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O texto do presente tópico é quase integralmente transcrito de: SANTOS, A. A. dos. Tópicos de teoria,
prática e ensino de História. “Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo” no. 101, 2007, p.
193-207.
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Essa afirmação de Febvre costuma ser referida, nos meios acadêmicos brasileiros, de modo
simplificado, designando o anacronismo como o “pecado mortal do historiador”. Muito raramente a
citação é feita de modo completo e correto. Ela consta de uma obra publicada por Febvre em 1942, sobre
François Rabelais. Ao introduzir a análise da religiosidade desse literato no contexto do panorama
religioso do século XVI, Febvre aponta desde logo a grande dificuldade para o tema ser adequadamente
compreendido: “Le problème est d'arrêter avec exactitude la série des précautions à prendre, des
prescriptions à observer pour éviter le péché des péchés, le péché entre tous irrémissible: l'anachronisme.”
(O problema que se trata de resolver é estabelecer com exatidão a série de cuidados que devem ser
tomados para ser evitado o pecado dos pecados, o mais imperdoável dos pecados: o anacronismo.)
(FEBVRE, Lucien. Le Problème de l'incroyance au xvie siècle. La religion de Rabelais. Paris: Albin
Michel, ed. de 1968, p. 15)
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Anacronismo provém das palavras gregas “ana” (prefixo adverbial que indica
contrariedade) e “cronos” (tempo). Anacronismo, pois, é um erro na cronologia, na
referência temporal. Quando algo não condiz com seu tempo, dizemos que é
anacrônico.
Talvez nenhuma época histórica tenha sua compreensão tão prejudicada, pelas
distorções produzidas pelo anacronismo, como a Idade Média.
A sociedade medieval era entendida como um organismo vivo. Nele, cada órgão
desempenhava seu papel específico, em ordem ao bom funcionamento do conjunto.
Clero, nobreza e povo se equilibravam, para benefício de todos, como registra Jacques
Castelnau:
A vida, que na Idade Média repousa antes de tudo na igreja, tem um segundo
ponto de apoio: o castelo. Ela é, ao mesmo tempo, religiosa e heroica. Esse
heroísmo, quem o encarna e simboliza, é o senhor feudal, que, assim como o
padre, nasceu de uma necessidade popular. Lembrai-vos dos desesperos dos
primeiros tempos da cristandade. Sobre as ruínas acumuladas pelos bárbaros,
ergueu-se o bispo, com a cruz na mão, ensinando a existência de um mundo
sobrenatural e melhor. Acreditou-se nele, e a vida se tornou menos rude. A
seu lado, apareceu o nobre, com a espada na mão. E as populações inquietas
se sentiram reconfortadas, porque se viram defendidas. Em troca desses dois
socorros, o homem do povo levou ao homem de Deus e ao homem da guerra
os frutos de suas plantações, as colheitas de seus campos, o duro trabalho de
seus músculos. Todos acharam que o negócio era bom. A sociedade
medieval, composta de elementos díspares, forma, assim, um conjunto
harmonioso, a classificação dos indivíduos correspondeu a uma necessidade,
sua hierarquia correspondeu a um entendimento e a um contrato.3
Por mais que pareça estranha aos homens de nosso tempo, a divisão da
sociedade medieval em três estamentos era algo natural e a ninguém ocorria contestar,
nem mesmo pôr em dúvida, a razoabilidade dessa ordenação. É anacronismo imaginar,
na Idade Média, sentimentos e anseios de igualdade social que de todo inexistiam.
3
La vie au Moyen Age d´après les contemporains. Paris: Hachette, 1949, p. 52.
5
Na Idade Média (...) as relações dos homens entre si são regradas por
prescrições estabelecidas, de cuja legitimidade ninguém tem a menor dúvida.
Ninguém cogita de protestar contra a sociedade tal como ela é (...) ou
imagina que possa existir alguma mais bem construída, mas todos quereriam
que ela fosse ainda mais completamente o que ela devia ser. Depois disso, é
de muito engraçado ver nossos historiadores do século XIX, com Michelet à
frente, pretenderem dar lições aos homens do século XII: – Vós tínheis,
senhores, instituições que não vos eram convenientes. – Ora, ora, senhores,
começai por considerar o modo como vós mesmos vos acomodais, antes de
vos colocardes em nosso lugar e em nosso papel, para julgar das nossas
coisas! Muito engraçada, realmente, é a vossa pretensão de nos vir ensinar,
oito séculos depois de nós, qual deveria ter sido o nosso procedimento! 4
4
La Renaissance. Paris: Arthème Fayard et Cie. Éditeurs, 1935.
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Outro exemplo: num filme sobre as aparições de Fátima, produzido pelo cinema
norte-americano na década de 1950, a aldeiazinha portuguesa em que a Virgem
apareceu em 1917 foi filmada no México, num ambiente inteiramente mexicano, em
que os homens usavam até chapéus de abas muito largas – os sombreros mexicanos –
em lugar de usar os gorros ou bonés habitualmente usados nas aldeias lusas... Na ótica
de quem fez o filme, México e Portugal eram países latinos e de cultura ibérica; logo,
não deviam ser muito diferentes...
5
ANÔNIMO. Curial e Guelfa. (Primeira tradução para o português e notas: Ricardo da Costa – Revisão:
Armando Alexandre dos Santos. Estudo introdutório e edição de base: Antoni Ferrando). Santa Barbara
(CA): EHumanista, 2011.
6
Op. cit., p. 369-370.
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no mundo maometano, onde a única destinação das mulheres era o casamento. O autor
de Curial e Guelfa, entretanto, ao imaginar o contexto maometano, insensivelmente
projetou para ele algo que era contemporâneo, mas somente existia em outro espaço
físico.
Dica do professor:
São muito frequentes os anacronismos nos livros de história, nas obras de ficção
e, sobretudo em filmes e seriados televisivos aclimatados em ambientes históricos do
passado.
Desafio proposto: procure um exemplo de anacronismo em algum livro, artigo
de jornal ou revista, em algum texto da internet ou em alguma passagem de um filme ou
seriado.
Se for um filme ou seriado, descreva com pormenores, usando suas próprias palavras, o
que lhe pareceu anacrônico; se for um livro ou artigo, transcreva entre aspas, e
observando todas as normas de citação da ABNT, o texto impugnado e, em seguida,
redija uma crítica bem fundamentada, demonstrando como e por que lhe pareceu que foi
cometido ali o “pecado dos pecados” do anacronismo.
Sugestão complementar: se o seu texto ficar bom, transforme-o num artigo e
mande para algum jornal da sua cidade. Os jornais costumam ter uma seção própria para
publicar colaborações opinativas dos seus leitores. Já que você está dando os primeiros
passos na carreira de historiador,, é bom já ir se acostumando a ver seus textos
publicados.
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