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HISTÓRIA

MODERNA

Caroline Silveira Bauer


Idade Moderna
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Explicar o processo de transição entre a Idade Média e a Idade


Moderna.
 Relacionar o surgimento dos burgos com a formação de uma socie-
dade moderna.
 Analisar a substituição do teocentrismo medieval para o antropo-
centrismo moderno.

Introdução
A Idade Moderna foi um período marcado por transições, rupturas e
continuidades em relação à sociedade medieval. Houve uma série de
mudanças nos âmbitos cultural, econômico, político e social, com a
coexistência do “novo” e do “velho”, que fizeram com que as sociedades
da Europa Ocidental desenvolvessem uma autoconsciência de viver
em um “novo tempo”. Nesse sentido, é muito importante estudar que
transformações foram essas ocorridas entre o século XIV e o século XVIII
e de que maneira elas impactaram na construção de uma nova visão de
mundo dos europeus na chamada “modernidade”.
Neste capítulo, você vai estudar de que forma se dá a transição entre
a Idade Média e a Idade Moderna, compreendendo que essa abordagem
dá espaço para rupturas e continuidades entre um período e outro. Além
disso, vai conhecer a forma pela qual os burgos e, mais especificamente,
o “renascimento” comercial e urbano, contribuíram para a conformação
da sociedade moderna e, por fim, vai ver o surgimento de preceitos laicos
na ascensão do antropocentrismo.
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A transição da Idade Média


para a Idade Moderna
Na divisão quadripartite da história, convencionou-se chamar Idade Moderna,
Modernidade ou, ainda, Tempos Modernos o período que corresponde à
formação do Estado Nacional, juntamente a uma série de transformações cul-
turais, econômicas e sociais (absolutismo, grandes navegações, mercantilismo,
renascimento, reforma religiosa), encerrando-se com a Revolução Francesa, em
1789. Contudo, os historiadores estão cientes das dificuldades de circunscrição
de movimentos como esses em periodizações em função das continuidades e
permanências para além das rupturas mais facilmente identificáveis.
Um dos marcos cronológicos normalmente escolhidos para assinalar o fim
da Idade Média é a tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453, principal-
mente pela pretendida relação com outro acontecimento “fundador” da época
moderna, a chegada de Cristóvão Colombo à América, em 12 de outubro de
1492, mas a “modernidade” é dificilmente delimitada por acontecimentos ou
datas específicas. “Não existe um ponto que possamos dizer que tenha marcado
a transformação do mundo medieval no mundo moderno” (RUNCIMAN,
2002, p. 11). Além disso, é importante lembrar que as transformações que se
iniciaram na sociedade europeia a partir dos séculos XV e XVI já estavam
delineadas no período precedente. Simultaneamente, as profundas mudanças
referidas não significaram a eliminação instantânea e completa da sociedade
feudal em seus aspectos culturais, econômicos, políticos, religiosos e sociais,
de modo que muitas características medievais coexistiram com as modernas.
Podemos afirmar que entre os séculos XV e XVIII ocorreram transfor-
mações significativas na sociedade europeia e suficientes para que homens e
mulheres percebessem que estavam vivendo em uma “nova época”: as grandes
navegações e as conquistas territoriais, o advento de uma nova mentalidade
burguesa e racionalista, a constituição dos estados nacionais com a imposição
de um novo poder político, centrado no rei soberano e absoluto, a ruptura com
a unidade da Igreja Católica e a expansão do capitalismo.
Para compreender a transição da sociedade medieval para a Idade Moderna,
é preciso refletir sobre a crise pela qual passava o sistema feudal em meados
dos séculos XIV e XV e que, de acordo com Franco Júnior (1997, p. 53):
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Foi uma crise de grandes proporções, que se projetou nos diversos âmbitos da
realidade, envolvendo aspectos econômicos, demográficos, sociais, políticos
e clericais: aspectos econômicos derivados da exploração agrícola predatória
e extensiva, que fora típica do feudalismo e que inviabilizou o aumento da
produção; aspectos demográficos oriundos das grandes tragédias, da fome e
da peste; aspectos sociais advindos da ruptura da rigidez hierárquica anterior,
seja pela crise demográfica, seja pelo empobrecimento das camadas superiores
a partir da crise econômica do período ou pela ruptura do próprio conceito
de ordem; aspectos políticos resultantes da retomada ou reconstituição dos
poderes públicos centralizados; aspectos clericais originados do questio-
namento da supremacia do poder da Igreja e de seu representante supremo.

Após uma fase de avanços tecnológicos na prática agrícola que levaram


ao crescimento populacional e ao aumento do comércio, a Europa Ocidental
passou por uma grave crise econômica e social. As razões dessa crise, como
já explicitadas por Franco Júnior (1997), na citação anterior, são várias. Pri-
meiramente, a oferta de alimentos se tornou insuficiente para o aumento da
população. Juntamente à pouca oferta de alimentos, condições climáticas
adversas e más colheitas agravaram a situação. Somaram-se a esses fatores as
péssimas condições de higiene, que contribuíam para a proliferação de doenças.
Segundo Burns (1957), na maioria das cidades medievais, as condições
sanitárias eram péssimas. A população dependia de água proveniente de poços
ou rios contaminados, e eram frequentes os casos de febre tifoide. Algumas
cidades tinha sistema de esgoto, mas não há informações sobre a coleta de
lixo. Há relatos de que os restos eram jogados na rua e eram levados pelas
chuvas ou consumidos por cachorros e porcos.
A epidemia de peste bubônica, que ficou conhecida como peste negra,
ocasionou uma mortandade jamais vista na Europa Ocidental. Acreditava-se
que a peste era um tipo de castigo divino, como outros fenômenos que eram
explicados a partir da fé e da religião. No entanto, tratava-se de uma doença
contagiosa e, na maioria das vezes, fatal, que se acredita que tenha chegado à
Europa por meio de navios mercadores. Nesses navios, estavam ratos infectados
por uma bactéria, e as pulgas que picavam os ratos acabavam por contaminar
os seres humanos. Acredita-se que a peste bubônica tenha chegado à Europa
em 1348, e, como consequência, houve a morte de 30% da população europeia.
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Assim, as mortes causadas pela peste negra somavam-se àquelas ocasiona-


das pela fome e pelas guerras, gerando uma crise de produtividade (afinal, não
havia pessoas para trabalhar no campo) e, por consequência, uma diminuição da
produção agrícola. Em um efeito dominó, houve o endividamento da nobreza,
que, como forma de compensação, passou a cobrar mais impostos e tributos
dos camponeses, gerando descontentamento, fugas e uma série de revoltas.
Essa situação levou ao enfraquecimento do poder da nobreza feudal, que
passou a se aproximar dos reis como forma de manter a ordem social frente
às revoltas camponesas. Setores da nobreza optaram por modificar as relações
sociais, rompendo com os laços vassálicos, ou, então, por vender suas proprie-
dades a agricultores enriquecidos ou burgueses. Houve, também, a libertação
de muitos servos, que se transformaram em agricultores ou migraram para
as cidades, a fim de se dedicar ao comércio. Isso significou uma profunda
modificação da ligação da nobreza com a posse da terra.
Os burgueses já haviam iniciado esse movimento de aproximação, afinal, a
fragmentação econômica e política não interessava à burguesia, estrato social
surgido da revitalização das cidades e do impulso às atividades comerciais e
manufatureiras. Moradores das cidades, os burgueses construíram suas fortunas a
partir do grande comércio e das atividades bancárias, baseados na ideia de lucro e
na posse de uma riqueza que não consistia em propriedades rurais. Ou seja, estamos
falando de um grupo social em ascensão cujo estilo de vida era muito diferente
daquele que caracterizava o nobre feudal — senhor da guerra e proprietário rural.
A burguesia enriqueceu com o comércio praticado nos burgos, nas vilas e
nas cidades, além das rotas comerciais estabelecidas entre a Europa e a Ásia
Central, bem como no Mar Mediterrâneo. Juntamente ao desenvolvimento de
seu poder econômico, adquiriu prestígio político e social e passou a reivindicar
melhores condições para o exercício da economia e da política, tornando-se
uma das fomentadoras do processo de centralização política que resultaria na
conformação do Estado moderno.
A mudança nas relações de trabalho, com o início da especialização, o controle
do tempo, a expansão das rotas comerciais e a ampliação do mundo conhecido,
torna o estado medieval um modo de vida ultrapassado, e uma das mais importantes
revoluções da história, que tem início no século XIV, associada à peste negra e a
guerras que duraram mais de um século, transforma o mapa da Europa.
Além disso, é importante lembrar que, durante a Baixa Idade Média,
havia uma profunda descentralização no poder político devido à fragmen-
tação territorial ocasionada pela divisão de terras entre a nobreza feudal.
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Essa descentralização gerou inúmeras guerras de sucessão (já que as terras


eram hereditárias e havia muitos casamentos por interesses). Citemos, como
exemplo, a Guerra dos Cem Anos, ocasionada por um problema de sucessão
no trono francês, quando o rei inglês crê ser legítima a sua coroação como
rei da França, pois na Normandia estariam localizadas terras de senhores
ingleses. A resolução da guerra é feita quando os Valois são substituídos
por Habsburgos no trono francês. O resultado da guerra é a abertura rumo à
centralização política. Além da Guerra dos Cem Anos, também se destacou
a Guerra das Duas Rosas, provocada pela disputa entre duas famílias, Yorks,
as rosas brancas, e Lancasters, as rosas vermelhas, pelo poder.

Os burgos e a modernidade
Uma série de transformações ocorridas entre o século XIV e o XV fragilizou o
sistema feudal, compreendido em seus âmbitos cultural, econômico, político e
social. Em relação à economia, a melhoria nas técnicas de plantio, somada a outros
fatores, permitiu o aumento da produtividade agrícola, gerando um crescimento
demográfico na Europa. Entretanto, as estruturas feudais (alimentos, espaço,
governo, leis) não deram conta do aumento no número da população, gerando
diminuição das condições de vida, mortandade e uma alta geral de preços.
Em meio a esse processo de instabilidade, as cidades recuperaram o po-
der econômico e político. Mas você sabe de que forma os burgos e, mais
especificamente, o “renascimento” comercial e urbano, contribuíram para a
conformação da sociedade moderna?
Com as novas rotas comerciais surgidas durante a Baixa Idade Média em
decorrência do movimento das cruzadas e a retomada do comércio marítimo
pelo Mar Mediterrâneo, as feiras, que eram periódicas, tornaram-se fixas,
dando origem aos burgos (cidades). As feiras eram espaços em que eram co-
mercializados produtos locais e outros vindos do Oriente, como as especiarias,
os perfumes, os tecidos e as porcelanas, que se tornaram objetos de luxo e
cobiça por parte da nobreza feudal. As feiras também atraíam muitas pessoas,
sendo um verdadeiro espaço de encontro entre culturas diferentes. Assim, ao
mesmo tempo que as cidades foram fundamentais para o desenvolvimento do
comércio, o comércio também foi indispensável para o surgimento de novas
cidades e para o desenvolvimento de outras.
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A partir do século X, a sociedade europeia era sustentada por uma rede


de núcleos urbanos, embora suas condições e dimensões variassem
muito. Na Inglaterra, onde o poder real foi precocemente consolidado, as
cidades caracterizavam-se por um certo grau de dependência consentida
e de uniformidade. Por mais danosas que as incursões escandinavas
tivessem sido, a reação contra elas produziu um sistema relativamente
bem planejado. O nome em inglês arcaico para um forte, burh, passou
gradualmente a significar um burgo (borough = cidade pequena e
cercada de muralhas de defesa) (LOYN, 1997, p. 90).

Os mercados dos burgos possibilitavam o desenvolvimento de ativida-


des laborais assalariadas e a ascensão social em uma sociedade rigidamente
estratificada. Por isso, os burgos passaram a atrair cada vez mais artesãos,
camponeses livres, comerciantes itinerantes, servos fugitivos e outras pessoas.
Localizados no interior dos feudos, os habitantes dos burgos eram obrigados a
pagar determinadas taxas aos senhores feudais, como o direito de passagem,
além da realização de câmbios e conversões, em função da inexistência de
um sistema de medidas e monetário único.
As dificuldades geradas por essa situação, somadas às taxas, fizeram com
que os habitantes dos burgos se organizassem em comunas, como associações
coletivas de trabalhadores, e, dessa forma, conseguiram obter certos direitos
frente aos senhores feudais (inclusive a abolição de obrigações servis), o que
possibilitou o desenvolvimento das atividades comerciais. Dessas coletividades,
surgiram as corporações de ofício, que reuniam profissionais do mesmo ramo
com o objetivo de proteger seus trabalhadores (ou seja, com caráter assisten-
cialista) e de regulamentar a profissão, como a quantidade e a qualidade da
produção, com o objetivo de limitar a concorrência dentro de um mesmo ofício.
Com a fixação dos mercadores nas cidades, que traziam produtos do Oriente
e de média distância, houve a possibilidade de comercialização dos excedentes
agrícolas e de produtos artesanais produzidos no âmbito do feudo. A partir
desse processo de “sedentarização” do mercado, cria-se uma demanda por
novos produtos, gerando lucro e acúmulo crescente de capital. “As cidades
e as vilas multiplicaram-se tão rapidamente que, em algumas regiões, pelas
alturas do século XIV, metade da população tinha sido desviada das atividades
agrícolas para as comerciais” (BURNS, 1957, p. 423).
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As principais cidades desse período de transição localizavam-se na Itália, e


seus habitantes comerciantes estabeleceram relações comerciais com Império
Bizantino e com as grandes cidades muçulmanas de Bagdá, Damasco e Cairo.
Os produtos tinham grande procura não somente na Itália, mas também no
território do que hoje é Alemanha, França e Inglaterra.
Porém, havia alguns problemas para o desenvolvimento pleno das relações
comerciais. O comércio com moedas se tornou mais frequente, mas havia uma
pluralidade de moedas diferentes, com valores distintos. Isso fez com que sur-
gissem os cambistas, também chamados de banqueiros, porque analisavam as
moedas em cima de um banco. A partir dessas atividades, os banqueiros passaram
a emprestar dinheiro, cobrando juros, e enriquecendo a partir dessa atividade.
Esse processo fez com que Le Goff e Schmidt (2006, p. 223) assim defi-
nissem a cidade na Baixa Idade Média:

A cidade medieval é, antes de mais nada, uma sociedade da abundância, con-


centrada em um pequeno espaço em meio a vastas regiões pouco povoadas. Em
seguida, é um lugar de produção e de trocas, onde se articulam o artesanato e
o comércio, sustentados por uma economia monetária. É também o centro de
um sistema de valores particular, do qual emerge a prática laboriosa e criativa
do trabalho, o gosto pelo negócio e pelo dinheiro, a inclinação para o luxo, o
senso da beleza. É ainda um sistema de organização de um espaço fechado com
muralhas, onde se penetra por portas e se caminha por ruas e praças, e que é
guarnecido por torres. Mas também é um organismo social e político baseado na
vizinhança, no qual os mais ricos não formam uma hierarquia, e sim um grupo
de iguais — sentados lado a lado — que governa uma massa unânime e solidária.
[...] Essa sociedade laica urbana conquistou um tempo comunitário, em que
sinos laicos indicam a irregularidade das chamadas à revolta, à defesa, à ajuda.

Contudo, esse processo de “urbanização” da sociedade não ocorreu sem


conflitos. Nas cidades, houve um processo de exploração dos trabalhadores nas
próprias corporações de ofício que levou à sua extinção, e, no campo, uma série
de revoltas camponesas em função da exploração realizada pelos senhores feudais,
além do descontentamento com as limitações impostas pelas relações vassálicas.
A valorização das atividades comerciais, somada à ascensão dos centros
urbanos, e as possibilidades de unificação da moeda e do sistema de medidas
levariam ao desenvolvimento de relações capitalistas de trabalho e produção e ao
surgimento de novos estratos sociais, como a burguesia, com interesses próprios.
As relações sociais, os estratos dessa sociedade citadina e suas sociabilidades
são resultados de mudanças culturais, econômicas, políticas e sociais.
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E quem era o burguês? O burguês era o habitante do burgo, um homem livre


(no sentido de não submetido às relações de poder que envolviam suseranos,
vassalos e servos), que exercia profissões liberais como artesão ou comerciante.
Os burgueses foram os principais responsáveis pelo desenvolvimento das cida-
des, um processo que foi impulsionado com a abertura de rotas comerciais que
ligavam o Ocidente ao Oriente e a retomada do comércio marítimo pelo Mar
Mediterrâneo a partir do movimento das Cruzadas. Aos poucos, tornaram-se
numerosos e, então, estabeleceu-se uma hierarquia entre os próprios burgueses
de acordo com o tamanho de seus comércios e sua capacidade produtiva. O
esquema da Figura 1, a seguir, representa uma síntese do fortalecimento das
cidades e das mudanças ocorridas que levariam à modernidade.

Figura 1. As cidades e a modernidade.

Em resumo, podemos estabelecer o seguinte encadeamento de eventos


para explicar a relação dos burgos com a modernidade:

 a produção de artigos no Oriente (especiarias, tapeçarias e tecidos finos)


desperta o interesse da nobreza feudal no Ocidente;
 o comércio com o Oriente exige a utilização de moedas, que também
desperta a busca por metais preciosos;
 as mercadorias do Oriente levam a um processo de “sedentarização”
dos mercadores nos burgos, rompendo com o caráter local do comércio
e estabelecendo rotas comerciais;
 há um processo de enriquecimento dos mercadores;
 as mudanças nas atividades comerciais afetam a produção agrícola e
artesanal, levando a críticas nas estruturas feudais.
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Todo esse processo ocorre nas cidades, ainda que a maioria da população
europeia fosse rural. Esse é um alerta que faz o historiador Fernand Braudel
(1985, p. 13) e que demonstra, mais uma vez, os traços de continuidade e
ruptura presentes durante a Idade Moderna:

[...] por um lado, os camponeses nas aldeias, vivendo de uma forma quase
autônoma, quase autárquica; por outro lado, uma economia de mercado e um
capitalismo em expansão [...]. O perigo reside, evidentemente, em vermos
somente a economia de mercado, em a descrevermos com tal exuberância de
detalhes que denote uma presença avassaladora, persistente, não sendo ela
afinal senão um fragmento de um vasto conjunto.

Do teocentrismo ao antropocentrismo
Antes de nos dedicarmos ao estudo das novas formas de pensamento surgidas
na modernidade e seu reflexo nas práticas e nos valores da sociedade moderna,
é necessário lembrar quais eram as bases da sociedade medieval no que diz
respeito à sua visão de mundo.
Durante a Idade Média, a religião era estruturante dos âmbitos cultural,
econômico, político e social das sociedades da Europa Ocidental, e não havia
uma nítida distinção entre essas esferas e a religiosa, que permeava todo
o social. Em outras palavras, pode-se afirmar que a visão de mundo dos
europeus durante a Idade Média é religiosa, mesmo que houvesse diferenças
entre algumas concepções e práticas, de acordo com o local ou o tempo, o
que também faria com que a Igreja Católica se esforce para a normatização
e unificação de cultos, dogmas, práticas e rituais. A marcação do tempo do
calendário e do relógio vincula-se a essa visão de mundo religiosa, ou seja,
a organização da vida cotidiana se faz a partir da relação do homem com o
sagrado, assim como as explicações para os fenômenos naturais e sociais eram
encontradas nos dogmas religiosos.
Nessa sociedade, em que todo o conhecimento se dava a partir da fé, refletir
sobre o mundo a partir de outros parâmetros, como outras crenças ou por
meio da natureza, era considerado heresia. Entretanto, essa situação começa
a se modificar a partir do século XI, quando se inicia uma aproximação das
formas de se conhecer o mundo a partir da lógica, do estudo de observação
e da investigação.
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A Igreja Católica era a instituição mais importante da Idade Média, regu-


lando todas as esferas da vida em sociedade, funcionando como um agente
unificador e forjando ou mediando a relação dos homens e das mulheres com
o mundo. Como afirma Bedin (2012, p. 25), “[...] a Igreja passou a exercer uma
dupla função: a de instituição oficial do mundo medieval e a de instituição
guardiã e intérprete autorizada do conhecimento”.
Assim, uma das marcas da “modernidade” no que diz respeito à autocom-
preensão de homens e mulheres e sua compreensão em relação ao mundo
será um rompimento com essa visão unívoca e a existência de outras formas
de se compreender e compreender o mundo. Isso, no entanto, não significa
um movimento de rompimento com a percepção religiosa do ser humano e
da sociedade. É importante destacar a continuidade dos valores e visões de
mundo religiosos paralelamente a mudanças e rupturas. Não podemos, dessa
forma, dizer que houve um processo de laicização, e, sim, uma progressiva
separação entre os componentes religiosos e seculares das sociedades. Há,
sem dúvida, uma diminuição do poder da Igreja Católica frente à emergência
de outros saberes, principalmente os científicos, mas esses não implicam um
total rompimento com certas interpretações religiosas.
Essa abordagem, que implica continuidades e rupturas, ou seja, a com-
preensão da Idade Moderna como uma transição, é muito importante para
compreendermos a progressiva valorização do homem e do indivíduo, o cha-
mado antropocentrismo, em detrimento de uma visão de mundo teocêntrica,
característica do medievo. Nesse sentido, a universidade enquanto instituição
terá um papel bastante importante.
De acordo com Burns (1957, p. 464-465),

Ainda que as universidades modernas tenham copiado muito dos seus pro-
tótipos medievais, o programa de estudos mudou radicalmente. Nenhum dos
currículos da Idade Média incluía um número razoável de aulas de história
ou de ciências naturais, e pouca coisa continham de matemática e literatura
clássica. O educador tradicionalista moderno, que acredita formarem a espinha
dorsal do ensino universitário a matemática e os clássicos, não encontrará base
para os seus argumentos na história das universidades medievais.

Da mesma forma, o movimento ao qual se vincula a ascensão do antropo-


centrismo, o Renascimento, não pode ser visto apenas como um movimento
de elites letradas, mas como um fenômeno que abrange os diferentes estratos
da sociedade, com características específicas.
Em relação ao Renascimento, cabe destacar, neste momento, que esse “mo-
vimento” não se tratou apenas do acúmulo de obras científicas, filosóficas ou
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literárias nem de mudanças estéticas e técnicas nas artes plásticas, mas significou
uma transformação muito mais ampla, com a difusão da escrita e da leitura
para além dos espaços religiosos ou das elites, da alfabetização vinculada às
necessidades do comércio e das cidades, da releitura dos textos da Antiguidade
Clássica a partir desses próprios textos, e não das interpretações religiosas a
eles atribuídas.
Vejamos, resumidamente, nas considerações de Burns (1957), quais foram
as causas da renovação artística e intelectual ocorrida nos séculos XII e XIII
que gerariam o Renascimento:

 influência das culturas bizantina e sarracena;


 desenvolvimento do comércio;
 crescimento das cidades;
 renovação do interesse pelo estudo dos textos da Antiguidade Clássica
greco-romana;
 desenvolvimento de um pensamento cético e crítico;
 abandono progressivo do asceticismo e do misticismo característicos
da Alta Idade Média;
 retomada do estudo do direito romano;
 surgimento das universidades;
 influência do aristotelismo;
 presença do naturalismo nas artes plásticas e na literatura;
 desenvolvimento da observação e da pesquisa científica.

Em relação à religião, esse aspecto de continuidade do medievo, mas sujeito


a transformações, uma das marcas da “modernidade” é a reivindicação da
livre interpretação das escrituras, sem negar o valor e a verdade da Bíblia, mas
questionando o privilégio de apenas os clérigos poderem comentá-la. Durante
a Idade Média, a leitura das escrituras era orientada pela escolástica por meio
da hermenêutica (SILVA; SILVA, 2009). Há outra visão de ser humano e de
religião em disputa, e aqui se apresenta uma distância menor entre homens e
mulheres e Deus. Juntamente ao antropocentrismo, haverá o desenvolvimento
de outras formas de pensamento, todas vinculadas entre si, como o humanismo,
o individualismo e o racionalismo.
Vejamos como Silva e Silva (2009, p. 193) definem o humanismo, esse
grupo heterogêneo de intelectuais que compartilhavam o entusiasmo pelo
estudo dos escritos da Antiguidade Clássica:
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O termo humanismo surgiu no século XVI para designar as atitudes renas-


centistas que enfatizavam o homem e sua posição privilegiada na Terra. [...]
O humanismo é comumente definido como um empreendimento moral e
intelectual que colocava o homem no centro dos estudos e das preocupações
espirituais, buscando construir o mais alto tipo de humanidade possível. [...]
Alguns autores consideram o humanismo um fenômeno dialético, pois, de um
lado, valorizava o humano, contrariando a mentalidade teocêntrica da Filosofia
medieval, mas, ao mesmo tempo, possuía fortes preocupações religiosas, sendo
o movimento incompreensível sem suas preocupações espirituais e o anseio
por uma reforma da Igreja Católica. Ou seja, o contexto humanista apesar
de seu antropocentrismo, foi intensamente influenciado pelo Cristianismo e
pelos dilemas da Igreja Católica no início da Idade Moderna.

Percebe-se, novamente, a importância de compreender a modernidade


entre a continuidade e ruptura: até mesmo os valores antropocêntricos tinham
conotações religiosas. Contudo, também é importante destacar os rompimentos:
o humanismo foi um movimento surgido em algumas cidades italianas com
forte desenvolvimento urbano e comercial e teria sido burguês.

BRAUDEL, F. A dinâmica do capitalismo. Lisboa: Teorema, 1985.


BURNS, E. História da civilização ocidental. Porto Alegre: Editora Globo, 1957.
LE GOFF, J.; SCHMITT, J. C. (coord.). Dicionário temático do ocidente medieval. Bauru:
EDUSC, 2006. v. 1.
LOYN, H. (org.). Dicionário da idade média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
RUNCIMAN, S. A queda de Constantinopla. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
SILVA, K.; SILVA, M. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Editora Contexto, 2009.
WIKIMEDIA COMMONS CONTRIBUTORS. Plan.Paris.XIVe.siecle.2.png. In: WIKIMEDIA
Commons. Flórida: Wikimedia Foundation, 2014. Disponível em: https://commons.
wikimedia.org/wiki/File:Plan.Paris.XIVe.siecle.2.png. Acesso em: 22 nov. 2019.
BEDIN, G. A. A Idade Média e o Nascimento do Estado Moderno. Ijuí: Unijuí, 2012.
FRANCO JÚNIOR, H. O Feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1997.
Idade Moderna 13

Leituras recomendadas
BRAUDEL, F. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
CIPOLLA, C. M. A alvorada da idade moderna. In: CIPOLLA, C. M. História económica da
Europa pré-industrial. Lisboa: Edições 70, 1984.
DEYON, P. O mercantilismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973.
FRANK, A. G. A expansão do século XVI: acumulação mundial, 1492-1789. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1977.
KRANTZ, F. A outra história: ideologia e protesto popular nos séculos XVII a XIX. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
LOPEZ, R. S. A resposta da sociedade agrícola. In: LOPEZ, R. S. A revolução comercial da
idade média. Lisboa: Editora Presença, 1986.
MOUSNIER, R. As novas estruturas do Estado. In: MOUSNIER, R. Os séculos XVI e XVII. São
Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973.
SKINNER, Q. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
SWEEZY, P. et al. A transição do feudalismo para o capitalismo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1977.

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