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LITERATURA

BRASILEIRA II

autora
ALESSANDRA FÁVERO

1ª edição
SESES
rio de janeiro 2016
Conselho editorial luis claudio dallier, roberto paes e paola gil de almeida

Autora do original alessandra fávero

Projeto editorial roberto paes

Coordenação de produção paola gil de almeida, paula r. de a. machado e aline


karina rabello

Projeto gráfico paulo vitor bastos

Diagramação bfs media

Revisão linguística bfs media

Revisão de conteúdo márcia bucheb

Imagem de capa filipe frazao | shutterstock.com

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por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

F273l Fávero, Alessandra


Literatura brasileira II / Alessandra Fávero.
Rio de Janeiro: SESES, 2016.
136 p. : il.

isbn: 978-85-5548-296-0

1. Literatura brasileira. 2. Romantismo. 3. Parnasianismo. 4. Simbolismo.


5. Machado de Assis. I. SESES. II. Estácio.
cdd 869x

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063
Sumário

Prefácio 5

1. A prosa romântica e o romance de


José de Alencar 7

1.1 Articulações histórico-sociais 8


1.2 Confronto entre as três gerações 11
1.2.1 Primeira geração: Indianista ou Nacionalista 11
1.2.2 Segunda Geração: do mal-do-século 16
1.2.3 Terceira Geração: liberal ou social. 18
1.3 O romance de José de Alencar 22

2. As três gerações de poetas românticos 31

2.1 Gonçalves Dias: lirismo e indianismo 32


2.2 Álvares de Azevedo 45
2.3 Castro Alves 50

3. A reacão anti-romântica 63

3.1 Realismo 64
3.2 Fundamentação do novo gosto 68
3.3 A emergência de uma nova estética 71

4. Parnasianismo e Simbolismo 89

4.1 A estética do parnasianismo 90


4.2 A tríade parnasiana: Olavo Bilac, Raimundo Correa e Alberto de
Oliveira 91
4.2.1 Olavo Bilac 91
4.2.2 Raimundo Correia 95
4.2.3 Alberto de Oliveira 98
4.3 A estética do simbolismo 101
4.4 Cruz e Souza 104
4.5 O caso Augusto dos Anjos 106

5. A prosa de ficção 111

5.1 O naturalismo e o romance de tese 112


5.2 A narrativa de Machado de Assis 116
5.3 A poética do palimpsesto 124
5.4 O esgarçamento do tecido escritural romântico 128
Prefácio
Prezados(as) alunos(as),

Nesta disciplina, abordaremos os mais variados aspectos da LITERATURA


BRASILEIRA.
Nos capítulos 1 e 2, estudaremos o Romantismo em poesia e prosa, por isso,
vamos comentar sobre alguns autores e algumas obras.
No capítulo 3, estudaremos o Realismo como uma forma de reação antirro-
mântica, sob a fundamentação do novo gosto e como emergência de uma nova
estética
No capítulo 4, o foco recairá sobre a poesia do Parnasianismo e do Simbolis-
mo. Assim, veremos textos dos formadores da tríade Parnasiana - Olavo Bilac,
Raimundo Correa e Alberto de Oliveira – bem como Cruz e Souza e o caso Au-
gusto dos Anjos no Simbolismo brasileiro.
Por fim, no capítulo 5, abordaremos o Naturalismo e o romance de tese, a
narrativa de Machado de Assis, a poética do palimpsesto e ainda o esgarçamen-
to do tecido escritural romântico.
Nosso intuito, ao redigir este livro, é contribuir para uma boa formação
humanística. Por isso, haverá espaço para reflexões e orientações sobre os gê-
neros literários. Vamos ainda abordar a literatura em sua concepção histórica,
com sugestões para uma boa compreensão do que somos hoje.
Você está convidado a enriquecer sua alma com mais cultura e a viajar co-
nosco por meio deste material.

Bons estudos!

Profa. Dra. Alessandra Favero

5
1
A prosa romântica e
o romance de
José de Alencar
1. A prosa romântica e o romance de
José de Alencar

Neste capítulo, você estudará as origens do Romantismo literário e suas rela-


ções com o contexto histórico, sua linguagem e características.
Após 1822, o Brasil já independente desperta para o sentimento de nacionalis-
mo, por isso, busca-se o passado histórico, exalta-se a natureza da nossa terra.
Muitos são os autores do período romântico e suas produções, por isso pode-
mos dividir as produções em prosa de acordo com a temática de cada uma das
três gerações.
Neste capítulo, você estudará mais de perto o romance de José de Alencar.

OBJETIVOS
Nosso objetivo é que você seja capaz de reconhecer:
• As várias facetas do movimento romântico.
• Seus autores e suas obras.
• Suas várias manifestações literárias em prosa.

1.1 Articulações histórico-sociais ©© WIKIMEDIA.ORG

A Revolução Industrial provocou uma


verdadeira agitação no modo de pro-
dução, pois antes tínhamos os pro-
dutos manufaturados e, a partir da
revolução, os produtos passam a ser
industrializados, ou seja, produzidos
em grande escala e também chamados
de produtos de massa.

Figura 1.1 – Revolução Industrial – Ferro e Carvão,


de William Bell Scott (1855-60).

8• capítulo 1
A sociedade se divide em duas camadas distintas: a burguesia capitalista,
detentora dos poderes políticos e econômicos, e o proletariado.
No campo político, o absolutismo monárquico dá lugar ao liberalismo,
por meio de movimentos que demonstram a ascensão da burguesia, como a
Revolução Francesa de 1789.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 1.2 – A Liberdade guiando o povo (Louvre, Paris), Delacroix.

Foi com a Revolução Francesa que surgiram os ideais inscritos no monu-


mento abaixo:
©© RICHARD A. MCGUIRK | SHUTTERSTOCK.COM

Figura 1.3 – Palavras em Paris, a divisa da liberdade, da igualdade e da fraternidade da


Revolução Francesa.

capítulo 1 •9
Por isso, os processos de independência do Brasil e dos Estados Unidos ge-
ram lutas civis entre liberais e conservadores, numa tentativa de harmonizar as
novas forças. O Romantismo surge, no Brasil, logo após a independência políti-
ca, o que explica o intenso nacionalismo orgulhoso.

A Revolução [Francesa] e o movimento romântico marcam o fim de uma época


cultural em que o artista se dirigia a uma “sociedade”, a um grupo mais ou menos
homogêneo, a um público cuja autoridade, em princípio, reconhecia absolutamente. A
arte deixa, porém, agora, de ser uma atividade social orientada por critérios objetivos
e convencionais, e transforma-se numa forma de auto-expressão que cria os seus
próprios padrões; numa palavra: torna-se o meio empregado pelo indivíduo singular
para se comunicar com indivíduos singulares. (HAUSER, 1972, p. 804)

Com a industrialização, formam-se grandes massas urbanas. O mercado


literário, antes reservado à aristocracia, amplia-se e diversifica-se, atendendo
aos interesses da nova classe dominante, a burguesia, que passa a ser grande
admiradora dessa arte literária, principalmente do gênero romance.

O triunfo do romantismo, como escola, assinala no mundo ocidental, a plenitude do


desenvolvimento burguês. Suas origens, nos fins do século XVIII, indicam o progres-
so da ascensão da classe que vai, dentro em pouco, destruir os últimos vestígios da
dominação medieval. (...)
Demais, criando os instrumentos de que necessita, a burguesia, no amplo quadro da
vida urbana, a que dera fisionomia, generaliza a curiosidade pelas criações artísticas,
particularmente através da imprensa e do teatro. Sua aliança com o povo na luta
contra os remanescentes do feudalismo, permite levar-lhe o conhecimento dos novos
tipos de arte associando-o à difusão, fazendo dele participante do grande espetáculo
literário que começa a se desenrolar. Cria-se com isso, o público, isto é, a plateia indis-
criminada, que assiste a peças ou lê os folhetins e os livros, cujo o gosto é necessário
atender e cujas preferências geram notoriedade. (SODRÉ, 1969, p. 189)

No Brasil, o movimento romântico tem início em 1836 com a publicação,


em Paris, da Revista Brasiliense Nitheroy, e também Gonçalves de Magalhães
lança Suspiros Poéticos e Saudades.

10 • capítulo 1
1.2 Confronto entre as três gerações

Vejamos alguns representantes da obra romanesca de cada uma das gera-


ções românticas.

1.2.1 Primeira geração: Indianista ou Nacionalista

Os principais temas da primeira geração são o índio, a saudade da pátria, a


natureza, a religiosidade e o amor impossível.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 1.4 – Iracema, por José Maria de Medeiros.

Essa geração é assinalada fortemente pela busca de uma identidade nacio-


nal. O cenário é tropical, retratado e descrito em toda a sua exuberância, já que
é motivo de altivez e patriotismo. Observe o que revela Antônio Cândido:

(...) no primeiro quartel do século XIX esboçaram-se no Brasil condições para


definir tanto o público quanto o papel social do escritor em conexão estreita com o
nacionalismo.

capítulo 1 • 11
Decorre que os escritores, conscientes pela primeira vez da sua realidade como grupo
graças ao papel desempenhado no processo da Independência e ao reconhecimento
da sua liderança no setor espiritual, vão procurar, como tarefa patriótica, definir cons-
cientemente uma literatura mais ajustada às aspirações da jovem pátria, favorecendo
entre criador e público relações vivas e adequadas à nova fase.
A posição do escritor e a receptividade do público serão decisivamente influenciadas
pelo fato da literatura brasileira ser então encarada como algo a criar-se voluntaria-
mente para exprimir a sensibilidade nacional, manifestando-se como ato de brasili-
dade. Os jovens românticos da Niterói são em primeiro lugar patriotas que desejam
complementar a Independência no plano estético; e como os moldes românticos
previam tanto o sentimento de segregação quanto o de missão — que o compensa —
o escritor pôde apresentar-se ao leitor como militante inspirado da ideia nacional.
Vemos, então, que nativismo e civismo foram grandes pretextos, funcionando como
justificativa da atividade criadora; como critério de dignidade do escritor; como recurso
para atrair o leitor e, finalmente, como valores a transmitir. Se as edições dos livros
eram parcas, e lentamente esgotadas, a revista, o jornal, a tribuna, o recitativo, a cópia
volante, conduziam as suas ideias ao público de homens livres, dispostos a vibrar na
grande emoção do tempo. (CANDIDO, 2006, p. 89-90)

Quase todas as publicações roma-


©© WIKIMEDIA.ORG

nescas brasileiras assumiram a for-


ma do folhetim, uma vez que o artista
deveria submeter-se às exigências do
público burguês, que estava no seu
auge, e dos diretores dos jornais, que
comandavam as publicações.
Foi com sucesso que o folhetim
europeu se apresentou em jornais bra-
sileiros, possibilitando o surgimen-
to de algumas adaptações não muito
bem-feitas.
Somente em 1844, surge o roman-
Figura 1.5 – Joaquim Manuel
ce A Moreninha, de Joaquim Manuel
de Macedo
de Macedo, autor considerado por
muitos críticos e teóricos da Literatura
o fundador do romance brasileiro.

12 • capítulo 1
COMENTÁRIO
Joaquim Manuel de Macedo, como inaugurador do romance brasileiro. Porém é preciso sa-
lientar que o primeiro romance brasileiro foi, na verdade, O filho do pescador, de Antônio
Gonçalves Teixeira e Souza, um cabofriense de origem humilde.

Em 1844, formou-se na faculdade de Medicina, mas ficou conhecido na lite-


ratura brasileira por causa da publicação do A Moreninha. Devido à receptivida-
de dos leitores, publicou em 1845 o romance O Moço Loiro. Mais tarde vieram
mais dois romances: Os Dois Amores, em 1848 e Rosa, em 1849.
Suas obras descrevem os costumes e tipos sociais das elites urbanas, per-
mitindo uma imediata identificação com a vida cotidiana dos leitores, princi-
palmente feminino e burguês. Macedo criticava também o modo patriarcal da
sociedade da época, bem como o excesso de modismos e amabilidade.
Nesta época, Sodré (1969) destaca:

Era hábito da época a procura do casamento entre os moços inteligentes, dotados de


um diploma, de anel de grau, destinados a se constituírem em porta-vozes dos interes-
ses dos senhores de terras, seus representantes, particularmente no campo político.
O casamento rico com a rica herdeira representava um caminho para a Câmara, além
daquilo que representava como sociedade na fazenda ou no engenho.

Joaquim Manuel de Macedo faleceu na cidade do Rio de Janeiro a 11 de abril


de 1882, deixando as seguintes obras:
 Uma Pupila Rica, 1840
 A Moreninha, 1844
 O Moço Loiro, 1845
 Os Dois Amores, 1848
 O Cego, 1849
 Cobé, 1855
 A Nebulosa, 1857
 Um Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro, 1862
 Lusbela, 1863
 Teatro, 1863

capítulo 1 • 13
 Mazelas da Atualidade, 1867
 A Luneta Mágica, 1869
 As Vítimas Algozes, 1869
 Memórias da Rua do Ouvidor, 1878

CONEXÃO
Você pode ler o texto integral de A moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo, disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/>. Acesso em: 24 fev. 2016.

A Moreninha conta a história de um grupo de amigos, formado por Augusto,


Fabrício, Leopoldo e Filipe, que vai passar o Dia de Sant’Ana na casa da avó de
Filipe, numa ilha próxima ao Rio de Janeiro.
Filipe faz uma aposta com os amigos, dizendo que eles se apaixonarão por
suas primas ou pela sua irmã, Carolina, que lá estão. Augusto aceita a aposta,
combinam que quem perder escreverá a história de sua derrota.
Augusto, de fato, acaba se apaixonando pela moreninha Carolina, mas não
concretiza essa paixão, pois, aos treze anos de idade, fez um juramento de fide-
lidade a uma menina que conhecera na praia, cujos símbolos eram um cama-
feu e uma esmeralda, além de promessas de casamento.
Augusto confessa o seu amor por Carolina. Ela pede que saia à procura
daquela a quem jurara amor na adolescência. Ele concorda. Porém surge um
fato novo...

LEITURA
Leia a seguir o último capítulo do considerado primeiro romance romântico:
D. Carolina deixou cair uma lágrima e falou ainda, mas já com voz fraca e trêmula:
— Sim, deve partir... vá... Talvez encontre aquela a quem jurou amor eterno... Ah! senhor!
nunca lhe seja perjuro.
— Se eu encontrasse!...
— Então?... que faria?...
— Atirar—me—ia a seus pés, abraçar—me—ia com eles e lhe diria: "Perdoai—me, per-
doai—me, senhora, eu já não posso ser vosso esposo! tomai a prenda que me deste..."

14 • capítulo 1
E o infeliz amante arrancou debaixo da camisa um breve, que convulsivamente apertou
na mão.
— O breve verde!... exclamou D. Carolina, o breve que contém a esmeralda!...
— Eu lhe diria, continuou Augusto: "recebei este breve que já não devo conservar, porque
eu amo outra que não sois vós, que é mais bela e mais cruel do que vós!..."
A cena se estava tornando patética; ambos choravam e só passados alguns instantes a
inexplicável Moreninha pôde falar e responder ao triste estudante.
— Oh! pois bem, disse; vá ter com sua desposada, repita—lhe o que acaba de dizer, e se
ela ceder, se perdoar, volte que eu serei sua... esposa.
— Sim... eu corro... Mas, meu Deus, onde poderei achar essa moça a quem não tornei a
ver, nem poderei conhecer?... onde meu Deus?... onde?...
E tornou a deixar correr o pranto, por um momento suspendido.
— Espere, tornou D. Carolina, escute, senhor. Houve um dia, quando a minha mãe era
viva, em que eu também socorri um velho moribundo. Como o senhor e sua camarada, matei a
fome de sua família e cobri a nudez de seus filhos; em sinal de reconhecimento também este
velho me fez um presente: deu—me uma relíquia milagrosa que, asseverou—me ele, tem o
poder uma vez na vida de quem a possui, de dar o que se deseja; eu cosi essa relíquia dentro
de um breve; ainda não lhe pedi coisa alguma, mas trago—a sempre comigo; eu lha cedo...
tome o breve, descosa—o, tire a relíquia e à mercê dela encontre sua antiga amada. Obtenha
o seu perdão e me terá por esposa.
— Isto tudo me parece um sonho, respondeu Augusto, porém, dê—me, dê—me esse breve!
A menina, com efeito, entregou o breve ao estudante, que começou a descosê—lo preci-
pitadamente. Aquela relíquia, que se dizia milagrosa, era sua última esperança; e, semelhante
ao náufrago que no derradeiro extremo se agarra à mais leve tábua, ele se abraçava com
ela. Só falta a derradeira capa do breve... ei—la que cede e se descose... salta uma pedra... e
Augusto, entusiasmado e como delirante, cai aos pés de D. Carolina, exclamando:
— O meu camafeu!... o meu camafeu!...
A senhora D. Ana e o pai de Augusto entram nesse instante na gruta e encontram o feliz
e fervoroso amante de joelhos e a dar mil beijos nos pés da linda menina, que também por
sua parte chorava de prazer.
— Que loucura é esta? perguntou a senhora D. Ana
— Achei minha mulher!... bradava Augusto; encontrei minha mulher!
— Que quer dizer isto, Carolina?...
— Ah! minha boa avó!... respondeu a travessa Moreninha ingenuamente: nós éramos
conhecidos antigos.

capítulo 1 • 15
Epílogo
A chegada de Filipe, Fabrício e Leopoldo veio dar ainda mais viveza ao prazer que reinava
na gruta. O projeto de casamento de Augusto e D. Carolina não podia ser um mistério para
eles, tendo sido como foi, elaborado por Filipe, de acordo com o pai do noivo, que fizera a
proposta, e com o velho amigo, que ainda no dia antecedente viera concluir os ajustes com a
senhora D. Ana; e, portanto, o tempo que se gastaria em explicações passou—se em abraços.
— Muito bem! muito bem! disse por fim Filipe; quem pôs o fogo ao pé da pólvora fui eu,
que obriguei Augusto a vir passar o dia de Sant’Ana conosco.
— Então estás arrependido?...
— Não, por certo, apesar de me roubares minha irmã. Finalmente para este tesouro sem-
pre teria de haver um ladrão: ainda bem que foste tu que o ganhaste.
— Mas, meu maninho, ele perdeu ganhando...
— Como?...
— Estamos no dia 20 de agosto: um mês!
— É verdade! um mês! exclamou Filipe.
— Um mês!... gritaram Fabrício e Leopoldo.
— Eu não entendo isto! disse a senhora D. Ana
— Minha boa avó, acudiu a noiva, isto quer dizer que finalmente está presa a borboleta.
— Minha boa avó, exclamou Filipe, isto quer dizer que Augusto deve—me um romance.
— Já está pronto, respondeu o noivo.
—Como se intitula?
— A Moreninha.

1.2.2 Segunda Geração: do mal-do-século

A segunda geração romântica recebe várias denominações, tais como: do mal-


do-século, Satanista, Subjetivista, Ultrarromântica ou Individualista, por cau-
sa das características que marcam as obras desta fase. Os principais temas da
segunda geração são: a dúvida, o tédio, a orgia, a morte, a infância, o medo do
amor, o sofrimento.

CONCEITO
Na segunda metade do século XIX, sob o signo do espírito decadente que transformou a
poesia numa arte de desencanto perante a vida, muitos artistas declararam sofrer do mal du
siècle (mal do século) (...) Sentir-se melancólico, entediado, vencido pela vacuidade da vida

16 • capítulo 1
(ennui), nostálgico ou terrivelmente aborrecido, ser boémio ou andar perdido de tédio são
condições necessárias para o diagnóstico do mal du siècle. (...)
Disponível: <http://edtl.fcsh.unl.pt/business-directory/6529/mal-du-siecle/>.
Acesso em: 20 abr. 2016.

Fazem parte desta geração: Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu,


Junqueira Freire e Fagundes Varela.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 1.6 – Fagundes Varela.

Fagundes Varella nasceu em Rio Claro, Rio de Janeiro, em 1841. Este artista
questionava os valores decadentes da vida burguesa, questionamento este que
se transformara em obra de arte.
Detestava a hipocrisia da vida nas cidades e, por isso, buscava expurgar suas
dores em contato com a natureza, reconciliando-se com a alegria originária do
cosmos, em seu poder criador. Escreveu o Evangelho na Selva.
É considerado o último dos grandes românticos, com uma poesia que lhe
rendeu a imortalidade literária, morrendo em Niterói, em 1875, por causa
do álcool.

capítulo 1 • 17
1.2.3 Terceira Geração: liberal ou social.

Assim como as outras gerações, a terceira geração também recebe várias deno-
minações como: liberal ou social. Seu principal representante na prosa é Ma-
nuel Antônio de Almeida, considerado um autor de transição entre o Romantis-
mo e o Realismo, por apresentar uma faceta da sociedade.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 1.7 – Manuel Antônio de Almeida.

Manuel Antônio de Almeida nasceu no Rio de Janeiro, em 1831, e é o es-


critor de Memórias de um Sargento de Milícias, um romance que vai contra o
Romantismo, inaugurando uma literatura urbana brasileira por meio de uma
aventura picaresca, acontecida no início do século XIX, no Rio de Janeiro.
Candido (2006, p. 91) destaca que:

(...) a cor local, a exibição afetiva, o pitoresco descritivo e a eloquência são requisi-
tos mais ou menos prementes, mostrando que o homem de letras foi aceito como
cidadão, disposto a falar aos grupos; e como amante da terra, pronto a celebrá-la com
arroubo (...)

18 • capítulo 1
Manuel Antônio de Almeida tem como pretexto para a escritura tudo o que
é popular. Suas personagens são, pode-se dizer, os excluídos ou aqueles que
não se encaixam na sociedade burguesa da época: mendigos, cegos, soldados,
barbeiros, comadres, mestres de rezas, meirinhos.
É o patrono da Cadeira n. 28, por escolha do fundador Inglês de Sousa e
O escritor morreu em Macaé, Rio de Janeiro, em 1861, deixando apenas
2 obras:
 Memórias de um Sargento de Milícias, 1855
 Dois Amores, 1861

LEITURA
Que tal se divertir um pouco com a história sobre a origem do protagonista de Memórias de
um Sargento de Milícias?
I
Origem, nascimento e batizado
Era no tempo do rei.
Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se
mutuamente, chamava-se nesse tempo - O canto dos meirinhos -; e bem lhe assentava o
nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe, que
gozava então de não pequena consideração. Os meirinhos de hoje não são mais do que a
sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e temida, respei-
tável e respeitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia
todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida: o
extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando-se,
fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações, provarás,
razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamava o processo.
Daí sua influência moral.
Mas tinham ainda outra influência, que é justamente a que falta aos de hoje: era a influên-
cia que derivava de suas condições físicas. Os meirinhos de hoje são homens como quais-
quer outros; nada têm de imponentes, nem no seu semblante nem no seu trajar, confundem-
se com qualquer procurador, escrevente de cartório ou contínuo de repartição. Os meirinhos
desse belo tempo não, não se confundiam com ninguém; eram originais, eram tipos: nos seus
semblantes transluzia um certo ar de majestade forense, seus olhares calculados e sagazes
significavam chicana. Trajavam sisuda casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato
afivelado, ao lado esquerdo aristocrático espadim, e na ilharga direita penduravam um círculo

capítulo 1 • 19
branco, cuja significação ignoramos, e coroavam tudo isto por um grave chapéu armado.
Colocado sob a importância vantajosa destas condições, o meirinho usava e abusava de sua
posição. Era terrível quando, ao voltar uma esquina ou ao sair de manhã de sua casa, o cida-
dão esbarrava com uma daquelas solenes figuras, que, desdobrando junto dele uma folha de
papel, começava a lê-la em tom confidencial! Por mais que se fizesse não havia remédio em
tais circunstâncias senão deixar escapar dos lábios o terrível - Dou-me por citado. - Ninguém
sabe que significação fatalíssima e cruel tinham estas poucas palavras! eram uma sentença
de peregrinação eterna que se pronunciava contra si mesmo; queriam dizer que se começava
uma longa e afadigosa viagem, cujo termo bem distante era a caixa da Relação, e durante
a qual se tinha de pagar importe de passagem em um sem-número de pontos; o advogado,
o procurador, o inquiridor, o escrivão, o juiz, inexoráveis Carontes, estavam à porta de mão
estendida, e ninguém passava sem que lhes tivesse deixado, não um óbolo, porém todo o
conteúdo de suas algibeiras, e até a última parcela de sua paciência.
Mas voltemos à esquina. Quem passasse por aí em qualquer dia útil dessa abençoada épo-
ca veria sentado em assentos baixos, então usados, de couro, e que se denominavam - cadeiras
de campanha - um grupo mais ou menos numeroso dessa nobre gente conversando pacifica-
mente em tudo sobre que era lícito conversar: na vida dos fidalgos, nas notícias do Reino e nas
astúcias policiais do Vidigal. Entre os termos que formavam essa equação meirinhal pregada
na esquina havia uma quantidade constante, era o Leonardo-Pataca. Chamavam assim a uma
rotunda e gordíssima personagem de cabelos brancos e carão avermelhado, que era o decano
da corporação, o mais antigo dos meirinhos que viviam nesse tempo. A velhice tinha-o tornado
moleirão e pachorrento; com sua vagareza atrasava o negócio das partes; não o procuravam;
e por isso jamais saía da esquina; passava ali os dias sentado na sua cadeira, com as pernas
estendidas e o queixo apoiado sobre uma grossa bengala, que depois dos cinqüenta era a sua
infalível companhia. Do hábito que tinha de queixar-se a todo o instante de que só pagassem
por sua citação a módica quantia de 320 réis, lhe viera o apelido que juntavam ao seu nome.
Sua história tem pouca coisa de notável. Fora Leonardo algibebe em Lisboa, sua pátria;
aborrecera-se porém do negócio, e viera ao Brasil. Aqui chegando, não se sabe por proteção
de quem, alcançou o emprego de que o vemos empossado, e que exercia, como dissemos,
desde tempos remotos. Mas viera com ele no mesmo navio, não sei fazer o quê, uma cer-
ta Maria da hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitona. O
Leonardo, fazendo-se-lhe justiça, não era nesse tempo de sua mocidade mal-apessoado,
e sobretudo era maganão. Ao sair do Tejo, estando a Maria encostada à borda do navio, o
Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe
uma valente pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como
envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas

20 • capítulo 1
costas da mão esquerda. Era isto uma declaração em forma, segundo os usos da terra: le-
varam o resto do dia de namoro cerrado; ao anoitecer passou-se a mesma cena de pisadela
e beliscão, com a diferença de serem desta vez um pouco mais fortes; e no dia seguinte
estavam os dois amantes tão extremosos e familiares, que pareciam sê-lo de muitos anos.
Quando saltaram em terra começou a Maria a sentir certos enojos: foram os dois morar
juntos: e daí a um mês manifestaram-se claramente os efeitos da pisadela e do beliscão; sete
meses depois teve a Maria um filho, formidável menino de quase três palmos de comprido,
gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e chorão; o qual, logo depois que nasceu, mamou
duas horas seguidas sem largar o peito. E este nascimento é certamente de tudo o que te-
mos dito o que mais nos interessa, porque o menino de quem falamos é o herói desta história.
Chegou o dia de batizar-se o rapaz: foi madrinha a parteira; sobre o padrinho houve suas
dúvidas: o Leonardo queria que fosse o Sr. juiz; porém teve de ceder a instâncias da Maria e
da comadre, que queriam que fosse o barbeiro de defronte, que afinal foi adotado. Já se sabe
que houve nesse dia função: os convidados do dono da casa, que eram todos dalém-mar,
cantavam ao desafio, segundo seus costumes; os convidados da comadre, que eram todos
da terra, dançavam o fado. O compadre trouxe a rabeca, que é, como se sabe, o instrumento
favorito da gente do ofício. A princípio o Leonardo quis que a festa tivesse ares aristocráticos,
e propôs que se dançasse o minuete da corte. Foi aceita a idéia, ainda que houvesse difi-
culdade em se encontrarem pares. Afinal levantaram-se uma gorda e baixa matrona, mulher
de um convidado; uma companheira desta, cuja figura era a mais completa antítese da sua;
um colega do Leonardo, miudinho, pequenino, e com fumaças de gaiato, e o sacristão da Sé,
sujeito alto, magro e com pretensões de elegante. O compadre foi quem tocou o minuete na
rabeca; e o afilhadinho, deitado no colo da Maria, acompanhava cada arcada com um guincho
e um esperneio. Isto fez com que o compadre perdesse muitas vezes o compasso, e fosse
obrigado a recomeçar outras tantas.
Depois do minuete foi desaparecendo a cerimônia, e a brincadeira aferventou, como se
dizia naquele tempo. Chegaram uns rapazes de viola e machete: o Leonardo, instado pelas
senhoras, decidiu-se a romper a parte lírica do divertimento. Sentou-se num tamborete, em
um lugar isolado da sala, e tomou uma viola. Fazia um belo efeito cômico vê-lo, em trajes do
ofício, de casaca, calção e espadim, acompanhando com um monótono zunzum nas cordas
do instrumento o garganteado de uma modinha pátria. Foi nas saudades da terra natal que
ele achou inspiração para o seu canto, e isto era natural a um bom português, que o era ele.
A modinha era assim:
Quando estava em minha terra,
Acompanhado ou sozinho,
Cantava de noite e de dia
Ao pé dum copo de vinho!

capítulo 1 • 21
Foi executada com atenção e aplaudida com entusiasmo; somente quem não pareceu dar-
lhe todo o apreço foi o pequeno, que obsequiou o pai como obsequiara ao padrinho, marcando-
lhe o compasso a guinchos e esperneios. À Maria avermelharam-se-lhe os olhos, e suspirou.
O canto do Leonardo foi o derradeiro toque de rebate para esquentar-se a brincadeira,
foi o adeus às cerimônias. Tudo daí em diante foi burburinho, que depressa passou à gritaria,
e ainda mais depressa à algazarra, e não foi ainda mais adiante porque de vez em quando
viam-se passar através das rótulas da porta e janelas umas certas figuras que denunciavam
que o Vidigal andava perto.
A festa acabou tarde; a madrinha foi a última que saiu, deitando a bênção ao afilhado e
pondo-lhe no cinteiro um raminho de arruda.

LEITURA
Leia o capítulo 1 de Memórias de um sargento de milícias, de Manoel Antônio de Almeida,
disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000022.pdf>. Aces-
so em: 3 fev. 2016.

1.3 O romance de José de Alencar

José de Alencar nasceu em Mecejana,


Ceará, em 10 de maio de 1829.
Sua infância foi marcada por 2 ele-
mentos que justificam sua escrita: pe-
las leituras de romances que realizava
©© WIKIMEDIA.ORG

para a mãe e as tias e devido à presença


do pai, homem de pensamentos re-
volucionários e sentimento nativista,
que valorizava a vida sertaneja e exalta-
va a natureza brasileira.
Entre 1837 e 1838, Alencar e os pais
Figura 1.8 – José de Alencar. viajaram pelo interior da Bahia, cujas
impressões dessa viagem apareceram
mais tarde em sua obra de ficção.

22 • capítulo 1
A partir da década de 1870, dedica-se exclusivamente à literatura. Ganha noto-
riedade com as Cartas sobre a Confederação dos Tamoios, publicadas em 1856,
com o pseudônimo de Ig, no Diário do Rio de Janeiro, criticando intensamente
o poema épico de Domingos Gonçalves de Magalhães, que era o, então, favorito
do Imperador e considerado o chefe da literatura brasileira.
Escreveu romances indianistas, urbanos, regionais, históricos, romances-
poemas de natureza lendária, obras teatrais, poesias, crônicas, ensaios e polê-
micas literárias, escritos políticos e estudos filológicos.
A parte de ficção histórica, depoimento da sua busca de tema nacional para
o romance, concretizou-se em duas direções: os romances históricos e os de
lendas indígenas. Por isso, José de Alencar pertence ao movimento do indianis-
mo na literatura brasileira do século XIX, em que nacionalismo revelava tradi-
ção indígena na ficção. Sua obra mais famosa é O Guarani, publicado em 1857.
©© WIKIPEDIA

Figura 1.9 – O Guarani.

capítulo 1 • 23
CONEXÃO
Você pode ler o texto integral de O Guarani, disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.
br/download/texto/bv000135.pdf>. Acesso em: 24 fev. 2016.

Em 1866, Machado de Assis elogiou o romance Iracema, publicado no ano


anterior. Machado de Assis sempre teve José de Alencar na mais alta conta e,
com a fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1897, escolheu-o com o
patrono da Cadeira n. 23.
Sua obra é de grande importância para a nacionalização da literatura no
Brasil e da consolidação do romance brasileiro, do qual foi o verdadeiro cria-
dor, chamado de o patriarca da literatura brasileira.
José de Alencar foi advogado, jornalista, político, orador, romancista e tea-
trólogo e faleceu de tuberculose, aos 48 anos de idade, no Rio de Janeiro, em 12
de dezembro de 1877.
Suas obras são:
 Cinco minutos, 1856
 A viuvinha, 1857
 O Guarani, 1857
 As Asas de um Anjo, 1858
 Lucíola, 1862
 Diva, 1864
 Iracema, 1865
 As minas de prata, 1865
 A pata da gazela, 1870
 O gaúcho, 1870
 O tronco do ipê, 1871
 Til, 1872
 Sonhos d’ouro, 1872
 Alfarrábios, 1873
 Guerra dos mascates, 1873
 Ubirajara, 1874
 Senhora, 1875
 O sertanejo, 1875
 Encarnação, 1893, póstumo

24 • capítulo 1
LEITURA
Para conhecer um pouco do universo feminino narrado por José de Alencar, sugerimos a
leitura do livro O império da cortesã: Lucíola, um perfil de Alencar, obra de Valéria de Marco
(São Paulo: Martins Fontes, 1986).

Uma divisão didática e bem explicativa é feita por Terra (2002, p. 304-305) e
ajuda a elucidar os tipos de romance que compõem a obra de José de Alencar:

Retrata o Rio do Segundo Reinado, porém revela


ROMANCE URBANO OU aspectos negativos da vida urbana e dos costumes
DE COSTUMES burgueses, como em Cinco Minutos e A Viuvinha.

Foca o período colonial brasileiro como em As


ROMANCE HISTÓRICO Minas do Prata e A Guerra dos Mascates.

Mostra a relação direta entre o homem e o meio em


ROMANCE REGIONAL que vive, como em O Sertanejo e O Gaúcho.

Revela a vida no meio rural, principalmente em tor-


ROMANCE RURAL no das fazendas de café do interior paulista, como
Til e O Tronco do Ypê.

Também revela uma outra preocupação histórica do


autor com foco no indianismo, no nacionalismo e na
ROMANCE INDIANISTA exaltação da natureza pátria, como em O Guarani,
Iracema e Ubirajara.

Alguns estudiosos destacam as mulheres presentes nas obras de Alencar, e


isso se justifica pela presença constante da mãe e irmã em sua infância, motivo
de escrever romances em que são protagonistas e que destacam a mudança de
comportamento delas frente à sociedade da época. Além do mais, como salien-
ta Sodré, no livro História da literatura brasileira (1969, p. 205):

capítulo 1 • 25
Começa a receber a mulher uma educação em que apareciam certas prendas que
predispunham a demonstração, a apresentação às visitas. Começava a figurar nos
salões, a receber e a tratar com os convidados, a conviver com estranhos, a frequentar
modistas, a visitar, a ler figurinos e, também a ler romances. Dos salões, as mulheres
foram ao teatro e à rua.

No entanto, a espiritualização das relações amorosas se deve ao austero có-


digo de valores morais que vigorava na época. Por isso, os arroubos românticos
se transformam em namoros bem-comportados e em casamentos inevitáveis.
Apesar de ser autorizado pelo sacramento e pelos votos, o amor segue com ex-
tremo respeito:

A formosa moça trocara seu vestuário de noiva por esse outro que bem se podia
chamar de traje de esposa; pois os suaves emblemas da pureza imaculada, de que a
virgem se reveste quando caminha para o altar, já se desfolham como as pétalas da
flor do outono, deixando entrever as castas primícias do santo amor conjugal.
José de Alencar*

CONEXÃO
* Leia a obra integral Senhora, de José de Alencar Disponível em: <https://archive.org/
stream/Senhora/bn000011_djvu.txt>. Acesso em 7 mar. 2016.

LEITURA
Que tal, agora ler um trecho de Iracema?

Capítulo II
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da
graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.

26 • capítulo 1
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como
seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu?"
onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil e nu, mal roçando
alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.
Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a
sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre es-
parziam flores sobre os úmidos cabelos Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam
o canto
Iracema saiu do banho; o aljôfar d'água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou
em manhã de chuva Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco,
e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste.
A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela As vezes sobe aos ramos da
árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru te palha matizada, onde traz a
selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá, as agulhas da juçara com que tece a renda,
e as tintas de que matiza o algodão.
Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não
deslumbra; sua vista perturba-se.
Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não
algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos
olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.
Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu Gotas de
sangue borbulham na face do desconhecido.
De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada, mas logo sorriu. O moço
guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. So-
freu mais d'alma que da ferida.
O sentimento que ele pos nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de si
o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que causara.
A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. De-
pois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo
a ponta farpada.
O guerreiro falou:
— Quebras comigo a flecha da paz?
— Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde vieste a
estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu?

capítulo 1 • 27
— Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuí-
ram, e hoje têm os meus.
Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldeias, e à caba-
na de Araquém, pai de Iracema.
Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000136.pdf>.
Acesso em 30 jun. 2010.

LEITURA
Iracema. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000136.
pdf>. Acesso em 23 fev. 2016.

ATIVIDADES
Leia o excerto do capítulo II de Iracema para responder às questões a seguir:

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da
graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como
seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu onde
campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil e nu, mal roçando alisava
apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.
Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a
sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre es-
parziam flores sobre os úmidos cabelos Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam
o canto
Iracema saiu do banho; o aljôfar d'água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou
em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco,
e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste.
A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela. Às vezes sobe aos ramos da
árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru te palha matizada, onde traz a

28 • capítulo 1
selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá, as agulhas da juçara com que tece a renda,
e as tintas de que matiza o algodão

01. Podemos afirmar que Iracema:


a) É uma personagem romântica? Justifique.
b) Tem uma relação direta com a natureza? Justifique.

02. O tema presente é só indianista ou aparece também o nacionalismo? Justifique.

REFLEXÃO
Como vimos neste primeiro panorama sobre o romantismo, o século XIX foi conturbado por
fortes mudanças sociais, políticas e culturais.
As causas dessas mudanças foram: a Revolução Industrial, com novos inventos técnicos,
aumento de produção e a divisão do trabalho; a Revolução Francesa, com novos ideais de
sociedade, com respeito aos direitos individuais.
Do mesmo modo que a sociedade passava por transformações, a atividade artística
romântica se tornou complexa, por isso, os artistas românticos visavam quebrar moldes e
regras acadêmicas em favor da livre expressão da personalidade do artista, refletido no eu
poético, diante das características estudadas nesta unidade.
Estes foram alguns tópicos dos estudos acerca do Romantismo. Isso não significa que
encerramos o assunto. Há muito o que estudar e aqui apresentamos apenas uma sugestão
para que você conheça um pouco da vida e da obra destes autores tão importantes para a
cultura brasileira.

MULTIMÍDIA
Assista aos filmes: O retrato de Goya; Os miseráveis; Independência ou morte; Nosferatu;
Drácula, de Bram Stoker; O guarani
Ouça: composições de Schubert, Schumann, Mendelssohn, Chopin entre outros.
Veja: as pinturas de Goya e Delacroix.

capítulo 1 • 29
LEITURA
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1995.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix.1995.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
CANDIDO, Antônio. Presença da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1965.
CASTELLO. José Aderaldo. A literatura brasileira: Origens e Unidade. Vols 1 e 2. São Paulo: Edusp.
1999.
HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. 2.ed.São Paulo: Mestre Jou, 1972.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira – seus fundamentos econômicos. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.

30 • capítulo 1
2
As três gerações
de poetas
românticos
2. As três gerações de poetas românticos
Neste capítulo sobre a poética romântica, você estudará o Romantismo literá-
rio que é dividido didaticamente em três gerações, com suas produções poéti-
cas, conhecendo alguns autores e obras marcantes de cada fase.
Passemos, então, ao estudo da poesia romântica, de acordo com as várias gera-
ções e características

OBJETIVOS
• Reconhecer as várias facetas do movimento romântico, suas características e, princi-
palmente, suas manifestações literárias.

PERGUNTA
Muitos se consideram românticos, mas, afinal, o que vem a ser romântico no sentido poético
e literário?

2.1 Gonçalves Dias: lirismo e indianismo

No Romantismo, a natureza participa do sofrimento do poeta, tornando-se es-


pelho de seu mundo subjetivo, íntimo. A natureza passa a ser uma expansão
do eu poético triste ou alegre, revelando seu estado de espírito. Diante desse
contexto, muitas são as características que marcam as produções literárias do
movimento romântico, bem como seus poetas.
Tradicionalmente, para facilitar didaticamente o ensino da Literatura,
o Romantismo tem sido dividido em três gerações de escritores românticos,
principalmente quando se trata dos autores de poesia. No entanto, vimos que
os prosadores nem sempre se encaixam nessa divisão tão facilmente, visto que
suas obras podem ser híbridas, ou seja, apresentar características de mais de
uma geração romântica.
A primeira geração românica tem ânimo nativista que leva Gonçalves Dias à
idealização do índio, o brasileiro legítimo, e de todo indivíduo identificado com

32 • capítulo 2
a terra, porque apreciar o homem brasileiro alude à valorização da Pátria, como
revela o excerto do canto IV de Juca Pirama:

Sou bravo, sou forte,


Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.

Figura 2.1 – Livro.

Seus temas principais são o índio, a saudade da pátria, a natureza, a religio-


sidade e o amor impossível, que aparece marcado no excerto abaixo:

Ao seu viver do coração, — às gratas


Ilusões, quando em leito solitário,
(...)
Mostra-se e brinca a apetecida imagem;
(...)

A primeira geração é assinalada fortemente pela busca de uma identidade


nacional. O mundo exterior é tropical, retratado e descrito em toda a sua exube-
rância, já que é motivo de altivez e patriotismo.

capítulo 2 • 33
CURIOSIDADE
Antônio Gonçalves Dias se orgulhava de ser fruto da mestiçagem, contendo as 3 raças de
formação brasileira: a branca, a índia e a negra.

Antônio Gonçalves Dias nasceu em Caxias, Maranhão, em 1823, filho de pai


português e mãe provavelmente cafuza.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 2.2 – Antônio Gonçalves Dias.

Em 1847, publica os Primeiros Cantos, obra que lhe rendeu a fama e des-
pertou a admiração de Alexandre Herculano, fundando, em 1849, a revista
Guanabara, que divulgava o movimento romântico da primeira geração.
Em 1862, gravemente enfermo, vai se tratar na Europa e em 1864 embarca
no navio de volta, pois queria morrer no Brasil. É o que acontece, mas não da
forma idealizada, pois o navio afunda na costa maranhense, no dia 3 de novem-
bro de 1864. Todos que estavam a bordo são salvos, menos o Gonçalves Dias
que ficou esquecido em seu leito de morte.
Os principais temas por ele retratados são: o índio, a saudade da pátria, a
natureza, o amor.
Suas principais obras são:
 Primeiros Cantos, 1847  Últimos Cantos, 1851
 Segundos Cantos, 1848  Os Timbiras, 1857
 Sextilhas de Frei Antão, 1848

34 • capítulo 2
Dentre as principais características de Dias, ressaltamos o ufanismo, a reli-
giosidade e o medievalismo. Uma vez que o deslumbramento diante da pátria
inspira a divulgação das belezas do Brasil, o deslumbramento diante da paisa-
gem nacional, formando o ufanismo e culto à natureza.

Figura 2.3 – Natureza brasileira.

LEITURA
Observe a Canção do exílio, poema em que o eu-lírico revela sua condição de exilado e sau-
doso da sua terra natal. Como que brincando com os advérbios, localiza-se e nos localiza em
relação aos espaços do poema, entre o “aqui” e “cá” do exílio e o “lá” de Brasil.

Canção do exílio
Minha terra tem palmeiras,
onde canta o sabiá,
as aves que aqui gorjeiam,
não gorgeiam como lá,
nosso céu tem mais estrelas,
nossas várzeas têm mais flores,
nossos bosques têm mais vida,

capítulo 2 • 35
nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho à noite,
mais prazer encontro eu lá;
minha terra tem palmeiras,
onde canta o sabiá.

Minha terra tem primores,


que tais não encontro eu cá;
em cismar - sozinho, à noite -
mais prazer encontro eu lá,
minha terra tem palmeiras,
onde canta o sabiá
Não permita deus que eu morra,
sem que eu volte para lá;
sem que desfrute os primores
que eu não encontro por cá,
sem qu’inda aviste as palmeiras,
onde canta o sabiá.
Gonçalves Dias

Disponível em: <http://vbookstore.uol.com.br/ensaios/romantismo.shtml>.


Acesso em: 27 jun. 2010.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 2.4 – Azulejo com trecho da Canção do Exílio.

36 • capítulo 2
COMENTÁRIO
Lembre-se de que a natureza fazia parte do Arcadismo, mas a paisagem, que era bucólica,
era utilizada como pano de fundo, simples cenário para os afetos do poeta, mas continuava
insensível às emoções do eu poético

Figura 2.5 – Superagüi, obra de William Michaud (1829 – 1902).

A religiosidade cristã é tendência espiritual mais comum entre os românti-


cos. Dessa forma, as heroínas românticas não são mulheres sensuais, ansiosas
por beijos de amor. A ingenuidade romântica, na verdade, transcende a cas-
tidade puramente física, pois ela é uma menina-moça que encontra a vida ao
conhecer um sentimento novo, o amor romântico e único.

LEITURA
Se se morre de amor! — Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n’alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve, e no que vê prazer alcança!

capítulo 2 • 37
Simpáticas feições, cintura breve,
Graciosa postura, porte airoso,
Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Um quê mal definido, acaso podem
Num engano d’amor arrebatar-nos.
Mas isso amor não é; isso é delírio,
Devaneio, ilusão, que se esvaece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro
Clarão, que as luzes no morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,
D’amor igual ninguém sucumbe à perda.

Amor é vida; é ter constantemente


Alma, sentidos, coração — abertos
Ao grande, ao belo; é ser capaz d’extremos,
D’altas virtudes, é capaz de crimes!
Compr’ender o infinito, a imensidade,
E a natureza e Deus; gostar dos campos,
D’aves, flores, murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma
Fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes:
Isso é amor, e desse amor se morre!

Amar, e não saber, não ter coragem


Para dizer que amor que em nós sentimos;
Temer qu’olhos profanos nos devassem
O templo, onde a melhor porção da vida
Se concentra; onde avaros recatamos
Essa fonte de amor, esses tesouros
Inesgotáveis, d’ilusões floridas;
Sentir, sem que se veja, a quem se adora.
Compr’ender, sem lhe ouvir, seus pensamentos,
Segui-la, sem poder fitar seus olhos,
Amá-la, sem ousar dizer que amamos,

38 • capítulo 2
E, temendo roçar os seus vestidos,
Arder por afogá-la em mil abraços:
Isso é amor, e desse amor se morre!

Se tal paixão enfim transborda,


Se tem na terra o galardão devido
Em recíproco afeto; e unidas, uma,
Dois seres, duas vidas se procuram,
Entendem-se, confundem-se e penetram
Juntas — em puro céu d’êxtases puros:
Se logo a mão do fado as torna estranhas,
Se os duplica e separa, quando unidos
A mesma vida circulava em ambos;
Que será do que fica, e do que longe
Serve às borrascas de ludíbrio e escárnio?
Pode o raio num píncaro caindo,
Torná-lo dois, e o mar correr entre ambos;
Pode rachar o tronco levantado
E dois cimos depois verem-se erguidos,
Sinais mostrando da aliança antiga;
Dois corações, porém, que juntos batem,
Que juntos vivem, — se os separam, morrem;
Ou se entre o próprio estrago inda vegetam,
Se aparência de vida, em mal, conservam,
Ânsias cruas resumem do proscrito,
Que busca achar no berço a sepultura!

Esse, que sobrevive à própria ruína,


Ao seu viver do coração, — às gratas
Ilusões, quando em leito solitário,
Entre as sombras da noite, em larga insônia,
Devaneando, a futurar venturas,
Mostra-se e brinca a apetecida imagem;
Esse, que à dor tamanha não sucumbe,
Inveja a quem na sepultura encontra
Dos males seus o desejado termo!
Gonçalves Dias

capítulo 2 • 39
Neste poema, o eu-lírico declara seu amor e não recebe resposta. Atordoado com a
situação, cai em desespero. O que lhe resta são momentos de angústia e sofrimento, reme-
tendo-nos ao jovem Werther...e ao mal do século.

Figura 2.6 – Werther. Fonte: GOETHE, Johann von. 'Das Leiden des Jungen Werthers
(Os sofrimentos do jovem Werther). Gravura em madeira, Alemanha, Século XIX.

CONEXÃO
Leia também um estudo sobre o poema acima, disponível em: <http://pt.scribd.com/
doc/6009432/Se-Se-Morre-de-Amor-Goncalves-Dias>. Acesso em 16 mar. 2016.

Seguindo a tradição e influência vinda da Europa, há uma busca do mundo


medieval e seus valores, porém, no Brasil não tivemos este período, pois só fo-
mos descobertos em 1500, desse modo, o indígena assume a função do herói
medieval e faz o papel dos grandes cavaleiros europeus. Surge, então, uma “es-
pécie nacional” de medievalismo.

LEITURA
Observe que no prólogo, o eu-lírico invoca a alma do selvagem guerreiro para narrar a vida
dos Timbiras, como o cantor de um povo já extinto.

40 • capítulo 2
Os timbiras
Prólogo

Introdução
Os ritos semibárbaros dos Piagas,
Cultores de Tupã, a terra virgem
Donde como dum trono, enfim se abriram
Da cruz de Cristo os piedosos braços;
As festas, e batalhas mal sangradas
Do povo Americano, agora extinto,
Hei de cantar na lira.– Evoco a sombra
Do selvagem guerreiro!... Torvo o aspecto,
Severo e quase mudo, a lentos passos,
Caminha incerto, – o bipartido arco
Nas mãos sustenta, e dos despidos ombros
Pende-lhe a rôta aljava... as entornadas,
Agora inúteis setas, vão mostrando
A marcha triste e os passos mal seguros
De quem, na terra de seus pais, embalde
Procura asilo, e foge o humano trato.

Quem poderá, guerreiro, nos seus cantos


A voz dos piagas teus um só momento
Repetir; essa voz que nas montanhas
Valente retumbava, e dentro d’alma
Vos ia derramando arrojo e brios,
Melhor que taças de cauim fortíssimo?!
Outra vez a chapada e o bosque ouviram
Dos filhos de Tupã a voz e os feitos
Dentro do circo, onde o fatal delito
Expia o malfadado prisioneiro,
Qu’enxerga a maça e sente a muçurana
Cingir-lhe os rins a enodoar-lhe o corpo:
E sós de os escutar mais forte acento
Haveriam de achar nos seus refolhos
O monte e a selva e novamente os ecos.
Gonçalves Dias

capítulo 2 • 41
CONEXÃO
Leia o texto integral de Os timbiras, de Antônio Gonçalves Dias, disponível em: <http://www.
dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000117.pdf>. Acesso em 3 mar. 2016.

A poética de Os timbiras é exemplar, mas, ao nosso ver, é o excerto abaixo


que emociona o leitor, fã de um nobre e destemido guerreiro:

LEITURA
Leia a seguiro canto IV de Juca Pirama:
IV
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo tupi.

Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.

Já vi cruas brigas,
De tribos imigas,
E as duras fadigas
Da guerra provei;
Nas ondas mendaces
Senti pelas faces
Os silvos fugaces
Dos ventos que amei.

42 • capítulo 2
Andei longes terras
Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras
Dos vis Aimoréis;
Vi lutas de bravos,
Vi fortes - escravos!
De estranhos ignavos
Calcados aos pés.

E os campos talados,
E os arcos quebrados,
E os piagas coitados
Já sem maracás;
E os meigos cantores,
Servindo a senhores,
Que vinham traidores,
Com mostras de paz.

Aos golpes do imigo,


Meu último amigo,
Sem lar, sem abrigo
Caiu junto a mi!
Com plácido rosto,
Sereno e composto,
O acerbo desgosto
Comigo sofri.

Meu pai a meu lado


Já cego e quebrado,
De penas ralado,
Firmava-se em mi:
Nós ambos, mesquinhos,
Por ínvios caminhos,
Cobertos d’espinhos
Chegamos aqui!

O velho no entanto
Sofrendo já tanto
De fome e quebranto,

capítulo 2 • 43
Só qu’ria morrer!
Não mais me contenho,
Nas matas me embrenho,
Das frechas que tenho
Me quero valer.

Então, forasteiro,
Caí prisioneiro
De um troço guerreiro
Com que me encontrei:
O cru dessossêgo
Do pai fraco e cego,
Enquanto não chego
Qual seja, - dizei!

Eu era o seu guia


Na noite sombria,
A só alegria
Que Deus lhe deixou:
Em mim se apoiava,
Em mim se firmava,
Em mim descansava,
Que filho lhe sou.

Ao velho coitado
De penas ralado,
Já cego e quebrado,
Que resta? - Morrer.
Enquanto descreve
O giro tão breve
Da vida que teve,
Deixai-me viver!

Não vil, não ignavo,


Mas forte, mas bravo,
Serei vosso escravo:
Aqui virei ter.
Guerreiros, não coro

44 • capítulo 2
Do pranto que choro:
Se a vida deploro,
Também sei morrer.
Disponível em: <http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/
conteudo/GoncalvesDias/IJucaPirama.htm>. Acesso em 3 mar. 2016.

Neste canto do poema, percebemos a narrativa épica do herói que passa por
uma prova fundamentalmente subjetiva e íntima, comovida e dolorosa, em que
se sente impulsionado a pedir clemência por sua vida, não por ele mesmo, mas
sim por ter como principal motivo o cuidado com seu pai já velho e cego, e por
isso frágil. O clima do poema é lirico e trágico: lírico pela subjetividade impres-
sa e trágico pelos acontecimentos narrados.

2.2 Álvares de Azevedo

No capítulo anterior, vimos que a segunda geração romântica recebe várias de-
nominações, tais como: do mal-do-século, Byroniana, Satanista, Subjetivista,
Ultrarromântica ou Individualista, por causa das características que marcam
as obras desta fase.

CONCEITO
De acordo com a definição encontrada no livro Dicionário de Termos Literários, de Moisés
Massaud, o Mal do Século é definido como “Pessimismo extremo, em face do passado e
do futuro, sensação de perda de suporte, apatia moral, melancolia difusa, tristeza, culto do
mistério, do sonho, da inquietude mórbida, tédio irremissível, sem causa, sofrimento cósmico,
ausência da alegria de viver, fantasia desmesurada, atração pelo infinito, “vago das paixões”,
desencanto em face do cotidiano, desilusão amorosa, nostalgia, falta de sentimento vital,
depressão profunda, abulia, resultando em males físicos, mentais ou imaginários que levam
à morte precoce ou ao suicídio”. Fonte: http://www.infoescola.com/literatura/sentimen-
talismo-mal-do-seculo/

capítulo 2 • 45
CURIOSIDADE
A segunda geração romântica recebe a denominação de Byroniana por causa do poeta in-
glês Lord Byron, que tinha um estilo de vida e uma forma particular de ver o mundo. Ele tinha
vida boêmia, noturna, voltada para o vício e os prazeres da bebida, do fumo e do sexo. Ele via
o mundo de modo egocêntrico, narcisista, pessimista, angustiante até satânico.

©© WIKIMEDIA.ORG
Os principais temas da segunda ge-
ração são: a dúvida, o tédio, a orgia, a
morte, a infância, o medo do amor, o
sofrimento, tão marcados nas poesias
de Álvares de Azevedo.

Figura 2.7 – Álvares de Azevedo.

Manuel Antônio Álvares de Azevedo nasceu em São Paulo, em 12 de setem-


bro de 1831, membro de família ilustre.
Em sua graduação foi um ledor metódico de Homero, Dante, Shakespeare,
Byron, Musset, Heine e da Bíblia. Traduziu a Parisina, de Byron. Publicou em
vida, apenas alguns poemas esparsos e discursos. Suas obras possuem marcas
de satanismo, libertinagem e morbidez.
No último ano do curso de Direito, foi vitimado pela tuberculose que se
agravou com um abscesso na fossa ilíaca. Passou por uma cirurgia sem suces-
so. O poeta morreu com vinte anos e meio, no dia 25 de abril de 1852.
Um ano depois de sua morte, publica-se com grande sucesso a Lira dos vinte
anos. Depois disso, vieram contos, teatros e poemas.
Sua obras são:
 Lira dos vinte anos  Poema do Frade
 Poesias diversas  Noite na Taverna

46 • capítulo 2
 Macário  Discursos
 O Conde Lopo  Poemas Malditos
 O livro de Fra-Godinho
O sentimentalismo está presente na relação entre o artista e o mundo. Diante
de um tema amoroso, político, social ou indianista, o tratamento literário reve-
la grande envolvimento emotivo do artista em relação ao tema abordado.
Diante disso, resulta o subjetivismo, elemento a partir do qual o artista ro-
mântico procura tratar os assuntos de forma pessoal, de acordo com seus sen-
timentos. Assim, sua visão é subjetiva, pois retrata a realidade parcialmente. Às
vezes, o eu poético, com seu ego próprio, transforma-se no centro absoluto da
obra literária. Isso ocorre porque:

A atitude romântica é pessoal e íntima. É o mundo visto através da personalidade do


artista. O que releva é a atitude pessoal, o mundo interior, o estado de alma provocado
pela realidade exterior. Romantismo é subjetivismo, é a libertação do | mundo interior, do
inconsciente; é o primado exuberante da emoção, imaginação, paixão, intuição, liberda-
de pessoal e interior. Romantismo é liberdade do indivíduo. (COUTINHO, 2004, p.9).

A introspecção é consequência da inadaptação do poeta ao meio. Por isso,


em desordem com a coletividade, o artífice se abriga em seu mundo privado. O
mundo material é apenas motivo, o meio de delinear aquilo que vale: a intimi-
dade do poeta com a permanente frustração.
Frustrado, o poeta romântico se entrega à Imaginação à fantasia, criando
um modo inacreditável, onde se movem seres irreais, fugindo, assim, do mun-
do real. Até mesmo os elementos da natureza ganham outros ares:

(...) falam à sua alma, falam-lhe de outra coisa; falam-lhe do elemento espiritual que
se traduz nas coisas, ao mesmo tempo signos visíveis e obras sensíveis, atestando,
de maneira eloqüente, a existência onipresente do invisível e do supra-sensível (...)
Os bosques, as florestas, o vento, os rios, o amanhecer e o anoitecer, os ruídos, os
murmúrios, as sombras, as luzes – de tudo o que não é humano e se constitui em
espetáculo para o homem. (NUNES, 1993, p. 65).

Diante de tais fatos, o Romantismo procura a liberdade em relação aos


rígidos padrões clássicos. Importam os anseios individuais, as emoções, os

capítulo 2 • 47
sentimentos. Surge um poema versos livres, a estrofação livre, a ausência de
rima, como explica o eu-poético em:

Frouxo o verso, talvez, pálida a rima


Por estes meus delírios cambeteia,
Porém odeio o pó que deixa a lima
Quanto a mim ... é fogo quem anima
De uma estância o calor: quando formei-a
Se a estátua não saiu como pretendo,
Quebrou-a, mas nunca seu metal emendo.
Álvares de Azevedo

LEITURA
Leia também um estudo sobre o Romantismo em A Consciência Criadora na Poesia Brasi-
leira: Do Barroco ao Simbolismo, de Sergio Alves Peixoto, da Editora Annablume, de 1999.

Insatisfeitos com a própria existência, os românticos buscam formas de fu-


gir da vida que os oprime. A fuga da realidade pode se dar pela evasão no tem-
po, recuando em adágio à estação de sua infância, quando tudo era ideal; pelo
sonho ou fantasia, procurando abrigo para suas aflições num mundo irreal; ou,
ainda, pela morte vista como saída para as agonias e o descontentamento.
Observe os respectivos exemplos:

Idéias íntimas
IX

Oh! ter vinte anos sem gozar de leve


A ventura de uma alma de donzela!
E sem na vida ter sentido nunca
Na suave atração de um róseo corpo
Meus olhos turvos se fechar de gozo!

48 • capítulo 2
Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas
Passam tantas visões sobre meu peito!
Palor de febre meu semblante cobre,
Bate meu coração com tanto fogo!
Um doce nome os lábios meus suspiram,
Um nome de mulher... e vejo lânguida
No véu suave de amorosas sombras
Seminua, abatida, a mão no seio,
Perfumada visão romper a nuvem,
Sentar-se junto a mim, nas minhas pálpebras
O alento fresco e leve como a vida
Passar delicioso... Que delírios!
Acordo palpitante... inda a procuro:
Embalde a chamo, embalde as minhas lágrimas
Banham meus olhos, e suspiro e gemo...
Imploro uma ilusão... tudo é silêncio!
Só o leito deserto, a sala muda!
Amorosa visão, mulher dos sonhos,
Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto!
Nunca virás iluminar meu peito
Com um raio de luz desses teus olhos?
Álvares de Azevedo

Por isso, a ideia de suicídio se torna fixa, mostrando-se como a única forma
de escapar do sofrimento que o eu poético vivencia todos os dias.

Adeus, meus sonhos!

Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!


Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!

capítulo 2 • 49
Misérrimo! votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto...
E minh’alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.

Que me resta, meu Deus?!... morra comigo


A estrela de meus cândidos amores,
Já que não levo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!
Álvares de Azevedo

Ambos disponíveis em: <http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link= http://www.


biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/ideiasintimas.htm>. Acesso em: 3 mar. 2016.

O mal do século se faz presente por meio de certos sentimentos são cons-
tantes como: tristeza, solidão, saudade, desilusão, etc. marcando a segunda
geração romântica.

ATENÇÃO
Embora mundialmente reconhecido por suas poesias, Manuel Antônio Álvares de Azevedo tam-
bém foi contista, dramaturgo, e ensaísta brasileiro, por isso é considerado o principal represen-
tante da segunda geração romântica, chamada Ultrarromântica, Byroniana ou Mal-do-século.

2.3 Castro Alves

Assim como as outras gerações, a terceira geração também recebe várias de-
nominações como: Condoreira, Hugoana, liberal ou social.

COMENTÁRIO
A terceira geração é chamada Hugoana porque tem como exemplo poético o autor francês
Victor Hugo.

50 • capítulo 2
Seu principal representante é o poeta Castro Alves. Seus principais temas
são a defesa de causas humanitárias, a denúncia da escravidão e o amor erótico.
Nasceu em 14 de março de 1847, em Muritiva, conhecida hoje como Castro
Alves, na Bahia. Desde criança amava ler, escrever e desenhar. Sua genialidade
literária aparece cedo, uma vez que com apenas treze anos recitou em público
um poema de sua autoria.
Em 1862, foi para Recife para ingressar na Faculdade de Direito. Porém,
pouco estudava, dedicando seu tempo à bebida, à boemia e à escritura de seus
versos.
Escreveu o drama Gonzaga, pelo qual recebeu uma coroa de louros com a
inscrição Ao Gênio. Dedicou-se à causa abolicionista, com temas de amor e de
liberdade. Em 1866 fundou uma sociedade abolicionista com Rui Barbosa.
Mais tarde foi para a Bahia onde sofreu um acidente e teve o pé amputado.
Castro Alves morreu devido à tuberculose em 6 de julho de 1871, em Salvador,
deixando consagradas obras da poesia brasileira, tais como:
 Espumas Flutuantes, 1870.
 Gonzaga ou a Revolução de Minas, 1875
 A Cachoeira de Paulo Afonso, 1876
 Vozes D'África, Navio Negreiro, 1880
 Os Escravos, 1883
 Obra Completa, 1921
 Poesias Coligadas, Seleção - 1980
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 2.8 – Castro Alves.

capítulo 2 • 51
LEITURA
Ícone máximo de sua expressão abolicionista é o poema O navio negreiro:

O Navio negreiro

’Stamos em pleno mar... Doudo no espaço


Brinca o luar - doirada borboleta -
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta!

’Stamos em pleno mar...Do firmamento


Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias
— Constelações do líquido tesouro...

’Stamos em pleno mar... Dois infinitos


Ali se estreitam num abraço insano
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?...

’Stamos em pleno mar...abrindo as velas


Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares
Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem?... Onde vai?... Das naus errantes


Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste Saara os córceis o pó levantam
Galopam, voam, mas não deixam traço

Bem feliz quem ali pode nest' hora


Sentir painel a majestade!...
Embaixo - o mar... em cima - o firmamento...
E no mar e no céu - a imensidade!

52 • capítulo 2
Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meus Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! Ó rudes marinheiros


Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! Esperai! deixai que eu beba


Esta selvagem, livre poesia...
Orquestra - é o mar que ruge pela proa,
E o vento que nas cordas assobia...

Porque foges assim, barco ligeiro?


Porque foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar - doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,


Tu, que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviatã do espaço!
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas...

II
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?...
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! Que a noite é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como um golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena

capítulo 2 • 53
Às vagas que deixa após.
Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de languor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor.
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente
— Terra de amor e traição -
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos do Tasso
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês - marinheiro frio,


Que ao nascer no mar se achou -
(porque a Inglaterra é um navio
que Deus na Mancha ancorou
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando orgulhoso histórias
De Nelson e de Aboukir.
O Francês - predestinado -
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir...

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga iônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu...
...Nautas de todas as plagas...!
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu....

III
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais, ainda mais.... não pode o olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador

54 • capítulo 2
Mas que vejo eu ali... que quadro de armarguras!
Que cena funeral cantar!... Que tétricas figuras!...
Que cena infame e vil!... meu Deus! Que horror!

IV
Era um sonho dantesco... O tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres , suspendendo às tetas


Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas, espantadas
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs.

E ri-se a orquestra, irônica, estridente...


E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Se o velho arqueja... se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,


A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece...
Outro, que de martírios embrutece,
Cantando, geme e ri

No entanto o capitão manda a manobra

E após, fitando o céu que se desdobra


Tão puro sobre o mar,

capítulo 2 • 55
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
" Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente...


E da roda fantástica a serpente
Faz doudas espirais!
Qual num sonho dantesco as sombras voam...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...

VI
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar! porque não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...

Quem são estes desgraçados


Que não encontram em vós,
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?... Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa musa,
Musa libérrima, audaz!

São os filhos do deserto


Onde a terra esposa a luz.
Onde voa em campo aberto

56 • capítulo 2
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados,
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão...
Homens simples, fortes, bravos...
Hoje míseros escravos,
Sem ar, sem luz, sem razão...

São mulheres desgraçadas


Como Agar o foi também
Que sedentas, alquebradas
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N' alma – lágrimas e fel.

Como Agar sofrendo tanto


Que nem o leite do pranto
Têm que dar para Ismael...

Lá nas areias infindas,


Das palmeiras no país,
Nasceram - crianças lindas,
Viveram - moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus...
Adeus! ó choça do monte!...
Adeus! palmeiras da fonte!...
Adeus! amores... adeus!...

Depois o areal extenso...


Depois, o oceano de pó...
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede
Ai! quanto infeliz que cede,

capítulo 2 • 57
E cai p’ra não mais s’erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,


A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d’amplidão...
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,


A vontade por poder...
Hoje... Cum’lo de maldade,
Nem são livres p’ra... morrer...
Prende-os a mesma corrente
- Férrea, lúgubre serpente -
Nas roscas da escravidão.
E assim roubados à morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoite... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!


Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar, porque não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?...
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...

58 • capítulo 2
VI
Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!...
Silêncio!... Musa! chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto...

Auriverde pendão de minha terra,


Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do Sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!


Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga,
Como um íris no pélago profundo!...
... Mas é infâmia demais... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

S. Paulo, 18 de Abril de 1868.

Disponível em: <http://www.culturabrasil.pro.br/navionegreiro.htm>. Acesso em: 30 jun.


2010.

Além de poemas de caráter social como o lido acima, Castro Alves produz
poemas sensuais, já que as mulheres do poeta dos escravos são reais.

capítulo 2 • 59
LEITURA
Adormecida
Uma noite eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.

'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste


Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte
Via-se a noite plácida e divina.

De um jasmineiro os galhos encurvados,


Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras
Iam na face trêmulos - beijá-la.

Era um quadro celeste!... A cada afago


Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe. . . a flor fugia. . .

Dir-se-ia que naquele doce instante


Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava ora afastava-se...


Mas quando a via despeitada a meio,
P'ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...

Eu, fitando esta cena, repetia


Naquela noite lânguida e sentida:
"ó flor! -tu és a virgem das campinas!
"Virgem!-tu és a flor da minha vida!.. ."
Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveO-
bras/02427230878819831754491/p0000002.htm>. Acesso em 30 jun 2010.

60 • capítulo 2
ATIVIDADES
01. Leia o excerto abaixo de Álvares de Azevedo e aponte a característica do Romantismo
que melhor se encaixa nele:

Se uma lágrima as pálpebras me inunda


Se um suspiro nos seios treme ainda
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios encostei a face linda!

a) o espiritualismo
b) o pessimismo
c) a confissão
d) a idealização da mulher
e) o sonho

02. A estrofe abaixo revela uma situação caracteristicamente romântica. Qual é a alternativa
que confirma isso?

Minh'alma é triste como a rola aflita


Que o bosque acorda desde o albor da aurora,
E em doce arrulo que o soluço imita
O morto esposo gemedora chora.

a) A natureza agride ao poeta e não dá amparo para os desenganos morosos.


b) O mundo exterior é responsável pelos estados de espírito que envolvem o eu poético.
c) A beleza do mundo é insuficiente para acabar com a solidão do poeta.
d) A morte tira do eu poético a alegria de viver.
e) Para o poeta a natureza traz a sensação da morte.

REFLEXÃO
Como vimos nesta unidade, a poesia romântica brasileira passou por diferentes momentos,
que classificamos didaticamente em gerações, cada qual com suas diversas características.

capítulo 2 • 61
Os autores são agrupados de acordo com as características predominantes em sua pro-
dução, dando destaque às diversas românticas, como pudemos perceber ao longo das mais
variadas leituras que realizamos nesta unidade.

LEITURA
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1995.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix.1995.
CANDIRO, A. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
CASTELLO. José Aderaldo. A literatura brasileira: Origens e Unidade. Vols 1 e 2. São Paulo: Edusp.
1999.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil: era romântica. v. 3. 7 ed. rev. e atual. São Paulo: Global,
2004.
MELO, E SOUZA, Antônio Candido. E CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira.
São Paulo: Difusão Européia do Livro. 1968.
NUNES, B. A visão romântica. In: GUINSBURG. J. O Romantismo. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva,
1993. p. 51-74.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira – seus fundamentos econômicos. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.

62 • capítulo 2
3
A reacão
anti-romântica
3. A reacão anti-romântica
Neste capítulo, estudaremos o realismo, um movimento literário que se desen-
volve junto com o naturalismo e o parnasianismo, fazendo oposição ao ideário
romântico, manifestando-se por meio da prosa e da poesia.

OBJETIVOS
Neste capítulo, nosso principal objetivo é introduzir os estudos sobre o realismo para que,
depois, você seja capaz de conhecer os outros dois movimentos que se desenvolvem junto
dele – naturalismo e parnasianismo - e que, ao final, saiba diferenciá-los.

3.1 Realismo

O ano 1881 é o marco inicial do realismo brasileiro, com a publicação das obras
Memórias Póstumas de Brás Cubas e O alienista, ambas de Machado de Assis.
O estudioso da literatura brasileira, Hênio Tavares, define o Realismo como:

(...) movimento estético que surgiu nos domínios da pintura entre os anos de 1848
e 1859, tendo como figura destacada a do francês Coubert. É, pois, nesse aspecto,
um movimento específico do século XIX. Mas o realismo, como o classicismo e o
romantismo, é uma tendência geral da alma humana e, por isso, atuante nas diversas
fases da existência.
(...)
Como movimento estético definido, torna-se indubitavelmente um acontecimento da
segunda metade do século XIX. E nesse sentido como um movimento em oposição
ao espírito romântico, cuja base sentimental e devaneadora, já se apresentava a um
mundo empolgado pelas novidades científicas e conquistas recentes, como algo pie-
gas e ingênuo e, consequentemente, ultrapassado ou caduco. (1974, p. 73)

Observe, aqui, um exemplar da pintura realista de Gustave Coubert:

64 • capítulo 3
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 3.1 – Bonjour, Monsieur Courbet, 1854. A pintura realista de Gustave Courbet.

Dentre as mais variadas características realistas, podemos destacar:

A OBJETIVIDADE
Quando analisa a realidade, o escritor realista assume uma posição cientificista ao
registrá-la objetivamente, como se produzisse um retrato fiel do que vê, não expres-
sando, por isso, qualquer julgamento de valor.
O propósito maior do escritor desse período é proporcionar o conhecimento da
realidade com vistas a promover sua modificação, por este motivo desprezavam a
monarquia, o clero e os ideais burgueses, defendendo com entusiasmo os ideais
republicanos e socialistas.
Neste ponto, a literatura realista transforma-se na denominada “arte engajada”, instru-
mento de denúncia social e combate às imposições do Estado.

O UNIVERSALISMO
Os temas não são mais particulares, mas universais, isto é, presentes na vida de
todos, sem distinção.

capítulo 3 • 65
O MATERIALISMO
É a negativa do sentimentalismo romântico, contraposição às questões de ordem meta-
física, voltado para a matéria. Dessa concepção surge a ideia do homem-engrenagem,
ou seja, o ser humano passa a ser visto como uma peça do mecanismo do universo.

Cabe aqui uma observação:

O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e


intelectual. Não é a consciência dos homens que determina a realidade; ao contrário,
é a realidade social que determina sua consciência. (Karl Marx)

A CONTEMPORANEIDADE
O escritor realista preocupa-se com o presente, por isso deixa de lado o nacionalismo
e o retorno ao passado histórico, tão trabalhados pelo romântico, na tentativa de en-
grandecer a nação brasileira. O realista está mais interessado em analisar a sociedade
tal como ela é, visando sua transformação.

O DETERMINISMO
É proveniente da Filosofia da arte, de Hypolite Taine, que preconiza três fatores deter-
minantes para a concepção de uma obra de arte, fruto do meio em que o escritor está
inserido, o momento histórico que vive e a raça a qual pertence.

O ANTIMONARQUISMO
Advindo do surgimento dos novos ideais fundados no republicanismo

66 • capítulo 3
ANTIBURGUESISMO
É a negativa da família burguesa como ponto central da formação da sociedade bra-
sileira, uma vez que demonstra a hipocrisia social e familiar proveniente das relações
adúlteras entre a esposa e o amigo do marido burguês.

O ANTICLERICISMO
Denúncia clara à hipocrisia das beatas e à corrupção dos padres que, na maioria das
vezes, revelavam apenas uma versão de sua multifacetada personalidade, capaz de
manipular aqueles que fossem mais ingênuos.

O OBJETIVISMO
o subjetivismo outrora valorizado pelos românticos cede lugar à visão externa do
homem, voltando-se, a partir de então, para as questões que se mostram diante e fora
de seu ser, ou seja, preocupa-se com a realidade cotidiana, objetiva, tal como ela é.

Alfredo Bosi destaca uma passagem dos estudos de Guy de Maupassant,


de que:

[...] se o romancista de ontem escolhia e narrava as crises da vida, os estados agudos


da alma e do coração, o romancista de hoje escreve a história do coração, da alma
e da inteligência no estado normal. Para produzir o efeito que ele persegue, isto é, a
emoção da simples realidade, e para extrair o ensinamento artístico que dela deseja
tirar, isto é, a revelação do que é verdadeiramente o homem contemporâneo diante de
seus olhos, ele deverá empregar somente fatos de uma verdade irrecusável e cons-
tante. (MAUPASSANT apud BOSI, 1975, p. 189)

Características tão marcadas não surgiram sozinhas, mas são fruto do mo-
mento histórico vivido por todos. Vejamos.

capítulo 3 • 67
3.2 Fundamentação do novo gosto

A fundamentação do novo gosto artístico-literário advém de um contexto so-


cial conflituoso, como destaca Alfredo Bosi ao reproduzir as palavras de Sílvio
Romero:

(...) Um bando de ideias novas esvoaçou sobre nós de todos os pontos do horizonte.
Hoje, depois de mais de trinta anos; hoje que são elas correntes e andam por todas as
cabeças, não têm mais o sabor de novidade, nem lembram mais as feridas que, para
as espalhar, sofremos os combatentes do grande decênio: Positivismo, evolucionis-
mo, darwinismo, crítica religiosa, naturalismo, cientificismo na poesia e no romance,
folclore, novos processos de crítica e de história literária, transformação da intuição
do Direito e da política, tudo então se agitou e o brado de alarma partiu da Escola do
Recife" (ROMERO, 1926, apud BOSI, 1975, p. 184).

No século XIX surgem, na Europa, o cientificismo e o materialismo em


substituição à visão de mundo espiritualista dos poetas românticos.
O cientificismo era visto como o meio capaz de solucionar todos os pro-
blemas da humanidade, estendendo-se os métodos científicos para todos os
campos da vida humana. Dessa forma, a ciência era considerada o único ins-
trumento eficiente e seguro para explicar a realidade como um todo e ainda
promover recursos para a geração de riquezas. Daí decorre sua estreita relação
com o materialismo, a partir do qual toda a organização da sociedade gira em
tono dos bens materiais, influenciando o modo de vida das pessoas.

CONCEITO
Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss, cientificismo é a “concepção filosófica
de matriz positivista que afirma a superioridade da ciência sobre todas as outras formas de
compreensão humana da realidade (religião, filosofia metafísica etc.), por ser a única capaz
de apresentar benefícios práticos e alcançar autêntico rigor cognitivo”.
Já o materialismo, se acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss, é a “doutri-
na que identifica, na matéria e em seu movimento, a realidade fundamental do universo, com
a capacidade de explicação para todos os fenômenos naturais, sociais e mentais. ”

68 • capítulo 3
Na década de 1850, mais precisamente em 1859, Charles Darwin, cientista
inglês, publicava A origem das espécies, obra científica que preconizava a sele-
ção natural como a causa da evolução das espécies, visto que os mais fortes se
sobrepunham aos mais fracos, mesmo quando se tratava de circunstância ex-
terna, visto que o meio ambiente era fator preponderante no condicionamento
dos seres, negando a origem divina até então aceita como inquestionável.
Como se pode notar, Darwin dá nova versão para a origem e evolução das
espécies, fundando uma nova concepção biológica chamada de darwinismo ou
evolucionismo.

CONCEITO
O Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss define o darwinismo como a “teoria evolucio-
nista fundamentada nas ideias do naturalista inglês Charles Robert Darwin (1809-1882),
na qual são propostos mecanismos baseados na seleção natural, para explicar a origem, a
transformação e a perpetuação das espécies ao longo do tempo.”

Neste mesmo período, surge uma nova corrente filosófica, denominada


positivismo, segundo a qual todos os fenômenos poderiam ser explicados por
meio da ciência, observando a realidade dos fatos através do método experi-
mental. Na literatura, de acordo com Bosi (1975, p. 188), “o escritor realista
tomará a sério as suas personagens e se sentirá no dever de descobrir-lhes a
verdade, no sentido positivista de dissecar os móveis do seu comportamento”.
Os adeptos do positivismo acreditavam no determinismo, teoria filosófica
que explicava os acontecimentos e as ações humanas a partir das leis físicas, quí-
micas e biológicas, como se tudo não passasse de brinquedos manipulados por
tais leis, sem que houvesse qualquer manifestação de vontade ou livre arbítrio.

CONCEITO
De acordo com a Enciclopédia Filosófica da Geosites:
“Chama-se determinismo a teoria filosófica segundo a qual todos os acontecimentos do
universo obedecem a leis naturais de tipo causal, ou seja, a natureza, a sociedade e a história
se subordinam a leis e causas necessárias. (...)

capítulo 3 • 69
Os deterministas radicais estendem o determinismo da natureza às ações humanas, que
seriam tão condicionadas e inevitáveis como os fenômenos naturais. (...)
A consequência mais importante do determinismo radical é a negação da possibilidade
de agir livremente, o que, segundo os defensores dessa teoria, não exime o homem da res-
ponsabilidade sobre seus atos, porquanto sempre será possível prever os resultados destes.
Esse conhecimento se transforma em nova causa da ação.(...).”
Disponível em: <http://br.geocities.com/sidereusnunciusdasilva/determinismo.htm.>
Acesso em: 6 jul. 2010.

O setor econômico demonstrava grande interesse pelo liberalismo, defen-


dendo a propriedade, a iniciativa privada e a autorregulação econômica através
do mercado, sem intervenção do Estado, reafirmando a posição materialista
frente ao mundo moderno.
No Brasil, a situação não era muito diferente, uma vez que os intelectuais da
Faculdade de Direito de Recife adotaram o positivismo como forma de explicar
os acontecimentos e solucionar os problemas pelos quais vínhamos passando
em vários campos, como o filosófico, o histórico e o político.
Nesta época, um montante de capital foi investido em atividades urbanas já
que o tráfico negreiro foi abolido por completo e começa a chegada de imigran-
tes europeus, principalmente italianos, para trabalharem na lavoura cafeeira
em substituição à mão de obra escrava. O cultivo do café prosperou com o au-
mento do consumo e consequente produção, promovendo o povoamento de
novas áreas territoriais.
Após a Guerra do Paraguai, funda-se o Partido Republicano e inicia-se a que-
da da monarquia de D. Pedro II, proporcionando uma nova cultura econômica,
independente e com vista ao mercado externo.
O setor de comunicação também encontra meios de expansão com a im-
plantação do telégrafo e o surgimento de jornais periódicos.
É nesse contexto histórico que surge o movimento realista, ocupado em re-
tratar de forma extremamente objetiva e racional a realidade brasileira, apre-
sentando grande preocupação com as questões de cunho social.
Por fim, podemos concluir que:

(...) a nova concepção de vida orientada pela realidade traz como enriquecimento
uma expansão dos assuntos, uma capacidade profunda de observação da natureza

70 • capítulo 3
e da vida psicológica e, consequentemente, um refinamento e uma diferenciação das pos-
sibilidades expressivas da língua. Mas essas conquistas de conteúdo e de forma só são ele-
vadas às esferas de alta arte, quando o contato com a realidade se une a uma viva espiritua-
lidade e às atitudes humanas que sobreviveram à época idealista. (BÖSCH, 1967, p. 395),

3.3 A emergência de uma nova estética

O realismo, como vimos, foi um movimento artístico e literário que tem base
a reação ao romantismo. Os participantes desse movimento rejeitaram o
artificialismo neoclássico e o subjetivismo romântico, pois reconheciam a
obrigação da arte de retratar a vida, com todas as dificuldades e tradições das
classes média e baixa. Desse modo, a nova estética não era guiada pelas amos-
tras do passado, como fizera anteriormente o romantismo. O presente sim
era seu foco.
Muitos são os escritores realistas,
©© WIKIMEDIA.ORG

dentre os quais destacaremos Raul


Pompéia, cujo nome completo é Raul
d'Ávila Pompéia, nascido em Angra
dos Reis, Rio de janeiro, a 12 de abril
de 1863.
Ainda criança, com apenas dez
anos, foi matriculado no internato do
professor Abílio César Borges, no Rio
de Janeiro, experiência que lhe rendeu
O Ateneu, publicado em 1888. Segundo
Araripe Junior (1966, p. 169), por causa
do internato, “Raul Pompéia deixou
penetrar na esfera da sua atividade psí-
quica um raio de pessimismo”.
Na opinião de Mário de Andrade,
O Ateneu pode ser considerado um
marco dentro da história do romance
Figura 3.2 – Frontispício da primeira edi-
brasileiro, além de constituir uma ver-
ção de O Ateneu.
dadeira obra prima.

capítulo 3 • 71
Não é possível negar, as provas são fortes, que neste livro de ficção o escritor vazou a
sua vingança contra o seu internamento no Colégio Abílio. O Ateneu é uma caricatura
sarcástica e, relativamente a Raul Pompéia dolorosíssima, da vida psicológica dos
internatos (ANDRADE, 2002, p.193).

Araripe Junior, em sua Obra Crítica, comenta sobre a composição do ro-


mance psicológico:

Como todo o livro que o artista se lembra de um dia escrever, convertendo a alma
na câmara escura onde se reflete, através de um pó sutil e dourado, a vida exterior,
a Crônica de Saudades de Raul Pompéia é um livro acre e vibrante; o seu contexto
compõe-se de diversas séries de estremecimentos, produzidos, em sua imaginação
recentemente cultivada, pelas recordações de uma vida vivida em sentimental adoles-
cência. (1966, p. 169)

COMENTÁRIO
"Crônica de Saudades" é o subtítulo de O Ateneu, de Raul Pompéia.

Tempos depois, foi matriculado no externato do Imperial Colégio Pedro II,


onde se destacou como orador ao completar o estudo de humanidades.
Mais tarde, foi para São Paulo e matricula-se na Faculdade de Direito, época
em que conhece os ideais republicanos e abolicionistas. Foi transferido para
Recife, onde se forma, em 1885.
Voltando ao Rio de Janeiro, recebe a nomeação para vários cargos públicos,
dentre eles o de diretor do Diário Oficial e da Biblioteca Nacional. Nesta época
também exerceu o magistério na Escola Nacional de Belas-Artes, e ainda cola-
borava em jornais.
Em 1892, trava duelo com Olavo Bilac, por questões de honra, época em que
se manifestam os sintomas da perturbação mental que o levariam ao suicídio,
em 25 de dezembro de 1895.
Em São Paulo (1881), iniciou seus estudos na faculdade de Direito, onde
teve contato com as ideias materialistas, positivistas e revolucionárias, ligadas
às causas abolicionista e republicana.

72 • capítulo 3
Pompeia, dono de uma mente fugaz, atacava a oligarquia por meio dos co-
mícios públicos. Por esse motivo, foi perseguido e isso resultou na reprovação
nos exames finais da faculdade. Resolveu mudar para Recife, para concluir a
faculdade. No entanto, lá manteve viva produção intelectual enviando suas coo-
perações para os jornais do Rio de Janeiro.
Em 1893, divulgou a caricatura O Brasil crucificado entre dois ladrões, es-
tes últimos retratando ingleses e portugueses, ocasionando alvoroço no círcu-
lo político.
Suas atitudes político-ideológicas fizeram com que Olavo Bilac o atacasse
publicamente por meio de um artigo jornalístico. Diante disso, Pompéia teve o
ímpeto de desafiá-lo para um duelo que, felizmente, não aconteceu.
Depois disso, um artigo de Luís Murat causa ao escritor grande desânimo
moral e, no dia de Natal, suicida-se com um tiro no peito.
Observe um trecho da carta que Araripe Júnior (1966, p. 173) enviou a João
Ribeiro, a respeito da morte de Raul Pompéia:

Não posso referir-me a essa desgraça sem tremer. Os amigos estamos inconsoláveis.
Pormenores, para quê? És psicólogo; avaliarás das causas. As imediatas não têm valor.
Todavia, imagina que no dia 14 de dezembro, o Raul jantava comigo; no dia 22 sepa-
rávamo-nos, depois de longa palestra, no ponto dos bondes; a 25 o nosso amiguinho
suicidava-se. Nada denunciava o perigo.
Foi pelo País a 26, pela manhã, que tive em casa a fatal notícia. Fiquei estúpido. Vesti-
me, corri à residência da família, e mal tive tempo de ver-lhe o rosto pálido e escavei-
rado, porquê o enterro ia sair.
Não pude acreditar que aquele rosto sem expressão fosse o mesmo do risonho, e
espirituoso rapaz, que ainda não havia dois dias palestrava sobre estética e política!
Não falemos mais nisto. Parece tudo um pesadelo.

Pompéia foi um grande romancista, contista, cronista, poeta, advogado,


jornalista.
Suas obras são:
 Uma Tragédia no Amazonas, 1880.
 Microscópicos, 1881.
 As Jóias da Coroa, 1882.
 O Ateneu, 1888.
 Canções sem Metro, 1900.

capítulo 3 • 73
Além de um incontável número de contos e crônicas esparsos. Essa diver-
sidade de produção justifica-se pelas próprias palavras de Pompéia, expressas
por Araripe Junior no excerto abaixo:

Raul Pompéia, pois, afirmava que de três fatores dependia o esplendor de uma ode,
de um romance, de um quadro: em primeiro lugar, o artista devia ter a intuição ex-
cepcional das leis da existência; em segundo, era indispensável que ele conhecesse
a fundo e possuísse, como numa escala cromática, todos os segredos das formas,
isto é, as leis da morfologia; finalmente, porque julgava mais que tudo fundamental,
aparecia a potência imaginativa capaz de fazer unidade a tudo isto, iluminando, colo-
rindo, exprimindo. Era a essa operação que ele dava o nome de metamorfose artística.
(ARARIPE JUNIOR, 1963, p. 261)

LEITURA
Leia o capítulo um de O Ateneu, de Raul Pompéia, disponível em: <http://www.dominiopubli-
co.gov.br/download/texto/bn000005.pdf>. Acesso em 3 mar. 2016
“Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta. ”
Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões
de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico,
diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados maternos
um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão
rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima
rigoroso. Lembramo-nos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a
mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora e não
viesse de longe a enfiada das decepções que nos ultrajam.
Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a
saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma
em todas as datas. Feita a compensação dos desejos que variam, das aspirações que se
transformam, alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica de
esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro
mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao crepúsculo — a paisagem é a mesma de
cada lado beirando a estrada da vida.
Eu tinha onze anos.
Freqüentara como externo, durante alguns meses, uma escola familiar do Caminho Novo,
onde algumas senhoras inglesas, sob a direção do pai, distribuíam educação à infância como

74 • capítulo 3
melhor lhes parecia. Entrava às nove horas, timidamente, ignorando as lições com a maior
regularidade, e bocejava até às duas, torcendo-me de insipidez sobre os carcomidos bancos
que o colégio comprara, de pinho e usados, lustrosos do contato da malandragem de não sei
quantas gerações de pequenos. Ao meio-dia, davam-nos pão com manteiga. Esta recordação
gulosa é o que mais pronunciadamente me ficou dos meses de externato; com a lembran-
ça de alguns companheiros — um que gostava de fazer rir à aula, espécie interessante de
mono louro, arrepiado, vivendo a morder, nas costas da mão esquerda, uma protuberância
calosa que tinha; outro adamado, elegante, sempre retirado, que vinha à escola de branco,
engomadinho e radioso, fechada a blusa em diagonal do ombro à cinta por botões de ma-
drepérola. Mais ainda: a primeira vez que ouvi certa injúria crespa, um palavrão cercado de
terror no estabelecimento, que os partistas denunciavam às mestras por duas iniciais como
em monograma.
Lecionou-me depois um professor em domicílio.
Apesar deste ensaio da vida escolar a que me sujeitou a família, antes da verdadeira pro-
vação, eu estava perfeitamente virgem para as sensações novas da nova fase. O internato!
Destacada do conchego placentário da dieta caseira, vinha próximo o momento de se definir
a minha individualidade. Amarguei por antecipação o adeus às primeiras alegrias; olhei triste
os meus brinquedos, antigos já! os meus queridos pelotões de chumbo! espécie de museu
militar de todas as fardas, de todas as bandeiras, escolhida amostra da força dos estados, em
proporções de microscópio, que eu fazia formar a combate como uma ameaça tenebrosa ao
equilíbrio do mundo; que eu fazia guerrear em desordenado aperto, — massa tempestuosa
das antipatias geográficas, encontro definitivo e ebulição dos seculares ódios de fronteira
e de raça, que eu pacificava por fim, com uma facilidade de Providência Divina, intervindo
sabiamente, resolvendo as pendências pela concórdia promíscua das caixas de pau. Força
era deixar à ferrugem do abandono o elegante vapor da linha circular do lago, no jardim, onde
talvez não mais tornasse a perturbar com a palpitação das rodas a sonolência morosa dos
peixinhos rubros, dourados, argentados, pensativos à sombra dos tinhorões, na transparência
adamantina da água...
Mas um movimento animou-me, primeiro estímulo sério da vaidade: distanciava-me da
comunhão da família, como um homem! Ia por minha conta empenhar a luta dos merecimen-
tos; e a confiança nas próprias forças sobrava. Quando me disseram que estava a escolha
feita da casa de educação que me devia receber, a notícia veio achar-me em armas para a
conquista audaciosa do desconhecido.
Um dia, meu pai tomou-me pela mão, minha mãe beijou-me a testa, molhando-me de
lágrimas os cabelos e eu parti.
Duas vezes fora visitar o Ateneu antes da minha instalação.

capítulo 3 • 75
Ateneu era o grande colégio da época. Afamado por um sistema de nutrido reclame,
mantido por um diretor que de tempos a tempos reformava o estabelecimento, pintando
-o jeitosamente de novidade, como os negociantes que liquidam para recomeçar com arti-
gos de última remessa; o Ateneu desde muito tinha consolidado crédito na preferência dos
pais, sem levar em conta a simpatia da meninada, a cercar de aclamações o bombo vistoso
dos anúncios.
O Dr. Aristarco Argolo de Ramos, da conhecida família do Visconde de Ramos, do Nor-
te, enchia o império com o seu renome de pedagogo. Eram boletins de propaganda pelas
províncias, conferências em diversos pontos da cidade, a pedidos, à substância, atochando a
imprensa dos lugarejos, caixões, sobretudo, de livros elementares, fabricados às pressas com
o ofegante e esbaforido concurso de professores prudentemente anônimos, caixões e mais
caixões de volumes cartonados em Leipzig, inundando as escolas públicas de toda a parte
com a sua invasão de capas azuis, róseas, amarelas, em que o nome de Aristarco, inteiro e
sonoro, oferecia-se ao pasmo venerador dos esfaimados de alfabeto dos confins da pátria.
Os lugares que os não procuravam eram um belo dia surpreendidos pela enchente, gratuita,
espontânea, irresistível! E não havia senão aceitar a farinha daquela marca para o pão do es-
pírito. E engordavam as letras, à força, daquele pão. Um benemérito. Não admira que em dias
de gala, íntima ou nacional, festas do colégio ou recepção da coroa, o largo peito do grande
educador desaparecesse sob constelações de pedraria, opulentando a nobreza de todos os
honoríficos berloques.
Nas ocasiões de aparato é que se podia tomar o pulso ao homem. Não só as conde-
corações gritavam-lhe do peito como uma couraça de grilos: Ateneu! Ateneu! Aristarco, todo
era um anúncio. Os gestos, calmos, soberanos, eram de um rei — o autocrata excelso dos si-
labários; a pausa hierática do andar deixava sentir o esforço, a cada passo, que ele fazia para
levar adiante, de empurrão, o progresso do ensino público; o olhar fulgurante, sob a crispação
áspera dos supercílios de monstro japonês, penetrando de luz as almas circunstantes — era
a educação da inteligência; o queixo, severamente escanhoado, de orelha a orelha, lembrava
a lisura das consciências limpas — era a educação moral. A própria estatura, na imobilidade
do gesto, na mudez do vulto, a simples estatura dizia dele: aqui está um grande homem... não
vêem os cavados de Golias?!... Retorça-se sobre tudo isto um par de bigodes, volutas maci-
ças de fios alvos, torneadas a capricho, cobrindo os lábios fecho de prata sobre o silêncio de
ouro, que tão belamente impunha como o retraimento fecundo do seu espírito, — teremos
esboçado, moralmente, materialmente, o perfil do ilustre diretor. Em suma, um personagem
que, ao primeiro exame, produzia-nos a impressão de um enfermo, desta enfermidade atroz
e estranha: a obsessão da própria estátua. Como tardasse a estátua, Aristarco interinamente
satisfazia-se com a afluência dos estudantes ricos para o seu instituto. De fato, os educandos
do Ateneu significavam a fina flor da mocidade brasileira.

76 • capítulo 3
A irradiação da réclame alongava de tal modo os tentáculos através do país, que não
havia família, de dinheiro, enriquecida pela setentrional borracha ou pela charqueada do sul,
que não reputasse um compromisso de honra com a posteridade doméstica mandar dentre
seus jovens, um, dois, três representantes abeberar-se à fonte espiritual do Ateneu.
Fiados nesta seleção apuradora, que é comum o erro sensato de julgar melhores famílias
as mais ricas, sucedia que muitas, indiferentes mesmo e sorrindo do estardalhaço da fama, lá
mandavam os filhos. Assim entrei eu.
A primeira vez que vi o estabelecimento, foi por uma festa de encerramento de trabalhos.
Transformara-se em anfiteatro uma das grandes salas da frente do edifício, exatamente
a que servia de capela; paredes estucadas de suntuosos relevos, e o teto aprofundado em
largo medalhão, de magistral pintura, onde uma aberta de céu azul despenhava aos cachos
deliciosos anjinhos, ostentando atrevimentos róseos de carne, agitando os minúsculos pés
e as mãozinhas, desatando fitas de gaza no ar. Desarmado o oratório, construíram-se ban-
cadas circulares, que encobriam o luxo das paredes. Os alunos ocupavam a arquibancada.
Como a maior concorrência preferia sempre a exibição dos exercícios ginásticos, solenizada
dias depois do encerramento das aulas, a acomodação deixada aos circunstantes era pouco
espaçosa; e o público, pais e correspondentes em geral, porém mais numeroso do que se
esperava, tinha que transbordar da sala da festa para a imediata. Desta ante-sala, trepa-
do a uma cadeira, eu espiava. Meu pai ministrava-me informações. Diante da arquibancada,
ostentava-se uma mesa de grosso pano verde e borlas de ouro. Lá estava o diretor, o mi-
nistro do império, a comissão dos prêmios. Eu via e ouvia. Houve uma alocução comovente
de Aristarco; houve discursos de alunos e mestres; houve cantos, poesias declamadas em
diversas línguas. O espetáculo comunicava-me certo prazer repeitoso. O diretor, ao lado do
ministro, de acanhado físico, fazia-o incivilmente desaparecer na brutalidade de um contraste
escandaloso. Em grande tenue dos dias graves, sentava-se, elevado no seu orgulho como
em um trono. A bela farda negra dos alunos, de botões dourados, infundia-me a consideração
tímida de um militarismo brilhante, aparelhado para as campanhas da ciência e do bem. A
letra dos cantos, em coro dos falsetes indisciplinados da puberdade; os discursos, visados
pelo diretor, pançudos de sisudez, na boca irreverente da primeira idade, como um Cendrillon
malfeito da burguesia conservadora, recitados em monotonia de realejo e gestos rodantes de
manivela, ou exagerados, de voz cava e caretas de tragédia fora de tempo, eu recebia tudo
convictamente, como o texto da bíblia do dever; e as banalidades profundamente lançadas
como as sábias máximas do ensino redentor. Parecia-me estar vendo a legião dos amigos
do estudo, mestres à frente, na investida heróica do obscurantismo, agarrando pelos cabelos,
derribando, calcando aos pés a Ignorância e o Vício, misérrimos trambolhos, consternados
e esperneantes.

capítulo 3 • 77
Um discurso principalmente impressionou-me. À direita da comissão dos prêmios, ficava
a tribuna dos oradores. Galgou-a firme, tesinho, O Venâncio, professor do colégio, a quarenta
mil-réis por matéria, mas importante, sabendo falar grosso, o timbre de independência, mes-
tiço de bronze, pequenino e tenaz, que havia de varar carreira mais tarde. O discurso foi o
confronto chapa dos torneios medievais com o moderno certame das armas da inteligência;
depois, uma preleção pedagógica, tacheada de flores de retórica a martelo; e a apologia da
vida de colégio, seguindo-se a exaltação do Mestre em geral e a exaltação, em particular, de
Aristarco e do Ateneu. “O mestre, perorou Venâncio, é o prolongamento do amor paterno, é o
complemento da ternura das mães, o guia zeloso dos primeiros passos, na senda escabrosa
que vai às conquistas do saber e da moralidade. Experimentado no labutar cotidiano da sa-
grada profissão, o seu auxílio ampara-nos como a Providência na Terra; escolta-nos assíduo
como um anjo da guarda; a sua lição prudente esclarece-nos a jornada inteira do futuro.
Devemos ao pai a existência do corpo; o mestre cria-nos o espírito (sorites de sensação), e
o espírito, é a força que impele, o impulso que triunfa, o triunfo que nobilita, o enobrecimento
que glorifica, e a glória é o ideal da vida, o louro do guerreiro, o carvalho do artista, a palma
do crente! A família, é o amor no lar, o estado é a segurança civil; o mestre, com amor forte
que ensina e corrige, prepara-nos para a segurança íntima inapreciável da vontade. Acima de
Aristarco — Deus! Deus tão-somente; abaixo de Deus — Aristarco.”
Um último gesto espaçoso, como um jamegão no vácuo, arrematou o rapto de eloqüência.
Eu me sentia compenetrado daquilo tudo; não tanto por entender bem, como pela facilida-
de da fé cega a que estava disposto. As paredes pintadas da ante-sala imitavam pórfiro verde;
em frente ao pórtico aberto para o jardim, graduava-se uma ampla escada, caminho do andar
superior. Flanqueando a majestosa porta desta escada, havia dois quadros de alto-relevo; à
direita, uma alegoria das artes e do estudo; à esquerda, as indústrias humanas, meninos nus
como nos frisos de Kaulbach, risonhos, com a ferramenta simbólica — psicologia pura do traba-
lho, modelada idealmente na candura do gesso e da inocência. Eram meus irmãos! Eu estava a
esperar que um deles, convidativo, me estendesse a mão para o bailado feliz que os levava. Oh!
que não seria o colégio, tradução concreta da alegoria, ronda angélica de corações à porta de
um templo, dulia permanente das almas jovens no ritual austero da virtude!
Por ocasião da festa da ginástica, voltei ao colégio.
O Ateneu estava situado no Rio Comprido, extremo ao chegar aos morros.
As eminências de sombria pedra e a vegetação selvática debruçavam sobre o edifício um
crepúsculo de melancolia, resistente ao próprio sol a pino dos meios-dias de novembro. Esta
melancolia era um plágio ao detestável pavor monacal de outra casa de educação, o negro
Caraça de Minas. Aristarco dava-se palmas desta tristeza aérea — a atmosfera moral da
meditação e do estudo, definia, escolhida a dedo para maior luxo da casa, como um apêndice
mínimo da arquitetura.

78 • capítulo 3
No dia da festa da educação física, como rezava o programa (programa de arromba,
porque o secretário do diretor tinha o talento dos programas) não percebi a sensação de
ermo tão acentuada em sítios montanhosos, que havia de notar depois. As galas do mo-
mento faziam sorrir a paisagem. O arvoredo do imenso jardim, entretecido a cores por mil
bandeiras, brilhava ao sol vivo com o esplendor de estranha alegria; os vistosos panos, em
meio da ramagem, fingiam flores colossais, numa caricatura extravagante de primavera; os
galhos frutificavam em lanternas venezianas, pomos de papel enormes, de uma uberdade
carnavalesca. Eu ia carregado, no impulso da multidão. Meu pai prendia-me solidamente o
pulso, que me não extraviasse.
Mergulhado na onda, eu tinha que olhar para cima, para respirar. Adiante de mim, um
sujeito mais próximo fez-me rir; levava de fora a fralda da camisa… Mas não era fralda; veri-
fiquei que era o lenço. Do chão subia um cheiro forte de canela pisada; através das árvores,
com intervalos, passavam rajadas de música, como uma tempestade de filarmônicas.
Um último aperto mais rijo, estalando-me as costelas, espremeu-me, por um estreito
corte de muro, para o espaço livre.
Em frente, um gramal vastíssimo. Rodeava-o uma ala de galhardetes, contentes no espa-
ço, com o pitoresco dos tons enérgicos cantando vivo sobre a harmoniosa surdina do verde
das montanhas. Por todos os lados apinhava-se o povo. Voltando-me, divisei, ao longo do
muro, duas linhas de estrado com cadeiras quase exclusivamente ocupadas por senhoras,
fulgindo os vestuários, em violenta confusão de colorido. Algumas protegiam o olhar com a
mão enluvada, com o leque, à altura da fronte, contra a rutilação do dia num bloco de nuvens
que crescia do céu. Acima do estrado balouçavam docemente e sussurravam bosquetes de
bambu, projetando franjas longuíssimas de sombra pelo campo de relva.
Algumas damas empunhavam binóculos. Na direção dos binóculos distinguia-se um
movimento alvejante. Eram os rapazes. “Aí vêm! disse-me meu pai; vão desfilar por diante
da princesa.” A princesa imperial, Regente nessa época, achava-se à direita em gracioso
palanque de sarrafos.
Momentos depois, adiantavam-se por mim os alunos do Ateneu. Cerca de trezentos; pro-
duziam-me a impressão do inumerável. Todos de branco, apertados em larga cinta vermelha,
com alças de ferro sobre os quadris e na cabeça um pequeno gorro cingido por um cadarço
de pontas livres. Ao ombro esquerdo traziam laços distintivos das turmas. Passaram a toque
de clarim, sopesando os petrechos diversos dos exercícios. Primeira turma, os halteres; se-
gunda, as maças; terceira, as barras.
Fechavam a marcha, desarmados, os que figurariam simplesmente nos exercícios gerais.
Depois de longa volta, a quatro de fundo, dispuseram-se em pelotões, invadiram o gramal
e, cadenciados pelo ritmo da banda de colegas, que os esperava no meio do campo, com

capítulo 3 • 79
a certeza de amestrada disciplina, produziram as manobras perfeitas de um exército sob o
comando do mais raro instrutor.
Diante das fileiras, Bataillard, o professor de ginástica, exultava envergando a altivez do
seu sucesso na extremada elegância do talhe, multiplicando por milagroso desdobramento
o compêndio inteiro da capacidade profissional, exibida em galeria por uma série infinita
de atitudes. A admiração hesitava a decidir-se pela formosura masculina e rija da plástica
de músculos a estalar o brim do uniforme, que ele trajava branco como os alunos, ou pela
nervosa celeridade dos movimentos, efeito elétrico de lanterna mágica, respeitando-se na
variedade prodigiosa a unidade da correção suprema.
Ao peito tilintavam-se as agulhetas do comando, apenas de cordões vermelhos em tran-
ça. Ele dava as ordens fortemente, com uma vibração penetrante de corneta que dominava
a distancia, e sorria à docilidade mecânica dos rapazes. Como oficiais subalternos, auxilia-
vam-no os chefes de turma, postados devidamente com os pelotões, sacudindo à manga
distintivos de fita verde e canutilho.
Acabadas as evoluções, apresentaram-se os exercícios. Músculos do braço, músculos do
tronco, tendões dos jarretes, a teoria toda do corpore sano foi praticada valentemente ali, pre-
cisamente, com a simultaneidade exata das extensas máquinas. Houve após, o assalto aos
aparelhos. Os aparelhos alinhavam-se a uma banda do campo, a começar do palanque da
Regente. Não posso dar idéia do deslumbramento que me ficou desta parte. Uma desordem
de contorções, deslocadas e atrevidas; uma vertigem de volteios à barra fixa, temeridades
acrobáticas ao trapézio, às perchas, às cordas, às escadas; pirâmides humanas sobre as
paralelas, deformando-se para os lados em curvas de braços e ostentações vigorosas de
tórax; formas de estatuária viva, trêmulas de esforço, deixando adivinhar de longe o estalido
dos ossos desarticulados; posturas de transfiguração sobre invisível apoio; aqui e ali uma
cabecinha loura, cabelos em desordem cacheados à testa, um rosto injetado pela inversão do
corpo, lábios entreabertos ofegando, olhos semicerrados para escapar à areia dos sapatos,
costas de suor, colando a blusa em pasta, gorros sem dono que caíam do alto e juncavam a
terra; movimento, entusiasmo por toda a parte e a soalheira, branca nos uniformes, queiman-
do os últimos fogos da glória diurna sobre aquele triunfo espetaculoso da saúde, da força,
da mocidade.
O Professor Bataillard, enrubescido de agitação, rouco de comandar, chorava de prazer.
Abraçava os rapazes indistintamente. Duas bandas militares revezavam-se ativamente, co-
municando a animação à massa dos espectadores. O coração pulava-me no peito com um
alvoroço novo, que me arrastava para o meio dos alunos, numa leva ardente de fraternidade.
Eu batia palmas; gritos escapavam-me, de que me arrependia quando alguém me olhava.
Deram fim à festa os saltos, os páreos de carreira, as lutas romanas e a distribuição
dos prêmios de ginástica, que a mão egrégia da Sereníssima Princesa e a pouco menos do

80 • capítulo 3
Esposo Augusto alfinetavam sobre os peitos vencedores. Foi de ver-se os jovens atletas aos
pares aferrados, empuxando-se, constringindo-se, rodopiando, rolando na relva com gritos
satisfeitos e arquejos de arrancada; os corredores, alguns em rigor, respiração medida, bei-
ços unidos, punhos cerrados contra o corpo, passo miúdo e vertiginoso; outros, irregulares,
bracejantes prodigalizando pernadas, rasgando o ar a pontapés, numa precipitação desen-
gonçada de avestruz, chegando estofados, com placas de poeira na cara, ao poste da vitória.
Aristarco arrebentava de júbilo. Pusera de parte o comedimento soberano que eu lhe
admirara na primeira festa. De ponto em branco, como a rapaziada, e chapéu-do-chile, distri-
buía-se numa ubiqüidade impossível de meio ambiente. Viam-no ao mesmo tempo a festejar
os príncipes com o risinho nasal, cabritante, entre lisonjeiro e irônico, desfeito em etiquetas
de reverente súdito e cortesão; viam-no bradando ao professor de ginástica, a gesticular com
o chapéu seguro pela copa; viam-no formidável, com o perfil leonino rugir sobre um discípulo
que fugira aos trabalhos, sobre outro que tinha limo nos joelhos, de haver lutado em lugar
úmido, gastando tal veemência no ralho, que chegava a ser carinhoso.
O figurino campestre rejuvenescera-o. Sentia as pernas leves e percorria celerípede a
frente dos estrados, cheio de cumprimentos para os convidados especiais e de interjetivos
amáveis para todos. Perpassava como uma visão de brim claro, súbito extinta para reapare-
cer mais viva noutro ponto. Aquela expansão vencia-nos; ele irradiava de si, sobre os alunos,
sobre os espectadores, o magnetismo dominador dos estandartes de batalha. Roubava-nos
dois terços da atenção que os exercícios. pediam; indenizava-nos com o equivalente em sur-
presas de vivacidade, que desprendia de si, profusamente, por erupções de jorro em roda, por
ascensões cobrejantes de girândola, que iam às nuvens, que baixavam depois serenamente,
diluídas na viração da tarde, que os pulmões bebiam. Ator profundo, realizava ao pé da letra,
a valer, o papel diáfano, sutil, metafísico, de alma da festa e alma do seu instituto.
Uma coisa o entristeceu, um pequenino escândalo. Seu filho Jorge, na distribuição dos
prêmios, recusara-se a beijar a mão da princesa, como faziam todos ao receber a medalha.
Era republicano o pirralho! Tinha já aos quinze anos as convicções ossificadas na espinha
inflexível do caráter! Ninguém mostrou perceber a bravura. Aristarco, porém, chamou o me-
nino à parte. Encarou-o silenciosamente e — nada mais. E ninguém mais viu o republicano!
Consumira-se naturalmente o infeliz, cremado ao fogo daquele olhar! Nesse momento as
bandas tocavam o hino da monarquia jurada, última verba do programa.
Começava a anoitecer, quando o colégio formou ao toque de recolher. Desfilaram acla-
mados, entre alas de povo, e se foram do campo, cantando alegremente uma canção escolar.
À noite houve baile nos três salões inferiores do lance principal do edifício e iluminação
no jardim.
Na ocasião em que me ia embora, estavam acendendo luzes variadas de Bengala diante
da casa. O Ateneu, quarenta janelas, resplendentes do gás interior, dava-se ares de encan-

capítulo 3 • 81
tamento com a iluminação de fora. Erigia-se na escuridão da noite, como imensa muralha de
coral flamante, como um cenário animado de safira com horripilações errantes de sombra,
como um castelo fantasma batido de luar verde emprestado à selva intensa dos romances
cavalheirescos, despertado um momento da legenda morta para uma entrevista de espectros
e recordações. Um jacto de luz elétrica, derivado de foco invisível, feria a inscrição dourada
ATHENÆUM em arco sobre as janelas centrais, no alto do prédio. A uma delas, à sacada,
Aristarco mostrava-se. Na expressão olímpica do semblante transpirava a beatitude de um
gozo superior. Gozava a sensação prévia, no banho luminoso, da imortalidade a que se jul-
gava consagrado. Devia ser assim: — luz benigna e fria, sobre bustos eternos, o ambiente
glorioso do Panteão. A contemplação da posteridade embaixo.
Aristarco tinha momentos destes, sinceros. O anúncio confundia-se com ele, suprimia-o,
substituía-o, e ele gozava como um cartaz que experimentasse o entusiasmo de ser verme-
lho. Naquele momento, não era simplesmente a alma do seu instituto, era a própria feição
palpável, a síntese grosseira do título, o rosto, a testada, o prestígio material de seu colégio,
idêntico com as letras que luziam em auréola sobre a cabeça. As letras, de ouro; ele, imortal:
única diferença.
Guardei, na imaginação infantil, a gravura desta apoteose com o atordoamento ofuscado,
mais ou menos de um sujeito partindo à meia noite de qualquer teatro, onde, em mágica
beata, Deus Padre pessoalmente se houvesse prestado a concorrer para a grandeza do
último quadro.
— Conheci-o solene na primeira festa, jovial na segunda; conheci-o mais tarde em mil
situações, de mil modos; mas o retrato que me ficou para sempre do meu grande diretor,
foi aquele — o belo bigode branco, o queixo barbeado, o olhar perdido nas trevas, fotografia
estática, na aventura de um raio elétrico.
É fácil conceber a atração que me chamava para aquele mundo tão altamente interes-
sante, no conceito das minhas impressões. Avaliem o prazer que tive, quando me disse meu
pai que eu ia ser apresentado ao diretor do Ateneu e à matrícula. O movimento não era
mais a vaidade, antes o legítimo instinto da responsabilidade altiva; era uma conseqüência
apaixonada da sedução do espetáculo, o arroubo de solidariedade que me parecia prender
à comunhão fraternal da escola. Honrado engano, esse ardor franco por uma empresa ideal
de energia e de dedicação premeditada confusamente, no calculo pobre de uma experiência
de dez anos.
O diretor recebeu-nos em sua residência, com manifestações ultra de afeto. Fez-se ca-
tivante, paternal; abriu-nos amostras dos melhores padrões do seu espírito, evidenciou as
faturas do seu coração. O gênero era bom sem dúvida nenhuma; que apesar do paletó de
seda e do calçado raso com que se nos apresentava, apesar da bondosa familiaridade com

82 • capítulo 3
que declinava até nós, nem um segundo o destituí da altitude de divinização em que o meu
critério embasbacado o aceitara.
Verdade é que não era fácil reconhecer ali, tangível e em carne, uma entidade outrora
da mitologia das minhas primeiras concepções antropomórficas; logo após Nosso Senhor,
o qual eu imaginara velho, feiíssimo, barbudo, impertinente, corcunda, ralhando por trovões,
carbonizando meninos com o corisco. Eu aprendera a ler pelos livros elementares de Aristar-
co, e o supunha velho como o primeiro, porém rapado, de cara chupada, pedagógica, óculos
apocalípticos, carapuça negra de borla, fanhoso, onipotente e mau, com uma das mãos para
trás escondendo a palmatória e doutrinando à humanidade o bê-á-bá.
As impressões recentes derrogavam o meu Aristarco; mas a hipérbole essencial do
primitivo transmitia-se ao sucessor por um mistério de hereditariedade renitente. Dava-me
gosto então a peleja renhida das duas imagens e aquela complicação imediata do paletó de
seda e do sapato raso, fazendo aliança com Aristarco II contra Aristarco I, no reino da fantasia.
Nisto afagaram-me a cabeça. Era Ele! Estremeci.
“Como se chama o amiguinho?” perguntou-me o diretor.
— Sérgio... dei o nome todo, baixando os olhos e sem esquecer o “seu criado” da estri-
ta cortesia.
— Pois, meu caro Sr. Sérgio, o amigo há de ter a bondade de ir ao cabeleireiro deitar
fora estes cachinhos... Eu tinha ainda os cabelos compridos, por um capricho amoroso de
minha mãe. O conselho era visivelmente salgado de censura. O diretor, explicando a meu
pai, acrescentou com o risinho nasal que sabia fazer: “Sim, senhor, os meninos bonitos não
provam bem no meu colégio...”
— Peço licença para defender os meninos bonitos... objetou alguém entrando.
Surpreendendo-nos com esta frase, untuosamente escoada por um sorriso, chegou a
senhora do diretor, D. Ema. Bela mulher em plena prosperidade dos trinta anos de Balzac,
formas alongadas por graciosa magreza, erigindo, porém, o tronco sobre quadris amplos, for-
tes como a maternidade; olhos negros, pupilas retintas, de uma cor só, que pareciam encher
o talho folgado das pálpebras; de um moreno rosa que algumas formosuras possuem, e que
seria também a cor do jambo, se jambo fosse rigorosamente o fruto proibido. Adiantava-se
por movimentos oscilados, cadência de minueto harmonioso e mole que o corpo alternava.
Vestia cetim preto justo sobre as formas, reluzente como pano molhado; e o cetim vivia com
ousada transparência a vida oculta da carne. Esta aparição maravilhou-me.
Houve as apresentações de cerimônia, e a senhora com um nadinha de excessivo de-
sembaraço sentou-se no divã perto de mim.
— Quantos anos tem? perguntou-me.
— Onze anos...

capítulo 3 • 83
— Parece ter seis, com estes lindos cabelos.
Eu não era realmente desenvolvido. A senhora colhia-me o cabelo nos dedos:
— Corte e ofereça à mamãe, aconselhou com uma carícia; é a infância que ali fica, nos
cabelos louros... Depois, os filhos nada mais têm para as mães.
O poemeto de amor materno deliciou-me como uma divina música. Olhei furtivamente
para a senhora. Ela conservava sobre mim as grandes pupilas negras, lúcidas, numa expres-
são de infinda bondade! Que boa mãe para os meninos, pensava eu. Depois, voltada para
meu pai, formulou sentidamente observações a respeito da solidão das crianças no internato.
— Mas o Sérgio é dos fortes, disse Aristarco, apoderando-se da palavra. Demais, o meu
colégio é apenas maior que o lar doméstico. O amor não é precisamente o mesmo, mas os
cuidados de vigilância são mais ativos. São as crianças os meus prediletos. Os meus esforços
mais desvelados são para os pequenos. Se adoecem e a família está fora, não os confio a um
correspondente... Trato-os aqui, em minha casa. Minha senhora é a enfermeira. Queria que o
vissem os detratores...
Enveredando pelo tema querido do elogio próprio e do Ateneu, ninguém mais pôde falar...
Aristarco, sentado, de pé, cruzando terríveis passadas, imobilizando-se a repentes ines-
perados, gesticulando como um tribuno de meetings, clamando como para um auditório de
dez mil pessoas, majestoso sempre, alçando os padrões admiráveis, como um leiloeiro, e as
opulentas faturas, desenrolou, com a memória de uma última conferência, a narrativa dos
seus serviços à causa santa da instrução. Trinta anos de tentativas e resultados, esclare-
cendo como um farol diversas gerações agora influentes no destino do país! E as reformas
futuras? Não bastava a abolição dos castigos corporais, o que já dava uma benemerência
passável. Era preciso a introdução de métodos novos, supressão absoluta dos vexames de
punição, modalidades aperfeiçoadas no sistema das recompensas, ajeitação dos trabalhos,
de maneira que seja a escola um paraíso; adoção de normas desconhecidas cuja eficácia ele
pressentia, perspicaz como as águias. Ele havia de criar... um horror, a transformação moral
da sociedade!
Uma hora trovejou-lhe à boca, em sangüínea eloqüência, o gênio do anúncio. Miramo-lo
na inteira expansão oral, como, por ocasião das festas, na plenitude da sua vivacidade práti-
ca. Contemplávamos (eu com aterrado espanto) distendido em grandeza épica — o homem
sanduíche da educação nacional, lardeado entre dois monstruosos cartazes. As costas, o seu
passado incalculável de trabalhos; sobre o ventre, para a frente, o seu futuro: a réclame dos
imortais projetos.

84 • capítulo 3
CONEXÃO
Leia a obra completa de O Ateneu, de Raul Pompéia, disponível em: <http://www.domi-
niopublico.gov.br/download/texto/bn000005.pdf>. Acesso em 3 jul. 2010.

Para concluir nosso panorama acerca de Raul Pompéia, citamos Bosi (1975,
p.203-204):

Raul Pompéia partilhava com Machado o dom de memoralista e a finura da observa-


ção moral, mas no uso desses dotes deixava atuar uma tal carga de passionalidade
que o estilo de seu único romance realizado, O Ateneu, mal se pode definir, em
sentido estrito, realista; e se já houve quem o dissesse impressionista, afetado pela
plasticidade nervosa de alguns retratos e ambientações, por outras razões se pode-
riam nele ver traços expressionistas, como o gosto do mórbido e do grotesco com que
deforma sem piedade o mundo adolescente.

ATIVIDADES
Leia o excerto do capítulo dois de O Ateneu, de Raul Pompéia, disponível em: <http://www.
dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000005.pdf>. Acesso em 3 mai. 2016:

Os companheiros de classe eram cerca de vinte; uma variedade de tipos que me divertia.
O Gualtério, miúdo, redondo de costas, cabelos revoltos, motilidade brusca e caretas de símio
- palhaço dos outros, como dizia o professor; o Nascimento, o bicanca, alongado por um mo-
delo geral de pelicano, nariz esbelto, curvo e largo como uma foice; o Álvares, moreno, cenho
carregado, cabeleira espessa e intonsa de vate de taverna, violento e estúpido, que Mânlio
atormentava, designando para o mister das plataformas de bonde, com a chapa numerada
dos recebedores, mais leve de carregar que a responsabilidade dos estudos; o Almeidinha,
claro, translúcido, rosto de menina, faces de um rosa doentio, que se levantava para ir à
pedra com um vagar lânguido de convalescente; o Maurílio, nervoso, insofrido, fortíssimo em
tabuada: cinco vezes três, vezes dois, noves fora, vezes sete?... Lá estava Maurílio, trêmulo,
sacudindo no ar o dedinho esperto... olhos fúlgidos no rosto moreno, marcado por uma pinta
na testa; o Negrão, de ventas acesas, lábios inquietos, fisionomia agreste de cabra, canhoto e
anguloso, incapaz de ficar sentado três minutos, sempre à mesa do professor e sempre enxo-

capítulo 3 • 85
tado, debulhando um risinho de pouca-vergonha, fazendo agrados ao mestre, chamando-lhe
bonzinho, que não correspondia com um sopapo, aventurando a todo ensejo uma tentativa
de abraço que Mânlio repelia, precavido de confianças; Batista Carlos, raça de bugre, valido,
de má cara, coçando-se muito, como se incomodasse a roupa no corpo, alheio às coisas da
aula, como se não tivesse nada com aquilo, espreitando apenas o professor para aproveitar
as distrações e ferir a orelha aos vizinhos com uma seta de papel dobrado. Às vezes a seta
do bugre ricochetava até à mesa de Mânlio. Sensação; suspendiam-se os trabalhos; rigoroso
inquérito. Em vão, que os partistas temiam-no e ele era matreiro e sonso para disfarçar.

Responda:
01. Como é feita a descrição dos personagens?

02. Qual é a intenção do narrador ao descrever?

REFLEXÃO
O realismo é um movimento literário do século XIX. Os escritores realistas tinham o objetivo
de fazer uma análise rigorosa e precisa do mundo, com vistas a proporcionar uma mudança
substancial nos campos social, econômico e político. Por isso, apoiavam-se no cientificismo,
no materialismo e no liberalismo dentre outras correntes científico-filosóficas da época.

LEITURA
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix.1995.
COUTINHO, Afrânio. Co-Direção: Eduardo de Faria Coutinho. A Literatura no Brasil. Relações e
perspectivas. São Paulo: Global 1999.
MELO, E SOUZA, Antônio Candido. E CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira.
São Paulo: Difusão Européia do Livro. 1968.
MOISS, Massaud. História da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix.1984.

86 • capítulo 3
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, M. Aspectos da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia. 2002.
ARARIPE JUNIOR, T. Obra crítica de Araripe Júnior. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e
Cultura: Casa de Rui Barbosa, 1963. v.3.
BÖSCH, B. (Org.). História da literatura alemã. São Paulo: Herder: Edusp, 1967.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix.1995.
CANDIDO, A. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
CASTELLO. José Aderaldo. A literatura brasileira: Origens e Unidade. Vols 1 e 2. São Paulo: Edusp.
1999.
MELO, E SOUZA, Antônio Candido. E CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira.
São Paulo: Difusão Europeia do Livro. 1968.
TAVARES, H. Teoria literária. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.

capítulo 3 • 87
88 • capítulo 3
4
Parnasianismo
e Simbolismo
4. Parnasianismo e Simbolismo
Neste capítulo, estudaremos o simbolismo e o parnasianismo, movimentos li-
terários que se desenvolvem unicamente por meio da poesia.
O parnasianismo brasileiro foi inaugurado em 1882, com a obra de Teófilo Dias
intitulada Fanfarras.
O Simbolismo chegou ao Brasil no ano de 1893, com a publicação das obras
Missal, escrita em prosa, e Broquéis, em forma de poesia, ambas de autoria de
Cruz e Sousa, que é considerado o maior autor simbolista.

OBJETIVOS
Nosso objetivo vem sendo complementado desde o início de nosso material, pois você já é
capaz de reconhecer os três movimentos que se desenvolvem juntos – realismo, naturalismo
e parnasianismo. Agora, passaremos ao estudo do parnasianismo para que você observe
suas especificidades.
Mais adiante, queremos que você adentre o mundo simbolista

4.1 A estética do parnasianismo

O parnasianismo recebe tal denominação devido ao retorno à mitologia clás-


sica grega. O monte Parnaso era o local consagrado ao deus da beleza, Apolo.
Surge na França, com o Parnaso Contemporâneo, um conjunto de antolo-
gias poéticas, inspiradas na cultura greco-romana clássica, retomando os deu-
ses mitológicos e as musas inspiradoras.
Há a valorização da “arte pela arte”, ou seja, os temas não passavam de mero
pretexto para a composição poética, buscando a perfeição formal acima de
tudo. Por isso, os parnasianos escreviam simplesmente pelo ato de escrever e
não demonstravam qualquer preocupação com temas sociais, políticos, econô-
micos ou religiosos, tão trabalhados na prosa realista e naturalista.
Os poetas parnasianos empregavam, em suas poesias, vocabulário erudi-
to, linguagem complexa, extremamente trabalhada para alcançar a perfeição

90 • capítulo 4
poética formal. Os temas são de ordem universal, despreocupados da realidade
contemporânea.
Embora se desenvolva meio ao realismo/naturalismo, o estilo parnasiano
possui característica própria derivada da busca da perfeição formal, provenien-
te do princípio parnasiano de “arte pela arte”, não apresentando sentimentos
pessoais ou preocupações sociais do artista. Dessa busca, resulta:
a) emprego de rimas raras;
b) uso de vocabulário erudito;
c) temática universalista, com descrições objetivas;
d) valorização do soneto, sinônimo de perfeição formal;
e) preocupação exagerada com a clareza das ideias;
f) emprego da ordem indireta;
g) retorno ao Classicismo com a valorização da mitologia greco-roma-
na clássica;
h) descritivismo exagerado, buscando a objetividade poética;
i) valorização de sensualidade feminina, chegando, muitas vezes,
ao erotismo;
j) esforço do artista em busca da perfeição poética, resultado de um tra-
balho artesanal;
k) impessoalidade, negando o subjetivismo do artista, que deve preocu-
par-se apenas com a perfeição técnica de sua obra;
l) impassibilidade do poeta que deve conter as emoções, distanciando-se
do sentimentalismo romântico de outrora.

4.2 A tríade parnasiana: Olavo Bilac, Raimundo Correa e Alberto de


Oliveira

4.2.1 Olavo Bilac

Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac nasceu no Rio de Janeiro, em 16 de


dezembro de 1865, filho de Braz Martins dos Guimarães Bilac e Delfina Belmira
dos Guimarães Bilac.

capítulo 4 • 91
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Figura 4.1 – Membros da Academia de Letras: Olavo Bilac é o quarto em pé, da esquerda
para a direita.

Quando jovem, matriculou-se na Faculdade de Medicina no Rio de Janeiro,


desistindo dos estudos no 4º ano do curso.
Matriculou-se no curso de Direito em São Paulo, ao qual se dedicou apenas
um ano.
Muito ligado ao jornalismo e à literatura, foi o fundador de vários jornais,
como A Cigarra, O Meio, A Rua.
Foi o substituto de Machado de Assis na seção "Semana" da Gazeta de
Notícias, onde ficou trabalhando durante anos.
Foi perseguido por Floriano Peixoto por participar ativamente de jornalis-
mo político nos primórdios da República, tendo que se esconder em Minas
Gerais. De volta ao Rio de Janeiro, foi preso.
Em 1898, passou a ser inspetor escolar do Distrito Federal, cargo que exer-
ceu até sua aposentadoria.
Bilac foi também um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, ca-
deira n. 15, cujo patrono foi Gonçalves Dias, e o Hino à Bandeira é de sua autoria.
Olavo Bilac recebe grande destaque dentro do parnasianismo porque de-
dica tempo ao culto da palavra e ao estudo da língua portuguesa. A repetição
de palavras, o polissíndeto e o assíndeto bem como metáforas e comparações
claras fazem parte dos recursos estilísticos empregados por Bilac.
Faleceu em 28 de dezembro de 1918, no Rio de Janeiro.

92 • capítulo 4
Suas obras são:
 Poesias, 1888.
 Crônicas e novelas, 1894.
 Crítica e fantasia, 1904.
 Conferências literárias, 1906.
 Dicionário de rimas, 1913.
 Tratado de versificação, 1910.
 Ironia e piedade, crônicas, 1916.

Obras póstumas:
 Tarde, 1919.
 Poesia, organização de Alceu Amoroso Lima, 1957.

LEITURA
Veja o culto à língua portuguesa no poema que recebe o título do próprio tema (1964, p.262):

Língua portuguesa
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura.


Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma


De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

em que da voz materna ouvi: "meu filho!",


E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

capítulo 4 • 93
LEITURA
Leia a poesia Via Láctea e desfrute do talento de Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac:

Via Láctea
"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto


A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!


Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!


Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".
Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000252.pdf>.
Acesso em 7 jul. 2010.

EXERCÍCIO RESOLVIDO
Análise do poema “Via Láctea” (Soneto XIII do livro Via Láctea)
É um soneto decassílabo, cuja linguagem é demarcada por certo coloquialismo e inti-
midade do eu-lírico com seu interlocutor (por exemplo em “tresloucado amigo”). Por conta
dessa postura mais intimista e subjetiva, pode-se dizer que o escritor se afasta um pouco da
objetividade típica do Parnasianismo. Faz parte da fase lírica de inspiração espiritualista de
Olavo Bilac. No poema, o eu-lírico dialoga com um interlocutor – o que é demarcado pelo uso

94 • capítulo 4
das aspas – que o interroga sobre sua capacidade de ouvir as estrelas, como já fica claro
logo na abertura do soneto.
Disponível em: <http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/literatura/melhores-poe-
mas-olavo-bilac-analise-obra-olavo-bilac-703745.shtm>. Acesso em: 8 mar. 2016.

4.2.2 Raimundo Correia


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Figura 4.2 – Raimundo Correia.

Conforme verificamos, Academia Brasileira de Letras traz informações so-


bre a biografia de Raimundo Correa, disponível em: <http://www.academia.org.
br/academicos/raimundo-correia/biografia>. Acesso em: 3 mar. 2016. Vejamos:
Raimundo da Mota de Azevedo Correia nasceu em 13 de maio de 1859, a
bordo do navio brasileiro São Luís, ancorado na baía de Mogúncia, Maranhão.
É filho de um dos descendentes dos duques de Caminha, o desembargador
José Mota de Azevedo Correia, e de Maria Clara Vieira da Silva.
Em 1877, matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo, onde Raul
Pompéia, Teófilo Dias, Eduardo Prado, Afonso Celso, Augusto de Lima,
Valentim Magalhães, Fontoura Xavier, Silva Jardim integrantes das áreas das
letras, do jornalismo e da política.
Colaborou em jornais e revistas, ainda como estudante. Escreveu seu pri-
meiro livro em 1879, Primeiros sonhos.

capítulo 4 • 95
Recém-formado foi nomeado promotor de justiça de São João da Barra. Em
1884, tornou-se juiz municipal e de órfãos e ausentes em Vassouras. Em 21 de
dezembro, casou-se com Mariana Sodré.
Em 1889, foi nomeado secretário da presidência da província do Rio de
Janeiro, no governo do conselheiro Carlos Afonso de Assis Figueiredo. Foi pre-
so após a proclamação da República, mas foi solto por causa de suas ideias re-
publicanas e nomeado juiz de direito em São Gonçalo de Sapucaí, no sul das
Minas Gerais.
Em 1892, foi nomeado diretor da Secretaria de Finanças de Ouro Preto.
Em 1897, no governo de Prudente de Morais, foi nomeado segundo secretá-
rio da Legação do Brasil em Portugal.
Em 1899, em Niterói, foi diretor e professor no Ginásio Fluminense de
Petrópolis.
Em 1900, voltou para o Rio de Janeiro, como juiz de vara cível, cargo que
ocupou até 1911.
Por motivos de saúde, partiu para Paris em busca de tratamento, onde veio
a falecer.
Seus restos mortais ficaram em Paris até 1920 até que foram transladados
para o Brasil, por iniciativa da Academia Brasileira de Letras, em que foi o fun-
dador da Cadeira n. 5, e depositados, em 28 de dezembro de 1920, no cemitério
de São Francisco Xavier.
É considerado um dos mais perfeitos poetas da língua portuguesa, demons-
trando estilo sóbrio, canto elegante dos temas, objetividade, com certa simpli-
cidade vocabular.
Correia forma com Alberto de Oliveira e Olavo Bilac a tríade parnasiana.

Suas obras são:


 Primeiros sonhos, 1879.
 Sinfonias, 1883.
 Versos e versões, 1887.
 Aleluias, 1891.
 Poesias, 1898, 1906, 1910 e 1916.
 Poesias completas, 2 volumes sob a organização de Múcio Leão, 1948.
 Poesia completa e prosa, organização de Valdir Ribeiro do Val, 1961.

96 • capítulo 4
LEITURA
Leia o poema mais conhecido de Raimundo Correia:

As pombas
Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada...
E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam,


Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,


Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...
Disponível em: <http://www.releituras.com/raicorreia_menu.asp>.
Acesso em: 7 jul. 2010.

Neste poema, há:


Culto à forma: soneto com versos decassílabos
Emprego de rimas raras: despertada/madrugada
Presença de vocabulário raro: nortada = vento frio
Fechamento com “chave de ouro”: E eles aos corações não voltam mais...

CURIOSIDADE
Em 1883, Raimundo Correia publicou as Sinfonias, obra em que se encontra o poema "As
pombas", que lhe rendeu o epíteto de "o Poeta das pombas".

capítulo 4 • 97
LEITURA
Correia descreve, com amargura e dor, as sensações:
Mal secreto
Se a cólera que espuma, a dor que mora
N'alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo


Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,


Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

(CORREIA, 1961, p.135-136)

4.2.3 Alberto de Oliveira


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Antônio Mariano Alberto de Oliveira,


nasceu em Palmital de Saquarema,
província do Rio de Janeiro, em 28 de
abril de 1859.
Publicou Canções Românticas",
em 1878, época em que trabalhava
como contribuinte do jornal Diário
com o pseudônimo Atta Troll.
Figura 4.3 – Caricatura do poeta Alberto de
Oliveira, feita pelo pintor Belmiro de Almeida
(Museu de Arte de São Paulo, São Paulo).

98 • capítulo 4
Forma com Olavo Bilac e Raimundo Correia a tríade do Parnasianismo
brasileiro.
Em 1884, formou-se em Farmácia, no Rio de Janeiro, ano em que publicou
"Meridionais".
Em 1897, foi membro-fundador da Academia Brasileira de Letras e em 1924,
eleito "Príncipe dos Poetas Brasileiros", num concurso da revista Fon-Fon.
Sua obra é marcada pelo emprego de hipérbato, polissíndeto, repetição de
palavras, bem como pela recorrência aos símbolos e alusões mitológicas, como
no poema Aparição nas águas.

LEITURA
Aparição nas águas

Vênus, a ideal pagã que a velha Grécia um dia


Viu esplêndida erguer-se à branca flor da espuma
– Cisne do mar iônio
Desvendado da bruma,
Visão filha talvez da ardente fantasia
De um cérebro de deus:
Vênus, quando eu te vejo a resvalar tão pura
Do largo oceano à flor,
Das águas verde-azuis na úmida frescura,
Vem dos prístinos céus,
Vem da Grécia, que é morta,
Abre do azul a misteriosa porta
E em ti revive, ó pérola do Amor!
(1959, p.21)

Morreu em Niterói no dia 19 de janeiro de 1937.


Suas obras são:
 Canções românticas, 1878.
 Meridionais, com introdução de Machado de Assis, 1884.
 Sonetos e poemas, 1885.
 Versos e rimas, 1895.

capítulo 4 • 99
 Poesias completas, 1ª série, 1900.
 Poesias, 2ª série, 1906.
 Poesias, 2 volumes, 1912.
 Poesias, 3 ª série, 1913.
 Poesias, 4 ª série, 1928.
 Poesias escolhidas, 1933.
 Póstumas, 1944.
 Poesia, organização de Geir Campos, 1959.
 Poesias completas de Alberto de Oliveira, organizadas por Marco
Aurélio Melo Reis em 3 volumes.

LEITURA
Leia o poema mais famoso de Alberto de Oliveira:

Vaso Grego
Esta de áureos relevos, trabalhada
De divas mãos, brilhante copa, um dia,
Já de aos deuses servir como cansada,
Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.

Era o poeta de Teos que o suspendia


Então, e, ora repleta ora esvasada,
A taça amiga aos dedos seus tinia,
Toda de roxas pétalas colmada.

Depois... Mas, o lavor da taça admira,


Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas
Finas hás de lhe ouvir, canora e doce,

Ignota voz, qual se da antiga lira


Fosse a encantada música das cordas,
Qual se essa voz de Anacreonte fosse.
Disponível em: <http://www.casaguilhermedealmeida.org.br/revista-reproducao/
ver-noticia.php?id=50>. Acesso em: 7 mar. 2016.

100 • capítulo 4
Em Vaso grego, percebemos que o eu-poético pratica a arte pela arte ao mes-
mo tempo que personifica o vaso, como que dotado de voz. O eu-poético desliza
de uma visão lírica do vaso para uma outra objetiva, que surge com a descrição.

LEITURA
Para saber mais, leia a obra Parnasianismo, de organização de Sanzio de Azevedo, da Editora
Global, de 2006.

4.3 A estética do simbolismo

Jean Moreás, poeta simbolista francês, divulgou em um manifesto os princí-


pios básicos do simbolismo, que se desdobram em suas características.

Poesia e música devem estar próximas, por isso usam-se muitos recursos fonéticos.
Na tentativa de sugerir infinitas sensações aos leitores, os simbolistas aproximam a
poesia da música. Não se trata de poesia com fundo musical, mas poesia com musi-
calidade em si mesma, através do manejo especial de ritmos da linguagem, estranhas
combinações de rimas, repetição intencional de certos fonemas, sujeição do sentido
de um vocábulo a sua sonoridade etc.
Disponível na <http://educaterra.terra.com.br/literatura/simbolismo/simbolis-
mo_5.htm>. Acesso em: 10 mar. 2016.

Assim, o simbolismo não deve nomear coisas, mas sugeri-las, usando a lin-
guagem figurada, insinuando... O uso de letras maiúsculas em substantivos e
adjetivos ajuda a construir a simbologia. Criam-se novas imagens, novas metá-
foras e símbolos. O caráter obscuro, ambíguo ou emotivo de algumas palavras
é acentuado. Isso tudo revela o repúdio simbolista à linguagem usual, aos luga-
res-comuns, clichês ...
A ideia deve ficar em segundo plano, e a forma em primeiro. Usa-se muito a
ambiguidade e a sinestesia, pois o que se quer é a pluralidade de interpretações.
Há o mistério, com situações vagas, místicas, confusas.

capítulo 4 • 101
CONCEITO
A sinestesia advém da pluralidade de percepções provenientes de diferentes sentidos, por
isso age no subconsciente e no inconsciente, uma vez que imagens e sensações não se
associam de modo racional.

Os simbolistas viam na arte uma síntese entre a percepção dos sentidos e a reflexão
intelectual, por isso buscavam revelar o outro lado do real. As obras simbolistas ora enfatizam
a pureza e a espiritualidade dos personagens, ora a perversão e a maldade do mundo.
Há uma espécie de retomada do subjetivismo pertencente ao Romantismo,
valorizando o abrigo fora do mundo real. Desse modo, agora a emoção suplanta
o cientificismo e o objetivismo do período parnasiano.

CURIOSIDADE
A arquitetura simbolista é caracterizada pela estrita coerência entre as formas sinuosas das
fachadas e a ondulante decoração dos interiores. É a chamada “construção honesta”, numa
estranha combinação de vigas e estruturas de ferro com cristal, a partir de duas tendências:
as formas sinuosas e orgânicas.

As principais características do simbolismo são:

é a prática, estudo e aplicação das leis que unem o homem à Natureza


MISTICISMO e a Deus. Pode ser definido como qualquer crença que admite a comu-
nicação dos homens com a entidade divina.
o simbolista tem uma vivência do mundo espiritual, meio fantasmagóri-
ESPIRITUALISMO co opondo-se ao materialismo.
o simbolista se interessa por questões individuais, particulares. Assim, o
SUBJETIVISMO poeta busca a realidade a partir do ponto de vista do indivíduo.
uso de recursos rítmicos, fonéticos, para aproximar a poesia da música.
MUSICALIDADE Há o emprego de aliterações (repetição de consoantes idênticas) e de
assonância (semelhança de sons vogais de palavras).
SUGESTÃO E IMPRECISÃO DA como dissemos anteriormente, o poeta simbolista quer apenas sugerir,
REALIDADE evocar os objetos, dando liberdade à interpretação.

102 • capítulo 4
são meios de evasão da realidade presente, permitindo o retorno ao
FANTASIA E IMAGINAÇÃO passado ou a fuga para o futuro.
é a relação subjetiva que se obtém das sensações advinda de sentidos
SINESTESIA diferentes.
USO DE MAIÚSCULAS para enfatizar ideias atribuindo-lhes significados diferentes dos usuais.

Vejamos, por exemplo, como tais características aparecem em:

Braços
Cruz e Souza
Braços nervosos, brancas opulências,
Brumais brancuras, fúlgidas brancuras,
Alvuras castas, virginais alvuras,
Lactescências das raras lactescências.

As fascinantes, mórbidas dormências


Dos teus abraços de letais flexuras,
Produzem sensações de agres torturas,
Dos desejos as mornas florescências.

Braços nervosos, tentadoras serpes


Que prendem, tetanizam como os herpes,
Dos delírios na trêmula coorte…

Pompa de carnes tépidas e flóreas,


Braços de estranhas correções marmóreas,
Abertos para o Amor e para a Morte!

• Misticismo: amor e morte = encontro com a pureza divina


• Espiritualismo: obsessão pela pureza
• Subjetivismo: relação sensual com a morte
• Sugestão e imprecisão da realidade: que caminha para o desejo de morte
• Fantasia e imaginação: evasão
• Sinestesia: brancura (cor), dormência (tato)...
• Uso de maiúsculas: Amor e Morte

capítulo 4 • 103
4.4 Cruz e Souza

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Figura 4.4 – Cruz e Sousa.

João da Cruz e Sousa, o mestre do simbolismo brasileiro, nasceu no dia 24 de


novembro de 1861, em Desterro, hoje cidade de Florianópolis, em Santa Catarina.
Foi protegido do Marechal Guilherme Xavier de Sousa e sua esposa, um dis-
tinto casal que não pode ter filhos, sendo educado na melhor escola secundária
da região. Mais tarde, com o falecimento de seus protetores, teve que abando-
nar os estudos e trabalhar.
Sofreu grande discriminação, sendo impedido de tomar o cargo de promo-
tor público em Laguna, Santa Catarina.
Em 1890, foi morar no Rio de Janeiro, onde conheceu a poesia simbolista
francesa e sobrevivia de suas colaborações em jornais
Após contrair tuberculose, mudou-se para a cidade de Sítio, em Minas
Gerais, lugar de bom clima para seu tratamento.
Faleceu em 19 de março de 1898, aos 36 anos de idade, vítima não só da
tuberculose como ditam alguns críticos, mas também “da pobreza, da incom-
preensão e do racismo”. Disponível em: <http://releituras.com/cruzesousa_
menu.asp>. Acesso em: 10 mar. 2016.
Suas obras são:
Poesia:
 Broquéis, 1893
 Faróis, 1900
 Últimos Sonetos, 1905
 O livro Derradeiro, 1961

104 • capítulo 4
Poemas em Prosa:
 Tropos e Fanfarras, 1885
 Missal, 1893
 Evocações, 1898
 Outras Evocações, 1961
 Dispersos, 1961

LEITURA
Vamos ler um dos poemas de Cruz e Souza?
Supremo Verbo
— Vai, Peregrino do caminho santo,
Faz da tu'alma lâmpada do cego,
Iluminando, pego sobre pego,
As invisíveis amplidões do Pranto.
Ei-lo, do Amor o Cálix sacrossanto!
Bebe-o, feliz, nas tuas mãos o entrego...
És o filho leal, que eu não renego,
Que defendo nas dobras do meu manto.

Assim ao Poeta a Natureza fala!


Enquanto ele estremece ao escutá-la,
Transfigurado de emoção, sorrindo...

Sorrindo a céus que vão se desvendando,


A mundos que vão se multiplicando,
A portas de ouro que vão se abrindo!
Disponível em: <http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/
ultimos_sonetos-cruz.htm#supremoverb>. Acesso em: 7 jul. 2010.

CONEXÃO
Leia a obra completa Últimos sonetos, Cruz e Sousa, Disponível http://www.literaturabrasi-
leira.ufsc.br/_documents/ultimos_sonetos-cruz.htm#supremoverb>. Acesso em: 7 jul. 2016.

capítulo 4 • 105
4.5 O caso Augusto dos Anjos

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Figura 4.5 – Augusto dos Anjos.

Augusto dos Anjos veio ao mundo na Paraíba do Norte, no dia 20 de abril de


1884.
Seus poemas giram em torno da morte, da morbidez e do pessimismo. Seus
versos apresentam vocábulos extraordinários para seu momento.

LEITURA
Vamos ler um dos poemas de Augusto dos Anjos?

Asa de Corvo
Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes
O telhado de nossa própria casa...

Perseguido por todos os reveses,


É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto à brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!

É com essa asa que eu faço este soneto


E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza...

106 • capítulo 4
É ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte — a costureira funerária —
Cose para o homem a última camisa!
Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn00054a.pdf>.
Acesso em: 25 abr. 2016.

Publicou quase toda a sua obra poética no livro Eu, obra que depois recebeu
outras poesias sob o título de Eu e Outros Poemas. Seus poemas veiculam a dor
humana ao estado dos elementos sobre-humanos e seu estilo é original em ter-
mos técnicos.
De acordo com os estudos de Duarte Neto (2000, p. 163 - 165), pode-se dizer
que (...) Augusto dos Anjos consegue também criar atmosferas de tensão, que
tendem a chocar, a causar forte impressão no leitor.

A hipótese genial do microzima


Me estrangulava o pensamento guapo,
E eu me encolhia todo como um sapo
Que tem um peso incômodo por cima!

Nas agonias do delirium-tremens,


Os bêbedos alvares que me olhavam,
Com os copos cheios esterilizavam
A substância prolífica dos semens!

Enterravam as mãos dentro das goelas,


E sacudidos de um tremor indômito
Expeliam, na dor forte do vômito,
Um conjunto de gosmas amarelas.

Iam depois dormir nos lupanares


Onde, na glória da concupiscência,
Depositavam quase sem consciência
As derradeiras forças musculares.

capítulo 4 • 107
Fabricavam destarte os blastodermas,
Em cujo repugnante receptáculo
Minha perscrutação via o espetáculo
De uma progênie idiota de palermas.

No excerto acima, o eu-poético censura os ébrios que se apresentam ao gozo


carnal nos bordéis e, assim, o poema emana um clima de tensão, desvairo, pe-
sadelo e agonia.
Augusto dos Anjos constitui um caso à parte na literatura brasileira, poden-
do ser considerado integrante do movimento pré-modernista, mas encerrar
sua obra dentro de um período pode se tronar um equívoco diante da profusão
de significados que pode assumir.
Morreu em Leopoldina, Minas Gerais, em 1914.
Algumas de suas obras são:
 A aeronave  A louca
 A árvore da serra  A luva
 A esmola de Dulce  A máscara
 A esperança  À mesa
 A dança da Psiquê  A minha estrela
 A floresta  A nau
 A fome e o amor  A noite
 A ideia  A obsessão do sangue
 A ilha de Cipango  A um carneiro morto
 A lágrima  A um epilético

ATIVIDADES
01. Como o Parnasianismo se caracterizou no Brasil?

02. Quais características parnasianas estão presentes no poema de Alberto de Oliveira a seguir?
Esta de áureos relevos, trabalhada
De divas mãos, brilhante copa, um dia,
Já de aos deuses servir como cansada,
Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.

108 • capítulo 4
Era o poeta de Teos que o suspendia
Então, e, ora repleta ora esvasada,
A taça amiga aos dedos seus tinia,
Toda de roxas pétalas colmada.

REFLEXÃO
O parnasianismo é uma tendência artística poética, que valoriza a “arte pela arte”, um exercí-
cio árduo em busca do belo estético. Já o simbolismo é uma estética fascinante porque faz
uma junção de fantasia, misticismo, sobrenatural, tudo permeado pelo forte subjetivismo de
nossos poetas.

LEITURA
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix.1995.
COUTINHO, Afrânio. Co-Direção: Eduardo de Faria Coutinho. A Literatura no Brasil. Relações e
perspectivas. São Paulo: Global, 1999.
MELO, E SOUZA, Antônio Candido. E CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira.
São Paulo: Difusão Européia do Livro. 1968.
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1984.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BILAC, Olavo. Poesias. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1964.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix.1995.
CORREIA, Raimundo. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1961.
COUTINHO, Afrânio. Co-Direção: Eduardo de Faria Coutinho. A Literatura no Brasil. Relações e
perspectivas. São Paulo: Global, 1999.
DUARTE NETO, Henrique. A poesia dissonante de Augusto dos Anjos In: Anuário de Literatura 8,
2000, p. 157-180.
OLIVEIRA, Alberto de. Poesias. In: Nossos Clássicos. Rio de Janeiro: Agir, 1959.

capítulo 4 • 109
110 • capítulo 4
5
A prosa
de ficção
5. A prosa de ficção
O naturalismo é uma tendência artística que se desenvolve dentro do movi-
mento realista do século XIX, cujo marco inicial é a publicação, em 1881, de O
mulato, o primeiro romance naturalista brasileiro, do escritor Aluísio Azevedo,
conforme salienta Bosi (1995):

(...) a primeira obra naturalista brasileira foi O Mulato de Aluísio Azevedo. Esse autor
é um romancista cuja obra pretendeu interpretar a realidade de uma camada social
marginalizada, em franco processo de degradação, quer pela força da pressão social,
quer pelo determinismo que o autor aceita como teoria válida.

Outro ponto importante é conhecer um pouco sobre o romance de tese na-


turalista. Para ilustrar, veremos a narrativa machadiana.
Por fim, adentraremos o mundo do palimpsesto e do esgarçamento do teci-
do escritural romântico.

OBJETIVOS
Nosso objetivo é que você entenda o processo:
• do romance de tese naturalista;
• do palimpsesto e
• do esgarçamento do tecido escritural romântico.

5.1 O naturalismo e o romance de tese

Segundo Antônio Cândido, em sua obra Presença da literatura brasileira, o na-


turalismo é um tipo de realismo preocupado em explicar cientificamente a con-
duta e o modo de ser de cada um. Nesse sentido, a vida humana é condicionada
por fatores biológicos e sociológicos. As pessoas da vida real e as personagens
das obras deste período são produtos biológico-sociais ou simples marionetes
de forças exteriores e preexistentes.
Pode-se perceber nas obras naturalistas uma verdadeira obsessão pelos
fatores hereditários, o que proporcionava a revelação de doenças e desvios de

112 • capítulo 5
caráter. Ainda, outros fatores eram condicionantes da personalidade como a
estrutura familiar, o sistema educacional e o elemento cultural. Por isso, os
escritores desta vertente se detinham nos costumes da época, na psicologia e
sexualidade humanas. Nesse ponto, o romance naturalista assume um caráter
experimental, recebendo a denominação de romance de tese ou romance expe-
rimental, já que instala a atuação das personagens de acordo com uma análi-
se científica.

O romancista naturalista [...] não precisava assumir a atitude do pregador, no seu intui-
to rebelde: bastava-lhe a transposição da realidade, na sua crueza, na sua brutalidade
e nos seus atos vis, para que daí se inferisse a necessidade da transformação social
que era o alvo da Revolução. (COUTINHO, 1986, p.74).

Como consequência de tudo isso, os romances naturalistas realizam uma


profunda análise social a partir da valorização do coletivo, quando se toma
como base os grupos humanos marginalizados.
Segundo Bosi (1995, p. 212):

(...) em O Cortiço, Aluísio atinou de fato com a fórmula que se ajustava ao seu talento:
desistindo de montar um enredo em função das pessoas, ateve-se à sequência de
descrições muito precisas onde cenas coletivas e tipos psicologicamente primários
fazem, no conjunto, do cortiço a personagem mais convincente do nosso romance
naturalista. Existe o quadro: dele derivam as figuras.

Há influência da teoria evolucionista de Charles Darwin, quando se mostra


a natureza animalizada do homem, que se deixa levar pelos instintos naturais
em detrimento da orientação racional.
Quanto ao naturalismo, é preciso considerar que:

Há aqueles que veem o Naturalismo como um Realismo a que se acrescentam certos


elementos, particularizando um estilo com identidade própria. Nessa linha, diz-se que,
enquanto o Realismo apresenta uma visão biológica, o Naturalismo tende à apresenta-
ção patológica do homem. A verdade é que a fronteira entre os dois é pouco nítida,

capítulo 5 • 113
havendo propostas, como a de Hauser, de se denominar Naturalismo à totalidade de
movimentos artísticos que a partir de 1830 manifestaram-se no Ocidente, e que seja re-
servado o conceito de Realismo para a filosofia oposta ao idealismo romântico. Portanto,
a filosofia é que seria realista; a arte seria naturalista. (CADEMARTORI, 1997, p. 46).

Vamos a uma breve revisão do contexto histórico.


No século XIX surgem, na Europa, o cientificismo e o materialismo em
substituição à visão de mundo espiritualista dos poetas românticos, gerando
várias correntes filosóficas tais como:

Era visto como o meio capaz de solucionar todos os proble-


mas da humanidade, estendendo-se os métodos científicos
para todos os campos da vida humana. Dessa forma, a
CIENTIFICISMO ciência era considerada o único instrumento eficiente e
seguro para explicar a realidade como um todo e ainda
promover recursos para a geração de riquezas.

Em 1859, Charles Darwin, cientista inglês, publicava


A origem das espécies, obra científica que preconizava a
seleção natural como a causa da evolução das espécies,
DARWINISMO OU visto que os mais fortes se sobrepunham aos mais fracos.
EVOLUCIONISMO Como se pode notar, Darwin dá nova versão para a origem
e evolução das espécies, fundando uma nova concepção
biológica chamada de darwinismo ou evolucionismo.

Uma nova corrente filosófica, segundo a qual todos os


fenômenos poderiam ser explicados por meio da ciên-
POSITIVISMO cia, observando a realidade dos fatos através do método
experimental.

Teoria filosófica que explicava os acontecimentos e as


DETERMINISMO ações humanas a partir das leis físicas, químicas e biológi-
cas, sem que houvesse livre arbítrio.

Concepção a partir da qual toda a organização da socieda-


MATERIALISMO de gira em tono dos bens materiais, influenciando o modo
de vida das pessoas.

114 • capítulo 5
O setor econômico demonstrava grande interesse por essa
corrente, defendendo a propriedade, a iniciativa privada
LIBERALISMO e a autorregulação econômica através do mercado, sem
intervenção do Estado, reafirmando a posição materialista
frente ao mundo moderno.

Vimos que, no Brasil, a situação não era muito diferente, uma vez que os
intelectuais da Faculdade de Direito de Recife adotaram o positivismo como
forma de se explicar os acontecimentos e solucionar os problemas pelos quais
vínhamos passando nos campos filosófico, histórico e político.
Nesta época, o tráfico negreiro fora abolido por completo. A parti daí, obser-
va-se a chegada de imigrantes europeus, principalmente italianos, para traba-
lharem na lavoura cafeeira em substituição à mão de obra escrava. O cultivo do
café prosperou com o aumento do consumo e consequente produção, promo-
vendo o povoamento de novas áreas territoriais e um montante de capital foi
investido em atividades urbanas.
Funda-se o Partido Republicano e inicia-se a queda da monarquia de D.
Pedro II, proporcionando uma nova cultura econômica, independente e com
vista ao mercado externo.
É nesse contexto histórico que surge o movimento naturalista, ocupado em
retratar de forma extremamente objetiva e racional a realidade brasileira, apre-
sentando grande preocupação com análise da sociedade em seus integrantes,
ou seja, preocupa-se com os indivíduos que dela fazem parte.
Embora o naturalismo seja uma tendência realista, o estilo naturalista apre-
senta algumas peculiaridades como:

É fator determinante do comportamento humano. Por


isso, as personagens naturalistas apresentam um
A HEREDITARIEDADE comportamento animalizado, movido predominante-
(FÍSICA E mente pelo instinto, sem referência a sua vida interior.
PSICOLÓGICA) Há ênfase na satisfação de necessidades instintivas,
aproximando o homem do animal.

a desordem mental e/ou emocional fica latente até que


O DESEQUILÍBRIO encontre condições para sua manifestação, decorrentes
de fatores biológicos e sociais.

capítulo 5 • 115
o escritor naturalista tem preferência por espaços
A MISERABILIDADE sociais miseráveis por serem a causa dos desequilíbrios
que quer revelar.

o escritor desse período revela situações conflitantes


A ANÁLISE CRÍTICA para promover a reflexão sobre a realidade social e
suas mazelas.

Deste modo, podemos afirmar que no naturalismo, há a análise externa dos


indivíduos e da sociedade como um todo, uma vez que os fatores biológicos e
sociais são determinantes nos pensamento, ações e sentimentos das persona-
gens. O homem é visto como mero produto da hereditariedade e do ambiente,
aproximando-se dos animais quando revelam seus vícios, taras, patologias e
anormalidades. É a consequência da visão determinista dessa época. Cândido
e Castelo salientam que:

O Naturalismo significa o tipo de Realismo que procura explicar cientificamente a


conduta e o modo de ser dos personagens por meio dos fatores externos, de natureza
biológica e sociológica, que condicionam a vida humana. Os seres aparecem então,
como produtos, como consequências de fatores preexistentes, que limitam a sua
responsabilidade e os tornam, nos casos mais extremos, verdadeiros joguetes das
condições. (1984, p. 286)

5.2 A narrativa de Machado de Assis


©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 5.1 – Homenagem do Banco Central em cédula de mil cruzados.

116 • capítulo 5
Seu nome completo era Joaquim Maria Machado de Assis, nasceu na cida-
de do Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839, filho de Francisco José de Assis,
operário mestiço de negro e português, e de D. Maria Leopoldina Machado de
Assis. O escritor perdeu a mãe muito cedo e foi criado pela mulata Maria Inês,
sua madrasta dedicada. Foi criado no morro do Livramento. Após a morte do
pai, em 1851, Maria Inês passa a trabalhar como doceira num colégio do bairro
e o menino passa a vendedor de doces.
Machado de Assis tinha saúde frágil, era epilético e gago, sabe-se pouco de
sua infância e início da juventude. Criado no morro do Livramento, ajudava na
missa da igreja da Lampadosa. O escritor não frequentava cursos regulares,
mas era empenhado em aprender com a ajuda de sua madrinha D. Maria José
de Mendonça Barroso, viúva do Brigadeiro e Senador do Império Bento Barroso
Pereira, proprietária da Quinta do Livramento.
Em 1855, com 16 anos, publicou na revista Marmota Fluminense, de
Francisco de Paula Brito, seu primeiro trabalho literário, o poema Ela. Aos 17
anos, tornou-se aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, escrevendo em
seu tempo livre. Conheceu Manuel Antônio de Almeida, autor de Memórias de
um sargento de milícias, diretor da tipografia, seu protetor.
Em 1858, empregou-se como revisor e colaborador da Marmota, revista da
Livraria Paula Brito, e também passou a fazer parte da sociedade lítero-humo-
rística Petalógica, fundada por Paula Brito.
Em 1859, iniciou suas publicações de obras românticas, era revisor e cola-
borava com o jornal Correio Mercantil.
Em 1860, passou a fazer parte da redação do jornal Diário do Rio de Janeiro,
convidado por Quintino Bocaiúva. Nesse mesmo ano, passou a escrever, como
crítico teatral, para a revista O Espelho bem como em A Semana Ilustrada, com
o pseudônimo de Dr. Semana e no Jornal das Famílias.
Em 1861, há a impressão de seu primeiro livro como tradutor: Queda que as
mulheres têm para os tolos
Em 1864, publicou seu primeiro livro de poesias Crisálidas.
Em 1867, foi nomeado ajudante do diretor de publicação do Diário Oficial.
Em 1869 morre seu amigo Faustino Xavier de Novais, e, menos de três meses
depois, casa-se com Carolina Augusta Xavier de Novais. O casamento feliz durou
35 anos até a morte de sua esposa, em 1904, marcada com o soneto Carolina.
Ressurreição foi seu primeiro romance publicado em 1872. Ano em que foi
nomeado para o cargo de primeiro oficial da Secretaria de Estado do Ministério
da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, o seu principal meio de subsistência.

capítulo 5 • 117
©© WIKIPEDIA
De 1874 a 1880, escreveu crônicas,
contos, poesias e romances para as re-
vistas O Cruzeiro, A Estação e Revista
Brasileira e folhetins para os jornais.
De 1881 a 1897, publica suas me-
lhores crônicas na Gazeta de Notícias.
Em 1881, Machado assume o
cargo de oficial de gabinete, publi-
cando Memórias Póstumas de Brás
Cubas, marcando o início do realis-
Figura 5.2 – Carolina. mo brasileiro.

É o fundador da cadeira nº 23 da Academia Brasileira de Letras, onde foi pre-


sidente até sua morte, ocorrida no Rio de Janeiro em 29 de setembro de 1908.
Enfim, Machado de Assis foi um grande cronista, contista, dramaturgo, jor-
nalista, poeta, novelista, romancista, crítico e ensaísta.
Suas obras são:
Antologias:
 Obras completas - em 31 volumes, 1936.
 Contos e crônicas, 1958.
 Contos esparsos, 1966.
 Contos: Uma Antologia – em 2 volumes, 1998.

Comédias:
 Desencantos, 1861.
 Tu, só tu, puro amor, 1881.

Contos:
 Contos Fluminenses,1870.
 Histórias da meia-noite, 1873.
 Papéis avulsos, 1882.
 Histórias sem data, 1884.
 Várias histórias, 1896.
 Páginas recolhidas, 1899.
 Relíquias de casa velha, 1906.

118 • capítulo 5
Peças teatrais:
 Queda que as mulheres têm para os tolos, 1861.
 Desencantos, 1861.
 Hoje avental, amanhã luva, 1861.
 O caminho da porta, 1862.
 O protocolo, 1862.
 Quase ministro, 1863.
 Os deuses de casaca, 1865.
 Tu, só tu, puro amor, 1881.

Poesias:
 Crisálidas, 1864.
 Falenas, 1870.
 Americanas, 1875.
 Poesias completas, 1901.

Romances:
 Ressurreição, 1872.
 A mão e a luva, 1874.
 Helena, 1876.
 Iaiá Garcia, 1878.
 Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881.
 Quincas Borba, 1891.
 Dom Casmurro, 1899.
 Esaú e Jacó, 1904.
 Memorial de Aires, 1908.

Obras póstumas:
 Crítica, 1910.
 Teatro coligido, 1910.
 Outras relíquias, 1921.
 Correspondência, 1932.
 A semana, 1914/1937.
 Páginas escolhidas, 1921.
 Novas relíquias, 1932.
 Crônicas, 1937.
 Contos Fluminenses - 2º. volume, 1937.
 Crítica literária, 1937.

capítulo 5 • 119
 Crítica teatral, 1937.
 Histórias românticas, 1937.
 Páginas esquecidas, 1939.
 Casa velha, 1944.
 Diálogos e reflexões de um relojoeiro, 1956.
 Crônicas de Lélio, 1958.
 Conto de escola, 2002.

ATENÇÃO
Você encontra estas informações biográficas sobre Machado de Assis e muitas outras em:
<http://www.releituras.com/machadodeassis_bio.asp>. Acesso em: 10 mar. 2016.

LEITURA
Leia agora o primeiro capítulo de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis:

Capítulo primeiro: óbito do autor


Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é,
se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja
começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a
primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto mas um defunto autor, para quem
a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo.
Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical
entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869,
na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era
solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos.
Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia - peneirava
uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles
fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferi. à beira de mi-
nha cova: "Vós, que o conhecestes, meus senhores vós podeis dizer comigo que a natureza
parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado
a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o
azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais ínti-
mas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado."

120 • capítulo 5
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim
que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered
country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego
como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou
dez pessoas, entre elas três senhoras, minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, a filha, um
lírio do vale -e. . . Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora.
Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as
parentas. É verdade padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar
pelo chão, convulsa. Nem o meu óbito era cousa altamente dramática... Um solteirão que
expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma
tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à
cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia
crer na minha extinção.
"Morto! morto!" dizia consigo.
E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o vôo des-
de o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, - a imaginação dessa
senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil...
Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando e me restituir aos primeiros anos. Agora,
quero morrer tranqüilamente metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas
dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de
uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro.
Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De
certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns
ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral,
e o corpo fazia-se-me planta, e pedra e lodo, e cousa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma
idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia
é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.

CONEXÃO
Leia a obra completa Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000167.pdf>.Acesso em: 5 mar. 2016.

capítulo 5 • 121
LEITURA
Agora que você já saboreou um pouco de Memórias Póstumas de Brás Cubas, experimente
o primeiro capítulo de O alienista, de Machado de Assis

Capítulo I - De como Itaguaí ganhou uma casa de Orates


As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o
Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal
e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil,
não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em
Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.
— A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.
Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência,
alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos
quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco
anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de
pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho.
Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de
primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente
vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas
prendas,—únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de fei-
ções, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os
interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte.
D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem
mofinos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos,
depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu
todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universi-
dades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial.
A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às
admoestações do esposo; e à sua resistência, — explicável, mas inqualificável, — devemos a
total extinção da dinastia dos Bacamartes.
Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou
inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe
chamou especialmente a atenção, — o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não
havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada,
ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particular-
mente a brasileira, podia cobrir-se de "louros imarcescíveis", — expressão usada por ele

122 • capítulo 5
mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo
convém aos sabedores.
— A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.
— Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila, e um dos seus
amigos e comensais.
A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas, tinha o de
não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova,
na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do bene-
fício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo
reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia
construir todos os loucos de Itaguaí, e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio,
que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou
a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se
desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A idéia de meter os loucos na mesma casa,
vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência e não faltou quem o insi-
nuasse à própria mulher do médico.
— Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um
passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.
D. Evarista ficou aterrada. Foi ter com o marido, disse-lhe "que estava com desejos", um
principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado
a certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a
intenção da esposa e redargüiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde
os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloqüência, que a maioria resol-
veu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o
tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil
achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir
o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de
um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia
quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultu-
ra. O escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um
dos vereadores, que não acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão
de um trabalho inútil.
— Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte não arranja nada.
Quem é que viu agora meter todos os doidos dentro da mesma casa?
Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado da licen-
ça começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele

capítulo 5 • 123
tempo; tinha cinqüenta janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os
hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os
doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem. A idéia pareceu-
lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vi-
gário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa frau-
de aliás pia, que o Padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice eminente.
A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira
vez apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e po-
voações próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para
assistir às cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os
parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser
tratados. D. Evarista, contentíssima com a glória do marido, vestiu-se luxuosamente, cobriu-se
de jóias, flores e sedas. Ela foi uma verdadeira rainha naqueles dias memoráveis; ninguém
deixou de ir visitá-la duas e três vezes, apesar dos costumes caseiros e recatados do século,
e não só a cortejavam como a louvavam; porquanto,—e este fato é um documento altamente
honroso para a sociedade do tempo, — porquanto viam nela a feliz esposa de um alto espírito,
de um varão ilustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores.
Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas; Itaguaí, tinha finalmente uma casa
de orates.

CONEXÃO
Leia a obra completa O alienista, de Machado de Assis, disponível em: <http://www.
dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000231.pdf>.Acesso em: 3 jul. 2010.

5.3 A poética do palimpsesto

O que é o cérebro humano, senão um palimpsesto imenso e natural? Meu cérebro é


um palimpsesto e o vosso também, leitor. Grandes camadas de idéias, de imagens, de
sentimentos, caíram sucessivamente sobre o vosso cérebro, com a mesma suavidade
da luz.
(Baudelaire, 2001, p. 188)

124 • capítulo 5
Para adentrarmos o estudo do palimpsesto, precisamos, primeiramente,
entender o que este termo designa. Para isso, recorremos ao Dicionário de ter-
mos literários, de Massaud Moisés (2004, p. 333):

O palimpsesto deriva do grego: pálin = novamente, psestos = raspado, apagado. Na


antiguidade, como o pergaminho e o couro eram materiais caros os escribas reuti-
lizavam diversas vezes os mesmos manuscritos colocando-os numa dissolução de
água de cal para assim os despojarem das primeiras escritas que eles continham. Tais
couros e manuscritos, depois de raspados e alisados com pedra pomes, eram aprovei-
tados várias vezes para novos escritos.

De acordo com E-dicionário de termos literários de Carlos Ceia (acesso em:


9 mar. 2016), palimpsesto é:

Suporte material de um texto que recebeu a escrita por mais do


que uma vez. Se bem que houvesse este hábito de reaprovei-
tamento do suporte já na Antiguidade (o palimpsesto começou
por ser um papiro corrigido), foi sobretudo na Idade Média, nos
séculos VII a IX, com a escassez e o custo elevado do perga-
minho, que se passaram a raspar as letras já escritas na pele
e não mais desejadas, ou a eliminar toda a tinta por meio de
um complexo método de lavagem que envolvia leite, esponja,
farinha ou cal e pedra pomes. Entre as causas que motivavam
a eliminação de um texto de forma a reutilizar o seu suporte
contam-se a falta de pertinência do conteúdo, a ininteligibilidade
da língua ou da grafia em que estava escrito, a progressiva dete-
rioração do suporte e a existência de uma cópia equivalente. No
Renascimento, com o culto do mundo Antigo, e depois no sécu-
lo XVII, com o nascimento dos estudos paleográficos, começa-
ram a desenvolver-se procedimentos para reavivar no palimp-
sesto o texto desaparecido (scriptio inferior). Os procedimentos
começaram por ser químicos, mas revelaram-se destrutivos
para a materialidade do suporte, pelo que deram lugar, hoje em
dia, aos procedimentos ópticos.

Figura 5.3 – Pergaminho.

capítulo 5 • 125
Trazendo o termo para o contexto literário, recorremos a Genette em sua
obra Palimpsestos: a literatura de segunda mão:

Um palimpsesto é um pergaminho cuja primeira inscrição foi raspada para se traçar


outra, que não a esconde de fato, de modo que se pode lê-la por transparência, o
antigo sob o novo. Assim, no sentido figurado, entenderemos por palimpsestos (mais
literalmente hipertextos), todas as obras derivadas de uma outra obra anterior, por
transformação ou por imitação. Dessa literatura de segunda mão, que se escreve atra-
vés da leitura o lugar e a ação no campo literário geralmente, e lamentavelmente, não
são reconhecidos. Tentamos aqui explorar esse território. Um texto pode sempre ler
um outro, e assim por diante, até o fim dos textos. Este meu texto não escapa à regra:
ele a expões e se expõe a ela. Quem ler por último lerá melhor.

Como se pode inferir pela citação, Genette usa o termo palimpsesto para de-
signar o hipertexto, ou seja, uma obra que deriva de “uma outra obra anterior,
por transformação ou por imitação”. Desse modo, podemos expandir nossa in-
terpretação já que

Todo texto pode ser citado e, portanto, tornar-se citação, mas a citação é uma prática
literária definida, que transcende evidentemente cada uma de suas performances
e que tem suas características gerais; todo enunciado pode ser investido de uma
função paratextual, mas o prefácio é um gênero; a crítica (metatexto) é evidentemente
um gênero; somente o arquitexto, certamente, não é uma categoria, pois ele é, se
ouso dizer, a própria classificação (literária) [...] E a Hipertextualidade? Ela também é
um aspecto universal da literalidade: é próprio da obra literária que, em algum grau e
segundo as leituras, evoque alguma outra e, nesse sentido, todas as obras são hiper-
textuais. (GENETTE, 2010, p. 18)

Relendo Memórias póstumas de Brás Cubas, percebemos que o narrador


faz uso de uma forma de palimpsesto quando menciona Moisés e o Pentateuco
- em seu Capítulo primeiro: óbito do autor - para justificar o tipo de narrativa
que irá construir a respeito de sua própria vida: “(...) Moisés, que também con-
tou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este
livro e o Pentateuco.”

126 • capítulo 5
Em Memórias póstumas de Brás Cubas, o narrador propõe ao leitor que
entenda o processor da narrativa, mediante a posição do autor. Cabe aqui a
pergunta:

Como, por exemplo, se estabelece o consenso sobre a excelência de um autor? Seria


por que o horizonte de expectativas dos leitores se ajusta com o horizonte possibilita-
do pelo texto, numa espécie de contrato natural, ou por que instâncias de poder espe-
cífico – i.e., do poder literário, – se não mesmo as inclinações políticas da sociedade
se manifestam e/ou orientam em favor da concessão daquele prêmio? (COSTA LIMA,
1979, p. 16)

E quando se fala em leitura, é preciso levar em conta que, além da relação


existente entre os textos, devemos considerar também a bagagem sociocultural
daquele que produz a obra, dialogando com outras fontes, uma vez que:

toda situação redacional funciona como um hipertexto em relação à precedente, e


como um hipotexto em relação à seguinte. Do primeiro esboço à última correção, a
gênese de um texto é um trabalho de auto-hipertextualidade.(GENETTE, 2010, p.40)

Se considerarmos que algum dos leitores de Machado de Assis não seja


adepto a nenhuma religião, totalmente afastado de qualquer referência à
Bíblia, podemos afirmar que ele não poderá fazer a ligação semântica entre o
elemento citado e o primário.
Chegamos, então, à noção de intertextualidade:

(...) todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transfor-
mação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade instala-se a de
intertextualidade, e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla” (KRISTEVA,
2005, p. 68).

capítulo 5 • 127
Como se vê, estamos trabalhando com os aspectos da textualidade,

(...) todo texto pode ser citado e, portanto, tornar-se citação, mas a citação é uma
prática literária definida, que transcende evidentemente cada uma de suas performan-
ces e que tem suas características gerais; todo enunciado pode ser investido de uma
função paratextual, mas o prefácio (diríamos de bom grado o mesmo do título) é um
gênero; a crítica (metatexto) é evidentemente um gênero; somente o arquitexto, certa-
mente, não é uma categoria, pois ele é, se ouso dizer, a própria classificação (literária)
(...).(GENETTE, 2010, p.40)

Relembrando o exemplo retirado da obra de Machado de Assis, a própria


história é formada por elementos de intertextualidade com a Bíblia – Moisés e
o Pentateuco, e até mesmo com outras obras do mesmo autor.
Isso pode se justificar pelo fato do autor se preocupar com o passado como
algo que aconteceu e merece ser privilegiado como construção. Segundo Costa
Lima (2006, p. 155):

embora a mímesis se mostre na atividade historiográfica, em decorrência de o seu


agente sentir, reagir e pensar o mundo, a partir do lugar que nele ocupa, essa res-
posta ao mundo é menos uma mímesis como princípio de construção do que como
inevitabilidade; [...] tanto mais viva quanto menos a atividade historiográfica dispõe de
conceitos.

5.4 O esgarçamento do tecido escritural romântico

Diante do que estudamos ao longo de nosso livro, pudemos verificar a impor-


tância do Romantismo como movimento literário que abrange todos os aspec-
tos da cultura e da sociedade, aparecendo, primeiramente, como expressão da
sociedade burguesa, tendo no romance o gênero de expressão.
Reconhecido isso, percebemos que o tecido escritural romântico não fica
preso aos limites da escola romântica, mas sofre um esgarçamento tal que ex-
trapola os limites daquela época, chegando a perpassar outras escolas até che-
gar aos dias de hoje.

128 • capítulo 5
Como “tecido escritural romântico” devemos entender a obra de ficção em
prosa, que engloba o romance, a novela e o conto. E como “esgarçamento” en-
tendemos que é uma espécie de alargamento a partir do qual tecido escritural
romântico se expande de tal modo que não mais é possível voltar à sua forma
original. Daí resultam os mais variados tipos de romance.
Para ilustrar melhor estes conceitos, vamos retomar os estudos de Antônio
Cândido em sua Presença da literatura brasileira (1992). Como ressalta, o ro-
mance, a novela e o conto são os gêneros preferidos pelo romantismo, cujas
características são:
• Descrição de costumes e da cor local de forma objetiva;
• Natureza e sentimentos das personagens em comunhão com as situa-
ções dramáticas;
• Nobreza de caráter versus vilania;
• Maniqueísmo, com vitória do bem sobre o mal.

Como se pode notar, tais características se mantêm até hoje, ultrapassando


as barreiras do tempo e do espaço, ainda mais porque o romance proporciona
uma ilusão de algo verdadeiro, que foi real e aconteceu. Isso é o que se chama
de verossimilhança no âmbito literário.
Segundo Bosi (1995, p. 187):

A coexistência de um clima de ideias liberais e uma arte existencialmente negati-


va pode parecer um paradoxo, ou, o que seria mortificante, um erro de enfoque do
historiador. Mas o contraste está apenas na superfície das palavras: a raiz comum
dessas direções é a postura incômoda do intelectual em face da sociedade tal como
esta se veio configurando a partir da Revolução Industrial. Agredindo na vida pública
o status quo, ele é ainda um rebelde e um protestatário, como foram entre nós, Raul
Pompéia, Aluísio Azevedo, Adolfo Caminha e o Machado jovem; mas, introjetando-o
nos meandros de sua consciência, retificando como lei natural e como seleção dos
mais fortes, ele acaba depositário de desencantos e, o mais das vezes, conformista. O
apelo ao destino, recorrente em grandes naturalistas europeus [...], deve ser visto à luz
dessa dialética de revolta e impotência a que tantas vezes se tem reduzido a condição
do escritor no mundo contemporâneo.

capítulo 5 • 129
Por meio das características acima citadas, percebemos que há um esgar-
çamento do tecido escritural romântico já que a narrativa do romance pode
assumir uma visão idealizada da realidade ou a denúncia do social, com perso-
nagens mostrados de forma objetiva ou em termos de sua formação psíquica....
Por isso, é que temos muitas formas de construção do tecido escritural.
Entendendo o processo de esgarçamento do tecido escritural romântico,
chegamos aos mais variados tipos de romance:

que analisa virtudes e defeitos das personagens de acordo com a socie-


ROMANCE DE TESE dade em que se inserem;
próximo às antigas histórias de capa e espada, com muito suspense e
ROMANCE HISTÓRICO um final vingativo, momento em que o vilão recebe a sua punição;
ROMANCE DE MISTÉRIO com elementos místicos, fantasmagóricos e de surpresas;
que retrata a vida contemporânea em sociedade, com todas as suas
ROMANCE SOCIAL implicações e mazelas, podendo funcionar como a “arte engajada” do
realismo;
que registra a vida emocional das personagens, podendo assumir um
ROMANCE SENTIMENTAL tom confessional;
que narra a vida interior das personagens com sonhos, ideais e elemento
ROMANCE PSICOLÓGICO próprios da psiquê humana;
que retrata a vida nas diversas regiões do país, principalmente relaciona-
ROMANCE REGIONALISTA dos ao campo, sertão ou cidades do interior;
ROMANCE EPISTOLAR que pressupõe a troca de cartas entre personagens;

... e ainda muitos outros.

Observando o rol de romances acima, entendemos o porquê esgarçamen-


to do qual tecido escritural romântico, ou seja, o romance como forma de ex-
pressão máxima do Romantismo se expande a ponto de ganhar muitas formas,
adequar-se a vários temas e funcionar como instrumento literário de qualquer
movimento artístico, o que justifica sua permanência entre nós, até hoje.
Neste capítulo, estudamos um pouco sobre Machado de Assis, um dos
maiores nomes quando se fala em escritura de romance. Cândido (1994, p. 300)
salienta que Machado de Assis:
(...) ao colocar-se na posição dos romancistas que se preocupam com a
vida carioca, com paisagem física e social do Rio de Janeiro, supera as limita-
ções locais (...) [e] confere ao romance brasileiro, de fato, a medida maior da
sua universalidade.

130 • capítulo 5
ATIVIDADES
01. Dos excertos abaixo, dois deles não possuem enfoque naturalista. Identifique-os:
a) Às esquinas, nas quitandas vazias, fermentava um cheiro acre de sabão da terra
e aguardente.
b) ... as peixeiras, quase todas negras, muito gordas, o tabuleiro na cabeça, rebolando os
grossos quadris trêmulos e as tetas opulentas.
c) Os cães, estendidos pelas calçadas, tinham uivos que pareciam gemidos humanos.
d) ... batiam-lhe com a biqueira do chapéu nos ombros e nas coxas, experimentando-lhes o
vigor da musculatura, como se estivesse a comprar cavalos.
e) À porta dos leilões aglomeravam-se os que queriam comprar e os simples curiosos.
f) Viam-se deslizar pela praça os imponentes e monstruosos abdomes dos capitalistas.
g) ... viam-se cabeças escarlates e descabeladas, gotejando suor por debaixo do chapéu
de pêlo.
h) O quitandeiro, assentado sobre o balcão, cochilava a sua preguiça morrinhenta, acari-
ciando o seu imenso e espalmado pé descalço.
i) A Praia Grande, a Rua da Estrela contrastavam todavia com o resto da cidade, porque
era aquela hora justamente a de maior movimento comercial.
j) ... uma preta velha, vergada por imenso tabuleiro de madeira, sujo, seboso, chio de san-
gue e coberto por uma nuvem de moscas...

02. Leia o excerto abaixo, extraído do primeiro capítulo de Memórias Póstumas de Brás
Cubas, de Machado de Assis, para responder às questões abaixo:

Capítulo primeiro: óbito do autor


Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é,
se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja
começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a
primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto mas um defunto autor, para quem
a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo.
Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical
entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869,
na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era
solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos.
Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia - peneirava

capítulo 5 • 131
uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles
fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferi à beira de minha
cova: "Vós, que o conhecestes, meus senhores vós podeis dizer comigo que a natureza pa-
rece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a
humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul
como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas
entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.”

a) O autor faz uso da metalinguagem, com o objetivo de comentar e refletir criticamente o


próprio ato de escrever, transformando, por conseqüência, a narrativa em metaliteratura.
Explique como esse processo se dá e justifique a sua resposta com trechos do texto
em análise.
b) Machado de Assis possui uma visão crítica com um olhar irônico diante da sociedade de
sua época. Justifique tal afirmação com trechos do texto em análise.

MULTIMÍDIA
Assista aos filmes:
Memórias Póstumas de Brás Cubas,
Dom, versão moderna do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis
Azyllo muito louco, adaptação livre do conto O alienista, de Machado de Assis

REFLEXÃO
Conforme vimos na introdução, o naturalismo é uma tendência artística que se desenvolve
dentro do realismo, compartilhando do mesmo contexto histórico que vimos no capítulo an-
terior sobre o Realismo.
Vimos que o romance naturalista assume a denominação de romance de tese já que
investe na atuação das personagens de acordo com uma análise científica.
Neste capítulo, estudamos um pouco sobre Machado de Assis, um dos maiores nomes
quando se fala em escritura de romance.
Por fim, vimos o palimpsesto como o hipertexto, intertextualidade, citação etc. e o esgar-
çamento do qual tecido escritural romântico revelado nas variadas formas de romance.

132 • capítulo 5
LEITURA
GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Trad. Cibele Braga et al. Belo
horizonte: Edições Viva Voz, 2010.
ZILBERMAN, Regina. “História da Literatura e Identidade Nacional”. In Jobim, José Luís (org.).
Literatura e Identidades. RJ: J. L. J. S. Fonseca, 1999, p. 23-55.

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CÂNDIDO, Antônio e CASTELO, J. Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira: História e antologia.
Das origens ao realismo. 6° ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.
CANDIDO, A. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
CASTELLO. José Aderaldo. A literatura brasileira: Origens e Unidade. Vols 1 e 2. São Paulo: Edusp.
1999.
CEIA, Carlos. E-dicionário de termos literários. Disponível em <http://www.edtl.com.pt/business-
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COSTA LIMA, Luiz. O Leitor Demanda (d)a Literatura. In: A Literatura e o Leitor: Textos de Estética da
Recepção. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979.
COSTA LIMA, Luiz. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil: era realista. v. 4. São Paulo: J. Olympio, 1986.
GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Trad. Cibele Braga et al. Belo
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HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. 2.ed.São Paulo: Mestre Jou, 1972.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Trad. Lúcia Helena França Ferraz. 2ed. São Paulo:
Perspectiva, 2005.
MELO, E SOUZA, Antônio Candido. E CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira.
São Paulo: Difusão Européia do Livro. 1968.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12ª ed. São Paulo: Cultrix, 2004.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira – seus fundamentos econômicos. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.

capítulo 5 • 133
GABARITO
Capítulo 1

01.
a) Sim, a descrição que Alencar faz da personagem mostra sua caracterização sob a
perspectiva românica: virgem, de sorriso doce.
b) Sim, Iracema é integrada à natureza, identifica-se com ela, como podemos perceber
pela presença de sua companhia, amiga, ará.

02. O tema é também nacionalista, pois há a exaltação da natureza.

Capítulo 2

a) D
b) C

Capítulo 3

01. A descrição dos personagens se dá de forma caricaturizada, pois os alunos têm suas
imagens construídas com traços hiperbólicos que depreciam sua imagem, por se aproximar
do grotesco.

02. A intenção do narrador, ao descrever exageradamente os estudantes, é de ridicularizar.

Capítulo 4

01. O parnasianismo brasileiro foi inaugurado em 1882, com a obra de Teófilo Dias intitu-
lada Fanfarras.
Há a valorização da “arte pela arte”, ou seja, os temas não passavam de mero pretexto
para a composição poética, buscando a perfeição formal acima de tudo. Por isso, os parna-
sianos escreviam pelo gosto de escrever, com grande preocupação com a perfeição estética.
Os poetas parnasianos empregavam, em suas poesias, vocabulário erudito, linguagem
complexa, extremamente trabalhada para alcançar a perfeição poética formal. Os temas são
de ordem universal.

134 • capítulo 5
02.
• Emprego de rimas raras: dia/ servia
• Uso de vocabulário erudito: esvasada
• Temática universalista, com descrições objetivas: taça, objeto da Grécia antiga
• Perfeição formal
• Clareza das ideias
• Ordem indireta
• Classicismo com a valorização da mitologia greco-romana clássica: deuses do Olimpo
• Descritivismo
• Sensualidade feminina: divas mãos
• Trabalho artesanal na construção poética
• Impessoalidade
• Impassibilidade

Capítulo 5

01. E e I

02.
a) Machado de Assis utiliza a metalinguagem como um procedimento de reflexão do
próprio ato de escrever, usando, para isso, narrador-personagem de seu romance.
Ele comenta o processo de elaboração do texto literário para possibilitar a reflexão
dos leitores.
Exemplo: Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo
fim (...) Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me
levaram a adotar diferente método: a primeira (...) a segunda é que o escrito ficaria
assim mais galante e mais novo.

b) Visão crítica: "Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio
ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte",
Presença de ironia: "... a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto,
mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço" ou em "Acresce que
chovia - peneirava - uma chuvinha miúda" até "tudo isso é um sublime louvor ao
nosso ilustre finado".

capítulo 5 • 135
ANOTAÇÕES

136 • capítulo 5

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