Mario Vargas Llosa, consagrado intelectual Peruano, evoca um importante alerta
que já nos foi contado, também, por Georges Duby. Este se concentra na transição do período medieval à modernidade. Aquele reflete sobre o atual cenário pandêmico vivido no mundo, jogando luz no tormento do homem medieval comparado à pandemia de COVID-19. Há, de fato, algo que nos remete a certa dose de “encantamento” do mundo quando estamos presos em momentos tão tensos como os atuais. O mais aconselhável é não se expor lá fora. Assim pensava o homem medieval, ainda juntando os cacos do que restara do Império Romano, os camponeses comuns, grande maioria à época, só desejava mesmo era se manter vivo num cenário de pobreza extrema e, sobretudo, dominado de incertezas. Enquanto ainda não surgem as primeiras cidades, a Idade Média, para a grande parte de seus filhos, se resume num período turbulento, hierárquico, rural e com ritos muito bem definidos pela díade entre Igreja e Imperador. Em que pese a linha tênue existente entre os limites do poder de cada instituição, ambos desempenharam papel determinante na solidificação dos costumes em todo ocidente Europeu. A primeira, instituição irradiadora de um ethos, Baschet (2006, p.168) declara que “[...] a Igreja, como comunidade, é a sociedade em sua globalidade, enquanto, como instituição, ela é sua parte dominante, que determina suas principais regras de funcionamento”. Evidente que, sem desprezar a psicologia coletiva, que, claro, ainda é muito estudada pelos historiadores das mentalidades, o grosso da “cartilha” seguida pelo homem comum era orientada pelas tintas clericais. Não obstante, havia, ainda, forte tradição oral camponesa transmitida por gerações, na qual, por vezes, se confundia com a religião dominante. Portanto, destaca-se dentro de grande parte do período medievo, uma assimilação de costumes, ideias e todo um itinerário ético que orientam a conduta humana em contato com o meio que habitam. Tal imbricação podemos notar através da vida de Menocchio, italiano que Carlo Ginzburg apresentou ao mundo. Analisando a vida desse moleiro que tanto intrigou o tribunal da inquisição no século XVI, percebe-se como seu imaginário era povoado por leituras de mundo ora lógicas, ora confusas, mas nunca desinteressantes. Sobre a segunda instituição, há fases diferentes, mas que, de forma geral, inauguram em Clóvis I o caráter unificador do poder imperial. Sendo bárbaro, seu batismo cristão simboliza o espírito de uma época em que, a partir dali, o Imperador concentra cada vez mais poder. A relação Igreja-Imperador, porém, tem seu auge no século VIII, quando senta ao trono Carlos Magno, dando continuidade ao domínio dos Francos e sua perpetuação até o posterior Sacro Império Romano-Germânico. Feita essa contextualização, voltemos à inquietação de Llosa. Em que medida a ideia de morte, que tanto nos aflige, impactou o mundo medieval? Penso ser importante, antes, entender um ponto que, por vezes, nos escapa o entendimento: a ideia de liberdade. Não são poucas as pessoas que, hoje, munidas com toda sua bravata, alegam ter sua “liberdade ameaçada” pelo fato de não estarem dispostas a cumprir medidas sanitárias básicas em um cenário de dor e morte. Vale lembrar que essa tão reivindicada liberdade irrestrita, nós renunciamos parte dela e largamos no Estado Primitivo de nossa espécie, uma vez que buscamos segurança em uma associação de iguais, de modo que consigamos, civilizadamente, viver em harmonia. Liberdade, na Idade Média, talvez fosse o ativo menos cobiçado dentre todos os outros naquele tempo e espaço. Isso explica as relações de dependência que por muito tempo permitiu àqueles homens terem alimentação, abrigo e, o mais importante, segurança. Naquela sociedade, também, não há margem possível para que o homem consiga ambas as necessidades que o mantenha vivo sem fazer concessões. Sem mencionar fenômenos importantes, como baixas produtividade da terra e expectativa de vida. O horizonte da pequena família camponesa, por longos séculos, se resumiu a uma luta incessante por comida e paz. Mas, nesse caso, é evidente que a distância temporal entre nós e o medievo não permite muitos parâmetros comparativos. Ainda assim, com todas as limitações impostas pelo tempo, penso se o homem medievo não seria, de certa forma, mais precavido em relação à morte do que muitos de nossos homens atuais. A divindade cristã, que antes provocava o mistério e sobretudo o temor, hoje, se instrumentaliza como uma espécie de escudo, que legitima correntes de ideias que vão na contramão de todos os avanços civilizatórios que fizemos ao longo dos últimos séculos. O medo que Llosa alerta, certamente, pulsa forte. Mas há exceções. Um dos fatores determinantes para grande parte do misticismo na psicologia coletiva da Idade Média, sobretudo na Baixa Idade Média, era o pano de fundo religioso, somado à já mencionada tradição oral. A manifestação do divino poderia ser sentida nos mais variados fenômenos, sejam eles naturais ou não. Para o corpo clerical da Igreja, por exemplo, quando da sua solidificação dogmática após o século VIII, quaisquer interpretações diferentes de sua visão apocalíptica certamente não eram bem- aceitas. A perspectiva escatológica em muito contribuiu para associações com eventos que eles, homens medievais, não controlavam. Afinal, a visão de mundo linear apontava para um fim, mas um fim incerto, e seu resultado dependeria, invariavelmente, da conduta do fiel no plano terrestre. Não havia como, nem porquê desafiar a soberania plena da divindade. Curioso que, sob esse prisma, o campo de atuação prática dos laicos à época era relativamente limitado. Daí a usura ser considerada pecado, uma vez que só Deus é dono do tempo e não cabe ao homem explorá-lo para fins pessoais. O papel da Igreja constitui aspecto fundamental no estímulo dos afetos medievais, já há muito tempo envoltas de cosmogonia própria daquele campesinato. Junte-se a isso o fato de que são pessoas pobres, vivendo sob condições precárias e extremamente dependentes das condições climáticas, agrárias etc. A terra, tão abonada, se mostra quase como parte do corpo do camponês, uma vez que dali sairá seu sustento. Antes dos grandes influxos às cidades, a ideia de “futuro” provavelmente fosse vislumbrada, nas regiões com terras menos férteis, no máximo como o próximo outono ou apenas sob a orientação clerical, a fim de alcançar o reino de Deus. O medo da morte é, durante a Alta idade média, mais temor quanto à própria salvação, produto de uma leitura bíblica particular da Igreja, qual seja, uma conduta ilibada e que siga os escritos divinos (ou interpretações deles) para alcançar o reino dos céus. Enquanto na Baixa Idade Média, há maior apreço pela vida e o usufruto dos bens terrestres. O avanço da sociedade em diversos setores, sobretudo material, em muito estimula esse ponto de inflexão no modo de vida medievo. Em função da fome, a maior de todas as necessidades básicas, trabalhava-se incansavelmente para ter o “pão de cada dia” nas mesas familiares. A labuta das colheitas, ainda muito dependente da baixa produtividade, sofrerá mudança significativa a partir do século XI com o uso de novas tecnologias agrícolas como o uso de charruas, por exemplo. Um fato notável: entre os séculos IX ao XIV, a Europa viveu uma grande crise de fome por século. Acontece que, em função da própria ampliação das rotas comerciais, sobretudo com o oriente, a partir do mediterrâneo, observa-se os primeiros focos do que virá ser a mais infortuna das desgraças na terra: a peste negra. Tendo seu auge em meados do século XIV, a peste traz consigo uma série de implicações. A primeira delas, de caráter religioso, se assenta no fato da descrença dos fiéis em relação à proteção divina. A ideia corrente era, até então, ver na doença (sobretudo a lepra), um sinal de punição divina. Como consequência, buscava-se culpá-los pela iniquidade, isolando-os da sociedade. A peste não faz escolhas, morrem-se todos, clérigos e leigos, nobres e camponeses. Temos os germes do sentimento que culminará, em começo do século XVI, no protestantismo. Nesse ponto, é interessante notar, como relata Georges Duby, a correspondência entre o estigma relacionado à peste e à recente Aids. Percebe-se, inclusive, que o modo como os acometidos são tratados não se distinguem dos atuais. Também, em se tratando de COVID-19, nos deparamos com o fato de que percorremos uma distância de quase dez séculos e a medida preventiva mais eficiente contra as calamidades sanitárias ainda vê no isolamento social seu melhor freio. Uma segunda implicação é o recuo demográfico, com menos pessoas nas aldeias, há um impacto significativo no modo de vida. A Europa vive surtos frequentes e toda essa cadeia passa a interferir nas colheitas, vida conjugal e relação entre Império e Igreja. A própria sobrevivência estava constantemente em xeque. Em seu artigo, Llosa parece incorrer dentro do espectro de caça às bruxas que Duby informa quando há entre nós manifestações de doenças endêmicas. A China e seu modelo de governo seriam, aos olhos do escritor peruano, a fonte que emanou a praga ao mundo atual e suas instituições deveriam ser extirpadas. Ao que parece, a busca por bodes expiatórios segue a todo vapor. Para o homem medieval, portanto, a vida poderia ser ceifada no momento de um instante. Os obstáculos eram tão grandes quanto os desafios para superar os males da época. Tal volatilidade instava o homem do medievo a encontrar na religião seu principal refúgio. A peste aparece ao mesmo tempo como cumprimento dos escritos apocalípticos e oportunidade de salvação da alma. O assombro da morte certamente pairava sobre as aldeias, igrejas e castelos medievais. O medo da morte, de fato, continua. Talvez seja mesmo ele que nunca deixará de nos acompanhar, não importa o quanto avancemos como espécie, em qualquer campo de atuação. O tom da sua expressão é que, como já dito acima, me parece diferente dos nossos irmãos medievais. Llosa, em sua análise, talvez, tenha deixado escapar a intrepidez do homem atual, que parece ver a praga sempre distante, como uma fatalidade que já há muito selecionara seus destinatários. Sob essa ótica, a Idade Média tem algo a nos ensinar. Inobstante credos ou costumes, a morte, invariavelmente, se impõe soberana. Essa loucura candente que batizamos com o nome de capitalismo veio usurpar até mesmo nossa conduta face à morte. Impõe-se, hoje, fatores econômicos em detrimento à vida. Talvez tenha sido um erro de percurso da humanidade, ou vários, analisar isso é tarefa dos filósofos. Ao fim e ao cabo, Llosa tem razão, mas deveríamos ser, nesse sentido, e guardadas as devidas proporções, ainda mais medievos, tal como assinala Hilário Franco Jr (2001) ao dizer que “os medievais sentiam a onipresença da morte”. REFERÊNCIAS:
BASCHET, Jèrôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da
América. São Paulo: Globo, 2006.
BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1982.
DUBY, George. Ano 1000 ano 2000 na pista de nossos medos.1ª ed. São Paulo:
Ed. UNESP, 1998.
____________. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. 2ª ed. Lisboa:
Editorial Estampa, 1994.
FRANCO Jr, Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo:
Editora Brasiliense, 2001.
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Bauru, SP: Edusc, 2005.
LLOSA, Mario Vargas. Retorno à Idade Média? EL PAÍS, 18 de mar. de 2020.