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Por que Antigo Regime nos Trópicos?

Título do livro, a expressão Antigo Regime nos Trópicos foi se transformando em


conceito a partir das idéias encetadas na obra. Por se perceber essa dinâmica
como semelhante ao ocorrido na Europa, mas com especificidades próprias do
ultramar, a expressão Antigo Regime nos Trópicos toma-se indicativa do processo
de constituição e de desenvolvimento do império português nas regiões coloniais,
destacando-se a negociação e a importância dos poderes locais para a
compreensão de uma visão mais completa sobre as sociedades ultramarinas. Além
disso, a expressão aglutina questões específicas para os trópicos, e flexibiliza a
dicotomia metrópole versus colônia, em que se destaca a exploração econômica
da primeira sobre a segunda.
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A proposta central é discutir o Antigo Regime no ultramar a partir da ideia de que


a constituição da sociedade colonial e das suas elites senhoriais poderia ser
compreendida a partir do conceito de economia do bem comum, e também por
meio do sistema de mercês, da participação em cargos administrativos, da
atuação do poder nas câmaras e da dinâmica de práticas e de instituições regidas
pelo ideário da conquistai. O conceito de Antigo Regime nos Trópicos foi cunhado
para se entender a América lusa no chamado período colonial, embebida na
dinâmica do império português. Trazendo em sua bagagem uma visão sobre a
dinâmica da sociedade colonial e as discussões sobre o Estado moderno, este
grupo de pesquisadores partiu da premissa de que este império não consistia
numa organização engessada, mas em uma monarquia caracterizada pela
presença de um poder central (príncipe) fraco demais para impor-se pela coerção,
mas forte o suficiente para negociar seus interesses com os múltiplos poderes
existentes no reino e nas conquistas. O império ultramarino português e o reino
português constituem uma ‘monarquia plu ri continental', onde a Coroa e sua
nobreza vivem de recursos oriundos não tanto da Europa, mas do ultramar. Em
outras palavras, o Antigo Regime luso seria ininteligível sem seu império
ultramarino. A transferência de excedentes das conquistas para o reino ocorria
por meio de diversos mecanismos, tais como o pagamento de impostos de
municípios e vassalos e a concessão de mercês e privilégios nas conquistas. Estes
mecanismos também serviram para a formação de elites no ultramar e para a
estruturação de hierarquias sociais nas terras do Atlântico sul. Trata-se, portanto,
de uma monarquia e de uma nobreza que têm na periferia a sua centralidade
material. Em termos econômicos, a monarquia plu ri continental compreendia
negócios oceânicos que conectavam diferentes estruturas sociais em toda sua
diversidade. Exemplo disso foi o entrelaçamento da produção escravista brasileira
com sociedades africanas e com a própria estrutura socioeconômica do reino,
através do tráfico atlântico de escravos. Tais negócios oceânicos não ocorriam em
um mercado auto-regulado, mas sobredeterminado pela política e por práticas de
Antigo Regime, como os monopólios mercantis, a concessão de privilégios
comerciais (como mercês por serviços prestados) e o fato das câmaras municipais
interferirem no funcionamento de mercados como a praça do Rio de Janeiro de
fins do século XVIII. Esta monarquia baseava-se na concepção corporativa de
sociedade e, por isso mesmo, reservava a cada um aquilo que era próprio da sua
ordem ou estado, adotando as concepções de justiça próprias do Antigo Regime,
preservando e difundindo, nas diversas conquistas ultramarinas, ambições de
engrandecimento e enobrecimento. Ou seja, esta concepção presidia a formação
da monarquia plu ri continental e também organizava a sociedade da América
lusa. Do ponto de vista da política e do político, a ordem sinodal e jurisdicional
caracterizava a dinâmica da governação com suas decisões em conselho, no
centro da monarquia plu ri continental ou nas localidades das conquistas
ultramarinas. A existência de poderes que ocupam e atuam em espaços diversos,
muitas vezes sem limites muito definidos, nos levam a constatar não uma
centralização, mas uma centralidade dos órgãos colegiados da monarquia, dos
vice-reis e governadores gerais e das câmaras municipais. Câmaras essas
assentadas em um pacto político fundado na autonomia do poder local, traços que
podem ser percebidos tanto nos municípios de Salvador, sede do Estado do Brasil
desde o século XVI até meados do XVIII, Luanda ou Goa, quanto no Vice-reino da
índia, por serem implementados e defendidos pela Coroa portuguesa. Na
sociedade americana, o governo das comunidades estava nas mãos dos conselhos
municipais que atuavam como Repúblicas. Aos conselhos camarários cabia a
responsabilidade da administração cotidiana do abastecimento, do comércio
externo e da justiça ordinária, em concorrência com os oficiais da monarquia, que
respondiam pelas diversas responsabilidades que constituíam a administração,
além do governo militar. Na atuação destes governos locais, voltamos a esbarrar
em conceitos e práticas presentes na segunda escolástica, como a casa, o auto-
govemo, a hierarquia estamental e a autoridade do príncipe. A ideia de
pertencimento à monarquia e lealdade ao príncipe fez com que a câmara de
Salvador da Bahia, por exemplo, enviasse recursos para os enfrenta mentos
militares de Mombaça em fins do século XVII (Fragoso e Gouvêa; 2009) e ainda
alguns cidadãos do Rio de Janeiro fossem para o Norte da África para combater o
Islã. Ao mesmo tempo, a monarquia se tomava uma realidade graças à ação
cotidiana de indivíduos, que formavam redes, eram portadores de concepções de
mundo da época e buscavam no império oportunidades de ascensão social e
acumulação material. O mecanismo decisório era totalmente mediado, cabendo ao
Príncipe a preservação daquela ordem hierarquizada e a articulação de jurisdições
das várias partes que compunham o conjunto do corpo social (Fragoso & Gouvêa,
2009). Por isso, os conselhos palacianos, as câmaras municipais e os próprios
agentes do governo não se colocavam de forma passiva, utilizando-se das
fraturas existentes nas regras gerais para atuarem.

1- FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima S.; BICALHO, Maria Fernanda B.


‘Um3 leitura do Brasil colonial: Bases da materialidade e da governabilidade no
Império'. Penélope: Fazer e Desfazer Histôri3, n. 23. Lisboa, 2000. p. 67.

Fonte: http://art.historia.ufrj.br/index.php/home/porqueart

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