Você está na página 1de 32

NAVEGANDO PELA REFORMA: UMA BREVE ODISSÉIA E

SEUS DURADOUROS IMPACTOS NO PROTESTANTISMO

Viva o júbilo de 505 anos das "marteladas" em Wittenberg,


novamente o justo pode viver pela fé!!

Ítalo Victor Alves1


italovictoralves@gmail.com

1. INTRODUÇÃO
O período da reforma prostestante se tornou um marco sociocultural
efervescente para uma gama expressiva da sociedade religiosa. 31 de outubro urra
um símbolo de liberdade, mudança e acima de tudo "fé" nos corações daquele que
divulgam com trombetas os "5 Solas" mais famosos ao longo de 505 anos de eventos
grandiosos e diversos que promoveram reformas e trouxeram novos ares para um
sistema feudal dominado pelo catolicismo. Para compreensão deste período
devemos adentrar o túnel do tempo, precisamente retornamos para o século XIII,
navegarmos nas águas do século XIV, enquanto procuramos não naufragar a
embarcação que ruma para o final do século XV e começo do século XVI.
O fim da época medieval foi marcado por crises, na realidade "crise" é a
palavra-chave para a ebulição das reformas protestantes. Assim como um "coach"
moderno nos incentiva ao dizer "Se reinvente em meio às crises", a história parece
também preparar elementos diversos para uma reformulação do modelo medieval,
caracterizado pela feudalismo, sistema onde havia uma grande centralidade na
hierarquia social, ao qual não era passível de mudança devido suas concepções,
assim tecendo poderes fixos, ao qual a igreja se torna a cabeça do mundo e reis,
príncipes e nobres suas mãos para operar e governar, aqueles que não tivessem
"predestinados" a tal classe, apenas deveriam angariar o serviço nas mais diversas

1
Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Ceará e Teólogo não licenciado em todos os
tempos.

1
existentes estruturas dentro deste sistema, trabalhando como vassalos do grande
senhor de terras, o nobre feudal.
A igreja, como detentora das chaves da salvação, era aquela que ditava as
regras e o funcionamento dos governos. Entretanto, a idade média traria diversas
crises dentro do sistema feudal, também florescendo a corrupção que se instalara
nos setores da igreja e enfraquecendo o conceito de “Corpus Christianum”. O
conceito de “Corpus Christianum” é definido como a união entre a igreja e o Estado,
promovendo domínio espiritual e secular, onde o Império e o Papado são dois
poderes dentro de uma “republica Christiana” unificada que abrange todo o
cristianismo, cuja a adesão é mediada pelo sacramento do batismo. Cristo seria a
cabeça invisível deste corpo, enquanto o governador e o papa, em maior adesão este
segundo ao longo do tempo devido sua posição de “vicário de Cristo” e de “sucessor
de Pedro”, seriam as cabeças visíveis e terrenas.
A partir de Inocêncio III (1198-1216), continuando o processo conduzido por
Carlos Magno no oitavo século, vemos que o papado assume um grau de governança
mundial e isto também afeta as relações com os nobres e os limita dentro de sua
autoridade ao Papa e a igreja, detentora das chaves espirituais e portanto
responsável pelo mundo como representante de Deus, podemos ver isto quando
analisamos os ditos de Inocêncio III em conjunto com análise de Bruce L. Shelley:
Inocêncio III disse aos príncipes da Europa que o papado era
como o sol, e os reis, como a lua; ou seja, assim como a lua
recebe a luz do sol, os reis recebiam seus poderes do papa. As
principais armas do papado para sustentar essa autoridade
eram as penalidades espirituais, visto que quase todos
aceitavam a existência do céu e do inferno e na administração
papal da graça para se alcançar aquele e evitar este.2

A crise no sistema feudal, a ascensão do humanismo e do renascimento em


consonância com o surgimento dos pré-reformadores e também reformadores
trazem ressignificações e questionamentos ao conceito de “Corpus Christianum” e o
domínio do Papado, juntamente com a redescobrimento da doutrina de salvação por

2
SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo: Uma obra completa e atual sobre a trajetória da
igreja cristã desde as origens até o século XXI. Thomas Nelson, 2018, p.306

2
graça e a justificação por meio da fé acabam sendo fundamentais para entendermos
o caminho para o sucesso de Lutero e outros reformadores. Compreender esses
contextos de crises e ascensão científica e humanística permitirá que aportemos nas
ilhas (re)descobertas pelos protestantes que culminaram nas reformas e também na
própria composição do “Cinco Solas”.

2. CRISES NO FEUDALISMO
A insatisfação das classes menos favorecidos, as crises agrárias, as pestes, os
desastres e a fome seriam os primeiros fatores que moveriam a revolução
protestante, vemos que o sistema feudal consiste, resumidamente, em um sistema
de manutenção e abastecimento das classes favorecidas pelas classes menos
favorecidas, o nascimento era importante, como não havia mudança de classe então
as classes servis, que empregavam diretamente seu esforço na agricultura e produção
sustentavam o topo da pirâmide, enquanto a nobreza e o clero usufruíram dos
serviços destes vassalos ao receber parte de sua produção em prol de serem
mantidos. Este modelo produz grande expansão das áreas rurais, aumento na
produção de alimentos, mas isto ainda não foi suficiente para abastecer a totalidade
da população dos feudos, devido o grande crescimento populacional existente, até
mesmo pela ausência de métodos contraceptivos eficazes combinado ao discurso do
catolicismo sobre fertilidade e reprodução como uma benção natural de Deus, ocorre
um crescimento desequilibrado que não pode ser abastecido pela cota de alimentos
produzidas entre o século XII E XIII. A crise de alimentos produz então uma nova
mobilidade social que será responsável pelo crescimento das cidades, concordamos
com Carter Lindberg em sua afirmação:
O surgimento das cidades e de uma nova mobilidade social
foram também tanto causa quanto consequência da
mudança de uma economia natural para uma economia
monetária, assim como a produção comercial e o
desenvolvimento tecnológico.3

3
LINDBERG, Carter. História da Reforma: Um dos acontecimentos mais importantes da história do
cristianismo em uma narrativa clara e envolvente. Thomas Nelson, 2017.

3
O crescimento das cidades, de maneira desordenada, traz a tona problemas
sociais como a exclusão, aumento de mendigos, dependentes de trabalhos que
sequer conseguiam suster a sobrevivência e isto contribui para o declínio do senso de
“Corpus Christianum” tecido pela igreja católica. A mudança da economia feudal para
a economia monetária também está atrelada a produção comercial decorrente dessa
expansão populacional nas cidades, isto promove avanços científicos e também,
novas formações educacionais e avanços em técnicas, artes, ciências e na própria
filosofia da época, principalmente devido a criação e expansão de ambientes
universitários. A Europa estava se afastando lentamente do feudalismo e entrando
em uma nova época financeira, onde o dinheiro e a burguesia, a classe comercial,
ascendiam e também queriam sua partilha na hierarquia social rígida da estrutura
feudal, combinados com a insatisfação crescente dos monarcas, devido a autoridade
Papal e suas políticas, vemos que o feudalismo começava sua transição
progressivamente para um mercantilismo, ao mesmo tempo há novos
questionamentos da esfera de influência da Igreja.
O caos de conflitos e interesses era permeado por desastres naturais
recorrentes, além de invernos rigorosos e secas severas. No sul da França, na década
de 1300, rios transbordaram e inundaram as colheitas, destruíram pontes, o inverno
congelava os rios, vinhas e animais, em Avignon, no ano de 1355, nevou cerca de 20
dias. Já no verão, o calor queimava os grãos de cereais e secava os poços com água
potável. A partir deste pequeno recorte na França, podemos tecer um quadro de
desastres nos demais países Europeus. Fome e peste eram parte do dia-a-dia da
população europeia, além dos desastres como terremotos e enxames de gafanhotos
que destruíram as fazendas e trouxeram gigantesca fome como consequência.
As consequências desses desastres naturais com a crise feudal trazem à tona
novos desastres, afinal nada é tão ruim que não possa piorar. Devido a colheita
pobre, a fome, falta de higiene, árdua jornada de trabalho, má nutrição da população
as pestes ganhavam mais força, pois os cidadãos eram atacados por surtos de febre,

4
em seguida, para “trazer refresco” a peste negra decidiu trazer seu sorriso sufocante
para os europeus. Carter Lindberg afirma:
Fraca e mal nutrida, a população foi atingida por surtos
de febre tifóide e, em seguida, pela terrível Peste negra em
suas manifestações de peste bubônica, pneumônica e
septicêmica (Cunningham e Grell, 2000, p.274-95). A
propagação da peste pela Europa foi facilitada pelas
melhorias nas frotas mercantes italianas, que permitam
aos navios transportar, com rapidez, uma carga mortal e
clandestina de ratos portadores de pulgas transmissoras
da peste.4

A Peste negra foi mortal na Europa, uma pandemia sem igual, combinado isso
com as guerras tivemos uma das maiores formas de extirpar o excesso populacional
na época medieval. A peste só veio ter maior diminuição no período da reforma, mas
ainda constituía perigo real, tanto que o reformador Ulrico Zuínglio quase sucumbiu
para ela. O medo da peste era real, ela era como uma flecha envenenada que
rapidamente se espalhava pelo corpo do soldado mais saudável e forte do exército, a
morte era real e isto implicava no destino eterno do homem. Carter Lindberg, afirma
sobre o período:
A peste era percebida, na concepção popular, como uma
punição de Deus pelos pecados da humanidade.
Movimentos de flagelação se engajavam em penitências
sangrentas em prol de pecados pessoais e coletivos, tidos
como causadores da peste. 5

As academias e a expansão das cidades desenvolveram a ciência com novas


técnicas de navegação e construção de embarcações que trazem a exploração de
novas porções de terra, mesmo com o período de incertezas promovido pelas crises.
Com as grandes navegações e a mudança gradativa para um modelo monetário
vemos uma verdadeira corrida pelo “Caminho das Índias”, onde Portugal e Espanha
tomam a dianteira em suas navegações e descobrem a América.
O humanismo como um corpo filosófico, mas não somente isto, abre novas
alas para um melhor processo de aprendizagem e investigação científica, apesar da
4
LINDBERG, Carter. História da Reforma: Um dos acontecimentos mais importantes da história do
cristianismo em uma narrativa clara e envolvente. Thomas Nelson, 2017.
5
LINDBERG, Carter. História da Reforma: Um dos acontecimentos mais importantes da história do
cristianismo em uma narrativa clara e envolvente. Thomas Nelson,, 2017

5
educação popular geral na idade média ser horrível, afinal a ignorância era
generalizada devido o ensino estar sob monopólio da igreja. Paulo Ferreira confirma
isto ao dizer que:
O analfabetismo era regra geral na população e as
instituições de ensino existiam em função da nobreza e do
clero. O latim era a língua sagrada da Escritura, da
liturgia, do culto, dos sacramentos. A missa era celebrada
em latim. 6

A teologia do medo vigorava na idade média, a salvação era amplamente


considerada e o destino do homem só podia ser traçado em duas vias: “Céu” ou
“Inferno”, entretanto o modelo de salvação católico dependia de obras posteriores,
após infusão de graça no batismo com sacerdote ordenado, que fariam o homem
atingir o “status quo” de salvo. Mas determinar com precisão se alguém tinha
atingido tal “status” de perfeição era muito difícil e isso promovia grandes dúvidas e
receios nos fiéis da igreja romana, para resolver isso foi desenvolvido o sistema do
purgatório. Todavia, trataremos mais especificamente da justificação, purgatório,
indulgências e a revolução dos reformadores em uma seção mais específica, por
enquanto navegamos para a ilha dos pré-reformadores e vejamos sua contribuição
para nossa jornada rumo às Reformas.
O corpo do Humanismo também atrai para si o movimento da Renascença,
que traz um amplo florescimento da ciência nos séculos XV E XVI, artistas e escritores
trazem de volta os valores humanos da cultura greco-romana para a “roda do jogo”.
Paulo Ferreira afirma:
O desenvolvimento intelectual tomou por base o
antropocentrismo (o homem é o centro de tudo) - premissa
esta que definiu o crescimento das artes e da ciência nesse
período. Abriu-se espaço para investigação, a razão
individual, a evidência empírica, o debate teórico e
racionalista e para consolidação definitiva dos conceitos
científicos. A Teologia, mesmo mantendo seu próprio
espaço, deixou de ser a rainha das ciências, cedendo lugar
à pesquisa racional e idônea. 7

6
FERREIRA, Paulo. A Reforma em quatro tempos: Desdobramentos na Europa e no Brasil. CPAD,
2017, p.26.
7
FERREIRA, Paulo. A Reforma em quatro tempos: Desdobramentos na Europa e no Brasil. CPAD,
, 2017, p. 27.

6
Esse cenário traz um plano de fundo, juntamente dos contextos descritos, para
a ascensão da Reforma, mas não podemos desconsiderar também alguns
preponderantes elementos humanos que se levantaram como uma voz de liderança e
questionamento contra o Papa antes de Lutero, ao qual trazem teorias que aderem
ao próprio humanismo e a renascença, auxiliando na criação da cosmovisão dos
reformadores que teriam maior êxito em administrarem as reformas em seus
territórios de origem.

3. O CISMA DO OCIDENTE
Dentro deste contexto de crises sucessivas, uma raiou em especial, o chamado
Cisma do Ocidente. O cisma está enraizado no início das relações entre o bispo de
Roma e o Império Ocidental. A Europa estava se afastando lentamente do
feudalismo, conceitos como de Estado-Nação começa a efervescer, enquanto os
decorrentes questionamentos ao conceito de "Corpus Christianum" surgiram,
principalmente pela questão monetária, o dinheiro se tornava cada vez mais
importante dentro da estrutura econômica, política e civil da Europa.
A Europa estava lentamente se afastando do seu passado
feudal. A terra era menos importante, o novo interesse era
o dinheiro vivo, e cada vez mais os homens no topo da
estrutura do poder medieval percebiam que era necessário
comandar fontes maiores de renda, o que, por sua vez,
exigia uma luta entre a Igreja e as impetuosas monarquias
nacionais da Inglaterra e da França desencadeou a
turbulência do Século XIV. 8

Mesmo sem os termos políticos, vemos que os homens começam a questionar


e distinguir a autoridade secular da autoridade religiosa, existe o reconhecimento de
direito de atuação de cada esfera, isso era algo novo e assustador para o Papado, mas
proveitoso para os monarcas.
a França foi uma das maiores opositoras ao Papado neste período,
principalmente devido seu Monarca, Filipe, o Belo, que não aceitava as imposições
do Papa Bonifácio VIII, que fora humilhado, juntamente de seus sucessores, ao
8
SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo: Uma obra completa e atual sobre a trajetória da
igreja cristã desde as origens até o século XXI. Thomas Nelson, 2018, p.356.

7
sofrerem o chamado "Cativeiro babilônico" em Avignon (1309-78). A eleição do Papa
Clemente V, um arcebispo de Bordeaux na França, marca o início deste cativeiro do
papado, que permaneceu na França por 72 anos. Carter Lindberg afirma:
Esses ataques sobre o papado, que iam de encontro ao
coração de sua legitimidade como instituição, utilizavam
argumentos de Aristóteles e da lei romana. O Franciscano
Guilherme de Ockham (c. 1285-1347) concluiu que o Papa
João XXII era um herege por causa de sua rejeição da
teologia franciscana de pobreza. [...] O poeta italiano
Dante Alighieri (1265-1321), que fora exilado de Florença
em 1301 por apoiar os oponentes de Bonifácio VIII, atacou
o papado não apenas em sua Divina Comédia, mas
também em sua De Monarchia. Nesse tratado, Dante
argumentou que os papas deveriam abandonar toda
autoridade e possessão temporal, e que a paz temporal
requeria uma monarquia universal sob autoridade do
imperador.9

A transferência do papado de Roma para a França, em Avignon, traz questões


importantes sobre a sucessão do papado romano, pois Roma, a Cidade Eterna,
representava não só a ideia da sucessão apostólica da Igreja fundamentada no
apóstolo Pedro, mas também o conceito de Império Romano, todavia Avignon estava
cercado pelo reino francês, ainda que tenha sido comprada pelo papado, portanto
era um mero instrumento nas mãos da nação francesa, e isto traz amargos rivais
como a Alemanha.
Em 1377, com a morte do Papa Gregório XI, o cardeal de Bari, na Itália, é
escolhido papa, Urbano VI, e decide voltar-se para Roma, entretanto a decisão de
retorno do Papado para Roma é questionada pelos franceses, que haviam se
acostumado a usarem o papado para seus fins hegemônicos. A discordância dos
cardeais franceses, ainda maioria no Colégio de Cardeais, disseram ao povo que a
decisão da escolha de Urbano VI fora forçada e que os procedimentos foram
inválidos. Urbano VI responde às afrontas francesas criando um novo Colégio de
Cardeais, isto faz com que os franceses contra ataquem com a eleição de Clemente
VII para o papado em Avignon. Assim, existem dois Papas, um em Roma e outro na

9
LINDBERG, Carter. História da Reforma: Um dos acontecimentos mais importantes da história do
cristianismo em uma narrativa clara e envolvente. Thomas Nelson, 2017

8
França, exigindo serem o sucessor de Pedro e Vigário de Cristo. Bruce L. Shelley
concorda com a afirmação ao aferir:
Assim, com Urbano governando em Roma e Clemente
governando em Avignon, o sombrio capítulo na história
papal chamado Grande Cisma, que teve duração de 39
anos, começou. Cada Papa tinha seu próprio Colégio de
Cardeais, assegurando, assim, a sucessão papal de sua
escolha, e cada um deles alegava ser o verdadeiro Vigário
de Cristo, com o poder de excomungar aqueles que não o
reconheciam. 10

Tal período trouxe uma crise espiritual e religiosa imensa a população, se


agora havia dois papados e ambos alegavam ser o "único" Vigário de Cristo, então
qual papado deveria ser seguido, afinal a desobediência ao Papa era um ato de
rebelião contra igreja e se rebelar contra a igreja era garantia de excomungação, estar
fora da igreja era um passaporte garantido para o inferno. Carter Lindberg nos faz
ciente de alguns detalhes deste contexto quando afirma:
Já havia existido antipapas na história da Igreja, porém
essa era a primeira vez que o mesmo colegiado legítimo de
cardeais havia eleito, de modo também legítimo, dois
papas no espaço de poucos meses. Urbano VI e papas que o
sucederam permaneceram em Roma; Clemente VII e seu
sucessor residiram em Avignon. Nos dias atuais, é difícil
apreciar plenamente a profundidade da insegurança
religiosa e a intensidade da crítica institucional que esse
cisma causou. Se, conforme decretada pela bula de
Bonifácio VIII Unam sanctum (1302), a própria salvação
dependia da obediência ao Papa, era crucial saber quem
era o verdadeiro vigário de Cristo. Como, porém, isso
poderia ser decidido? Agora, não apenas havia dois papas,
cada qual reivindicando ser o único vigário de Cristo, mas
também dois colégios de cardeais, uma divisão que chegou
a níveis menores na escala eclesiástica, a ponto de
algumas paróquias terem dois padres. A própria Europa
estava dividida em sua aliança: França, Escócia, Aragão,
Castela e Navarra seguiam Clemente VII; Itália,
Alemanha, Hungria, Inglaterra, Polônia e a Escandinávia
seguiam a Urbano VI.11

10
SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo: Uma obra completa e atual sobre a trajetória da
igreja cristã desde as origens até o século XXI. Thomas Nelson, 2018, p. 362.
11
LINDBERG, Carter. História da Reforma: Um dos acontecimentos mais importantes da história do
cristianismo em uma narrativa clara e envolvente. Thomas Nelson, 2017.

9
Neste contexto de luta prolongada, o prestígio do papado e a credibilidade da
igreja começam a "cair por terra", surgindo assim movimentos liderados por
pré-reformadores, um exemplo destes foi a Inglaterra sob a liderança de Wycliffe e na
Boêmia sob a liderança de Huss que buscavam a renovação da igreja.
Em 1409, a maioria dos cardeais, de ambos os lados, achavam que era
necessário uma lei superior, por isso se reuniram em concílio geral em Pisa, vemos
que a questão se torna importante pois somente o Papa poderia convocar um
concílio geral, mas devido o caos de se ter Dois papas isto exigiu medidas
emergenciais para convocação deste concílio. A decisão dos cardeais no concílio de
Pisa foi depor ambos os Papas e eleger um terceiro nome ao trono papal, o escolhido
foi Alexandre V. Entretanto, ninguém aceitaria ser deposto tão facilmente do trono
papal, ainda mais sabendo que seus poderes eram os únicos permitidos para evocar
um concílio geral. A igreja agora tinha três papas - um representando cada Persona
da Trindade, agora sim está perfeito. Sarcasmo à parte, isto traz mais “fogo” ao
“parquinho” europeu da idade média - e a população europeia agora se veria entre
as cruzadas promovidas por esse caos no papado da igreja. Bruce L. Shelley comenta:
Três papas ao mesmo tempo é demais para quase todos os
padrões, especialmente quando um dos papas prega
cruzada contra o outro e começa a vender indulgências
para arcar com os custos, Esse espetáculo bizarro
despertou a Europa para que seus líderes tomassem uma
atitude firme. Em 1414, na cidade alemã de Constança, o
santo imperador romano participou da reunião
eclesiástica mais impressionante já realizada na época,
para a qual até a Igreja Ortodoxa Grega enviou
representantes.12

Este concílio foi diferente dos demais pois contou com participação de
representantes leigos e foi organizado como uma convenção de nações e cada nação
tinha direito a um voto, isto demonstrou que a igreja estava cedendo ao novo
alinhamento nacional de poder. Em 1417, o concílio conseguiu fazer com que um
incumbente papal abdicasse e destituiu os outros dois, assim escolhendo um novo

12
SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo: Uma obra completa e atual sobre a trajetória da
igreja cristã desde as origens até o século XXI. Thomas Nelson, 2018, p. 363-364.

10
vigário de Cristo, Martinho V, aparentemente o cisma do ocidente estava "resolvido",
mas ele já havia deixado marcas profundas e anunciando novas transições que as
Reformas protestantes dariam maior forma, mas não sem antes terem bebido da
fonte dos pré-reformadores que viveram neste contexto caótico de Papas.

4. PRÉ-REFORMADORES
As crises não foram os únicos desastres que a igreja católica medieval teve de
enfrentar, e nem tampouco são os únicos fatores que apontam para as Reformas
protestantes, mas antes de Lutero levantaram-se alguns homens, aos quais a história
cita como pré-reformadores, que embasaram a cosmovisão de Lutero, Calvino,
Zuínglo e outros reformadores. Abordaremos alguns destes pré-reformadores ao
longo deste pequeno artigo, nesta seção destacamos: Pedro Valdo, John Wycliffe, Jan
Huss e Girolamo Savonarola.

PEDRO VALDO

O pré-reformador nasceu em um contexto de crise,na transição do século X


para o século XI, havia uma grande corrupção na sociedade e o relacionamento
distante entre o clero e o povo comum.
Pedro Valdo se levantava neste contexto como um pré-reformador que busca
voltar às origens apostólicas ao reconhecer a corrupção na igreja, também dele é
reconhecida a formação do grupo chamado "Os Valdenses", que tinham como
principal marca o zelo pelas Escrituras. Valdo nasceu em Lyon, no sudeste da França,
seus protestos soam como fortes tremores que serviriam de trombeta para os
terremotos que viriam a seguir: "As reformas protestantes". Muitos detalhes de
Pedro Valdo são desconhecidos, inclusive nem sequer podemos afirmar se "Pedro" é
seu nome verdadeiro, entretanto seu impacto para a Reforma é real, principalmente
pelo seu zelo em obedecer às Escrituras e sua vontade de tornar a Bíblia acessível ao
povo comum.

11
A Idade Média era movida por feiras onde havia intenso comércio, diálogo e
notícias da igreja e seus feitos. Pedro era um comerciante rico dessas feiras, mas algo
ocorreu em sua vida, ao ouvir a história de Santo Aleixo e como este homem
abandonou tudo, sendo um jovem rico, para viver entre os pobres e pregar o
evangelho. Um dia, Aleixo volta para sua casa, mas sua família não o reconhece
devido suas vestimentas e estado, exceto no leito de sua morte ao qual foi revelada
sua identidade. Aleixo morreu sorrindo pois dizia confiar no Deus que favorecia as
pessoas mais pobres. Abner Lara cita como esta canção tocou Valdo ao afirmar:
No momento em que se impressionou pela canção, Valdo
faz uma pergunta a um mestre em Teologia, sobre qual era
o melhor caminho para se chegar até Deus. O teólogo cita
um texto da Bíblia que era o áureo do monasticismo: “Se
queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá aos pobres,
e terás um tesouro no céu. Depois vem, e segue-me.” 13

A partir deste momento, Valdo decide viver como o homem da história, assim
distribuindo seus bens e focando suas forças e riquezas na propagação do evangelho.
Abner Lara descreve alguns feitos de Valdo quando afirma:
Para pôr em prática toda a sua sabedoria e a sua vontade
em querer saber mais sobre Jesus, Valdo agrupou dois
sacerdotes com ele, a fim de que eles o ensinassem a
respeito de Jesus Cristo. Valdo começa, então, a ensinar
pessoas comuns a serem praticantes de Cristo, através da
pobreza voluntária. Dando valor, não somente aos
monges, pregava a Palavra de Cristo a todos os cidadãos,
mostrando-lhes qual era a real vida de pobreza e a
disciplina que todo cristão deveria ter. 14

As pregações de Valdo nas ruas de Lyon, especialmente para os mais pobres,


trazem muitas conversões e lhe rendem muitos discípulos. O grupo primeiramente foi
conhecido como "Os Pobres de Lyon", mais tarde o grupo cresceu e se espalhou pela
França e outras partes da Europa, eles se tornaram conhecidos como os "valdenses".
Valdo sempre estudava as Escrituras, quanto mais ele lia, mais percebia quão
distante a Igreja Católica estava de sua prática. Inicialmente Pedro queria "reformar"
a Igreja católica, mas depois da excomunhão de ser excomungado e morrer vemos

13
SOUZA, Abner Lara. Os Valdenses: O início da Reforma, Faculdade Batista Pioneira, 2017, p. 8.
14
SOUZA, Abner Lara. Os Valdenses: O início da Reforma, Faculdade Batista Pioneira, 2017, p. 9.

12
como o movimento dos Valdenses aumentam e se solidificam ao ponto de se
tornarem um movimento único e sem capacidade para união ao catolicismo
medieval. Abner Lara lista várias corrupções que Pedro Valdo acusou a igreja
católica:
* Os papistas haviam deixado de lado a fé de Jesus;
* A igreja de Roma é a prostituta de Babilônia, e como a
figueira estéril amaldiçoada por Cristo;
* O papa não deve ser obedecido, pois ele não é a cabeça da
igreja;
* O monastério (os monges) é uma coisa abominável;
* Votos monásticos são o caráter e marca da besta;
* Purgatório, missas, dedicação de templos, adoração dos
santos e comemoração dos mortos, são apenas invenções
do diabo e fruto da avareza.15

Apesar da excomunhão e morte de Pedro Valdo, seu movimento cresceu ao


longo da Europa, entretanto a perseguição da igreja Católica Romana também
continuou mais severa e os Valdenses foram reduzidos a pequenas comunidades no
século XV, já a partir do século XVI a maioria dos valdenses se tornaram protestantes.

JOHN WYCLIFFE

A “estrela da manhã da Reforma”, o grande John Wycliffe é um pré-reformador


cujas ideias e intenções trouxeram as maiores inspirações para a reforma,
principalmente seu fervor em trazer as Escrituras para o idioma nativo do povo e seu
questionamento quanto ao poder do Papado e a questão estatal.
John sendo um teólogo inglês, viveu no século XIV, sendo importante devido
suas ideias que trariam um prévio abalo para a Igreja Católica. O contexto de crise foi
favorável para a promoção das ideias do pré-reformador, ele entendia que era
necessário um retorno à condição de pobreza dos tempos apostólicos e que a
autoridade da igreja deveria ficar no âmbito da esfera da religião e espiritualidade,
também defendeu a noção que o clero devia pagar tributo ao Rei, mas seu principal
clamor estava contra o Papa, ele afirmava categoricamente que a igreja podia viver

15
SOUZA, Abner Lara. Os Valdenses: O início da Reforma, Faculdade Batista Pioneira, 2017, p. 10.

13
sem um Papa, pois o Papa da igreja é Cristo. O pensamento de Wycliffe trazia à tona a
discussão do senhorio dos homens, conforme Bruce L. Shelley afirma:
A questão mais discutida na época era o domínio ou
senhoria dos homens. Todos os pensadores concordavam
que o senhorio vinha de Deus, mas a questão era: De que
maneira esse direito de governar era transmitido por Deus
aos governantes terrenos? Segundo uma opinião
amplamente aceita, o senhoria só era justo quando
derivada da Igreja Romana, tendo em vista que Deus
havia confiado ao Papa o domínio universal sobre todas as
pessoas e circunstâncias temporais; sendo assim qualquer
autoridade exercida por governantes pecadores era
ilegítima.16

As ideias de Wycliffe traziam uma resolução diferente da visão da Igreja


Católica para esta questão, influenciado por seu mestre Richard FitzRalph, ele
mergulha na discussão e afirma a responsabilidade de correção da igreja ao Estado.
Wycliffe também defendia a questão da graça para o clero governar, ou seja, o clero
não poderia governar estando em pecado mortal.
No ano 1377, o papa condenou o ensinamento de Wycliffe, entretanto os
questionamentos do pré-reformador de Oxford deixaram marcas profundas para a
utilização dos reformadores posteriores. Seu questionamento à falta de justificativa
do poder Papal, além disso ele também vislumbrava o caos decorrente do Cisma do
Ocidente, ganhando mais forças ainda em seu argumento contra o Papado, podemos
verificar isso na obra de Bruce L. Shelley, quando afirma:
Em um fluxo contínuo de acusações, Wycliffe demonstrou
como o papado havia se afastado da fé e da prática
simples de Cristo e seus discípulos. "Cristo é a verdade;",
escreveu, "o papa é o princípio da mentira. Cristo viveu na
pobreza; o papa trabalha em troca da magnificência
mundana. Cristo recusou o domínio temporal, o papa o
procura." 17

A ruptura com o papado não foi surpreendente para Wycliffe, afinal ele
mesmo reconhecia o Papa como anticristo, mas sua contribuição a reforma também
16
SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo: Uma obra completa e atual sobre a trajetória da
igreja cristã desde as origens até o século XXI. Thomas Nelson, 2018, p. 370
17
SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo: Uma obra completa e atual sobre a trajetória da
igreja cristã desde as origens até o século XXI. Thomas Nelson, 2018, p. 372

14
pode ser vista com seus esforços para a tradução da bíblia para o inglês, afinal em sua
época traduzir a bíblia para qualquer outra linguagem comum era uma heresia
plausível de morte. Os conceitos do "Sola Scriptura" e também a popularização das
Escrituras para leituras do povo comum tem grande ascensão devido os pensamentos
e esforços do pré-reformador, mesmo que a imprensa ainda não houvesse sido
inventada ele conseguiu tecer cópias da Bíblia em idioma nativo para seu povo.
Wycliffe e seus seguidores passaram a ser chamados de Lolardos e espalharam-se
pela Europa.
A consciência de Wycliffe cativa as Escrituras também o motivaram a ajudar os
"leigos" a estudarem o evangelho na língua nativa, ele também empreendeu esforços
evangelísticos para que os homens mais simples pudessem compreender a Palavra e
também viverem em caridade e mansidão. John Wycliffe morreu em 30 de dezembro
de 1384 devido a dois derrames, mas as chamas de sua luta árdua contra o Papado
ganhariam mais força sob as mãos dos reformadores.

JAN HUSS

Jan Huss nasceu em Husinec, por volta de 1369, aquele que seria considerado
o "ganso da reforma" nasce numa terra de gansos, na Boêmia (atual República
Tcheca). Ainda jovem ingressou na universidade de Praga como membro do coral,
primeiramente buscou a carreira religiosa com o objetivo de garantir a própria
sobrevivência. Jan Huss tinha origem humilde, mas obteve seu Bacharel em 1394 e o
título de mestre em 1396, depois começou a lecionar na faculdade de humanas e
mergulhar na causa da reforma.
O movimento lançado por Wycliffe continua vigorando, mas não somente na
Inglaterra, pois houve uma expansão devido ao casamento de Anne da Boêmia com o
Rei Ricardo II da Inglaterra. Assim o intercâmbio entre os alunos da Boêmia e
Inglaterra se intensificaram, tornando conhecidas as ideias de Wycliffe que logo
ganharam destaque pelas terras de Jan Huss, nisto concorda Paulo Ferreira quando
diz:

15
A partir de 1401, Huss toma conhecimento da obra de
Wycliffe, tornando-se num entusiástico defensor das
ideias do grande teólogo inglês. Ele exerceu importante
transição entre a era medieval e o período da Reforma
Luterana, antecipando-se a ela por um século inteiro.18

Jan Huss se torna um renomado pregador da Capela de Belém, e também


reitor. Jan Huss adota a visão de igreja de Wycliffe, que diz respeito à Igreja como um
grupo eleito que tinha em Cristo seu cabeça, e não o papa. A Capela traz a Huss uma
incrível oportunidade de espalhar as ideias de Wycliffe, além de argumentar contra
as indulgências, defendeu que tanto o pão quanto o vinho fossem servidos no
sacramento e pregou na língua comum ao invés do latim não traduzido da época.
A adesão de Huss aos ensinamentos de Wycliffe garantiu sua excomungação,
pois este não se retratou no Concílio de Constança sobre suas ideias. Durante oito
meses Huss permaneceu preso em Constança até finalmente ser morto, ou no caso,
queimado vivo em 6 de julho de 1415. Jan Huss fora despido de suas roupas,
adornado com um chapéu de burro pintado com demônios e rotulado de
"arqui-herege", sua resposta a isto foi orar por seus inimigos. Seguidamente o "ganso
da reforma" foi preso em um estaca enquanto as pilhas de livros aqueciam a fornalha
ardente, assim como Sadraque, Mesaque e Abednego foram jogados na fornalha de
Nabucodonosor, Huss fora lançado na fornalha da inquisição, mas até o fim jamais
negou suas convicções, enquanto as chamas ardiam o pré-reformador cantava em
certeza de sua redenção e convicto das ideias que defendeu graças a Escritura
sagrada. Jan Huss morreu com alegria.
Depois que Hus foi finalmente condenado à morte, ele proclamou: “Você pode
queimar o ganso, mas em cem anos surgirá um cisne cujo canto vocês não poderão
silenciar.” Exatamente 102 anos depois, um monge vigoroso pregou noventa e cinco
teses contra a Igreja Católica Romana. O ganso anuncia o cisne, este que não
conseguiu ser silenciado pois as asas da liberdade já estavam dando suas primeiras
batidas.

18
FERREIRA, Paulo. A Reforma em quatro tempos: Desdobramentos na Europa e no Brasil.
CPAD, 2017, p.21.

16
O legado de Jan Huss para a reforma não é nenhuma novidade teológica, ou
nenhuma nova análise que acuse o papado, mas antes uma vigorosa defesa das
ideias de Wycliffe que ecoaram pela Reforma, mas seu exemplo de mártir instigou a
Boêmia e os reformadores contra a tirania da igreja católica medieval.

GIROLAMO SAVONAROLA

Savonarola era um jovem motivado a aprender, oriundo de uma família rica


em Ferrara, Itália, em 1452, onde se inspirou a estudar medicina. Aos 23 anos
ingressou na ordem dos Dominicanos, desiludido com a vaidade da cultura italiana
que começava a beber do humanismo e do Renascimento. Como um jovem frade, ele
documentou os escritos de Tomás de Aquino e as Escrituras.
Savonarola chegou em Florença em 1490, ele já era famoso e reconhecido por
sua pregação, linguagem simples e grande capacidade para anunciar a graça
salvadora de Cristo com fervor bíblico, além de tecer críticas às práticas imorais de
líderes políticos e religiosos. Podemos pegar um pequeno trecho do Tratatto circa el
reggimento e governo dela città di Firenze (Tratado sobre o regime e o governo da
cidade de Florença), ao qual afirma:
Durante muitos anos, pela vontade de Deus, preguei nesta
cidade, atendo-me a quatro temas: esforcei-me com toda
minha inteligência para provar que a fé é verdadeira;
para demonstrar que a simplicidade da vida cristã é suma
sabedoria; para denunciar as coisas futuras, das quais
algumas vieram e outras virão certamente; e, último,
preguei sobre o governo desta cidade. (Introdução).19

O Tratado foi publicado poucas semanas antes de sua morte, vemos que seu
esforço por uma vida santa que ia de encontro aos costumes pagãos e imorais
daquela época teve resultados, apesar de após sua morte o movimento não ter tido
grande expansão. Seus principais ataques se dirigiram ao Papa Alexandre VI, que o

19
SALATINI, Rafael. Girolamo Savonarola e as formas de governo. Trans/Form/Ação [online].
2015, v. 38, n. 1 [Acessado 9 Novembro 2022] , pp. 43-56. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/S0101-31732015000100004>. Epub Jan-Apr 2015. ISSN 1980-539X.
https://doi.org/10.1590/S0101-31732015000100004.

17
advertiu sobre sua pregação mas acabou ignorado. Paulo Ferreira destaca a ousadia
de Savonarola que não media consequências:
Prosseguindo com suas pregações contra os maus
costumes, Savonarola tornou-se alvo de uma revolta
popular comandada por bando de jovens. A família Médici
foi reconduzida ao poder, Savonarola foi preso e
enforcado. 20

As pregações de Savonarola e suas denúncias da vida imoral dos poderosos lhe


renderam a morte, os próprio Médicis foram derrubados por Savonarola quando
tiveram suas vidas devassas expostas, por algum tempo o precursor italiano da
Reforma conseguiu centralizar uma liderança e instalar uma república cristã e
religiosa em Florença, mas como vimos isto não durou muito e Savonarola acabou
sendo morto. Embora o movimento de reforma de Savonarola em Florença não tenha
continuado muito depois de sua morte, sua pregação apaixonada e suas reformas
zelosas expuseram a corrupção da igreja como uma luz fraca, mas brilhante dentro de
uma caverna escura. A centelha de Savonarola era o tipo de centelha com a qual
Lutero, apenas duas décadas depois, acenderia seu próprio fogo para a Reforma.

5. AS “REFORMAS PROTESTANTES” E SEUS PRINCIPAIS PONTOS


O movimento dos pré-reformadores já demonstrava o destino da igreja
católica medieval, vimos que as crises e efervescentes corrupções dentro do clero
levantaram questionamentos ao poder do Papa dentro da esfera política,
principalmente a partir de John Wycliffe, assim propiciando um excelente cenário
para Martinho Lutero, Ulrico Zuínglio, João Calvino e outros reformadores
protestarem contra o sistema católico de sua época. Devemos compreender que a
“gota d'água" para explosão da reforma foi o abuso do sistema de indulgências
compreendido pela Igreja Católica, mas também devemos salientar que a
sistematização das ideias protestantes, principalmente com Lutero, foi feita de
maneira progressiva a partir do intenso estudo das Escrituras em suas línguas
originais.

20
FERREIRA, Paulo. A Reforma em quatro tempos: Desdobramentos na Europa e no Brasil.
CPAD, 2017, p. 23.

18
As “reformas”, assim chamadas, correspondem ao conjunto de protestos que
ocorreram na Europa ao longo do século XV e XVI, ao qual em diversos países
podemos perceber uma insatisfação com a corrupção do clero católico, com o
governo do papa e também com a deturpação das Escrituras que traziam diversas
incertezas ao povo comum, principalmente na doutrina da salvação. Apesar das
“reformas” terem pontos divergentes entre seus reformadores e sua interpretação
bíblica, elas tinham uma sólida base de defesa sobre a justificação pela fé, e somente
por ela, e buscaram responder algumas perguntas, ao qual a Igreja católica já havia
respondido, mas de maneira diferente a sua rival, nisto concorda Ernst Troeltsch,
citado por Bruce L. Shelley, quando afirma:
O que é o protestantismo? A descrição de Ernst Troeltsch
serve de padrão para a resposta. No início do século XX,
ele chamou o protestantismo de “uma modificação do
catolicismo” na qual os problemas católicos permanecem,
mas soluções diferentes são oferecidas. As quatro
perguntas que o protestantismo respondeu de uma nova
maneira foram: (1) Como a pessoa é salva? (2) Onde reside
a autoridade religiosa? (3) O que é a Igreja? e (4) Qual é a
essência da vida cristã? 21

Baseado nessas quatro perguntas podemos guiar os pontos comuns das


Reformas, assim traçando os paralelos entre o catolicismo e o protestantismo. Para
compreendermos melhor esses paralelos devemos retornar ao tópico da questão das
crises envolvendo o período medieval e a questão da justificação católica, além das
doutrinas decorrentes para resolução do catolicismo romano medieval para as
questões envolvendo a salvação do povo comum.
Aportamos em uma ilha intermediária rumo a Reforma, para respondermos a
primeira pergunta que traz o questionamento de como a pessoa é salva, devemos
recordar como o catolicismo via a salvação e respondia a isto. Primeiramente, temos
que ter em mente que o contexto de crise, principalmente oriundo da Peste Negra,
havia deixado marcas fatais na Europa. Muitos consideravam as crises como uma

21
SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo: Uma obra completa e atual sobre a trajetória da
igreja cristã desde as origens até o século XXI. Thomas Nelson, 2018, p. 386.

19
punição de Deus para os pecados, isto trazia pânico, comportamentos bizarros,
projeção de culpa. Carter Lindberg concorda conosco ao afirmar:
A peste era percebida, na concepção popular, como uma
punição de Deus pelos pecados da humanidade.
Movimentos de flagelação se engajavam em penitências
sangrentas em prol de pecados pessoais e coletivos, tidos
como causadores da peste.22

A peste também trazia um severo teste de fé, pois a morte jazia à porta com a
naturalidade e frequência que tomamos pão com café nos dias atuais. Essa crise
também envolveu o conceito católico medieval de salvação e as doutrinas afirmada
por Gregório Magno, no século VI, podemos elencar algumas características, aos
quais são23:
1) A queda de Adão afetou todos os homens, enfraquecendo
sua liberdade;
2) O homem tocado pela graça pode cooperar com ela e
obter mérito para si, isto advém das obras, que é o produto
da graça divina com a vontade humana;
3) No batismo, Deus concede graça perdoadora livremente
sem qualquer mérito, mas para os pecados após o batismo é
necessário fazer expiação pela penitência;
4) A penitência envolve arrependimento, confissão e obras
meritórias;
5) As obras meritórias são atos que envolvem sacrifícios ou
sofrimento, tais como caridade, prática ascéticas (de
mortificação) e orações em todas as horas do dia;
6) Quanto maior o pecado, mais é preciso compensá-los.
Somente após a morte é a que as pessoas descobriram se
haviam feito o suficiente para expiá-lo;
7) A intercessão dos Santos auxiliam como advogados e
rogam a Deus pelo povo, auxiliando na devoção e no
alcance da justiça em vida;
8) As relíquias sagradas eram outro auxílio a devoção, e tais
itens tinham poderes místicos de proteção e produziam
justiça;
9) o purgatório ainda era outra alternativa caso a
intercessão dos santos e as relíquias não fossem suficientes
para produzir justiça nessa vida;
10) A Eucaristia tem grande efeito na justiça, devido seu
caráter sacrificial onde o sacerdote oferece-a pelos pecados

22
LINDBERG, Carter. História da Reforma: Um dos acontecimentos mais importantes da história do
cristianismo em uma narrativa clara e envolvente. Thomas Nelson, 2017.
23
SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo: Uma obra completa e atual sobre a trajetória da
igreja cristã desde as origens até o século XXI. Thomas Nelson, 2018, p. 283-285.

20
dos homens que participam dela. Assim, a Eucaristia tem o
mesmo efeito da penitência, podendo beneficiar mortos e
vivos, no caso dos mortos somente aqueles que estão no
purgatório abreviando sua presença ali.

Assim, podemos ver que a doutrina católica tinha grande base nas obras,
devido a justiça após a graça decorrer de um acúmulo de méritos para expiação dos
pecados em vida, agora imaginando essa doutrina em um tempo cuja a morte estava
acontecendo abundantemente e rapidamente, então poderemos ver o desespero da
população em busca de sua salvação. A incerteza do acúmulo de justiça era algo real,
o purgatório se consolida, pois sua doutrina já era presente desde a antiguidade mas
foram as doutrinas relativas a fé são formuladas com maior precisão somente após os
concílios de Florença (1438-1445) e Trento (1545-1563), progressivamente como uma
alternativa viável, juntamente com a venda de indulgências meritórias que até
mesmo garantiam a purificação no purgatório antes da morte.
Devido às mortes decorrentes da peste e outras crises, o catolicismo medieval
se torna um culto de vivos para os mortos, onde o povo comum tenta angariar para
seus parentes obras meritórias para cumprir a purificação espiritual no purgatório.
Carter Lindberg afirma sobre esta adaptação da igreja católica ao expor:
"O catolicismo do fim da Idade Média era, em grande
medida, um culto dos vivos em favor dos mortos
(Galpern, 1974, p. 149)". Essa mudança de obras
tradicionais de misericórdia para a missa aos mortos
indicava não apenas habilidade da Igreja de se adaptar a
uma nova situação, mas também a influência crescente
de uma mentalidade de mercado com sua orientação ao
cálculo de contas, nesse caso "O livro contábil do além",
como o título da obra de Chiffoleau (1980) sugere. A
missa passou a ser uma preparação essencial para a
jornada entre a morte e o céu, estabelecendo ritualmente
ligações poderosas entre este mundo e o próximo - algo
que seria explorado pelas doutrinas do purgatório e das
indulgências.24

A evolução da doutrina do purgatório complementa o desenvolvimento da


missa pelos mortos, assim trazendo um "alívio" às massas que poderiam interceder
24
LINDBERG, Carter. História da Reforma: Um dos acontecimentos mais importantes da história do
cristianismo em uma narrativa clara e envolvente. Thomas Nelson, 2017.

21
por seus parentes que não tiverem tempo de acumular justiça para o céu. Entretanto,
devemos salientar que o purgatório ainda era terrível, suas descrições eram de
terrores sufocantes e chamas purificadores que ardem mais que qualquer fogo
terreno.
A evolução do conceito de purgatório e missa também auxilia diretamente na
produção de indulgências e sua compra para angariar mérito, ao qual fora combatido
pelos pré-reformadores e após isso por Lutero e as lideranças protestantes que se
levantaram.

REFORMADOR REGIÃO MOVIMENTO

Martinho Lutero Alemanha Luteranismo

Ulrico Zuínglio Zurique (Suíça) Reformado

João Calvino Genebra (Suíça) Reformado

Menno Simons Zurique (Suíça) Anabatistas

Henrique VIII Inglaterra Anglicanismo


FIGURA 1 - Tabela contendo algumas lideranças protestantes, região e o movimento derivado de
suas lideranças. Fonte: Autoral (2022).

As lideranças protestantes urgiram seus gritos de protesto com os cincos solas,


onde, baseados nas Escrituras e sua autoridade, questionaram o conceito de
justificação agostiniano adaptado por Gregório Magno, assim protestando contra a
base meritória do catolicismo medieval que trazia justificação ao homem e também
dava a igreja católica romana um poder sobre a salvação dos fiéis, utilizando disto
para atingir seus próprios objetivos religiosos, políticos e econômicos.
Lutero, devido sua experiência pessoal com as Escrituras, meditando em
Romanos deparou-se com as palavras do apóstolo Paulo, que diziam: “Porque no
evangelho é revelada a justiça de Deus, uma justiça que do princípio ao fim é pela fé,
como está: ‘O justo viverá pela fé” (1:17). Ali estava a chave de segurança do monge

22
que tanto se questionava sobre sua salvação, ali estava o alívio da alma do homem
que tantas penitências faziam mas em nada sentia a justiça sendo acrescentada em
sua vida, finalmente Lutero havia redescoberto a pérola das Escrituras, a justificação
somente pela fé. Nathan Busenitz aborda que tal experiência também ilustra o
sentimento protestante e a experiência que eles tiveram com a Escritura ao afirmar:
O testemunho de Lutero ilustra de forma vívida o fato de
que a Reforma foi profundamente pessoal não somente
para ele, mas também para seus companheiros
protestantes. Não se tratava de um debate esotérico a
respeito de reflexões filosóficas irrelevantes, mas sim, do
meio pelo qual os pecadores poderiam ser reconciliados
com Deus pela graça, através da fé em Cristo. A essência
do próprio evangelho estava em jogo (veja Gl 2.5). Tendo
sido pessoalmente transformados pela verdade do
evangelho, os reformadores assumiram a posição
corajosa de defender a boa-nova e de anunciá-la a
outros.25

A experiência a partir da valorização das Escrituras como autoridade de fé e


prática era o fundamento da Reforma. Embora os reformadores buscassem
confirmação auxiliar nos textos dos pais da igreja, era a Bíblia que servia de
fundamento definitivo para suas afirmações teológicas. Assim, a base da justificação
protestante estava amplamente ancorada na Palavra de Deus, a Bíblia é o ponto de
partida da reforma na justificação medieval.
Os modelos católicos e protestantes de justificação eram bem diferentes em
seus postulados. Tenhamos em mente que a mudança do paradigma da salvação, ao
ser somente pela fé, traz implicações enormes ao poder da igreja sobre o destino da
alma do homem, isto é salientado por Bruce L. Shelley quando afirma:
Lutero agora via com clareza que o homem é salvo apenas
pela fé no mérito do sacrifício de Cristo, ou seja, só a cruz
pode remover o pecado do homem e salvá-lo das garras do
diabo. Foi assim que Lutero chegou à sua famosa doutrina
da justificação somente pela fé e percebeu como ela
conflitava nitidamente com a doutrina da Igreja Romana
de justificação que incluía fé e boas obras - a saber, a
demonstração da fé por atos virtuosos, a aceitação do
dogma da Igreja e a participação em seus rituais. [...] As
25
BUSENITZ, Nathan. Muito Antes de Lutero: Em busca da essência do evangelho desde Cristo
até a Reforma. Editora Cultura Cristã, 2019.

23
implicações da descoberta de Lutero foram enormes. Se a
salvação vem somente por meio da fé em Cristo, a
intercessão dos sacerdotes é supérflua; além disso, a fé é
formada e alimentada pela Palavra de Deus - escrita e
pregada - e não requer monges, missas nem orações aos
santos. A mediação da igreja de Roma, portanto,
recolhe-se à sua insignificância. 26

A doutrina da justificação da fé de Lutero tem ampla base em Agostinho, mas


apesar disso tem grandes diferenças devido seu modelo de justificação somente pela
fé e a obra da Graça de Deus que garante ao pecador salvação, além da diferenciação
do conceito de justificação e santificação. Segue tabela com os devidos modelos:

MODELO CATÓLICO (AGOSTINHO) MODELO PROTESTANTE (LUTERO)

Os seguidores fiéis tornam-se justos, OS cristãos são declarados justos e,


primeiramente pela infusão de graça somente então, podem progredir e
no batismo, e ao longo da se tornarem mais santos na prática.
peregrinação espiritual

A justiça é adquirida em um A justiça é recebida em um ato


processo

A justiça é transmitida A justiça é imputada

A justiça é um estado interno, A justiça é externa ao Cristão


infundido

Justificação e santificação são um Justificação e Santificação são


mesmo conceito conceitos diferentes
FIGURA 2 - Comparação entre o conceito de justificação católico e protestante.
Fonte: Autoral (2022), adaptado da obra de Bruce L. Shelly27

26
SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo: Uma obra completa e atual sobre a trajetória da
igreja cristã desde as origens até o século XXI. Thomas Nelson, 2018, p. 388-389.
27
SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo: Uma obra completa e atual sobre a trajetória da
igreja cristã desde as origens até o século XXI. Thomas Nelson, 2018, p. 392

24
Os três pilares da justificação protestante, segundo Alister Mcgrath citado por
Nathan Busenitz, são28:
1) Justificação Forense;
2) Distinção entre justificação e regeneração;
3) A justiça imputada de Cristo;
Esses pilares trazem à tona a mola propulsora da reforma e sua defesa da
salvação como obra total de Deus. Primeiramente, os reformadores entendiam que a
Justificação era de caráter forense e não formativa, ou seja, a justificação era um
declaração divina de justiça em vez de um processo extenso ao qual se acumula
justiça em vida. Basicamente o conceito de justificação forense está diretamente
ligado a um juiz que expede perdão a um réu, ou seja, é uma justiça recebida em um
ato, uma declaração de perdão.
O segundo pilar está na distinção entre justificação e regeneração, enquanto o
catolicismo unia ambos os conceitos, os protestantes diferenciavam o ato de
justificação como a declaração de justiça sobre pecadores, pois estes são revestido da
justiça de Cristo, portanto Cristo justifica-os em ato imediato ao tomar suas posições
na balança do juízo. A doutrina da regeneração está ligada a da santificação, pois na
regeneração ocorre o novo nascimento do homem que o capacita a progredir em
santificação, ou seja, a regeneração é o passo inicial que transforma o pecador para
que este possa viver em obras de santidade na prática. No catolicismo essa distinção
havia sido perdida e portanto pensavam que sua justificação, em parte, dependia de
sua santidade pessoal no acúmulo de méritos.
O terceiro pilar está embasado na justiça imputada de Cristo sobre o pecador,
diferente do conceito católico de justiça infusa. No catolicismo o batismo exercido
pelo sacerdote infunde graça perdoadora, mas após isso homem deve acumular
justiça através das obras meritórias, orações, eucaristia, penitências, indulgências e
outros, também há a possibilidade de perda de salvação já que pode ocorrer o não
acúmulo de justiça durante a vida. O conceito protestante vai contra essa capacidade
28
BUSENITZ, Nathan. Muito Antes de Lutero: Em busca da essência do evangelho desde Cristo
até a Reforma. Editora Cultura Cristã, 2019.

25
de justiça infundida por Cristo, assim as obras não trazem justificação mas são
consequência da justiça imputada por Cristo ao pecador, pois a justiça perfeita de
Cristo é atribuída ao pecador como um ato externo, neste sentido a expressão
luterana resume o terceiro pilar da justificação pela fé: “Simul justus et Peccator”, ou
seja, do latim “Simultaneamente justo e pecador”. Deste modo os cristão são salvos
somente pela graça de Deus, as obras não tem papel justificador mas antes são
consequências da santificação progressiva e evidência da obra de Cristo no pecador.
A doutrina da justificação pela fé também produz uma diferenciação entre a
Lei e o Evangelho, onde vemos que ambas prometem bênçãos, mas o Evangelho pela
Graça de Cristo traz uma comunhão superior a Lei, pois esta só pode apontar o
pecado mas não traz redenção, diferente do Evangelho de Cristo que satisfaz todas as
condições para justificação do pecador. A definição da teologia da cruz traz uma nova
lente para se ver o mundo, pois revela a esperança através de Cristo e a depravação
humana do estado pecador. Lutero critica a teologia católica ao fazer o homem poder
progredir em direção a Deus por seus méritos, ainda que auxiliado por um graça
infusa a partir da benção da Igreja no batismo. Assim, Lutero transforma sua visão de
autoridade religiosa e igreja, pois sua defesa do Sola Scriptura defende que somente
a bíblia é autoridade máxima e maior para instituição da fé e prática, ao mesmo
tempo seu conceito de igreja muda de uma hierarquia sagrada chefiada pelo Papa
para a visão primitiva de uma comunidade de cristãos em que todos são sacerdotes
chamados a oferecer sacrifícios espirituais, isso desencadeia num princípio de
vocação ao qual Bruce L. Shelley reverbera:
Desse modo, às portas de ser excomungado da Igreja
Romana, Lutero removeu a necessidade do monasticismo,
salientado que a essência da vida cristã está em servir ao
chamado de Deus, seja ele secular ou eclesiástico. Todas as
vocações são proveitosas, afirmou ele, são sagradas aos
olhos de Deus.29

29
SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo: Uma obra completa e atual sobre a trajetória da
igreja cristã desde as origens até o século XXI. Thomas Nelson, 2018, p. 395

26
Portanto o conceito de sacerdócio universal de todos os crentes é
desenvolvido pela Reforma, amplamente ancorado no ensinamento do apóstolo
Pedro em suas cartas, trazendo novamente a ligação entre religião e povo tão
distanciada pela hierarquia enfática do clero romano.
O conceito de Lutero e dos reformadores acerca dos sacramentos também
estava cativo às Esculturas, como símbolos visíveis da graça, elas somente poderiam
ser instituídas por Cristo, logo o número de sacramentos é reduzido a dois - os
católicos defendem sete sacramentos - aos quais são o Batismo e a Santa Ceia. Isto
implica em mudanças dentro da essência da vida cristã, pois retira grande parte do
poder do clero sobre os sacramentos, ao mesmo tempo demonstra que a essência da
vida cristã não está na hierarquia sagrada do clero, mas antes no serviço a Deus. A
vida cristã secular é uma vocação que glorifica ao Senhor, da mesma maneira que o
serviço eclesiástico.
As ideias dos reformadores trazem uma nova conjuntura para as perguntas
que a igreja tinha de enfrentar, entretanto grande parte do sucesso e popularização
destas idéias está no grande foco da Reforma em trazer o sagrado ao popular, em
trazer o divino ao ordinário, isto combinado ao contexto histórico, principalmente
com adesão da prensa móvel, que traz uma inovação gigantesca na produção de
acervos literários, contribuem diretamente para a adesão da ideias protestantes em
tantas nações e localidades diferentes.

6. A REFORMA E O PENTECOSTALISMO
O Pentecostalismo é um movimento recente dentro do meio evangélico,
entretanto suas raízes e doutrinas têm ligação direta aos movimentos protestantes,
principalmente aqueles considerados mais radicais como o de Menno Simons.
Conhecer as raízes pentecostais na Reforma é compreender o valor da doutrina
pentecostal e também as questões que esta levantou enquanto um movimento
popular e de retorno a igreja apóstolica.
As raízes do pentecostalismo remontam para o século XVII, quando o
luteranismo pareceu se tornar um movimento cuja ortodoxia estava engessada e a

27
ortopraxia estava morta. Havia um grande apelo intelectual no luteranismo quanto
aos dogmas mas pouco foco na transformação espiritual da vida dos fiéis. Em
resposta ao engessamento dogmático do luteranismo surge o Pietismo na Alemanha,
outros movimentos como a Igreja Moraviana, sob liderança do Conde Zinzendorf e o
próprio Puritanismo Inglês são reações que buscavam uma ênfase no crescimento
espiritual, além do Metodismo com John Wesley e sua teologia sobre a Doutrina da
Perfeição Cristã.
O pietismo é um movimento cujo foco estava no novo nascimento, ou seja, na
vida cristã prática em contraposição com a ortodoxia morta do Luteranismo
consolidado, havia um foco muito grande na teologia e filosofia mas isto não
redundou em uma vida prática e espiritual para os fiéis, então eles pregavam uma
vida prática de devoção em maior fervor e espiritualidade, não somente na prática de
liturgias mortas sem qualquer transformação espiritual. O grande líder do Pietismo
na Alemanha foi Philipp Jakob Spener (1635-1705).
Hermisten Maia cita que a preocupação pietista poderia ser vista da seguinte
forma:
Analisando a Pia Desideria de Spener - obra que marca o
"nascimento do pietismo" - podemos destacar quatro
característica do movimento, a saber:
1. Experiência religiosa: a experiência religiosa assume
um caráter preponderante na vida do crente.
2. Biblicismo: seus padrões doutrinários emanam da
Bíblia, ainda que o Catecismo (Catecismo Menor de
Lutero, 1529) deva ser ensinado às crianças e aos adultos.
3. Perfeccionismo: Preocupação com o desenvolvimento
espiritual, bem como com a proclamação do Evangelho e
com a prática social de socorro aos necessitados.
4. Reforma na igreja: desejo de reformar a igreja,
combatendo a sua letargia espiritual, bem como as suas
práticas consideradas mundanas. 30

O Pietismo, com sua ênfase na experiência, trazia um caráter mais subjetivo à


religião e estava melhor harmonizado com o espírito moderno que prega uma
independência intelectual e espiritual.

30
COSTA, Hermisten Maia Pereira. Pietismo: Um desafio à piedade e à teologia. Fides Reformata,
1999.

28
O Pentecostalismo consegue se consolidar como movimento na América do
Norte, principalmente com as influências de John Wesley, William Ames, Conde
Zinzendorf aos quais impulsionam as raízes do Movimento da Santidade, no colégio
Bíblico Bethel de Topeka, Kansas, e no avivamento da Rua Azusa. O Pentecostalismo
ao beber das raízes protestantes, também acaba combatendo o liberalismo teológico
emergente, principalmente devido à doutrina Wesleyana de santificação e segunda
obra da graça posterior à conversão. Paulo Ferreira concorda com isto quando afirma:
Recuando um pouco no tempo, encontraremos John
Wesley em 1760 proclamando a segunda obra da graça,
posterior à conversão, que podia livrar o crente de sua
natureza imperfeita. Benjamin Hardin, discípulo de
Wesley, pregava que a segunda obra da graça dava início
a santificação e que a terceira trazia o batismo do amor
ardente, que era o batismo no Espírito Santo. 31

Assim, através do foco na santificação e na bênção do Batismo no Espírito


Santo, além da questão da autoridade da Escritura e sua defesa como infalível,
inspirada e inerrante, os pentecostais surgem no cenário global como um escudo
contra o liberalismo teológico baseado nos escritos de Immanuel Kant (1724-1804) e
na visão religiosa de Friedrich Schleiermacher (1768-1834), ancorado nos
pressupostos iluministas. O foco pentecostal em milagres e dons divinos também
trazia novamente um aspecto sobrenatural às análises bíblicas e uma busca intensa
por revestimento a partir da doutrina do Batismo no Espírito Santo. As raízes mais
radicais da reforma tomam forma no pentecostalismo, este que se populariza nas
Américas como um fenômeno religioso e social estupendo, mas nem tudo são
“flores”, dentro do próprio pentecostalismo surgem novos movimentos, também
chamadas “ondas”, a partir da terceira onda vemos o alavancar do
neopentecostalismo cujo foco na prosperidade, exorcismos, curas e milagres
chefiados por um sacerdote, que é como o cabeça do movimento, trazem novas
deformações as raízes pentecostais e promovem um senso de “reforma” dentro do
próprio pentecostalismo.

31
FERREIRA, Paulo. A Reforma em quatro tempos: Desdobramentos na Europa e no Brasil.
CPAD, 2017, p. 65.

29
7. CONCLUSÃO
A Reforma promove grandes mudanças no mundo, devido aos contextos de
crises diversos vemos que ao longo da história, de maneira progressiva, há um
questionamento da instituição Romana e sua teologia de dominação. Vimos a batalha
dos pré-reformadores e também as consequências da doutrina protestante a partir
de Lutero e dos demais líderes reformados, porém devemos sempre trazer à
memória a importância atual da Reforma e nosso contexto atual.
As heranças da Reforma são diversas, mas quero salientar a questão da
popularização das Escrituras para o idioma nativo, além da utilização da linguagem
coloquial e nativa nos cultos para que assim a mensagem do Evangelho fosse
compreendida pelos leigos. A valorização das línguas originais, em detrimento do
Latim, das Escrituras também se deve em grande parte aos movimentos dos
reformadores. A questão do sacerdócio universal de todos os crentes também traz
um novo sentido a essência da vida cristã e também do conceito de igreja, que
redundaria até mesmo em movimentos que trariam a separação entre a Igreja e o
Estado e suas devidas delimitações para atuar em cada esfera que lhe é propícia,
além da questão da vocação tão tratada por Lutero, romper com o monasticismo
católico e declarar que todos podem glorificar a Deus, seja no serviço secular ou
eclesiástico, quebra o conceito de hierarquia divina e eclesiástica chefiada pelo Papa,
assim permitindo que a religião e o trabalho se interliguem novamente. A educação
popular também é clamor da reforma, para Lutero os fiéis deveriam exercer suas
vocações (profissões) com maior excelência possível, para tanto é necessário um
treinamento em diversas ciências e artes, ou seja, a importância de assegurar a
educação para sua população poder exercer qualificadamente suas profissões
também é uma das heranças mais significativas da Reforma Protestante.
Aportamos nosso navio nesta ilha dos reformadores, assim vivenciamos que a
Reforma foi diversa, teve seus pontos comuns e diferenças, mas como um
movimento que protestou contra a instituição central de sua época, a Igreja Católica

30
Romana Medieval, redundou em movimentos que impactam e sobrevivem até os
dias atuais, seja com as históricas igrejas Luteranas, Presbiterianas, Anglicanas dentre
outros, ou mesmo movimentos mais radicais que trazem influências para as igrejas
Batistas e também para o próprio Pentecostalismo. Portanto, oriundo dessas
reformas, devemos sempre ter em mente o papel central de Deus e sua revelação, as
Escrituras, como uma fonte de estudo mas também de vivência diária. Ortodoxia sem
uma prática espiritual saudável é apenas um dogmatismo morto. Isto nos alerta da
importância do sacerdote em saber equilibrar a ortodoxia e a ortopraxia, alinhar o
estudo da teologia com a prática da teologia em obras que apontam a Cristo é um
dos maiores legados das “Reformas Protestantes”, que possamos sempre nos lembrar
disto e progredir em Graça e Conhecimento.

31
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. COSTA, Hermisten Maia Pereira. Pietismo: Um desafio à piedade e à teologia.
Fides Reformata, 1999.

2. FERREIRA, Paulo. A Reforma em quatro tempos: Desdobramentos na Europa e


no Brasil. CPAD, , 2017.

3. LINDBERG, Carter. História da Reforma: Um dos acontecimentos mais


importantes da história do cristianismo em uma narrativa clara e envolvente.
Thomas Nelson, 2017.

4. SALATINI, Rafael. Girolamo Savonarola e as formas de governo.


Trans/Form/Ação [online]. 2015, v. 38, n. 1 [Acessado 9 Novembro 2022] , pp.
43-56. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0101-31732015000100004>.
Epub Jan-Apr 2015. ISSN 1980-539X.
https://doi.org/10.1590/S0101-31732015000100004.

5. SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo: Uma obra completa e atual sobre a


trajetória da igreja cristã desde as origens até o século XXI. Thomas Nelson,
2018.

6. SOUZA, Abner Lara. Os Valdenses: O início da Reforma, Faculdade Batista


Pioneira, 2017.

32

Você também pode gostar