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BRASILEIRA II
autora
ALESSANDRA FÁVERO
1ª edição
SESES
rio de janeiro 2016
Conselho editorial luis claudio dallier, roberto paes e paola gil de almeida
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em
qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2016.
isbn: 978-85-5548-296-0
Prefácio 5
3. A reacão anti-romântica 63
3.1 Realismo 64
3.2 Fundamentação do novo gosto 68
3.3 A emergência de uma nova estética 71
4. Parnasianismo e Simbolismo 89
Bons estudos!
5
1
A prosa romântica e
o romance de
José de Alencar
1. A prosa romântica e o romance de
José de Alencar
OBJETIVOS
Nosso objetivo é que você seja capaz de reconhecer:
• As várias facetas do movimento romântico.
• Seus autores e suas obras.
• Suas várias manifestações literárias em prosa.
8• capítulo 1
A sociedade se divide em duas camadas distintas: a burguesia capitalista,
detentora dos poderes políticos e econômicos, e o proletariado.
No campo político, o absolutismo monárquico dá lugar ao liberalismo,
por meio de movimentos que demonstram a ascensão da burguesia, como a
Revolução Francesa de 1789.
©© WIKIMEDIA.ORG
capítulo 1 •9
Por isso, os processos de independência do Brasil e dos Estados Unidos ge-
ram lutas civis entre liberais e conservadores, numa tentativa de harmonizar as
novas forças. O Romantismo surge, no Brasil, logo após a independência políti-
ca, o que explica o intenso nacionalismo orgulhoso.
10 • capítulo 1
1.2 Confronto entre as três gerações
capítulo 1 • 11
Decorre que os escritores, conscientes pela primeira vez da sua realidade como grupo
graças ao papel desempenhado no processo da Independência e ao reconhecimento
da sua liderança no setor espiritual, vão procurar, como tarefa patriótica, definir cons-
cientemente uma literatura mais ajustada às aspirações da jovem pátria, favorecendo
entre criador e público relações vivas e adequadas à nova fase.
A posição do escritor e a receptividade do público serão decisivamente influenciadas
pelo fato da literatura brasileira ser então encarada como algo a criar-se voluntaria-
mente para exprimir a sensibilidade nacional, manifestando-se como ato de brasili-
dade. Os jovens românticos da Niterói são em primeiro lugar patriotas que desejam
complementar a Independência no plano estético; e como os moldes românticos
previam tanto o sentimento de segregação quanto o de missão — que o compensa —
o escritor pôde apresentar-se ao leitor como militante inspirado da ideia nacional.
Vemos, então, que nativismo e civismo foram grandes pretextos, funcionando como
justificativa da atividade criadora; como critério de dignidade do escritor; como recurso
para atrair o leitor e, finalmente, como valores a transmitir. Se as edições dos livros
eram parcas, e lentamente esgotadas, a revista, o jornal, a tribuna, o recitativo, a cópia
volante, conduziam as suas ideias ao público de homens livres, dispostos a vibrar na
grande emoção do tempo. (CANDIDO, 2006, p. 89-90)
12 • capítulo 1
COMENTÁRIO
Joaquim Manuel de Macedo, como inaugurador do romance brasileiro. Porém é preciso sa-
lientar que o primeiro romance brasileiro foi, na verdade, O filho do pescador, de Antônio
Gonçalves Teixeira e Souza, um cabofriense de origem humilde.
capítulo 1 • 13
Mazelas da Atualidade, 1867
A Luneta Mágica, 1869
As Vítimas Algozes, 1869
Memórias da Rua do Ouvidor, 1878
CONEXÃO
Você pode ler o texto integral de A moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo, disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/>. Acesso em: 24 fev. 2016.
LEITURA
Leia a seguir o último capítulo do considerado primeiro romance romântico:
D. Carolina deixou cair uma lágrima e falou ainda, mas já com voz fraca e trêmula:
— Sim, deve partir... vá... Talvez encontre aquela a quem jurou amor eterno... Ah! senhor!
nunca lhe seja perjuro.
— Se eu encontrasse!...
— Então?... que faria?...
— Atirar—me—ia a seus pés, abraçar—me—ia com eles e lhe diria: "Perdoai—me, per-
doai—me, senhora, eu já não posso ser vosso esposo! tomai a prenda que me deste..."
14 • capítulo 1
E o infeliz amante arrancou debaixo da camisa um breve, que convulsivamente apertou
na mão.
— O breve verde!... exclamou D. Carolina, o breve que contém a esmeralda!...
— Eu lhe diria, continuou Augusto: "recebei este breve que já não devo conservar, porque
eu amo outra que não sois vós, que é mais bela e mais cruel do que vós!..."
A cena se estava tornando patética; ambos choravam e só passados alguns instantes a
inexplicável Moreninha pôde falar e responder ao triste estudante.
— Oh! pois bem, disse; vá ter com sua desposada, repita—lhe o que acaba de dizer, e se
ela ceder, se perdoar, volte que eu serei sua... esposa.
— Sim... eu corro... Mas, meu Deus, onde poderei achar essa moça a quem não tornei a
ver, nem poderei conhecer?... onde meu Deus?... onde?...
E tornou a deixar correr o pranto, por um momento suspendido.
— Espere, tornou D. Carolina, escute, senhor. Houve um dia, quando a minha mãe era
viva, em que eu também socorri um velho moribundo. Como o senhor e sua camarada, matei a
fome de sua família e cobri a nudez de seus filhos; em sinal de reconhecimento também este
velho me fez um presente: deu—me uma relíquia milagrosa que, asseverou—me ele, tem o
poder uma vez na vida de quem a possui, de dar o que se deseja; eu cosi essa relíquia dentro
de um breve; ainda não lhe pedi coisa alguma, mas trago—a sempre comigo; eu lha cedo...
tome o breve, descosa—o, tire a relíquia e à mercê dela encontre sua antiga amada. Obtenha
o seu perdão e me terá por esposa.
— Isto tudo me parece um sonho, respondeu Augusto, porém, dê—me, dê—me esse breve!
A menina, com efeito, entregou o breve ao estudante, que começou a descosê—lo preci-
pitadamente. Aquela relíquia, que se dizia milagrosa, era sua última esperança; e, semelhante
ao náufrago que no derradeiro extremo se agarra à mais leve tábua, ele se abraçava com
ela. Só falta a derradeira capa do breve... ei—la que cede e se descose... salta uma pedra... e
Augusto, entusiasmado e como delirante, cai aos pés de D. Carolina, exclamando:
— O meu camafeu!... o meu camafeu!...
A senhora D. Ana e o pai de Augusto entram nesse instante na gruta e encontram o feliz
e fervoroso amante de joelhos e a dar mil beijos nos pés da linda menina, que também por
sua parte chorava de prazer.
— Que loucura é esta? perguntou a senhora D. Ana
— Achei minha mulher!... bradava Augusto; encontrei minha mulher!
— Que quer dizer isto, Carolina?...
— Ah! minha boa avó!... respondeu a travessa Moreninha ingenuamente: nós éramos
conhecidos antigos.
capítulo 1 • 15
Epílogo
A chegada de Filipe, Fabrício e Leopoldo veio dar ainda mais viveza ao prazer que reinava
na gruta. O projeto de casamento de Augusto e D. Carolina não podia ser um mistério para
eles, tendo sido como foi, elaborado por Filipe, de acordo com o pai do noivo, que fizera a
proposta, e com o velho amigo, que ainda no dia antecedente viera concluir os ajustes com a
senhora D. Ana; e, portanto, o tempo que se gastaria em explicações passou—se em abraços.
— Muito bem! muito bem! disse por fim Filipe; quem pôs o fogo ao pé da pólvora fui eu,
que obriguei Augusto a vir passar o dia de Sant’Ana conosco.
— Então estás arrependido?...
— Não, por certo, apesar de me roubares minha irmã. Finalmente para este tesouro sem-
pre teria de haver um ladrão: ainda bem que foste tu que o ganhaste.
— Mas, meu maninho, ele perdeu ganhando...
— Como?...
— Estamos no dia 20 de agosto: um mês!
— É verdade! um mês! exclamou Filipe.
— Um mês!... gritaram Fabrício e Leopoldo.
— Eu não entendo isto! disse a senhora D. Ana
— Minha boa avó, acudiu a noiva, isto quer dizer que finalmente está presa a borboleta.
— Minha boa avó, exclamou Filipe, isto quer dizer que Augusto deve—me um romance.
— Já está pronto, respondeu o noivo.
—Como se intitula?
— A Moreninha.
CONCEITO
Na segunda metade do século XIX, sob o signo do espírito decadente que transformou a
poesia numa arte de desencanto perante a vida, muitos artistas declararam sofrer do mal du
siècle (mal do século) (...) Sentir-se melancólico, entediado, vencido pela vacuidade da vida
16 • capítulo 1
(ennui), nostálgico ou terrivelmente aborrecido, ser boémio ou andar perdido de tédio são
condições necessárias para o diagnóstico do mal du siècle. (...)
Disponível: <http://edtl.fcsh.unl.pt/business-directory/6529/mal-du-siecle/>.
Acesso em: 20 abr. 2016.
Fagundes Varella nasceu em Rio Claro, Rio de Janeiro, em 1841. Este artista
questionava os valores decadentes da vida burguesa, questionamento este que
se transformara em obra de arte.
Detestava a hipocrisia da vida nas cidades e, por isso, buscava expurgar suas
dores em contato com a natureza, reconciliando-se com a alegria originária do
cosmos, em seu poder criador. Escreveu o Evangelho na Selva.
É considerado o último dos grandes românticos, com uma poesia que lhe
rendeu a imortalidade literária, morrendo em Niterói, em 1875, por causa
do álcool.
capítulo 1 • 17
1.2.3 Terceira Geração: liberal ou social.
Assim como as outras gerações, a terceira geração também recebe várias deno-
minações como: liberal ou social. Seu principal representante na prosa é Ma-
nuel Antônio de Almeida, considerado um autor de transição entre o Romantis-
mo e o Realismo, por apresentar uma faceta da sociedade.
©© WIKIMEDIA.ORG
(...) a cor local, a exibição afetiva, o pitoresco descritivo e a eloquência são requisi-
tos mais ou menos prementes, mostrando que o homem de letras foi aceito como
cidadão, disposto a falar aos grupos; e como amante da terra, pronto a celebrá-la com
arroubo (...)
18 • capítulo 1
Manuel Antônio de Almeida tem como pretexto para a escritura tudo o que
é popular. Suas personagens são, pode-se dizer, os excluídos ou aqueles que
não se encaixam na sociedade burguesa da época: mendigos, cegos, soldados,
barbeiros, comadres, mestres de rezas, meirinhos.
É o patrono da Cadeira n. 28, por escolha do fundador Inglês de Sousa e
O escritor morreu em Macaé, Rio de Janeiro, em 1861, deixando apenas
2 obras:
Memórias de um Sargento de Milícias, 1855
Dois Amores, 1861
LEITURA
Que tal se divertir um pouco com a história sobre a origem do protagonista de Memórias de
um Sargento de Milícias?
I
Origem, nascimento e batizado
Era no tempo do rei.
Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se
mutuamente, chamava-se nesse tempo - O canto dos meirinhos -; e bem lhe assentava o
nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe, que
gozava então de não pequena consideração. Os meirinhos de hoje não são mais do que a
sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e temida, respei-
tável e respeitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia
todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida: o
extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando-se,
fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações, provarás,
razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamava o processo.
Daí sua influência moral.
Mas tinham ainda outra influência, que é justamente a que falta aos de hoje: era a influên-
cia que derivava de suas condições físicas. Os meirinhos de hoje são homens como quais-
quer outros; nada têm de imponentes, nem no seu semblante nem no seu trajar, confundem-
se com qualquer procurador, escrevente de cartório ou contínuo de repartição. Os meirinhos
desse belo tempo não, não se confundiam com ninguém; eram originais, eram tipos: nos seus
semblantes transluzia um certo ar de majestade forense, seus olhares calculados e sagazes
significavam chicana. Trajavam sisuda casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato
afivelado, ao lado esquerdo aristocrático espadim, e na ilharga direita penduravam um círculo
capítulo 1 • 19
branco, cuja significação ignoramos, e coroavam tudo isto por um grave chapéu armado.
Colocado sob a importância vantajosa destas condições, o meirinho usava e abusava de sua
posição. Era terrível quando, ao voltar uma esquina ou ao sair de manhã de sua casa, o cida-
dão esbarrava com uma daquelas solenes figuras, que, desdobrando junto dele uma folha de
papel, começava a lê-la em tom confidencial! Por mais que se fizesse não havia remédio em
tais circunstâncias senão deixar escapar dos lábios o terrível - Dou-me por citado. - Ninguém
sabe que significação fatalíssima e cruel tinham estas poucas palavras! eram uma sentença
de peregrinação eterna que se pronunciava contra si mesmo; queriam dizer que se começava
uma longa e afadigosa viagem, cujo termo bem distante era a caixa da Relação, e durante
a qual se tinha de pagar importe de passagem em um sem-número de pontos; o advogado,
o procurador, o inquiridor, o escrivão, o juiz, inexoráveis Carontes, estavam à porta de mão
estendida, e ninguém passava sem que lhes tivesse deixado, não um óbolo, porém todo o
conteúdo de suas algibeiras, e até a última parcela de sua paciência.
Mas voltemos à esquina. Quem passasse por aí em qualquer dia útil dessa abençoada épo-
ca veria sentado em assentos baixos, então usados, de couro, e que se denominavam - cadeiras
de campanha - um grupo mais ou menos numeroso dessa nobre gente conversando pacifica-
mente em tudo sobre que era lícito conversar: na vida dos fidalgos, nas notícias do Reino e nas
astúcias policiais do Vidigal. Entre os termos que formavam essa equação meirinhal pregada
na esquina havia uma quantidade constante, era o Leonardo-Pataca. Chamavam assim a uma
rotunda e gordíssima personagem de cabelos brancos e carão avermelhado, que era o decano
da corporação, o mais antigo dos meirinhos que viviam nesse tempo. A velhice tinha-o tornado
moleirão e pachorrento; com sua vagareza atrasava o negócio das partes; não o procuravam;
e por isso jamais saía da esquina; passava ali os dias sentado na sua cadeira, com as pernas
estendidas e o queixo apoiado sobre uma grossa bengala, que depois dos cinqüenta era a sua
infalível companhia. Do hábito que tinha de queixar-se a todo o instante de que só pagassem
por sua citação a módica quantia de 320 réis, lhe viera o apelido que juntavam ao seu nome.
Sua história tem pouca coisa de notável. Fora Leonardo algibebe em Lisboa, sua pátria;
aborrecera-se porém do negócio, e viera ao Brasil. Aqui chegando, não se sabe por proteção
de quem, alcançou o emprego de que o vemos empossado, e que exercia, como dissemos,
desde tempos remotos. Mas viera com ele no mesmo navio, não sei fazer o quê, uma cer-
ta Maria da hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitona. O
Leonardo, fazendo-se-lhe justiça, não era nesse tempo de sua mocidade mal-apessoado,
e sobretudo era maganão. Ao sair do Tejo, estando a Maria encostada à borda do navio, o
Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe
uma valente pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como
envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas
20 • capítulo 1
costas da mão esquerda. Era isto uma declaração em forma, segundo os usos da terra: le-
varam o resto do dia de namoro cerrado; ao anoitecer passou-se a mesma cena de pisadela
e beliscão, com a diferença de serem desta vez um pouco mais fortes; e no dia seguinte
estavam os dois amantes tão extremosos e familiares, que pareciam sê-lo de muitos anos.
Quando saltaram em terra começou a Maria a sentir certos enojos: foram os dois morar
juntos: e daí a um mês manifestaram-se claramente os efeitos da pisadela e do beliscão; sete
meses depois teve a Maria um filho, formidável menino de quase três palmos de comprido,
gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e chorão; o qual, logo depois que nasceu, mamou
duas horas seguidas sem largar o peito. E este nascimento é certamente de tudo o que te-
mos dito o que mais nos interessa, porque o menino de quem falamos é o herói desta história.
Chegou o dia de batizar-se o rapaz: foi madrinha a parteira; sobre o padrinho houve suas
dúvidas: o Leonardo queria que fosse o Sr. juiz; porém teve de ceder a instâncias da Maria e
da comadre, que queriam que fosse o barbeiro de defronte, que afinal foi adotado. Já se sabe
que houve nesse dia função: os convidados do dono da casa, que eram todos dalém-mar,
cantavam ao desafio, segundo seus costumes; os convidados da comadre, que eram todos
da terra, dançavam o fado. O compadre trouxe a rabeca, que é, como se sabe, o instrumento
favorito da gente do ofício. A princípio o Leonardo quis que a festa tivesse ares aristocráticos,
e propôs que se dançasse o minuete da corte. Foi aceita a idéia, ainda que houvesse difi-
culdade em se encontrarem pares. Afinal levantaram-se uma gorda e baixa matrona, mulher
de um convidado; uma companheira desta, cuja figura era a mais completa antítese da sua;
um colega do Leonardo, miudinho, pequenino, e com fumaças de gaiato, e o sacristão da Sé,
sujeito alto, magro e com pretensões de elegante. O compadre foi quem tocou o minuete na
rabeca; e o afilhadinho, deitado no colo da Maria, acompanhava cada arcada com um guincho
e um esperneio. Isto fez com que o compadre perdesse muitas vezes o compasso, e fosse
obrigado a recomeçar outras tantas.
Depois do minuete foi desaparecendo a cerimônia, e a brincadeira aferventou, como se
dizia naquele tempo. Chegaram uns rapazes de viola e machete: o Leonardo, instado pelas
senhoras, decidiu-se a romper a parte lírica do divertimento. Sentou-se num tamborete, em
um lugar isolado da sala, e tomou uma viola. Fazia um belo efeito cômico vê-lo, em trajes do
ofício, de casaca, calção e espadim, acompanhando com um monótono zunzum nas cordas
do instrumento o garganteado de uma modinha pátria. Foi nas saudades da terra natal que
ele achou inspiração para o seu canto, e isto era natural a um bom português, que o era ele.
A modinha era assim:
Quando estava em minha terra,
Acompanhado ou sozinho,
Cantava de noite e de dia
Ao pé dum copo de vinho!
capítulo 1 • 21
Foi executada com atenção e aplaudida com entusiasmo; somente quem não pareceu dar-
lhe todo o apreço foi o pequeno, que obsequiou o pai como obsequiara ao padrinho, marcando-
lhe o compasso a guinchos e esperneios. À Maria avermelharam-se-lhe os olhos, e suspirou.
O canto do Leonardo foi o derradeiro toque de rebate para esquentar-se a brincadeira,
foi o adeus às cerimônias. Tudo daí em diante foi burburinho, que depressa passou à gritaria,
e ainda mais depressa à algazarra, e não foi ainda mais adiante porque de vez em quando
viam-se passar através das rótulas da porta e janelas umas certas figuras que denunciavam
que o Vidigal andava perto.
A festa acabou tarde; a madrinha foi a última que saiu, deitando a bênção ao afilhado e
pondo-lhe no cinteiro um raminho de arruda.
LEITURA
Leia o capítulo 1 de Memórias de um sargento de milícias, de Manoel Antônio de Almeida,
disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000022.pdf>. Aces-
so em: 3 fev. 2016.
22 • capítulo 1
A partir da década de 1870, dedica-se exclusivamente à literatura. Ganha noto-
riedade com as Cartas sobre a Confederação dos Tamoios, publicadas em 1856,
com o pseudônimo de Ig, no Diário do Rio de Janeiro, criticando intensamente
o poema épico de Domingos Gonçalves de Magalhães, que era o, então, favorito
do Imperador e considerado o chefe da literatura brasileira.
Escreveu romances indianistas, urbanos, regionais, históricos, romances-
poemas de natureza lendária, obras teatrais, poesias, crônicas, ensaios e polê-
micas literárias, escritos políticos e estudos filológicos.
A parte de ficção histórica, depoimento da sua busca de tema nacional para
o romance, concretizou-se em duas direções: os romances históricos e os de
lendas indígenas. Por isso, José de Alencar pertence ao movimento do indianis-
mo na literatura brasileira do século XIX, em que nacionalismo revelava tradi-
ção indígena na ficção. Sua obra mais famosa é O Guarani, publicado em 1857.
©© WIKIPEDIA
capítulo 1 • 23
CONEXÃO
Você pode ler o texto integral de O Guarani, disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.
br/download/texto/bv000135.pdf>. Acesso em: 24 fev. 2016.
24 • capítulo 1
LEITURA
Para conhecer um pouco do universo feminino narrado por José de Alencar, sugerimos a
leitura do livro O império da cortesã: Lucíola, um perfil de Alencar, obra de Valéria de Marco
(São Paulo: Martins Fontes, 1986).
Uma divisão didática e bem explicativa é feita por Terra (2002, p. 304-305) e
ajuda a elucidar os tipos de romance que compõem a obra de José de Alencar:
capítulo 1 • 25
Começa a receber a mulher uma educação em que apareciam certas prendas que
predispunham a demonstração, a apresentação às visitas. Começava a figurar nos
salões, a receber e a tratar com os convidados, a conviver com estranhos, a frequentar
modistas, a visitar, a ler figurinos e, também a ler romances. Dos salões, as mulheres
foram ao teatro e à rua.
A formosa moça trocara seu vestuário de noiva por esse outro que bem se podia
chamar de traje de esposa; pois os suaves emblemas da pureza imaculada, de que a
virgem se reveste quando caminha para o altar, já se desfolham como as pétalas da
flor do outono, deixando entrever as castas primícias do santo amor conjugal.
José de Alencar*
CONEXÃO
* Leia a obra integral Senhora, de José de Alencar Disponível em: <https://archive.org/
stream/Senhora/bn000011_djvu.txt>. Acesso em 7 mar. 2016.
LEITURA
Que tal, agora ler um trecho de Iracema?
Capítulo II
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da
graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.
26 • capítulo 1
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como
seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu?"
onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil e nu, mal roçando
alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.
Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a
sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre es-
parziam flores sobre os úmidos cabelos Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam
o canto
Iracema saiu do banho; o aljôfar d'água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou
em manhã de chuva Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco,
e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste.
A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela As vezes sobe aos ramos da
árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru te palha matizada, onde traz a
selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá, as agulhas da juçara com que tece a renda,
e as tintas de que matiza o algodão.
Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não
deslumbra; sua vista perturba-se.
Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não
algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos
olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.
Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu Gotas de
sangue borbulham na face do desconhecido.
De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada, mas logo sorriu. O moço
guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. So-
freu mais d'alma que da ferida.
O sentimento que ele pos nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de si
o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que causara.
A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. De-
pois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo
a ponta farpada.
O guerreiro falou:
— Quebras comigo a flecha da paz?
— Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde vieste a
estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu?
capítulo 1 • 27
— Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuí-
ram, e hoje têm os meus.
Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldeias, e à caba-
na de Araquém, pai de Iracema.
Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000136.pdf>.
Acesso em 30 jun. 2010.
LEITURA
Iracema. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000136.
pdf>. Acesso em 23 fev. 2016.
ATIVIDADES
Leia o excerto do capítulo II de Iracema para responder às questões a seguir:
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da
graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como
seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu onde
campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil e nu, mal roçando alisava
apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.
Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a
sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre es-
parziam flores sobre os úmidos cabelos Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam
o canto
Iracema saiu do banho; o aljôfar d'água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou
em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco,
e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste.
A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela. Às vezes sobe aos ramos da
árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru te palha matizada, onde traz a
28 • capítulo 1
selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá, as agulhas da juçara com que tece a renda,
e as tintas de que matiza o algodão
REFLEXÃO
Como vimos neste primeiro panorama sobre o romantismo, o século XIX foi conturbado por
fortes mudanças sociais, políticas e culturais.
As causas dessas mudanças foram: a Revolução Industrial, com novos inventos técnicos,
aumento de produção e a divisão do trabalho; a Revolução Francesa, com novos ideais de
sociedade, com respeito aos direitos individuais.
Do mesmo modo que a sociedade passava por transformações, a atividade artística
romântica se tornou complexa, por isso, os artistas românticos visavam quebrar moldes e
regras acadêmicas em favor da livre expressão da personalidade do artista, refletido no eu
poético, diante das características estudadas nesta unidade.
Estes foram alguns tópicos dos estudos acerca do Romantismo. Isso não significa que
encerramos o assunto. Há muito o que estudar e aqui apresentamos apenas uma sugestão
para que você conheça um pouco da vida e da obra destes autores tão importantes para a
cultura brasileira.
MULTIMÍDIA
Assista aos filmes: O retrato de Goya; Os miseráveis; Independência ou morte; Nosferatu;
Drácula, de Bram Stoker; O guarani
Ouça: composições de Schubert, Schumann, Mendelssohn, Chopin entre outros.
Veja: as pinturas de Goya e Delacroix.
capítulo 1 • 29
LEITURA
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1995.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix.1995.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
CANDIDO, Antônio. Presença da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1965.
CASTELLO. José Aderaldo. A literatura brasileira: Origens e Unidade. Vols 1 e 2. São Paulo: Edusp.
1999.
HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. 2.ed.São Paulo: Mestre Jou, 1972.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira – seus fundamentos econômicos. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.
30 • capítulo 1
2
As três gerações
de poetas
românticos
2. As três gerações de poetas românticos
Neste capítulo sobre a poética romântica, você estudará o Romantismo literá-
rio que é dividido didaticamente em três gerações, com suas produções poéti-
cas, conhecendo alguns autores e obras marcantes de cada fase.
Passemos, então, ao estudo da poesia romântica, de acordo com as várias gera-
ções e características
OBJETIVOS
• Reconhecer as várias facetas do movimento romântico, suas características e, princi-
palmente, suas manifestações literárias.
PERGUNTA
Muitos se consideram românticos, mas, afinal, o que vem a ser romântico no sentido poético
e literário?
32 • capítulo 2
a terra, porque apreciar o homem brasileiro alude à valorização da Pátria, como
revela o excerto do canto IV de Juca Pirama:
capítulo 2 • 33
CURIOSIDADE
Antônio Gonçalves Dias se orgulhava de ser fruto da mestiçagem, contendo as 3 raças de
formação brasileira: a branca, a índia e a negra.
Em 1847, publica os Primeiros Cantos, obra que lhe rendeu a fama e des-
pertou a admiração de Alexandre Herculano, fundando, em 1849, a revista
Guanabara, que divulgava o movimento romântico da primeira geração.
Em 1862, gravemente enfermo, vai se tratar na Europa e em 1864 embarca
no navio de volta, pois queria morrer no Brasil. É o que acontece, mas não da
forma idealizada, pois o navio afunda na costa maranhense, no dia 3 de novem-
bro de 1864. Todos que estavam a bordo são salvos, menos o Gonçalves Dias
que ficou esquecido em seu leito de morte.
Os principais temas por ele retratados são: o índio, a saudade da pátria, a
natureza, o amor.
Suas principais obras são:
Primeiros Cantos, 1847 Últimos Cantos, 1851
Segundos Cantos, 1848 Os Timbiras, 1857
Sextilhas de Frei Antão, 1848
34 • capítulo 2
Dentre as principais características de Dias, ressaltamos o ufanismo, a reli-
giosidade e o medievalismo. Uma vez que o deslumbramento diante da pátria
inspira a divulgação das belezas do Brasil, o deslumbramento diante da paisa-
gem nacional, formando o ufanismo e culto à natureza.
LEITURA
Observe a Canção do exílio, poema em que o eu-lírico revela sua condição de exilado e sau-
doso da sua terra natal. Como que brincando com os advérbios, localiza-se e nos localiza em
relação aos espaços do poema, entre o “aqui” e “cá” do exílio e o “lá” de Brasil.
Canção do exílio
Minha terra tem palmeiras,
onde canta o sabiá,
as aves que aqui gorjeiam,
não gorgeiam como lá,
nosso céu tem mais estrelas,
nossas várzeas têm mais flores,
nossos bosques têm mais vida,
capítulo 2 • 35
nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho à noite,
mais prazer encontro eu lá;
minha terra tem palmeiras,
onde canta o sabiá.
36 • capítulo 2
COMENTÁRIO
Lembre-se de que a natureza fazia parte do Arcadismo, mas a paisagem, que era bucólica,
era utilizada como pano de fundo, simples cenário para os afetos do poeta, mas continuava
insensível às emoções do eu poético
LEITURA
Se se morre de amor! — Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n’alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve, e no que vê prazer alcança!
capítulo 2 • 37
Simpáticas feições, cintura breve,
Graciosa postura, porte airoso,
Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Um quê mal definido, acaso podem
Num engano d’amor arrebatar-nos.
Mas isso amor não é; isso é delírio,
Devaneio, ilusão, que se esvaece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro
Clarão, que as luzes no morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,
D’amor igual ninguém sucumbe à perda.
38 • capítulo 2
E, temendo roçar os seus vestidos,
Arder por afogá-la em mil abraços:
Isso é amor, e desse amor se morre!
capítulo 2 • 39
Neste poema, o eu-lírico declara seu amor e não recebe resposta. Atordoado com a
situação, cai em desespero. O que lhe resta são momentos de angústia e sofrimento, reme-
tendo-nos ao jovem Werther...e ao mal do século.
Figura 2.6 – Werther. Fonte: GOETHE, Johann von. 'Das Leiden des Jungen Werthers
(Os sofrimentos do jovem Werther). Gravura em madeira, Alemanha, Século XIX.
CONEXÃO
Leia também um estudo sobre o poema acima, disponível em: <http://pt.scribd.com/
doc/6009432/Se-Se-Morre-de-Amor-Goncalves-Dias>. Acesso em 16 mar. 2016.
LEITURA
Observe que no prólogo, o eu-lírico invoca a alma do selvagem guerreiro para narrar a vida
dos Timbiras, como o cantor de um povo já extinto.
40 • capítulo 2
Os timbiras
Prólogo
Introdução
Os ritos semibárbaros dos Piagas,
Cultores de Tupã, a terra virgem
Donde como dum trono, enfim se abriram
Da cruz de Cristo os piedosos braços;
As festas, e batalhas mal sangradas
Do povo Americano, agora extinto,
Hei de cantar na lira.– Evoco a sombra
Do selvagem guerreiro!... Torvo o aspecto,
Severo e quase mudo, a lentos passos,
Caminha incerto, – o bipartido arco
Nas mãos sustenta, e dos despidos ombros
Pende-lhe a rôta aljava... as entornadas,
Agora inúteis setas, vão mostrando
A marcha triste e os passos mal seguros
De quem, na terra de seus pais, embalde
Procura asilo, e foge o humano trato.
capítulo 2 • 41
CONEXÃO
Leia o texto integral de Os timbiras, de Antônio Gonçalves Dias, disponível em: <http://www.
dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000117.pdf>. Acesso em 3 mar. 2016.
LEITURA
Leia a seguiro canto IV de Juca Pirama:
IV
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo tupi.
Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.
Já vi cruas brigas,
De tribos imigas,
E as duras fadigas
Da guerra provei;
Nas ondas mendaces
Senti pelas faces
Os silvos fugaces
Dos ventos que amei.
42 • capítulo 2
Andei longes terras
Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras
Dos vis Aimoréis;
Vi lutas de bravos,
Vi fortes - escravos!
De estranhos ignavos
Calcados aos pés.
E os campos talados,
E os arcos quebrados,
E os piagas coitados
Já sem maracás;
E os meigos cantores,
Servindo a senhores,
Que vinham traidores,
Com mostras de paz.
O velho no entanto
Sofrendo já tanto
De fome e quebranto,
capítulo 2 • 43
Só qu’ria morrer!
Não mais me contenho,
Nas matas me embrenho,
Das frechas que tenho
Me quero valer.
Então, forasteiro,
Caí prisioneiro
De um troço guerreiro
Com que me encontrei:
O cru dessossêgo
Do pai fraco e cego,
Enquanto não chego
Qual seja, - dizei!
Ao velho coitado
De penas ralado,
Já cego e quebrado,
Que resta? - Morrer.
Enquanto descreve
O giro tão breve
Da vida que teve,
Deixai-me viver!
44 • capítulo 2
Do pranto que choro:
Se a vida deploro,
Também sei morrer.
Disponível em: <http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/
conteudo/GoncalvesDias/IJucaPirama.htm>. Acesso em 3 mar. 2016.
Neste canto do poema, percebemos a narrativa épica do herói que passa por
uma prova fundamentalmente subjetiva e íntima, comovida e dolorosa, em que
se sente impulsionado a pedir clemência por sua vida, não por ele mesmo, mas
sim por ter como principal motivo o cuidado com seu pai já velho e cego, e por
isso frágil. O clima do poema é lirico e trágico: lírico pela subjetividade impres-
sa e trágico pelos acontecimentos narrados.
No capítulo anterior, vimos que a segunda geração romântica recebe várias de-
nominações, tais como: do mal-do-século, Byroniana, Satanista, Subjetivista,
Ultrarromântica ou Individualista, por causa das características que marcam
as obras desta fase.
CONCEITO
De acordo com a definição encontrada no livro Dicionário de Termos Literários, de Moisés
Massaud, o Mal do Século é definido como “Pessimismo extremo, em face do passado e
do futuro, sensação de perda de suporte, apatia moral, melancolia difusa, tristeza, culto do
mistério, do sonho, da inquietude mórbida, tédio irremissível, sem causa, sofrimento cósmico,
ausência da alegria de viver, fantasia desmesurada, atração pelo infinito, “vago das paixões”,
desencanto em face do cotidiano, desilusão amorosa, nostalgia, falta de sentimento vital,
depressão profunda, abulia, resultando em males físicos, mentais ou imaginários que levam
à morte precoce ou ao suicídio”. Fonte: http://www.infoescola.com/literatura/sentimen-
talismo-mal-do-seculo/
capítulo 2 • 45
CURIOSIDADE
A segunda geração romântica recebe a denominação de Byroniana por causa do poeta in-
glês Lord Byron, que tinha um estilo de vida e uma forma particular de ver o mundo. Ele tinha
vida boêmia, noturna, voltada para o vício e os prazeres da bebida, do fumo e do sexo. Ele via
o mundo de modo egocêntrico, narcisista, pessimista, angustiante até satânico.
©© WIKIMEDIA.ORG
Os principais temas da segunda ge-
ração são: a dúvida, o tédio, a orgia, a
morte, a infância, o medo do amor, o
sofrimento, tão marcados nas poesias
de Álvares de Azevedo.
46 • capítulo 2
Macário Discursos
O Conde Lopo Poemas Malditos
O livro de Fra-Godinho
O sentimentalismo está presente na relação entre o artista e o mundo. Diante
de um tema amoroso, político, social ou indianista, o tratamento literário reve-
la grande envolvimento emotivo do artista em relação ao tema abordado.
Diante disso, resulta o subjetivismo, elemento a partir do qual o artista ro-
mântico procura tratar os assuntos de forma pessoal, de acordo com seus sen-
timentos. Assim, sua visão é subjetiva, pois retrata a realidade parcialmente. Às
vezes, o eu poético, com seu ego próprio, transforma-se no centro absoluto da
obra literária. Isso ocorre porque:
(...) falam à sua alma, falam-lhe de outra coisa; falam-lhe do elemento espiritual que
se traduz nas coisas, ao mesmo tempo signos visíveis e obras sensíveis, atestando,
de maneira eloqüente, a existência onipresente do invisível e do supra-sensível (...)
Os bosques, as florestas, o vento, os rios, o amanhecer e o anoitecer, os ruídos, os
murmúrios, as sombras, as luzes – de tudo o que não é humano e se constitui em
espetáculo para o homem. (NUNES, 1993, p. 65).
capítulo 2 • 47
sentimentos. Surge um poema versos livres, a estrofação livre, a ausência de
rima, como explica o eu-poético em:
LEITURA
Leia também um estudo sobre o Romantismo em A Consciência Criadora na Poesia Brasi-
leira: Do Barroco ao Simbolismo, de Sergio Alves Peixoto, da Editora Annablume, de 1999.
Idéias íntimas
IX
48 • capítulo 2
Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas
Passam tantas visões sobre meu peito!
Palor de febre meu semblante cobre,
Bate meu coração com tanto fogo!
Um doce nome os lábios meus suspiram,
Um nome de mulher... e vejo lânguida
No véu suave de amorosas sombras
Seminua, abatida, a mão no seio,
Perfumada visão romper a nuvem,
Sentar-se junto a mim, nas minhas pálpebras
O alento fresco e leve como a vida
Passar delicioso... Que delírios!
Acordo palpitante... inda a procuro:
Embalde a chamo, embalde as minhas lágrimas
Banham meus olhos, e suspiro e gemo...
Imploro uma ilusão... tudo é silêncio!
Só o leito deserto, a sala muda!
Amorosa visão, mulher dos sonhos,
Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto!
Nunca virás iluminar meu peito
Com um raio de luz desses teus olhos?
Álvares de Azevedo
Por isso, a ideia de suicídio se torna fixa, mostrando-se como a única forma
de escapar do sofrimento que o eu poético vivencia todos os dias.
capítulo 2 • 49
Misérrimo! votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto...
E minh’alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.
O mal do século se faz presente por meio de certos sentimentos são cons-
tantes como: tristeza, solidão, saudade, desilusão, etc. marcando a segunda
geração romântica.
ATENÇÃO
Embora mundialmente reconhecido por suas poesias, Manuel Antônio Álvares de Azevedo tam-
bém foi contista, dramaturgo, e ensaísta brasileiro, por isso é considerado o principal represen-
tante da segunda geração romântica, chamada Ultrarromântica, Byroniana ou Mal-do-século.
Assim como as outras gerações, a terceira geração também recebe várias de-
nominações como: Condoreira, Hugoana, liberal ou social.
COMENTÁRIO
A terceira geração é chamada Hugoana porque tem como exemplo poético o autor francês
Victor Hugo.
50 • capítulo 2
Seu principal representante é o poeta Castro Alves. Seus principais temas
são a defesa de causas humanitárias, a denúncia da escravidão e o amor erótico.
Nasceu em 14 de março de 1847, em Muritiva, conhecida hoje como Castro
Alves, na Bahia. Desde criança amava ler, escrever e desenhar. Sua genialidade
literária aparece cedo, uma vez que com apenas treze anos recitou em público
um poema de sua autoria.
Em 1862, foi para Recife para ingressar na Faculdade de Direito. Porém,
pouco estudava, dedicando seu tempo à bebida, à boemia e à escritura de seus
versos.
Escreveu o drama Gonzaga, pelo qual recebeu uma coroa de louros com a
inscrição Ao Gênio. Dedicou-se à causa abolicionista, com temas de amor e de
liberdade. Em 1866 fundou uma sociedade abolicionista com Rui Barbosa.
Mais tarde foi para a Bahia onde sofreu um acidente e teve o pé amputado.
Castro Alves morreu devido à tuberculose em 6 de julho de 1871, em Salvador,
deixando consagradas obras da poesia brasileira, tais como:
Espumas Flutuantes, 1870.
Gonzaga ou a Revolução de Minas, 1875
A Cachoeira de Paulo Afonso, 1876
Vozes D'África, Navio Negreiro, 1880
Os Escravos, 1883
Obra Completa, 1921
Poesias Coligadas, Seleção - 1980
©© WIKIMEDIA.ORG
capítulo 2 • 51
LEITURA
Ícone máximo de sua expressão abolicionista é o poema O navio negreiro:
O Navio negreiro
52 • capítulo 2
Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meus Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!
II
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?...
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! Que a noite é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como um golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
capítulo 2 • 53
Às vagas que deixa após.
Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de languor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor.
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente
— Terra de amor e traição -
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos do Tasso
Junto às lavas do vulcão!
Os marinheiros Helenos,
Que a vaga iônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu...
...Nautas de todas as plagas...!
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu....
III
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais, ainda mais.... não pode o olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador
54 • capítulo 2
Mas que vejo eu ali... que quadro de armarguras!
Que cena funeral cantar!... Que tétricas figuras!...
Que cena infame e vil!... meu Deus! Que horror!
IV
Era um sonho dantesco... O tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
capítulo 2 • 55
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
" Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."
VI
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar! porque não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...
56 • capítulo 2
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados,
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão...
Homens simples, fortes, bravos...
Hoje míseros escravos,
Sem ar, sem luz, sem razão...
capítulo 2 • 57
E cai p’ra não mais s’erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.
58 • capítulo 2
VI
Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!...
Silêncio!... Musa! chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto...
Além de poemas de caráter social como o lido acima, Castro Alves produz
poemas sensuais, já que as mulheres do poeta dos escravos são reais.
capítulo 2 • 59
LEITURA
Adormecida
Uma noite eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.
60 • capítulo 2
ATIVIDADES
01. Leia o excerto abaixo de Álvares de Azevedo e aponte a característica do Romantismo
que melhor se encaixa nele:
a) o espiritualismo
b) o pessimismo
c) a confissão
d) a idealização da mulher
e) o sonho
02. A estrofe abaixo revela uma situação caracteristicamente romântica. Qual é a alternativa
que confirma isso?
REFLEXÃO
Como vimos nesta unidade, a poesia romântica brasileira passou por diferentes momentos,
que classificamos didaticamente em gerações, cada qual com suas diversas características.
capítulo 2 • 61
Os autores são agrupados de acordo com as características predominantes em sua pro-
dução, dando destaque às diversas românticas, como pudemos perceber ao longo das mais
variadas leituras que realizamos nesta unidade.
LEITURA
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1995.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix.1995.
CANDIRO, A. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
CASTELLO. José Aderaldo. A literatura brasileira: Origens e Unidade. Vols 1 e 2. São Paulo: Edusp.
1999.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil: era romântica. v. 3. 7 ed. rev. e atual. São Paulo: Global,
2004.
MELO, E SOUZA, Antônio Candido. E CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira.
São Paulo: Difusão Européia do Livro. 1968.
NUNES, B. A visão romântica. In: GUINSBURG. J. O Romantismo. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva,
1993. p. 51-74.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira – seus fundamentos econômicos. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.
62 • capítulo 2
3
A reacão
anti-romântica
3. A reacão anti-romântica
Neste capítulo, estudaremos o realismo, um movimento literário que se desen-
volve junto com o naturalismo e o parnasianismo, fazendo oposição ao ideário
romântico, manifestando-se por meio da prosa e da poesia.
OBJETIVOS
Neste capítulo, nosso principal objetivo é introduzir os estudos sobre o realismo para que,
depois, você seja capaz de conhecer os outros dois movimentos que se desenvolvem junto
dele – naturalismo e parnasianismo - e que, ao final, saiba diferenciá-los.
3.1 Realismo
O ano 1881 é o marco inicial do realismo brasileiro, com a publicação das obras
Memórias Póstumas de Brás Cubas e O alienista, ambas de Machado de Assis.
O estudioso da literatura brasileira, Hênio Tavares, define o Realismo como:
(...) movimento estético que surgiu nos domínios da pintura entre os anos de 1848
e 1859, tendo como figura destacada a do francês Coubert. É, pois, nesse aspecto,
um movimento específico do século XIX. Mas o realismo, como o classicismo e o
romantismo, é uma tendência geral da alma humana e, por isso, atuante nas diversas
fases da existência.
(...)
Como movimento estético definido, torna-se indubitavelmente um acontecimento da
segunda metade do século XIX. E nesse sentido como um movimento em oposição
ao espírito romântico, cuja base sentimental e devaneadora, já se apresentava a um
mundo empolgado pelas novidades científicas e conquistas recentes, como algo pie-
gas e ingênuo e, consequentemente, ultrapassado ou caduco. (1974, p. 73)
64 • capítulo 3
©© WIKIMEDIA.ORG
Figura 3.1 – Bonjour, Monsieur Courbet, 1854. A pintura realista de Gustave Courbet.
A OBJETIVIDADE
Quando analisa a realidade, o escritor realista assume uma posição cientificista ao
registrá-la objetivamente, como se produzisse um retrato fiel do que vê, não expres-
sando, por isso, qualquer julgamento de valor.
O propósito maior do escritor desse período é proporcionar o conhecimento da
realidade com vistas a promover sua modificação, por este motivo desprezavam a
monarquia, o clero e os ideais burgueses, defendendo com entusiasmo os ideais
republicanos e socialistas.
Neste ponto, a literatura realista transforma-se na denominada “arte engajada”, instru-
mento de denúncia social e combate às imposições do Estado.
O UNIVERSALISMO
Os temas não são mais particulares, mas universais, isto é, presentes na vida de
todos, sem distinção.
capítulo 3 • 65
O MATERIALISMO
É a negativa do sentimentalismo romântico, contraposição às questões de ordem meta-
física, voltado para a matéria. Dessa concepção surge a ideia do homem-engrenagem,
ou seja, o ser humano passa a ser visto como uma peça do mecanismo do universo.
A CONTEMPORANEIDADE
O escritor realista preocupa-se com o presente, por isso deixa de lado o nacionalismo
e o retorno ao passado histórico, tão trabalhados pelo romântico, na tentativa de en-
grandecer a nação brasileira. O realista está mais interessado em analisar a sociedade
tal como ela é, visando sua transformação.
O DETERMINISMO
É proveniente da Filosofia da arte, de Hypolite Taine, que preconiza três fatores deter-
minantes para a concepção de uma obra de arte, fruto do meio em que o escritor está
inserido, o momento histórico que vive e a raça a qual pertence.
O ANTIMONARQUISMO
Advindo do surgimento dos novos ideais fundados no republicanismo
66 • capítulo 3
ANTIBURGUESISMO
É a negativa da família burguesa como ponto central da formação da sociedade bra-
sileira, uma vez que demonstra a hipocrisia social e familiar proveniente das relações
adúlteras entre a esposa e o amigo do marido burguês.
O ANTICLERICISMO
Denúncia clara à hipocrisia das beatas e à corrupção dos padres que, na maioria das
vezes, revelavam apenas uma versão de sua multifacetada personalidade, capaz de
manipular aqueles que fossem mais ingênuos.
O OBJETIVISMO
o subjetivismo outrora valorizado pelos românticos cede lugar à visão externa do
homem, voltando-se, a partir de então, para as questões que se mostram diante e fora
de seu ser, ou seja, preocupa-se com a realidade cotidiana, objetiva, tal como ela é.
Características tão marcadas não surgiram sozinhas, mas são fruto do mo-
mento histórico vivido por todos. Vejamos.
capítulo 3 • 67
3.2 Fundamentação do novo gosto
(...) Um bando de ideias novas esvoaçou sobre nós de todos os pontos do horizonte.
Hoje, depois de mais de trinta anos; hoje que são elas correntes e andam por todas as
cabeças, não têm mais o sabor de novidade, nem lembram mais as feridas que, para
as espalhar, sofremos os combatentes do grande decênio: Positivismo, evolucionis-
mo, darwinismo, crítica religiosa, naturalismo, cientificismo na poesia e no romance,
folclore, novos processos de crítica e de história literária, transformação da intuição
do Direito e da política, tudo então se agitou e o brado de alarma partiu da Escola do
Recife" (ROMERO, 1926, apud BOSI, 1975, p. 184).
CONCEITO
Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss, cientificismo é a “concepção filosófica
de matriz positivista que afirma a superioridade da ciência sobre todas as outras formas de
compreensão humana da realidade (religião, filosofia metafísica etc.), por ser a única capaz
de apresentar benefícios práticos e alcançar autêntico rigor cognitivo”.
Já o materialismo, se acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss, é a “doutri-
na que identifica, na matéria e em seu movimento, a realidade fundamental do universo, com
a capacidade de explicação para todos os fenômenos naturais, sociais e mentais. ”
68 • capítulo 3
Na década de 1850, mais precisamente em 1859, Charles Darwin, cientista
inglês, publicava A origem das espécies, obra científica que preconizava a sele-
ção natural como a causa da evolução das espécies, visto que os mais fortes se
sobrepunham aos mais fracos, mesmo quando se tratava de circunstância ex-
terna, visto que o meio ambiente era fator preponderante no condicionamento
dos seres, negando a origem divina até então aceita como inquestionável.
Como se pode notar, Darwin dá nova versão para a origem e evolução das
espécies, fundando uma nova concepção biológica chamada de darwinismo ou
evolucionismo.
CONCEITO
O Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss define o darwinismo como a “teoria evolucio-
nista fundamentada nas ideias do naturalista inglês Charles Robert Darwin (1809-1882),
na qual são propostos mecanismos baseados na seleção natural, para explicar a origem, a
transformação e a perpetuação das espécies ao longo do tempo.”
CONCEITO
De acordo com a Enciclopédia Filosófica da Geosites:
“Chama-se determinismo a teoria filosófica segundo a qual todos os acontecimentos do
universo obedecem a leis naturais de tipo causal, ou seja, a natureza, a sociedade e a história
se subordinam a leis e causas necessárias. (...)
capítulo 3 • 69
Os deterministas radicais estendem o determinismo da natureza às ações humanas, que
seriam tão condicionadas e inevitáveis como os fenômenos naturais. (...)
A consequência mais importante do determinismo radical é a negação da possibilidade
de agir livremente, o que, segundo os defensores dessa teoria, não exime o homem da res-
ponsabilidade sobre seus atos, porquanto sempre será possível prever os resultados destes.
Esse conhecimento se transforma em nova causa da ação.(...).”
Disponível em: <http://br.geocities.com/sidereusnunciusdasilva/determinismo.htm.>
Acesso em: 6 jul. 2010.
(...) a nova concepção de vida orientada pela realidade traz como enriquecimento
uma expansão dos assuntos, uma capacidade profunda de observação da natureza
70 • capítulo 3
e da vida psicológica e, consequentemente, um refinamento e uma diferenciação das pos-
sibilidades expressivas da língua. Mas essas conquistas de conteúdo e de forma só são ele-
vadas às esferas de alta arte, quando o contato com a realidade se une a uma viva espiritua-
lidade e às atitudes humanas que sobreviveram à época idealista. (BÖSCH, 1967, p. 395),
O realismo, como vimos, foi um movimento artístico e literário que tem base
a reação ao romantismo. Os participantes desse movimento rejeitaram o
artificialismo neoclássico e o subjetivismo romântico, pois reconheciam a
obrigação da arte de retratar a vida, com todas as dificuldades e tradições das
classes média e baixa. Desse modo, a nova estética não era guiada pelas amos-
tras do passado, como fizera anteriormente o romantismo. O presente sim
era seu foco.
Muitos são os escritores realistas,
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capítulo 3 • 71
Não é possível negar, as provas são fortes, que neste livro de ficção o escritor vazou a
sua vingança contra o seu internamento no Colégio Abílio. O Ateneu é uma caricatura
sarcástica e, relativamente a Raul Pompéia dolorosíssima, da vida psicológica dos
internatos (ANDRADE, 2002, p.193).
Como todo o livro que o artista se lembra de um dia escrever, convertendo a alma
na câmara escura onde se reflete, através de um pó sutil e dourado, a vida exterior,
a Crônica de Saudades de Raul Pompéia é um livro acre e vibrante; o seu contexto
compõe-se de diversas séries de estremecimentos, produzidos, em sua imaginação
recentemente cultivada, pelas recordações de uma vida vivida em sentimental adoles-
cência. (1966, p. 169)
COMENTÁRIO
"Crônica de Saudades" é o subtítulo de O Ateneu, de Raul Pompéia.
72 • capítulo 3
Pompeia, dono de uma mente fugaz, atacava a oligarquia por meio dos co-
mícios públicos. Por esse motivo, foi perseguido e isso resultou na reprovação
nos exames finais da faculdade. Resolveu mudar para Recife, para concluir a
faculdade. No entanto, lá manteve viva produção intelectual enviando suas coo-
perações para os jornais do Rio de Janeiro.
Em 1893, divulgou a caricatura O Brasil crucificado entre dois ladrões, es-
tes últimos retratando ingleses e portugueses, ocasionando alvoroço no círcu-
lo político.
Suas atitudes político-ideológicas fizeram com que Olavo Bilac o atacasse
publicamente por meio de um artigo jornalístico. Diante disso, Pompéia teve o
ímpeto de desafiá-lo para um duelo que, felizmente, não aconteceu.
Depois disso, um artigo de Luís Murat causa ao escritor grande desânimo
moral e, no dia de Natal, suicida-se com um tiro no peito.
Observe um trecho da carta que Araripe Júnior (1966, p. 173) enviou a João
Ribeiro, a respeito da morte de Raul Pompéia:
Não posso referir-me a essa desgraça sem tremer. Os amigos estamos inconsoláveis.
Pormenores, para quê? És psicólogo; avaliarás das causas. As imediatas não têm valor.
Todavia, imagina que no dia 14 de dezembro, o Raul jantava comigo; no dia 22 sepa-
rávamo-nos, depois de longa palestra, no ponto dos bondes; a 25 o nosso amiguinho
suicidava-se. Nada denunciava o perigo.
Foi pelo País a 26, pela manhã, que tive em casa a fatal notícia. Fiquei estúpido. Vesti-
me, corri à residência da família, e mal tive tempo de ver-lhe o rosto pálido e escavei-
rado, porquê o enterro ia sair.
Não pude acreditar que aquele rosto sem expressão fosse o mesmo do risonho, e
espirituoso rapaz, que ainda não havia dois dias palestrava sobre estética e política!
Não falemos mais nisto. Parece tudo um pesadelo.
capítulo 3 • 73
Além de um incontável número de contos e crônicas esparsos. Essa diver-
sidade de produção justifica-se pelas próprias palavras de Pompéia, expressas
por Araripe Junior no excerto abaixo:
Raul Pompéia, pois, afirmava que de três fatores dependia o esplendor de uma ode,
de um romance, de um quadro: em primeiro lugar, o artista devia ter a intuição ex-
cepcional das leis da existência; em segundo, era indispensável que ele conhecesse
a fundo e possuísse, como numa escala cromática, todos os segredos das formas,
isto é, as leis da morfologia; finalmente, porque julgava mais que tudo fundamental,
aparecia a potência imaginativa capaz de fazer unidade a tudo isto, iluminando, colo-
rindo, exprimindo. Era a essa operação que ele dava o nome de metamorfose artística.
(ARARIPE JUNIOR, 1963, p. 261)
LEITURA
Leia o capítulo um de O Ateneu, de Raul Pompéia, disponível em: <http://www.dominiopubli-
co.gov.br/download/texto/bn000005.pdf>. Acesso em 3 mar. 2016
“Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta. ”
Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões
de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico,
diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados maternos
um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão
rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima
rigoroso. Lembramo-nos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a
mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora e não
viesse de longe a enfiada das decepções que nos ultrajam.
Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a
saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma
em todas as datas. Feita a compensação dos desejos que variam, das aspirações que se
transformam, alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica de
esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro
mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao crepúsculo — a paisagem é a mesma de
cada lado beirando a estrada da vida.
Eu tinha onze anos.
Freqüentara como externo, durante alguns meses, uma escola familiar do Caminho Novo,
onde algumas senhoras inglesas, sob a direção do pai, distribuíam educação à infância como
74 • capítulo 3
melhor lhes parecia. Entrava às nove horas, timidamente, ignorando as lições com a maior
regularidade, e bocejava até às duas, torcendo-me de insipidez sobre os carcomidos bancos
que o colégio comprara, de pinho e usados, lustrosos do contato da malandragem de não sei
quantas gerações de pequenos. Ao meio-dia, davam-nos pão com manteiga. Esta recordação
gulosa é o que mais pronunciadamente me ficou dos meses de externato; com a lembran-
ça de alguns companheiros — um que gostava de fazer rir à aula, espécie interessante de
mono louro, arrepiado, vivendo a morder, nas costas da mão esquerda, uma protuberância
calosa que tinha; outro adamado, elegante, sempre retirado, que vinha à escola de branco,
engomadinho e radioso, fechada a blusa em diagonal do ombro à cinta por botões de ma-
drepérola. Mais ainda: a primeira vez que ouvi certa injúria crespa, um palavrão cercado de
terror no estabelecimento, que os partistas denunciavam às mestras por duas iniciais como
em monograma.
Lecionou-me depois um professor em domicílio.
Apesar deste ensaio da vida escolar a que me sujeitou a família, antes da verdadeira pro-
vação, eu estava perfeitamente virgem para as sensações novas da nova fase. O internato!
Destacada do conchego placentário da dieta caseira, vinha próximo o momento de se definir
a minha individualidade. Amarguei por antecipação o adeus às primeiras alegrias; olhei triste
os meus brinquedos, antigos já! os meus queridos pelotões de chumbo! espécie de museu
militar de todas as fardas, de todas as bandeiras, escolhida amostra da força dos estados, em
proporções de microscópio, que eu fazia formar a combate como uma ameaça tenebrosa ao
equilíbrio do mundo; que eu fazia guerrear em desordenado aperto, — massa tempestuosa
das antipatias geográficas, encontro definitivo e ebulição dos seculares ódios de fronteira
e de raça, que eu pacificava por fim, com uma facilidade de Providência Divina, intervindo
sabiamente, resolvendo as pendências pela concórdia promíscua das caixas de pau. Força
era deixar à ferrugem do abandono o elegante vapor da linha circular do lago, no jardim, onde
talvez não mais tornasse a perturbar com a palpitação das rodas a sonolência morosa dos
peixinhos rubros, dourados, argentados, pensativos à sombra dos tinhorões, na transparência
adamantina da água...
Mas um movimento animou-me, primeiro estímulo sério da vaidade: distanciava-me da
comunhão da família, como um homem! Ia por minha conta empenhar a luta dos merecimen-
tos; e a confiança nas próprias forças sobrava. Quando me disseram que estava a escolha
feita da casa de educação que me devia receber, a notícia veio achar-me em armas para a
conquista audaciosa do desconhecido.
Um dia, meu pai tomou-me pela mão, minha mãe beijou-me a testa, molhando-me de
lágrimas os cabelos e eu parti.
Duas vezes fora visitar o Ateneu antes da minha instalação.
capítulo 3 • 75
Ateneu era o grande colégio da época. Afamado por um sistema de nutrido reclame,
mantido por um diretor que de tempos a tempos reformava o estabelecimento, pintando
-o jeitosamente de novidade, como os negociantes que liquidam para recomeçar com arti-
gos de última remessa; o Ateneu desde muito tinha consolidado crédito na preferência dos
pais, sem levar em conta a simpatia da meninada, a cercar de aclamações o bombo vistoso
dos anúncios.
O Dr. Aristarco Argolo de Ramos, da conhecida família do Visconde de Ramos, do Nor-
te, enchia o império com o seu renome de pedagogo. Eram boletins de propaganda pelas
províncias, conferências em diversos pontos da cidade, a pedidos, à substância, atochando a
imprensa dos lugarejos, caixões, sobretudo, de livros elementares, fabricados às pressas com
o ofegante e esbaforido concurso de professores prudentemente anônimos, caixões e mais
caixões de volumes cartonados em Leipzig, inundando as escolas públicas de toda a parte
com a sua invasão de capas azuis, róseas, amarelas, em que o nome de Aristarco, inteiro e
sonoro, oferecia-se ao pasmo venerador dos esfaimados de alfabeto dos confins da pátria.
Os lugares que os não procuravam eram um belo dia surpreendidos pela enchente, gratuita,
espontânea, irresistível! E não havia senão aceitar a farinha daquela marca para o pão do es-
pírito. E engordavam as letras, à força, daquele pão. Um benemérito. Não admira que em dias
de gala, íntima ou nacional, festas do colégio ou recepção da coroa, o largo peito do grande
educador desaparecesse sob constelações de pedraria, opulentando a nobreza de todos os
honoríficos berloques.
Nas ocasiões de aparato é que se podia tomar o pulso ao homem. Não só as conde-
corações gritavam-lhe do peito como uma couraça de grilos: Ateneu! Ateneu! Aristarco, todo
era um anúncio. Os gestos, calmos, soberanos, eram de um rei — o autocrata excelso dos si-
labários; a pausa hierática do andar deixava sentir o esforço, a cada passo, que ele fazia para
levar adiante, de empurrão, o progresso do ensino público; o olhar fulgurante, sob a crispação
áspera dos supercílios de monstro japonês, penetrando de luz as almas circunstantes — era
a educação da inteligência; o queixo, severamente escanhoado, de orelha a orelha, lembrava
a lisura das consciências limpas — era a educação moral. A própria estatura, na imobilidade
do gesto, na mudez do vulto, a simples estatura dizia dele: aqui está um grande homem... não
vêem os cavados de Golias?!... Retorça-se sobre tudo isto um par de bigodes, volutas maci-
ças de fios alvos, torneadas a capricho, cobrindo os lábios fecho de prata sobre o silêncio de
ouro, que tão belamente impunha como o retraimento fecundo do seu espírito, — teremos
esboçado, moralmente, materialmente, o perfil do ilustre diretor. Em suma, um personagem
que, ao primeiro exame, produzia-nos a impressão de um enfermo, desta enfermidade atroz
e estranha: a obsessão da própria estátua. Como tardasse a estátua, Aristarco interinamente
satisfazia-se com a afluência dos estudantes ricos para o seu instituto. De fato, os educandos
do Ateneu significavam a fina flor da mocidade brasileira.
76 • capítulo 3
A irradiação da réclame alongava de tal modo os tentáculos através do país, que não
havia família, de dinheiro, enriquecida pela setentrional borracha ou pela charqueada do sul,
que não reputasse um compromisso de honra com a posteridade doméstica mandar dentre
seus jovens, um, dois, três representantes abeberar-se à fonte espiritual do Ateneu.
Fiados nesta seleção apuradora, que é comum o erro sensato de julgar melhores famílias
as mais ricas, sucedia que muitas, indiferentes mesmo e sorrindo do estardalhaço da fama, lá
mandavam os filhos. Assim entrei eu.
A primeira vez que vi o estabelecimento, foi por uma festa de encerramento de trabalhos.
Transformara-se em anfiteatro uma das grandes salas da frente do edifício, exatamente
a que servia de capela; paredes estucadas de suntuosos relevos, e o teto aprofundado em
largo medalhão, de magistral pintura, onde uma aberta de céu azul despenhava aos cachos
deliciosos anjinhos, ostentando atrevimentos róseos de carne, agitando os minúsculos pés
e as mãozinhas, desatando fitas de gaza no ar. Desarmado o oratório, construíram-se ban-
cadas circulares, que encobriam o luxo das paredes. Os alunos ocupavam a arquibancada.
Como a maior concorrência preferia sempre a exibição dos exercícios ginásticos, solenizada
dias depois do encerramento das aulas, a acomodação deixada aos circunstantes era pouco
espaçosa; e o público, pais e correspondentes em geral, porém mais numeroso do que se
esperava, tinha que transbordar da sala da festa para a imediata. Desta ante-sala, trepa-
do a uma cadeira, eu espiava. Meu pai ministrava-me informações. Diante da arquibancada,
ostentava-se uma mesa de grosso pano verde e borlas de ouro. Lá estava o diretor, o mi-
nistro do império, a comissão dos prêmios. Eu via e ouvia. Houve uma alocução comovente
de Aristarco; houve discursos de alunos e mestres; houve cantos, poesias declamadas em
diversas línguas. O espetáculo comunicava-me certo prazer repeitoso. O diretor, ao lado do
ministro, de acanhado físico, fazia-o incivilmente desaparecer na brutalidade de um contraste
escandaloso. Em grande tenue dos dias graves, sentava-se, elevado no seu orgulho como
em um trono. A bela farda negra dos alunos, de botões dourados, infundia-me a consideração
tímida de um militarismo brilhante, aparelhado para as campanhas da ciência e do bem. A
letra dos cantos, em coro dos falsetes indisciplinados da puberdade; os discursos, visados
pelo diretor, pançudos de sisudez, na boca irreverente da primeira idade, como um Cendrillon
malfeito da burguesia conservadora, recitados em monotonia de realejo e gestos rodantes de
manivela, ou exagerados, de voz cava e caretas de tragédia fora de tempo, eu recebia tudo
convictamente, como o texto da bíblia do dever; e as banalidades profundamente lançadas
como as sábias máximas do ensino redentor. Parecia-me estar vendo a legião dos amigos
do estudo, mestres à frente, na investida heróica do obscurantismo, agarrando pelos cabelos,
derribando, calcando aos pés a Ignorância e o Vício, misérrimos trambolhos, consternados
e esperneantes.
capítulo 3 • 77
Um discurso principalmente impressionou-me. À direita da comissão dos prêmios, ficava
a tribuna dos oradores. Galgou-a firme, tesinho, O Venâncio, professor do colégio, a quarenta
mil-réis por matéria, mas importante, sabendo falar grosso, o timbre de independência, mes-
tiço de bronze, pequenino e tenaz, que havia de varar carreira mais tarde. O discurso foi o
confronto chapa dos torneios medievais com o moderno certame das armas da inteligência;
depois, uma preleção pedagógica, tacheada de flores de retórica a martelo; e a apologia da
vida de colégio, seguindo-se a exaltação do Mestre em geral e a exaltação, em particular, de
Aristarco e do Ateneu. “O mestre, perorou Venâncio, é o prolongamento do amor paterno, é o
complemento da ternura das mães, o guia zeloso dos primeiros passos, na senda escabrosa
que vai às conquistas do saber e da moralidade. Experimentado no labutar cotidiano da sa-
grada profissão, o seu auxílio ampara-nos como a Providência na Terra; escolta-nos assíduo
como um anjo da guarda; a sua lição prudente esclarece-nos a jornada inteira do futuro.
Devemos ao pai a existência do corpo; o mestre cria-nos o espírito (sorites de sensação), e
o espírito, é a força que impele, o impulso que triunfa, o triunfo que nobilita, o enobrecimento
que glorifica, e a glória é o ideal da vida, o louro do guerreiro, o carvalho do artista, a palma
do crente! A família, é o amor no lar, o estado é a segurança civil; o mestre, com amor forte
que ensina e corrige, prepara-nos para a segurança íntima inapreciável da vontade. Acima de
Aristarco — Deus! Deus tão-somente; abaixo de Deus — Aristarco.”
Um último gesto espaçoso, como um jamegão no vácuo, arrematou o rapto de eloqüência.
Eu me sentia compenetrado daquilo tudo; não tanto por entender bem, como pela facilida-
de da fé cega a que estava disposto. As paredes pintadas da ante-sala imitavam pórfiro verde;
em frente ao pórtico aberto para o jardim, graduava-se uma ampla escada, caminho do andar
superior. Flanqueando a majestosa porta desta escada, havia dois quadros de alto-relevo; à
direita, uma alegoria das artes e do estudo; à esquerda, as indústrias humanas, meninos nus
como nos frisos de Kaulbach, risonhos, com a ferramenta simbólica — psicologia pura do traba-
lho, modelada idealmente na candura do gesso e da inocência. Eram meus irmãos! Eu estava a
esperar que um deles, convidativo, me estendesse a mão para o bailado feliz que os levava. Oh!
que não seria o colégio, tradução concreta da alegoria, ronda angélica de corações à porta de
um templo, dulia permanente das almas jovens no ritual austero da virtude!
Por ocasião da festa da ginástica, voltei ao colégio.
O Ateneu estava situado no Rio Comprido, extremo ao chegar aos morros.
As eminências de sombria pedra e a vegetação selvática debruçavam sobre o edifício um
crepúsculo de melancolia, resistente ao próprio sol a pino dos meios-dias de novembro. Esta
melancolia era um plágio ao detestável pavor monacal de outra casa de educação, o negro
Caraça de Minas. Aristarco dava-se palmas desta tristeza aérea — a atmosfera moral da
meditação e do estudo, definia, escolhida a dedo para maior luxo da casa, como um apêndice
mínimo da arquitetura.
78 • capítulo 3
No dia da festa da educação física, como rezava o programa (programa de arromba,
porque o secretário do diretor tinha o talento dos programas) não percebi a sensação de
ermo tão acentuada em sítios montanhosos, que havia de notar depois. As galas do mo-
mento faziam sorrir a paisagem. O arvoredo do imenso jardim, entretecido a cores por mil
bandeiras, brilhava ao sol vivo com o esplendor de estranha alegria; os vistosos panos, em
meio da ramagem, fingiam flores colossais, numa caricatura extravagante de primavera; os
galhos frutificavam em lanternas venezianas, pomos de papel enormes, de uma uberdade
carnavalesca. Eu ia carregado, no impulso da multidão. Meu pai prendia-me solidamente o
pulso, que me não extraviasse.
Mergulhado na onda, eu tinha que olhar para cima, para respirar. Adiante de mim, um
sujeito mais próximo fez-me rir; levava de fora a fralda da camisa… Mas não era fralda; veri-
fiquei que era o lenço. Do chão subia um cheiro forte de canela pisada; através das árvores,
com intervalos, passavam rajadas de música, como uma tempestade de filarmônicas.
Um último aperto mais rijo, estalando-me as costelas, espremeu-me, por um estreito
corte de muro, para o espaço livre.
Em frente, um gramal vastíssimo. Rodeava-o uma ala de galhardetes, contentes no espa-
ço, com o pitoresco dos tons enérgicos cantando vivo sobre a harmoniosa surdina do verde
das montanhas. Por todos os lados apinhava-se o povo. Voltando-me, divisei, ao longo do
muro, duas linhas de estrado com cadeiras quase exclusivamente ocupadas por senhoras,
fulgindo os vestuários, em violenta confusão de colorido. Algumas protegiam o olhar com a
mão enluvada, com o leque, à altura da fronte, contra a rutilação do dia num bloco de nuvens
que crescia do céu. Acima do estrado balouçavam docemente e sussurravam bosquetes de
bambu, projetando franjas longuíssimas de sombra pelo campo de relva.
Algumas damas empunhavam binóculos. Na direção dos binóculos distinguia-se um
movimento alvejante. Eram os rapazes. “Aí vêm! disse-me meu pai; vão desfilar por diante
da princesa.” A princesa imperial, Regente nessa época, achava-se à direita em gracioso
palanque de sarrafos.
Momentos depois, adiantavam-se por mim os alunos do Ateneu. Cerca de trezentos; pro-
duziam-me a impressão do inumerável. Todos de branco, apertados em larga cinta vermelha,
com alças de ferro sobre os quadris e na cabeça um pequeno gorro cingido por um cadarço
de pontas livres. Ao ombro esquerdo traziam laços distintivos das turmas. Passaram a toque
de clarim, sopesando os petrechos diversos dos exercícios. Primeira turma, os halteres; se-
gunda, as maças; terceira, as barras.
Fechavam a marcha, desarmados, os que figurariam simplesmente nos exercícios gerais.
Depois de longa volta, a quatro de fundo, dispuseram-se em pelotões, invadiram o gramal
e, cadenciados pelo ritmo da banda de colegas, que os esperava no meio do campo, com
capítulo 3 • 79
a certeza de amestrada disciplina, produziram as manobras perfeitas de um exército sob o
comando do mais raro instrutor.
Diante das fileiras, Bataillard, o professor de ginástica, exultava envergando a altivez do
seu sucesso na extremada elegância do talhe, multiplicando por milagroso desdobramento
o compêndio inteiro da capacidade profissional, exibida em galeria por uma série infinita
de atitudes. A admiração hesitava a decidir-se pela formosura masculina e rija da plástica
de músculos a estalar o brim do uniforme, que ele trajava branco como os alunos, ou pela
nervosa celeridade dos movimentos, efeito elétrico de lanterna mágica, respeitando-se na
variedade prodigiosa a unidade da correção suprema.
Ao peito tilintavam-se as agulhetas do comando, apenas de cordões vermelhos em tran-
ça. Ele dava as ordens fortemente, com uma vibração penetrante de corneta que dominava
a distancia, e sorria à docilidade mecânica dos rapazes. Como oficiais subalternos, auxilia-
vam-no os chefes de turma, postados devidamente com os pelotões, sacudindo à manga
distintivos de fita verde e canutilho.
Acabadas as evoluções, apresentaram-se os exercícios. Músculos do braço, músculos do
tronco, tendões dos jarretes, a teoria toda do corpore sano foi praticada valentemente ali, pre-
cisamente, com a simultaneidade exata das extensas máquinas. Houve após, o assalto aos
aparelhos. Os aparelhos alinhavam-se a uma banda do campo, a começar do palanque da
Regente. Não posso dar idéia do deslumbramento que me ficou desta parte. Uma desordem
de contorções, deslocadas e atrevidas; uma vertigem de volteios à barra fixa, temeridades
acrobáticas ao trapézio, às perchas, às cordas, às escadas; pirâmides humanas sobre as
paralelas, deformando-se para os lados em curvas de braços e ostentações vigorosas de
tórax; formas de estatuária viva, trêmulas de esforço, deixando adivinhar de longe o estalido
dos ossos desarticulados; posturas de transfiguração sobre invisível apoio; aqui e ali uma
cabecinha loura, cabelos em desordem cacheados à testa, um rosto injetado pela inversão do
corpo, lábios entreabertos ofegando, olhos semicerrados para escapar à areia dos sapatos,
costas de suor, colando a blusa em pasta, gorros sem dono que caíam do alto e juncavam a
terra; movimento, entusiasmo por toda a parte e a soalheira, branca nos uniformes, queiman-
do os últimos fogos da glória diurna sobre aquele triunfo espetaculoso da saúde, da força,
da mocidade.
O Professor Bataillard, enrubescido de agitação, rouco de comandar, chorava de prazer.
Abraçava os rapazes indistintamente. Duas bandas militares revezavam-se ativamente, co-
municando a animação à massa dos espectadores. O coração pulava-me no peito com um
alvoroço novo, que me arrastava para o meio dos alunos, numa leva ardente de fraternidade.
Eu batia palmas; gritos escapavam-me, de que me arrependia quando alguém me olhava.
Deram fim à festa os saltos, os páreos de carreira, as lutas romanas e a distribuição
dos prêmios de ginástica, que a mão egrégia da Sereníssima Princesa e a pouco menos do
80 • capítulo 3
Esposo Augusto alfinetavam sobre os peitos vencedores. Foi de ver-se os jovens atletas aos
pares aferrados, empuxando-se, constringindo-se, rodopiando, rolando na relva com gritos
satisfeitos e arquejos de arrancada; os corredores, alguns em rigor, respiração medida, bei-
ços unidos, punhos cerrados contra o corpo, passo miúdo e vertiginoso; outros, irregulares,
bracejantes prodigalizando pernadas, rasgando o ar a pontapés, numa precipitação desen-
gonçada de avestruz, chegando estofados, com placas de poeira na cara, ao poste da vitória.
Aristarco arrebentava de júbilo. Pusera de parte o comedimento soberano que eu lhe
admirara na primeira festa. De ponto em branco, como a rapaziada, e chapéu-do-chile, distri-
buía-se numa ubiqüidade impossível de meio ambiente. Viam-no ao mesmo tempo a festejar
os príncipes com o risinho nasal, cabritante, entre lisonjeiro e irônico, desfeito em etiquetas
de reverente súdito e cortesão; viam-no bradando ao professor de ginástica, a gesticular com
o chapéu seguro pela copa; viam-no formidável, com o perfil leonino rugir sobre um discípulo
que fugira aos trabalhos, sobre outro que tinha limo nos joelhos, de haver lutado em lugar
úmido, gastando tal veemência no ralho, que chegava a ser carinhoso.
O figurino campestre rejuvenescera-o. Sentia as pernas leves e percorria celerípede a
frente dos estrados, cheio de cumprimentos para os convidados especiais e de interjetivos
amáveis para todos. Perpassava como uma visão de brim claro, súbito extinta para reapare-
cer mais viva noutro ponto. Aquela expansão vencia-nos; ele irradiava de si, sobre os alunos,
sobre os espectadores, o magnetismo dominador dos estandartes de batalha. Roubava-nos
dois terços da atenção que os exercícios. pediam; indenizava-nos com o equivalente em sur-
presas de vivacidade, que desprendia de si, profusamente, por erupções de jorro em roda, por
ascensões cobrejantes de girândola, que iam às nuvens, que baixavam depois serenamente,
diluídas na viração da tarde, que os pulmões bebiam. Ator profundo, realizava ao pé da letra,
a valer, o papel diáfano, sutil, metafísico, de alma da festa e alma do seu instituto.
Uma coisa o entristeceu, um pequenino escândalo. Seu filho Jorge, na distribuição dos
prêmios, recusara-se a beijar a mão da princesa, como faziam todos ao receber a medalha.
Era republicano o pirralho! Tinha já aos quinze anos as convicções ossificadas na espinha
inflexível do caráter! Ninguém mostrou perceber a bravura. Aristarco, porém, chamou o me-
nino à parte. Encarou-o silenciosamente e — nada mais. E ninguém mais viu o republicano!
Consumira-se naturalmente o infeliz, cremado ao fogo daquele olhar! Nesse momento as
bandas tocavam o hino da monarquia jurada, última verba do programa.
Começava a anoitecer, quando o colégio formou ao toque de recolher. Desfilaram acla-
mados, entre alas de povo, e se foram do campo, cantando alegremente uma canção escolar.
À noite houve baile nos três salões inferiores do lance principal do edifício e iluminação
no jardim.
Na ocasião em que me ia embora, estavam acendendo luzes variadas de Bengala diante
da casa. O Ateneu, quarenta janelas, resplendentes do gás interior, dava-se ares de encan-
capítulo 3 • 81
tamento com a iluminação de fora. Erigia-se na escuridão da noite, como imensa muralha de
coral flamante, como um cenário animado de safira com horripilações errantes de sombra,
como um castelo fantasma batido de luar verde emprestado à selva intensa dos romances
cavalheirescos, despertado um momento da legenda morta para uma entrevista de espectros
e recordações. Um jacto de luz elétrica, derivado de foco invisível, feria a inscrição dourada
ATHENÆUM em arco sobre as janelas centrais, no alto do prédio. A uma delas, à sacada,
Aristarco mostrava-se. Na expressão olímpica do semblante transpirava a beatitude de um
gozo superior. Gozava a sensação prévia, no banho luminoso, da imortalidade a que se jul-
gava consagrado. Devia ser assim: — luz benigna e fria, sobre bustos eternos, o ambiente
glorioso do Panteão. A contemplação da posteridade embaixo.
Aristarco tinha momentos destes, sinceros. O anúncio confundia-se com ele, suprimia-o,
substituía-o, e ele gozava como um cartaz que experimentasse o entusiasmo de ser verme-
lho. Naquele momento, não era simplesmente a alma do seu instituto, era a própria feição
palpável, a síntese grosseira do título, o rosto, a testada, o prestígio material de seu colégio,
idêntico com as letras que luziam em auréola sobre a cabeça. As letras, de ouro; ele, imortal:
única diferença.
Guardei, na imaginação infantil, a gravura desta apoteose com o atordoamento ofuscado,
mais ou menos de um sujeito partindo à meia noite de qualquer teatro, onde, em mágica
beata, Deus Padre pessoalmente se houvesse prestado a concorrer para a grandeza do
último quadro.
— Conheci-o solene na primeira festa, jovial na segunda; conheci-o mais tarde em mil
situações, de mil modos; mas o retrato que me ficou para sempre do meu grande diretor,
foi aquele — o belo bigode branco, o queixo barbeado, o olhar perdido nas trevas, fotografia
estática, na aventura de um raio elétrico.
É fácil conceber a atração que me chamava para aquele mundo tão altamente interes-
sante, no conceito das minhas impressões. Avaliem o prazer que tive, quando me disse meu
pai que eu ia ser apresentado ao diretor do Ateneu e à matrícula. O movimento não era
mais a vaidade, antes o legítimo instinto da responsabilidade altiva; era uma conseqüência
apaixonada da sedução do espetáculo, o arroubo de solidariedade que me parecia prender
à comunhão fraternal da escola. Honrado engano, esse ardor franco por uma empresa ideal
de energia e de dedicação premeditada confusamente, no calculo pobre de uma experiência
de dez anos.
O diretor recebeu-nos em sua residência, com manifestações ultra de afeto. Fez-se ca-
tivante, paternal; abriu-nos amostras dos melhores padrões do seu espírito, evidenciou as
faturas do seu coração. O gênero era bom sem dúvida nenhuma; que apesar do paletó de
seda e do calçado raso com que se nos apresentava, apesar da bondosa familiaridade com
82 • capítulo 3
que declinava até nós, nem um segundo o destituí da altitude de divinização em que o meu
critério embasbacado o aceitara.
Verdade é que não era fácil reconhecer ali, tangível e em carne, uma entidade outrora
da mitologia das minhas primeiras concepções antropomórficas; logo após Nosso Senhor,
o qual eu imaginara velho, feiíssimo, barbudo, impertinente, corcunda, ralhando por trovões,
carbonizando meninos com o corisco. Eu aprendera a ler pelos livros elementares de Aristar-
co, e o supunha velho como o primeiro, porém rapado, de cara chupada, pedagógica, óculos
apocalípticos, carapuça negra de borla, fanhoso, onipotente e mau, com uma das mãos para
trás escondendo a palmatória e doutrinando à humanidade o bê-á-bá.
As impressões recentes derrogavam o meu Aristarco; mas a hipérbole essencial do
primitivo transmitia-se ao sucessor por um mistério de hereditariedade renitente. Dava-me
gosto então a peleja renhida das duas imagens e aquela complicação imediata do paletó de
seda e do sapato raso, fazendo aliança com Aristarco II contra Aristarco I, no reino da fantasia.
Nisto afagaram-me a cabeça. Era Ele! Estremeci.
“Como se chama o amiguinho?” perguntou-me o diretor.
— Sérgio... dei o nome todo, baixando os olhos e sem esquecer o “seu criado” da estri-
ta cortesia.
— Pois, meu caro Sr. Sérgio, o amigo há de ter a bondade de ir ao cabeleireiro deitar
fora estes cachinhos... Eu tinha ainda os cabelos compridos, por um capricho amoroso de
minha mãe. O conselho era visivelmente salgado de censura. O diretor, explicando a meu
pai, acrescentou com o risinho nasal que sabia fazer: “Sim, senhor, os meninos bonitos não
provam bem no meu colégio...”
— Peço licença para defender os meninos bonitos... objetou alguém entrando.
Surpreendendo-nos com esta frase, untuosamente escoada por um sorriso, chegou a
senhora do diretor, D. Ema. Bela mulher em plena prosperidade dos trinta anos de Balzac,
formas alongadas por graciosa magreza, erigindo, porém, o tronco sobre quadris amplos, for-
tes como a maternidade; olhos negros, pupilas retintas, de uma cor só, que pareciam encher
o talho folgado das pálpebras; de um moreno rosa que algumas formosuras possuem, e que
seria também a cor do jambo, se jambo fosse rigorosamente o fruto proibido. Adiantava-se
por movimentos oscilados, cadência de minueto harmonioso e mole que o corpo alternava.
Vestia cetim preto justo sobre as formas, reluzente como pano molhado; e o cetim vivia com
ousada transparência a vida oculta da carne. Esta aparição maravilhou-me.
Houve as apresentações de cerimônia, e a senhora com um nadinha de excessivo de-
sembaraço sentou-se no divã perto de mim.
— Quantos anos tem? perguntou-me.
— Onze anos...
capítulo 3 • 83
— Parece ter seis, com estes lindos cabelos.
Eu não era realmente desenvolvido. A senhora colhia-me o cabelo nos dedos:
— Corte e ofereça à mamãe, aconselhou com uma carícia; é a infância que ali fica, nos
cabelos louros... Depois, os filhos nada mais têm para as mães.
O poemeto de amor materno deliciou-me como uma divina música. Olhei furtivamente
para a senhora. Ela conservava sobre mim as grandes pupilas negras, lúcidas, numa expres-
são de infinda bondade! Que boa mãe para os meninos, pensava eu. Depois, voltada para
meu pai, formulou sentidamente observações a respeito da solidão das crianças no internato.
— Mas o Sérgio é dos fortes, disse Aristarco, apoderando-se da palavra. Demais, o meu
colégio é apenas maior que o lar doméstico. O amor não é precisamente o mesmo, mas os
cuidados de vigilância são mais ativos. São as crianças os meus prediletos. Os meus esforços
mais desvelados são para os pequenos. Se adoecem e a família está fora, não os confio a um
correspondente... Trato-os aqui, em minha casa. Minha senhora é a enfermeira. Queria que o
vissem os detratores...
Enveredando pelo tema querido do elogio próprio e do Ateneu, ninguém mais pôde falar...
Aristarco, sentado, de pé, cruzando terríveis passadas, imobilizando-se a repentes ines-
perados, gesticulando como um tribuno de meetings, clamando como para um auditório de
dez mil pessoas, majestoso sempre, alçando os padrões admiráveis, como um leiloeiro, e as
opulentas faturas, desenrolou, com a memória de uma última conferência, a narrativa dos
seus serviços à causa santa da instrução. Trinta anos de tentativas e resultados, esclare-
cendo como um farol diversas gerações agora influentes no destino do país! E as reformas
futuras? Não bastava a abolição dos castigos corporais, o que já dava uma benemerência
passável. Era preciso a introdução de métodos novos, supressão absoluta dos vexames de
punição, modalidades aperfeiçoadas no sistema das recompensas, ajeitação dos trabalhos,
de maneira que seja a escola um paraíso; adoção de normas desconhecidas cuja eficácia ele
pressentia, perspicaz como as águias. Ele havia de criar... um horror, a transformação moral
da sociedade!
Uma hora trovejou-lhe à boca, em sangüínea eloqüência, o gênio do anúncio. Miramo-lo
na inteira expansão oral, como, por ocasião das festas, na plenitude da sua vivacidade práti-
ca. Contemplávamos (eu com aterrado espanto) distendido em grandeza épica — o homem
sanduíche da educação nacional, lardeado entre dois monstruosos cartazes. As costas, o seu
passado incalculável de trabalhos; sobre o ventre, para a frente, o seu futuro: a réclame dos
imortais projetos.
84 • capítulo 3
CONEXÃO
Leia a obra completa de O Ateneu, de Raul Pompéia, disponível em: <http://www.domi-
niopublico.gov.br/download/texto/bn000005.pdf>. Acesso em 3 jul. 2010.
Para concluir nosso panorama acerca de Raul Pompéia, citamos Bosi (1975,
p.203-204):
ATIVIDADES
Leia o excerto do capítulo dois de O Ateneu, de Raul Pompéia, disponível em: <http://www.
dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000005.pdf>. Acesso em 3 mai. 2016:
Os companheiros de classe eram cerca de vinte; uma variedade de tipos que me divertia.
O Gualtério, miúdo, redondo de costas, cabelos revoltos, motilidade brusca e caretas de símio
- palhaço dos outros, como dizia o professor; o Nascimento, o bicanca, alongado por um mo-
delo geral de pelicano, nariz esbelto, curvo e largo como uma foice; o Álvares, moreno, cenho
carregado, cabeleira espessa e intonsa de vate de taverna, violento e estúpido, que Mânlio
atormentava, designando para o mister das plataformas de bonde, com a chapa numerada
dos recebedores, mais leve de carregar que a responsabilidade dos estudos; o Almeidinha,
claro, translúcido, rosto de menina, faces de um rosa doentio, que se levantava para ir à
pedra com um vagar lânguido de convalescente; o Maurílio, nervoso, insofrido, fortíssimo em
tabuada: cinco vezes três, vezes dois, noves fora, vezes sete?... Lá estava Maurílio, trêmulo,
sacudindo no ar o dedinho esperto... olhos fúlgidos no rosto moreno, marcado por uma pinta
na testa; o Negrão, de ventas acesas, lábios inquietos, fisionomia agreste de cabra, canhoto e
anguloso, incapaz de ficar sentado três minutos, sempre à mesa do professor e sempre enxo-
capítulo 3 • 85
tado, debulhando um risinho de pouca-vergonha, fazendo agrados ao mestre, chamando-lhe
bonzinho, que não correspondia com um sopapo, aventurando a todo ensejo uma tentativa
de abraço que Mânlio repelia, precavido de confianças; Batista Carlos, raça de bugre, valido,
de má cara, coçando-se muito, como se incomodasse a roupa no corpo, alheio às coisas da
aula, como se não tivesse nada com aquilo, espreitando apenas o professor para aproveitar
as distrações e ferir a orelha aos vizinhos com uma seta de papel dobrado. Às vezes a seta
do bugre ricochetava até à mesa de Mânlio. Sensação; suspendiam-se os trabalhos; rigoroso
inquérito. Em vão, que os partistas temiam-no e ele era matreiro e sonso para disfarçar.
Responda:
01. Como é feita a descrição dos personagens?
REFLEXÃO
O realismo é um movimento literário do século XIX. Os escritores realistas tinham o objetivo
de fazer uma análise rigorosa e precisa do mundo, com vistas a proporcionar uma mudança
substancial nos campos social, econômico e político. Por isso, apoiavam-se no cientificismo,
no materialismo e no liberalismo dentre outras correntes científico-filosóficas da época.
LEITURA
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix.1995.
COUTINHO, Afrânio. Co-Direção: Eduardo de Faria Coutinho. A Literatura no Brasil. Relações e
perspectivas. São Paulo: Global 1999.
MELO, E SOUZA, Antônio Candido. E CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira.
São Paulo: Difusão Européia do Livro. 1968.
MOISS, Massaud. História da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix.1984.
86 • capítulo 3
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, M. Aspectos da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia. 2002.
ARARIPE JUNIOR, T. Obra crítica de Araripe Júnior. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e
Cultura: Casa de Rui Barbosa, 1963. v.3.
BÖSCH, B. (Org.). História da literatura alemã. São Paulo: Herder: Edusp, 1967.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix.1995.
CANDIDO, A. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
CASTELLO. José Aderaldo. A literatura brasileira: Origens e Unidade. Vols 1 e 2. São Paulo: Edusp.
1999.
MELO, E SOUZA, Antônio Candido. E CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira.
São Paulo: Difusão Europeia do Livro. 1968.
TAVARES, H. Teoria literária. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.
capítulo 3 • 87
88 • capítulo 3
4
Parnasianismo
e Simbolismo
4. Parnasianismo e Simbolismo
Neste capítulo, estudaremos o simbolismo e o parnasianismo, movimentos li-
terários que se desenvolvem unicamente por meio da poesia.
O parnasianismo brasileiro foi inaugurado em 1882, com a obra de Teófilo Dias
intitulada Fanfarras.
O Simbolismo chegou ao Brasil no ano de 1893, com a publicação das obras
Missal, escrita em prosa, e Broquéis, em forma de poesia, ambas de autoria de
Cruz e Sousa, que é considerado o maior autor simbolista.
OBJETIVOS
Nosso objetivo vem sendo complementado desde o início de nosso material, pois você já é
capaz de reconhecer os três movimentos que se desenvolvem juntos – realismo, naturalismo
e parnasianismo. Agora, passaremos ao estudo do parnasianismo para que você observe
suas especificidades.
Mais adiante, queremos que você adentre o mundo simbolista
90 • capítulo 4
poética formal. Os temas são de ordem universal, despreocupados da realidade
contemporânea.
Embora se desenvolva meio ao realismo/naturalismo, o estilo parnasiano
possui característica própria derivada da busca da perfeição formal, provenien-
te do princípio parnasiano de “arte pela arte”, não apresentando sentimentos
pessoais ou preocupações sociais do artista. Dessa busca, resulta:
a) emprego de rimas raras;
b) uso de vocabulário erudito;
c) temática universalista, com descrições objetivas;
d) valorização do soneto, sinônimo de perfeição formal;
e) preocupação exagerada com a clareza das ideias;
f) emprego da ordem indireta;
g) retorno ao Classicismo com a valorização da mitologia greco-roma-
na clássica;
h) descritivismo exagerado, buscando a objetividade poética;
i) valorização de sensualidade feminina, chegando, muitas vezes,
ao erotismo;
j) esforço do artista em busca da perfeição poética, resultado de um tra-
balho artesanal;
k) impessoalidade, negando o subjetivismo do artista, que deve preocu-
par-se apenas com a perfeição técnica de sua obra;
l) impassibilidade do poeta que deve conter as emoções, distanciando-se
do sentimentalismo romântico de outrora.
capítulo 4 • 91
©© WIKIMEDIA.ORG
Figura 4.1 – Membros da Academia de Letras: Olavo Bilac é o quarto em pé, da esquerda
para a direita.
92 • capítulo 4
Suas obras são:
Poesias, 1888.
Crônicas e novelas, 1894.
Crítica e fantasia, 1904.
Conferências literárias, 1906.
Dicionário de rimas, 1913.
Tratado de versificação, 1910.
Ironia e piedade, crônicas, 1916.
Obras póstumas:
Tarde, 1919.
Poesia, organização de Alceu Amoroso Lima, 1957.
LEITURA
Veja o culto à língua portuguesa no poema que recebe o título do próprio tema (1964, p.262):
Língua portuguesa
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
capítulo 4 • 93
LEITURA
Leia a poesia Via Láctea e desfrute do talento de Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac:
Via Láctea
"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
EXERCÍCIO RESOLVIDO
Análise do poema “Via Láctea” (Soneto XIII do livro Via Láctea)
É um soneto decassílabo, cuja linguagem é demarcada por certo coloquialismo e inti-
midade do eu-lírico com seu interlocutor (por exemplo em “tresloucado amigo”). Por conta
dessa postura mais intimista e subjetiva, pode-se dizer que o escritor se afasta um pouco da
objetividade típica do Parnasianismo. Faz parte da fase lírica de inspiração espiritualista de
Olavo Bilac. No poema, o eu-lírico dialoga com um interlocutor – o que é demarcado pelo uso
94 • capítulo 4
das aspas – que o interroga sobre sua capacidade de ouvir as estrelas, como já fica claro
logo na abertura do soneto.
Disponível em: <http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/literatura/melhores-poe-
mas-olavo-bilac-analise-obra-olavo-bilac-703745.shtm>. Acesso em: 8 mar. 2016.
capítulo 4 • 95
Recém-formado foi nomeado promotor de justiça de São João da Barra. Em
1884, tornou-se juiz municipal e de órfãos e ausentes em Vassouras. Em 21 de
dezembro, casou-se com Mariana Sodré.
Em 1889, foi nomeado secretário da presidência da província do Rio de
Janeiro, no governo do conselheiro Carlos Afonso de Assis Figueiredo. Foi pre-
so após a proclamação da República, mas foi solto por causa de suas ideias re-
publicanas e nomeado juiz de direito em São Gonçalo de Sapucaí, no sul das
Minas Gerais.
Em 1892, foi nomeado diretor da Secretaria de Finanças de Ouro Preto.
Em 1897, no governo de Prudente de Morais, foi nomeado segundo secretá-
rio da Legação do Brasil em Portugal.
Em 1899, em Niterói, foi diretor e professor no Ginásio Fluminense de
Petrópolis.
Em 1900, voltou para o Rio de Janeiro, como juiz de vara cível, cargo que
ocupou até 1911.
Por motivos de saúde, partiu para Paris em busca de tratamento, onde veio
a falecer.
Seus restos mortais ficaram em Paris até 1920 até que foram transladados
para o Brasil, por iniciativa da Academia Brasileira de Letras, em que foi o fun-
dador da Cadeira n. 5, e depositados, em 28 de dezembro de 1920, no cemitério
de São Francisco Xavier.
É considerado um dos mais perfeitos poetas da língua portuguesa, demons-
trando estilo sóbrio, canto elegante dos temas, objetividade, com certa simpli-
cidade vocabular.
Correia forma com Alberto de Oliveira e Olavo Bilac a tríade parnasiana.
96 • capítulo 4
LEITURA
Leia o poema mais conhecido de Raimundo Correia:
As pombas
Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada...
E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...
CURIOSIDADE
Em 1883, Raimundo Correia publicou as Sinfonias, obra em que se encontra o poema "As
pombas", que lhe rendeu o epíteto de "o Poeta das pombas".
capítulo 4 • 97
LEITURA
Correia descreve, com amargura e dor, as sensações:
Mal secreto
Se a cólera que espuma, a dor que mora
N'alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!
98 • capítulo 4
Forma com Olavo Bilac e Raimundo Correia a tríade do Parnasianismo
brasileiro.
Em 1884, formou-se em Farmácia, no Rio de Janeiro, ano em que publicou
"Meridionais".
Em 1897, foi membro-fundador da Academia Brasileira de Letras e em 1924,
eleito "Príncipe dos Poetas Brasileiros", num concurso da revista Fon-Fon.
Sua obra é marcada pelo emprego de hipérbato, polissíndeto, repetição de
palavras, bem como pela recorrência aos símbolos e alusões mitológicas, como
no poema Aparição nas águas.
LEITURA
Aparição nas águas
capítulo 4 • 99
Poesias completas, 1ª série, 1900.
Poesias, 2ª série, 1906.
Poesias, 2 volumes, 1912.
Poesias, 3 ª série, 1913.
Poesias, 4 ª série, 1928.
Poesias escolhidas, 1933.
Póstumas, 1944.
Poesia, organização de Geir Campos, 1959.
Poesias completas de Alberto de Oliveira, organizadas por Marco
Aurélio Melo Reis em 3 volumes.
LEITURA
Leia o poema mais famoso de Alberto de Oliveira:
Vaso Grego
Esta de áureos relevos, trabalhada
De divas mãos, brilhante copa, um dia,
Já de aos deuses servir como cansada,
Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.
100 • capítulo 4
Em Vaso grego, percebemos que o eu-poético pratica a arte pela arte ao mes-
mo tempo que personifica o vaso, como que dotado de voz. O eu-poético desliza
de uma visão lírica do vaso para uma outra objetiva, que surge com a descrição.
LEITURA
Para saber mais, leia a obra Parnasianismo, de organização de Sanzio de Azevedo, da Editora
Global, de 2006.
Poesia e música devem estar próximas, por isso usam-se muitos recursos fonéticos.
Na tentativa de sugerir infinitas sensações aos leitores, os simbolistas aproximam a
poesia da música. Não se trata de poesia com fundo musical, mas poesia com musi-
calidade em si mesma, através do manejo especial de ritmos da linguagem, estranhas
combinações de rimas, repetição intencional de certos fonemas, sujeição do sentido
de um vocábulo a sua sonoridade etc.
Disponível na <http://educaterra.terra.com.br/literatura/simbolismo/simbolis-
mo_5.htm>. Acesso em: 10 mar. 2016.
Assim, o simbolismo não deve nomear coisas, mas sugeri-las, usando a lin-
guagem figurada, insinuando... O uso de letras maiúsculas em substantivos e
adjetivos ajuda a construir a simbologia. Criam-se novas imagens, novas metá-
foras e símbolos. O caráter obscuro, ambíguo ou emotivo de algumas palavras
é acentuado. Isso tudo revela o repúdio simbolista à linguagem usual, aos luga-
res-comuns, clichês ...
A ideia deve ficar em segundo plano, e a forma em primeiro. Usa-se muito a
ambiguidade e a sinestesia, pois o que se quer é a pluralidade de interpretações.
Há o mistério, com situações vagas, místicas, confusas.
capítulo 4 • 101
CONCEITO
A sinestesia advém da pluralidade de percepções provenientes de diferentes sentidos, por
isso age no subconsciente e no inconsciente, uma vez que imagens e sensações não se
associam de modo racional.
Os simbolistas viam na arte uma síntese entre a percepção dos sentidos e a reflexão
intelectual, por isso buscavam revelar o outro lado do real. As obras simbolistas ora enfatizam
a pureza e a espiritualidade dos personagens, ora a perversão e a maldade do mundo.
Há uma espécie de retomada do subjetivismo pertencente ao Romantismo,
valorizando o abrigo fora do mundo real. Desse modo, agora a emoção suplanta
o cientificismo e o objetivismo do período parnasiano.
CURIOSIDADE
A arquitetura simbolista é caracterizada pela estrita coerência entre as formas sinuosas das
fachadas e a ondulante decoração dos interiores. É a chamada “construção honesta”, numa
estranha combinação de vigas e estruturas de ferro com cristal, a partir de duas tendências:
as formas sinuosas e orgânicas.
102 • capítulo 4
são meios de evasão da realidade presente, permitindo o retorno ao
FANTASIA E IMAGINAÇÃO passado ou a fuga para o futuro.
é a relação subjetiva que se obtém das sensações advinda de sentidos
SINESTESIA diferentes.
USO DE MAIÚSCULAS para enfatizar ideias atribuindo-lhes significados diferentes dos usuais.
Braços
Cruz e Souza
Braços nervosos, brancas opulências,
Brumais brancuras, fúlgidas brancuras,
Alvuras castas, virginais alvuras,
Lactescências das raras lactescências.
capítulo 4 • 103
4.4 Cruz e Souza
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104 • capítulo 4
Poemas em Prosa:
Tropos e Fanfarras, 1885
Missal, 1893
Evocações, 1898
Outras Evocações, 1961
Dispersos, 1961
LEITURA
Vamos ler um dos poemas de Cruz e Souza?
Supremo Verbo
— Vai, Peregrino do caminho santo,
Faz da tu'alma lâmpada do cego,
Iluminando, pego sobre pego,
As invisíveis amplidões do Pranto.
Ei-lo, do Amor o Cálix sacrossanto!
Bebe-o, feliz, nas tuas mãos o entrego...
És o filho leal, que eu não renego,
Que defendo nas dobras do meu manto.
CONEXÃO
Leia a obra completa Últimos sonetos, Cruz e Sousa, Disponível http://www.literaturabrasi-
leira.ufsc.br/_documents/ultimos_sonetos-cruz.htm#supremoverb>. Acesso em: 7 jul. 2016.
capítulo 4 • 105
4.5 O caso Augusto dos Anjos
©© WIKIMEDIA.ORG
LEITURA
Vamos ler um dos poemas de Augusto dos Anjos?
Asa de Corvo
Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes
O telhado de nossa própria casa...
106 • capítulo 4
É ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte — a costureira funerária —
Cose para o homem a última camisa!
Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn00054a.pdf>.
Acesso em: 25 abr. 2016.
Publicou quase toda a sua obra poética no livro Eu, obra que depois recebeu
outras poesias sob o título de Eu e Outros Poemas. Seus poemas veiculam a dor
humana ao estado dos elementos sobre-humanos e seu estilo é original em ter-
mos técnicos.
De acordo com os estudos de Duarte Neto (2000, p. 163 - 165), pode-se dizer
que (...) Augusto dos Anjos consegue também criar atmosferas de tensão, que
tendem a chocar, a causar forte impressão no leitor.
capítulo 4 • 107
Fabricavam destarte os blastodermas,
Em cujo repugnante receptáculo
Minha perscrutação via o espetáculo
De uma progênie idiota de palermas.
ATIVIDADES
01. Como o Parnasianismo se caracterizou no Brasil?
02. Quais características parnasianas estão presentes no poema de Alberto de Oliveira a seguir?
Esta de áureos relevos, trabalhada
De divas mãos, brilhante copa, um dia,
Já de aos deuses servir como cansada,
Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.
108 • capítulo 4
Era o poeta de Teos que o suspendia
Então, e, ora repleta ora esvasada,
A taça amiga aos dedos seus tinia,
Toda de roxas pétalas colmada.
REFLEXÃO
O parnasianismo é uma tendência artística poética, que valoriza a “arte pela arte”, um exercí-
cio árduo em busca do belo estético. Já o simbolismo é uma estética fascinante porque faz
uma junção de fantasia, misticismo, sobrenatural, tudo permeado pelo forte subjetivismo de
nossos poetas.
LEITURA
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix.1995.
COUTINHO, Afrânio. Co-Direção: Eduardo de Faria Coutinho. A Literatura no Brasil. Relações e
perspectivas. São Paulo: Global, 1999.
MELO, E SOUZA, Antônio Candido. E CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira.
São Paulo: Difusão Européia do Livro. 1968.
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1984.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix.1995.
CORREIA, Raimundo. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1961.
COUTINHO, Afrânio. Co-Direção: Eduardo de Faria Coutinho. A Literatura no Brasil. Relações e
perspectivas. São Paulo: Global, 1999.
DUARTE NETO, Henrique. A poesia dissonante de Augusto dos Anjos In: Anuário de Literatura 8,
2000, p. 157-180.
OLIVEIRA, Alberto de. Poesias. In: Nossos Clássicos. Rio de Janeiro: Agir, 1959.
capítulo 4 • 109
110 • capítulo 4
5
A prosa
de ficção
5. A prosa de ficção
O naturalismo é uma tendência artística que se desenvolve dentro do movi-
mento realista do século XIX, cujo marco inicial é a publicação, em 1881, de O
mulato, o primeiro romance naturalista brasileiro, do escritor Aluísio Azevedo,
conforme salienta Bosi (1995):
(...) a primeira obra naturalista brasileira foi O Mulato de Aluísio Azevedo. Esse autor
é um romancista cuja obra pretendeu interpretar a realidade de uma camada social
marginalizada, em franco processo de degradação, quer pela força da pressão social,
quer pelo determinismo que o autor aceita como teoria válida.
OBJETIVOS
Nosso objetivo é que você entenda o processo:
• do romance de tese naturalista;
• do palimpsesto e
• do esgarçamento do tecido escritural romântico.
112 • capítulo 5
caráter. Ainda, outros fatores eram condicionantes da personalidade como a
estrutura familiar, o sistema educacional e o elemento cultural. Por isso, os
escritores desta vertente se detinham nos costumes da época, na psicologia e
sexualidade humanas. Nesse ponto, o romance naturalista assume um caráter
experimental, recebendo a denominação de romance de tese ou romance expe-
rimental, já que instala a atuação das personagens de acordo com uma análi-
se científica.
O romancista naturalista [...] não precisava assumir a atitude do pregador, no seu intui-
to rebelde: bastava-lhe a transposição da realidade, na sua crueza, na sua brutalidade
e nos seus atos vis, para que daí se inferisse a necessidade da transformação social
que era o alvo da Revolução. (COUTINHO, 1986, p.74).
(...) em O Cortiço, Aluísio atinou de fato com a fórmula que se ajustava ao seu talento:
desistindo de montar um enredo em função das pessoas, ateve-se à sequência de
descrições muito precisas onde cenas coletivas e tipos psicologicamente primários
fazem, no conjunto, do cortiço a personagem mais convincente do nosso romance
naturalista. Existe o quadro: dele derivam as figuras.
capítulo 5 • 113
havendo propostas, como a de Hauser, de se denominar Naturalismo à totalidade de
movimentos artísticos que a partir de 1830 manifestaram-se no Ocidente, e que seja re-
servado o conceito de Realismo para a filosofia oposta ao idealismo romântico. Portanto,
a filosofia é que seria realista; a arte seria naturalista. (CADEMARTORI, 1997, p. 46).
114 • capítulo 5
O setor econômico demonstrava grande interesse por essa
corrente, defendendo a propriedade, a iniciativa privada
LIBERALISMO e a autorregulação econômica através do mercado, sem
intervenção do Estado, reafirmando a posição materialista
frente ao mundo moderno.
Vimos que, no Brasil, a situação não era muito diferente, uma vez que os
intelectuais da Faculdade de Direito de Recife adotaram o positivismo como
forma de se explicar os acontecimentos e solucionar os problemas pelos quais
vínhamos passando nos campos filosófico, histórico e político.
Nesta época, o tráfico negreiro fora abolido por completo. A parti daí, obser-
va-se a chegada de imigrantes europeus, principalmente italianos, para traba-
lharem na lavoura cafeeira em substituição à mão de obra escrava. O cultivo do
café prosperou com o aumento do consumo e consequente produção, promo-
vendo o povoamento de novas áreas territoriais e um montante de capital foi
investido em atividades urbanas.
Funda-se o Partido Republicano e inicia-se a queda da monarquia de D.
Pedro II, proporcionando uma nova cultura econômica, independente e com
vista ao mercado externo.
É nesse contexto histórico que surge o movimento naturalista, ocupado em
retratar de forma extremamente objetiva e racional a realidade brasileira, apre-
sentando grande preocupação com análise da sociedade em seus integrantes,
ou seja, preocupa-se com os indivíduos que dela fazem parte.
Embora o naturalismo seja uma tendência realista, o estilo naturalista apre-
senta algumas peculiaridades como:
capítulo 5 • 115
o escritor naturalista tem preferência por espaços
A MISERABILIDADE sociais miseráveis por serem a causa dos desequilíbrios
que quer revelar.
116 • capítulo 5
Seu nome completo era Joaquim Maria Machado de Assis, nasceu na cida-
de do Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839, filho de Francisco José de Assis,
operário mestiço de negro e português, e de D. Maria Leopoldina Machado de
Assis. O escritor perdeu a mãe muito cedo e foi criado pela mulata Maria Inês,
sua madrasta dedicada. Foi criado no morro do Livramento. Após a morte do
pai, em 1851, Maria Inês passa a trabalhar como doceira num colégio do bairro
e o menino passa a vendedor de doces.
Machado de Assis tinha saúde frágil, era epilético e gago, sabe-se pouco de
sua infância e início da juventude. Criado no morro do Livramento, ajudava na
missa da igreja da Lampadosa. O escritor não frequentava cursos regulares,
mas era empenhado em aprender com a ajuda de sua madrinha D. Maria José
de Mendonça Barroso, viúva do Brigadeiro e Senador do Império Bento Barroso
Pereira, proprietária da Quinta do Livramento.
Em 1855, com 16 anos, publicou na revista Marmota Fluminense, de
Francisco de Paula Brito, seu primeiro trabalho literário, o poema Ela. Aos 17
anos, tornou-se aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, escrevendo em
seu tempo livre. Conheceu Manuel Antônio de Almeida, autor de Memórias de
um sargento de milícias, diretor da tipografia, seu protetor.
Em 1858, empregou-se como revisor e colaborador da Marmota, revista da
Livraria Paula Brito, e também passou a fazer parte da sociedade lítero-humo-
rística Petalógica, fundada por Paula Brito.
Em 1859, iniciou suas publicações de obras românticas, era revisor e cola-
borava com o jornal Correio Mercantil.
Em 1860, passou a fazer parte da redação do jornal Diário do Rio de Janeiro,
convidado por Quintino Bocaiúva. Nesse mesmo ano, passou a escrever, como
crítico teatral, para a revista O Espelho bem como em A Semana Ilustrada, com
o pseudônimo de Dr. Semana e no Jornal das Famílias.
Em 1861, há a impressão de seu primeiro livro como tradutor: Queda que as
mulheres têm para os tolos
Em 1864, publicou seu primeiro livro de poesias Crisálidas.
Em 1867, foi nomeado ajudante do diretor de publicação do Diário Oficial.
Em 1869 morre seu amigo Faustino Xavier de Novais, e, menos de três meses
depois, casa-se com Carolina Augusta Xavier de Novais. O casamento feliz durou
35 anos até a morte de sua esposa, em 1904, marcada com o soneto Carolina.
Ressurreição foi seu primeiro romance publicado em 1872. Ano em que foi
nomeado para o cargo de primeiro oficial da Secretaria de Estado do Ministério
da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, o seu principal meio de subsistência.
capítulo 5 • 117
©© WIKIPEDIA
De 1874 a 1880, escreveu crônicas,
contos, poesias e romances para as re-
vistas O Cruzeiro, A Estação e Revista
Brasileira e folhetins para os jornais.
De 1881 a 1897, publica suas me-
lhores crônicas na Gazeta de Notícias.
Em 1881, Machado assume o
cargo de oficial de gabinete, publi-
cando Memórias Póstumas de Brás
Cubas, marcando o início do realis-
Figura 5.2 – Carolina. mo brasileiro.
Comédias:
Desencantos, 1861.
Tu, só tu, puro amor, 1881.
Contos:
Contos Fluminenses,1870.
Histórias da meia-noite, 1873.
Papéis avulsos, 1882.
Histórias sem data, 1884.
Várias histórias, 1896.
Páginas recolhidas, 1899.
Relíquias de casa velha, 1906.
118 • capítulo 5
Peças teatrais:
Queda que as mulheres têm para os tolos, 1861.
Desencantos, 1861.
Hoje avental, amanhã luva, 1861.
O caminho da porta, 1862.
O protocolo, 1862.
Quase ministro, 1863.
Os deuses de casaca, 1865.
Tu, só tu, puro amor, 1881.
Poesias:
Crisálidas, 1864.
Falenas, 1870.
Americanas, 1875.
Poesias completas, 1901.
Romances:
Ressurreição, 1872.
A mão e a luva, 1874.
Helena, 1876.
Iaiá Garcia, 1878.
Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881.
Quincas Borba, 1891.
Dom Casmurro, 1899.
Esaú e Jacó, 1904.
Memorial de Aires, 1908.
Obras póstumas:
Crítica, 1910.
Teatro coligido, 1910.
Outras relíquias, 1921.
Correspondência, 1932.
A semana, 1914/1937.
Páginas escolhidas, 1921.
Novas relíquias, 1932.
Crônicas, 1937.
Contos Fluminenses - 2º. volume, 1937.
Crítica literária, 1937.
capítulo 5 • 119
Crítica teatral, 1937.
Histórias românticas, 1937.
Páginas esquecidas, 1939.
Casa velha, 1944.
Diálogos e reflexões de um relojoeiro, 1956.
Crônicas de Lélio, 1958.
Conto de escola, 2002.
ATENÇÃO
Você encontra estas informações biográficas sobre Machado de Assis e muitas outras em:
<http://www.releituras.com/machadodeassis_bio.asp>. Acesso em: 10 mar. 2016.
LEITURA
Leia agora o primeiro capítulo de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis:
120 • capítulo 5
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim
que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered
country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego
como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou
dez pessoas, entre elas três senhoras, minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, a filha, um
lírio do vale -e. . . Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora.
Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as
parentas. É verdade padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar
pelo chão, convulsa. Nem o meu óbito era cousa altamente dramática... Um solteirão que
expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma
tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à
cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia
crer na minha extinção.
"Morto! morto!" dizia consigo.
E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o vôo des-
de o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, - a imaginação dessa
senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil...
Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando e me restituir aos primeiros anos. Agora,
quero morrer tranqüilamente metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas
dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de
uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro.
Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De
certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns
ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral,
e o corpo fazia-se-me planta, e pedra e lodo, e cousa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma
idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia
é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.
CONEXÃO
Leia a obra completa Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000167.pdf>.Acesso em: 5 mar. 2016.
capítulo 5 • 121
LEITURA
Agora que você já saboreou um pouco de Memórias Póstumas de Brás Cubas, experimente
o primeiro capítulo de O alienista, de Machado de Assis
122 • capítulo 5
mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo
convém aos sabedores.
— A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.
— Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila, e um dos seus
amigos e comensais.
A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas, tinha o de
não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova,
na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do bene-
fício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo
reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia
construir todos os loucos de Itaguaí, e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio,
que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou
a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se
desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A idéia de meter os loucos na mesma casa,
vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência e não faltou quem o insi-
nuasse à própria mulher do médico.
— Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um
passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.
D. Evarista ficou aterrada. Foi ter com o marido, disse-lhe "que estava com desejos", um
principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado
a certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a
intenção da esposa e redargüiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde
os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloqüência, que a maioria resol-
veu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o
tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil
achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir
o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de
um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia
quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultu-
ra. O escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um
dos vereadores, que não acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão
de um trabalho inútil.
— Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte não arranja nada.
Quem é que viu agora meter todos os doidos dentro da mesma casa?
Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado da licen-
ça começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele
capítulo 5 • 123
tempo; tinha cinqüenta janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os
hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os
doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem. A idéia pareceu-
lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vi-
gário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa frau-
de aliás pia, que o Padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice eminente.
A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira
vez apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e po-
voações próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para
assistir às cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os
parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser
tratados. D. Evarista, contentíssima com a glória do marido, vestiu-se luxuosamente, cobriu-se
de jóias, flores e sedas. Ela foi uma verdadeira rainha naqueles dias memoráveis; ninguém
deixou de ir visitá-la duas e três vezes, apesar dos costumes caseiros e recatados do século,
e não só a cortejavam como a louvavam; porquanto,—e este fato é um documento altamente
honroso para a sociedade do tempo, — porquanto viam nela a feliz esposa de um alto espírito,
de um varão ilustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores.
Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas; Itaguaí, tinha finalmente uma casa
de orates.
CONEXÃO
Leia a obra completa O alienista, de Machado de Assis, disponível em: <http://www.
dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000231.pdf>.Acesso em: 3 jul. 2010.
124 • capítulo 5
Para adentrarmos o estudo do palimpsesto, precisamos, primeiramente,
entender o que este termo designa. Para isso, recorremos ao Dicionário de ter-
mos literários, de Massaud Moisés (2004, p. 333):
capítulo 5 • 125
Trazendo o termo para o contexto literário, recorremos a Genette em sua
obra Palimpsestos: a literatura de segunda mão:
Como se pode inferir pela citação, Genette usa o termo palimpsesto para de-
signar o hipertexto, ou seja, uma obra que deriva de “uma outra obra anterior,
por transformação ou por imitação”. Desse modo, podemos expandir nossa in-
terpretação já que
Todo texto pode ser citado e, portanto, tornar-se citação, mas a citação é uma prática
literária definida, que transcende evidentemente cada uma de suas performances
e que tem suas características gerais; todo enunciado pode ser investido de uma
função paratextual, mas o prefácio é um gênero; a crítica (metatexto) é evidentemente
um gênero; somente o arquitexto, certamente, não é uma categoria, pois ele é, se
ouso dizer, a própria classificação (literária) [...] E a Hipertextualidade? Ela também é
um aspecto universal da literalidade: é próprio da obra literária que, em algum grau e
segundo as leituras, evoque alguma outra e, nesse sentido, todas as obras são hiper-
textuais. (GENETTE, 2010, p. 18)
126 • capítulo 5
Em Memórias póstumas de Brás Cubas, o narrador propõe ao leitor que
entenda o processor da narrativa, mediante a posição do autor. Cabe aqui a
pergunta:
(...) todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transfor-
mação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade instala-se a de
intertextualidade, e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla” (KRISTEVA,
2005, p. 68).
capítulo 5 • 127
Como se vê, estamos trabalhando com os aspectos da textualidade,
(...) todo texto pode ser citado e, portanto, tornar-se citação, mas a citação é uma
prática literária definida, que transcende evidentemente cada uma de suas performan-
ces e que tem suas características gerais; todo enunciado pode ser investido de uma
função paratextual, mas o prefácio (diríamos de bom grado o mesmo do título) é um
gênero; a crítica (metatexto) é evidentemente um gênero; somente o arquitexto, certa-
mente, não é uma categoria, pois ele é, se ouso dizer, a própria classificação (literária)
(...).(GENETTE, 2010, p.40)
128 • capítulo 5
Como “tecido escritural romântico” devemos entender a obra de ficção em
prosa, que engloba o romance, a novela e o conto. E como “esgarçamento” en-
tendemos que é uma espécie de alargamento a partir do qual tecido escritural
romântico se expande de tal modo que não mais é possível voltar à sua forma
original. Daí resultam os mais variados tipos de romance.
Para ilustrar melhor estes conceitos, vamos retomar os estudos de Antônio
Cândido em sua Presença da literatura brasileira (1992). Como ressalta, o ro-
mance, a novela e o conto são os gêneros preferidos pelo romantismo, cujas
características são:
• Descrição de costumes e da cor local de forma objetiva;
• Natureza e sentimentos das personagens em comunhão com as situa-
ções dramáticas;
• Nobreza de caráter versus vilania;
• Maniqueísmo, com vitória do bem sobre o mal.
capítulo 5 • 129
Por meio das características acima citadas, percebemos que há um esgar-
çamento do tecido escritural romântico já que a narrativa do romance pode
assumir uma visão idealizada da realidade ou a denúncia do social, com perso-
nagens mostrados de forma objetiva ou em termos de sua formação psíquica....
Por isso, é que temos muitas formas de construção do tecido escritural.
Entendendo o processo de esgarçamento do tecido escritural romântico,
chegamos aos mais variados tipos de romance:
130 • capítulo 5
ATIVIDADES
01. Dos excertos abaixo, dois deles não possuem enfoque naturalista. Identifique-os:
a) Às esquinas, nas quitandas vazias, fermentava um cheiro acre de sabão da terra
e aguardente.
b) ... as peixeiras, quase todas negras, muito gordas, o tabuleiro na cabeça, rebolando os
grossos quadris trêmulos e as tetas opulentas.
c) Os cães, estendidos pelas calçadas, tinham uivos que pareciam gemidos humanos.
d) ... batiam-lhe com a biqueira do chapéu nos ombros e nas coxas, experimentando-lhes o
vigor da musculatura, como se estivesse a comprar cavalos.
e) À porta dos leilões aglomeravam-se os que queriam comprar e os simples curiosos.
f) Viam-se deslizar pela praça os imponentes e monstruosos abdomes dos capitalistas.
g) ... viam-se cabeças escarlates e descabeladas, gotejando suor por debaixo do chapéu
de pêlo.
h) O quitandeiro, assentado sobre o balcão, cochilava a sua preguiça morrinhenta, acari-
ciando o seu imenso e espalmado pé descalço.
i) A Praia Grande, a Rua da Estrela contrastavam todavia com o resto da cidade, porque
era aquela hora justamente a de maior movimento comercial.
j) ... uma preta velha, vergada por imenso tabuleiro de madeira, sujo, seboso, chio de san-
gue e coberto por uma nuvem de moscas...
02. Leia o excerto abaixo, extraído do primeiro capítulo de Memórias Póstumas de Brás
Cubas, de Machado de Assis, para responder às questões abaixo:
capítulo 5 • 131
uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles
fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferi à beira de minha
cova: "Vós, que o conhecestes, meus senhores vós podeis dizer comigo que a natureza pa-
rece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a
humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul
como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas
entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.”
MULTIMÍDIA
Assista aos filmes:
Memórias Póstumas de Brás Cubas,
Dom, versão moderna do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis
Azyllo muito louco, adaptação livre do conto O alienista, de Machado de Assis
REFLEXÃO
Conforme vimos na introdução, o naturalismo é uma tendência artística que se desenvolve
dentro do realismo, compartilhando do mesmo contexto histórico que vimos no capítulo an-
terior sobre o Realismo.
Vimos que o romance naturalista assume a denominação de romance de tese já que
investe na atuação das personagens de acordo com uma análise científica.
Neste capítulo, estudamos um pouco sobre Machado de Assis, um dos maiores nomes
quando se fala em escritura de romance.
Por fim, vimos o palimpsesto como o hipertexto, intertextualidade, citação etc. e o esgar-
çamento do qual tecido escritural romântico revelado nas variadas formas de romance.
132 • capítulo 5
LEITURA
GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Trad. Cibele Braga et al. Belo
horizonte: Edições Viva Voz, 2010.
ZILBERMAN, Regina. “História da Literatura e Identidade Nacional”. In Jobim, José Luís (org.).
Literatura e Identidades. RJ: J. L. J. S. Fonseca, 1999, p. 23-55.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUDELAIRE, Charles. Paraísos artificiais. Trad. Alexandre Ribondi. Porto Alegre: L&PM, 2001.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix.1995.
CADEMARTORI, Lígia. Períodos Literários. 8a ed. São Paulo: Ática, 1997. (Série Princípios)
CÂNDIDO, Antônio e CASTELO, J. Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira: História e antologia.
Das origens ao realismo. 6° ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.
CANDIDO, A. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
CASTELLO. José Aderaldo. A literatura brasileira: Origens e Unidade. Vols 1 e 2. São Paulo: Edusp.
1999.
CEIA, Carlos. E-dicionário de termos literários. Disponível em <http://www.edtl.com.pt/business-
directory/6288/palimpsesto-codex-rescriptus/>. Acesso em: 9 mar. 2016)
COSTA LIMA, Luiz. O Leitor Demanda (d)a Literatura. In: A Literatura e o Leitor: Textos de Estética da
Recepção. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979.
COSTA LIMA, Luiz. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil: era realista. v. 4. São Paulo: J. Olympio, 1986.
GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Trad. Cibele Braga et al. Belo
horizonte: Edições Viva Voz, 2010.
HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. 2.ed.São Paulo: Mestre Jou, 1972.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Trad. Lúcia Helena França Ferraz. 2ed. São Paulo:
Perspectiva, 2005.
MELO, E SOUZA, Antônio Candido. E CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira.
São Paulo: Difusão Européia do Livro. 1968.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12ª ed. São Paulo: Cultrix, 2004.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira – seus fundamentos econômicos. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.
capítulo 5 • 133
GABARITO
Capítulo 1
01.
a) Sim, a descrição que Alencar faz da personagem mostra sua caracterização sob a
perspectiva românica: virgem, de sorriso doce.
b) Sim, Iracema é integrada à natureza, identifica-se com ela, como podemos perceber
pela presença de sua companhia, amiga, ará.
Capítulo 2
a) D
b) C
Capítulo 3
01. A descrição dos personagens se dá de forma caricaturizada, pois os alunos têm suas
imagens construídas com traços hiperbólicos que depreciam sua imagem, por se aproximar
do grotesco.
Capítulo 4
01. O parnasianismo brasileiro foi inaugurado em 1882, com a obra de Teófilo Dias intitu-
lada Fanfarras.
Há a valorização da “arte pela arte”, ou seja, os temas não passavam de mero pretexto
para a composição poética, buscando a perfeição formal acima de tudo. Por isso, os parna-
sianos escreviam pelo gosto de escrever, com grande preocupação com a perfeição estética.
Os poetas parnasianos empregavam, em suas poesias, vocabulário erudito, linguagem
complexa, extremamente trabalhada para alcançar a perfeição poética formal. Os temas são
de ordem universal.
134 • capítulo 5
02.
• Emprego de rimas raras: dia/ servia
• Uso de vocabulário erudito: esvasada
• Temática universalista, com descrições objetivas: taça, objeto da Grécia antiga
• Perfeição formal
• Clareza das ideias
• Ordem indireta
• Classicismo com a valorização da mitologia greco-romana clássica: deuses do Olimpo
• Descritivismo
• Sensualidade feminina: divas mãos
• Trabalho artesanal na construção poética
• Impessoalidade
• Impassibilidade
Capítulo 5
01. E e I
02.
a) Machado de Assis utiliza a metalinguagem como um procedimento de reflexão do
próprio ato de escrever, usando, para isso, narrador-personagem de seu romance.
Ele comenta o processo de elaboração do texto literário para possibilitar a reflexão
dos leitores.
Exemplo: Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo
fim (...) Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me
levaram a adotar diferente método: a primeira (...) a segunda é que o escrito ficaria
assim mais galante e mais novo.
b) Visão crítica: "Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio
ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte",
Presença de ironia: "... a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto,
mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço" ou em "Acresce que
chovia - peneirava - uma chuvinha miúda" até "tudo isso é um sublime louvor ao
nosso ilustre finado".
capítulo 5 • 135
ANOTAÇÕES
136 • capítulo 5