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Formação histórica da América Portuguesa: hierarquias sociais, estrutura

econômica e relações de poder (XVI-XVIII)

O debate historiográfico em torno da formação da América Portuguesa – ou, o


Antigo Sistema Colonial – abre, pelo menos, duas frentes de análise, o que acaba
exigindo um posicionamento diante das possibilidades de caminhos para percorrer o
tema em questão. Assim, para o momento, será apresentada uma breve discussão
historiográfica que apresenta modelos explicativos da estrutura econômica com o
objetivo de definir uma lente que torne possível observar, em profundidade, questões
específicas como hierarquias sociais e relações de poder no processo de formação da
América portuguesa.

A reflexão sobre a estrutura econômica da formação histórica da América, por


algumas décadas, foi abordada a partir da ideia de ciclos econômicos: pau-brasil,
açúcar, ouro, algodão, café. Esta forma de abordagem pode levar a distorções da
realidade, simplificando a análise do processo histórico. No caso do açúcar, observam-
se permanências em sua produção, inclusive, sendo concomitante a outros produtos tais
como o ouro, o algodão e o café. A análise na perspectiva dos ciclos isolados exclui da
história não apenas produtos, mas regiões que passam a ser explicadas pela decadência.

Para o início do debate historiográfico, destaca-se a interpretação apresentada na


década de 1960, por Prado Júnior (Formação do Brasil Contemporâneo),onde a
história do mundo colonial é entendida no conjunto das transformações oriundas da
passagem do mercantilismo para o capitalismo, cuja ideia central é a externalidade dos
fatos da colônia, ou seja, a colônia se desenvolvia para a metrópole. O sentido da
colonização é o enriquecimento da metrópole, ou seja, assistir a metrópole. Essa
assistência será construída em cima de um tripé – monocultura, latifúndio e escravismo
– vinculado a um pacto colonial, que faz com que essa colônia só possa comercializar
com a metrópole. O autor observa que, paralelamente, existe um mercado interno
desprezível, que não conta na lógica econômica, já que a lógica econômica colonial é
pra fora.

Já Furtado (Formação econômica do Brasil) aprimorou a explicação de Prado


Júnior, com a inserção do Brasil em um quadro mais amplo da transição do
mercantilismo para o capitalismo. O autor analisa o mercado interno e, mais
precisamente, a relação deste com o externo. Neste caso diverge com Prado Júnior
concluindo que, de fato,existe um mercado interno, mas este é dependente do mercado
externo.Contudo, tanto para o Prado Júnior,quanto para o Furtado, não haveria uma
acumulação endógena de capital na América, isso tudo era para fora do país.

No entanto, foi Novais (A crise do antigo do sistema colonial) quem aprimorou


essa análise baseada no marxismo criando um modelo interpretativo do qual chamou de
Antigo Regime Colonial, que é, praticamente, a mesma ideia do “tripé colonial” do
Prado Júnior. Esse Antigo Sistema Colonial terá como função a “acumulação
primitiva de capital”,que promoverá a revolução industrial. Para isso, o autor identificou
as contradições existentes nas estruturas desse sistema que seriam desenvolvidas a partir
da segunda metade do século XVIII de modo a resultar na dissolução do sistema, ou
seja, na crise do sistema colonial.

Na década de 1980 as críticas a esses autores, ganham nova roupagem em


trabalhos como os de Fragoso e Florentino (Arcaísmo como projeto). Os autores
chamaram atenção para uma série de fenômenos econômico e sociais que escaparam nas
abordagens anteriores. Suas críticas foram montadas em virtude da constatação de que
aquele modelo – Antigo Regime Colonial – não abarcaria a interpretação de uma
realidade mais complexa encontrada nos documentos analisados, por isso, propuseram
outro modelo interpretativo que permitisse observar a complexidade do mercado
interno. Manolo (Em costas negras) demonstrou que o controle do tráfico atlântico de
escravos da época não estava nas mãos do capital mercantil europeu, mas de
negociantes residentes na América lusa, enquanto que Fragoso (Homens de grossa
ventura) observou que outros segmentos da dita economia colonial também estavam
ancorados pelas comunidades de negociantes da Praça do Rio de Janeiro. Portanto, para
o desenvolvimento do tema em questão, o debate realizado a partir da ideia de Antigo
Regime nos Trópicos, que reconhece maior autonomia para a América portuguesa, é
estimulante.

Neste debate, a formação histórica da América portuguesa avança para além da


estrutura econômica, podendo discutir a construção de hierarquias sociais e relações de
poder. Alguns autores têm destaque, como por exemplo, Russell-Wood que trabalha a
ideia de adaptação, de combinação dos elementos metropolitanos com os locais. O autor
analisa como as características administrativas da metrópole foram aplicadas na
América e, com os elementos regionais, locais, constrói-se outro tipo de administração.
Então, isso significa que havia uma lógica própria de funcionamento administrativo; não
era uma camisa de força. Portanto, a sociedade “brasileira” foi sendo definida a partir do
diálogo entre elementos externos (Portugal) e internos (Brasil).

Neste caso, para uma melhor compreensão, Hespanha (Para uma teoria da
história constitucional do antigo regime) também trabalha com a estrutura política
portuguesa na perspectiva jurídica analisando Estado Português. O autor observa que o
Estado português era baseado numa estrutura polissinodal ou corporativa, assim o poder
do rei é relativo, pois a administração não era tão centralizadora. A ideia de monarquia
polissinodal aborda que ultramar como espaço de serviços para a fidalguia e demais
grupos sociais. A monarquia lusa se espalha em diversos territórios, o que permitiu certa
autonomia dos grupos sociais nas colônias. Neste caso, Fragoso (O Brasil colonial)
observa que as elites locais assumiam o controle, ou seja, as nobrezas da terra se
compreendiam como parte de uma monarquia cuja corte localizava-se em Lisboa.

Nuno Monteiro (A comunicação política na monarquia pluricontinental) critica


Hespanha, ao observar que no séc. XVI até o XVII vigora a estrutura polissinodal, no
entanto no séc. XVIII e XIX vai vigorar a estrutura absolutista. A ideia de monarquia
pluricontinental tem estimulado diversos estudos, sendo um debate atual e, como o
próprio Fragoso destaca, em construção.

Souza (O sol e a sombra) observa que as relações políticas da metrópole, em


relação à colônia, vão ser muito mais duras a partir do séc. XVIII e XIX. Com o avançar
dos anos, o aperto vai ser intensificado pela coroa portuguesa. A conjugação escravismo
com indústria açucareira resultou em uma economia complexa: produção para
exportação, produtos de subsistência, como também voltada para o mercado interno. A
partir do século XVIII, há uma dinamização da economia, o que acirra o caráter
escravista da sociedade. É neste momento que a Coroa portuguesa passa a ter maior
controle sobre a sua colônia na América.

Há particularidades na forma de ocupação da América Lusa que exigem atenção


específica. Fragoso sugere, como por exemplo, as alianças com segmentos das
populações indígenas para fazer guerra a outros. Fragoso (Nobreza principal da terra na
república de Antigo Regime) destaca que apesar das diferenças entre Bahia, Rio de
Janeiro e Pernambuco, os mecanismos não foram muito diferentes quanto a distribuição
dos fatores de produção, a montagem da hierarquia e de sua elite local, utilizando-se de
operações militares e aliança com os indígenas. Isso resultou em uma sociedade de base
escravista e comandada por um estamento de conquistadores.

Segundo Monteiro (Negros da terra) a dinâmica interna do Brasil indígena teve


suficiente profundidade e densidade histórica para influenciar de maneira significativa a
formação da colônia, provocando a elaboração de uma política de dominação.
Observação afiançada por outros estudos sobre a participação dos indígenas nesse
processo de formação, tais como, Almeida (Metamorfoses indígenas) Garcia (Diversas
formas de ser índio). O fenômeno das alianças provocou uma remodelação da
estratificação estamental vinda do reino, que passou a considerar a participação de
mamelucos, filhos de conquistadores, na elite dirigente. Estas alianças foram
fundamentais para a constituição de núcleos populacionais e exploração econômica,
sobretudo no século XVI, para a instalação de engenhos de açúcar.

Na década de 1530, a introdução da cana-de-açúcar e o início de uma indústria


açucareira tinham começado a transformar o Brasil, especialmente o litoral do Nordeste,
em uma colônia de assentamento na qual os engenhos, por sua própria natureza e por
sua população racialmente sedimentada, determinavam boa parte da estrutura
econômica e social da Colônia. Segundo Fragoso, em 1587, por volta de 70% dos
engenhos de açúcar estavam nas mãos de homens da administração periférica da Coroa
e da governança da terra, ou seja, os engenhos estavam nas mãos daqueles que
comandaram a conquista da terra e depois responderam pela organização das
instituições básicas que viabilizaram a sociedade tal como era conhecida pelos lusos.

Sociedade cuja estrutura não foi propriamente criada pela grande lavoura
escravista, como observou Schwartz (Segredos internos), mas ligou-se a ela tão
profundamente que as características específicas que introduziu acomodaram-se
facilmente naquela estrutura. Para Schwartz (Segredos internos), ao abordar o mundo
de engenhos, destaca que aquela era uma sociedade escravista, pois estava ligada ao
fluxo externo, vinculada, sobretudo, a Europa e a África, mas que diante da sua
complexidade interna obedecia a sua lógica interna de funcionamento. O autor observa
que a relação colônia-metrópole podia ser prioritária, mas também havia acumulação de
capitalno mercado interno: o comerciante, o lavrador, o senhor de engenho acumulam, o
escravo pode acumular, ou seja, há um mercado voltado para uma acumulação
endógena. Agora, evidentemente, cada um desses acúmulos vai serve para situações
diferenciadas: o senhor de engenho vai acumular para comprar mais escravos, o
comerciante vai acumular para conceder empréstimos aos senhores de engenhos, o
escravo acumula para conseguir sua alforria, o lavrador de cana acumula para um dia
conseguir ser um senhor de engenho.

Segundo Schwartz, Stuart (O Nordeste açucareiro no Brasil colonial) o açúcar


projetou uma forte sombra sobre a história inicial da colônia. Grandes cidades foram
fundadas como portos e centros administrativos para o comércio açucareiro. As cidades
secundárias desenvolviam-se com lentidão, pois os engenhos muitas vezes usurpavam
suas funções econômicas e religiosas. As colheitas de subsistência, a criação de gado, a
guerra contra povos nativos e sua captura e o desmatamento da mata atlântica foram em
certa medida resultado das necessidades da economia açucareira no Nordeste. O mesmo
ocorreu à importação de cerca de meio milhão de africanos no século XVII. A
sociedade brasileira organizou-se hierarquicamente pela cor da pele, ocupando os
brancos o topo da hierarquia, os mulatos, mestiços e outros pardos, o meio, e os
africanos escravizados, a base. Mas havia outras divisões e hierarquias, em matéria de
situação jurídica, etnia, lugar de nascimento, origens religiosas e ocupação. Os
engenhos não criaram essas hierarquias, mas suas estruturas internas, com proprietário
de origem europeia, trabalhadores coagidos, primeiro indígenas, depois africanos, e uma
série de artesãos e outras posições ocupadas por brancos pobres, ex-escravos libertos e
povos de origem mista, tendiam a reforçar e expor as estruturas constituintes da
sociedade. Nesse sentido os engenhos foram ao mesmo tempo geradores e espelho da
sociedade brasileira durante a grande época açucareira.

Se, como viu Schwartz, os senhores de engenho constituíram no Nordeste uma


aristocracia de riqueza e poder que desempenhou e assumiu papéis tradicionais da
nobreza portuguesa, em São Paulo e Minas a situação foi diferente. Segundo Souza (O
sol e a sombra), ao observar a sociedade que se formou na região das minas no século
XVIII, a formação das elites foi regida pela Coroa, mas moldada no local, ao ponto de
não ser possível identificar a origem da nobreza.

Lara (Fragmentos setecentistas) analisando os espaços urbanos enquanto lócus


privilegiado para a afirmação do poder identifica critérios de produção de hierarquias,
partindo da legislação que regulamentava os trajes dos “homens de cor” no império
português. Diante do grande contingente de “homens de cor” nas cidades do Rio de
Janeiro e Salvador na segunda metade do século XVIII a legislação generaliza cada vez
mais os critérios de cor como condição social e não diferencia pretos, pardos e mulatos
ou escravos e libertos. Nesse sentido, embora os critérios hierárquicos relativos aos
trajes pudessem não ser seguros, a associação com a cor generalizada da pele reforçaria
os traços da dominação escravista. A autora reconhece que os critérios do trajar-se
foram incorporados pelos “homens de cor”, inclusive como forma de se afastarem do
universo da escravidão, reforçando as diferenças sugeridas pelas designações quanto à
cor. Mattos (A escravidão moderna nos quadros do império português) ressalta que
critérios de padrões hierárquicos eram recriados para dar conta de um processo de
diferenciação também no interior do segmento de “homens de cor”.

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