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A formação da opinião pública (parte 1)

 PorFlavio Gordon

Leitura de uma obra de Voltaire no salão de Madame Geoffrin, em pintura de Anicet Charles
Gabriel Lemmonier.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

“Os ratos lá estavam antes do queijo, os jacobinos antes da Revolução. Não é de 89, é de 1770,
ou de antes ainda, que datam esses costumes e esses princípios estranhos. Considerai o grande
fato histórico do século 18: a vinda ao mundo e ao poder das sociedades de
pensamento” (Augustin Cochin, As Sociedades de Pensamento e a Democracia)

“Cada um está ali como num teatro, desconhecido entre desconhecidos, sujeito a impressões
sensacionais e fortes emoções, presa do contágio das paixões em torno, imersa no redemoinho
de frases de efeito, notícias fabricadas, rumores crescentes e outros exageros pelos quais os
fanáticos instigam-se uns aos outros” (impressões do escritor britânico Arthur Young sobre um
dia típico no Palais Royal, epicentro da agitação pré-revolucionária na França do século 18)

“A Revolução não foi um fenômeno de revolta, operando de baixo para o alto, mas um
fenômeno de demissão e de abdicação, partindo de cima para baixo” (Charles
Maurras, Reflexões sobre a Revolução de 1789)

Diante da minha quase obsessão em apontar a corrupção intelectual como causa da maioria
das nossas mazelas – mania que me levou a escrever um livro sobre o assunto –, não são
poucos os amigos e conhecidos que me lançam a seguinte objeção: “Mas você acha que
alguém dá ouvidos a um punhado de intelectuais? Como eles poderiam influenciar nossa
realidade macropolítica se quase ninguém os lê ou compreende as suas ideias?” Posto que
pertinente, a pergunta traduz uma incompreensão (infelizmente, generalizada) sobre o
processo de formação da opinião pública, entendida aqui no sentido que lhe conferiu a
cientista política Elisabeth Noelle-Neumann: o conjunto de opiniões que podemos manifestar
em público sem medo do isolamento social. Pretendo, neste e no próximo artigo, ajudar a
sanar essa incompreensão.

O conceito moderno de “opinião pública” surgiu na França do século 18, pari passu ao


aparecimento do intelectual público tal como hoje o conhecemos, e trouxe consigo suas
marcas culturais de origem. Fosse na literatura de ficção (em obras como, por
exemplo, Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos), fosse nos escritos de Voltaire e
Rousseau, a expressão aparecia naquele contexto histórico invariavelmente com um mesmo
sentido, designando uma espécie de tribunal coletivo de cuja desaprovação o indivíduo
precisava se proteger a todo custo.

“A opinião reina sobre todos os espíritos. Os príncipes a respeitam, lhe estão submetidos. É
ela quem dita as leis na cidade, na corte e até no palácio dos reis.”

Jacques Necker, ministro das Finanças de Luís XVI

Com efeito, basta consultar o que diziam à época alguns dos mais destacados políticos e
homens de letras (funções que, na França, sempre estiveram mais misturadas do que em
qualquer outra parte) para constatá-lo. Homens como, por exemplo, Jacques Necker, ministro
das Finanças de Luís XVI: “A opinião reina sobre todos os espíritos. Os príncipes a respeitam,
lhe estão submetidos. É ela quem dita as leis na cidade, na corte e até no palácio dos reis”. Ou
o enciclopedista Charles Pinot Duclos, segundo quem “as gentes do espírito [i.e., os
intelectuais públicos, os formadores de opinião] é que detêm o poder na França”. Ou ainda,
um pouco mais tarde, Napoleão Bonaparte: “Nada resiste a essa força invisível e misteriosa
que se chama opinião pública”.

Mas poucos descreveram tão bem aquele fenômeno cultural – e os caminhos pelos quais
desembocou em eventos políticos dramáticos como a revolução – quanto o historiador francês
Augustin Cochin, infelizmente pouco lido no Brasil (e, creio, nem sequer traduzido para o
português). Em sua obra-prima sobre as origens culturais da Revolução Francesa, As
Sociedades de Pensamento e a Democracia (1921), o autor faz uma descrição minuciosa da
“República das Letras”, o ambiente social em que foram forjadas as ideias e, sobretudo, as
sensibilidades revolucionárias. Em suas palavras:

“Não falo daqueles, os  bons vivants  de 1730, mas dos enciclopedistas da era seguinte. Estes
são graves: e como não sê-lo, quando se está certo de que o alvorecer do espírito humano data
do seu século, da sua geração, de si próprio? A ironia substitui a alegria; a política, os prazeres.
A brincadeira vira profissão; o salão, um templo; a festa, uma cerimônia; o clube, um império,
do qual lhes mostrei o vasto horizonte: a República das Letras. E o que se faz nesse país? Nada
além, antes de tudo, do que se fazia no salão de Madame Geoffrin: causa-se. Vai-se ali para
causar, não para fazer; toda essa agitação intelectual, esse imenso tráfico de discursos,
escritos e correspondências não conduz ao mais mínimo começo de trabalho, de esforço real.
Trata-se apenas de ‘cooperação de ideias’, de ‘união pela verdade’, de ‘sociedade de
pensamento’”.

VEJA TAMBÉM:
 A miséria do debate intelectual no Brasil: um estudo de caso (parte 1)

 A miséria do debate intelectual no Brasil: um estudo de caso (parte 2)

Cochin mostra como a associação era o valor primordial entre os philosophes. Daí sua sugestão
de que, para se compreender a verdadeira natureza do fenômeno revolucionário, seria preciso
proceder a uma análise sociológica dos clubes e salões, a fim de compreender a fundo os
mecanismos de sociabilidade e coesão da casta intelectual. Para Cochin, a filosofia iluminista
seria, então, o resultado necessário e inconsciente de certas “condições materiais de
associação”. Assim, nas expressões da época acima citadas – “cooperação de ideias”, “união
pela verdade” e “sociedade de pensamento” –, a ênfase deve ser posta nos primeiros
termos: cooperação, união e sociedade importam mais que as ideias, a verdade e o
pensamento. Aquelas convertem-se em finalidade; estes, em pretexto. Nas palavras do autor:
“A ‘regeneração’, o ‘progresso das luzes’, são um fenômeno social, não moral ou intelectual...
Trata-se de um exercício de pensamento cuja meta aparente é a busca da verdade, mas cujo
interesse real é a formação do adepto”. Cochin continua:

“Não é indiferente que um tal mundo se constitua, se organize e permaneça: pois seus
habitantes reúnem-se à força das coisas postas sob um outro ponto-de-vista, sob outra
inclinação, diante de outras perspectivas que não as da vida real.  Esse ponto-de-vista é o da
opinião, ‘a nova rainha do mundo’, disse Voltaire, que saúda a sua chegada na cidade do
pensamento. Enquanto que, no mundo real, o juiz de todo pensamento é a prova, e a sua
meta, o efeito,  nesse outro mundo o juiz é a opinião dos outros, e a sua meta, a confissão. E se
naquele mundo o meio é a realização, o ‘trabalho’, nesse é a expressão, a fala. Todo
pensamento, todo esforço intelectual só existe aqui  mediante o consentimento. É a opinião
que faz o ser. É real o que os outros veem, verdadeiro o que dizem, bom o que aprovam.
Assim, a ordem natural é invertida: aqui a opinião é causa, e não, como na vida real, efeito. O
parecer toma o lugar do ser; o dizer, o lugar do fazer”.

E vai além: “Antes do Terror sangrento de 1793, já havia, de 1705 a 1780, na ‘república das
letras’, um terror seco, do qual a Enciclopédia foi o Comitê de Salvação Pública, e d’Alambert, o
seu Robespierre. Ele ceifa reputações como o outro ceifa cabeças; sua guilhotina é a
difamação”.

Na França do século 18, as ideias em discussão eram meros meio e instrumento para o
recrutamento e a organização de militantes para o partido dos intelectuais iluministas

Se Cochin tem razão, não é exagero dizer que, na França do século 18, as ideias em discussão
eram meros meio e instrumento para o recrutamento e a organização de militantes para o
partido dos intelectuais iluministas. Mas esse partido só pôde crescer por uma razão de ordem
prática: durante o século 18, havia emergido na França um vasto público leitor, ávido por
consumir as opiniões filosóficas e culturais da moda. Ao contrário do que muita gente acredita,
o índice de alfabetização em Paris na época era relativamente alto. O público leitor da capital
francesa havia crescido exponencialmente ao fim do Antigo Regime. Pesquisando em
documentos de cartório na época (sobretudo testamentos e procurações), o historiador Daniel
Roche descobriu números impressionantes.
Em Montmartre, por exemplo, onde quase metade dos signatários dos documentos pertencia
às classes de artesãos e serviçais, 74% dos homens e 64% das mulheres podiam assinar os seus
nomes. Na Rua Saint-Honoré, habitada por gente da baixa burguesia, os índices de
alfabetização chegavam a 93%. Em outras palavras, os índices de alfabetização na França de
fins do século 18 eram maiores que os dos EUA em fins do século 20 (as chamadas “pequenas
escolas” conduzidas por missões católicas nos séculos 17 e 18 haviam feito um bom trabalho).

Portanto, contrariando a interpretação marxista vulgar, o fato é que o público consumidor das
novas modas filosóficas que serviram de combustível ao subsequente incêndio revolucionário
compunha-se de membros de todas as assim chamadas “classes” sociais ou “ordens” do Antigo
Regime. Havia uma certa comunhão geral em torno das novas ideias oriundas dos salões e dos
clubes. Seguiremos daí na semana que vem.

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