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Em seu livro 

A Consciência Conservadora no Brasil Paulo Mercadante procura evidenciar quais


são os matizes da mentalidade conservadora brasileira. Por todos os capítulos da obra
demonstra que inúmeros fatores confluíram para criar um conservadorismo de feições
marcadamente conciliatórias, o que, por sua vez, haveria de distingui-lo constantemente do
conservadorismo europeu.

A “ideologia” da conciliação está presente nos acontecimentos e na dinâmica nacional desde o


período de formação do Reino de Portugal com Dom Afonso Henriques e influiria
consideravelmente na formação colonial do Brasil no século XVI. Além dos antecedentes
histórico-sócio-culturais outros elementos firmariam as bases conservadoras no País como a
filosofia eclética, a escola literária do romantismo, o historicismo e o formalismo jurídicos. Eles
todos dariam ensejo a uma dinâmica conservadora própria que culminaria na conciliação de
situações díspares para se manter a estabilidade e fomentar o progresso.

A começar pelos antecedentes históricos, ainda do surgimento do Reino de Portugal, tendo


como característica marcante a conciliação entre uma dinâmica econômica-expansionista
mercantil e um ideal cruzado, de expansão da fé Católica e do Império.

Por fim, assume o Estado a defesa da fé além de suas fronteiras. A organização feudal-
mercantil, estabelecida, vinha lardeada das características da ideologia senhorial portuguesa.
(MERCADANTE, 1980, p.27)

O pragmatismo português, expresso na “ideologia” de expansão ultramarina, desembocaria na


recém descoberta Terra de Vera Cruz e refletiria no modo de expansão territorial e ocupação
do solo. Essa expansão seria realizada pelas incursões no sertão e seria consolidada com a
instituição dos municípios, sem os quais não haveria a presença concreta das instituições
régias nas novas terras.

As bandeiras carregavam um elemento cavalheiresco, um sentido Cruzado de expansão da Fé


Católica aos gentios que habitam o novo continente. O Bandeirante torna-se assim um
propagador dos elementos característicos do domínio lusitano. Alargando por fim os domínios
às raias do latifúndio, sendo verdadeira autoridade “majestática” no processo de expansão.
(MERCADANTE, 1980).

Este domínio alargado criaria uma situação peculiar: dentro do latifúndio o senhor de terras
mantinha uma autoridade semifeudal, oriunda de sua condição de dono de terras, onde
controlava uma fazenda com produção voltada ao mercado externo (mercantilismo), através
da exploração – principalmente – da cana-de-açúcar e, internamente, adotava um regime de
autossuficiência produzindo toda a sorte de víveres para subsistência sua e de seus escravos e
empregados (MERCADANTE,1980, p. 47). Este sistema político-econômico, marcado por uma
feição dúplice entre mercantilismo nas relações externas de produção e comércio e
autossuficiência das propriedades rurais, transformava cada latifúndio numa “pequena
república”:

A respeito da auto-suficiência de nossos engenhos, reportava-se Frei Vicente do Salvador a um


bispo de Tucumã que, de passagem pelo Brasil, observava que quando mandava alguém
comprar um frangão, quatro ovos e um peixe para comer, nada lhe traziam, porque não se
achavam na praça nem no açougue; se mandava pedir as mesmas coisas e outras mais às
casas particulares, mandavam-lhas. “Verdadeiramente”, comentava, “nesta terra andam as
coisas trocadas porque ela toda não é república, sendo-o cada casa.” (MERCADANTE apud
Paulo Prado, 1980, p.48).
  Deste modo, já havia durante o processo de expansão territorial portuguesa na América a
necessidade da conciliação econômica. Conciliação esta que se faria novamente no processo
de Independência, quando os proprietários rurais optavam pelo liberalismo econômico nas
relações externas de comércio e ao mesmo tempo, internamente, mantinham o sistema
escravagista, que lhes era benéfico. Forçavam assim uma atenuação do ímpeto dos liberais
radicais no País.

Quando a ruptura com as Cortes em Lisboa ocorre em 7 de setembro de 1822, marcando o


processo de independência do Brasil, surge a necessidade de dissociar o que seria a
nacionalidade brasileira dos mais de três séculos de união com Portugal. Por conta disso a
escola literária do Romantismo torna-se mais um elemento no caldo do conservadorismo
brasileiro.

O Romantismo surge como uma reação a experiência de ascensão da burguesia francesa


(CARPEAUX, 2010). Tendo, portanto, uma atitude temerosa em relação ao Iluminismo, sua
dinâmica e seu ideário. Adota assim, em sua origem, os elementos essenciais para solidificar
no imaginário nacional o conservadorismo de conciliação.

Ao invés de considerar a sociedade e o Estado como resultantes de relações contratuais, o


romantismo os vê como unidade espiritual; prefere as mudanças imperceptíveis que se
acumulam silenciosamente, repelindo as transformações violentas provocadas pelas rebeliões;
coloca a superioridade dos costumes como sedimentação da consciência jurídica de um povo e,
em lugar de um Direito Natural comum a todas as épocas e a todas as latitudes, estatui que
todas as normas de comportamento se vinculam necessária e historicamente a cada nação,
apropriadas às circunstâncias históricas e sociais de cada uma. Todavia, o conteúdo
doutrinário do romantismo não deve ser visto apenas como reação infrangível ao espírito do
século XVIII. Constituía uma posição conservadora(…) (MERCADANTE, p.232, 1980).

A literatura romântica daria o tom do nascente nacionalismo brasileiro, cuidando em exaltar a


paisagem, a extensão da terra e suas possibilidades (o país do “futuro”). Dando forma, pois, a
um nacionalismo que elevava a classe dos grandes latifundiários ao status de verdadeiros
portadores do progresso e das legítimas aspirações nacionais (MERCADANTE, 1980, pp.
12,169,).

Soma-se ao conjunto de fatores pró-conciliação a filosofia eclética, ou, simplesmente,


ecletismo que tinha como figura principal Victor Cousin, tendo a obra deste sido estudada e
debatida no Brasil ainda na década de 1870 (MERCADANTE, 1980, p.208).

Em suma, a filosofia eclética ensinava que ao longo da história podia-se observar,


basicamente, quatro sistemas filosóficos: o sensismo, o idealismo, o ceticismo e o misticismo.
Como seria demasiadamente longa a exposição destes sistemas, para fins deste trabalho,
basta ressaltar que cada um deles tenta explicar diversos fenômenos com um foco específico,
acabando por desprezar ou ignorar outras realidades do pensamento (MERCADANTE, 1980,
p.211). O raciocínio eclético quanto aos sistemas filosóficos pode ser exposto da seguinte
maneira:

Todos são falsos, pois, se tomados isoladamente. Mas cada um deles é verdadeiro no que
afirma e falso no que nega. Sendo o erro uma verdade incompleta, encontram-se, em todos os
sistemas, parcelas de verdade, que corretamente reunidas num todo passam a constituir a
verdadeira filosofia, conciliação de todos esses sistemas diferentes (MERCADANTE, 1980,
p.211).
No Brasil, tal maneira de pensar eclética caía como uma luva numa nação que demandava
conciliação e que, pelos fatores anteriormente expostos, também lhe era pré-disposta. Esta
cultura de reduzir todos os sistemas de ideias a quatro tipos e daí tirar-lhes o que é verdadeiro
e rejeitar-lhes o que é falso não produziu implicações apenas acadêmicas. Pode-se ver que ela
foi aplicada ao campo das decisões mais pragmáticas, ao campo da política, mesmo para
resolver os mais sérios problemas sociais da sociedade imperial.

O modo pelo qual se processou o processo de abolição da escravatura no País exemplifica bem
a pragmática eclética. O modelo escravocrata sustentava a elite dos senhores rurais, os
mesmos que “encarnavam os interesses da nação”. A abolição repentina do sistema trazia uma
série de riscos como a incorporação dos cativos à sociedade livre e os prejuízos comerciais que
a indústria rural sofreria por perder o capital e a mão de obra escrava. Esta dupla perda que
sofreriam os senhores rurais, que economicamente não podia ser ignorada, gerava o risco de
uma séria revolta ou a repetição aqui do que ocorrera na Guerra de Secessão norte-americana.

Para contornar as potenciais situações explosivas de uma emancipação repentina e lograr o


objetivo da libertação completa, optou-se primeiro por estudar os modelos emancipatórios de
outros países para que se pudesse escolher o caminho mais viável para o Brasil, elegendo
assim uma política eclética que combinava ferramentas de diversos modelos de abolição –
tanto imediatos como graduais – além de medidas preparatórias, devidamente adaptadas ao
nosso contexto, sem condenar previamente nenhum deles (MERCADANTE, 1980, pp.163-164).

Soma-se aos elementos anteriormente descritos o Direito Privado possuindo dois eixos
principais de atuação o historicismo e o formalismo jurídicos.

Em primeiro lugar o Historicismo Jurídico surge como reação ao racionalismo e


enciclopedismo, contra toda a metafísica dos revolucionários franceses. “O Direito é
determinado, antes de tudo, pelo caráter de uma nação, pelo Volksgeist. Desprezado o
conceito de um direito produto da razão, o historicismo jurídico fazia-o derivar do espírito do
povo.” (MERCADANTE, 1980, pp.232-233). Este Volksgeist como elemento primordial de uma
nação faz eco ao movimento romântico que busca criar um imaginário do que seria o povo
brasileiro, no caso, seus ideais, natureza e aspirações. É o Direito incorporando a alma da
nação.

Em segundo o Formalismo Jurídico ergueu uma nobilitas jus, uma aristocracia de bacharéis em


Direito que viria a unir senhores rurais e acadêmicos. Tal “união” representava, de certo modo,
a natureza conciliatória do desenvolvimento político do Brasil: uma elite que se empolgava
com enciclopedistas e radicais iluministas se convertia em defensores do romantismo e da
restauração (MERCADANTE, 1980, p.233). O formalismo viria a sedimentar ou confirmar os
pontos defendidos pela escola romântica, a filosofia eclética, o historicismo jurídico e a
natureza dual da economia da época: “Emanava o ponto de vista da ficção de que os juristas
ocupavam um status especial como representantes do Volksgeist. Pois o formalismo jurídico a
serviço das reformas graduais seria o substitutivo pragmático do caráter normativo da
programática radical.” (MERCADANTE, 1980, p. 230).

Da soma de todos os fatores e elementos surge uma definição do pensamento conservador no


Brasil, conforme exposição de Firmino Rodrigues da Silva:

A ideia conservadora é inseparável de todas as instituições, em todos os tempos e fases da


civilização. É a primeira que surge no dia seguinte ao das revoluções para firmar-lhe as
conquistas. Sem ela a sociedade giraria desnorteada, como no espaço os corpos privados do
centro de gravitação . . . Nos domínios da razão e da consciência este instinto se traduz no
desejo de conservar o bem que possuímos; de não abandonarmos irrefletidamente o certo pelo
duvidoso; de não caminharmos para o desconhecimento senão à luz da experiência dos fatos
sucessivos, das ideias encadeadas como nas ciências exatas chegamos . . . A ideia
conservadora não é a imobilidade chim, nem a fatalidade islamita. Não exclui o movimento
pela mesma razão por que o não considera a única condição de aperfeiçoamento do ente
moral, indivíduo ou sociedade . . . O movimento é portanto, uma lei de sua conservação, como
de todo criado, e o progresso não é senão o movimento, na ordem moral e intelectual.
(MERCADANTE apud SILVA, 1980, p. 244).

Um conservadorismo que buscava evitar concussões, revoltas e rupturas, sedimentar a união


do País e ao mesmo tempo proporcionar-lhe desenvolvimento de modo responsável, fazendo
reformas sempre que se entendiam como necessárias, apesar dos inúmeros fatores
socioeconômicos desfavoráveis. Este é o pensamento conservador que esteve em ação para
formar o Brasil ante todos os desafios. Na presente situação em que se encontra nossa nação
precisamos resgatar este pragmatismo, esta habilidade de enfrentar situações contraditórias e
desfavoráveis e delas tirar o melhor. É esta a consciência que o conservadorismo brasileiro
contemporâneo precisa desenvolver para o bem da nação.

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