir
Petrônio enaltecer as façanhas do mestre-cuca que sabia ti-

* Confederação de tribos argelinas. (N. da T)

315
rar de uma vulva de porca a aparência de um peixc c de um
pedaço dc toucinho, a de um pombo selvagem160, para apre­
ciar a consumada habilidade dos cozinheiros romanos, do­
ravante transformados cm mestres na arte dc preparar pratos
cujo arranjo impedia dc idcntificar-lhes a substancia161. E
basta percorrer o livro XII dos epigramas de Marcial para
verificar os progressos da gastronomia de sua época, a exce­
lência c a variedade dos alimentos dc que dispunha para fa­
zer suas combinações. Nos golfos vizinhos à Cidade pcsca-
vam-se os peixes, crustáceos c moluscos do Mediterrâneo.
Nas florestas Laurcntina e Ciminiana, ocorriam as caçadas.
Os campos próximos forneciam a carne c o leite, os queijos
de Trebula e dos Vestinos e todos os legumes: couves e len­
tilhas, favas c alfaces, rabanetes e nabos, abobrinhas c abó­
boras, melões c aspargos. O Piceno e a Sabina eram reno-
mados pela qualidade de seus azeites. Da Espanha provinham
as salmouras com que se temperavam os ovos; da Gália, os
frios; do Oriente, as especiarias; e de toda parte da Itália c
do universo, os vinhos e as frutas: maçãs e peras, figos de
Quios, limões e romãs da África, tâmaras dos oásis, ameixas
de Damasco. Cada espécie tinha seus apreciadores; Juvenal
nos apresenta toda uma galeria de gastrônomos seduzidos pela
abundância do mercado: o homem da rua que aspira, deli­
ciado, o aroma “de uma vulva de porca numa taberna bem
quente”162; o rapaz de família que, seguindo as pegadas do
pai, glutão de cabelos brancos, já na adolescência preocupa-
se em esfregar as trufas, temperar os cogumelos e mergulhar
as toutinegras no molho adequado163; o pródigo que paga
6 000 sestércios pelo salmonete que lhe apetece164; o gastrô­
nomo Montanus, capaz de distinguir ao primeiro bocado as
ostras de Circei e as do Lucrino165.
Contudo, seria uma temeridade generalizar. Assim co­
mo não devemos imaginar, a partir de Montanus, que em
cada senador do Império havia uma espécie de Brillat-
Savarin*, também não podemos confundir todas as cenae ro­
manas com as comilanças das quais citamos exemplos gro­
tescos ou repugnantes. Na mesma época em que ocorriam,

’ Anthclme Brillat-Savarin» (1755’1826): gastrônomo francos» autor de


Physiologic du gout. (N. da T.)

316
grande número dc romanos estavam habituados a transfor­
mar o jantar que coroava o dia numa festa discreta e agradá­
vel, em que a mente participava tanto quanto os sentidos e
cuja organização meticulosa não excluía nem a medida nem
a simplicidade. Graças a uma cana de Plínio, o Jovem, sabe­
mos das ccnac que Trajano oferecia em sua villa de Ccntum-
cellae (Civita vccchia): eram modestas (modicae), não incluíam
outros entretenimentos além de audições de música ou de
comédia (acroamata), e o início da noite transcorria em agra­
dáveis conversações166. Plínio, o Jovem, recebe como pre­
sentes raros os tordos remetidos por Flaccus167, a franguinha
enviada por Cornutus168. Só aceita jantar em casa de Cati-
lius Severus (cônsul em 115) com a condição de que a cena
seja simples, sem grandes despesas e alegrada apenas por con­
versações socráticas169. Ele nos conservou o cardápio cria­
do para receber Septicius Clarus. Embora Plínio, o Jovem,
tivesse se empenhado, é um modelo dc frugalidade: uma al­
face, três escargots, dois ovos por pessoa; azeitonas, cebolas
e abóboras; um bolo regado a vinho, com mel e resfriado
na neve; e como intermédios um leitor, um cômico, um to­
cador de lira, ou os três em seguida170.
Na pequena burguesia predominava a mesma sobrieda­
de requintada. Por exemplo, a cena organizada por Marcial
para sete convivas no stibaditim de sua sala de refeições: “Mi­
nha criada trouxe-me malvas laxativas e as riquezas variadas
que adornam meu jardim, a alface amassada e o alho-poró
para fatiar, sem esquecer a hortelã delicada nem a eruca,
*
que leva ao amor. Ovos picados coroarão anchovas numa
camada de arruda e haverá úberes de porca temperados com
salmoura de atum. Isso para o antepasto. E depois minha mo­
desta refeição terá apenas um serviço: um cabrito subtraído
às garras de um lobo feroz, costeletas grelhadas, favas e re­
polhos verdes. A isso acrescentar-se-ão um frango e um pre­
sunto, que já sobreviveu a três repastos. Quando não tiveres
mais fome, servir-te-ei frutas maduras, uma garrafa de No
mentum livre de borra e que completou duas vezes três anos
sob o consulado de Frontino (98 d.C.). Além disso, conta

• Planta da famüia das crudferas cujas folhas sao utilizadas no preparo de


saladas. (N. da T)

317
com brincadeiras scni fel, uma franqueza que nào te assusta­
rá na manha seguinte c nem uma palavra que gostarias dc
não ter sido pronunciada”171. Ainda mais simples e agradá­
vel é o jantar que Juvenal anuncia a seu amigo: “Escuta o
cardápio: o mercado não o terá fornecido. Das pastagens do
Tíbure virá um cabrito bem gordo, o mais tenro do reba­
nho. Ainda não terá pastado nem ousado morder os brotos
dos jovens salgueiros; tem mais leite que sangue. Aspargos
de montanha que, deixando o fuso dc lado, a horteloa co­
lheu, depois ovos grandes, ainda quentes do feno onde fo­
ram postos, e as galinhas que os puseram; uvas conservadas
uma parte do ano, tão belas quanto na videira; peras dc Síg-
nia; maçãs de fresco perfume, rivais daquelas do Piceno”172.
Gostamos de pensar que cardápios semelhantes durante
suas férias em Pompcia encomendava o burguês que manda­
ra pintar nas paredes dc seu triclinium os conselhos que ain­
da hoje são lidos e transpiram decência e dignidade:

“Abluatunda PEDES PUER ET DETERGEAT UDOS MAPPA


TORUM VELET LINTES NOSTRA CAVE”,

(“Que o escravo lave e enxugue os pés dos convivas e


que cuide de estender sobre as almofadas do leito um lençol
de linho.”)

“Lascivos voltus etblandos aufer ocellos


CON1UGE. AB ALTERIUS SIT TJBI IN ORE PUDOR”

(“Poupa teus olhares lascivos e acariciantes á mulher de


teu vizinho, e que o pudor resida em teus lábios.”)

“ÜTERE BLANDIIS ODIOSAQUE 1URGIA DIFFER SI POTES


AUT GRESSUS AD TUA TECTA REFER."173

(“Usa de amabilidade e abstém-te de odiosas tolices, se


podes, ou que teus passos te levem de volta a tua casa.”)

Com certeza os plebeus de modo geral observavam uma


conduta semelhante em seus jantares corporativos. Consul­
temos os estatutos do colégio funerário criado em Lanuvium

318
cm 133 d.C. O regulamento determina a organização de seis
banquetes por ano: dois na respectiva data dc aniversário da
fundação dos santuários de Antínoo c Diana, o herói c a deusa
sob cuja proteção se colocou esse “colégio dc salvação’’; qua­
tro na data dc aniversário da morte de seus três benfeitores,
os Cacsennii, e dc sua benfeitora, Cornelia Prócula. Prevê
que pelos cuidados do presidente do banquete, magister ce-
nae, cada conviva receberá um pao de dois asses, quatro sar­
dinhas e uma ânfora dc vinho quente. Dispõe a ordem em
que os “colegas” sc situarão e que seguirá aquela de sua “lis­
ta hierárquica”, ou album. Por fim, edita sanções contra os
mal comportados: “Se para causar tumulto alguém se levan­
tar de seu lugar e ocupar outro, pagará uma multa de 4 ses-
tércios; se alguém disser tolices a um colega ou brigar, pagará
12 sestércios; se o injuriado for o presidente da união, a multa
será de 20 sestércios”174. As virtudes da Roma antiga pare­
cem reviver nessas associações de gente pobre dos arredores
da Cidade, na época de Adriano: a sobriedade, a disciplina,
a urbanidade. Parece até que aí desabrocha um novo senti­
mento, para glória dos “colegas” de Lanuvium: o da frater­
nidade que os une cm vida como mais tarde deverá reuni-los
na morte, e é preparando-se para ela que se congregam a fim
de custar juntos seus respectivos funerais e merecer em co­
mum a recompensa da salvação no além.
E, com mais vigor ainda, porque alimentado de um ideal
mais elevado e esclarecido pelas certezas do Evangelho, era
esse sentimento que pela mesma época, ao final do dia, agru­
pava os cristãos dc Roma nas cenae a que suas comunidades
deram o nome grego de amor: ágape. No século I ali toma­
vam “seu alimento com alegria e simplicidade de coração,
louvando a Deus”175. No final do século II ali exerciam a
caridade como entre irmãos, pois, “os pobres dividiam as
provisões dos ricos, mas nisso nada viam de degradante ou
de imodesto”. Como escreve Tertuliano, “só se deitam para
comer depois de erguer uma prece a Deus. Comem na me­
dida de sua fome. Bebem quanto convém a pessoas pudicas.
Saciam-se como convém a quem não esquece que, mesmo
à noite, há Deus para se adorar. Conversam como quem sa­
be que Deus escuta”176.

319
Como estamos longe das descrições de Petrônio, dos epi-
gramas de Marcial, das sátiras de Juvenal! E que realidades
exemplares a Roma imperial podia contrapor em silêncio às
torpezas ruidosas com que nos feriu os ouvidos! Houve uma
nobreza segura c sempre invejável na conduta comum de suas
elites, na vida cotidiana de seus pequenos-burgueses e dc sua
plebe, na modéstia da corte de Trajano, na frugalidade das
refeições a que Plínio, o Jovem, e os poetas convidavam os
íntimos, nas ccnac tranqüilas cm que os fiéis de Diana c An-
línoo se reuniam fratcrnalmcnte, por fim, e sobretudo, nos
serenos ágapes em que os cristãos, elevando a alma ao mes­
mo tempo que restauravam o corpo antes do repouso no­
turno, expressavam o amor que devem uns aos outros os
filhos do “Pai que está nos céus” e, ademais, experimenta­
vam no fundo de sua alegre humildade o sublime encanto
de uma presença divina.

320
NOTAS

PREFÁCIO

1. Juvenal, XI, 78-79.


2. Ibid., XI, 99.

PRIMEIRA PARTE
O QUADRO DA VIDA ROMANA

SEÇÃO I - O MEIO FÍSICO: A CIDADE, SUAS CASAS E SUA


POLÍCIA

CAPÍTULO I - ESPLENDOR, EXTENSÃO, POPULAÇÃO DA


‘•URBS”

1. Para a descrição do foro de Trajano, consultar a excelente mono­


grafia sobre os foros imperiais que CORRADO Rica publicou em
1934; ler também o capítulo notável, anterior a escavações recen­
tes, que ROBERTO PaRIBENI inseriu no tomo II de seu Optimus
princeps.
2. Para a população de Roma, limito-me a remeter ao livro clássico
dc BeloCH, Die Bevõlkerung der Griechisch-Rômischcn Welt, e às pá­
ginas de FERDINAND Lot, em seu belo livro La fin du monde anti’
que, cuja bibliografia é completa até 1925. Nesse texto exponho as
conclusões a que cheguei nos artigos a serem publicados na revista
Roma (1938), nos Melanges Martroye e nos Melanges Dussaud.
3. Sobre a Roma das catorze regiões, cf. os dois volumes de CLEMEN­
TI. Roma 1933; sobre o pomerium, a muralha dita serviana, o mu­
ro de Aureliano, cf. os verbetes do Dictionnaire topograpbique de
Platner-Ashby, completando: para o pomerium, com o artigo de
Michel Labrousse in Melanges d’Archeologie et d’Hiszoirt publicados
pela École Française de Rome, volume de 1937; para a muralha de
Aureliano, com a monografia de RICHMOND. The city wall of im­

321
perial Rome, Oxford, 1930; c para a muralha dita Servians, com o
livro admirável de G. SaEIT.UND, Lc mnra di Roma rcpnbblicana,
Lund, 1932.
4. Dig., 1.., 16, 2, 87 (Alfenus); ci. 154.
5. Sobre o Cnriosnm c a Notitia, publicados cm Urlichs, cf. o estudo
recente de Arvast NORTH, Prolegomena till den Romerska Regions-
katalogen, Lund, 1937.
6. Em Classical philology, 1934, pp. 101-116, OATES retomou o pro­
blema da população dc Roma após Ferdinand Lot e com relação
ao Alto Império chegou ao total urbano de um milhão c duzentas
e cinqüenta mil almas.
7. Marcial, £/>., XII, 8, 1-2.

CAPÍTULO II - AS CASAS E AS RUAS, GRANDEZAS E MISÉRIAS


DA ANTIGUIDADE

1. Ver a rica dissertação de G. LUGLI, Aspetti iirbanistici di Roma an-


tica, in Rendiconti delia Pontifica Accademia di Archcologia Roma­
na, XIII, 1937, pp. 73-98. Sobre as origens da insida, cf. AGNES K.
Lake, The origin of the Roman house, Am. Journal of Archeology,
1937, pp. 597-601. Sobre sua natureza, a verdade foi dita por G.
Calza cm sua dissertação clássica dos Rendiconti dei Lincei, de
1917.
2. Trro Livio, XXI, 62.
3. CÍCERO, De leg. agr., II, 96.
4. VfTRÚVIO, II, 3, 63-65.
5. Sobre a regulamentação dc Augusto, cf. EstrabÂO, V, 3, 7; XVI,
2, 23; Tácito, Hist., 2, 71; AULO GÉLIO, XV, 1, 2; MARCIAL, Ep.,
I, 117, 7.
6. Estrabâo, XVI, 2, 23.
7. Juvenal. Sat., III, 190 ss.
8. Aulo Gélio, XV, I, 9.
9. Aelius Aristides, Or., XIV, 1, p. 323. Dindorf.
10. Sobre a regulamentação de Trajano, cf. AURELIUS VICTOR, Epito­
me, 13, 13. Statuens ne domorum altitudo exsnperarct pedes Ix. Cf.
Dig., XXXIX, I, 1, 17, e Cod. Just., VIII, 10, 1.
11. TerTUUANO, Adv. Vai., 7.
12. JUVENAL, Sat., III, 197. Havia cinco andares na Biberatica c na Sca­
la de Ara Coeli.
13. Cf. CÍCERO, Pro Caelio, VII, 17.
14. Sobre as belas villas exteriores, cf. MARCIAL, I, 108, 2-4; VII, 61, 1-6.
Aliás, o encantador epigrama X, 79, indica que seus proprietários
nunca conseguiram se isolar.
15. Sobre as comparações entre a cpoca antiga c a atual, ver o interes­
sante artigo dc BOETHIUS nos Scritti in onore di B. Nogara, Roma,
1937.

322
16. Plínio. N. //., XIX, 59; cf. Marcial. XI, 18.
17. VlTRÚVIO. II, 8, 17.
18. Dig., XIX, 2, 30.
19. Juvenal, XIV, 305, e III, 196.
20. ULPIANO no Dig., I, 15, 2.
21. Sobre os trastes dos pobres, cf. MARCIAL, XII, 32.
22. Sobre esse luxo, cf. CUMONT. Egyptc des astrologues, Bruxelas, 1937,
p. 1C0, n. 6.
23. Sobre a baixela, cf. Marcial, VII, 53.
24. Sobre a riqueza do mobiliário romano, cf. MARCIAL, VI, 94; XI,
22; XI, 66; JUVENAL, XI, 120, etc.
25. As vidraças, extremamente raras na Itália, eram comuns nas villas
da Gália (cf. CüMONT, Comment la Belgique fui romanisée, p. 44,
n. 3). Sobre as taças dc vidro pintado, importadas da Síria para Ro­
ma no século I d.C., cf. SlLVESTRJNI. La coppa vitrea greco-
alessandrina di Locarno, Bull. d’Arte, 1938, pp. 490-493, que remete
à bibliografia anterior e sobretudo à nota fundamental de Et. Mi-
chou no Bulletin de la Socicté des Antiquaires dc 1913.
26. PLÍNIO, O JOVEM, £/n, n, 17, 16 e 22; cf. VII, 21, 2 e IX, 36, 1, e APU­
LEIO. Met., II, 23.
27. Mesmo na Gália, onde os sistemas de calefaçâo eram mais refina­
dos, devia-se temer a asfixia pelo óxido dc carbono dos braseiros.
Juliano quase sucumbiu a cia em Lutécia (Misopogon, 341 D).
28. Sobre a aqua Traiana ver o texto de Óstia que comentei nos C R.
Ac. Ins., 1932, p. 378: aquam suo nomine tota Urbe salientem dedica-
vit (Traianus).
29. PLAUTO. Cos., I, 30 et passim.
30. MARCIAL, IX, 18 (embora sc deva admitir que Marcial só dispõe de
bomba em sua casa dc campo). PLÍNIO, O JOVEM (Ep., II, 17, 25),
tem apenas poços cm sua villa.
31. Juvenal, VI, 332.
32. PAULO, no Dig., Ill, 6, 58; cf. PAPINIANO no Dig., XXXIII, 7, 12,
142.
33. Paulo, no Dig., I, 15, 3, 3-5.
34. Sobre os canos de esgoto, cf. meu artigo sobre Le quartier des docks
à Ostie nos Melanges d’Archeologie et d'Histoire dc 1910. O sistema
de esgoto, aliás, é recente em nossas capitais modernas. Na França,
à época do Segundo Império, a limpeza das fossas ainda era feita
por arrendamento.
35. Marcial, XI, 77, 1-3:
*7» omnibus Vacerra quod conclavibus
Consumit boras et die toto sedet
Cenaturit Vacerra non cacaturit”.

No século XVin Filipe V e Elisabeta Farnese tinham o hábito de


ir juntos ao banheiro; e fui informado de que em 1914 ainda havia em
Ypres “sanitários*’ de dois lugares.

323
36. Sobre a deusa da felicidade ver meu artigo no Journal tics Savants,
1911, p. 456, c cotejar com o MeycrXi; Túxn wb (faXavlov das termas
de Dura (Cf. Exgíwíkms at Dura, Report VI, New Haven, 1936,
p. 105). Na visita que fiz rcccntcmcnte às ruínas da Tripolitánia,
o professor Caputo teve a gentileza dc mostrar-me a presença de
uma estátua de Esculápio nas latrinas de Lcptis Magna c de uma es­
tatua dc Baco nas latrinas contíguas aos banhos dc Sabratha. Sobre
os sete sábios da Grécia c as latrinas, ver as escavações dc 1937, ain­
da inéditas, dc Calza, em Óstia.
37. Sobre a fossa no vão da escada notadamente na insula Scrtoriana,
cf. C. I. L., VI, 29 791.
38. Sobre os lacus, ver Trro L1VIO, XXXIV, 44, 5; LUCRÉCIO, VI, 1 022;
JUVENAL, VI, 602; e o artigo que publiquei nas Mémoires de la So-
ciétc des Antiquaires, dc 1928 (cf. CUMONT, Égypte des astrologucs,
p. 187, n. 1).
39. Juvenal, III, 271.
40. ULPIANO no Dig., IX, 3, 5 e 7. A mesma jurisprudência na época
dos Antoninos: Caius no Dig., LIV, 7, 5, 18.
41. Sobre os alugueis, cf. Dig., XIX, 2, 30 e 58; Deodoro. XXXI, 18,
1; SUETÔNIO, Cacs., 38; JUVENAL, III, 223.
42. Sobre a insula administrada pelo procurator Bargates, cf. PETRÔNIO,
Sat., 95.
43. Ver os excelentes verbetes via e vicus elaborados respectivamcntc
por M. Besnier c A. Grenier para o Dictionnaire des antiquités dc
SAGLIO e POTTIER (citado mais adiante, D. A.).
44. Plínio, N. H., III, 66.
45. Tácito. An., XV, 38 e 43.
46. Sobre a largura imposta aos rnaeniana, cf. Cod. Just., VIII, 10, 12.
47. O hábito de jogar o lixo na rua subsistiu em Roma ate 1870.
48. VARRÂO, L L, V, 158.
49. Marcial, VII, 61.
50. Marcial, ibid.
51. Paris passou a ter lampiões a óleo somente a partir dc 1765.
52. Juvenal, III, 246.
53. Juvenal, III, 271 ss.
54. PETRÔNIO, Sat., 79.
55. Sobre a agitação diurna dc Roma, cf. SÊNECA, De clem., I, 6; MAR­
CIAL, I, 41, e XII, 57.
56. Ver o verbete funus de Éd. CUQ no D. A. c o baixo-relcvo de Prc-
turo, em Áquila.
57. SUETÔNIO, Claud., 25, 2; H. A., Anton. Phil,, 23, 8; Hadr., 22, 6.
58. Marcial, IV, 64.
59. Juvenal, III, 236 s$.

324
SEÇÃO II - O MEIO MORAL

CAPÍTULO I - A SOCIEDADE: AS CASTAS CENSITÁRIAS E O


PODER DO DINHEIRO

1. Cf. Jlivf.NAL, III, 62 ss; SÊNECA. Cons. ad Helv., VI, 2 e 3; Luca-


NO, Phars., VII, 404-405, c os autores citados por DENIS Van BER-
CHEM. Les distributions de blé et d'argent à la plebe romaine sous
PEmpire, Genebra, 1939, p. 59.
Ia. JUVENAL, XIV, 26; I, 92; VI, 475; XIV, 17.
2. MARCIAL, VIII, 23; ver seu carinhoso epitáfio de Demétrio, I, 101.
3. Plínio, O JOVEM. I, 21, 2; VIII, 16; I, 4, 3; VIII, 1, 2; V, 19; I, 12,
7; IX, 36, 4; III, 14, 3.
4. APIANO, B. C, II, 120.
5. Sobre esses números, cf. TENNEY FRANK, Races mixtures in the Ro­
man Empire in American Historical Review, XXI, 1916, pp. 689-708.
6. Sobre o valor do depoimento de Críton, ver meus Points de vue sur
Pimpérialisme romain, cap. II.
7. C I. L, VIII, 10 070 e 14 464.
8. Juvenal, III, 131-132.
9. Marcial, XIII, 12.
10. Um escravo para dois homens livres em Pérgamo segundo o depoi­
mento de GaliaNO (V, 49 Kuhn), que viveu de 136 a 202.
11. Juvenal IX, 140.
12. Juvenal XIV, 322-329.
13. Marcial VII, 73; IV, 37; XII, 10.
14. Liberalidades testamencárias de Plínio, o Jovem, no C I. L., V, 5262.
15. Plínio, o Jovem, Ep., n, 4, 3.
16. PETRÔNIO, Sat., 71.
17. Sobre o fim da segunda guerra dácia, cf. o artigo de DegraSSI nos
Rendiconti delPAccademia Pontifícia de 1937.
18. Sobre os tesouros de Decébalo, calculados em 150 milhões, cf. meus
Points de vue sur Pimpérialisme romain, cap. II. No mesmo sentido,
ver a monografia publicada na coletânea da Universidade do Cairo
por P. GRAINDOR sob o título Un milliardaire antique: Hérode
A tticus.
19. Marcial XII, 97.
20. JUVENAL m, 167.
21. Marcial VII, 53.
22. Juvenal vii, 141.
23. PETRÔNIO. Sat 47 e 37.
24. Sobre a lei Fufia Caninia, cf. Gaio, I, 47.
25. PLÍNIO, N. H, XXXIII, 135.
26. Ateneu. VI, 104.
27. Sobre os soidos e os tratamentos, ver os textos clássicos de Von
DO.MASZEWSKl, Der Truppensold der Kaiserzeit nos Neue Heidelberg

325
Jahrb., dc 1900, c sobretudo Die Rangordnung im rõmischcn Ileere nos
RonnerJahrb., dc 1908 (cm especial pp. Ill, 118 e 139).
28. Marcial, IV, 46, c V, 56.
28a. Marcial. VI, 8.
29. Marcial, X, 47.

CAPÍTULO II - O CASAMENTO, A MULHER E A FAMÍLIA:


VIRTUDES E VÍCIOS

1. Gaio, Institutiones, III, 17. Sobre a patria potestas e o patronato, cf.


os artigos de Kaser in Zcitschrift dcr Savigny Stiftung, Roni. Abt.,
1938, pp. 67-87 c 88-135.
2. Cícero. De off., I, 17, 54.
3. Ou devorados pelos càes vadios, cf. CUMONT, Égypte des astrologues,
187, n. 2.
4. Sobre essas estatísticas, cf. meu artigo na R. E. A., 1921, p. 299. So­
bre a diatribe de Musonius Rufus, ú Tcexvra 7Ú ytvóneva nxva Oqct-
rcov, cf. o Pap. Harr. 1, publicado por J. ENOCH POWELL, /íncAív
f Papyrusforschung, 1937, pp. 175-178.
5. Exemplo de ADRIANO, ap. Dig., XLVIII, 9, 5.
6. Exemplo de Trajano. ap. Dig., XXXVII, 12, 5.
7. Marciano, sob Alexandre Severo, no Dfg., XLVIII, 9, 5.
8. Plínio, o Jovem. Ep., IX, 12, 1.
9. Marcial. III, 10.
10. Plínio, o Jovem. Ep., IV, 2, 3.
11. Plínio, o Jovem. Ep., I, 9, 1-2.
12. Sobre os presentes de noivado, cf. ULPIANO no Dig., XVI, 3, 25 pr.
13. Sobre a relação entre o anel e o penhor, cf. Plínio, N. IL, XXXIH, 28.
14. Em JUVENAL, VI, 25 ss, só a noiva recebe o anel. Cf. TertuliANO,
Apol., 6.
15. Aulo Gélio. X, 10.
16. Sobre esses detalhes, cf. CATULO. 61; FESTUS, p. 63, M.; OvÍDIO.
Met, X, 1; Plínio, N. H., VIII, 194; XV, 86; XXVIII, 63; PLUT, Qk.
Rom., XXX e XXXI; JUVENAL, VI, 227, c X, 330; CLAUDIANO,
XIII, 1; XXXI, 96; XXXV, 328. Sobre o rito do umbral, cf. ROSE,
77ze Roman questions of Plutareh, 1924, p. 101 ss.
17. DUCHESNE, Origines du culte chrétien, p. 455.
18. LUCANO, Phars., II, 370-371.
19. Sobre o antigo estado de “minoridade” da mulher, cf. GAIO, I, 144;
Vetores enim voluerunt feminas etiamsi pcrfcctae actatis sint propter
animi levitatem in tutela esse. Ver também CÍCF.RO, Pro Mur., XII,
27: Mulieres omnes propter infirmitatem consilio maiores in tutorum
potestate esse voluerunt.
20. Sobre os tutores legítimos que se tornaram amovíveis c depois inú­
teis, cf. Gaio, I, 173-174, e 115, 145 e 157.
21. Cotejar com essa citação de JULIANO no Dig., XXIII, 1,11, ULPIA­
NO no Dig., L, 17, 30: Nuptias non concubitus sed consensus facit.

326
22. Cf. CH. Fa VEZ, Un féministe romain: C Musonius Rufus, in Bull.
Soe. Et. des Lettres de Lausanne, outubro dc 1933, pp. 1-9.
23. Sobre Sextia e Paxca, cf. TÁCITO. An., VI, 29.
24. Sobre Paulina, cf. TÁC.,/1n., XV, 62, c J. CaRCOPINO. Chose et gens
du pays d'A rles, in Revue du Lyonnais, 1922; c Points de vue sur l*im-
périalisme romain, pp. 247-248.
25. Sobre Arria, a mac, cf. PLÍNIO, O JOVEM, Ep., Ill, 16.
26. Sobre Arria, a filha, cf. TÁCITO, An., XVI, 34.
27. Plínio o. Jovem, Ep., VI, 24.
28. Cf. MARCIAL, XI, 53 (sobre Cláudia Rufina); IV, 75 (sobre Nigri-
na); X, 35, c também X, 38 (sobre Sulpícia).
29. Sobre a mulher de Macrino, cf. PLÍNIO, O JOVEM, Ep., VIII, 5.
30. Elogio dc Calpúrnia ap. PLÍNIO, O JOVEM. Ep., IV, 19.
31. Cf. Plínio, o Jovem, Ep., VI, 4, c VII, 7.
32. Sobre o casamento racional, cf. PLÍNIO, O JOVEM, Ep., I, 14.
33. Sobre o quarto dc PLÍNIO, O JOVEM. Ep., IX, 36.
34. Sobre o abortus de Calpúrnia, cf. PLÍNIO, O JOVEM. Ep., VTI, 10, e
VIII, 11.
35. Juvenal, VI, 243-247; 398-412; 434-456.
36. Plínio, o Jovem, Ep., I, 16, 6.
37. Juvenal, I, 22-23 c 61-62.
38. Juvenal, VI, 246-264.
39. Juvenal, VI, 301-305 e 426-433.
40. Juvenal, VI, 509.
41. Juvenal, VI, 282-284.
42. Plínio, o Jovem, Ep., VI, 31.
43. Juvenal, XI, 183.
44. Catão ap. AULO GÉUO, X, 23; cf. Quintiuano. V, 10, 104. So­
bre a lex Iulia de adulteriis, cf. PAULO, Sent., II, 26, 4 e 14; MODES-
TINO no Dig., XXIII, 2,26; ULPIANO no Dig., XXV, 7,1,2; Collatio
IV, 12, 3 e 7; Marcial, II, 39, c Juvenal. II, 70.
45. Marcial, Ep., VI, 4.
46. JUVENAL Sat., II, 29-31.
47. Sobre SÉTIMO SEVERO, cf. DÍON CÁSSO. LXXVI, 16, 4; tvtxakti
pív róis m ouvpj-oêot*', ws xal xepl rijs fLOixtias voiioOtirjoai. nra.
48. Sobre o texto das Doze Tábuas, cf. CÍCERO, PhiL, II, 28, 69.
49. Sobre ANTONIUS, riscado do album senatorial pelos censores de 307,
cf. Valério Máximo, II, 9, 2.
50. Sobre Sp. Carvilius Ruga, cf. Valério MÁXLMO, II, 1, 4, e AULO
GÉUO, X, 15.
51. Ver o texto de Valério MÁXIMO, VI, 3, 10-12. Dos nomes que ci­
to, um c complctamente desconhecido (Q. Antistius Vetus); os ou­
tros dois poderíam designar pessoas da segunda metade do século
III a.C. (entre 293 e 218), sc é verdade que Valério Máximo empres­
tou seus exemplos da segunda década de Tito Lívio que perdemos.
52. No casamento cum manu a mulher havia chegado aos mesmos fins:
cf. Gaio, 1,137 A.

327
53. Sobre o quinto casamento de Sila, ver meu livro Sylla oh la monar-
chie manqtiée, p. 217.
54. Sobre os divórcios de Pompcu, cf. ibid., pp. 190-191, c PLUTARCO,
Pompcu, IV e X.
55. Sobre o divórcio dc César, cf. meu Ccwr, p. 667.
56. Sobre o divórcio de Catão de Utica, cf. PLUTARCO. Crro min.,
XXXVI c LII.
57. Sobre o divórcio dc CÍCERO, cf. os textos reunidos por WEINSTOCK
P. W„ Va. c. 714-716.
5S. Sobre os rompimentos dc noivado, cf. SUETÔNIO, Aug., 34; sobre
as leis de Augusto, cf. PAULO no Dig., XXIV, 29, c principalmcntc
GAIO. 11, 62 e 63. No conjunto, adoto sobre as consequências das
“leis julianas’’ as opiniões penetrantes de ÉDOUARD Cuq. Institu­
tions, p. 182.
59. Sobre as retenções dotais, cujo surgimento remonta ao final da Re­
pública, cf. Dig., XXIII, 3, 73; I, 1, 8; XXIV, 3, 47; XXV, 2, 3, 3;
5, 18; UlPIANO. Reg., VI, 9-12, e VII, 1 ss, etc. Sobre sua aplicação
à época focalizada, cf. PLÍNIO, N. II., XIV, 14.
60. Horácio. Od., III, 24, 19.
61. Sobre os entraves da gestão marital fora da Itália, cf. PAULO, Sent.,
II, 21b, 2, c JUSTTNIANO, Inst., II, 8 (comparar com a passagem de
Gaio citada anteriormente).
62. Sobre o procurator, cf. MARCIAL, V, 61.
63. Juvenal. V, 212.
64. Juvenal. VI, 460.
65. Marcial. VIII, 12, 1-2.
66. Juvenal, VI, 142 ss.
67. Gaio no Dig., XXIV, 2, 2, 1.
68. Juvenal, VI, 225-228.
69. Marcial, VI, 7.
70. Javolenus. no Dig., XXIV, 3, 64.
71. Gaio, no Dig., XXIV, 1, 61.
72. SÊNECA, De benef., III, 16, 2.
73. Sobre a dominação da mulher, cf. JUVENAL, VI, 224: Imperat ergo
vire, e 341: Vidua est locuples quae nupsit avaro.
74. Sobre a família romana na cpoca da República, cf. a excelente mo­
nografia de R. Paribeni, La famiglia romana, Roma, 1929.
75. Marcial, VI, 7, 5.

CAPÍTULO III - A EDUCAÇÃO, A CULTURA, AS CRENÇAS:


SOMBRAS E LUZES

1. Sobre o concubinato, ver a tese de direito de PlassarD, Toulouse,


1921.
2. Sobre o concubinato dc Marco AurÉLIO, cf. DÍON CÁSSIO, LXXI,
29,1; H. Aug. M. Ant. ph., 29,10. Aliás, Vespasiano precedeu o “fi­

328
1

lósofo” quando cm sua viuvez tomou como concubina a liberta Cac-


nis, cf. SUETÔNIO, Vesp., 3.
i 3. Plínio, o Jovem, Ep., III, 14, 3.
4. Marcial, VIII, 71, 16; VII, 64, 1-2; VI, 39, e XII, 58.
5. Sobre as “lobas”, cf. JUVENAL, HI, 66; MARCIAL. I, 35, 8, etc.
6. Sobre CatÂO. cf. PLUTARCO. Cato mai., XX, Dig., XL, 30, 3, 5:
dccrctis divi Pii optinuit mater ut sine deminutione patriae potestatis
apud cam filius morarctur.
7. Sobre a escolha de um pedagogo por parte dc Corélia, cf. PLÍNIO.
O JOVEM, Ep., III, 3,3 ss. Sobre a educação servil da primeira idade,
cf. Tácito, Dial, de Or., 29.
8. Sobre os clubes dc mulheres, atestados cm Roma desde o século I
(SUETÔNIO, Galba, V, 1) ate o V (SÃO JERÔNIMO, Ep., 43, 3), cf.
C. /. £., VI, 997, c XIV, 2 120.
9. Sobre Ummidia, cf. PLÍNIO, O JOVEM. Ep., VII, 24.
10. PLAUTO, Báquidas, I, 2; cf. BOISSIER, Fin du paganisme, I, p. 149.
11. Sobre a remuneração dos pedagogos, cf. HORÁCIO, Sat., I, 6, 75;
Ovídio, Fastos, III, 829; C Z. L, X, 3 969.
12. Sobre o plagosus Orbilius, cf. HORÁCIO, Epístolas, II, 1, 7C; sobre
, seus sucessores, JUVENAL, I, 15; MARCIAL, X, 62, 10.
13. Sobre o mestre-escola dc Falérios, cf. LlV, V, 27, I, cujo relato c
evidentemente inventado (cf. Deod., XIV, 95, 6).
14. Sobre a educação romana, ver sobretudo A. GWINN. Roman edu­
cation from Cicero to Quintilian, Oxford, 1926.
15. A primeira escola estatal foi fundada por TEODÓSIOII, CocLTheod.,
VI, I, 1.
16. Quintiliano, I, 3,1.
17. Sobre os métodos de leitura, cf. Quintiliano, I, I, 26.
18. Sobre os métodos de escrita, cf. SÊNECA, Ep., 94, 51.
19. Sobre os ábacos, cf. verbete do D. A.
20. C. /. L, II, 5 181, 1, 57: ludi magistros a proc (uratore) metallorum
immunes es (seplacet). Aliás, a importância do privilégio é diminuí­
da pelo fato de ser enunciado após os do arauto, dos sapateiros, do
barbeiro, etc.
21. Sobre os alfabetos dc marfim, de massa, cf. Quintiliano, I, 1,25.
Sobre o do pedagogo de Hcrodes Ácico, cf. PHILOSTR.. Víl Soph.,
II. 1, 10.
22. VegÉCIO, De re mil, II, 19.
23. APULEIO. Florida, 20.
24. AULO GÉUO, XV, 11.
25. Ver meu César, p. 974, e os tratados de CÍCERO.
26. Sobre a política “intelectual” dc Vcspasiano, cf. a inscrição dc Pér-
gamo publicada por HERTZOG in Sitzungsber. der Preussischen Aka-
demie, XXXII, 1935, pp. 967-1910, e comentada por Amuo Levi
in Romana, 1937, pp. 361-367.
27. SUETÔNIO. De gramm., I, 2, e Rhet, L
28. Um bom exemplo do ridículo ao qual os filósofos comumentc sc

329
expunham nos é fornecido pela paródia cscatológica do ensino dos
“Sete sábios” nas pinturas das termas rccém-dcscobcrtas cm Óstia
(cf. supra, p. 323, n. 36).
29. Cf. meu César, pp. 974-975, c o artigo de MARROU nos Manges dc
Rome, de 1933.
30. Sobre os meninos prodígios da Roma imperial, cf. MARROU,
Moratxòs àrr/Q. Paris, 1937, pp. 196-207.
31. MARROU, Saint-Augustin et la fin de la culture antique, Paris, 1937,
cap. II.
32. Sobre os “grecizantcs" do século II, cf. MARCIAL, X, 68; JUVENAL,
I, 185-196.
33. Sobre Luciano c suas excursões lucrativas, cf. a tese de MAURICE
CRO1SET, a qual nao envelheceu.
34. Sobre a introdução do latim na Igreja de Roma cm lugar do grego,
cf. P. MONCEAUX, Histoirc de la littératurc chrétienne, p. 42; PUECH,
Histoirc de la Iittcraturc greeque chrctienne, II, p. 8. Sobre a idade
media de meados do século 111, cf. as belas páginas que abrem o ma­
nual de Critique verbalc de Louis HAVET. Em contrapartida, sobre
o frágil verniz de helcnismo da África romana, cf. o livro dc Thie-
UNG. Der Hellenismus in Kleinafrika, Leipzig-Berlim, 1911. Aliás,
seria fácil provar que a liturgia dos judeus dc Roma, a dos dionisias-
tas dc Torre Nova também se desenrolavam em grego (para os pri­
meiros, ver o Recueil, de FREY; para os últimos, VOGLIANO c
CUMONT, American Journal of Arch., 1933, pp. 215 ss.).
35. Sobre Q. Sulpício Máximo, cf. /. G, XIV, 2 012.
36. Sobre o filho dc Delmatius, cf. C I. L., VI, 33 929. Outro exemplo:
C Z. L, XI, 6 435.
37. Para os detalhes, remeto a meu breve esboço do Bulletin de la Socic-
té Française dc Pedagogic, março de 1928, pp. 15-19; aos livros dc
Gwynn c de Marrou citados anteriormente.
38. Sobre Cacclius Epirota, cf. P. IVC, III, c. 1 201.
39. Sobre a “ciência” de Juba, cf. GSELL, Histoirc ancicnne dc PAfrique,
VIII, pp. 262-263. Sobre Cirta, cf. SALL, Dc Bell. lug., XXI, 2. Sobre
a atitude negativa da Antiguidade com relaçao à ciência positiva, cf. P.
M. SCHUHL, Machinisme et philosophic, Paris, 1938, pp. 1 e ss.
40. Tácito. Dial, de Or., XXXVI, 1.
41. Sobre Hcrmágoras, cf. P. W7., VIII, c. 693-695.
42. Sempre há muito que colher no livro de E. JULLIEN, Lcs profcssetirs
de Iittcraturc dans Pancienne Rome, Paris, 1885, sobretudo nos capí­
tulos VI-VIIL
43. SUETÔNIO, De rhet., II, 11; cf. DlOMEDES, Dc declinatione exercita-
tionis chriarum.
44. QuiNTHJANO, I, 9, 3.
45. SUETÔNIO, De gramm., 5: veteres grammatici et rhctoricam docebant
46. SUETÔNIO, Rhet., I.
47. Sobre essa pretensa actio de moribus, cf. MOMMSEN, Droit pénal, III,
p.88.

330
48. Aulo Géuo. XVII, 12.
49. Contra, MARROU, Saint Augustin et la fin dc la culture antique, pp.
53-54. Ao contrário, cf. DERATANI. Rev. Phil., 1929, pp. 184-189,
segundo o qual para “encontrar realismo nas dcclamaçôes é preciso
olhá-las com a lupa".
50. SÊNECA, Ep., 1C6, 12.
51. PETRÔNIO. Sat., I.
52. TÁCITO, Dial de Or., XXXV, 4-5.
53. Juvenal, VII, 150 ss.
54. Sobre o vil materialismo atestado pelas fórmulas de dezenas de epi­
táfios, cf. as compilações cpigráficas dc Brf.LICH. Aspetti delia mor­
te nolle iscrizioni sepolcrali deU'impcro romano, Budapeste, 1937, pp.
50 ss.
55. Sobre essa análise da religião oficial romana, ver a página admirável
de CUMONT, Les religions orientates dans le paganisme romatn4, Pa­
ris, 1929, pp. 25-37.
56. BOISSIER, La religion romaine d'Auguste aux Antonins, II, pp.
141-142.
57. Juvenal, XII, 1-15.
58. Juvenal, II, 149-152.
59. Ver PETRÔNIO, 44. A tradução "pcs amarrados” para pedes lanatos
c de ERNOUT. Tomei a liberdade de procurar outra para nemo to­
wn pili facit na mesma passagem.
60. TÁCITO, Hist., V, 5; Germ., IX.
61. BOISSIER, La religion romaine, II, p. 171.
62. Plínio, o Jovem, Ep., VIII, 8.
63. Plínio, o Jovem, Ep., IX, 39.
64. Plínio, o Jovem, Ep., IV, 8.
65. Os imperadores não têm mais a fé imperial: sobre a frase de Vespa-
siano, cf. SUETÔNIO, Vesp., 3, e cotejar com a palavra horrível que
H. A., Geta, 2, relata de Caracala sobre seu irmão: Geta sit divus
dum non sit vivus.
66. Plínio, o Jovem, Pan., XI, 3.
67. A domus divina, mencionada excepcionalmente na época de Tibé­
rio (C. I. L, XIII, 4 635), talvez cm 31 (M. P. Charles Worth.
Haro. llxol. Rev., XXIX, 1936, p. 112, n. 14; e PlPPIDL Revista Clás­
sica, XI-XII, 1939-1940, p. 250), aparece com frequência nas inscri­
ções do tempo de Domiciano. Ora, com Nerva, celibatário, não existe
domus.
68. -Ver, por exemplo, a oposição entre as fórmulas da inscrição de Ra­
bat, que publiquei nos Melanges de Rome em 1931, e as da inscrição
de Ain el Djémala, que publiquei ibid., 1906.
69. Plínio, Pan., XIV, 1.
70. Sobre o caráter de thiasos das escolas filosóficas gregas, ver o livro
dc BOYANCÉ, Le culte des muses. Paris, 1937. A confraria epicurisxa
de Atenas foi subvencionada sob Adriano.
71. J. BlDEZ, La cite du monde et du soldi chez les stofciens. Paris, 1932.

331
72. Sobre o alexandrinismo dos ncopitagóricos de Roma, cf. o capítulo
de minha Basilique dedicado a Nigidius Figulus.
73. A prova dessa aduana moral estabelecida nos estados dos diádocos
reside particularmentc no que nos é relatado sobre Timóteo, hicro-
fante dc Flcusis, reformador do culto de Atis c fundador do culto
dc Serápis no final do século IV a.C.
74. Sobre esse culto cm Cápua, cf. Notizic degli Scavi, 1924, p. 361; em
Roma, C. /. VI, 732, sc Mitra nào teve dc ressuscitar, c também
um deus mediador c salvador.
75. Sobre a "simbiose” dos cultos orientais, cf. CUMONT, op. cit., pp.
52 c 291, c mais reccntementc Alda LEVI, La patera d’argento di
Parabiago, Roma, 1936.
76. Juvenal, VI, 550, 553, 585.
77. Ibid., 533-534; 540-541; 548-549.
78. Ibid., 511-512.
79. Ibid., 314-317. Trata-se dos mistérios de Bona Dea, cuja organiza­
ção c visivelmente influenciada pelo caráter orgiástico dos cultos
orientais.
80. Juvenal, Sat., 522-529.
81. Juvenal. Sul, VI, 570 ss.
82. PETRÔNTO. 39, 62 c 74.
83. Tácito, Hist., II, 50; cf. BOISSIER, Tacite, p. 146.
84. Plínio, o Jovem, Ep., I, 18; II, 20; VII, 27.
85. Cf. R. P. Lagrange, Revue Bibliquc, 1919, p. 480.
86. Ver Fr. CUMONT, Religions orientates, pp. 15 e 26.
87. Juvenal, X, 350.
88. Pérsio, II, 70-75.
89. EstáCIO. Silvas, I, 4, 128-131. No período anterior, a oração do cs-
tóico Demétrio relatada por SÊNECA, De Provid., V, 5, é dc uma
inspiração tão profunda que o reverendo padre Dclchaye não hesi­
tou em compará-la ao Suscipe que encerra os Exercícios espirituais
de santo Inácio fLqgení/es bag., 1905, p. 170, n. 1).
90. Sobre a religião de salvação de Antínoo, cf. DlETRICHSON, Antinoos,
Oslo, 1884, cujas conclusões prefiro às dc PlRRO MARCONI, Anti-
noo, in Monumenti dei Lined, XXIX, 1923, pp. 297-300. No Museu
de Lcptis Magna vi uma estátua restaurada de Antínoo, que junta
à coroa dc hera dc Baco os atributos dc Apoio.
91. Sobre o collegium salutare dos dendróforos de Bovillae, cf. meu ar­
tigo in Rendiconti dellAccadcmia Pontificia di Archeologia, 1925-1926,
pp. 232-246.
92. Sobre o collegium salutare de Lanuvium, cf. G I. L, XIV, 2 112.
93. Essa política imperial se desenvolve a partir dc Adriano, construtor
do duplo santuário de Vênus e de Roma, a Cômodo, representado
como Mane, com a imperatriz Crispina, como Vcnus; c foi perfei-
tamente definida por AY.MARD in Melanges de PÉcole de Rome, 1934,
pp. 194-198.

332
94. Sobre o mitracismo dc Cômodo, d. CUMONT. Textes et monu­
ments. .., I, p. 281, c Hist. Aug. Comm., 9.
95. Sobre as moedas dc Faustina, cf. GRAILLOT. Zz culte de Cybele, Pa­
ris, 1913, p. 151.
96. Plínio, o Jovem. Ep., X, 96.
97. TÁCITO, An., XV, 44; SUETÔNIO. Claud., 25, c Nero, 16.
98. Cf. SUETÔNIO, Claud., 25: Iudaeos, impulsore Chresto, assidue tumul-
tuantes Roma expulit. Sobre esse texto famoso, ver DUCHESNE, fíisL
anc. de 1'Églisc, I, p. 55, e JANNE. in Melanges Bide/., Bruxelas, 1934,
I, pp. 531-532. Os cristãos não estavam isolados; cf. ABADE V1F.L-
LARD, Bull. Soe. Antiq., 1937, p. 104.
99. “Adeptos dos costumes judaicos’’, tal c a fórmula dc que Díon Cás-
sio se serve segundo sua fonte (LXVII, 14) a propósito de Flávio
Clemente.
100. SÂo Paulo, Fil., IV, 22.
101. Sobre Pomponia Graecina, cf. TÁOTO./í»., XIII, 32. Sobre M’Aci-
lio Glábrio, cf. SUETÔNIO, Dom., 10, e DÍON CÁSS.. LXVII, 12. So­
bre Clemente e Domitila, cf. SUETÔNIO, Dom., 15, e DÍON CÁSS.
LXVII, 14.
102. Sobre o estranho abrandamento observado em Flávio Sabino, d.
TÁCITO, Hísl, III, 65 e 75: mitem virum, abborrere a sanguine et coe-
dibits... ; in fine vitae alii segnem, multi moderatum et civium san­
guinis parcum credidere.
103. Cf. Male, Revue des Deux Mondes, 15 de janeiro dc 1938, p. 347.
104. Sobre a segunda Flávia Domitila, cf. DUCHESNE. Op. ciL, p. 217,
n. 2 (citando EusÉBIO, Chron. Ad. ann. Air., 2 110, e ZZirr. Eccle,
III, 18).
105. Nestes últimos anos, a tese geral e doravante célebre de De Rossi
tem sido combatida notadamente por P. STYGER, Die rõmischen Ka-
takomben, Berlim, 1933.
106. Sobre a ilegalidade inicial do cristianismo, ver minhas observações
in R. E. L, 1936, pp. 230-231.
107. LOISY, Les mysteres paiens et le mystère chrétien, Paris, p. 363.
108. Duchesne, op. cit., p. 198.

SEGUNDA PARTE
O EMPREGO DO TEMPO

CAPÍTULO I - AS DIVISÕES DO DIA, O DESPERTAR E A


TOALETE

1. Os idos caíam no dia 15 de março, maio, julho c outubro, e no dia


13 nos outros onze meses; as nonas caíam no dia 5 nos meses em
que os idos caíam no dia 13 c no dia 17 nos outros quatro meses.

333
2. Sobre a semana considerada como cspccificamcnte romana, cí.
DÍON CÁSS., XXXVII, 18, 2.
3. Sobre o dia civil dos romanos, gregos c babilônios, cí. VarrâO, ap.
MaCRÓBIO, Sat., I, 3, 2; AULO GÉLIO. III, 2, 2.
4. Cí. o verbete horologium do D. A.
5. Sobre a introdução tardia das “horas” em Roma, cí. CENSORINUS.
De die nat., XXIII, 8. Sobre a divisão primitiva do dia em duas par­
tes, cí. Plínio, VII, 212; Aulo Gélio, XVII, 2, 10.
6. Sobre a graccostasis, cí. VARRÂO. L L, V, 135. Exceto uma embai­
xada, provavelmente íorjada pelo analista de Alexandre Magno, os
gregos nào íoram a Roma na condição dc delegados antes das vitó­
rias dc Dcmétrio Poliorcetes (ESTRABÂO, V, 2, 5).
7. Sobre a divisão do dia cm quatro, cf. CENSORINUS. De die nat, XXIV, 3.
8. Sobre o primeiro quadrante solar que nao data dc 293 mas dc 263
a.c., cf. Plínio. N. II., VII, 213-214.
9. Cf. PLÍNIO, ibid., 214: ncc congruebant ad boras eitis lincae... pa-
ruerunt tamen ei annis undeccntum.
10. PLÍNIO, ibid...: donee Q. Áfjrdns Philippas, qui cum L. Paulo fruit
censor, diligcntins ordinamentum iuxta posuit, idque mimics inter ccn-
soria opera gratíssima acceptum est.
11. Sobre o primeiro relógio a água introduzido em Roma, cf. PLÍNIO,
Ar. H., Vn, 215.
12. Sobre o grande solarium situado entre a Ara Paris c a coluna aurc-
liana, cí. C. 1. L, VI, 702, e PLÍNIO, N. H., XXXVI, 73.
13. ViTRÚviO, IX, 9, 5.
14. PETRÔNIO. Sat., 26 e 27.
15. SÊNECA. Apokol., II, 3.
16. Sobre a diferença entre o dia civil e o dia natural cm Roma, cí. CEN­
SORINUS. De die nat., XXIII, 2.
17. Marcial, XII, 57.
18. JUVENAL, XIV, 59 ss. Sobre as diferentes espécies dc scopae, cf. PLÍ­
NIO. H. N., XVI, 108; XXIII, 166; HOR.. Sat., II, 4, 81-82; MARCIAL,
XIV, 82. Sobre as escadas, scalae quae ad lacunaria admoveantur, cf.
ULPIANO no Dig., XXXIII, 7, 16.
19. Plínio, o Jovem, Ep., II, 17.
20. Plínio, o Velho, H. N., pr., 18.
21. Aulo Gélio. VI, 10, 5.
22. Pérsio, III, 3.
23. HoráCIO, Sat., I, 6, 119.
24. Marcial, Ep., XII, 18, 13.
25. Isidoro de Sevilha. XVIII, 20.
26. Cícero. Ad. Qu.fr., III, 2, 1; HoráCIO. Serm., II, 1, 102; FRON­
TON. Ep., IV, 6, p. 69 Nabcr.
27. Plínio, o Jovem. Ep., III, 5, 8.
28. SUETÔNIO, Vesp., 21.
29. Sobre o Apoxiômcnos dc Lisípo e a rccém-casada dc Parrásio, que
decoravam o cubiculum dc Tibério, ver meu artigo Galles et arebb

334
gallcs nos Melanges d’Archeologie et d’Histoire, de 1923. Nào quero
entrar aqui na controvérsia suscitada pela finalidade do quarto dos
mistérios da villa Item.
30. Acro, ad HORÁCIO, SíL, I, 1, 1C9.
31. Juvenal, VI, 261.
32. Marcial. XIV, 119.
33. Marcial, XI, 11, 5; cf. Dig., XXXIV, 2, 27, 5.
34. Sobre os leitos, cf. supra, p. 50.
35. Sobre o torus, cf. PETRÔN1O. 32 c 78; JUVENAL VI, 88 ss; MARCIAL
XIV, 90 e 92.0 renome das lâs dc Flandrcs parece remontar à An­
tiguidade.
36. Sobre os stragula e operimenta (ou opertoria), cf. VarrâO, /- V,
267; SÊNECA. Ep., 87, 2.
37. Sobre os tapetia, cí. MARCIAL XrV, 147; Dig., XXXIII, 10, 5. So­
bre os lodiccs e a polymita, cf. MARCIAL XIV, 148 e 150.
38. Sobre o toral, cf. VARRÂO. L L, V, 167; Dig., XXXIII, 10, 5.
39. Para o conteúdo de todos esses vocábulos, cf. o D. A. de SaCLIO
C POTTIER.
40. Quando a vestimenta romana sc resumia a um licium e à toga, as
pessoas deitavam-se dc toga (VaRRÃO. ap. Non, 14, p. 540). Mais
tarde, colocavam a toga sobre o leito, segundo o ritual das noites
dc núpcias (ARNÓBIO, Adv. Nat., II, 68).
41. Marcial, Ep., XII, 18, 17 ss.
42. Tais como Catão de Utica (ASCONIUS, p. 30. Or) c os Cornclii Ce-
thcgi cinctuti, cf. HORÁCIO. A. P, 50, e PORTÍRIO. h. L
43. Ver CÍCERO. De Off., I, 35 129. As mulheres “lutadoras"
aprcsentam-sc com essa indumentária (JUVENAL, VI, 70; MARCIAL
VII, 67).
44. Exceto, talvez, os trabalhadores agrícolas, donde o nome campes-
tria, que usualmente levam os suldigaria dos operários (cf. PLÍNIO.
N. H., XII, 59).
45. Quintiliano, XI, 3, 138.
46. A tunica talaris no homem era criticada como sinal dc maneiras efe­
minadas (CÍCERO. Verr., n, IV, 1331; 33-86; In Cat., H. 10, 22).
47. Quintiliano. XI, 3,139.
48. SUETÔNIO. Aug., 82.
49. Aulo Gélio. VI, 12,1 e 3; Nonius, 536,15; Contra, Agostinho.
De doctrina Christi, III, 20.
50. Plínio, o Jovem, Ep., ill, 5,15.
51. Sobre a toga c a maneira dc envolver-se nela, cf. VICTOR ChaPOT.
Propos sur la toge, Mêm. Antiq. de France, 1937, pp. 37-66.
52. LÉON HeüZEY. Histoire du costume antique, p. 232. Reflexões aná­
logas nas páginas finais do livro de Marg. Bieber. Enttricklungs-
geschichte der griechischen Trtcht, Berlim, 1934.
53. Ateneu, V, p. 213 B.
54. Trro Livio, III, 26.

335
55. Ver os imperadores rijos cm suas togas mais ou menos desalinhadas
(Caligula no teatro, Cláudio no tribunal, Nero na aedes Vestae, etc.).
56. TerTULIANO, De pall., 5: ita bominem sarcina vestiat.
57. Cf. Juvenal, 111,147 ss.; Marcial, £/>., 1,103, 5; VII, 33, 1; X, 11,
5 c 96, 11; XII, 14, 4.
5S. Desde que sc levantava da cama Augusto estava amictus para qual­
quer eventualidade (SUETÔNIO, Aug., 73).
59. SUETÔNIO, Claud., 15.
60. Marcial, Ep., XIV, 124.
61. //. A., COMM., 16.
62. Marcial, £/>., X, 51,6.
63. A Hist. Aug., Sev, 1, assinala a reação ocorrida, pela ordem, sob Séti­
mo Severo.
64. Juvenal, III, 171 ss.
65. SUETÔNIO. Vesp., 21.
66. Marcial, Ep., XI, 103, 3-4.
66a. SUETÔNIO. Vesp., 21, e Dom., 16.
67. Ver a palavra sapo no D. A.
68. AUSÔNIO, Ep., 2.
69. SUETÔNIO, Cacs., 45. Cf. a toalete de Talleyrand que se limpa ras­
pando o rosto com uma faca dc prata, mas passa horas nas mãos
de seu cabeleireiro (Rev. dc Paris, 15 de junho de 1938, p. 884).
70. Sobre os inconvenientes das tonstrinae ao ar livre, cf. infra, n. 116,
a citação de Fabius Mela no Dig., IX, 2, 11. Sobre os tonsores do
Subura, cf. MARCIAL. II, 17; das Carenas, HORÁCIO, Ep., I, 7, 45-51.
Há tonsores também junto ao circo, junto ao Templo de Flora: Ad
Florae tempium ad tonsores.
71. SÊNECA, De brev. vitae, XII, 3.
72. Era frequente barbear-sc após o banho e antes da cena. Cf. HORÁ­
CIO. Sat., I, 7, 45.
73. HORÁCIO, Sat., I, 7, 3. Já no século II a.C, cf. Políbio, III, 20, 5.
74. Cf. Plínio, N. H., XXXV, 112, e Propércio, III, 9, 12.
75. Marcial, VII, 64, 1-2; JUVENAL, X, 226. Pela tarifa de Dioclccia-
no, a sessão do barbeiro custará 2 denários.
76. PLUTARCO, De aud., 8.
77. Sobre esses termos, cf. PLAUTO, Capt., II, 2, 16; MARCIAL, Ep., XI,
39.
78. SUETÔNIO, Nero, 51.
79. SUETÔNIO, Aug., 79.
80. Quintiliano. XII, 10, 47, e Marcial, II, 36, 1.
81. Horácio, Serm., I, 1, 94.
82. Hist. Aug., Vita Hadriani, 26, 1.
83. Marcial, Ep., X, 83.
84. Sobre os homens que pintam os cabelos, cf. cm Marcial, III, 43,
1-4, o epigrama disparado contra o Laetinus, que, de cisne, num piscar
de olhos sc transformou em corvo: Turn súbito coruus qui modo cycnus
eras.

336
85. Cícero. In Pis., II.
86. Marcial. Ep., VI, 55.
87. Ibid., II, 12.
88. Ibid., II, 29.
89. Sobre Catão, cf. IIORÁCIO, Od., II, 15, 10.
90. Aulo Gélio, III, 4.
91. Sobre César, além do testemunho das moedas, de que dispomos tam­
bém com relação a Sila, cf. SUETÔNIO. Caes., 46.
92. Plínio. N. H, VII, 211.
93. SUETÔNIO. Cacs., 67.
94. PLUTARCO, Cato min., 53.
95. PLUTARCO, Ant., 48.
96. SUETÔNIO. Aug., 23.
97. DÍON CÁSS, XLVIII, 39, 3. Cf. meu artigo in fiez-ue Histonque,
1929, pp. 228-229.
98. CRINAGORAS no Anth., VI, 161, 3-4.
99. SUETÔNIO, Calig., 10, e Nero, 12; cf. DÍON CÁSS. LXI, 19, 1.
100. Notizie dcgli Scavi, 1900, p. 578.
101. SUETÔNIO, Nero, 12.
102. PETRÔNIO, 29.
103. Cf. o verbete barba no Dictionnaire, dc LECLERCQ e CABROL
104. Juvenal, III, 186-188.
105. Ov., A rs am., I, 517.
106. SÊNECA, Ep., 77.
107. Aulo Gélio, IX, 2, e XII, 8.
108. Marcial, V, 9, 13.
109. Cf. Fabius Mela no Dig., IX, 2, 11.
110. Os escravos também recorrem ao barbeiro (ver a n. 1C9 e o regula­
mento de Vipasca). Também era proibido cortar as unhas com as
próprias mãos (pelo menos, nas nundinas, VaRRÃO, fr. 186s; e PLÍ­
NIO, N. H, XXVIII, 28), e pelas mesmas razões (cf. ValÉRIO MÁ­
XIMO, III, 2, 15). As raras navalhas encontradas em Pompéia se
parecem com a "faca de Janot”; cf. o catálogo da Mostra Augustea,
p. 631.
111. Plínio, N. H, XXXVI, 164.
112. Ibid., 165.
113. PLUTARCO, Ant, I, 2. Entre as insígnias de tonsor que chegaram até
nós nos baixos-relcvos funerários nao há vestígio de "pincel" ou
bacia. Em vão procurei a solução do problema na bibliografia mo­
derna: ao abordar a vida privada dos romanos ou a dos gregos, nos­
sos livros nao abordam essa questão.
114. PETRÔNIO. 94.
115. Marcial. VI, 52.
116. Fabius Mela no Dig., IX, 2,11.
117. SUETÔNIO, Aug., 79.
118. Marcial VII, 83.
119. Ibid., VIII, 52.

337
120. Ibid., XI, 84.
121. Plínio, Aí //., XXIX, 114.
122. Marcial III, 74, 1-4.
123. Ibid., X, 65, 8.
124. Juvenal. XIII, 51, c Schol., b. I.
125. PLÍNIO. Aí IL, XXVI, 164; cí. XXIII, 21.
126. ’ Cf. PLÍNIO. Aí 77., XXIV, 79; XXVIII, 250 c 255; XXX, 132 c 133.
Acrescentar a baba de rã c toda uma parafernália de feiticeira (ibid.,
135).
127. PLÍNIO, Aí H., XXXII, 136: in omni autem psilothro evcllcndi prim
sunt pili.
128. SUETÔNIO. Cacs., 45.
129. Marcial VIII, 47, 1-2.
130. Marcial. Ep., XI, 23, 6.
131. Ibid., X, 36.
132. Plínio, o Jovem. Ep., IX, 36.
133. Ibid., VII, 5.
134. PETRÔNIO, 77.
135. PETRÔNIO, 47.
136. MARCIAL Ep., XI, 104, 7-8: Fascia te tunicac obscuraquepallia cclla-
ni At rnibi nulla satis nuda puclla iacet.
137. Dig., XXXIV, 2, 25.
138. ESTÁCIO, Silvas, I, 2, 15.
139. Juvenal VI, 502-503.
140. MaCRÓBIO, II, 5, 7.
141. Juvenal VI, 486 ss.
142. Marcial II, 66.
143. Sobre o sapo, cf. particularmcnte PLÍNIO, TV. H., XXVIII, 191, e
Marcial, XIV, 26.
144. Dig., XXXIX, 4, 16, 7.
145. Marcial VI, 93, 9-10.
146. Ibid., n, 41, 11-12; VII, 25, 1-2; VIII, 33, 17.
147. Cf. OvÍDIO, Ars am., Ill, 211.
148. Cf. P. IP., VII, c. 196.
149. Juvenal II, 93; Marcial, IX, 37, 6.
150. OvÍDIO, Ars am.. Ill, 209-210.
151. Não se deve polir (dcfricare) os dentes cm publico (OvÍDIO. A rs am.,
Ill, 216): o dcntifricio é um ornamentam, mais que um mundus (cf.
Plínio, N. IL, XXX, 27). Sobre o chifre moído, cf. PLÍNIO, TV. IL,
XXVIII, 178-179. Outras receitas ibid., XXXI, 117; DeoDORO. V,
33, 5; EstrabÂO, III, 164, c Apulejo. Ap., 6.; a urina figura nestas
três últimas passagens; e a última mostra que a maioria dos homens
e mesmo das mulheres se limitavam a enxaguar a boca com água.
Outros, para perfumar o hálito, chupavam pastilhas odoríferas (cf.
HORÁCIO, Sat., I, 2,27), e as inscrições mencionam os pastillarii ou
vendedores dc pastilhas (C. I. L, VI, 9 765 ss).
152. OVÍDIO, Ars am., Ill, 329.

338
153. Marcial, IX, 37.
154. Sobre os periscelides, cf. PETRÔNIO, 67.
155. Sobre o supparum, cf. NONIUS, p. 540, 8.
156. OvÍDIO, Ars am., III, 109.
157. APULF.IO, Met., XI, 3.
158. Sobre o reticulum, cf. PETRÔNIO, 67.
159. Sobre o tutulus, cí. FESTUS, p. 355.
160. ARNÓBIO, Adv. nat., II, 23.
161. Cí. Marcial, III, 82, 10; c XIV, 67 c 68.
162. Sobre as sombrinhas, cí. JUVENAL, IX, 50; MARCIAL. XI, 73, 6 e
XIV, 28. Sombrinha de ícchar, num baixo-rclcvo do Museu de Avez-
zano, cujo molejo foi exposto na sala 62 da Mostra Augustea.

CAPÍTULO //- AS OCUPAÇÕES

1. O que as levava no mínimo até a íonte mais próxima e ao monturo


(cí. Juvenal, VI, 603).
la. Marcial, VI, 88.
2. Juvenal, I, 105 ss.
3. Plínio, o Jovem, m, 12, 2.
4. Marcial, I, 49.
5. MARCIAL, IX, 49; X, 11, 73, 96 e passim. Sobre os presentes das sa­
turnais, cf. ibid., V, 19 c 84; VII, 53 e supra, pp. 52 e 90.
6. Juvenal, I, 95 ss.
7. Marcial, VI, 88.
8. Juvenal, I, 117-126.
9. ROSTOVTSEV. Social and economic history of the Roman Empire, Ox­
ford, 1926, pp. 36 e 155.
10. Ci. supra, p. 87.
11. Cf. J. CARCOPINO, La loi de Micron et les Romains, Paris, 1914-1919,
pp. 188 ss.
12. PETRÔNIO. 119.
13. Cf. J. CARCOPINO, Ostie, 1929, p. 18, e a adesão que me deu Wick­
ert em sua edição do ultimo Suppiementum Ostiense, C1.L, XIV’,
p. 844.
14. Resumo aqui o que escrevi em Ostie, pp. 15-18. Sobre o altar das
termas, ver PaRIBENI, Guida del museo delle terme2, p. 264.
15. Cf. DESSAU, Gtschichte des rom. Kaiserzeit, Berlim, 1930, II, p. 411.
16. Cf. PlaTNER-AsubY. Top. diction., pp. 260-263.
17. Sobre o mercado de Trajano, cf. supra, pp. 20-21. É evidente que
sua criaç3o desfechou um golpe mortal em todos os mercados espe­
ciais, f. olitorium, f. cuppedinis, f. piscatorum, dos quais nos falam
quase exclusivamente os textos relativos ao período republicano.
18. Para detalhes, reportar-se a WALTZING, Étude historique sur les cor­
porations professionnelles chez les Romains, 4 vols., xn-8?, Louvain,
1900.

339
19. Cf. supra, p. 69, c MARCIAL. IV, 65; c XII, 57.
20. Cf. supra, pp. 43-44.
21. Cf. supra, pp. 114-115.
22. C /. L, VI, 9 525.
23. 7M.» 9 545.
24. Ibid., 33 892.
25. Ibid., 9 758-59.
26. Ibid., 9 739-9 757.
27. Ibid., 9 614-9 617 (as ires últimas, libertas, talvez sejam domésticas).
28. Ibid., 9 562-9 613. Na casa imperial há duas medicas (6 851, 7 581)
contra quinze mediei (8 895-8 910).
29. Ibid., 9 875, 9 984, 33 907.
30. Ibid., 9 493, 9 941 (contra seis tonsores, 9 937-9 942).
31. Ibid., 9 726-9 736 (onze no total).
32. Ibid., 9 720-9 724 (cinco no total).
33. Ibid., 9 901.
34. Ibid., 9 801.
35. Ibid., 9 683.
36. Ibid., 9 880.
37. Ibid., 9 961-9 979 (vcstifici ou vesticarii).
38. Ibid., 9 497-9 498.
39. Ibid., 9 891-9 892.
40. Ver o livro, já antigo porém sempre admirável, dc PAUL Gide, Eím-
de sur la condition privéc de la femme, Paris, 1885, p. 152.
41. SUETÔNIO. Claud., 18-19.
42. Gaio. I, 34.
43. O termo pistrix nao figura nem nos indices de Dessau. A legislação
sobre o adultério equiparava as vendedoras às prostitutas (cf. PAU-
LO. Sent., II, 26, 11: quae mercibus vel tabemis exerccndis procurant
adulterium fieri non placuit).
44. S. Reinach, R. R., III, p. 375.
45. Helbig. Wandmalereien, 1 502.
46. S. Reinach, R. R., III, 405.
47. Helbig, Wandm., 1 496.
48. S. Rfjnach. III, p. 44.
49. Helbig, 1 497, 1 498, 1 503.
49a. Marcial. X, 80; IX, 59; VIII, 6.
50. Helbig, 1 501, e S. Reinach, III, 403.
51. Helbig, Führer, II, 773.
52. Helbig, Wandm., 1 500.
53. Helbig, Wandm., 1 493, 1 495.
53a. Em Apuleio, Metamorfoses, Lucius faz suas compras (Met., 1,24-25).
54. Cf. supra, p. 178.
55. PETRÔNIO, 79.
56. Marcial, VIU, 67.
56a. Marcial, IX, 59, 21.

340
57. Cf. supra, p. 187. Era tambcm a hora da troca da guarda. MARCIAL.
X, 48, 12, 57.
58. MARCIAL, IV, 8, 3-4, o que corrige ibid., XII, 978. Sobre os minei­
ros dc Vipasca, deve-se tirar a mesma conclusão de C /. L, II, 5 181,
I, 19 ss. (infra, p. 343, n. 59).
59. Cf. supra, p. 179.
60. Plínio, o Jovem, Ep., III, 1, 3.
61. Marcial, VIII, 67, 3.
62. Doze Tábuas, I, 6, segundo AULO Gf.LlO. XVII, 2. 10.
63. Ver a nota 64, onde cxcepcionalmcnte sào mencionadas seu clep­
sidras.
64. Como sc deduz, sem contestação possível, de PLÍNIO. O JOVEM. Ep.,
II, 11, 14: menção num processo realizado, cm janeiro, de dezesseis
clepsidras cquinociais, donde seu qualificativo spatiostssimas, para
uma argumentação de pelo menos duzentos e cinquenta minutos
e talvez trezentos minutos (cinco horas).
65. Marcial. VI, 35; sobre a fisionomia dos processos, cf. HUMBERT.
Les plaidoyers de Cicéron, Paris, 1925, pp. 25 ss.
66. SUETÔNIO, Aug., 29.
67. SUETÔNIO, Vcsp., 10.
68. Ver o texto de MOMMSEN. Ober die Lage des praetor. Tribunals, in
Gesantm. Schiffren, III, pp. 319-326.
69. Ver o artigo de SESTON in Melanges de Rome, 1927, pp. 154-183.
70. VlGNEAUX, Essai sur Thistoire de la praefcctura Urbis, Paris, 1986,
p. 125.
71. Cf. Hist. Aug., Ant Phil., 10.
72. Sobre os centúnviros, ver a tese de Olater-Marttn, Paris, 1904.
73. Cf. Huelsen-CarCOPINO. Le forum romain, pp. 58-66.
74. Plínio, o Jovem, Ep., VI, 33, 3. Cf. ibid., 1,18,3; IV, 24,1; n. 14,
c V, 9.
75. Quintiliano. XI, 5, 6.
76. Plínio, o Jovem, Ep., II, 14, passim.
77. Cf. HUELSEN-CARCOPINO, Le forum romain, p. 62.
78. Cf., Plínio, o Jovem. Ep., VI, 33. 1 e 7-8.
79. Plínio, o Jovem. Ep., n, 14, 1 ss., cap. XIV.
80. Plínio, o Jovem. Ep., VI, 31, passim.
81. Plínio, o Jovem, Ep., VI, 31, 13.
82. GRENFELL e Hunt, Pap. Ox., I, 33. Esse papiro c o mais recente
dos “Atos dos mártires alexandrinos”. Estudados por VON PRE-
MERSTEIN (Philologus, Suplemento b., XVI, 1923) e por NePPI-
MODONA (Aegyptus, 1929 e 1932), os documentos são atas “artin-
ciais” nas quais, como num relato hagiográfico, a ficção se mistura
a uma realidade tanto menos contestável na medida em que brotará
de inscrições de Antioquia ainda inéditas, cuja publicação foi con­
fiada por Seyrig a Pierre Roussel (abril de 1939).
83. SUETÔNIO. Aug., 35.
84. LaNCIANL Rwirw and excavations, p. 268.

341
85. WILLEMS, Scnat Romain, 1, p. 406, n. 1 c 5 (trezentos c oitenta c
três presentes cm 47 d.C.) c II, pp. 168 ss. SÊNECA, Dc providenlia,
V, 4, opôc aos preguiçosos da rua o exemplo do Senado, que per
totum diem saepe consulitur.
86. Plínio, o Jovem. £/>., II, 11.
87. Plínio, o Jovem, Ep., III, 9.
88. Ver meu César, p. 975 e n. 290.
89. Ver a dissertação clássica de CAGNAT sobre Les bibliothèqucs dans
i’Empirc Rornain: acrescentar à sua nomenclatura a biblioteca dc
Fréjus, conforme a descoberta, no ano passado, pelo doutor Don-
nadieu, de um fragmento epigráfico que a menciona, c talvez, sc
não estou enganado em minha identificação, a biblioteca dc Óstia
descrita outrora por Guattani e reencontrada por Calza a sudoeste
do Foro.
90. Horácio. Ep., I, 20, 1-2.
91. SÊNECA, De ben., VII, 6, 1.
92. Marcial, IV, 72, c XIII, 3.
93. Ibid., 1,1,2 c 117.
94. Marcial, I, 117, 13 ss.; XIII, 3, 3.
95. A esse respeito, considero decisiva a alusão de JUVENAL, VII, 86 ss,
às decepções dc Estácio, que conseguiu vender sua Agave ao mími­
co Paris, mas não sua Tebaida a um editor.
96. Gaio, II, 73 c 77.
97. Marcial, XI, 3. Cf. ibid., V, 18, XI, 108; XIV, 219.
98. SUETÔNIO. Tib., 61.
99. SUETÔNIO, Dom., 10: librariis ... crucifixis.
100. Cf. SUETÔNIO, Caes., 56; Calig., 34, e meu artigo no Journal des Sa­
vants, 1936, p. 115.
101. SêN., o ill., Controv., IV, pr.
102. SUETÔNIO, Aug., 89.
103. SUETÔNIO, CL, 41.
104. Plínio, o Jovem, Ep., I, 13, 3.
105. SUETÔNIO, Dom., 2.
106. AUREL VICTOR., De Cacs., 14, 3.
107. Não me atrevo a falar do auditorium Maecenatis, de finalidade con­
trovertida.
108. Plínio, o Jovem, Ep., V, 17, e VIII, 12.
109. Cf. Pérsio, I, 19; Plínio, o Jovem, V, 17; e IX, 34.
110. Plínio, o Jovem, Ep., IV, 19, 3.
111. Juvenal, VIJ, 45-47, e Plínio, o Jovem, Ep., m, 18, 4.
112. Plínio, o Jovem, V, 17.
113. Juvenal, VII, 39 ss.
114. Plínio, o Jovem, III, 18, 4.
115. PETRÔNIO, 90; HORÁCIO, SuL, IV, 75.
116. Plínio, o Jovem. VIII, 21, 2.
116a. PETRÔNIO, 90; PLÍNIO, O JOVEM, I, 13, 3; VIII, 21.
117. Plínio, o Jovem, VI, 17, 3.

342
118. Plínio, o Jovem. VIII, 21, 4; III, 18, 4.
119. Plínio, o Jovem. 1,13.
120. Ibid., II, 18, 2.
121. Ibid., VI, 15.
122. Ibid., VI, 17.
123. Ibid., VII, 17.
124. Ibid., Ill, 18, 4 e V, 5, 2.
125. Ibid., Ill, 10, e IV, 7.
126. Ibid., IX, 27.
127. Ibid., VIII, 21.
128. Ibid., V, 17.
129. Ibid., VI, 15.
130. Juvenal, VII, 83-86.
131. Juvenal, I, 52-54.
132. Plínio, o Jovem. Ep., VII, 17.
133. Plínio, o Jovem, Ep.„ VI, 21.
134. Ibid., N, 3, c VII, 17.
135. Horácio. Sat., I, 4, 76 ss.
136. Sobre isso, ver ALBERTINI. La composition dans... Sénèque, Paris,
1932, pp. 315 ss.

CAPÍTULO III - OS ESPETÁCULOS

' 1. Juvenal X, 75 ss.


2. Fronton. Prindp. hist., V, 11.
3. Para essas enumerações, basta reportar-se ao verbete calendarium
do D. A., aos manuais de MARQUARDT e Wissowa, bem como às
notícias correspondentes a cada festa nas enciclopédias de P.AULY-
W1SSOWA e de ROSCHER. Sobre o sentido controvertido das Xan-
dinae, cf. P. W., XVII, c. 1470.
4. A inscrição de Tebessa (GSELL, Inscr. latino de TAlgérie, n? 3 C41)
era conhecida desde muito tempo, porém só foi compreendida de­
pois que Snyder teve a idéia de cotejá-la com o papiro de Dura ain­
da inédito, que ele deverá publicar com outros colaboradores sob
a direção de Rostovtsev.
4a. Resumo aqui a bela análise de JEAN GaGÉ em suas Recherdxs sur
lo jeux séculaires, Paris, 1934.
5. É o aspecto que PlGANIOL descreveu em suas Rechercha sur lo jaa
romains, Paris-Estrasburgo, 1923.
6. Sobre o sentido dessa passagem de FESTUS. p. 238, ver meu livro
Vngi/e et lo origino d'Ostie, Paris, 1919, pp. 119-120.
7. Sobre o papel do Estado nos munera, cf. meu César, p. 515.
8. FESTUS, p. 135: munus donum quod officii causa datur; Tertuua-
NO. De spect, 12: offidum mortuorum; AUSÔNIO, De fer., 35: fold’
gerurn placant sanguine caeligenam.
9. SUETÔNIO. A ug., 40; Claud., 6.

343
10. QUINTILIANO. VI, 3, 63, conta que Augusto expulsou do circo um
cavaleiro romano que bebera demais, dizendo-lhe: "Sc quero me
recuperar, vou para casa". “Sim”, replicou o cavaleiro, com certo
espírito, "mas sc te ausentas, César, tens certeza dc que acharás o
caminho." Sobre a divisão dos espectadores por categorias sociais,
cf. DENIS VAN BERCHEM, Op. cit., pp. 61-62, que com razão admite
peregrinos e escravos nos espetáculos, porém nos piores lugares.
11. OvíDIO. Ars am., Ill, 2, 43 ss.
12. Sobre essas superstições, cí. os textos tão curiosos reunidos por P.
Wuillcumicr em seu artigo nos Melanges de lEcolc de Rome, 1927,
pp. 184-209, sobre Le cirque et 1'astrologie, c notadamente DÍON
CÁSSIO, Kar., III, 51; ISIDORO DE SEVILHA. XVIII, 36; Anthol. lat.,
I, 197.
13. Cf. sobretudo PLÍNIO, O JOVEM, Ep., VI, 5: propitium Cacsarem ut
in ludicro precabantur; TÁCITO, Ann., XVI, 4: plebs urbana perso-
nabat certi, modis plerumque plausuque composite. Sobre os 'Anda­
ria”, cf. Hist. Aug., A nr., 43.
13a. Plínio, o Jovem, Pan., 51.
14. Plínio, N. H., XXXIV, 62.
15. PLUTARCO. Galba, 17. Otão assim seria submetido a um plebisci­
to (PLUTARCO, Otbo, 3).
16. Assim Tito se livrou dos inimigos de Vespasiano cm 69 (SUETÔ­
NIO. Tíl, 6). Sobre as rcpugnâncias dc Tibério, cf. SUETÔNIO, Tib.,
47.
17. Díon Cássio, LIV, 17.
18. SUETÔNIO, Aug., 43.
19. Marcial. X, 41.
20. Números fornecidos pelos Fasti Antiatcs para 51 d.C.
21. Díon Cássio, LXVI, io.
22. Tito Lívio, VIII, 20, 21; c Ênio, depois Cícero, De div., I, 108.
23. Trro Lívio, XXXIX, 7, 8.
24. Plínio, N H„ VIII, 20-21.
25. SUETÔNIO, Caes., 39.
26. PlÍNIO, N. H., XXXVI, 102, diz duzentos c cinqüenta mil. Mas sem
dúvida c a cifra dc sua cpoca, após as ampliações neronianas. Sob
Augusto, Dioniso de Halicarnasso, III,-68, conta apenas cento c cin­
qüenta mil lugares.
27. Plínio. N. H., XXXVI, 71.
28. Cf. os R. G., IV, 4, e o comentário de Jean Gagé, com a passagem
de Cassiodoro, Var., III, 51, 4.
29. SUETÔNIO, Aug., 43.
30. SUETÔNIO, Claud., 21.
31. Tertuuano, Dc spect., 8; cf. DÍON CÁSSIO, LIV, 17. e CALP., Ecl.,
VII, 49-53.
32. SUETÔNIO. Dom., 5; c PLÍNIO, O JOVEM, Pan., 51, 5; cf. edição
Durry, h. I., c introd., p. 13; cf. C I. L, VI, 955. LUGLI, Monuments

344
antichi di Roma, p. 391, chegou ao mesmo resultado por outro
caminho.
33. A descrição que se segue c emprestada do verbete notável do Top.
diet., dc Platner-AsiíBY.
34. Para detalhes, remeto ao bom verbete Circus de SAGLIO no D. A.,
baseado principalmente no admirável capítulo de Friedlander.
35. SUETÔNIO. Ct/., 18.
36. SUETÔNIO. Dom., 4.
37. Juvenal, X, 36 ss.
38. Marcial. VIII, 33.
39. Conclusão verossímil das sondagens realizadas em 1886 por G. Ché-
dannc; sobre isso, ver o capítulo I do livro de De Navenne. Le
Palais Farnese et les Farnèse, c o artigo de Le BLAST in Melanges de
Rome, 1886.
40. OVÍDIO, A. A., I, 135 ss.
41. C I. L., XV, 6 250.
42. Sobre o mosaico dos banhos dc Pompeianus, hoje destruído, cf. Rec.
de Constantine, 1880, III, c D. A., figura 1 535.
43. Ver a inscrição de DlOCLES. C I. L, VI, 10 048; DESSAU. 5 287.
44. WlLLMANNS, 2 600, 2.
45. Ver a tese de A. AUDOLLENT sobre as Tabellae defixionum.
46. Cf. Juvenal, vn, 113-114; e Marcial, IV, 67; e X, 74 (cf. nota 49).
47. Ver o Anhang dc FRIEDLANDER e as inscrições reunidas por DES­
SAU, II, 322-345.
48. Ver, entre outros, SUETÔNIO, Nero, 16.
49. Marcial, V, 25.
50. Marcial. XI, 1.
50a. Marcial, X, 50.
51. Cf. C. /. L, VI, 33 950, 10 050, 10 049.
52. OvíDIO. A. A., I, 147.
53. Marcial, XI, 1, 3.
54. Juvenal, XI, 199 ss.
55. Ver no D. A. o verbete notável de P. Fabia. Missilia. Sobre os opu-
ia da época estudada, cf. ESTÁao. Silvas, I, 6, e SUETÔNIO. Dom., 4.
56. Marco Aurélio, I, 5. Cf. um desdém análogo em Plínio, o Jo­
vem. Ep., IX, 6.
57. TOUTAIN, no D. A., Ill, p. 1 372, contou dezessete dias no circo
contra cinqüenta e cinco no teatro.
58. Ver as judiciosas observações de O. Navarre no D. A., V, p. 203.
59. Plínio, o Jovem. Ep., IX, 6, 3.
60. Juvenal. IX, 142-144.
61. Texto publicado por Calza no Bollettino dell'Associazione Intema-
zionaledegli Studi Mediterranei, 1932, fase. 4, pp. 26-27, comentado
por mim nos C R. Ac. Inscr. do mesmo ano, pp. 363-364.
62. Para os detalhes e as justificações, reportar-se aos verbetes do Top.
diction., de PLATNER-AshbY, a LUGLI. I monumenti antiebi di Ro­
ma, I, pp. 346 e 391, que concorda com Ashby ao considerar que

345
cada um dos loca enumerados pelos Regionários tinha apenas um
pc quadrado, enquanto o espaço mínimo exigido por um especta­
dor sentado c de 1,5 pé quadrado (44 x 44 centímetros).
62a. Juvenal, VI, 67.
63. Sobre a origem helenística, provavelmente alexandrina, da panto­
mima, cf. LOUIS ROBERT, Pantomime» im gricchischen Orient, no
Hermes dc 1930, pp. 109-110.
64. SUETÔNIO. Caes., 84.
65. Cícero. Tusc., Ill, 19, 44.
66. TAerro. An., XIII, 15.
67. DiOMEDES. p. 491 Keil.
68. CÍCERO. De or., I, 59, 251; SUETÔNIO, Nero, 20.
69. SUETÔNIO, TÁCITO, An., I, 77; cf. SUETÔNIO, Tib., 37.
70. Tácito, Dial, de or., 39. Cf. An., XIII, 25; e XIV, 21.
71. SÊNECA, Controv., Ill, pr.
72. MaCRÓBIO, Sat., II, 7, 16.
73. VALÉR1O MÁXLMO, II, 4, 4; TlTO LÍVIO, VII, 2.
74. QUTNTILIANO. XI, 3, 87.
75. Para essa indicação c as seguintes, reportar-$c ao De saltatione dc
Luciano (composto entre 162 c 165; cf. LOUIS ROBERT, Pantomb
men..., p. 120).
76. Juvenal, VI, 86-87.
77. MaCRÓBIO, loc. cit.
78. JOS., A.]., XIX, I, 13.
79. SUETÔNIO, Nero, 46.
80. Juvenal. VI, 63-66.
81. DÍON CÁSSIO, LXV1II, 10.
82. Plínio, o Jovem, Pan., 54.
83. ROBERTO Paribeni, Il teatro durante I’Impero Romano, in Dioni-
so, 1938, p. 210.
84. ATENEU, I, p. 20; cf. SÊNECA, Controv., Ill, pr. Sobre a mímica em
geral, cf. os verbetes de G. DALMEYDA e G. BOISSIER no D. A., c
o do P. W., XV, c. 1743-1760.
85. CÍCERO, Ad. fam., IX, 26; Ad attic., IV, 15; Pro Plancio, 12.
86. EVANTHIUS, citado por G. BOISSIER, D. A., Ill, 1093.
87. A nth. Lat., 693 Riese.
88. Juvenal, I, 35 ss.; VI, 41 ss.
89. ValÉRIO MÁXIMO, II, 10, 8. Um dos baixos-relevos do teatro de
Sabratha (cf. Guidi, Africa italiana, III, 1930, pp. 1 ss.) representa
uma mímica cujo título evidentemente era o julgamento de Paris.
A direita, Paris é convencido por Hermes de que deve sc decidir
entre as três deusas. Estas figuram ao meio, duas delas vestidas e
Vênus nua, com o véu flutuando a suas costas. À direita, a cena fi­
nal, com as três deusas nudaiae.
90. MARCIAL, III, 86. Excepcionalmente algumas mímicas do Império
deviam conservar a forma das atelanas. É provável que se reporte
a uma delas um dos baixos-rclcvos do teatro de Sabratha represen­

346
tando trcs personagens, entre as quais o calvo stupidus, e que seja
preciso especificar a aQxaioXóyos, cujo papel Louis Robert eluci­
dou (R. E. G., 1936, pp. 235 ss.).
91. Juvenal, VIII, 185 ss.; Marcial, spect., 7.
92. CÍCERO, In Vatin., XV, 37.
93. CÍCERO, Ad. fam., II, 3, 1.
94. Plínio. N. H, XXXIII, 16; PLUTARCO. Can, 5; SUETÔNIO. Can.,
10.
95. Lex falia num. c Lex. col. falia Genetiva, caps. LXX e LXXI; e TÁ­
CITO. An., IV, 62-63.
96. DÍON CÁSSIO, LIV, 2, e SUETÔNIO. Tib., 34.
97. R. G., IV, 31.
98. Os últimos munera extraordinários de magistrados assinalados por
nossas fontes foram aqueles oferecidos em 70 pelos cônsules para
o natalis de Vitélio (TÁCITO, Hist., II, 95).
99. PLÍNIO, O Velho, N. H., XXXVI, 26. Sobre os Curion, pai e fi­
lho, reportar-se a meu César, p. 690. O anfiteatro de Pompéia (que
cm minha Histoire romaine, I, p. 474, n. 71, remontei à época de
Sila) passa por ser o mais antigo, porém a meu ver seria o caso de
submeter essa cronologia a novo exame.
100. DÍON CÁSSIO, XLIII, 23.
101. OvÍDIO. Met., XI, 25, ainda se serve da perífrase: struetum utrim-
que tbeatrum.
102. Sobre esses monumentos, ver os verbetes do dicionário de Platner-
Ashby e do D. A., e sobre o Coliseu, acrescentar as páginas excelen­
tes de LUGLI, I monumen ti antichi di Roma, I, pp. 186-200. Sobre
o amphitheatrum castrense, adotei a opinião de Huelsen, hoje criti­
cada (cf. LUGLI, op. cit. III, p. 490).
103. Para detalhes, reportar-se ao livro de FRIEDLANDER e também aos
excelentes verbetes de G. LAFAYE no D. A., sobretudo gladiator e
venatio. A melhor ilustração dos munera imperiais é a borda do mais
belo mosaico de Zliten, atualmente exposto no Castelo de Tripoli
(cf. AURIGEMMA, I mosaici di Zliten, Roma, Milão, 1926); nota-se
em especial a exposição dos garamantes às feras e à orquestra, cujo
órgão é manejado por uma mulher.
104. O ponto cm que me afasto de meus antecessores foi estabelecido
sobretudo pela inscrição de Pompéia, C 1. L, X, 7 295: venatio et
vela erunt. A venatio é o centro do espetáculo.
105. SUETÔNIO, Titus, 7.
106. C. I. L, XIV, 4 546.
107. Cf. H. A., Prob., XIX, 5-8. Quanto aos prêmios que as feras do anfi­
teatro podiam esperar no final do século II, informa-nos o fragmento
latino de Diocleciano, recém-descoberto nos Abruzzi, proveniente
sem dúvida de Pescara e que deverá ser em breve editado pela $e-
nhorita Guarducci. Nesse texto figura a quantia de 100 000 dená-
rios, que muitas vezes devia ser ultrapassada antes de surgir a lei
do máximo.

347
ICS. PLUTARCO. Now poss. suav., XVII, 6; cf. TERTUUANO. Apol., 42.
109. SUETÔNIO, Claud., 21.
110. C /. L, V, 5 933.
110a. Juvenal. Ill, 36.
111. JUVENAL,VI, 78-113; MARCIAL, V, 24; DESSAU, Zwcr. &/., 5 142.
112. Marcial, Spcct., 20.
113. C /. L, X, 7 297.
114. CÍCERO. Tusa, II, 20, 46; Plínio, O Jovem. Pan., 33. Notar, porem,
as reservas de Cíc. Ad. fam., VII, 1, 3.
115. Ainda constatada em 249 d.C. por C I. L, X, 6 012.
116. Sêneca. Ep. Luc., 7.
117. ESTRABÂO. VI, 2, 6. Teria havido um precedente com Satyros c os
outros escravos sicilianos supliciados nos munus de 101 a.C. (Diod.,
XXXVI, 10-2).
118. Cf. C. R., Ac. Inscr., 1913, p. 444; CÍCERO. Pro Scstio, 64; OvíDIO,
Afet, XI, 26; SÊNECA. Ep. Lua 70, e Dc benef., II, 19; MARCIAL, XIII,
95.
119. SUETÔNIO, Claud, 34.
120. Sobre os Actiaca, cf. artigo de JEAN GaGÉ in Melanges dc PÉcole de
Rome, 1935.
121. Cf. Dig., II, 3-4.
122. Para esses edifícios, rcportar-sc ao dicionário de PLATNER-ASIÍBY.
122a. Plínio, o Jovem, Ep., IV, 22.
123. Cf. LOUIS Robert, Revue de Philologie, 1930, p. 37.
124. SÊNECA, De tranqu. an., II, 13.
125. Fato que colocaram em evidência as recentes polêmicas em torno
do anfiteatro de Lyon e as escavações de Philippes (cf. COLLART,
no B. Q H, 1928, p. 97).
126. Sobre essas transferências comuns sob Domiciano, cf. supra, p. 267,
e Marcial. Spect., 5, 7, 21 e 25.
127. H. A., Sev. Alex., 44, e cf. LUGLI, op. cit., I, 346.

CAPÍTULO IV - O PASSEIO, O BANHO E O JANTAR

1. Marcial, VII, 61.


2. Ibid., X, 5.
3. Juvenal. XIV, 7-34.
4. Marcial, I, 3, 1-10; cf. Juvenal, III, 60-72.
5. Marcial, I, 41, 3-11.
6. Algumas vezes a cavalo, cf. MARCIAL, IX, 22, 14. Sobre as mulas,
cf. ibid, Vni, 61; e XI, 79.
7. Sobre os lectical e as sellae, cf. Juvenal, III, 240-242; e VI, 350-351,
e Marcial, IX, 2.
8. PETRÔNIO. Sat., 28.
9. Marcial, VI, 80, 1-10.
10. Sêneca, De provid, V, 4.

348
11. Sobre esses pórticos, cí. o dicionário de PlaTNER-ASHBY; sobre o
pórtico de Otávia, acrescentar ainda LUGU, op. cit., 1, 334 ss.
12. Marcial, II, 13, 3-1; cí. III, 19.
13. PLÍNIO. N. H., XXXIV, 31; XXXV, 114, 139, etc.
14. Marcial, III, 19.
15. Cí. supra, 215. O local das Saepta c discutido, d. IJJGU. op. ol, DI, p. 99.
16. Marcial, IX, 35.
17. Juvenal. I, 88-92.
18. Marcial, XI, 6.
19. Cícero, Phil., II, 23; Horácio. Od., 3, 24.
20. Dig., XI, 5, 2 e 3.
21. Ver essas palavras no D. A. (verb, de LafaYE).
22. SUETÔNIO, Aug., 71.
23. Ver as palavras par impar e capita aut navia no D. A.
24. Ver o verbete dc LafaYE sobre a micatio no D. A., Ill, 1 890.
25. C. /. L, VI, 1, 1 770.
26. Ver o verbete latrunculi de LAFAYE no D. A.
27. Marcial. VII, 72, 7; c 92, 7.
28. C /. L, XIII, 444.
29. Ver o verbete nuces de LAFAYE no D. A.
30. Ver supra, n. 19.
31. Dig., XI, 5, 1.
32. Dig., XXXII, 2, 43, 9. Cf. VarrâO, Dc re., I, 2, 23.
33. Sob um baixo-relevo grosseiro, reproduzido no D. A., s. v? Caupo-
na, II, 974, figura 1 258, lê-se o seguinte diálogo: " Estala jadeira, a
conta”. ‘‘Tomaste um sextário de vinho. Pelo pão, 1 asse; pelo pul-
mentarium (a polenta), 2 asses.” “Muito bem.” “Pela moça, 8 as­
ses.” “Isso também, claro.” "Puellam asses veto. Et hoc convenii”.
34. Notizie degli Scavi, 1911, pp. 431 e 457. As pequenas “asnas” do
estabelecimento — o asno era famoso entre os antigos por seu ape­
tite sexual — figuram em textos que a meu ver nào foram bem com­
preendidos. Cf. MALLARDO in Rivista di Studi Pomp., 1934, pp.
121-125, e 1935, pp. 224-228.
35. Tanto é um elemento da cena imperial que, quando foi a óstia, Nero
teve o cuidado de distribuir pela estrada algumas dessas tabernas hos­
pitaleiras (SUETÔNIO, Nero, 27).
36. PÉRSIO. I, 133, e SCHOL, h. I.
37. SÊNECA, De provid., V, 4. O texto equipara o illo tempore ao dia
inteiro: totum diem.
38. Ver no D. A. os verbetes gymnasium, gymnastica ars, balneum e
thermae.
39. VarrâO, L L, IX, 68. Sobre esse histórico, reportar-se a BlCmner.
Rom. Priwtaltertumer, p. 421, n. 8.
41. Segundo os Regionários: 858 no Curiosum, 927 na versão de Zaca­
rias, 956 na Notitia.
42. SÊNECA. Ep. Luc., 86, 9; MARCIAL, II, 52; UI, 30, 4; \Tü, 42, 1, 3;
cf. Horácio. Sat., I, 3, 137, e Juvenal, VI, 447.

349
43. Juvenal. II, 152. As mulheres pagavam mais que os homens: Ju«
VENAL. VI, 447. Em Vipasca a tarifa era dc meio asse para os ho­
mens, 1 asse para as mulheres (C. /. L, II, 5 181, 19 ss.).
44. SÊNECA. Ep. Luc., 86, 10.
45. Plínio. Ar. H, 36, 121; Díon Cássio, XLIV, 43, 4.
46. DÍON CÁSSIO. LIV, 29,4. Ver as reservas feitas a esse texto segun­
do BlÜMNER. p. 422, n. 9, e o depoimento citado por ele, p. 422,
n. 7, de FRONTON, p. 247, Naber: XourQa rá /xèp ôrjpóia -xctoiv
xai -KQoixa áveirat, x. r. X. (a gorjeta no vestiário).
47. Ver os verbetes correspondentes do Top. diet., de PlatnER-Ashby.
48. Informação fornecida pelo fragmento dos Fastos de Óstia, publica­
do cm 1932.
49. Sobre esse ponto, ver LUGLI, Monuments, I, 419.
50. Havia balncac em Pompéia que permaneciam abertas à noite, sen­
do providas dc lâmpadas; em Vipasca (cf. infra, p. 219, n. 59) e em
Roma (JUVENAL, VI, 419) também havia; contudo, a abertura du­
rante a noite constitui exceção nas termas romanas (H. A., Sev. Alex.,
24, c Tac., 10.).
51. Juvenal, XI, 205.
52. Marcial, X, 48, 3-4. Cf. Vitrúvio. V, 11, 1.
53. H. A., Hadr., 22.
54. H. A., Sev. Alex., 25.
55. Marcial, III, 36, 6.
56. Marcial, XIV, 143 e 163.
57. Plínio, N. H., XXXIII, 153; Quintiliano, X, 9,14; Marcial, III,
51 e 72; VII, 35; XI, 47; JUVENAL, VI, 421.
58. H. A., Hadr., 18; cf. DÍON CÁSSIO. LXIX, 8, C I. L, VI, 579. Con­
frontar a informação do H. A. com a do cap. XXII da Vita que a
completa (cf. supra, n. 53).
59. C. I. L., II, 5, 181; I, 19 ss: omnibus diebus calefacere et praestare de-
beto a prima luce in horamseptimam diet mulieribus et ab bora octa-
va in horam, secundam noctis viris.
60. PETRÔNIO, 27.
61. LAFAYE, s. v? Pila no D. A., IV, p. 477.
62. Ibid., p. 476.
63. Marcial, XIV, 47.
64. Ver corycus no D. A.
65. Marcial, VII, 32.
66. Ver trochus no D. A.
f)7. Juvenal, III, 421, e Marcial, VII, 67, e XIV, 49.
68. Marcial, VII, 67, 4-5.
69. MARCIAL, IV, 18; sobre a endromis, cf. E. POTTIER no D. A., II, 616.
70. Cf. LUGLI. op. cit., I, 425.
71. Juvenal, VI, 421.
72. Plínio, o Velho, XXXVIII, 55.
73. PETRÔNIO. 28.
74. Marcial, VI, 42.

350
75. H. A., Hadr., 16.
76. PETRÔNIO. 28.
77. Sobre as bibliotecas das termas de Caracala, cf. LUGU op. at, I, 420.
Mesmas bibliotecas nas termas dc Dioclcciano, cf. //. A^ Prob, 2.
78. Cf. LUGLI. op. cit., I, 417-418.
79. Cf. LUGLI. op. cit., I, 207.
80. Dig., HI, 2, 4, 2.
81. Juvenal. 1,143; cí. Horácio, Ep., 1,6,61; Perseu. 1,3,93; Sêne­
ca. Ep., 15, 3, etc.
82. Cf. Saglio. no D. A., I, 663.
83. Cf. Octave HOMBERG, L’eau romaine, Paris, 1935.
84. JUVENAL. X, 356: Orandum at ut sit mens sana in corpore sano.
85. Cf. SUETÔNIO, Vil., 13, e DÍON CÁSSIO, LXV, 4, 3.
85a. Festus, 54.
86. Plínio, o Jovem, Ep., III, 5, 10.
87. GalianO, VI, 332, Kuhn; cf. PAULO DE EGINA, I, 23.
88. Marcial, XI, 103, 3-4
89. Cf. nota 87.
90. Sobre a hora do prandium, ver SUETÔNIO, Claud., 34. No campo
a hora estava subordinada às necessidades das tarefas (TlTO LfviO.
XXVIII, 15, 7).
91. Marcial, xm, 31.
92. SÊNECA. Ep., 83, 6.
93. Marcial, Xm, 13.
94. Plínio, o Jovem. Ep., III, 5, 10.
95. Sêneca. Ep., 83, 6.
96. Cf. Revue de Paris, 1? de junho de 1938 ("Souvenirs de Wessenberg
sur Talleyrand"), 885 ss.
97. SUETÔNIO. Nero, 27.
98. Plínio, o Jovem, Ep., III, 1, 8-9.
99. Marcial, XI, 52; cf. X, 48.
100. Plínio, o Jovem, Ep., m, 5, 13.
101. SUETÔNIO, Nero, 27.
102. PETRÔNIO, 70.
103. Juvenal, vm, 9-12.
104. Vitrúvio. VI, 5.
105. Valério Máxlmo. n, 1, 2.
106. SUETÔNIO, Claud., 22, fala desse costume como de algo antiquado,
embora se encontre a mesma indicação nas Acta Arvalium, de 27
de maio de 218 d.C.
107. COLUMELO, XI, 1, 19.
108. Ver na coletânea de Esperandieu os baixos-relevos de Colônia e Ncu-
magen, perto de Trier.
109. Marcial, V, 70.
110. Pintura da casa do termópolo, em Pompéia.
111. Marcial, V, 79.
112. PLUTARCO. Cato min., 56.

351
113. JUVENAL, e VI, 13, 14, 17.
114. Para todos esses detalhes reportar-se ao texto e às figuras do verbete
caena do D. A.
115. PETRÔNIO. 31.
116. Sobre essas precedências ainda observadas no século V, cí. SlD.
APOL, Ep., I, 11. Sobre o número de lugares do sigma ou stibadium,
cf. MARCIAL, X, 41, 5-6; XIV, 87; H. A., Ver., 5, Hcliog., 29. Co­
mo exceção, stibadium de doze lugares ap. SUETÔNIO, Aug., 70.
117. ViTRÚVIO, VI, 10, 3.
118. Cf. Cícero. Verr., IV, 26, 46, e Ateneu, II, 47 F.
119. Marcial, XII, 29-11. Devia-se trocar o mappa após cada serviço.
120. Horácio, Sat., II, 8, 10.
121. Sobre as facas, cf. JUVENAL, XI, 133.
122. Sobre o dcntiscalpium ou palito de dente, cf. PETRÔNIO, 33, e Mar.
CIAL, VII, 53, 3.
123. Sobre os termos e os utensílios que designam, cf. os verbetes do
D. A. Sobre o cochlear, ver sobretudo PETRÔNIO, 33, e MARCIAL,
XIV, 123.
124. PETRÔNIO, 31.
125. Horácio, Sat., II, 8, 63; Petrônio, 32 e 60; Marcial, II, 37.
126. Juvenal, I, 94-95.
127. MaCRÓBIO, SaL, II, 9; encontra-se a análise no D. A., s. v? caena,
I, 1, 282.
128. Petrônio, 31.
129. Ibid., 33.
130. Ibid., 36.
131. Ibid., 37.
132. Ibid., 59.
133. Ibid., 60. Parece que há duas sobremesas, cf. 68.
134. Ibid., 68.
135. Ibid., 35.
136. Marcial, X, 36 e 45.
137. Ibid., DC, 93.
138. Ver no D. A. o verbete vinum.
139. Marcial, I, 11; VI, 89.
140. Ver no D. A. os termos vinum e caena.
141. Plínio, N. H, XIV, 22.
142. Marcial, I, 26, 9; VI, 78, 6.
143. Ibid., VIII, 36, 7; IX, 93, 3; XI, 36, 7.
144. Plínio, N. H, XII, 88.
145. Plínio, o Jovem, Ep., II, 6.
146. Marcial, IX, 2.
147. Juvenal, V, 24-156.
148. Plínio, o Jovem, Ep., II, 6, 3 e 4.
149. Petrônio. 35, 52, 58, 60.
150. Plínio, o Jovem, IX, 7.

352
151. Juvenal. XI, 162-175.
152. Plínio, o Jovem, loc. cit.
153. Cícero, Fam. IX, 22; Marcial. X, 48.10. Juvenal. III, 107; Plí­
nio. o Jovem. Pan., 49.
154. SUETÔNIO. Claud., 32.
155. Marcial, VII, 18; cí. X, 15.
156. Petrônio, 47.
157. Marcial, III, 82; VI, 89.
158. Juvenal,, XI, 174-175.
159. SÊNECA. Cons, ad IIclv., X, 3.
160. Petrônio. 70.
161. APICIUS, IV, 2: inferes ad mensam nono agnoscet quid manduces.
162. Juvenal, XI, 79-81.
163. Ibid., XIV, 116.
164. Ibid., IV, 15-16.
165. Ibid., IV, 139-141.
166. Plínio, o Jovem, Ep., VI, 31, 13.
167. Ibid., V, 2, 1.
168. Ibid., VII, 21, 4.
169. Ibid., Ill, 12, 1.
170. Ibid., I, 15. Septicius Clarus preferiu um jantar em que dançavam
as moças de Cadiz.
171. Marcial, X, 48.
172. Juvenal, XI, 64-76.
173. Cf. DELLA CORTE, Abrtzxe degli Scavi, 1927, 93-94. O primeiro é
particularmentc difícil de construir e interpretar (cf. A. VoGUA-
NO, Rivista di Filologia Clássico, 1925, pp. 220 ss.).
174. C. /. L., XIV, 2112; cf. G. BOISSIER, La religion romaine, II, 283
175. Atos dos Ap., II, 46.
176. Tertuliano, Apol., 39.
BIBLIOGRAFIA

A vida privada dos romanos tem sido objeto de inumeráveis estudos.


Limitar-me-ci aos livros antigos ou recentes que considero essenciais.
Para a época de Cícero, WaRDE FOWLER, La vie sociale à Rome au
temps de Cicéron, Paris, 1917.
Para a época de Augusto, Ch. DezOBRY, Rome au siècle d’Auguste et
pendant une partie du règne de Tibère, Paris, 1? edição, 1835. 2? edição,
1875; e BECKER, Gallus oder rõmische Scenen aus der Zeit Augusts, 1? edi­
ção, Leipzig, 1838; 2? edição, Berlim, 1882.
Para o Alto Império, mais particularmente para os Antoninos, dispo­
mos de um tesouro dc referência e fatos nas Darstellur.gen aus der Sitten-
geschichte Roms in der Zeit von August bis zum Ausgang der Antonine, de
FRIEDLANDER, cujo valor uma 11? edição, publicada em Leipzig, confirma.
Em seguida, temos três manuais generosos:
MaRQUARDT, Das Privatleben der Rõmer, 2? edição, Leipzig, 1886, tra­
duzido para o francês sob o título La vie privée des Romains, Paris, 1892.
BlÜ.MNER, Rõmische Privataltertümer, Munique, 1911.
JOHNSTON, Private life of the Romans, 2? edição, Nova York, Chica­
go, 1932.
Por fim, e sobretudo, possuímos uma incomparável mina documental
nos verbetes do Dictionnaire des antiquites greeques et romaines iniciado por
Daremberg e Saglio em 1878 e concluído por Edmond Pottier em 1916.
Servi-me à vontade dele, sendo particularmente devedor com relação à se­
gunda pane.
Para as fontes, utilizo de preferência as edições da coleção Guillaume
Bude; quando cito Petrônio e Juvenal, sou tributário, com algumas ligei­
ras modificações, das traduções de A. Ernout para o primeiro, de P. de
Labriolle e Villeneuve para o segundo. Quanto a Plínio, o Jovem, várias
vezes utilizei a tradução da senhorita Guillemin. Com relação a Marcial,
frequentemente recorrí ao comentário da edição de Friedlander. Enfim,
não quis entrar no mérito da questão sobre a data do Satiricon. A polêmica
travada ao longo de dois anos entre Ugo-Enrico Paoli (Studi Italian difilo­
logia classica N. S., XIV, 1937, fase. I) e G. Funaioli e Marmorale tem co­
mo resultado evidente sublinhar os contatos e as analogias de Petrônio,
cujo romance deve se passar numa cidade da Campânia, e de Marcial, cu­
jos epigramas visam os romanos de Roma (cf. Paoli, Ancora sulTczà del Sa­
tiricon, in Rivista di Filologia, 1938, pp. 13-39).

355
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

elaborada por Raymond Bloch

A obra de Jérôme Carcopino inclui grande número de notas nas quais


o leitor encontra referências precisas aos textos, às inscrições, aos monu­
mentos utilizados, bem como indicações bibliográficas. Segue-se a essas notas
uma bibliografia dc conjunto, bem arrazoada, porém muito sumária. Mais
de trinta c cinco anos após a primeira edição, pareceu útil acrescentar a
essas indicações a menção das publicações essenciais que surgiram desde
então. Naturalmente é apenas uma seleção destinada a apresentar ao leitor
o panorama das pesquisas mais recentes. Procurou-se classificar a nova bi­
bliografia conforme as panes do livro.

OBRAS GERAIS

E. Albertini, LEmpire Romain, 3? ed., col. “Peuples et civilisations”. di­


rigida por L. Halphen e Pb. Sagnac, Paris, 1939.
P.-M. Duval, La vie quotidienne en Gasde pendant la pdx romaine, Paris, 1952.
A. AYMARD c J. AUBOYER, Rome et son Empire, col. “Histoire générale
des civilisations”, dirigida por M. Crouzet, Paris, 1954.
R. BLOCH e J. COUSIN', Rome et son destin, col. "Destin du monde”, diri­
gida por L. Fcbvre e F. Braudel, Paris, 1960.
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O QUADRO DA VIDA ROMANA

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H.-G. PFLAUM, Les procurateurs equestres sous le haut Empire Romain, Pa­
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prelo.
O A UTOR E SUA OBRA

Professor de história e geografia, Jerome Carcopino


(1881-1970) lecionou no colégio do Havre e na Faculdade de
Letras de Argel. Em 1920, foi nomeado professor da Faculdade
de Letras de Paris. Em 1941, tomou-se secretário da Educação
e, em 1942, assumiu a direção da Ecole Normale Supérieure.
Membro da Academia Francesa em 1955, Jéróme Carcopino se
dedicou ao estudo da Antiguidade, da história e, em particu­
lar, da civilização romana. Suas numerosas obras, algumas das
quais consideradas clássicas, são fonte de referência obrigatória
para estudos históricos.

361
promovida pelo cristianismo em
ascensão. A inequívoca opulência
da capital imperial manifestava-se,
por exemplo, na distribuição
mensal gratuita dc trigo para cerca
de 150 mil “indigentes” e suas
famílias, que totalizavam de um
quarto a um terço da população
de 1,2 milhão de pessoas.
Nesta obra que já se tomou um
clássico da historiografia moderna,
Jéróme Carcopino faz uma
minuciosa reconstituição tanto
do fausto dos magnatas e dos
imperadores — servidos por
multidões de escravos
especializados e promotores de
festins alucinantes — quanto
da vida das massas anônimas,
mantidas sob controle graças
à distribuição gratuita de trigo e
aos selvagens espetáculos do Coliseu,
onde num único dia chegavam
a morrer até 5 mil gladiadores.
Nos séculos 1 c II d.C., Roma, então capital de um mun­
do que ela parecia ter conquistado c paciíicado para sempre,
viveu sua época de maior opulência. No prestigioso cenário
da cidade dc mármore — imensa metrópole assolada pelos
mesmos problemas das grandes cidades modernas —, Jérô-
me Carcopino apresenta, como em um filme, as imagens dos
principais momentos do dia dos romanos, tanto dos mise­
ráveis que viviam de1 ‘pão e circo” quanto dos magnatas e
dos próprios imperadores.
Recorrendo a fontes variadas e dotado de imensa sen­
sibilidade para os detalhes, Carcopino reconstitui de modo
vivido e emocionante um período crucial para a história do
Ocidente, no qual o Império romano, no ápice de seu po-
derio, já começara a conviver com o desaparecimento de suas
tradições e com o lento trabalho das forças da decadência.
6 153
ISBN 85 7 I6 Í

Companhia Das Letras

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