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HISTÓRIA

MODERNA

Caroline Silveira Bauer


A formação dos
Estados Modernos
e o Antigo Regime
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Relacionar o retorno do comércio mercantil com a formação dos


Estados Modernos.
 Analisar os fatores culturais que potencializaram uma reestruturação
governamental pautada no sistema mercantil.
 Descrever as características do Antigo Regime.

Introdução
Antigo Regime foi uma expressão que se tornou conceito utilizado em re-
ferência ao conjunto de características de um período que corresponderia
à Idade Moderna na Europa Ocidental: o Estado absolutista, a economia
mercantilista e a sociedade do Antigo Regime. Cada uma dessas esferas,
que correspondem, respectivamente, aos âmbitos político, econômico e
social, é resultado das transformações pelas quais a sociedade europeia
passou durante os séculos XV, XVI e XVII, ainda que mantenham traços
indeléveis das estruturas feudais.
Neste capítulo, você vai aprender a relação existente entre a formação
dos Estados Modernos e o comércio mercantil, vendo os fatores culturais
que propiciaram a expansão comercial e as políticas mercantilistas do
Estado Moderno e conhecendo as principais características da sociedade
do Antigo Regime.
2 A formação dos Estados Modernos e o Antigo Regime

A formação dos Estados Modernos


e o mercantilismo
Existe uma relação intrínseca entre a centralização política e a formação do
Estado Moderno, as grandes navegações e o desenvolvimento da política
econômica que foi chamada de “mercantilismo”. Vamos compreender melhor
esse processo e como se estabeleceu esse vínculo?
A economia europeia atravessava uma crise entre os séculos XIV e XV
em função da escassez de alimentos, da falta de mão de obra e da mortandade
ocorrida em função da peste negra — todos esses fatores estão interligados.
Havia necessidade de estabelecer novas rotas comerciais e novos mercados,
além de encontrar fontes de metais precisos (para as cunhagens de moedas
e para satisfazer o luxo das cortes). No século XV, o comércio de produtos
orientais era monopolizado pelas cidades italianas, como Veneza e Gênova, que
dominavam as rotas no Mar Mediterrâneo, fornecendo esses produtos a altos
preços no mercado europeu. Além disso, com a tomada de Constantinopla,
em 1453, pelos turcos otomanos, o caminho para o oriente se torna bastante
perigoso e, a partir de então, os reis começaram a patrocinar a busca por novas
rotas. Mercadores do resto do continente também tinham razões para voltar
os olhos para o exterior: o comércio entre Europa, África e Oriente vinha,
há algum tempo, contando com a presença de intermediários muçulmanos,
venezianos e nômades árabes. Nesse contexto, qualquer estratégia de expansão
marítima e comercial exigia a busca de rotas alternativas para alcançar as áreas
fornecedoras de cerâmicas, especiarias e tecidos (FALCON, 1996).
Nesse momento da discussão, é importante entender como se dá a relação
que estamos procurando estabelecer entre o Estado, o mercantilismo e as
grandes navegações. É preciso, para isso, diferenciar o processo de centra-
lização do poder, o Absolutismo e a formação dos Estados Modernos ou
Estados-nações. Por vezes, essas expressões são tratadas como sinônimos na
abordagem da “formação dos Estados Modernos” ou como uma sucessão de
acontecimentos, mas fazem referência a processos distintos que não tinham
necessariamente uma lógica de encadeamento.
A formação dos Estados Modernos e o Antigo Regime 3

Nesse sentido, é importante lembrar que o processo de centralização do


poder inicia-se na Baixa Idade Média, em torno do século XII, e faz referência
ao aumento do poder dos reis frente à nobreza feudal no que diz respeito a certas
questões burocráticas, como o sistema de justiça e o tributário. Já o absolutismo
surge e se consolida como sistema de governo em torno dos séculos XVI e XVII,
mas isso não ocorreu da mesma forma em todos os países, o que gerou formas
diferentes de regime absolutista, sendo algumas práticas, tais como a existência
de assembleias com representantes dos diferentes estamentos da sociedade, um
verdadeiro limitante desse poder “absoluto” dos reis (ANDERSON, 1989).
Como afirma Falcon (1996, p. 29):

O Estado absolutista é, antes de mais nada, um, Estado Moderno, ou seja,


um tipo de Estado que é resultante de vários séculos de formações e de lutas,
no final da idade Média, levadas a cabo contra os universalismos represen-
tados pelo Papado e pelo Império e também contra as tendências localistas
dos senhorios feudais e das comunas urbanas. Afirmando-se como Estado
territorial, governado por um príncipe, através de uma complexa política de
concentração do poder e centralização administrativa, o Estado moderno
define-se rapidamente como Estado monárquico absolutista, isto é, pelo fato
de que todo o poder está nas mãos de um rei ou príncipe que é, de fato e de
direito, o seu soberano. Simultaneamente, esse Estado pressupõe a existência
de um aparelho burocrático e militar que não só execute as determinações do
soberano, mas dê na realidade uma forma visível e concreta à própria ideia de
poder que o monarca personifica. O Estado é o Rei, porém este é na verdade
o conjunto de instâncias e agentes burocráticos que são os seus oficiais.

Por fim, a ideia de nação, mesmo que presente em debates e discussões no


século XVII, só se consolidará na Europa Ocidental no século XIX.
Portugal foi o Estado Moderno pioneiro nas chamadas “grandes navegações”,
rotas marítimas que procuravam alcançar o Oriente através da navegação oceânica
e que levaram à conquista e à colonização do território da América portuguesa.
O pioneirismo português se explica pela precocidade na centralização do poder
político, capaz de mobilizar os recursos necessários, a aliança do Estado com a
burguesia, o desenvolvimento tecnológico e a posição geográfica privilegiada.
4 A formação dos Estados Modernos e o Antigo Regime

O marco inicial da expansão portuguesa foi a conquista de Ceuta, no norte da África,


em 1415. Nas décadas seguintes, Portugal estabeleceu entrepostos comerciais na costa
africana, comercializando matérias-primas, produtos manufaturados e, posteriormente,
escravizados. O extremo sul da África, chamado Cabo da Boa Esperança, foi contornado
por Bartolomeu Dias em 1488.
Em relação ao território da América, sua localização em 1492 por Cristóvão Colombo
levou o governo português a assinar um acordo com a Espanha. Intermediados pelo
Vaticano, os reinos ibéricos assinaram o Tratado de Tordesilhas em 1494, estabelecendo
o domínio português sobre as rotas do Atlântico sul. Em 1500, Pedro Álvares Cabral
localizaria territórios ao sul da linha do Equador e os tornaria posse do império portu-
guês, mesmo que a colonização da América Portuguesa tenha se iniciado somente
algumas décadas depois.
Sobre as Índias, esse território foi alcançado por navegações em 1498 por Vasco
da Gama. O êxito da viagem significou enormes lucros e a constituição de um vasto
império colonial português, com entrepostos comerciais na África e na Ásia. Dessa
forma, Lisboa tornou-se um importante centro comercial na Europa, mas o alto custo
das viagens, as longas distâncias percorridas e a demora, bem como a queda no
preço das especiarias, faria a metrópole redirecionar seus interesses econômicos para
a colônia e para o tráfico de escravizados (ANDERSON, 1989).

O processo de expansão marítima, que será seguido por Espanha, França


e Inglaterra, vincula-se a uma prática econômica que recebeu o nome de
mercantilismo. Essa concepção econômica partia do pressuposto de que a
medida da riqueza de um Estado vinculava-se à quantidade de metais preciosos
que possuía. Surgiu durante o renascimento comercial das cidades e com a
emergência da burguesia, que transformou as relações de trabalho e passou a
exigir a monetarização das relações comerciais.
De acordo com Silva e Silva (2009, p. 283),

[...] a definição mais aceita de mercantilismo informa que esse termo compreende
um conjunto de ideias e práticas econômicas dos Estados da Europa ocidental entre
os séculos XV, XVI e XVII voltadas para o comércio, principalmente, e baseadas
no controle da economia pelo Estado. Mercantilismo dá nome, nesse sentido, às
diferentes práticas e teorias econômicas do período do Absolutismo europeu.

Cabe lembrar que esse conceito não é contemporâneo aos fatos que nomeia;
foi empregado por liberais no final do século XVIII, com tom depreciativo,
para se referir às práticas de intervenção do Estado na economia.
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Falcon (1996, p. 8), afirma que “[...] foram seus adversários, os fisiocratas do
século XVII e os economistas da escola clássica, dos séculos XVII/XIX, que de
certa forma o construíram, denominando-o, à época, ‘sistema mercantil’ ou ‘do
comercio’. Foram ainda seus admiradores os membros da chamada ‘escola histórica
alemã’, já no final do século XIX, que deram o nome que se fixou: Mercantilismus”.
A política mercantil, segundo essas teorias, entendia a riqueza e o desenvolvi-
mento como dependentes de um Estado, que deveria unificar a tributação, controlar
a atividade produtiva e estabelecer um sistema alfandegário para proteger os
produtores do seu país. O Estado deveria manter uma balança comercial favorável,
ou seja, exportar mais do que importar. Devido à necessidade de manutenção
dessa balança favorável, associada ao metalismo, os governos mercantilistas
foram levados a argumentar em favor da autossuficiência interna e a prática do
monopólio, ainda que, em inúmeras ocasiões, esse monopólio não tenha sido
respeitado, porque, para os comerciantes, era muito mais interessante comerciar
com o maior número de clientes possíveis. Assim, podemos afirmar que, para
além de nomenclaturas como “mercantilismo”, a economia da Europa Ocidental
durante a Idade Moderna foi marcada por práticas tais como o metalismo (quan-
tidade de metais preciosos por ele acumulado, convertido ou não em moedas e
títulos), a balança comercial favorável (regulação das exportações e importações)
e o protecionismo estatal (intervenção do Estado na economia) (FALCON, 1996).
Foram subvencionadas indústrias para garantir o abastecimento do mercado
interno, mas, como a riqueza só podia ser medida a partir do comercio exterior e do
fluxo de metais em seu território, a sustentação do sistema mercantil vai depender
das colônias. O governo vai licenciar companhias para o comércio ultramarino e
promover a organização dos territórios ocupados. Além disso, é preciso relativizar,
a partir de estudos historiográficos mais recentes, o alcance dessa industrialização
(Portugal, por exemplo, seguirá como um país majoritariamente agrário) e a
ideia do “pacto colonial”, ou seja, relações comerciais restritas entre metrópole e
colônia, em que a primeira extraia matéria-prima e metais preciosos enquanto a
segunda comprava os produtos manufaturados das metrópoles (FALCON, 1996).
Segundo as teorias econômicas, existiram diferentes formas de mercanti-
lismo de acordo com cada um dos países. Lembremos que, como assinalado
por Silva e Silva (2009, p. 283):

[...] o mercantilismo não existiu como um conjunto coeso de ideias e práticas


econômicas, nem como grupo de pensadores da economia com uma filosofia
comum. De fato, sob a definição de mercantilismo, foram reunidos pelos
críticos diferentes autores e diferentes políticas econômicas, com pouco em
comum, a não ser o fato de pertencerem a países absolutistas.
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O critério para definir cada tipo de mercantilismo foi a posse ou não de


territórios coloniais e que tipo de produto forneciam. A expansão marítima
europeia trouxe o domínio de novos territórios, novas fontes de riquezas e
mão de obra à Europa. A estruturação do sistema de exploração colonial só foi
possível após o entendimento da necessidade de gerar riqueza nesse território.
Porém, se analisarmos a economia do período na Europa Ocidental, vemos
uma série de características marcantes das estruturas econômicas feudais,
reforçando o argumento de que a Idade Moderna é um período marcado
por rupturas e continuidades coexistentes em relação ao medievo. Um dos
aspectos dessa continuidade da estrutura feudal é a estrutura social: “[...] se
o mercantilismo tem sua contraparte política no Estado absoluto, no campo
social tem relação com a estrutura social comumente conhecida como sociedade
do Antigo Regime. Ou seja, a estrutura social estamental, ainda baseada na
sociedade de ordens do medievo, porém com novos elementos, dos quais a
burguesia é o principal fator de diferenciação” (SILVA; SILVA, 2009, p. 283).

Fatores culturais da formação do Estado


Moderno e do sistema mercantilista
Quando falamos em fatores culturais relacionados à formação do Estado
Moderno e às práticas mercantilistas, compreendemos cultura de uma forma
ampla, não apenas como expressão de certos artistas ou intelectuais. A ideia
de cultura deve ser ampliada de forma a abarcar as transformações pelas
quais passa a vida pública e privada, a conformação da ideia de indivíduo e
coletividade, as novas formas de o ser humano conceber a si próprio e entender
o mundo, entre outras, para além da cultura material de uma sociedade.
Assim, salientamos que a expansão comercial mercantilista, fomentada por
indivíduos, mas possibilitada pela existência do Estado, permitiu não somente
o enriquecimento para os burgueses e o acesso a determinados produtos, mas
também que grandes setores das sociedades da Europa Ocidental tivessem
contato com costumes, hábitos e práticas de outros povos, como usavam esses
mesmos produtos, de que forma se vestiam, influenciando profundamente a
vida cultural europeia. Essas modificações alteraram a alimentação, as casas
e as formas de habitar, a vestimenta, mas também as relações de trabalho,
já que o “luxo” exigia transformações nos ofícios e na própria organização
do trabalho. “Dentro de cada país, o luxo tem sempre seus defensores e seus
inimigos, pois, enquanto estes apontam os malefícios que ele traz à degeneração
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dos costumes, a quebra das hierarquias, os vícios , aqueles exaltam o fato de que
é a produção do luxo que assegura emprego e sustento a milhares de pessoas
que, de outro modo, ficariam ociosas e famintas” (FALCON, 1996, p. 76).

A partir de 1650, o roupão se torna moda entre os homens. De cetim e


marrom, bordado de flores na Europa setentrional, expressa uma nova
alegria de viver ao mesmo tempo íntima e religiosa. [...]. O belo roupão
novo exige um remanejamento total do quarto. O velho mobiliário é subs-
tituído, os papéis e os livros são colocados numa "escrivaninha preciosa".
As esculturas e os quadros, antes dispersos ou fixados sem moldura na
parede, cedem lugar a outros a fim de criar um conjunto harmonioso, em
conformidade com o gosto da época (RANUM, 2009, p. 230).

O sociólogo polonês Norbert Elias (1994) nos ajuda a compreender a história


dos costumes a partir da formação do Estado Moderno e suas influências na
conformação do que era a “civilização”. Em outras palavras, há uma íntima
relação entre o processo de centralização política e o surgimento do Estado
Moderno e a conformação de determinada cultura e sociedade. Nos dois
volumes da obra O Processo Civilizador, lançada em 1939, Elias contribui
nas análises sobre os efeitos da formação do Estado Moderno nos costumes
e na moral dos indivíduos.
Vejamos o que diz o autor sobre a formação do Estado Moderno:

Com a divisão de funções, aumentou a produtividade do trabalho. A maior


produtividade era precondição para a elevação dos padrões de vida de classes
que cresciam em número; com a divisão de funções, acentuou-se a dependência
das classes superiores; e só num estágio muito adiantado dessa divisão de
funções é que, finalmente, tornou-se possível a formação de monopólios mais
estáveis de força física e tributação, dotados de administrações altamente
especializadas, isto é, a formação de Estados no sentido ocidental da palavra,
através dos quais a vida do indivíduo ganhou, aos poucos, maior “segurança”.
O aumento da divisão de funções, porém, colocou também maior número de
pessoas, e áreas habitadas sempre maiores, em dependência recíproca, exigiu e
instilou maior contenção no indivíduo, controle mais rigoroso de suas paixões
e conduta, e determinou uma regulação mais estrita das emoções e — a partir
de determinado estágio — um autocontrole ainda maior (ELIAS, 1994, p. 256).
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Em outras palavras, para o autor, a estrutura do comportamento dito “civi-


lizado” está estreitamente inter-relacionada com a organização das sociedades
ocidentais sob a forma de Estados.
No primeiro volume, Elias dedica-se ao estudo das chamadas “boas maneiras”,
dos costumes, hábitos e práticas presentes na estrutura emocional e mental da aris-
tocracia que, no final da Idade Média, passam a ser apropriados pela burguesia, que
precisa ser “civilizada”, trabalhando com os conceitos de “cultura” e “civilização”
presentes em livros de boas maneiras, em obras de arte, em romances e outros
documentos históricos da Alemanha, da França e da Inglaterra (ELIAS, 1994).
Mas qual é a vinculação dessas mudanças comportamentais e de pensa-
mento com a estrutura do Estado? Apesar desses costumes, hábitos e práticas
nem sempre procederem do Estado (por meio de leis), alguns desses princípios
impunham comportamentos e regras que, se não fossem seguidos, poderiam
gerar certas penalidades, como desaprovação ou repreensão.

A história das boas maneiras está diretamente relacionada às regras de com-


portamento social. Essa história refere-se não apenas a questão da etiqueta,
mas também diz respeito à moral, à ética, ao valor interno dos indivíduos e
aos aspectos externos que se revelam nas suas relações com os outros. Todas
as sociedades, ao longo da história, criaram normas e princípios com a finali-
dade de orientar as relações entre grupos e pessoas (OLIVEIRA; OLIVEIRA,
2012, documento on-line).

De acordo com Oliveira e Oliveira (2012, documento on-line), em relação


às mudanças destacadas por Elias, “[...] no que diz respeito aos costumes, as
transformações que ocorrem estão relacionadas à dinâmica das classes sociais,
ou seja, quando a classe social superior procura distanciar-se das outras clas-
ses sociais, criam-se novos padrões de comportamento que, historicamente,
acabam por ser adotados pelas outras classes”. Com a passagem do tempo, os
padrões de comportamento aprendidos deixam de ser conscientes e passam
a ser naturalizados, conformando a personalidade dos indivíduos. Daí, surge
o autocontrole, uma forma de introjeção de aspectos legais e normativos
provenientes do exterior.
Ou seja, ao mesmo tempo que a estrutura do comportamento “civilizado”
está intimamente relacionada com a organização das sociedades ocidentais
na forma de estados, na medida em que esses comportamentos esperados
são introjetados, é cada vez menos necessária uma regulação do Estado nos
costumes, nos hábitos e nas práticas dos indivíduos. O desenvolvimento da
constituição psíquica dos indivíduos tem, então, uma relação direta com o
desenvolvimento das estruturas sociais ocidentais modernas:
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Os principais elementos deste processo de civilização foram: a formação do


Estado, o que significa dizer o aumento da centralização política e adminis-
trativa e da pacificação sob o seu controlo, processo em que a monopolização
do direito de utilização da força física e da imposição de impostos, efetuada
pelo Estado, constitui uma componente decisiva; um aumento das cadeias de
interdependências; uma mudança que é inovadora no quadro de equilíbrio dos
poderes entre as classes sociais e outros grupos, o que é o mesmo que dizer
pelo processo de ‘democratização funcional’; a elaboração e o refinamento das
condutas e dos padrões sociais; um aumento concomitante da pressão social
sobre as pessoas para exercerem o autocontrole na sexualidade, agressão,
emoções de um modo geral e, cada vez mais, na área das relações sociais; e,
no nível da personalidade, um aumento da importância da consciência (‘supe-
rego’) como reguladora do comportamento (ELIAS, DUNNING, 1992, p. 30).

A partir dessa citação, torna-se explícita a compreensão do autor de que


existe uma mútua influência dos níveis individual e coletivo, e do público e
do privado, na configuração das relações sociais. Em relação ao período que
estamos estudando, a formação dos Estados Modernos, acompanhamos o
aumento do poder e do prestígio social da burguesia, que passa a realizar uma
figuração da “sociedade de corte” e, ao mesmo tempo, uma proximidade entre
a aristocracia e o rei, em função das atribuições de cobrança de impostos e
da conformação dos exércitos profissionais.

A pressão da vida de corte, a disputa pelo favor do príncipe ou do ‘grande’ e


depois, em termos gerais, a necessidade de distinguir-se dos outros e de lutar
por oportunidades através de meios relativamente pacíficos (como a intriga
e a diplomacia), impuseram uma tutela dos afetos, uma autodisciplina e um
autocontrole, uma racionalidade distintiva de corte (ELIAS, 1994, p. 18).

As transformações ocorridas no âmbito privado também tiveram reflexos na


esfera pública. Assim, houve uma preocupação de que as sedes administrativas
das cidades e dos reinos fossem luxuosas, assim como as igrejas e outros espaços
públicos, como as praças, os jardins e certas festas, com banquetes e desfiles.
Os contatos estabelecidos com outros povos também permitiram a assimilação
de saberes de outras culturas e fomentaram o desenvolvimento de novos conhe-
cimentos na Europa Ocidental. Foi a partir da expansão europeia pelo mundo
que houve o contato com povos cujos costumes, língua e produtos eram muito
diferentes. Para alcançar esses povos — e, também, seus territórios, na lógica
colonial europeia — foi necessário o desenvolvimento de saberes relacionados à
cartografia e à geografia. Houve também uma transformação dos registros: grandes
navegadores passaram a escrever “diários de bordo”, que serviam como orientações.
10 A formação dos Estados Modernos e o Antigo Regime

Do ponto de vista da compreensão do ser humano sobre si e sobre o mundo,


houve:

[...] o abandono de concepções e preocupações construídas em função de uma


ordenação sobrenatural ou extraterrena do mundo e do homem, no homem em
si mesmos [e] o avanço da secularização, quer dizer, o recuo das formas de
pensamento e das instituições eclesiásticas, a afirmação do Estado como rea-
lidade própria, o desenvolvimento de teorias científicas e filosóficas apoiadas
no racionalismo e no humanismo, renegando a plano secundário o primado da
teologia; [e] a afirmação, pouco a pouco, do individualismo burguês. Assim,
durante o processo de transição, o universo ideológico medieval (ou católico-
-feudal) cede lugar ao universo ideológico moderno (secular, imanentista,
racionalista, individualista) ou burguês (FALCON, 1996, p. 37-38).

O Antigo Regime
A expressão “Antigo Regime” é facilmente encontrada na história da his-
toriografia, em livros didáticos e outros materiais encontrados na internet.
Costumeiramente, é utilizada para se referir à organização econômica (mer-
cantilismo), política (Estado absolutista) e social (sociedade estamental ou de
ordens) surgida na Europa ao final da Baixa Idade Média, consolidando-se no
século XVII. Mas você sabe como surgiu o termo Antigo Regime e a partir
de quando ele se consolidou na historiografia?
Para Florenzano (1996), foi Alexis de Tocqueville, na conjuntura posterior
à Revolução Francesa (1789), que converteu a expressão “Antigo Regime” em
um conceito, atribuindo a ele o caráter de anterioridade à Revolução, que não
significou uma ruptura na realidade, mas, sim, nas “consciências”:

É sabido que uma vez iniciada a Revolução francesa, isto é, pelo menos desde o
mês de julho de 1789, os revolucionários logo batizaram de "Antigo" o "Regime"
que eles estavam pondo à baixo. Em suma, desde a Revolução francesa, todos
falam em Antigo Regime para designar o período imediatamente a ela anterior.
Mas ninguém antes de Tocqueville havia dado ao termo o estatuto de um conceito,
de uma categoria histórica definida. Já foi notado que o Antigo Regime tem um
momento preciso de falecimento, isto é, julho-agosto de 1789, mas não tem um
momento preciso de nascimento. (FLORENZANO, 1996, documento on-line).

Durante esse período, a organização da sociedade foi marcada pela continuidade


da sociedade estamental ou de ordens, característica da Idade Média, e que tinha
como fundamento de diferenciação social o privilégio de nascimento, ou seja, a
A formação dos Estados Modernos e o Antigo Regime 11

riqueza não se constituía como um critério de hierarquização social. “A ideia de


estamento expressa uma concepção de sociedade na qual os homens se encontram
agrupados em corpos sociais distintos e hierarquizados em função da importância
que têm, ou acreditam ter, para o conjunto da sociedade” (RODRIGUES; FALCON,
2006, p. 39). A partir dessa divisão estamental, estabelecem-se os direitos e os
deveres, que, em muitos casos configuravam-se como privilégios.

Tendo origem provavelmente na antiga distinção de origem medieval entre os


que rezam, os que lutam e os que trabalham, a ideologia estamental baseia-se
no pressuposto de que os indivíduos só existem realmente como integrantes de
algum tipo de corpo social; além disso, a noção de estamento relaciona-se à ideia
de estado, isto é, a forma ou maneira de ser e estar no mundo, a qual, ao menos
a princípio, é dada pelo nascimento (RODRIGUES; FALCON, 2006, p. 40).

Entretanto, uma diferença importante em relação ao medievo é que, na Idade


Moderna, o Estado legitimará e preservará a existência dessa sociedade, garantindo
os privilégios do Primeiro e do Segundo Estado, formados pelo alto clero e pela
nobreza. O Terceiro Estado, o qual correspondia à maior parte da população,
era o mais explorado na cobrança de impostos e tributos. Bastante diversificado
internamente, no Terceiro Estado. Encontravam-se os artesãos, a burguesia, os
camponeses livres, os trabalhadores urbanos e os servos. Lembremos que a estra-
tificação era extremamente rígida, uma vez que a posição social era determinada
pelo nascimento. Veja essa organização social na Figura 1, a seguir.

Figura 1. Estrutura social do Antigo Regime.


12 A formação dos Estados Modernos e o Antigo Regime

E como se dava a relação entre a nobreza e a burguesia no Antigo Regime?


Raminelli (2013) nos apresenta um apanhado historiográfico com diferentes
perspectivas sobre essa relação, que variam de acordo com as vertentes
teóricas dos autores. Na década de 1950, “Christopher Hill defendia que a
monarquia absoluta era comandada pela nobreza, enquanto Perry Anderson
a considerou instrumento político para proteção da nobreza amedrontada”
(RAMINELLI, 2013, documento on-line). Já Elias, segundo Raminelli (2013,
documento on-line) considera que “[...] os indivíduos burgueses almejavam
para si e para sua família um título aristocrático, com os privilégios que o
acompanhavam”. “Ou melhor, por buscar honras e privilégios, a burguesia
não objetivava eliminar a nobreza, mas antes intentava ocupar seus postos,
sobretudo exibir títulos, frequentar a corte e a intimidade do rei” (RAMI-
NELLI, 2013, documento on-line).
Podemos afirmar, dessa forma, que a sociedade estamental da Idade Mo-
derna preservava, com modificações, a ordem social feudal. Havia uma nova
ordenação social e novas relações de poder, com novas características, como o
rei e a nobreza. O Primeiro e o Segundo Estado tinham uma série de isenções
tributárias, além da exclusividade de acesso aos cargos políticos — não havia
igualdade entre os estamentos sociais. É também por meio dessa sociedade
estamental que vemos a emergência da ideia de indivíduo, que pode comprar
títulos de nobreza — lembrando que a emergência do indivíduo como objeto
filosófico e jurídico, assim como o estabelecimento de práticas religiosas e
políticas voltadas para a existência individual, não implica a desarticulação
da sociedade corporativa.
As sociedades do Antigo Regime resultam da convergência de diferentes
processos de transformação nos campos econômico, político, religioso e
cultural, marcando continuidades e rupturas em relação ao período medieval.
Tinham uma visão de mundo aristocrática ou tradicional, conferindo certa
unidade e identidade entre os estamentos da sociedade, a chamada “sociedade
de corte”, como estudada no tópico anterior. “A noção de estado remetia a
uma certa maneira de se estar no mundo, uma característica que constituía
o elemento comum a todos os indivíduos pertencentes a um mesmo estado.
Significava, portanto, uma certa comunidade de origens, estilos de vida e
visões de mundo, além de se traduzir, na prática, num espírito fortemente
corporativo” (RODRIGUES; FALCON, 2006, p. 40).
A formação dos Estados Modernos e o Antigo Regime 13

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14 A formação dos Estados Modernos e o Antigo Regime

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