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ALBERTO s.

GALENO i

,
A MEMORIA
DOS
CABECAS·CHATAS
I

(Histórias Cearenses)
ALBERTO S. GALENO

A MEMÓRIA DOS CABEÇAS CHATAS


(HISTÓRIAS CEARENSES)

Fortaleza - 1994
EDITO RAÇÃO ELETRÔNICA: ALBERTO FLÁVIO
PRODUÇÃO GRÁFICA: MULTIGRAF EDITORA LTDA.
CAPA: DESENHO DE RUBENS DE AZEVEDO
BASEADO EM FOTO DE CHICO ALBUQUERQUE

CATALOGAÇÃO ~A FONTE: Bibliotecária ANA CRISTINA AZEVEDO URSUlINO

G151m Galeno, Alberto S.


A memória dos cabeças-chatas (his-
tórias cearenses)/Alberto S. Galeno. -
Fortaleza: Multigraf Editora, 1994.
68p.

1.Literatura brasileira - Contos 2.Con-


tos cearenses
I.Título

C.D.U. 82 - 34
ÍNDICE

Apresentação 5
A Praça 7

O Contador de Histórias 11
Os Voluntários do Batalhão Provisório 15
Homens de Palavra 17
O Moço das Mãos Finas 21
Tira-prosa. Novilho Duro de Queda 27
No Quebrar da Barra............................................................ 31
O Homem do Caminhão....................................................... 35
A Cadeia e o Mar.................................................................. 39
O Continuador do Padrinho Cícero...................................... 45
A Operação Xique-Xique................................................ 49
As Raparigas da Praça dos Leões......................................... 53
O Campina de Mestre Pedro 57
O Ladrão do Hipopótamus 61
As Mães da Pobreza.............................................................. 63
Jardins de Inverno 67
APRESENTAÇÃO

Em ''AMemória dos Cabeças Chatas" reunimos vários contos


de nossa autoria, uns participantes de concursos literários, outros
não, a maior parte, no entanto, publicada em livro, jornais e revis-
tas de Fortaleza. Neles encontra-se presente uma temática bem
cearense, variante no tempo e no espaço, daí o título do livro. O
leitor indagará: onde o fatual? Onde o imaginário? Porque somos
daqueles que vêem na Arte o reflexo da Vida. Na verdade o real e o
imaginário se confundem nos contos aqui inseridos. Este, certa-
mente, o motivo que levou o vereador Juarez Leitão a ler para os
seus pares, na Câmara Municipal de Fortaleza, o conto inicial como
sendo uma alusão à Praça do Ferreíra ao tempo da desastrada
reforma José Walter Cavalcante. Tantas as semelhanças encontra-
das no texto. Sabemos não estar escrevendo de acordo com as
normas estabelecidas pelos críticos literários para as chamadas
histórias curtas. Contudo, entendemos ser preferível que assim
aconteça do que não escrevermos coisa alguma. Ou fazermos como
certos escribas da torre de marfim. debruçados sobre alfarrábios
a rescrever o que outros antes haviam escrito. Era o que tínhamos
a dizer.

Fortaleza, outubro de 1994


A. S. G.

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A PRAÇA

Falar da Praça era falar da Cidade do Forte, das alegrias e das


revoltas de seus habitantes, os bravos cabeças chatas. Esse
entrosamento vinha de longe, dos idos da Colônia, ou, mais preci-
samente, dos tempos da exploração lusitana. Porque, na verdade,
os cabeças chatas nunca perderam a condição de colonos, fosse de
Londres, de Lisboa ou de Nova Iorque. Não que eles gostassem da
sujeição! E tanto não gostavam que por mais de uma vez tiveram
de levantar-se contra os opressores. Numa desta vezes - estamos
lembrados - foi contra o Príncipe Imperial. Negaram-lhe obediên-
cia. E o Príncipe cuidando dobrar para sempre os cabeças chatas
mandou arcabusear os principais chefes da nação. Mas, puro en-
gano. Porque logo mais estariam todos na Praça a xingar dele e de
sua avó. Um acontecimento, mais ou menos por essa época, have-
ria de entrar em definitivo na história da Praça e, conseqüentemen-
te, da Cidade do Forte. Foi a chegada do boticário Saldanha, um
baiano de boa cepa, homem de mãos abertas e coração largo. Quanta
diferença meninos, entre o Boticário e os comerciantes da Praça,
uns gringos, outros marinheiro! Exploravam, uns aos outros, a
mais não poder, os cabeças chatas. Dítavam-Ihes os preços. Havia
dois pesos e duas medidas. Os produtos da terra - o algodão. a
carnaúba, os couros, as peles - estes quais não tinham valor. O
mesmo. entretanto, já não acontecia com os artigos vindos do Rei-
no, os tecidos. a pólvora. as ferramentas, cobradas que eram pelos
olhos da cara. E que ninguém reclamasse da espoliação. Quando o
faziam a resposta era que fossem trabalhar mais e mais, pois, tra-
balhar era dever dos súditos da Coroa. Quanto a eles - os explora-
dores - se eram prósperos era por que Deus assim os fizera. O
Boticário, este sim, como era diferente! Não explorava nos preços.
E, quando os que o procuravam não tinham com o que pagar os
xaropes, os pós e as pomadas de sua fabricação, ele mandava que
os levassem de graça. Fazia, na realidade. mais um apostolado do
que propriamente um comércio. Por isso o Boticário havia de con-
seguir o que não havia conseguido a ferro e a fogo o Príncipe Impe-
rial: dobrar os cabeças chatas! E haveria de conseguir muitas ou-
tras coisas como, por exemplo. tornar-se um dos chefes da grei
nativa. Por último haveria de conseguir a própria Praça. Sim, a
Praça seria dele, do Boticário. E, quando muitos anos depois os
netos dos netos dos primeiros colonizadores tentaram transferi-Ia
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para um dos seus dígnatáríos. todo o povo gritou: não bulam com
a Praça que a Praça é do Saldanha! A Praça é do Boticário! E fez-se
a vontade do povo. A Praça continuou com o Saldanha. Conversar
na Praça, folgar na Praça, constituía o velho costume dos cidadãos
da bela, brava e ardente Cidade do Forte. A Praça servía-lhes de
escola, parlamento, teatro e quartel. Lá, onde os cidadãos debati-
am os problemas da comunidade. Política, economia, artes, espor-
tes, tudo enfim, era discutido na Praça. E, o que era mais impor-
tante: era de onde saiam as grandes decisões, era onde se formava
o consenso dos cabeças chatas. O que se afírmava na Praça tinha
foros de verdade, corria pelo Síará afora, mesmo antes do rádio e
da televisão. Censura? Esta nunca se fez sentir na Praça do Boticá-
rio. Quantos comícios, passeatas, protestos, não se fizeram para a
condenação dos poderosos e tiranos? A voz dos oprimidos se não
encontrava eco nos parlamentos elitistas do Síará, nunca deixou
de ecoar alto e em bom som pelos quatro cantos da Praça. Ao escutá-
Ia, não [oram poucos os doutores que chegaram a esta conclusão:
a Verdade e a Sabedoria não se acham no espaço fechado dos gabi-
netes. mas entre o povo, na Praça do Saldanha. Acontece que mui-
tas e muitas vezes a palavra teve que ceder lugar a outras formas
mais contundentes de politização. Então a Praça transformava-se
em um pandemônio, em teatro de operações, onde a ordem era o
quebra-cabeça. Assim aconteceu quando se teve de mandar embo-
ra o Comendador Babaquara, o mais cruento mandão que já rei-
nou no Si ará. E não seria diferente durante a Guerra, quando se
fez necessário castigar os acompanhantes de Hitler e de Mussolini.
Tanto numa como noutra ocasião os cabeças chatas souberam re-
petir as melhores lições dos avós tapuias. As edificações em redor
da Praça erguiam-se como verdadeiros marcos a denunciar os di-
versos períodos da exploração c o lo n a l s ta , Sobradões
í í

quadrangulares do tempo dos Portugueses e. por último as cons-


truções em cimento armado, lembrança dos netos de Tio Sam. E
como se não bastasse, na fachada das casas de comércio, em atitu-
de de espreita. os bichos que as multinacionais [oram buscar na
jungle para símbolo de suas atividades predatórias. E que bichos
Senhor São Francisco?! Águias. crocodilos, dragões elefantes, hi-
popótamos, tigres e leões! Onde estávamos, afinal? Na selva ou na
Cidade? Fosse como fosse, o fato era que os passantes da rua não
pareciam amedrontados. Olhavam frente a frente a bícharada fe-

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roz, legítimos representantes do capitalismo selvagem, como se
estivessem a lhes dizer: - Aguardem-nos que logo ajustaremos con-
tas! E que ninguém duvídasse do choque inevitável. Mas. o Astral
não ajudava. Ficara para trás o Signo do Carneiro. Agora era a vez
do Macaco. Força. Medo. Segurança para alguns. Insegurança para
a maior parte dos cidadãos. Os logradouros públicos passaram a
ser vistos como lugares perigosos. Os novos donatários do Poder
se não temiam a bícharada feroz das multínacíonaís temiam, no
entanto, o povo nas ruas. Porque o povo, embora parecesse inofen-
sivo, uma vez unido adquiria força igual a dos vendavais destrui-
dores de templos e de cidadelas. Detê-lo, pois, antes que fosse tar-
de. E a melhor maneira de conter a avalanche seria desativando os
logradouros da Cidade, evitando os ajuntamentos. a circulação das
idéias. Para executar a operação o Intendente convocou arquitetos,
arqueólogos e operários em construção. Colocassem eles, sem de-
mora, a arquitetura a serviço do novo sistema. E as transforma-
ções não se fizeram esperar. A Praça do Visconde, um dos locais
preferidos dos estudantes para os comícios e as passeatas, surgia
agora transformada num mar subterrâneo. E a Praça dos Heróis?
E a Praça dos Leopardos? Todas cercadas de grades como se fos-
sem campos de prisioneiros. Restava, no entanto, a Praça do
Saldanha, centro principal de agitações. Que fazer no local? Igreja?
Quartel? Estádio de Futebol? Não tardou o Intendente um estalo
de cabeça, uma idéia considerada luminosa pelos áulicos pala-
cianos. Um Cemitério ... Sim, um cemitério. Façam-me um cemité-
rio, gritou ele para os engenheiros e os arqueólogos. Não um cemi-
tério vulgar, cheio de cruzes e de catacumbas, como o dos Cris-
tãos, mas uma necrópole onde não faltem a majestade e o esplen-
dor do Mundo Antigo. Recordou Babilõnia, Egito e Grécia. Recor-
dou os feitos e as glórias de Nabucodonosor, o rei da Babílônía,
com seus jardins suspensos, do faraó Tutmés e do rei Mausolo.
Eles haviam ganho a eternidade graças a seus empreendimentos
fúnebres. Por que não acontecer o mesmo com o Intendente da
Cidade do Forte? Os arquitetos secundados pelos arqueólogos tra-
çaram o croquis da obra a ser construída. Seria a réplica de uma
necrópole babílôníca muito do agrado do rei Hamurábi. No centro,
enorme mausoléu tendo na cúpula um anfiteatro. Pelos lados os
jardins suspensos, colunas para o suplício dos condenados e mu-
ralhas para as execuções. Um pouco além, os jazigos. Eram tum-

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bas imensas, com cem metros a mais de comprimento, o bastante
para que nela desaparecessem os maiores gigantes da mitologia. O
Intendente ficou deslumbrado ante a perspectiva do colosso. Cons-
truam-no imediatamente! E os técnicos não se fizeram esperar.
Homens, máquinas e explosivos foram postos em ação contra a
Praça do Saldanha, palco de tantos acontecimentos memoráveis
(Guernica dos cabeças chatas onde o teu Picasso?). Ruído de mo-
tores, explosões, árvores seculares atiradas ao chão. Eram os pas-
seios, os bancos, os jardins que estavam sendo destruídos um após
outro. Uma carga de dinamite jogou pelos ares a Torre do Relógio,
o cronõmetro pelo qual se orientavam os habitantes da Cidade. Até
que terminada a empresa vandálica teve surgímento a necrópole,
feita conforme o modelo babilõnica. Não se continha de júbilo o
Intendente frente a nova maravilha. E qual o todo-poderoso que ao
vê-Ia não experimentaria igual sensação? O próprio rei Hamurábi,
se os deuses o permitissem. O povo, no entanto, foi quem não se
alegrou com a transformação. Uma praça por um cemitério? Avida
pela morte? A vibração pelo silêncio? Ficava para aqueles que pou-
co ou nada tivessem a esperar do porvir. Por essa e outras razões,
o fato é que todos ou quase todos evitavam o local. Agora, aos
domingos, em vez dos oradores populares pregavam os pastores
de almas, os mensageiros do Céu. Estranhável, no entanto, era
permanecerem aqueles jazigos imensos com as bordas em branco.
Nenhum epitáfio. nenhuma inscrição, nem mesmo os anúncios da
Coca-Cola. Esse ineditismo perdurou até certa madrugada quan-
do um grupo de estudantes que saíra a fazer pichações contra o
Governo se deteve no local. Segurando o Spray um deles escreveu
em letras garrafais. no maior de todos os jazigos: - "Aquirepousa a
memória dos cabeças chatas!" O outro protestou. Que estava o com-
panheiro sendo individualista, indo contra a democracia do Parti-
do, pois aquela legenda não havia sido aprovada no Coletivo! A
discussão estava aberta. Foi quando o terceiro do grupo segurando
o mesmo Spray escreveu um pouco abaixo: - Repousa, mas logo
despertará.
N. - Este conto saiu publicado primeiramente no Su-
plemento Cultura, do Jornal O Povo, de 14/02/1982, sendo
transcrito dias depois nos Anais da Câmara Municipal de
Fortaleza graças a uma propositura do Vereador Juarez
Leitão, aprovada pela unanimidade daquele legislativo.)

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o CONTADOR DE HISTÓRIAS
Contador de histórias era mestre André! Estava por se ver
outro igual na Cidade de São Vicente, embora fossem muitos os
potoqueiros e os repetidores de velhas anedotas de papagaios e de
portugueses. Porque isso de contar histórias não ficara para qual-
quer um. O ofício exigia talento. Facilidade de expressão. Mímicas.
Um pouco de dramaticidade, até. Era fazer, enfim, como fazia o
barbeiro da rua da Praia. Ninguém se cansaria em escutá-I o horas
seguidas a falar de florestas, rios e bichos da Amazônia. E, muito
menos das mulheres dos cabarés de Manaus, cobertas de ouro -
de pulseiras, anéis e colares - dos pés a cabeça. Os beradeiros do
rio Salgado ficavam abestalhados ao escutá-Ios. Os trens de passa-
geiros da RVCapitavam na estação da ferrovia em procura do Crato.
Erá quando despertavam da pasmaceira em que se achavam. Ha-
viam perdido um outro espetáculo não menos apreciado: ver o trem
correr na linha! Pois é: mestre André como bom cabeça chata esti-
vera no Amazonas a cortar seringueiras, isso no tempo em que
borracha dava dinheiro. O episódio servia para aumentar o inte-
resse pelas suas histórias, pois entre os ouvintes não faltava quem
não tivesse interesse pelas suas histórias, pois entre os ouvintes
não faltava quem não tivesse um parente ou aderente desaparecido
para sempre no Inferno Verde. Escutando os relatos do barbeiro
sentiam-se em parte consolados. Estavam revívendo os entes de-
saparecidos. Mestre André esquecia o freguês na cadeira e punha-
se a falar e gesticular para a assistência boquiaberta: não. ele não
invejava os ricos de São Vicente! Nenhum deles havia gozado na
vida tanto quanto ele. Quem na Cidade. afora ele, havia possuído as
anacongas dos cabarés de Manaus, indiscutivelmente as mulheres
mais belas e elegantes do mundo? E. demorava-se a descrevê-Ias:
eram alvas e louras como se fossem bonecas de milho. Os olhos,
possuíam azuis quaís pedras de anil. Dinheiro? Só recebiam se
fosse em libras esterlinas! Vida paradisíaca aquela. Mestre André
passava a maior parte da semana na floresta. ajuntar borracha. A
borracha valia ouro. Nos sábados e domingos encontrava-se em
Manaus. os bolsos abarrotados, a gozar as coisas boas da vida
com as mulheres mais belas e elegantes do mundo. Mas, como
dizia o ditado, não há bem que sempre dure. Veioa desvalorização
da borracha e ele viu-se desempregado da noite para o dia. Conhe-
ceu a miséria. Tevede esmolar nas ruas de Manaus. a mesma cída-
1l
de onde levara vida de lorde, para não morrer de fome. Agora, para
sobreviver trabalhava de barbeiro na Cidade de São Vicente. E, se
alguém ousava discordar deste ou daquele detalhe de sua narrati-
va ele autoritariamente apontava a porta da rua. Não admitia con-
testação. Mestre André, certa vez atendendo a um convite voltou a
repetir a história da cobra grande, sem dúvida a sua maior aventu-
ra no Inferno Verde. Ele saíra. ainda manhã cedo, a caçar na flores-
ta. Entretanto os bichos, ao que parecia, haviam se encantado.
Quase meio dia e nada de antas, veados e macacos. Nem sequer
um mutum lhe aparecia pela frente. Aquele dia, certamente, era da
caça e não do caçador. Já cansado de tanto andar Mestre André
resolveu sentar-se e preparar um cigarro de palha. O assento lhe
pareceu uma árvore descomunal estendida pelo chão da floresta.
Um jequítíbá - quem sabe! - uma andiroba ou um castanheiro que
houvesse desabado sob o próprio peso. Começara a movimentar-
se. Qual não foi o espanto do caçador -ao descobrir que em vez de
uma árvore - uma castanheíro. uma araucaia ou um jequitibá - ele
se achava sentado mas sobre uma sucuri agígantada?' Mestre André
pulou de lado, esforçando-se por escapar da serpente. Aquilo só
poderia ser marmota do demônio. A sucuri pôs-se a estrugír, a
pular, a soltar rabanadas, derrubando tudo em redor. Foí quando
Mestre Pedro recorreu ao santo padroeiro de Lavras da Mangabeira:
vaiei-me meu São Vicente Férrerl E a cobra foi amansando, aman-
sando, até desaparecer no meio da floresta. Mal o barbeiro não
termina a sua fala um rapazote novato no salão toma a palavra
passando a falar com grande desenvoltura. Que no Amazonas era
assim mesmo! Lá tudo era grande. Os rios, as florestas, as árvo-
res, os bichos ... De pequeno só mesmo o Homem! - Gostei! - excla-
mou mestre André. E agora demonstrando maior interesse pelo
intruso: - Mas. quem és tu, menino? De que família? O novato logo
se identifica. Era neto do velho Pítombeíra! Então, venha um abra-
ço para cá, retornou mestre André. Eram muito amigos, ele e o
Pitombeira. Por sinal haviam viajado juntos para o Amazonas, em
um barco de bandeira inglesa. - Ora o avô - prossegue o recém-
chegado - falava de um castanheiro existente ao lado do barraco
onde ele se arranchava, castanheiro este que não se avistava o fim.
Eíta castanheiro paidégua de grande! Agora penetrava de nuvem a
dentro. O tronco, sete homens não abarcavam. O avô mandou der-
rubar o pé de pau. Ora, sete homens trabalhando de machado du-

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rante sete semanas não conseguiriam botar o danado abaixo. É
quando mestre André faz uma indagação: - mas, pra que era meni-
no que o teu avô ia querer pau tão grosso? - Pra que era, mestre
André?! Pra que havia de ser senão para matar essa cobra em cima
da qual o senhor esteve sentado? Um coro de gargalhadas ecoou no
salão do barbeiro. Mestre André coçou a cabeça desapontado. Ele já
não podia contar impunemente as suas histórias do Amazonas.

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Os VOLUNTÁRIOS DO BATALHÃOPROVISÓRIO

A casa do Juiz estava em chafurdo com os voluntários do


Batalhão Provisório sentados sobre os móveis da sala de visitas,
falando alto e a emporcalhar com suas cusparadas empastadas de
fumo o chão de ladrilhos. Enquanto isso, o magistrado recolhido
em seu gabinete assinava sem pressa o papelório oficial. Eram ates-
tados e mais atestados. Atestados de boa conduta. Atestados - o
que era mais importante - de que os rapazes gozavam de boa saú-
de, não tinham dependentes e achavam-se na faixa etáría dos de-
zoito aos trinta anos. Sem estas últimas condições eles não seriam
engajados no Batalhão Provisório. Antonino, o filho do Juiz, que a
tudo escutava, achou de intrometer-se na conversa dos roceiros. O
que iam eles fazer em São Paulo? Iriam na certa serem abatidos. a
exemplo das pombas do bando na beira dos riachos, sob a mira
dos caçadores. Aquela guerra era uma guerra odíenta, mais suja
do que qualquer outra. Eram irmãos lutando contra irmãos. Na
certa iriam morrer nos combates da Serra da Mantiqueira. Alguns
dos rapazes falavam estribados na propaganda do Governo. Que
os rebeldes queriam separar São Paulo do Brasil. Iriam lutar para
que tal não acontecesse. Outros, no entanto, falavam sem meias
palavras. A seca havia-os deixado no desemprego e na miséria.
Estavam passando fome, muita fome mesmo. Aquela havia sido a
única saída encontrada para a situação em que se achavam. Lutar
ao lado do Governo. Agora segurando Antonino pelas enxúndias: -
Olha menino, tu fala assim porque tu não sabe o que seja fome. Tu
está bem nutrido. Mas, fica sabendo de uma coisa: é melhor mor-
rer de bala do que morrer de fome! Havia ainda os que faziam as
suas conjecturas. Terminada a guerra entrariam como soldados
no Exército ou na Polícia. Melhor do que ser trabalhador da roça,
sujeito aos baixos salários e ao desemprego, sempre que chegavam
as secas. O Aracati soprou forte enchendo a casa de mormaço e
poeira. Os roceiros amaldiçoaram o vento. Era tempo de inverno e
não de ventania. E acusavam o Aracati pelo sumiço das chuvas. É
quando surge o Juiz conduzindo os atestados. Os voluntários le-
vantam-se rápidos, cada qual esperando a sua vez. Doutor Galdino,
distribuídos os documentos, deseja a todos uma boa sorte. Que
soubessem ser dignos dos generais Tíbúrcío e Sampaío, heróis
cabeças chatas da guerra do Paraguai. Agora, já de posse dos ates-
tados, podiam os roceiros se considerar engajados no Batalhão
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Provisório. E foi como recrutas que eles saíram apressados rumo
a Prefeitura, em busca dos vales-refeição. Tinham pressa em ma-
tar a fome crônica que estava a devorá-Ios. Almoçar um cozido de
carne de boi com pirão. Depois, um prato de caldo fumegante. Isso
feito, não se preocupariam com a idéia de morte. Morrer, mas de
barriga cheia. De fome, nunca! Em vez da idéia da morte o que
viria aporrinhá-Ios seriam os fardamentos. Seriam as fardas
malamanhadas, as arriúnas apertadas e aqueles casquetes esqui-
sitos com as quais não se acostumavam. Viver aperreado o de sol-
dado! Todavia, inferno maior estava a esperá-Ios na Serra da
Mantiqueira. Todo o altiplano paulista havia se transformado num
inferno, num sumidouro de vidas humanas do qual não havia re-
torno. Na guerra de irmão contra irmão os Constitucionalistas es-
tavam levando a melhor. Suas tropas avançavam em busca do Rio
de Janeiro e de Minas Gerais. Tornara-se imperioso detê-Ias. Mor-
tandade de soldados? Genocídío? Mas, isso fazia parte da história
dos nordestinos, da história dos outros brasileiros! Não fora as-
sim nas guerras dos dois Pedros, o Primeiro e o Segundo? A histó-
ria repetia-se mais uma vez. Ao governo ditatorial o que importava
era ganhar a guerra, custasse o que custasse. Embora não se achas-
se devidamente treinado, o Batalhão Provisório foi enviado às pres-
sas à frente de batalha. Decorridas algumas semanas da partida
dos voluntários, os malotes do Correio chegavam abarrotados com
uma estranha correspondência. Eram uns cartões em cujos enve-
lopes acinzentados lia-se a sigla da Interventoria Federal do Ceará.
Logo embaixo os nomes dos destinatários. Fato curioso: quase nin-
guém os conhecia na cidade. Gente humilde, não havia dúvida.
Talvez roceiros, pequenos proprietários rurais, comboíeíros, mo-
radores nos latifúndios dos coronéis. Abertos os envelopes, a notí-
cia sinistra. Notícia que falava de combate e de morte na Serra da
Mantíquetra.

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HOMENS DE PALAVRA

O negócio realizou-se dentro em dois tempos. Sem contrato


em cartório. Sem notas promissórias. Sem qualquer outra forma-
lidade de ordem legal. Apenas o dono do armazém mandou escre-
ver o nome do vendedor no livro de compras e vendas do estabele-
cimento. A importância a ser paga. A quantidade da mercadoria e
a data para a entrega. Feito isso passou o Vicente Víeíra os noventa
mil cruzeiros - ou noventa centos de réís, como ele teimava em
chamar - preço por quanto vendera sua futura safra de algodão.
Antes, é verdade, discutiram tempo sem tempo mas quanto ao preço
da mercadoria. Cada qual procurando puxar para o seu lado. João
Farinha, o dono do armazém, havia se armado nos mil cruzeiros
por arroba e disse não abria mão. Enquanto Vicente Víeíra e ou-
tros fregueses que foram se chegando - todos pequenos proprietá-
rios rurais - achavam pouco, muito pouco mesmo. Ora, argumen-
tavam eles, se na safra passada havia o produto alcançado os três
contos à vista, então, por que só um conto naquele ano? Logo quan-
do se falava no desenvolvimento do comércio e na instalação de
fábricas de fiação e tecelagem? Pelo que era de se prever iria o
produto alcançar um dinheirão besta! A Algodoeira - Sociedade
Algodoeira do Nordeste - tinha o seu domínio com os dias conta-
dos. Ela não mais continuaria açambarcando a produção algodoei-
ra. Outros compradores haveriam de surgir disputando a prefe-
rência dos produtores, cada qual oferecendo melhores vantagens.
Então, retornaria o tempo da bonança, quando matuto dava banho
de cerveja na burra de sela e acendia charuto com notas de qui-
nhentos mil réis! João Farinha dizia não acreditar. Conversa, nada
mais do que conversa de jornal! Coisa sem pé e nem cabeça. Sabia,
no entanto, pela própria experiência, que negócio com algodão era
como jogo de loteria. Dependia de sorte, de muita sorte mesmo!
Principalmente para quem. como era o seu caso, comprava o pro-
duto na folha. Ora, ele adiantava o dinheiro e ficava a esperar pela
mercadoria! Só depois do inverno ... E se não chovesse? Lembra-
vam-se do 52? Ele ficara com as mãos pelo chão. Quase endoidava.
Espalhara um dinheirão com o roceiros. Depois veio a seca e o
pessoal se retirando em busca do Paraná. Ainda bem que só
transacionava com homens de palavra! Eles custaram, mas cum-

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priram com o trato. Os que haviam perdido lhe devolveram, tem-
pos depois, o dinheiro recebido. Queriam ficar com o nome limpo.
E os que ficaram entregaram no ano seguinte o algodão vendido na
folha. Mesmo assim tivera prejuízos com a demora. Compromis-
sos vencidos! Aperreio de credores. Só dois anos depois foi que
veio levantar a cabeça. Vicente Víeíra gastou tempo e saliva sem, no
entanto, conseguir demover João Farinha. O comprador amarra-
se nos mil cruzeiros. Não pagaria a mais nem um centavo pela
arroba de mocó. Então, o que fazer? Ojeito era ceder! Vieira neces-
sitava dos cobres para o roçado. E onde ia buscá-los? Nos bancos?
Ora, os bancos ficavam para os comerciantes, para os grandes fa-
zendeiros! Nunca para os proprietários de nesgas de terras, como
no seu caso. O jeito era aceitar. Comprador de algodão na folha era
aquela desgraça! Soltava o dinheiro, mas em que condições? Paga-
va, na realidade, um terço quando não um quarto do valor real,
pela arroba do produto. Quanto aos roceiros, aceitavam ou deixa-
vam de plantar! Víeíra recebeu o dinheiro em pacotes de dez mil,
cada. Contou-os e recontou-os demoradamente. Não lhe foi neces-
sário assinar nenhum papel. Como penhor deixava a palavra. Sim,
em setembro Farinha podia aguardar as noventa arrobas do mocó!
Agora, bolso cheio, pôs-se a caminho do rancho. Teria de fazer
milagres com aquele dinheiro. Desdobrá-lo, para com ele realizar
as tarefas que estavam a lhe pesar. Teria de comprar uns panos
para a mulher e os filhos que andavam quase nus. Ferramentas
para a roça. Quanto a subsistência ... Estavam no fim do ano e o
que havia em casa eram uns restos de milho e de feijão. Não chega-
riam para o sustento da família até que se iniciasse a nova colheita.
Mesmo assim não se deixara desanimar. Caminhou resoluto e já
no dia seguinte dava início a derrubada dos capões de mato. Roçou
tudo em redor, podou o velho algodoal, fez as coivaras. Quando
chegaram as chuvas plantou milho e feijão por entre as carreiras
do arbóreo. O inverno daquele ano não foi dos mais vasqueiros.
Inverno criador. Choveu o bastante para criar o milho, o feijão e,
principalmente, o algodão. Em setembro as capoeiras apresenta-
vam-se cobertas de branco, tanta a pluma pendente dos capulhos.
Enquanto isso, o produto não parava de subir nas cotações de
mercado. Quatro, seis, oito, dez mil cruzeiros por arroba. Nunca
se vira algodão dar tanto dinheiro! Nem mesmo nos tempos de
antigamente, quando o chamavam de ouro branco. E não ficaria

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nisso! Porque, de acordo com os entendidos, poderia alcançar os
doze ou mesmo quinze por arroba, quando fosse chegado o fim da
safra. O acontecimento alegrou os donos de armazéns. Eles agora
podiam lavar a burra, fazer tantas extravagâncias quantas enten-
dessem, que dinheiro não lhes faltaria. João Farinha, este andava
a rir com o tempo. Só os roceiros é que não participavam desse
contentamento. Coçavam a cabeça desapontados. O ovo do pobre
era sempre goro! - comentavam entre si, nos encontros de porta
de bodega. De que lhes servira tanto trabalho, tanto sacrifício?!
João Farinha de certo tinha razão: negócio com algodão era como
loteria ... Sendo que a sorte saía apenas para os armazenistas, para
os compradores do produto na folha. Nunca para os que o planta-
vam. Víeíra chamou a mulher, os filhos, e juntos realizaram a co-
lheita. Noventa arrobas, exatamente, foi o que deu. Ele segurava
entre os dedos calosos as fibras macias do algodão. Formava as
mexas. Apertava-as distraidamente, como se apertasse os cabelos
de uma criança. A mulher vendo aquilo resolveu quebrar o silên-
cio. Por que não pedia uma compensação ao dono do armazém?
Vendera o algodão barato demais ... O homem haveria de compre-
ender a situação chegando fosse quanto fosse a mais. Vieira reagiu
prontamente. Não! Isso nunca! Era homem de palavra! Em tempo
algum faltaria com um compromisso. Que não diria dele João Fa-
rinha? Ele que aceitara sua palavra como penhor? Preferia mil ve-
zes arcar com os prejuízos da transação a ter de fazer tal coisa!
Agora se Farinha se mostrasse compreensivo ... Se quisesse ajudá-
10. Claro que não iria recusar uma compensação! Quando Vieira
chegou no armazém encontrou-o tal e qual uma feira, tamanho e
burburínho ali reinante. Havia os que reclamavam contra a escorcha
da transação. Eles tinham aceito um conto por arroba tomando
por base a cotação de três contos à vista, como acontecera no ano
anterior. Nunca em dez! Outros que se maldiziam alegando prejuí-
zos com a lavoura. Farinha mostrava-se inacessível. Palavra era
palavra! Ele havia confiado neles. E agora? Eram ou não eram ho-
mens de palavras?! E repetia a assertiva de antes. Negócio com
algodão era como jogo de loteria. Havia ganho daquela vez. Da ou-
tra bem podiam ser eles, os roceiros. E falava em mudanças. Os
tempos eram outros. Desenvolvimentismo... Instalação de usinas
de beneficiamento, de fábricas de fiação e tecelagem! Antes o algo-
dão era exportado em caroço. Agora, beneficiado na própria re-

19
gíào. Quebrara-se o monopólio da Sociedade Algodoeira. Em vez
de um comprador forte a impor preços no mercado, surgira uma
porção deles. E para melhor impressionar: vissem só o que ocor-
ria com o caroço do algodão. Antes não passava de comida de boi!
Agora, matéria prima para a fabricação de óleo de cozinha. Os bois
e as vacas que se contentassem com as sobras, em forma de resí-
duos. Víeíra não teve conversa. Aproximou-se de Farinha e pediu
que lhe desse a sacaria para o transporte do algodão. Não recla-
mou da transação, do esbulho de que estava sendo vítima! Assu-
mira um compromisso, cumpria-o sem discutir. Ao sair o dono do
armazém bateu-lhe no ombro e, como que para consolar: no outro
ano seria diferente. O preço era outro ...
(Este contofoi um dos premiados no Concurso Livreiro
Edésio, realizado no ano de 1981 sob o patrocínio da Livra-
ria Alaor e da Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará.
Saiu publicado na Antologia 10 Contistas Cearenses, saída
no mesmo ano).

20
o Moço DAS MÃoS FINAS

Sentado no alpendre o Major demorava horas sem fim cerca-


do da meninada das redondezas que não o largava com tantas e
tantas indagações. Para aqueles meninos matutos major Zuza per-
sonificava um herói tão grande, senão maior, do que os heróis das
novelas televisionadas, o Zorra ou o Durango Kid. Ora, o Major
estivera no Amazonas, onde participara das lutas pela conquista
do Acre. Daí o interesse pelas suas histórias. Queriam saber do
seu viver nas selvas. Das lutas que sustentara contra os bolivianos.
A Questão Acreana ... Como foi que aconteceu? Mas, sucede que o
Major não era homem para contar pabulagens! Ele preferia antes
falar dos outros - dos chefes e dos companheiros de campanha - a
ter de falar da si próprio. Quanto ao que lhe dizia respeito, deixava
que outros o fizessem. Não que ele não se sentisse envaidecido dos
feitos da mocidade, da participação que tivera no acontecimento
histórico, acontecimento marcante na vida do Major. Ora, quem
não possuía a sua ponta de vaidade? Quem não se ufanaria em ver-
se admirado, quando não exaltado pelos concidadãos? Apontado
como exemplo de patriota e de herói? Ora, vamos e venhamos por-
que o major Zuza era humano e, como tal não fugia à regra domi-
nante entre os homens. Desta forma o velho sentia-se feliz, intima-
mente feliz, sempre que lhe apareciam as visitas acompanhadas
das invariáveis apresentações da parte das netas: - Vejam aquele
ali na parede ... É o avô Zuza! O outro, o que está ao lado, era o
comandante, o Plácido de Castro! O avô combateu sob as ordens
dele. Homem valente só era o Plácido de Castro! Valente, abnegado
e patriota. E, para completar a assertiva: era ele e o avô Zuza!
Como não poderia deixar de ser, logo surgiam as divergências. Al-
guém se dizendo bem informado alegava ter lido em certo livro de
história haver o Brasil usurpado o dito território do país vizinho.
Era quando entrava em cena o Major. Chegava cumprimentando a
todos com muita cordialidade. Os visitantes correspondiam as sau-
dações indagando como ele havia passado, como se sentia de saú-
de. E, em seguida, a indagação capciosa: então, o senhor ajudou o
Brasil a crescer?! Conte-nos como foi isso major Zuza! Conte-nos!
O velho fechava o cenho em sinal de reprovação. Não! Não fôra
bem assim! Que não dessem crédito ao que diziam certos livros,

21
jornais e revistas. Porque havia muito invencionice. Queriam exem-
plos? Dom Pedro havia feito a Independência, Cabral descoberto o
Brasil, a Princesa Isabel libertado os escravos ... O mesmo diziam
quanto a Questão Acreana. Ora, na realidade, não ocorrera nenhu-
ma invasão em terras do país vizinho. Assim tivesse acontecido e
ele seria o primeiro a ser contra, pois era contra os expansionismos,
era contra o que faziam as grandes potências! O que acontecera -
podiam acreditar - fôra bem diferente. Ora, aquelas terras eram
terras de ninguém! Como pertenceriam à Bolívia se ainda não se
fizera a demarcação de fronteiras? Tratava-se, na verdade, de ter-
ras esquecidas, de todo inexploradas, embora repletas de serin-
gueiras, na época fabulosa riqueza vegetal. Foi quando os nordesti-
nos banidos pelas secas de 77 e de 88 ali começaram a se estabe-
lecer. E o Acre surgira dentro em pouco, graças ao trabalho e ao
sacrifício da nossa gente, graças a valorização da borracha, como
um verdadeiro Eldorado. O fato logo tornou-se conhecido em todo
o mundo, despertando, como era natural, a cobiça dos grupos ca-
pitalistas internacionais, ávidos de lucros. Sim, porque onde quer
que se descubram novas fontes de riquezas, aí não faltarão aque-
les que das mesmas queiram se apossar, seja de que maneira for.
Isso, exatamente, o que aconteceu com o Acre! Uma vez desbrava-
do, uma vez colonizado, enriquecido com o ouro das seringueiras,
não tardaram a surgir os pretensos donos do futuro Território.
Primeiramente foram os governantes bolivianos. O Acre seria par-
te do seu país! Mas, para que iriam querê-lo? Para tncorporá-lo à
Bolívia? Não! Porque, na realidade não passavam de testas de fer-
ro do capitalismo internacional. Queriam-no, simplesmente, para
arrendar a um truste estrangeiro - o Sindicato da Borracha - cujos
diretores, era um filho do presidente dos Estados Unidos, o outro,
um lorde da Inglaterra. Estava, desta forma, preparada a encena-
ção. Que restava-nos fazer? Ceder, aceitando o esbulho, ou resis-
tir? Preferimos resistir. Pela frente tivemos o exército boliviano.
Lutamos sós, pois, de ínícío o Governo Brasileiro absteve-se de
intervir no conflito. A luta foi dura e desigual. Mas vencemos! -
Muito bem! Bravos! - exclamavam os circunstantes. Agora já não
havia quem alimentasse dúvidas ou pretendesse levantar divergên-
cias. Estavam todos de acordo com o depoente. - Pois, acreditem-
me, isso exatamente o que aconteceu! - concluía o Major. - Entre-
tanto, o senhor esqueceu-se de falar de si próprio - lembrava al-

22
guém. De como se conduziu na luta. Aquelas patentes ... Como as
conseguiu? Diga-nos, major Zuza, diga-nos! O velho silenciava, pro-
curando fugir das indagações. Mas, os interlocutores não o larga-
vam: - o senhor sempre teve vocação pelas armas ou se fez no
decorrer da luta? O Major sorria complacente. - Ora, meninos,
afirmava com voz pausada e firme - não se nasce feito isso ou
aquilo. A gente se faz é no dia-a-dia, é convivendo com os homens,
é na luta pela vida! E, quando dá de si encontra-se muitas vezes
alçado em posições que antes não havia sequer sonhado alcançar.
E para confirmar o que dizia citava o exemplo do moço de mãos
finas. Ele jamais pensara em ter de pegar nas armas e combater.
Nem tampouco em chegar um dia a ser considerado herói. Trata-
va-se de um rapaz instruído e maneiroso, servindo de guarda li-
vros no barracão de seringal Iracema. Isso, até que o patrão enten-
deu de mandá-lo ao Acampamento Central conduzindo uma ajuda
em remédios e mantimentos aos rebelados. O moço tomou do bar-
co, navegou vários dias pelo Xingu afora, indo, finalmente, esbar-
rar no Acampamento do Comandante. Este, no entanto, não se
achava. Plácido demorava-se na frente de combate organizando a
defesa. E o Acampamento, ocupado pelos enfermos, mais parecia
um hospital do que um quartel, ou coisa que valha. Porque o beríbért
e a maleíta estavam a fazer mais vítimas do que as balas do inimi-
go. Feita a entrega dos mantimentos tratou o emissário de retirar-
se. Foi quando entre sarcástico e autoritário indagou-lhe um vozei-'
rão: - Eí, para onde pensa que vai?! - De volta ao seringal, respon-
deu o portador. - Vai não! - retornou o vozeirão. Como partir se
necessitamos de homens para a luta? Você vai mas é para a frente
do combate! E o moço viu-se de repente cercado pelos componen-
tes da patrulha. Estes puseram-se a examíná-l o detidamente, re-
parando-o no físico, nos trajes e nos modos de gente civilizada. -
Este peste não serve para o que nós queremos! - bradou um do
grupo. Vejam só as mãos dele ... Como são finas! Até parecem mãos
de moça donzela ... E desataram a rir estrepitosamente. Depois.
seguraram entre as mãos disformes as mãos pequenas e macias
do guarda-livros. Não! O moço de mãos finas não se prestava para
o serviço de armas. Porque, para aqueles brutos tudo se resumia,
simplesmente, na aparência física. Desconheciam eles a existência
no homem de algo capaz de transformar-lhe o comportamento, de
dar-lhe outra personalidade. Desta forma quem se adestrara no

23
manejo da caneta não seria capaz de manejar também o rifle. Iam
deixá-Ia retornar ao seringal quando um dos brutamontes sugeriu
que bem podiam aproveitar o rapaz como faxineira. Aidéia foi pron-
tamente aceita. E o moço de mão finas ficou a trabalhar dia após
dia nos serviços da cozinha e da limpeza do acampamento. ainda
sujeito a toda a sorte de impropérios. Essa situação permanec~u
até o dia em que Plácido de Castro regressou da frente de combate.
Logoao chegar. o Comandante pôs-se a indagar dos subordinados
quantos voluntários haviam mobilizado para a luta. Ele dispunha
até então de apenas trezentos homens. isso para fazer frente a um
exército de mais de mil soldados. muito bem armados e adestra-
dos. Necessitava. portanto. de homens e mais homens. De contrá-
rio. como resistir ao inimigo? Foi quando o encarregado do posto.
visivelmente desconcertado. disse haver conseguido apenas um
recruta. esse mesmo um mofina. um moço de mãos finas. bom na
escrita e na leitura. mas. de certo não se prestaria para as labutas
da guerra. Botara o recruta nos serviços de limpeza e da cozinha. -
Mas. eu não quero saber de faxineiras! - explodiu o Caudilho. Eu
quero homens é para a luta! O guarda livros foi levado à presença
do Comandante. Plácido soube ser compreensivo. Que não se po-
dia avaliar pelo formato das mãoso estado de ânímo de ninguém.
Havia na pessoa humana algo que se superpunha a própria maté-
ria. Tudo dependia da disposição de ânímo, do estado de espírito
de cada um. Agora. revelando interesse pelo guarda-livros inda-
gou-lhe de onde era. - De Crato, no Ceará! - Cearense? Pois.
cearenses são muitos de meus comandantes. Por sinal. excelentes
combatentes. Não será você. estou certo. quem irá desmerecê-Ias!
A partir daquele instante o antigo guarda-livros do seringal Irace-
ma sentiu-se tomado de alma nova. Plácido era assim! Sabia como
poucos. inspirar confiança em seus comandados. Era enérgico e
valente como poucos. mas compreensivo e fraternal. Ao invés do
desdém e dos maltratas ele dispensava a seus homens respeito e
confiança. Por isso era querido e obedecido cegamente. O moço do
Crato foi exercitado no manejo do rifle e a seguir enviado para a
guerra na selva. Destacou-se logo no primeiro confronto com os
bolivianos por atos de bravura. o que lhe valeu ser promovido a
cabo. Novos combates. novos feitos de valentia. novas promoçôes.
Foi sargento. tenente e capitão por atos de bravura. Aqueles que
antes o menosprezavam agora respeitavam-no e obedeciam-no.

24
Eram seus subordinados. Até que chegou o combate de Volta da
Usina - o maior da guerra acreana - quando Plácido de Castro
infligiu tremenda derrota ao adversário. forçando-o a rendição in-
condicional. Nosso herói mais uma vez soube se impor. saindo da
refrega com o maior posto já conferido por Plácido de Castro a um
dos seus comandados. Saiu feito Major! O velho faz uma pausa.
Contrai-se todo em gesto indisfarsado de ódio e de revolta. Daí
para a frente não vale a pena recordar. Veioo armistício! E o Gover-
no Federal que até então se abstivera de intervir no litígio. interveio
desta vez para castigar aos vitoriosos. Negaram-nos toda e qual-
quer recompensa pelo nosso sacrifício. Mais ainda: os seringalis-
tas foram obrigados a pagar tributos para a manutenção das tro-
pas de ocupação. Essa a paga. esse o reconhecimento que nos foi
dado! - exclamava o velho entre revoltado e aflito. - E o guarda-
livros. Major? O moço de mãos finas herói de tantas proezas? Que
destino levou? - Major Zuza olhava de soslaio para as mãos
enervadas. Apesar de emurchecidas pelo tempo elas permaneciam
finas. extremamente finas. (21.08.73)

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TIRA-PROSA, NOVILHO DURO DE QUEDA

Era um zebú de cor preta com patacas brancas espalhadas


pelo corpo, forte e resistente como todos ou quase todos os zebús.
Não seria qualquer vaqueiro do asfalto. bom na presa e mau na
derriba, que iria levá-lo ao chão. Esse, o pressuposto do apelido
que lhe puseram de Tira-prosa. No começo choveram protestos
contra a presença do novilho na competição. Que zebú não era boi
que se botasse para correr em vaquejadal Muito forte, muito resis-
tente. Isso quando havia outras raças melhor indicadas para esse
tipo de esporte. O crioulo, por exemplo, gado bom de queda, prin-
cipalmente em fins de inverno, quando se achava redondo de gor-
do. Ou, por outra, o gado comum. Ao que respondiam os organí-
zadores do certame que a Ia Grande Vaquejada de São Bento seria
para valer. Nada de moleza. Teríamos no caso uma vaquejada au-
têntica, com toda a beleza e rusticidade de antigamente. Porque
depois que as vaquejadas haviam se tornado moda, as exibições já
não agradavam aos apreciadores do esporte sertanejo. Agora o que
se via eram demonstrações geralmente fracas, descaracterizadas,
com vaqueiros improvisados, alguns até vestidos de cow-boy,pro-
curando desbancar os vaqueiros de verdade, afeitos no trato com
os bois. Ditos presepeiros não levavam em conta a beleza e a au-
tenticidade do espetáculo, preocupados tão só em aparecer com
poses de falsos heróis do sertão. Não, o episódio não se repetiria
em São Bento. Pois aqui se achavam mais vaqueiros experimenta-
dos, vindos das fazendas dos Inhamuns, do Jaguaribe e do Salga-
do, prontos para empolgar a assistência com seu arrojo e a sua
técnica na arte da derriba. As vaquejadas como o futebol possuíam
as suas regras. A derriba para ser perfeita teria o animal de ficar
caído de dorso, as patas para o ar, a poeira cobrindo em redor. E
da mesma forma que o público dos estádios, os aficionados destes
espetáculos campestres sabiam ser exigentes com, os homens do
campo, aplaudindo-os ou vaiando-os conforme o desempenho.
Podia-se dizer que as atuações em São Bento estavam em parte
satisfatórias. Soltas as reses teve início a perseguição com os va-
queiros muito aplaudidos sempre que praticavam uma derriba
perfeita. Afinal assistia-se a uma vaquejada nos moldes de antiga-
mente. Agilidade, destemor, arrojo dos vaqueiros. Sucediam-se os

27
tombos violentos com vários dos animais apresentando fraturas
pelo corpo. Os acidentados eram arrastados de campo, sangrados
e logo mais transformados em churrasco. Muitos vivas, muita ani-
mação. Os aplausos, no entanto, silenciavam sempre que entrava
em cena o zebú. Momentos de suspense, de indignação. O novilho
corria soberbo, as patas no ar, as narinas escancaradas, sem dar
atenção para o fazedor de esteira colocado ao lado, cuja função era
distrair o boi e fim de facilitar o trabalho do companheiro de du-
pla, o derribador. Era sem resultado que o parceiro - o derribador
- tentava levá-lo ao chão torcendo-lhe e soqueando-Ihe a cauda.
Tira-prosa, não havia dúvida, era novilho duro de queda. Que o
dissessem os homens em campo, vaqueiros afamados dos sertões
dos Inhamuns, do Jaguaribe e do Salgado. E dizer-se que a classi-
ficação seria mediante a contagem de pontos, valendo a queda do
novilho a metade deste, no cõmputo geral? Isso fazia crer que a
ninguém seria conferida a primeira condecoração da Grande
Vaquejada de São Bento. Teríamos, neste caso, apenas a segunda e
a terceira colocações, com o aferimento das medalhas de prata e
de bronze a ser feito pelo Governador do Estado. Entretanto, des-
necessário dizer, a grande ambição dos participantes da vaquejada
era a medalha de ouro do primeiro prêmio. Era retornar as suas
paragens conduzindo no peito a medalha de ouro da Ia Grande
Vaquejada de São Bento colocada pelas mãos do Governador do
Estado, a grande ambição dos vaqueiros ali presentes. O certame
estava previsto com a duração de três dias. E, enquanto não chega-
va o momento final cada qual mais se esforçava por cometer a
grande façanha: derribar o novilho Tira-prosa! Quem mais se tor-
cia pela derrota do zebú era o doutor Marialdo, orador oficial da
vaquejada. Como admitir um novilho invencível? Isso, numa
vaquejada como a de São Bento, onde se achavam presentes os
melhores vaqueiros do Estado? A continuar assim ele teria de
modificar o seu discurso, o que faria com muita pena, por tratar-
se de uma peça oratória de primeira grandeza, com citações de
Euclides da Cunha e de Rui Barbosa acerca do comportamento de
bois e de vaqueiros. Ora, dizer para a assistência que o sertanejo
era antes de tudo um forte quando permanecia invicto, a desafiá-
10, o novilho Tira-prosa? Tivesse paciência Euclides da Cunha, mas,
não seria ele, o doutor Marialdo, quem iria repetir semelhante afir-
mativa. Sabia ser duro contestar o escritor famoso. Todavia, man-

28
dava a verdade que se dissesse que em São Bento o forte era o
Zebú Tira-prosa e não o homem. No segundo dia da vaquejada
repetiam-se as mesmas cenas da véspera, com os vaqueiros a der-
ribar o gado comum, numa sucessão de belo desempenho. A situ-
ação mudava, no entanto, sempre que surgia o zebú. Nenhum va-
queiro por mais que se esforçasse, conseguia mandar Tira-prosa
ao chão. O novilho já estava de rabo descabelado de tanto levar
puxões, sem que se deixasse derribar. Isso dava lugar a crença de
que ele teria pautas com o diabo. Pois, só mesmo o boi
endemoninhado teria tamanha resistência. Passar pelas mãos de
vaqueiros dos Inhamuns, do Jaguaribe e do Salgado sem experi-
mentar o pó da derrota? Isso nunca acontecera em São Bento nem
em outro qualquer lugar do interior cearense. Frente aos aconteci-
mentos doutor Maríaldo não encontrou outro jeito senão escrever
um novo discurso para a festa de encerramento da Ia Grande
Vaquejada de São Bento, o que fez muito a contragosto. Sim, os
tempos estavam mudados. Agora o forte já não era o homem e sim
o boi. Tudo porque ao tempo de Euc1ides da Cunha não haviam
zebús, mas tão só o gado comum, de porte reduzido e de berro que
de tão plangente era capaz de comover criaturas sensíveis como os
poetas. No entanto acontecera o inevitável: a vinda dos marajás da
Índia com a sua ímponêncta, beleza e força incontestável. Queriam
melhor demonstração do que aquela que estavam assistindo? Cul-
pava por tudo o progresso, a transformação dos costumes! E Rui
Barbosa? Que diria Rui diante daquelas acontecências? Ele, de
certo, já não teria condições para escrever aquela peça antológíca
que todo estudioso do pátrio idioma que se prezasse sabia de cór e
salteado: o Estouro da Boiada! Como admitir na atualidade aquele
cenário grandiloqüente quando os bois já não viajavam a pé para
os matadouros mas acomodados em carretas, em situação mais
confortável do que a dos passageiros dos paus-de-arara que iam
pagar promessas ao Padre Cícero? Sim, meus senhores, coisas do
progresso. Doutor Maríaldo meteu no bolso a réplica do seu dis-
curso e encaminhou-se ao palanque oficial onde já se achavam o
Governador, o Prefeito, deputados e demais personalidades. A
vaquejada estava chegando ao fim. Mais uma vez entra em campo o
novilho Tira-prosa, desta vez perseguido por dois vaqueiros chega-
dos na última hora. Foi quando aconteceu o inesperado. Um deles
agarrando-se ao rabo do zebú e torcendo-o com muita força e jeito

29
fez com que o animal fosse ao chão numa queda perfeita. Tira-
prosa caiu de dorso, pernas para o ar, a poeira levantando em re-
dor. Uma queda perfeita. A assistência delirou com o feito. Estava
conquistada a medalha de ouro da 1a Grande Vaquejada de São
Bento. Doutor Martaldo ficou sem saber o que fazer. Contorceu-se
desapontado. O seu primeiro discurso ele havia rasgado. E a répli-
ca, esta já não condizia com o acontecimento.

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No QUEBRAR DA BARRA

o velho quase não dormia. Madrugada ainda, os galos amiu-


dando o canto e elejá de pé, o olhar perdido em busca do Nascen-
te. Sinhazinha, a caçula da casa, era quem acordava quase sempre
com o ranger das dobradiças do portal. A moça deixava a rede e
vinha, então, de manso consolar o pai. Que ele fosse se deitar pois
ainda era cedo, tão cedo que nem sequer os passarinhos haviam
despertado. Para que tanta preocupação? Para que mortificar-se
daquele jeito quando as coisas, afinal. correriam todas de acordo
com a vontade de Deus? Se tivesse de ser inverno, bem, seria inver-
no! Mas, em caso contrário, ninguém, absolutamente ninguém, vi-
ria modificar os desígnios do Onipotente. - E, eu sei! - redargüía
Manuel Joaquim com voz pausada e grave. Mas, em todo o caso
sempre era melhor prevenir do que remediar. Ele tinha lá os seus
haveres. A nesga de terra, as três vaquinhas, o burro, as cabras e
os jumentos. Não iria esperar pelo pior. Tão logo descobrisse si-
nais do flagelovenderia os animais e cairia fora. Quanto aos filhos,
bem que podiam trabalhar de cassacos nas obras do Governo. Com
o apurado dos animais e a ajuda dos rapazes teriam eles o que
comer durante a estiada. E quando as chuvas chegassem, então,
retornariam todos ao Juá. Porque o erro. o grande erro, estava em
se ficar eguando. na espera de milagre que não vinha. Deixando
para tomar decisão somente na última hora, quando a seca já esti-
vesse declarada. Então seria tarde, as coisas já não tinham preço.
Porque os ricos percebendo a situação dos pequenos proprietári-
os, como era o seu caso, pouco ofereciam em troca de seus possu-
ídos. Manuel Joaquim parecia delirar. Não! Ele não iria esperar
pelo pior! Estava velho, já não era homem para as grandes cami-
nhadas. E punha-se a recordar cenas das grandes secas - do 15,
do 99, do 88, do 77 - umas que ele havia alcançado, outras que
sabia por ouvir dizer, pelas recordações dos antigos, as conversas
de pai para filho. Queria só e tão só ter a confirmação de suas
experiências. Uma vez constatados os sinais de flagelo, no dia se-
guinte arribava do Juá. Tinham os beradeiros do Salgado as suas
experiências de secas e de invernos. Estas experiências vinham de
longe, desde o tempo dos índios, constituindo verdadeiros Empirio-
crítícísmo do qual participavam os bichos do mato, as plantas,

31
assim como determinados sinais de natureza meteorológica. Ora,
de acordo com o consenso dominante entre os matutos tanto os
bichos como as plantas seriam instrumentos utilizados por Deus
para comunicar-se com os homens, a fim de avisá-Ias de suas deci-
sões. As boas ações seriam premiadas com bons invernos. Quanto
as más, estas seriam castigadas com o mais temível dos flagelos: a
seca! Conhecer estes sinais com precisão, saber como interpretá-
Ias. eías um imperativo para os sertanejos. Ou porque fosse a seca
o fantasma que mais os aterrorizava, ou por que lhes sobrasse
tempo, o certo é que permaneciam eles a maior parte do ano entre-
gues a tais especulações. De sorte que, se os gatos maracajás apre-
sentavam-se com muitas crias; se o joão-de-barro construía o ni-
nho com a entrada para o Nascente; se a jítírana florava antes do
tempo ... Era um deus nos acuda! Mostravam-se apreensivos, to-
mados de grandes temores. Mau sinal! Aquilo era agouro de seca.
No entanto se os cassacos abriam suas tocas nas ribanceiras do
rio; se os pebas criavam carrapato nos sovacos; se cantavam os
carões e as serícóías: se as catíngueíras e os juazeíros apresenta-
vam as capas úmidas nos meses de verão ... Eí-los esperançosos, a
sorrir com o tempo. Sinais de bom inverno. Manuel Joaquim não
especulava nem com as plantas nem com os bichos do mato. Os
sinais de suas experiências eram outros. Ele dizia encontrá-Ias no
vento e em determinados fenômenos aparecidos no céu. Para ele
vento forte em tempo de inverno era sinal de seca. O vento afugen-
tava as chuvas. Que ninguém lhe dissesse o contrário. E, como
sinal de inverno nada mais positivo do que o sinal da barra ao
nascer do Sol. Manchas avermelhadas pelo Nascente, isso nos pri-
meiros dias do ano, aviso de bom inverno. Todavia, se a barra se
apresentasse limpa ... Nesse caso podiam arribar. Sinal de seca. O
velho, na verdade andava desconfiado com o tempo. Pressentimen-
tos de calamidade. Aquele vento forte na entrada do ano ... Quem
foi que viu o Aracatí soprar daquele jeito em tempo de inverno?
Aquilo só podia ser aviso de seca! Restava, no entanto, como últi-
ma esperança, a experiência da barra ao nascer do Sol. Caso se
apresentasse limpa, não mais restariam dúvidas. Seria o ano de
seca! Para certificar-se de suas previsões Manuel Joaquim não co-
nheceu sacrifícios. Madrugou. Antecipou-se muitas e muitas vezes
aos passarinhos. Esforçou-se por descobrir no céu os tão deseja-
dos sinais vermelhos. Viu, madrugada após madrugada a barra

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quebrar no Nascente. Espicaçava os olhos. Mas. por mais que os
espicaçasse não conseguiu vislumbrar nem manchas avermelhadas
sem sombras de nevoeiro. A barra quebrava limpa. extremamente
limpa em redor do Sol. que logo despontava ardente e brilhante
como nunca. O espetáculo repetiu-se por todo o mês de janeiro.
Manuel Joaquim não teve dúvida: juntou seus haveres. chamou os
filhos e caiu fora. Meses depois. em sua nova morada na entrada
da cidade. ele avistara as levas de flagelados em busca de salvação.
Sua experiência dera certo. 32 era ano sem chuva.

33
o HOMEM DO CAMINHÃO

Antes da chagada aos armazéns foi aquele atropelo, com o


terreiro lotado de burros e de jumentos aparelhados. Era tempo
de safra e os animais, componentes de um comboio, esperavam
enquanto não eram carregados com as oiticicas do fazendeiro. Até
que o buzinar do jipe veio espantar burros e jumentos provocando
verdadeiro escarcel. Os tropeiros acorreram procurando dominá-
los. Por último foi o pessoal ocupado na pesagem e no ensacamento
da mercadoria que largando seus afazeres veio certificar-se dos
seus acontecimentos. Os dois pracistas a todos cumprimentavam
com efusão. Perguntaram pelo coronel das Umburanas. - Queiram
desapear doutores! - convidou Pedroca. Houve farta distribuição
de brindes, prospectos e cartão de visita. Os dois viajantes eram
representantes de um consórcio especializado na venda de máqui-
nas de fabricação estrangeira. Jipes, automóveis, caminhões, tra-
tores, eletrodomésticos, tudo "made in USi\:'. Dutra, como fosse o
mais falante, adiantou-se dando início à pregação propagandísti-
ca. Que os Americanos haviam ganho a Guerra e agora queriam
ajudar aos amigos na corrida para o desenvolvimento. Máquinas!
Máquinas! Eis as molas do progresso! Que estávamos na época
dos motores de explosão. Automóveis, jipes, caminhões. Eles esta-
vam ali para fornecê-los. Pedroca e sua gente escutavam com aten-
ção o expositor. Contudo, não tardou o coronel de Umburanas em
discordar do viajante comercial. Alegou entre outras coisas que
tanto para ele como para os outros fazendeiros a situação já estive-
ra melhor. Que as matérias-primas de suas lavras - a oítícíca, a
cera de carnaúba e a mamona - continuavam baixando de preço, o
que não acontecera durante a Guerra. E o algodão? E as peles de
cabra? Não havia compradores! Ora, quando foi que se viu faltar
mercado para um produto como algodão? Pelo visto as coisas não
iam bem na América. ou, por outra, eles não queriam ajudar aos
amigos brasileiros. Quanto aos jipes e automóveis não as invejava.
Ficavam para os moços, para aqueles que só queriam sombra e
água fresca. Ele, de si não trocaria o seu alazão marchador pelo
melhor automóvel do mundo. E procurando dar o assunto por en-
cerrado: bem. negócios de certo não faremos. Mas. não quero com
isso enxotar os doutores. Estejam aqui como se estivessem em

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suas próprias casas. O açude não fica longe. Vão experimentar o
banho. No alpendre da casa-grande deve haver redes. E para a
merenda, coalhada, farinha de mandioca, queijo e rapadura.
Gumercindo, o chefe dos tropeiros, preparou um cigarro de palha,
retirou o artifício da bolsa e pôs-se a roçar a lâmina de aço na
pedra do fogo, procurando desta forma acender a fuligem de algo-
dão contido no recipiente de chifre. É fogo que o inimigo quer? -
indagou Altamiro, o outro vendedor. E ato continuo acionou o seu
isqueiro provocando chama fácil e abundante. Agora um e outro
detinham-se a considerar seus instrumentos de precisão.
Gumercindo admirava a sofisticação do isqueiro do moço da Capi-
tal. Altamiro por sua vez parecia espantado ante o prímítívísmo do
artifício do comboieiro. Quantos séculos de distância, heírn velho?
Propôs troca, que foi imediatamente aceita. Queria aquela bizarria
para um museu antropológico da América. Havia encomenda nes-
se sentido. Eles queriam conhecer os usos e costumes dos nativos
do Nordeste. Um tropeiro que se aproximara teve a bolsa que tra-
zia a tiracolo trocada por um cinturão de matéria plástica. Na
América é assim, assegurou Outra. Eles se interessam em saber
como vivem os vizinhos. Embora a negativa de Pedroca, nem por
isso os pracistas de davam por vencidos. Insistiam. Haveriam de
vender fosse o que fosse. - Bem, ao coronel não interessava um
jipe e nem um automóvel- retornou Outra. Prefere o seu cavalo de
sela. Mas, o que dizer de um caminhão? Sim, de um Ford para o
transporte de suas mercadorias? Olhe: um caminhão transporta
de uma só vez o que levariam cinqüenta burros ou mais. Economia
de tempo! Economia de pessoal! Não é Maravilhoso?! Ademais, o
transporte em costa de animal vai desaparecer. Obsoleto. Antí-eco-
nórníco. Dentro em pouco, nas estradas só caminhão, jipes. auto-
móveis. O Governo americano não poupará dinheiro para a cons-
trução de estradas no Brasil. Gumercindo arregalou os olhos. Bem.
isso de transporte é aí com o nosso amigo - retrucou Pedroca apon-
tando o comboieiro. Ele é que é o dono da tropa de burros. Explo-
ra o frete. Eu apenas forneço as mercadorias a serem transporta-
das. Gumercindo mostrava-se interessado. E quanto custa o cami-
nhão? - indagou o viajante. Uma insignificância. Só vinte e cinco
contos! - respondeu Outra. O cornboíeíro esboçou um gesto de
desânimo. Estava acima de suas posses. Foi quando Altamiro en-
trou na confabulação. Por que não vendia os animais do cambaia?

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Em Fortaleza burros e jumentos alcançavam bom dinheiro. Esta-
vam a exportá-los para o Maranhão e o Pará. Com o apurado dos
animais ele compraria o Ford. Gumercindo vacilava. enquanto
Altarníro, lápis e papel em punho fazia cálculos sobre cálculos.
Quantos quilos carrega um animal? Cem! Quantas léguas por dia?
Dez! Quantos tropeiros para os vinte e cinco burros? Cinco! Termi-
nada a operação o pracista exultou vitorioso: veja meu amigo as
vantagens do caminhão! Um Ford transporta de uma só vez o que
levariam cinqüenta burros para fazê-lo: cinco mil quilos! Tempo?
Um dia? Não! Apenas uma hora! Empregados? Dez? Não! Apenas
dois: o chofer e o ajudante. Agora eu pergunto: é vantajoso ou não
é? Gumercindo sorriu maravilhado. Estava decidido. Faria o negó-
cio! Sabia que era uma aventura. a maior de sua vida. mas, em
todo o caso iria tentar. Valeria a pena tentar. Havia levado a vida
por trás do comboio. a tanger burros. e o que havia lucrado? Qua-
se nada. Os fretes não compensavam. Também com aquela moro-
sidade. Dez léguas por dia. Algum dinheiro conseguido obtivera
com o pequeno comércio que fazia vez por outra. Comprava fari-
nha e rapadura no Cascavel para vender no Jaguaribe. No retorno
trazia os queijos e a carne de sol de Jaguaribe para vender aos
praíanos. Agora com o caminhão seria diferente. Dez léguas numa
hora. em vez de um dia. O Ford trabalhando por cinqüenta burros.
Sim. estava para chegar a sua vez. Gumercindo desfaz-se do com-
boio e duas semanas depois era visto na Capital em busca do con-
sórcio automobilístico indicado por Outra e Altamiro. Nos standart,
uma infinidade de jipes. automóveis e caminhões. Ele demorava
em observá-los, recordando episódios da juventude. quando do
aparecimento dos primeiro automóveis - "os bichos do pé redondo
e dos olhos de fogo". como eram chamados. - nas cidades do
Jaguaribe. Ao avístá-los os matutos se viram tomados de verdadei-
ro pânico. Homens. velhos e meninos corriam como loucos. aos
gritos de que a besta-fera estava chegando. As mulheres paridas
quebravam o resguardo. Tudo devido a uns frades míssíoneíros
que haviam convencido os matutos de que seria o automóvel uma
criação do demônio. Gumercindo sorriu. Como os tempos esta-
vam mudados. Os matutos já não tinham medo dos bichos de olhos
de fogo. Que o dissesse ele próprio. Sim. dentro em pouco seria o
dono de um daqueles esconjurados. teria ido longe em suas diva-
gações não fora a chegada do diretor do estabelecimento. Ao vê-lo

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naquela postura, maltrapilho, encostado nos automóveis, o execu-
tivo o confundiu com um mendigo. Estendeu-lhe uma moeda. Tome
seu velho. Tome e dê no pé! Gumercindo sorriu com ironia. Mas.
quem disse que eu quero esmola? Eu vim comprar um caminhão.
E mostrou a bolsa abarrotada de cédulas. Desculpas, muitas des-
culpas. A transação procedeu-se sem demora. Horas depois um
Ford modelo 1947 deixava o local em desabalada carreira. No inte-
rior do veículo, Gumercíndo, o chofer e o ajudante. Era a corrida
para o desenvolvimento.

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A CADEIA E O MAR

Os rapazes desde logo insurgiram-se contra a idéia do pai.


Pescar a noite? Mas, isso seria uma temeridade! A noite o mar
estava cheio de perigos. Havia os paquetes ... E coice de navio era o
castigo que os jangadeiros não queriam sequer imaginar. Pior, muito
pior do que vento Leste. O Leste, era verdade. rasgava a vela das
jangadas, virava as embarcações, mas não as destroçava como fa-
zia com o casco dos navios. - Mas, acontece que não vamos ficar de
olhos prega - respostava Zé Antõnio. Vamos, isso sim, pescar. E,
uma vez despertos estaremos a salvo de todos os perigos do mar.
Embora a má vontade dos filhos nem por isso Zé Antônio deixava
de confiar no empreendimento. Haveria de matar peixes, muitos
peixes, coisa que há muito não fazia. O mar, ultimamente, não es-
tava para pescadores. Ventos fortes que chegavam, revolviam as
águas e depois desapareciam. O mesmo acontecia com os peixes.
Estavam também desaparecidos. Zé Antônio tinha esperança de
que à noite a situação fosse outra. Os ventos soprariam menos
forte. O mar. menos agitado. Então, os peixes largariam seus es-
conderijos tornando-se presa fácil dos anzóis. E para reforçar suas
afirmativas recordava o sucesso de antigas pescarias realizadas
em situação de crise igual a que estavam vivendo. Xavíer, um dos
rapazes, discordava do pai. Todo o tempo era tempo de pesca. Nem
os peixes haviam se encantado. Eles, jangadeiros. é que andavam
atrasados em relação aos acontecimentos. Teimavam em viver nos
dias atuais como se estivessem nos tempos de antigamente, sujei-
tos a vontade dos ventos, tal e qual faziam os Índios. A época em
que estavam era outra. A barcos a motor. Para eles não havia tem-
po bom nem tempo ruim. Todo o tempo era tempo de pesca. - Eu
sei onde você quer chegar! - reagiu o pai. Sei dos barcos estrangei-
ros pescando em nossas costas. Americanos, franceses, japone-
ses, estavam pegando os nosso peixes e estavam levando para os
países de onde vieram. Por isso mesmo é que já não se viam os
peixes grandes. os espadartes e os agulhões de vela. Sei também
dos testas de ferro que para eles trabalhavam contratando os ca-
boclos. Vocês são meus filhos! Não quero com isso impedir suas
melhoras. Se acham que é negócio trabalhar com os gringos, que
vão! Eu é que não largo em tempo algum a minha jangada. Ser

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empregado de gringa, carteira do Ministério assinada, entrada e
saída de serviço como trabalhador de fábrica ... Não, aquilo não era
para os da sua geração. Preferia viver com sacrifício. sujeito ao
deus dará, mas livre como os seus antepassados, livre como sem-
pre viveram os jangadeiros. Nonato, o outro rapaz, percebendo os
ressentimentos do pai procurava atenuar o efeito das palavras do
irmão. Que o mano Xavier não estava pensando em separação. Afi-
nal. pertenciam todos a uma só família. uma família de jangadei-
ros. Os dois. o pai. os tios. o avô. o avô do avô... Como jangadeiros
continuariam. Isso. enquanto houvesse píúba para a construção
de jangadas. A vida dos jangadeiros - não restava dúvída - era até
certo ponto vida de homens livres. Não tinham patrões. Trabalha-
vam de parceria recebendo como paga uma parte do pescado obti-
do. Pena era que nunca saíssem da pobreza! Noutros tempos a
profissão podia ter sido compensadora. Mas. ultimamente ... Só
sacrifícios, desprendimento. riscos de to<;lasorte. Daí. certamente.
serem chamados os jangadeiros de heróis dos verdes mares bravi-
os. Xavíer não perdeu o ensejo. - Então, de que serviria ser herói e
viver na penúria? Qual a recompensa? A glória? As louvações dos
poetas? Sim, de gente que nunca havia sentido a catinga da maresía?
Palavras bonitas não tiravam barriga da fome! Recordou Jacaré,
Mané Preto, Jerônimo e Tatá, heróis do reide Fortaleza - Rio. To-
dos muito festejados, recebidos pelo Ditador. filmados ao lado de
Orson Wells. E depois? De que servira tanto esforço. tanto sacrifí-
cio? Jacaré morrera afogado na Guanabara quando era filmado
por Orson Wells. E os outros? Voltaram para continuar na miséria
de sempre. Então. valia a pena ser herói dos verdes mares bravi-
os? Preferível viver como o Fura-moita. antes um rabo de burro.
um réu de polícia. agora trabalhando para os Franceses. tornado
rico da noite para o dia. Fura-moita servia de intermediário contra-
tando lagosta para os Franceses. Estava rico! Automóvel último
modelo do ano. trocara a cachaça pelo uísque. Agora. cercado de
raparigas gastava como um coronel nos cabarés do Mucuripe. Sim.
aquilo é que era vida! Zé Antônio fechou a carranca. Nonato deu o
calado por resposta. Mesmo discordando do pai os rapazes não
deixavam de acompanhá-Io naquela aventura. Quatro da tarde a
"Z-15" partia da praia de Iracema. Estavam numa sexta-feira. mês
de setembro. noutros anos mês de boas pescarias. Ajangada des-
lizou levada pelo Terral até a risca. a linha do horizonte. Daí por

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diante ficaria entregue aos ventos do mar. Zé Antônio no banco do
governa manejava a direção. Xavíer e Nonato de pé não largavam o
cordame. O certo é que antes da meia noite era baixado o toassú-
a ãncora de pedra - próximo ao Três-Malhas, banco de pesca pre-
ferido dos jangadeiros. Estavam cerca de 60 milhas do porto do
Mucuripe. Uma vez ancorada a embarcação, Zé Antônio acendeu o
fogareiro e cozinhou um cangulo, avidamente devorado pelos três,
pai e filhos. Lançados nágua os anzóis, Nonato foi o primeiro a
sentir o socavão na linha. Peixegrande! Puxou, arrastando não sem
esforço uma enorme cavala. Houve um lampejo de esperança e ale-
gria entre eles. A araçanga passou rápida de mão em mão, batendo
forte na cabeça do peixe, que logo extertorava. Mesmo que não
venha outro - comentou alegre o pescador - este já dá para tirar a
barriga da fome. Mas, o peixe não seria o primeiro e nem o último
a ser pescado naquela madrugada. Outros, numerosos outros,
buscariam os anzóis dos pescadores da "Z-lS". Dez, vinte, trinta,
quarenta ... Eles estavam sobre um cardume, cercados de cavalas
por todos os lados. Zé Antônio, Xavíer e Nonato já se achavam de
mãos feridas de tanto puxar a linha dos anzóis. A araçanga, por
sua vez, não parava de martelar na cabeça delgada das cavalas. E,
quando o Sol clareou em alto mar, eles já haviam conseguido mais
do que poderiam ter desejado. Estavam com o samburá abarrota-
do de peixes. Zé Antônio sorriu maravilhado. Ouro, meus filhos!
Isso é como se fosse ouro! - afirmou, ao mesmo tempo em que
apontava para o samburá. - Cavala, o peixe dos ricos! Com a crise
do produto no mercado ... Pelo preço em que se encontrava o pei-
xe... Vamos nos encher de dinheiro! Os rapazes sorriam partici-
pando da mesma alegria do pai. Já ninguém se levantava para con-
denar os ventos ou o prtmítívísmo das jangadas. Todos satisfeitos,
pois, teriam com que pagar os atrasados na bodega e viver desa-
pertados por algum tempo, caso o mar continuasse ruim de pesca.
Entretanto, tudo estava a depender dos negócios que fizessem. Nada
de intermediários, de transas com os peixeiros, alertou Xavíer. Eles
queriam o pescado barato para depois revendê-lo pelos olhos da
cara. Com a crise do produto não faltariam compradores. Venderi-
am as cavalas diretamente aos consumidores, no caso os burgue-
ses da Praia de Iracema. As maiores, as de arroba, estas seriam
vendidas aos donos de restaurantes. O toassú foi levantado e a
jangada posta de retorno à praia. O vento soprava com regularída-

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de. Continuasse assim e do meio dia para uma hora daquele sába-
do estariam em terra. Podiam antever o sucesso da chegada, com a
praia cheia de gente, a "Z-15" cercada de burgueses, todos interes-
sados na aquisição do pescado. Zé Antônio falou da extravagância
dos ricos. Tinham moda para tudo. Até para o comer. Antigamente
o peixe preferido, o de maior valia era o beíjupírá. Depois foi a vez
da cavala. Por último era a lagosta ameaçando desbancar a cavala.
Isso quando havia tanto peixe gostoso. Ele é que não trocava uma
cíoba ou uma garoupa por nenhuma dessas espécies. Xavíer, no
entanto, só pensava no quinhão a lhe tocar na partilha dos peixes.
Queria saber, antecipadamente, quanto lhe caberia na vendagem
das cavalas. Andava de xodó com uma cabocla lá da Volta da
Jurema. E a mulher não o largava, sempre a aperrtá-lo por um
relógio. - Logo um relógio? - indagou o pai. Presente de rtcoli- Não
é tanto assim - acudiu o Nonato. Agora com os contrabandistas
pode-se adquirir todo e qualquer artigo por preços que não se vê
nas lojas. Jóias, tecidos, perfumes, uísque e até automóveis. Pois,
muamba é o que não falta na orla marítima. O vento Largo desapa-
recera cedendo lugar ao Nordeste, o vento bom, o amigo dos janga-
deiros. Zé Antônio chamou a atenção dos filhos-para a ínconstáncía
dos ventos. Ora o Geral, ora o Nordeste, ora o Leste, ora vento
nenhum. Pelo visto o mundo andava desmantelado. Os rapazes
acharam graça nas observações do pai. A "Z-15" continuava a vele-
jar com os tripulantes muito alegres da sorte. Mas, eis que de re-
pente o Nordeste começa a escassear. Ajangada se deteve sobre o
lençol dos águas. Os rapazes entreolharam-se assustados. E ago-
ra? o jeito é aguardar outro vento, respondeu Zé Antônio. Talvez o
Leste. Deus é quem sabe! A jangada pôs-se a rodopiar, fazendo
semi-círculos sem, no entanto, avançar. O Sol tornara-se mais quen-
te que nunca. A maresia, insuportável. Ardia, penetrava pelas nari-
nas e a goela a dentro dos pescadores como se quisesse asfíxíá-los.
Contudo, Zé Antônio e os filhos não conseguiam evitar uns cochi-
los. As pálpebras pesavam-lhes. E não era para menos, pois não
haviam dormido daquela sexta para o sábado. Ao despertar de um
cochilo Xavier reparou em derredor. E o que viu? estavam parados,
dentro de um círculo imenso formado pelo céu e o mar. Ao longe,
na linha do horizonte, o céu penetrava mar adentro formando uma
campânula agígantada. e no meio dessa campânula, sem que pu-
desse avançar, estava a "Z-15". A idéia que lhe acorreu foi a de

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prisão. masmorra. ausência de liberdade. Recordou a Cadeia Pú-
blica de Fortaleza. os sentenciados que lá cumpriam pena. Ele es-
tivera mais de uma vez no presídio visitando o Píraúna, um pesca-
dor que durante uma briga assassinara um soldado de polícia.
Impressionara-o terrivelmente o viver dos detentos. acumulados
nas masmorras infectas. em situação pior do que a dos animais.
Agora ele perguntada: qual das sorte a pior? A dos presos da Ca-
deia de Fortaleza ou a dos presos da "Z-15"? Ser prisioneiro dos
homens ou ser prisioneiro do mar? Não possuíam relógios. o que
não os impedia de acompanhar a marcha das horas. Nonato tenta-
va vez por outra com os olhos no Firmamento. O Sol era o seu
relógio. Dada a posição do astro ele calculava as horas. isso com a
mais absoluta precisão. Nove. dez. onze. doze. uma. duas. três.
quatro ... Sentado no banco do governo. faminto. os olhos pesados
de sono. Zé Antônio a tudo assistia em silêncio. Via perígar o pe-
queno tesouro que durante horas o acalentara com os melhores
sonhos de prosperidade. Se o vento custasse a chegar. se a jangada
permanecesse naquela imobilidade. os peixes iriam apodrecer.
Contavam com várias horas de pescado. Ademais. o excesso de
calor e a falta de ventilação. acelerariam o apodrecimento. Que di-
zer aos filhos e a mulher que havia deixado em casa? E ao homem
da bodega? Reviveu'Os sonhos antes acalentados. A jangada che-
gando na praia. os presentes admirados com a fartura do pescado.
os burgueses apressados disputando entre si as cavalas. Depois.
ele de bolso cheio. falando grosso na bodega do Severíno: diga quan-
to eu lhe devo! Todos esses sonhos de independência e prosperida-
de ameaçavam desaparecer. Lembrou-se de recorrer ao santo de
sua devoção. São Francisco nunca lhe faltara nos momentos de
apertura. Rogou. então. ao santo. que fizesse com que chegassem
os ventos. Qualquer que fosse seria bem-vindo. o Geral. o Norte. o
Nordeste. Em último caso o próprio vento Leste. Saberia ser reco-
nhecído ao Santo. Penítencíar-se-ía. Na festa de Canindé lá estaria
a desfilar em procissão. proclamando a todos a graça alcançada.
Todavia. o Santo não demonstrava escutar os apelos do jangadei-
ro. Olhou para o alto do céu. Pela posição do Sol deviam ser exata-
mente cinco horas. Os peixes exalavam um mau cheiro terrível.
Nonato virou o samburá devolvendo-os ao mar. Zé Antônio parecia
não acreditar no que lhe dado assistir. Pesadelo ou realidade? Sim.
a realidade da vida de jangadeiro. Xavier abriu os braços, ao mes-

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mo tempo que soltava uma imprecação: - É preferível estar na ca-
deira a estar preso no mar!
(Este conto figura entre os premiados no Concurso de
Contos promovido pelo BNB - Club de Fortaleza no ano de
1983) .

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o CONTlNUADORDO PADRINHO CíCERO
Logo que o padrinho Cícero se mandou desta vida para a
melhor seus afilhados - que não eram poucos - viram-se em gran-
de desespero, desnorteados tal e qual rebanho sem pastor ou bar-
co em mar de tormenta, sem bússola e sem vela. Como viver sem o
Padrinho, longe de suas bençãos e de seus conselhos? Eles esta-
vam acostumados a sua orientação da mesma forma que o reba-
nho ao pastor. Era a destinação da gente nordestina, dos réprobos
do sertão. Antes do padrinho Cícero fora frei Vidal da Penha e o
Conselheiro. Frei Damião e o beato Lourenço estavam por surgir
como condutores da massa de romeiros. Sentia-se a falta do Padri-
nho. Pois, ele para tudo tinha indicações. Aconselhava. Aos doen-
tes do corpo receitava: tomem chá de vassourinha com batata de
teíú. Se bem não fizer, mal é que não faz. E, para os malfazejos:
quem matou não torne a matar! Aquele que roubou não roube mais!
Fazia-se, portanto, necessário um continuador para o pastor desa-
parecido. Houve rezas e penitências para que se fizesse o milagre
por todos ansiado, qual fosse a vinda do Continuador. Em suas
taperas, no recanto das ruas, na calçada das igrejas, os romeiros
não paravam de cantar e rezar suplicando à Mãe das Dores o envio
do substituto do Padrinho Cícero. Até que operou-se a grande re-
velação. Uma romeira que orava madrugada adentro, de olhos fi-
tos no céu, viu um grande clarão, o aparecimento de uma nuvem e,
no meio dela a imagem do Patriarca. O Padrinho sorria e abençoa-
va-a. A nuvem começou a baixar até aterrissar por completo. Foi
quando o Padrinho falou: - Diga a minha gente que o meu contí-
nuador está para chegar! Ele vem de terra distante. É moço, alvo,
louro e de olhos azuis. Sua morada vai ser no meio da Lagoa. A
romeira teve um passamento e quando retornou já não viu o Padri-
nho. Mesmo assim largou-se a correr e a gritar pelas ruas da Cida-
de Santa anunciando a grande revelação. E o povo todo acordou,
seguindo munido de foices, enxadas e facões com a determinação
de preparar a morada do Continuador. A Lagoa era um terreno
baldío com uma grande depressão, encravado entre as ruas da Palha
e São Joaquim. Quando chovia juntava muita água, daí o nome
que lhe botaram. Ao bater das ferramentas, a bicharada que habi-
tava no local- cobras, ratos, guaxinins e raposas - correram espa-

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voridos. E ao nascer o dia estava tudo uma beleza de limpo. Então
os romeiros puseram-se a cantar e a rezar ao redor da Lagoa na
espera do Continuador. Esperaram dias, semanas e meses sem
que o Anunciado chegasse. Deu-se a desistência, passando os de-
votos a viver como lhes parecesse acertado, sem guia ou pastor.
Juazeiro mudara muito depois que o Padrinho, atendendo ao
chamado da Mãe das Dores, se transferira desta vida para a me-
lhor. A cidade perdera a santidade de antigamente para transfor-
mar-se num antro do pecado. Senão reparassem a mudança de
costumes, as modas, o trajar das donas ricas com os braços e as
pernas postas à mostra. Estas, pelo menos, eram as considera-
ções da romeira Maria de Jesus, enquanto esmolava pela rua San-
ta Rosa. Até que depois de muito caminhar foi ter a boa mulher ao
local onde noutros tempos se achava a Lagoa. Como a coisa estava
diferente! Tudo urbanizado. Em lugar do matagal e da água fétida
o que se via agora era uma bela morada com piscinas, garagens e
automóveis de luxo. - Uma esmola pelo amor de Deus! - gritou a
romeira. Quem atendeu foi o dono da casa, um moço alvo, louro de
olhos azuis. Ele chegou sorridente, abriu a carteira e dela retirou
uma pêlega de 20 cruzeiros que foi entregue a pedinte. A romeira
assustou-se diante da esmola. Era grande demais. Com aquela nota
ela poderia alimentar-se durante alguns dias, comendo do bom e
do melhor. E haja agradecimentos. Que o padrinho Cícero o se-
guisse em toda a vida e a Mãe das Dores lhe reservasse um bom
lugar no Céu. O doador da esmola sorria alegre por estar proporci-
onando tamanha felicidade. Quem dá aos pobres empresta a Deus
- dizia o ditado. A pedinte olhou demoradamente a fisionomia do
seu benfeitor. E ao descobrir-lhe os olhos azuis, a tez muito alva e
os cabelos alourados, não teve dúvida: o Continuador! - gritou ela
extasiada. - Mulher, o que tu souberes a meu respeito não digas a
ninguém! - disse o moço. No entanto a romeira jogando de lado a
sacola com os seus teréns, saiu a correr e a gritar pelas ruas da
Cidade Santa: - Alvíssaras, minha gente! O Continuador chegou.
Ele está na Lagoa! E o povo todo compareceu ao local para ver o
Anunciado. A boa nova correu rapidamente. Não tardaram a che-
gar levas de romeiros vindos de Pernambuco, de Alagoas,da Paraíba
e do Rio Grande do Norte para ver o Continuador, tomar-lhe a
benção, pedir-lhe conselhos e receitas. Todavia, o moço era sóbrio
no falar. Que seguissem as indicações deixadas pelo Padrinho, pois,
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ele nada de novo tinha a acrescentar. Que tomassem chá de
vassourinha com batata e teíú. E os amigos do alheio e os matado-
res de gente - que deixassem de matar e de roubar!
Terminava a 2a Guerra e com ela a ditadura estadonovista. Já
se falava sem reservas na realização de eleições para a escolha de
deputados e de um substituto para o ditador Getúlio Vargas. Foi
quando o Continuador passou a ser importunado por uma outra
nação de chatos: a dos chefes de partidos políticos! Eles não o
largavam. Nos encontros de rua, depois das tapinhas nas costas,
nunca faltava a insinuação: - Como é, você não vai se candidatar a
deputado? Olhe que o Padrinho necessita de um porta-voz no Con-
gresso. E ninguém melhor indicado do que você! O importunado
procurava se escafeder. Apresentava desculpas. Até que finalmente
cedeu aos apelos dos chefes políticos candídatando-se a uma ca-
deira de deputado. Momentos de apreensão. Realizado o pleito e
abertas as urnas foi só o que deu. O nome do Continuador estava
escrito em todas as cédulas eleitorais! O Padrinho - não restava
dúvida - havia obrado o maior de todos os milagres.

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A OPERAÇÃO XIQUE-XIQUE

O delegado lia qualquer coisa quando deu entrada a escolta


conduzindo o preso. Era um homem escuro. magro e de meia ida-
de. impressionando mais pelo nervosismo de que se achava possu-
ído do que por este ou aquele traço individual. Nele eram visíveis
os sinais do medo. Tanto que não se cansava de pedir aos da escol-
ta que não o matassem. que lhe garantissem a vida. pois não dese-
java morrer. Tinha mulher e filhos a sustentar. Em resposta. os
soldados pilheriavam dizendo-lhe que sossegasse. pois aquele ain-
da não era o seu dia. Tivesse calma. Mesmo porque não costuma-
vam encomendar ninguém deste para outro mundo. Falasse com o
tenente Raimundinho e tudo seria resolvido a contento. Afinal. tra-
tava-se de uma simples transgressão. Porte ilegal de armas. O de-
legado suspendeu por instantes a leitura para olhar para o preso.
Reparou-o afrontosamente dos pés a cabeça. logo retornando a ta-
refa interrompida. Aquele tipo. francamente. deixava-o enojado.
Sujo. avacalhado, com aquela pasta grudada no sovaco ... Enoja-o
não tanto o aspecto físico do detido. mas principalmente. o aspec-
to moral. Porque. embora não fosse dado aos rasgos de valentia. o
tenente Raímundínho desprezava os covardes. Aquele pobre diabo
- pensou ele - na certa seria um vendedor ambulante de quinqui-
lharias. destes que andam pelo sertão. de feira em feira. a enganar
os matutos com jóias falsas e relógios imprestáveis. Nunca. em
tempo algum. Xíque-Xíque, o pistoleiro temível. procurado por to-
das as polícias do Nordeste. Recordou momentaneamente os ca-
bras de Lampião. .Iararaca, Lua Branca, Corisco ... Xíque-Xíque
não devia flcar-lhes atrás em ferocidade. Tenente Raímundínho
procurava evitar tais pensamentos. Tenta abstrair-se. Esqueceu a
presença do preso. Dos soldados. Dos cabras de Lampião. Do pró-
prio Xíque-Xíque. Ele tem muito o que fazer. Sua idéia fixou-se nas
peças dos processos. Estava em atraso. Três inquéritos para re-
meter à Justiça. Aquele era o último dia. Deixasse para depois e
viriam na certa as reclamações do Juiz. Que ele, o delegado, estava
a retardar a ação da Justiça. E, como não pretendesse encrencas
com o Judiciário. esforçava-se por destncumbír-se em tempo de
seus encargos. Quanto a captura de bandidos. que o fizessem os
da ativa. não ele. um oficial reformado. amolentado pelos anos e

49
pela burocracia. Sabia, por outro lado, estar em falta com a
corporação, em flagrante descaso às ordens dos superiores. Ele ali
sentado comodamente, enquanto os companheiros de farda
esbaldavam-se a percorrer tudo quanto era cafundó, a revistar quem
quer que encontrasse pela frente, em busca de Xíque-Xíque, o
pístoleíro fantasma. Havia o Chefe de Polícia ordenado aos delega-
dos interioranos que largassem as sedes de suas delegacias e en-
trassem em ação, nas diligências de campo. Ele, no entanto, havia
se limitado a chamar as três praças do destacamento e a revistar
os passageiros em trânsito na cidade. Como se um facínora da
periculosidade de Xíque-Xíque andasse assim se afoitando. Qui-
sesse conduzir-se de acordo com seus deveres estaria como os
demais, no comando de uma volante. Nunca ali sentado, como um
boa vida, destes a quem só interessa sombra e água fresca. Aquela
hora toda a polícia do Ceará achava-se em atividade, empenhada
na maior operação. Volantes percorriam o interior em todas as
direções, sob o comando geral do Chefe de Polícia. Tudo prepara-
do para a captura de Xíque-Xíque, vivo ou morto. Em Fortaleza, as
estações de rádio noticiavam de instante a instante a marcha das
operações, com a prisão de bandidos e de coíteíros. E, nas man-
chetes dos jornais já não apareciam os azes da polícia e do futebol,
mas, só e tão só Xtque-Xíque, o pístoleíro. Autor de não se sabe
quantos homicídios, Xíque-Xíque era considerado mestre no ofício
de matar. Sabia como ninguém armar uma emboscada. Era ágil e
certeiro na pontaria. Sabia, também, fugir sem deixar rastros. Entre
suas vítimas figuravam deputados de Alagoas,fazendeiros da Bahia,
usíneíros de Pernambuco, chefes políticos do Carírt, no Ceará. Os
donatários da terra e da política lavraram entre si a sentença de
morte do adversário. E, para executá-Ia, contratavam o pistoleiro.
Xíque-Xíque vinha e executava-a prontamente, desde que lhe pa-
gassem conforme sua tabela. Não vacilava. Agiasem dó nem pieda-
de. Porque ao pistoleiro só uma coisa interessava: o dinheiro! Não
era dos que se ocupavam em matar a qualquer preço. Cobrava
caro. Serviço caro, porém seguro. Valorizava tanto o ofício como o
homem a ser sacrificado. Sabia, por outro lado, do fim reservado
aos pístoleíros quando mal sucedidos. Eram geralmente executa-
dos por medida de segurança, a mando dos coiteiros. Acontecia,
no entanto, um fato curioso com Xíque-Xíque, É que embora res-
ponsável por tantas mortes nunca estivera preso. Tudo quanto se

50
conhecia a seu respeito era devido informação de um ou outro com-
parsa caído em poder das autoridades. Isso tornava mais difícil
ainda a captura. Servia, por outro lado, para dar-lhe uma aura de
mistério transformando-o num pistoleiro fantasma. Onde quer que
se anunciasse a sua presença, aí estariam, forçosamente, o sobres-
salto, o medo, o pavor. Os poderosos da região, os homens com-
bativos, os senhores de muitos inimigos precaviam-se. Porque
Xíque-Xíque nunca vinha só. Ele trazia sempre uma sentença de
morte.
Tenente Raimundinho termina, afinal, de vistoriar o papelório
dos autos. Agora,"olhando ao redor, absorto como se despertasse
de um sonho, indaga do cabo da guarda qual o caso em questão. O
cabo faz o relatório. Estava a dar cumprimento às ordens do chefe.
Postados na entrada da rua, ele e os dois soldados realizavam su-
cessivas buscas de armas, revistando a quantos por lá transitas-
sem. Até que esbarra um caminhão de feirantes e, no meio destes,
o detido. Portava faca e revólver. Ao ser revistado tentara escapar.
Mas, pelo visto não seria o procurado. Na certa um pobre besta,
dos muitos que andavam soltos pelo mundo. O delegado ordena
ao preso que se aproxime e faz as indagações de praxe. Quem era
ele? De onde vinha? Para onde ia? Entretanto, o interrogado a nada
responde. Só a muito custo é que solta uma ou outra palavra, estas
mesmas sem formar sentido. Tenente Raimundinho dando mos-
tras de enfezamento resolve acabar de vez com aquela pendanga.
Dá um puxão e arranca a velha bolsa de couro que o preso condu-
zia debaixo do braço. Ali, com certeza, encontraria provas -de sua
identidade. E, ante a curiosidade dos presentes inicia a vistoria. Lá
se achavam dois pacotes de cédulas - um de cédulas graúdas, ou-
tro de cédulas menores; uma pistola; caixas de balas; um lápis ... E
grudado no fundo da bolsa aquele caderno de papel almaço cheio
de algarismos e de indicações cifradas, tudo escrito numa caligra-
fia quase íníntelígível. O delegado, a medida que prossegue a de-
vassa, vai se deixando dominar pelo sobrõço. O sangue foge-lhe
das faces. Começa a suar frio... Eí-lo a tremer qual doente de se-
zões. Um dos presentes atravessa a sala conduzindo um copo
d'água. Escancarado no meio da mesa está o caderno de papel
almaço repleto de números e de indicações sinistras. São paga-
mentos recebidos por serviços prestados. Saldos por receber. En-
dereços de coiteiros e de possíveis condenados à morte. E, assina-
51
lados com traços em cruz, os nomes das numerosas vítimas. Uma
sensação de medo, de insegurança, faz-se notar entre os presentes.
O detido apercebendo-se da situação começa a encorajar-se. Olha
para um e outro lado qual bicho do mato pretendendo fazer carrei-
ra. O cabo-da-guarda, entretanto, mantém-se vigilante. Aproxima-
se dele segurando-o pela Cintura. Que não se fizesse de besta. Por-
que, neste caso a cana seria dura. Duas viaturas logo esbarram na
porta da delegacia repleta de policiais. Era o volante da capitão
Mouzínho. Ele havia descoberto um pista e vinha certeiro no encal-
ço do fugitivo. Mouzinho foi rápido e enérgico. Depois de render o
destacamento de Raimundinho, fez o preso amarrado, no meio de
seus comandados. Dava-se por vitorioso. Estava terminada a Ope-
ração Xique-Xique.

52
As RAPARIGASDA PRAÇA DOS LEÕES

Todas as tardes elas eram vistas a bater pernas na Praça dos


Leões, ou para usarmos de um francesismo dos escribas policiais,
a fazerem o trotoar. O trotoar fazia parte do ofício das raparigas.
Pois era naquele bater de pernas para cima e para baixo que elas
logravam prender os homens com as suas artimanhas. Olhares
acalorados. Exposição de corpos. Risos. Ditos jocosos. Depois as
abordagens, sob o pretexto de pedir fogo para o cigarro ou saber
das horas. Tudo pretexto. Porque, o que pretendiam mesmo era
atrair parceiros para os rápidos amores de aluguel. Havia entre as
raparigas algumas extremamente jovens, quase meninas. Outras,
no entanto, já maduras nos anos. Mas, nem por isso deixavam,
umas e outras, de serem chamadas gentilmente de raparigas. Sim,
eram todas raparigas da Praça dos Leões, ou ainda mulheres do
mundo, mulheres livres, mulheres da vida. Moravam as raparigas
nos bairros periféricos de Fortaleza, tendo de viajar diariamente
em ônibus desconfortáveis, locupletados na maior parte de feiran-
tes. Cada qual com a sua mercadoria. Uns conduziam ovos e gali-
nhas. Outros, frutas e verduras. As raparigas, de mercadoria con-
duziam o sexo. Teriam de explorá-lo, de vendê-lo, para obter o sus-
tento do corpo. Sustento que seria, muitas vezes, não só o delas,
raparigas, como de um outro dependente, um filho, um irmão me-
nor, uma avozinha velha e carente, benefíctáríos estes que corari-
am de vergonha quando perguntados sobre a profissão de suas
benfeitoras. O cenário rico de majestade da Praça dos Leões deixa-
va as mulheres excitadas. De um lado ficava o Palácio do Governo,
seguido da igrejinha de linhas barrocas, a mesma de onde haviam
partido para a morte os condenados da Confederação do Equador.
Do outro lado o edifício da Assembléia Legíslattva, onde aquelas
horas da tarde encontravam-se os deputados a bater papo e a be-
ber café. E no centro, bem no centro da Praça, o monumento ao
General da Guerra do Paraguai, cercado pelos leões de bronze que
lhe montavam guarda. A Praça conservava oficialmente o nome de
Tíbúrcío, o vitorioso das batalhas do Paraguai. O povo é que prefe-
ria chamá-Ia não pelo nome do herói, mas dos leões que a guarne-
ciam. A presença das raparigas num local de tamanha distinção
dava o que falar. Para os moralistas constituía um desafio às auto-

53
ridades, uma ofensa aos bons costumes. Não eram umas fora da
lei? Então, por que aquela permissividade, aquela concessão? Quan-
do outras da mesma laia viviam recolhidas no gueto do Curral das
Éguas, privadas da liberdade de ir e vir? Contudo não havia no
casq uma concessão, mas uma conquista. O direito ao trotoar na
Praça dos Leões as raparigas haviam conquistado em duras lutas
com a polícia, numa continuada desobediência. As raparigas não
se cansavam de voltear em redor da estátua do General. Nosso pai,
diziam as mais velhas, gracejando entre si. Nosso avô, completa-
vam as mais jovens. Na verdade as raparigas tinham suas origens
nos quartéis. Quem, entra elas, não era filha ou neta de soldado?
Ou mãe de filho de soldado? Sim, a soldadesca fora a perdição das
raparigas. A Pátria mostrava-se reconhecida àqueles que haviam
cometido feitos heróicos na guerra. Um estátua para Tíbúrcío.
Outras, muitas outras para os soldados desconhecidos. Quanto
aquelas que haviam tombado nas batalhas do amor - as filhas, as
netas, as mulheres, as mães dos filhos dos soldados desconheci-
dos - para estas nenhum reconhecimento. Como se vida de rapari-
ga não fosse cheia de sacrifícios e despreendimentos, de lances de
heroísmo, até. Acontece que certo deputado, desses que não costu-
mam discursar nem aparecer em público, desceu na Praça dos
Leões para reclamar silêncio e protestar contra a presença das ra-
parigas no local. Insultou-as chamando-as de escravas brancas e
de mulheres de vida fácil. - Arre égua! - revidaram as ofendidas.
Vida fácil? Pois sim! Quisesse saber o quê era vida de rapariga
ocupasse o lugar delas. Vida fácil era vida de deputado, com muita
sombra e água fresca. Quanto a condição de mulher, elas não se
consideravam nem brancas nem escravas. Simplesmente rapari-
gas, mulheres da vida, putas, mulheres livres, -mulheres do mun-
do, que era como o povo as chamava. Houve, no entanto, quem
admitisse já ter levado vida de escrava. Foi a Toínha, uma cabocla
roliça, natural do sertão do Jaguaribe. Toinha, a contragosto, fora
dada em casamento a um fazendeiro rico, velho e viúvo, e como se
não bastasse, pai de muitos filhos. Não tinha a liberdade sequer de
pôr o pé no terreiro da casa que o velho não consentia. Três anos
de casada, três filhos, muita sujeição e muita peía. Até que resolve-
ra largar aquela vida de escrava para ser rapariga na Praça dos
Leões. Agora, pelo menos na boca do povo era tida e havida como
mulher livre. As raparigas estavam a papear quando notara~ que

54
a Praça estava sendo cercada pelos soldados. Alguma operação
militar? Com certeza os soldados iriam bater continência ao gene-
ral Tibúrcio. Mas não foi. Dentro em pouco o que se viu foi a
soldadesca investir contra as mulheres, agarrando-as brutalmen-
te, como costumava fazer durante os atos de violência sexual. Com
a diferença que desta vez delas não se serviam. Empurrava-as uma
a uma dentro dos camburões parados a pouca distância. Não sa-
biam que era proibido fazer trotoar? No dia seguinte apareciam as
raparigas nas páginas dos jornais, lado a lado com ladrões, vadios
e assassinos. Elas, as raparigas da Praça dos Leões, que nunca
haviam morto e assaltado a não ser de amor e pelo amor.

55
o CAMPINA DO MESTRE PEDRO

Mestre Pedro simpatizara desde a primeira vista com o jeito


do galo-de-campina. Jeito de bicho macho, bem disposto, desas-
sombrado. Enquanto as outras aves debatiam-se contra as grades
numa tentativa inútil de fuga, ele, o campina, do poleiro onde se
achava não dava mostras de medo. Olhava firme em derredor, como
se estivesse a desafiar os responsáveis pelo seu cativeiro. A mesma
postura, certamente; de antes, quando solto pelas campinas. En-
tão, do alto das tamarineiras conduzia-se como se fora um rei em
meio a passarada. Aqui canto eu! Aqui mando eu! E os outros ga-
los-de-campina temerosos das bicoradas ficavam de longe, escu-
tando-lhes os trinados. Viera em uma leva de pássaros ainda bra-
bos que acabava de chegar do sertão. E, como brabo logo seria
vendido por qualquer preço. Um cruzeiro apenas, sem contar com
a gaiola, e o pedreiro era dono do cabeça-vermelha. Os sinais eram
na verdade de pássaro cantador. Tinha o peito inflamado, o bico
adunco e forte, as penas vermelhas da cabeça avançando no penei-
ro escuro de pescoço. Agora restava saber se era bom de canto. Se
cantava de estalo e não corria; se possuía o canto puro, melodioso,
com as notas perfeitas. Porque, no caso, o difícil era encontrar um
galo-de-campina com todas essas qualidades. Cantar todos can-
tam, dizia o bodegueiro Chico da Mãe Isa. O difícil era encontrar-se
um Chico Alves ou um Orlando Silva. Sim, um campina de estalo
puro, melodioso, com as notas perfeitas. Um tenor alado, como
sabiam ser os verdadeiros representantes da família dos cabeças-
vermelhas. Mestre Pedro, uma vez adquirido o campina, pôs-se a
caminho de casa, esperançoso de estar conduzindo um Chico Alves
ou um Orlando Silva, de acordo com a classificação do bodegueíro
doutor de passarinhos. Pelo menos era o que podia esperar tendo
em vistas as aparências da ave. Já em casa, a mulher foi quem não
gostou da novidade. - Espera, depois de velho dando para criar
passarinhos? Como se não bastassem os nosso filhos ... Mestre
Pedro, no entanto, não deu ouvidos aos cavacos da Maria. Ela era
assim mesmo. Gostava de implicar fosse com que fosse. Mestre
Pedro colocou a gaiola na parede do corredor e logo cercou o re-
cém-chegado de tudo quanto era regalia. Era a água renovada duas
vezes ao dia, o alpiste, o arroz encascado, o xerém e o cânhamo.
Isso, afora as verduras: o alface, o coentro e as vagens. Mesmo
assim, o campina teimava em não cantar. Seis meses ou mais de
57
gaiola, estava manso e, no entanto, não abria o bico a não ser para
comer. - Solta este bicho, homem! - peítícava a Maria. Tu não estás
vendo que ele não canta, que só serve para comer e dar trabalho?
Contudo, Mestre Pedro não perdia a esperança. Um dia ele haverá
de cantar, respondia para a mulher. Questão de tempo. Isso por-
que não se sabia de passarinho mudo. E, não se enganou o pedrei-
ro. Porque em certa madrugada de setembro, quando caíam as
primeiras chuvas de caju, o campina resolveu sair do silêncio em
que se achava e dar um verdadeiro espetáculo de cantoria. Come-
çou estalando baixo, como se cantasse apenas para si. Depois foi
alteando pouco a pouco o volume da voz, a exemplo do que fazem
os bons cantores. Estalo perfeito, melodioso, sem a menor
díssonâncía. Um Chico Alves! Um Orlando Silva! - proclamaria o
bodegueiro Chico da Mãe Isa. Mestre Pedra não se conteve de ale-
gre. Saltou da rede de um pulo e foi ouvir de perto o campina can-
tar. Bem que fizera em esperar, em ter confiança no seu cabeça-
vermelha. Passarinho mudo? Pois sim! No quarteirão não era me-
nor o alvoroço. Tudo porque o campina de Mestre Pedro rompera o
dia cantando. Os vizinhos, ouvidos atentos, deleitavam-se com os
trinados do passarinho. De agora por diante, manhã cedo, o cam-
pina passaria a funcionar como o despertador do quarteirão. Ca-
ber-lhe-ia acordar os assalariados das vizinhanças para o trabalho
nas fábricas e no comércio. E a tarde, quando maior se fazia o
calor, os velhos e os desempregados da rua Carapinima entreti-
nham-se acompanhando das calçadas a cantoria do passarinho. A
fama do cabeça-vermelha espalhara-se rapidamente entre os
passarinheiros. E, tanto era assim que, nas feiras de pássaros,
quando alguém se punha a gabar este ou aquele galo-de-campina,
como não podia deixar de ser, logo surgia o campina do Mestre
Pedra. Não! Não havia outro igual na cidade! Canto selvagem, de
estalo sem nenhum defeito. - Mestre Pedro? Mas, quem é Mestre
Pedro? Vinham os esclarecimentos. E aqueles que não sabiam logo,
ficariam sabendo tratar-se de um pedreiro o dono do melhor galo-
de-campina de Fortaleza. Sim, um pedreiro com residência na
Carapinima, uma ruazinha que guardava o nome do herói da Con-
federação do Equador, o mesmo que tombara espingardeando de
ordem do rei. Desta forma o passarinho dava notoriedade ao seu
dono, a ruazinha para onde haviam-no levado - e por que não di-
zer? - ao próprio herói Carapinima, que de esquecido passaria a
ser lembrado. Dada a fama a1cançada pelo êmulo de Chico Alvese
de Orlando Silva, não faltariam de agora por diante visitantes ilus-

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tres na ruazinha proletária, todos interessados em escutá-lo. Eram
senhores de muitos recursos - donos de fábricas, gerentes de ban-
cos, altos burocratas - cuja paixão maior se encontra na criação de
aves canoras. Eles encostavam os automóveis em baixo das árvo-
res da rua, isso aos domingos e feriados, e ficavam tempo sem
tempo a se deleitarem com o canto do cabeça-vermelha. Depois
surgiram as propostas de compra. - Quanto quer pelo campina? -
Não é para vender, patrão! - Dou 50 mil cruzeiros! Mestre Pedro
sorria desvanecido. Como eu já disse, patrão, o campina eu não
vendo. Ele é a minha distração. A minha e a dos moradores aqui
da Carapinima. A mulher que não perdera o diálogo, logo intervi-
nha: - deixa de soberba, homem! Tu não sabe que pobre não pode
ter opinião? Pega logo esta notaantes que o doutor desista. Mestre
Pedro acabava perdendo as estribeiras. Pois ficasse sabendo ela
que ele era pobre e sustentava opinião. O campina era seu. Não o
venderia por dinheiro algum. Era pobre, carecia de dinheiro. En-
tretanto, havia coisas que o dinheiro não comprava. Aquele campi-
na era uma delas! Embora a resistência de Mestre Pedro em se
descartar da ave, nem por isso desistiam os pretendentes. Já na
semana seguinte novas propostas de compra para o campina, cada
qual a mais tentadora. Era o gerente de banco que se decidia a
cobrir o lance feito pelo burocrata do Estado. O industrial de óleos
que por sua vez passara por cima da oferta dos competidores. A
ave parecia em leilão, não obstante a resistência do proprietário
que dela não queria se desfazer. Na verdade estava por se ver tanto
dinheiro por um passarinho: 600 mil cruzeiros! Uma extravagân-
cia! Um absurdo! Outras aves igualmente apreciadas dos criado-
res, como os sabiás, os bicudos, os canários e os curtos, nenhuma
delas, ao que soubesse, havia alcançado tão elevadas ofertas. O
desinteresse de Mestre Pedro ante propostas de compra para o
campina constituía assunto para os bate-papos da rua Carapinima.
Só muito apego pela ave - afirmavam alguns - justificaria tamanho
descaso pelo dinheiro. Principalmente tratando-se, como no caso,
de um homem reconhecidamente pobre. Outros, por sua vez, acha-
vam tratar-se de um capricho doentio sustentado a duras penas.
Ora, enjeitar tanto dinheiro por um passarinho ... Não! Aquele com-
portamento não era normal. Que os ricos assim fizessem, compre-
endia-se. Eles podiam cometer destas e de outras extravagâncias
que o dinheiro não lhes fazia falta. Mas, um pedreiro? Um homem
que vivia de salários? Não! Aquele comportamento ninguém enten-
dia. Francísquínho, um rapazote filho de Mestre Pedro, achou-se

59
com o direito, como zelador que era do passarinho, de intrometer-
se no assunto. Por que o pai não pegava aquela grana que estavam
oferecendo pelo passarinho? Mestre Pedro desta vez não se aporri-
nhou. Pelo contrário, até achou graça da petulância do filho. Tanto
assim que, batendo-lhe no ombro, prosou: eu em vez de vender o
campina, vendia era você! O campina até hoje só tem me dado
alegria. E você, meu filho? Daí por diante, nem a Maria nem o
Francísquínho se atreveram a falar no assunto. Todavia, uma série
de transtornos viria perturbar o viver de Mestre Pedro e dos seus.
Primeiro' foi a crise na Construção Civil. Desemprego em massa.
Mestre Pedro com três meses sem conseguir trabalho. A conta cres-
cendo na bodega. E, como se não bastasse, doenças e, casa. A Ma-
ria achara de adoecer de uma doença esquisita, de um mal que o
médico do INPS não sabia atinar o que fosse. Agora, todas as ma-
nhãs, Mestre Pedro saía, não para o emprego, mas atrás de empre-
go. Batia nas construtoras e a resposta era a de que não havia
trabalho. Ao voltar para a casa não faltaria quem o apontasse na
rua: - estão vendo aquele acolá? É o milionário do galo-de-campi-
na! E seguiam-se os comentários. Só mesmo um capricho muito
grande. Deixar de vender o passarinho por 600 mil cruzeiros, uma
verdadeira fortuna! Principalmente agora, quando se achava de-
sempregado, passando necessidade. Até que o industrial de óleos
que andava desaparecido, achou de dar as caras. Chegou brabo,
buzinando forte, o automóvel em cima da calçada. Mestre Pedro
correu ao encontro do magnata. E este, sem perda de tempo foi
anunciando: trago-lhe uma proposta que espero não seja despre-
zada. Dou-lhe um milhão de cruzeiros pelo galo-de-campina! O
pedreiro vacilou um instante antes de tomar a decisão heróica.
Depois, segurando a gaiola, as mãos trêmulas, entregou ao magna-
ta. E este, ante os olhos atônitos de Franctsquínho, da Maria e das
filhas, assinou o cheque de um milhão de cruzeiros com o qual
estava comprando o campina do Mestre Pedro.
(Este conto foi um dos premiados no concurso 10 Prê-
mio Literário Cidade de Fortaleza)

60
o LADRÃO DO HIPOPÓTAMUS
Na calçada era aquele burburinho, aquele empurra-empurra
de pessoas procurando entrar a um mesmo tempo no supermerca-
do. No interior do estabelecimento não era menor o atropelo, os
encontrões de fregueses, alguns tentando forçar passagem com os
seus carrinhos de mão superlotados de mercadorias. Havia entre
os compradores os que não se davam sequer ao trabalho de exami-
nar os preços contidos nas etiquetas. Retiravam as mercadorias
das prateleiras e iam acomodando no interior dos carrinhos. Uís-
que e vinhos estrangeiros, queijos enlatados, presuntos, quanta
coisa boa, Senhor Deus, que só os ricos conhecem. Depois pagari-
am no caixa o preço que fosse arbitrado. Estava no caso aquela
senhora jovem e loura, acompanhada do marido, de bermudas,
também jovem e bem nutrido. Mas, desgraçadamente, nem todos
quantos se achavam no Hipopótamus - este o nome do supermer-
cado - eram iguais à senhora jovem e loura e ao seu marido, o
moço de bermudas. Havia, por outro lado, os que se davam ao
trabalho de examinar os preços, de confrontá-los e, o que era mais
grave, de contestá-Ios. Hábitos de carentes, de pessoas desco-
nhecedoras das boas regras, diriam as damas do soçaíte. Olhas-
sem só aquelas magras e mal trajadas, postas a reclamar. Não pa-
reciam interessadas no uísque, nos vinhos estrangeiros, nos quei-
jos de Minas e nos presuntos, mas em artigos de nenhum requinte
como o feijão, o arroz, o café, o açúcar e o óleo comestível. Feminis-
tas com certeza, dirigentes, talvez, de alguma SOCiedadede donas
de casa. E como estavam por dentro dos preços! É um roubo, dizia
uma delas, um supermercado vendendo mais caro que as bodegas
do subúrbio! Preços mais altos do que os previstos na tabela ofici-
al. Onde estava a Sunab que não via aquilo? A senhora moça e
loura falou para o marido: coisa feia era reclamar em público! Há-
bito de mal educados, de gentinha. - Vocêfala assim, boneca, por-
que não trabalha! Não sabe quanto custa o dinheiro - disse uma
das reclamantes. O moço de bermudas riu num assentimento. A
mulher loura e bonita volta-se contra o marido. Então, ele estava
de acordo com aquelas subversivas? Era só o que faltava! Feliz-
mente um funcionário do estabelecimento achou de intervir. Nin-
guém era obrigado a comprar. Comprava quem queria. E lugar de

61
comício era na praça. Nunca ali! Então, o moço de bermudas saiu
empurrando o carrinho repleto de mercadorias em direção ao cai-
xa. As mulheres magras e mal trajadas por sua vez foram embora
sem nada comprar. Diziam-se enganadas pelo anúncio saído no
jornal. Prometeram vender tudo abaixo dos preços do comércio.
E, no entanto, o que se via era aquela exploração, verdadeiro assal-
to à bolsa do consumidor. De repente um grito vindo do interior do
supermercado: pega o ladrão! Correria, confusão ainda maior. As
senhores magras, mal vestidas e de muitas reclamações entreolha-
ram-se confiantes. O povo, afinal, começava a fazer justiça com as
próprias mãos! Decorridos alguns minutos foi que se teve conheci-
mento do acontecido. O indivíduo que espirrara do interior do
Hipopótamus, logo agarrado por dois policiais, não era o gerente
nem o dono do estabelecimento. Tratava-se, sim, de certo rapaz
magro e descomposto que jurava antes não ter posto às mãos no
alheio. Achava-se desempregado e sem comer há dois dias.

62
As MÃEs DA POBREZA

As visitas, embora freqüentes, não perdiam a sensação de


novidade para os moradores do Guaxinim. Mesmo rebolíço, a mes-
ma correria sempre que chegavam as senhoras da Sociedade de
Ajuda aos Favelados. Divertiam-se os moradores de favela ao vê-
Ias esnobando em seus automóveis de luxo, muito bem trajadas e
perfumadas, a fonfonar morro acima morro abaixo, como se pre-
tendessem causar-lhes inveja nessa confrontação da riqueza com a
miséria. Mas, afora os ditos espetáculos de esnobação seguia-se, o
que era mais importante, a distribuição dos donativos. Remédios,
roupas, alimentos, sapatos, tudo remetido pelos ricos da Alema-
nha Federal, da Holanda e dos Estados Unidos para os pobres do
Ceará. Como as pessoas dadivosas, aquelas acostumadas a distri-
buir cristãmente riquezas ou favores são chamadas pelo povo de
pai ou de mãe, de conformidade com o sexo, não tardaram os
favelados do Guaxinim em arranjar uma graça carinhosa para as
diligentes senhoras da Sociedade de Ajuda. Dona Safira, dona
Noélía, dona Mafalda, dona Soraia e dona Eponina logo foram
batizadas de Mães da Pobreza, lembrança essa que muito as sensi-
bilizava, notadamente quando rej etida pelos colunistas sociais. Que
não se visse no ato nada mais do que uma manifestação de reco-
nhecimento e justiça. Por que se os pobres do Brasil haviam esco-
lhido Getúlio como pai, então, por que os pobres do Guaxinim não
escolheriam dona Safira, dona Noélía, dona Mafalda, dona Soraía
e dona Eponina como suas mães? Nada mais justo, nada mais
compreensível! Estava decidido. Elas quisessem ou não, estavam
cognominadas Mães da Pobreza Guaxinim. E. como tais, seriam
tratadas de agora por diante. Por sua vez as ditas senhoras davam
mostras de zelo e dedicação só mesmo admíssíveís de mãe para
filho. Tivessem em vista o episódio dos alimentos de uso desco-
nhecído. Nossos amigos da América haviam remetido para seus
protegidos do morro do Guaxinim produtos alimentares de consu-
mo desconhecido pelos mesmos, produtos tais como farinha de
trigo. soja, aveia, maisena e carnes enlatadas. O fato motivou deba-
tes na Sociedade. Estariam eles pensando que os pobres do Ceará
fossem iguais aos pobres da América? Com os mesmos usos e cos-
tumes? Houve quem propusesse que as mercadorias fossem de-

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volvidas como desnecessárias. Outros, que fossem vendidas no
comércio e o dinheiro aplicado. Não haveria de faltar compradores
entre os ricos da Aldeota. Foi quando dona Sofia teve uma idéia
salvadora. Por que não consultar os favelados? Afinal, os viveres
tinham vindo para eles! Chamaram um magote de assistentes soci-
ais dando-lhes como tarefa uma pesquisa de grupo. E os resulta-
dos foram que os cabeças chatas gostavam era de feijão, farinha de
mandioca, carne seca e rapadura. Eram grandes apreciadores de
um cafezinho, principalmente pela manhã, e viciados no fumo de
rolo, isso tanto para fumar como para mascar. Sim, eles masca-
vam as mechas de tabaco com a mesma sofreguidão com que os
americanos mascavam seus chicletes. E tendo-se em conta os re-
sultados da pesquisa, trocou-se no comércio os víveres chegados
da América pelos víveres com os quaís estavam acostumados os
favelados. Mas, não foi só! Outros dados interessantes foram in-
cluídos na pesquisa dos assistentes sociais. Ficou-se por outro lado
sabendo que os favelados procediam na maior parte do interior do
Estado. Eram camponeses sem terra em busca da sobrevivência.
E que aqui chegados permaneciam no desemprego e na miséria,
pois a não serem os trabalhos da roça nada mais sabiam fazer.
Todavia, não faltava ali mesmo no morro quem viesse contestar a
missão das Mães da Pobreza. Prova disso eram os letreiros escri-
tos nas paredes da Sociedade de Assistência aos Favelados. Um
dia amanhecia no piche: - "Trabalho e não esmola". Já no dia se-
guinte: - "Aesmola eleva quem a dá e degreda quem a recebe". Por
último eram as agressões verbais contra os nossos amigos da
América e do mundo ocidental e cristão: - "Imperialistas, vocês
nos roubam, depois mandam esmolas". Ou ainda: - "Não fosse a
exploração imperialista seríamos ricos e felizes. Nunca uma nação
de famintos e doentes". Graças a tais destampatórios teve início
um processo de politização entre as diretoras da Sociedade de Aju-
da aos Favelados do Morro do Guaxinim. Os "slogans" escritos nas
paredes eram debatidos um a um. E, não há porque negar houve
alguns avanços ideológicos entre as boas senhoras. Assim é que a
dona Soraia com a ajuda de uma assistente social chegou a
constatação de que não fora Deus e sim os homens que haviam
dividido o mundo em duas nações: a dos pobres e a dos ricos!
Certa manhã, depois de realizada a distribuição dos donativos,
dona Safira deitou falação para os seus assistidos: - Nós ajuda-

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mos vocês até hoje! Agora esperamos que vocês nos ajudem ... Fez-
se um profundo silêncio em meio à expectativa dos presentes.
- Ajudar nossas mães? Mas, como? E dona Safira sem mais demo-
ra disse de suas pretensões. Suas e das demais senhoras da Soci-
edade de Ajuda aos favelados do Guaxinim: - Como vocês sabem.
as eleições vem aí. Ora. nós não somos candidatas a nenhum cargo
eletivo. Para nós só mesmo os encargos. Entretanto. temos os nos-
sos filhos, maridos, genros e noras. todos candidatos. uns a depu-
tados. outros a vereadores. a prefeito e a senadores. Queremos
votos. Esperamos pela ajuda de vocês! Dona Noélía. dona Mafalda,
dona Soraía e dona Eponina fizeram coro com dona Safira no
peditório. Todas elas tinham fosse quem fosse para eleger.

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JARDINS DE INVERNO

Meia quadra de terra devastada, o sacrifício de coqueiros,


mangueiras e cajueiros, tudo para dar lugar a vivenda dos Silvas.
Antes da escolha - é verdade - os Silvas debateram entre si o local
onde deveriam fixar-se. Seu Joaquim, o chefe da família, era por
São Gerardo. Tinha simpatia pelo bairro. Lugar calmo, gente or-
deira, com jeito de interior. Ao que protestavam a Dalva e a Celes-
te, os dois bem-quereres do velho: Pai, o senhor deve se convencer
de que é um homem rico. E lugar de rico é na Aldeota, da mesma
forma que lugar de pobre é o Pirambú. São Gerardo fica para a
classe média. Nunca para nós, que podemos nos considerar ricos!
Já o Minervino era do contra. - Qualquer bairro me agrada, menos
a Aldeota ou as Aldeotas, como queiram chamar. Bairro de gente
sofisticada, de quem quer ser o que o calendário não marca. Lá, a
gente anda nas ruas e a impressão que se tem é a de estar na Euro-
pa ou nos Estados Unidos, com tanto nome estrangeiro nos edifíci-
os, nas lojas, nas butiques, nos restaurantes. Vaise ver e é só cabe-
ça chata. E, agora com ares de troça: o mais engraçado é eles que-
rerem viver com hábitos de gringos, oferecendo chás e conservan-
do em casa seus jardins de inverno, como se estivessem na Europa
e não no Ceará. Seu Joaquim achou de contestar o filho: - Mas, se
estão doentes não faz mal que tomem chá! Ou faz? Minervino riu
da ignorãncia do pai. Mas, não se trata de remédio, pai! Se fosse.
nada demais. É modismo, macaqueação. Oferecem chá imitando
os ingleses. Quando, se quisessem viver de acordo com o meio,
ofereceriam refrescos, sorvetes, garapinhas, que é uma tradição
cearense, mais consciente, portanto. com o nosso clima, com os
nossos hábitos. Mas, não querem se parecer com cearenses. Da
mesma forma que os jardins de inverno. Na Inglaterra, na Suíça,
na França está certo. É devido a neve durante o inverno. Mas, aqui?
Numa terra onde nem chover chove! O velho balançou a cabeça
numa confirmação. Dona Marocas, a mulher de seu Joaquim, não
tinha opinião. Dolores e Clotilde, as duas filhas mais velhas, tam-
bém não. Afinal, terminaram vencedoras a Dalva e a Celeste, os
dois bem-quereres de Joaquim Custódio da Silva, homem simples
e sortudo , tornado rico da noite para o dia graças aos incentivos
da Sudene e aos elevados preços da castanha de caju. Compraram

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num loteamento meia quadra de terra, isso nas margens do Cocó,
já quase Água Fria. Mais uma vez Mínervíno protestou. Um crime
contra a Ecologia! Eliminar-se um sítio de fruteiras, extinguir-se
uma área fértil para no seu lugar construir-se casas? Isso no Cea-
rá, onde falta ao povo o de comer e o de beber? Por que não cons-
truir noutros locais, longe das margens do rio? Onde o Governo
que não via tamanho desmazelo? O fato é que embora o pregação
do ecologista da família, a vivenda dos Silvas foi construída com
todas as extravagãncias próprias dos novos ricos, sem esquecer os
jardins de inverno, logo infestados de roseiras, gerânios, magnólías,
gardênias e de outros espécimes raros. Proteção perfeitamente dis-
pensável a que se pretendeu dar. Porque no ano seguinte não cho-
veu no Ceará. Nem nos posteriores. Foram cinco anos sem inver-
no. O maior dos flagelos climáticos já acontecido na região.

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