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I
DA VIDA PRIVADA
4
Da Devolução francesa
ã Primeira Guerra
Organização:
MICHELLE PERROT
Tradução:
DENISE BÜITM ANN (partes 1 e 2)
c BERNARDO JOFFtLY (partes 3 c 4)
10a. reimpressão
C o m p a n h ia D as L e t r a s
REVOLUÇÃO FRANCESA
E VIDA PRIVADA
Lynn H u n t
Uma das últim as ' ‘jornadas gantes!” , exclama Chabot. ‘‘Todo o resto é o partido do povo.” Essa preo
revolucionárias. O povo sans-culotte cupação obsessiva em manter os interesses privados à distância da vida
invade a Convenção. A presença pública logo virá, paradoxalmente, a apagar as fronteiras entre o público
efetiva das m ulheres tam bém fa z
e o privado.
parte das representações m íticas da
Os termos ‘‘aristocrata” e ‘‘sans-culotte" assumiram uma acepção
violência sangrenta. (Jornada do
primeiro Prairial do ano III. Ferraud, política: um sans-culotte, caso esmorecesse em seu ardor revolucionário,
representante do povo, assassinado na poderia ser chamado de aristocrata; dessa forma, o caráter privado se
Convenção nacional. Paris, Biblioteca revestiu de um sentido político. Em outubro de 1790, Marat denuncia
Nacional. ) a Assembléia Nacional como ‘‘quase totalmente composta de antigos
nobres, prelados, togados, cortesãos, oficiais, juristas, homens sem alma,
sem costumes, sem honra nem pudor; inimigos da Revolução por princí
pio e por condição”. A maioria dos legisladores “ é composta tão-somente
de velhacos manhosos, de charlatães indignos” . Eram ‘‘homens corrup
tos, astutos e pérfidos” (L’A m i du Peuple [O Amigo do Povo]). Não
bastava errar de campo político; era preciso ainda que faltassem as quali
dades humanas mais elementares. Se o homem público não defendia
a Revolução de maneira satisfatória, o homem privado só podia ser
corrupto. Marat abriu o caminho, outros o seguiram. Em 1793, um pan
fleto bastante medíocre definia o ‘‘moderado, feuillant, * aristocrata” como
‘‘aquele que não melhorou a Sorte da Umanidade miserável e patriota,
tendo Notoriamente os meios para isso. Aquele que não usa por ruin-
(*) No período revolucionário, chamavam-se fe u illa n ts os moderados ou consti-
tucionalistas, por terem a sede de sua associação em Paris no antigo convento dos frades
bernardos {feuillants). (N. T.)
REVOLUÇÃO FRANCESA E VIDA PRIVADA 23
Página anterior:
N a elaboração das novas aparência,
são m obilizados os principais norm
D avid desenha em 1794 um projet
de indum entária para os funcionar,
m unicipais, onde convergem todos
os tipos de influências: A ntigüidaa
Renascença, civism o republicano.
(Louis D avid, A veste dos
funcionários municipais com
a echarpe. Versalhes, M useu
de H istória.)
26 ERGUE SE A CORTINA
A s ‘'Senhoras de O rléans' ’ desfilam no: “ Nenhuma pessoa, de qualquer sexo, poderá obrigar qualquer ci
em ordem , com flo r no chapéu dadão ou cidadã a se vestir de uma maneira particular [...] sob pena
e portando fu zis. Mescla deliberada
de ser considerada e tratada como suspeita’’.
de atributos e funções no espaço
extrem am ente organizado das festas
No entanto, essas discussões na Convenção mostram que tal de
de 1793■ (Paris, Biblioteca N acional.) creto se dirige principalmente ás associações femininas cujas partici
pantes usavam toucado vermelho e forçavam as outras mulheres a imi
Página ao lado: tá-las. Aos olhos dos deputados, nesse auge de radicalidade revolucio
Jovem francesa vai ao Campo de
nária — o momento da descristianização —, a politização da indumen
Marte se exercitar. (Paris, Biblioteca
N acional.)
tária ameaçava subverter a própria definição da ordem dos sexos. O
Comitê de Segurança Geral temia que os debates sobre o vestuário
Toucados ‘‘estilo C onstituição fossem resultantes da masculinização das mulheres: “ Hoje se exige o
para essas m ulheres m etodicam ente barrete vermelho: não vão parar por aí; logo exigirão o cinto com pis
' 'patriotas'' que se m antêm em seus
tolas” . Mulheres armadas nas longas filas do pão seriam bem mais
papéis de mães de fam ília honestas
e beneficentes, Ar associações
perigosas; e o pior era que fundavam associações. Fabre d ’Eglantine
fem ininas foram fechadas pelo observou que “ essas sociedades não são absolutamente compostas de
decreto de 9 Brumário ano II mães de família, de moças de família, de irmãs que cuidam de seus
(novem bro de 1793), como contrárias irmãozinhos menores, e sim de uma espécie de avencureiras, de cava
ao papel param ente privado das
leiras andantes, de jovens emancipadas, de mocetonas de modos livres e
m ulheres. (Le Sueur. Clube patriótico
das mulheres. Paris, M useu
soltos”. Os aplausos que o interromperam mostram que ele havia tocado
Cam avalet.) na corda sensível dos deputados; todas as associações femininas foram su
primidas, pois iam contra a “ordem natural” , na medida em que “eman
cipavam” as mulheres de sua identidade exclusivamente familiar (priva
da). Como dizia Chaumette: “ Onde já se viu que a mulher abandone
os cuidados do lar, o berço dos filhos, para ir à praça pública, discursar na
REVOLUÇÃO FRANCESA E VIDA PRIVADA 27
i
28 EKGUESE A CORTINA
Os novos rituais do casam ento a cerimônia, para ser legal, devia se realizar na presença de um funcionário
laicizado acentuam o p a p el da municipal. No Antigo Regime, o casamento consistia na troca do “ sim”, e
concordância m útua e da autoridade
o padre desempenhava apenas o papel de testemunha desse mútuo consen
pública, Mas o religioso sobrevive nos
sím bolos: o altar, a deusa (a Razão?), timento. Pelo importante decreto de 20 de setembro de 1792, um funcio
o olho do Ser Suprem o. (Acima: nário ficou encarregado do estado civil, devendo também declarar o casal uni
O voto conjugal; na outra página: do perante a lei. Desse momento em diante, a autoridade pública assumiu
G uarda nacional casando-se perante
uma participação ariva na formação da família. O Estado definiu os impe
o Ser Supremo. Paris, Biblioteca
N acional.)
dimentos à união, restabeleceu e regulamentou o processo de adoção, de
terminou os direitos (depois seriamente restringidos pelo Código Civil) dos
filhos naturais, instituiu o divórcio e limitou o poder paterno, em parte com
o estabelecimento de tribunais de família (que foram suspensos em 1796,
embora o Estado tenha continuado a limitar o poder paterno, prindpalmente
em questões de deserdamento). Ao tentar fundar um novo sistema de edu
cação nacional, a Convenção partia do princípio que os filhos, como dizia
Danton, “ pertencem à República antes de pertencerem a seus pais”. O pró
prio Napoleão insistiu para que “ alei tomasse a criança ao nascer, atendes
se â sua educação, preparasse-a para uma profissão, regulamentasse como e
sob que condições poderia se casar, viajar, escolher um estado”.
A legislação da vida familiar mostra as preocupações heterogê
neas dos governos revolucionários; tratava-se de conservar o equilí
brio entre a proteção da liberdade individual, a preservação da uni-
REVOLUÇÃO FRANCESA E VIDA PRIVADA $
ü s estatísticas mais áridas vez por outra revelam histórias tristes: em Lyon,
um quarto dos que pedem divórcio por abandono se queixam de não ver
o cônjuge há dez anos ou mais! Metade dos cônjuges tinha deixado o lar
cinco anos antes, ou mais. A Revolução ofereceu a oportunidade de lega
lizar uma situação de fato, numa realidade que envolvia problemas eter
nos. Homens e mulheres citam o abandono e a incompatibilidade em
proporções praticamente iguais, mas — será de se admirar? — são as mu
lheres que, na maioria das vezes, invocam as sevícias. As atas dos tribu
nais de família e, posteriormente, dos tribunais civis estão repletas de his
tórias de maridos que batem nas mulheres, muitas vezes ao voltarem das
tavernas, com socos, vassouradas, atirando pratos, ferros de passar e por
vezes chegando a facadas.
A legislação sobre o divórcio não foi concebida apenas para libertar
o indivíduo das coerções de uma situação doméstica deplorável. O casal
infeliz devia proceder por intermédio de um tribunal de família ou de
uma assembléia familiar, conforme o motivo do divórcio. Essa instância
se compunha de parentes (ou de amigos, caso não houvesse parentes) es
colhidos pelos dois cônjuges, para julgar da aceitabilidade do pedido, pa
ra tratar dos acertos financeiros e da guarda dos filhos. Ao que parece,
aceitava-se o divórcio de bom grado, já que apenas um terço e às vezes
a metade dos pedidos não eram consumados (certamente devido a pres
sões familiares). O número de casos de concessão do divórcio é surpreen
dente, considerando-se a novidade do procedimento e a resistência da Igre
ja. Mesmo os bispos juramentados só aceitavam o divórcio sob a condição
de que nenhum dos cônjuges tornaria a se casar enquanto o outro estives
se vivo. Todavia, cerca de um quarto dos homens e mulheres divorciados
tornaram a se casar (depois de 1816, a Igreja passou a reconhecer o segun
do casamento, desde que o anterior tivesse sido apenas civil, pois esse ti
po de casamento não tinha qualquer valor a seus olhos). Os pedidos de
divórcio raramente resultavam em conflitos pela guarda dos filhos, de um
lado porque a maiocia dos solicitantes já não tinha filhos pequenos (60%
dos casais registrados em Lyon e Rouen não tinham filhos menores de ida
de), e de outro lado porque nem os tribunais nem os país consideravam
os filhos como parte integrante da célula familiar. Ademais, são raras as
referências aos filhos nos depoimentos dos casais ou nas discussões dos
tribunais: igualmente raros são os questionamentos das decisões relativas
à guarda dos filhos; quando citam os filhos, os casais frequentemente nem
A q u i, a m u lh er desem penha seu sequer mencionam os nomes deles ou, às vezes, nem dizem quantos são.
p a p el de m ensageira e ligação entre As formalidades do divórcio nos oferecem uma das raras vias de
o interior e o exterior da prisão.
acesso à sensibilidade privada durante a Revolução. Ê impossível dizer
O cesto da dona de casa tam bém e
um a arma. (A nônim o, m iniatura em
até que ponto a vida afetiva sofreu transformações. Nougaret conta a
m arfim , 1796. V izille, M useu da história de uma moça que engravidou de um amante casado. Para pro
Revolução Francesa.) teger a honra de sua filha, a mãe da jovem anuncia que é ela mesma
kevoluçAo francesa e vida privada
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que está grávida; assim, as duas podem se retirar para o campo, até o mo
mento do parto. Esta mãe exemplar de Paris ou le ndeau levé [Paris ou
as cortinas levantadas] -(ano VIII) não parece muito atingida pela expe
riência revolucionária. Os problemas vividos no casamento eram, decer
to, os mesmos dos anos anteriores a 1789. A Revolução certamente não
inventou as sevícias contra as mulheres. Mas a possibilidade de divórcio,
por si só, deve ter exercido uma influência sobre o casamento. A partir
de então, podiam existir mulheres como a lionesa Claudine Ramey, que
queria deixar o marido porque “ não podia ser feliz com ele’’. Para mui
tos, o amor devia ser a base do casamento. E o próprio casamento recru
desceu durante a Revolução: de 239280 sob Luís XVI, o número anual
de matrimônios passou para 327 mil em 1793. Mas nem todos se casavam
por amor: a proporção de casamentos em que o marido tinha menos de
25 anos, sendo dez anos mais novo que a mulher, passou de 9% ou 10%
para 19% em 1796: o casamento não era a melhor maneira de escapar
ao recrutamento?
VIDA PRIVADA = E muito difícil expor a concepção da vida privada dos próprios revo
VIDA SECRETA lucionários. As memórias das grandes figuras políticas são espantosamente
impessoais; são quase inteiramente dedicadas à vida pública, tal como
as memórias de seus predecessores do Antigo Regime, e, em sua maioria,
os aspectos da vida privada — o amor, as relações conjugais, a saúde —
permanecem na sombra, como se não guardassem nenhum vínculo com
a grande experiência de criação de uma nova nação. Mesmo as memórias
escritas muito posteriormente observam esses mesmos princípios. La
Réveilière-Lépeaux, que escreveu suas memórias por volta de 1820 e con
sagrou muitas passagens de grande romantismo a seus primeiros amores,
reserva apenas um capítulo de seus três volumes para sua “ vida privada
antes da Revolução’’. A vida privada parece findar com a Revolução e re
começar apenas quando se abandona a vida pública. “ Uma das circuns
tâncias notáveis da [sua] vida privada” foi seu encontro de juventude com
o futuro deputado Leclerc (de Maine-et-Loire) no colégio de Angers. A
experiência da vida pública sob a Revolução parece ter tingido todas as
suas recordações do passado. Os únicos fragmentos de vida privada que
La Réveilière-Lépeaux comenta em suas Mémoires [Memórias] são os gran
des acontecimentos de sua vida familiar: a busca de uma esposa e seus
sentimentos por ela e pelos filhos. Quando relata em detalhes sua expe
riência revolucionária, ele elimina tudo o que não seja opinião política.
O público e o privado não se misturam.
A própria madame Roland escreve de maneira convencional. Sa
bendo que iria ser guilhotinada, ela escreveu suas Notices bistoriques
sur la Révolution [Notícias históricas sobre a Revolução], que, como
as memórias dos homens políticos, constituem uma espécie de diário
político. Mas, ao mesmo tempo, ela também recorreu a seus anos de
juventude para as M.émoires, que concebia como um testemunho sobre
REVOLUÇÃO FRANCESA E VIDA PRIVADA 43
sua história privada: “ Eu me proponho empregar o tempo livre de meu
cativeiro para recordar o que me é pessoal”. Nessas páginas, ela descreve
pormenorizadamente sua vida com os pais e dá mais vazão a seus senti
mentos privados do que La Révellière-Lépeaux. Sente uma imensa dor
com a morte da mãe; fala com um desprendimento muito maior sobre
suas primeiras impressões de monsieur Roland: “ Sua gravidade, seus cos
tumes, seus hábitos, inteiramente consagrados ao trabalho, levavam-me
a considerá-lo, por assim dizer, sem sexo, ou como um filósofo que existia
somente pela razão”.
Em suas cartas da década de 1780, madame Roland havia consegui
do mesclar um intenso interesse pelos acontecimentos políticos e um fas
cínio constante pelos detalhes da vida cotidiana. Mas o tempo se acelera
e, completamente absorvida por sua vida pública nos anos seguintes, ela
jamais se tornará a madame de Sévigné da Revolução, com um engaja
mento nos assuntos do momento que não mais lhe permite manter uma
correspondência de lazer. Mas ela soube reconhecer prontamente o im
pacto da Revolução sobre a vida privada; em 4 de setembro de 1789, es
crevia: “ Se um homem honesto pode seguir o facho do amor, é apenas
depois de tê-lo acendido ao fogo sagrado do facho da pátria”. O ano de
1789 é a grande divisória de sua vida privada, tal como o foi para a políti
ca nacional. Suas Mémoiresparticuliers [Memórias particulares], maistpes-
soais, cobrem apenas o período que vai até a Revolução. Mesmo sabendo
que vai morrer, madame Roland dá curso a seus sentimentos pela filha:
“ Que ela consiga um dia cumprir, na paz e na sombra, õ^dever comoven
te de esposa e mãe’ A participação na vida pública tinha anulado a vida
privada dessa mulher; ela esperava que sua filha tivesse: um destino di
ferente.
O pouco que se sabe sobre os sentimentos íntimos das pessoas entre VIVER
E MORRER
1790 e os primeiros anos do século XIX revela uma grande preocupação,
SOB A REVOLUÇÃO
em primeiro lugar, pelo desenrolar da Revolução e, a seguir, pela edifica
ção do Império. Cada um é atingido de alguma maneira* =— os filhos par
tem para a guerra, os padres são deportados, as igrejas sé tornam locais
civis antes de serem reconsagradas, as terras são vendidaj èm leilão, e de
pois readquiridas pelas famílias emigradas que.retornam-a França, os ca
samentos não são mais celebrados da mesma maneira e o divórcio se tor
na possível. Mesmo os nomes sofrem essa influência. Principalmente en
tre 1793 e 1794, os filhos se chamam Brunis, Mucius-Scaevola, Péricles,
Marat, Jemmapes e até Nabiça, Beterraba ou Messidrice. São principal
mente os meninos que recebem nomes revolucionários, e os ilegítimos
ou abandonados numa proporção maior do que os outros. A moda dos
nomes revolucionários passou depressa, depois do ano II, mas no começo
do século XIX ainda se encontravam aqui e ali alguns Prairial, Epicuro-
Demócrito ou Maria-Liberdade. Os nomes veiculavam tradições públicas.
44 ERGUE-SE A CORTINA
Local privilegiado da liberdade de Pode-se também ver a preocupação com os acontecimentos revolu
expressão e da libertinagem no fin a l cionários nos excertos de cartas e fragmentos autobiográficos escritos por
do A n tig o Regim e, o Palais-Royal
pessoas menos ilustres. Ménétra, oficial de vidraceiro parisiense, relatou
conserva esse p a p el durante a
Revolução, deslocando-o a seguir para em seu diário sua experiência pessoal da vida revolucionária. Mesmo sen
o com ércio privado. A í se fazem do uma visão pessoal, não raro ele emprega a linguagem dos termídoria-
todos os tip o s de negócios: neste caso, nos: “ O francês respirava apenas sangue [.„.]. [A Convenção sob Robes-
d e anim ais, m as tam bém de
pierre não passava] de um antro de delatores, de homens vingativos pro
encantos. (Louis Léopold Boilly,
G aleria do Palais-Royal. Paris, M useu
curando destruir um partido para colocar outro em seu lugar”. Em suas
Carnavalet.) cartas ao irmão, o livreiro parisiense Ruault mostra as oscilações da políti
ca parisiense e nacional com todos os detalhes, omitindo praticamente
todo o resto. De vez em quando, porém, os dois fàlam de sua vida fami
liar (mas nunca com tantos detalhes como as Mêmoires de madame Ro-
land). Ruault interrompe sua correspondência por ocasião da morte de
seu filho único, explicando com desespero: “A febre ou o médico nos ar
rebatou o que tínhamos de mais caro no mundo. Agora do que nos vale
viver?”. Ménétra fala do divórcio de sua filha, de seu segundo casamento,
esperando que ela esqueça “ as dores e as dificuldades que rinha sofrido
com o monstro do seu primeiro marido”. Durante o período de 1795,
tão pavoroso para todos, Ménétra tinha muito orgulho cm anunciar: “ Eu
vivia muito bem. [...] Não sentíamos de forma nenhuma a falta de ali
mentos, (...] mantínhamos mesa farta” .
Os mais miseráveis pouco deixaram sobre suas vidas privadas. A taxa
de mortalidade atingiu seu auge em 1794, 1804 e 1814 (mas não supe
rou, por exemplo, a de 1847). O número de suicídios atingiu o ponto má
ximo nos anos de crise; os números parecem ter subido entre o ano VI
e o ano IX e, sob o Império, bateram todos os recordes em 1812. Sob Na-
poleão, ocorriam quase 150 suicídios por ano em Paris, em sua maioria
por afogamento no Sena. O índice de suicídios dos homens era três Yezes
superior ao das mulheres; sem dúvida, a proibição da Igreja católica exer
cia uma maior influência sobre o sexo feminino. Não eram vagabundos
ou homens sem eira nem beira que decidiam terminar com uma vida in
feliz lançando-se ao Sena: eram homens e mulheres abatidos, cuja exis
tência já penosa se tornava a cada dia mais difícil, sem esperanças de me
lhora. Deixavam pouca coisa: as roupas que estavam usando e o testemu
nho de parentes, amigos e vizinhos que iam identificar os corpos. Tudo
o que sabemos sobre seus sentimentos íntimos é que estavam desespera
dos demais para continuar a viver.
SADE OU Para falar da vida privada sob a Revolução, somos quase sem
A REVOLUÇÃO
pre obrigados a nos basear em dados quantitativos da história social
DO SEXO
(o índice de divórcios e de suicídios) e em depoimentos diretos de
alguns membros da elite que tinham oportunidade de escrever seus
pensamentos “ privados”. Pouco sabemos do que sentia a maioria
das pessoas em seus espaços “ interiores” . O qué pensava o .soldado
em sua barraca, o prisioneiro em sua cela, a mulher do revolucionário en-
m V U 'Ç A O FMNŒSA E VIDA PXIVADA
quanto preparava as refeições, o carregador de água enquanto subia as
ruas ou quando não conseguia dormir em sua cama, no final do dia? Não
sabemos sequer se esses instantes fugidios de consciência privada possuíam
algum sentido para as pessoas que viviam sob a Revolução. Mas há um
exemplo que não pode ser ignorado em nenhuma história da vida priva
da: é o do marquês de Sade. Os textos de Sade exploraram os limites mais
extremos da sexualidade, que certamente constitui uma das dimensões
mais importantes da vida privada, e ainda hoje essas explorações definem
os limites da consciência moderna sob vários aspectos. Será urna coinci
dência que as principais obras de Sade tenham sido compostas entre 1785
e 1800 (com algumas outras datando dos anos que antecedem sua morte
em 1814)?
Nos primeiros anos de Donaticn Alphonse François de Sade, nada
nos permite antever o futuro autor de Justine, de La philosophie dam le
boudoir [A filosofia na alcova] e das Cent vingt joumées de Sodome (Cento
e vinte dias de Sodoma], O jovem Sade estudou em Louis-le-Grand, an
tes de ingressar no Exército real, à semelhança de muitos jovens nobres
e futuros herdeiros de títulos de nobreza. Casou-se aos 23 anos e, nos meses
seguintes, ficou preso em Vincennes por ordem régia, devido a ‘devassi
dão excessiva’ início de uma longa carreira de libertinagem pontuada
por encarceramentos. Entre 1778 e 1790, ele passou onze anos em Vin
cennes e na Bastilha, e depois de 1801 não tornaria a sair da prisão (entre
1803 e 1814 ficaria em Charenton). Apesar de suas origens nobres, Sade
sobreviveu à Revolução em Paris, escrevendo peças e até trabalhando co
mo funcionário (secretário da seção de Piques), antes de permanecer vá
rios meses recluso, em 1794, na mesma prisão em que se encontrava Lados.
Antes de 1789, Sade era um libertino notório, mas, sob a Revolu
ção, tornou-se ainda mais audacioso em seus textos: Justine teve seis edi
ções no decênio que se seguiu à sua publicação em 1791. O romance
originai de trezentas páginas se converteu em 1797 em La nouvelle
Justine (A novajustine], com 810 páginas; Juliette, publicado no mesmo
ano, tinha mais de mil páginas. Aline et Valcour e La philosophie dans
le boudoir foram publicados em 1795. Os jornais denunciavam Sade
principalmente enquanto autor de Justine; La nouvelle Justine e Juliette,
os outros dois títulos do ciclo de Justine, acarretariam sua última con
denação ao cárcere, de onde nunca mais sairia em vida. A quantidade
de edições e a notoriedade duradoura de Justine provam claramente
que Sade não era de todo desconhecido durante a Revolução. Lolotte
et Fanfan (1788), o romance mais conhecido de Ducray-Dumiml, o extra
vagante autor sentimental que pode ser comparado à romancista inglesa
Ann Radcliffe, teve não menos de dez edições, mas Ducray-Duminil era.
o autor mais popular desse período. Numa época em que os novos gabi
netes de leitura, que começaram a se multiplicar em Paris a partir de 1795,
estimulavam uma produção literária constante (de 4 a 5 mil títulos entre
REVOLUÇÃO FRANCESA E VIDA PRIVADA 47
Não podemos tomar Sade como o verdadeiro representante das ati A ilha do amor, a ilha encantada
tudes em relação às mulheres durante a Revolução; sua obra, porém, cha dos prazeres amorosos. Transposiçãt
arquitetônica de um m ito literário.
ma a atenção para o papel desempenhado por elas enquanto figuras pri
Flores, pássaros, anim ais de todas a
vadas. Nos romances de Sade, o privado é o lugar onde as mulheres (às espécies se encontram em abundam
vezes crianças, inclusive garotos) são encarceradas e torturadas para o go nesse palácio, onde se com binam
zo sexual dos homens. Não se tratará apenas de umajedução aü absurdo, todos os tipos de influências e
fantasm as, disciplinados num a
tipicamente sadlana, da concepção dos sans-culottesLt dos jacobinos so
sim etria perfeita. Jean-Jacques
bre o legar da mulher mantida no espaço privado? Os revolucionários li Lequeu, Paris, Biblioteca Nacional.)
mitaram o papel das mulheres ao de mãe e irmã — dependendo, para
suas identidades, dos maridos e dos irmãos; Sade as converteu em prosti
tutas profissionais ou em mulheres cujo papel principal é sua disposição
em se deixarem acorrentar pelos homens, tendo comb única identidade
a de objetos sexuais. Nessas duas representações do privado, as mulheres
não possuem qualquer identidade própria — peh> menos é o que dese
jam os personagens masculinos, pois, na verdade,'elas são apresentadas
como destruidoras em potencial, como se fosse mais do que evidente que
jamais aceitariam voluntariamente os papéis que lhes são designados. Se
não fosse este o caso, por que os jacobinos, quando ás mulheres reivindi
caram o direito de desempenhar um papel público, responderam que se
ria o caos, reagindo com tanto mau humor e, ousamos dizer, tanta histe
ria? E por que, encão, Sade teria uma tal obsessão pelo castelo fechado?
“ Para impedir os ataques exteriores não muito remidos e as invasões in
teriores bem mais temidas" {Cent vingt joumêes).
A concepção da mulher, talhada especialmente para o privado (e in
capaz para o público), é a mesma em quase todos os círculos intelectuais
do final do século X V III.'O tratado de Pierre Roussel, Du système physi-
que et moral de la fem m e [Do sistema físico e moral da mulher] (1775;
2a ed., 1783), tornou-se uma referência no discurso sobre a mulher. Esta
é representada como o inverso do homem. É identificada por sua sexuali
dade e seu corpo, enquanto o homem é identificado por seu espírito e
energia. O útero define a mulher e determina seu comportamento emo
cional e moral. Na época, pensava-se que o sistema reprodutor feminino
era particularmente sensível, e que essa sensibilidade era ainda maior de
vido à debilidade intelectual. As mulheres tinham músculos menos de
senvolvidos e eram sedentárias por opção. A combinação de fraqueza mus
cular e intelectual e sensibilidade emocional fazia delas os seres mais ap
tos para criar os filhos. Desse modo, o útero definia o lugar das mulheres
na sociedade como mães. O discurso dos médicos se unia ao discurso dos
políticos.
Sob a Revolução, Roussel escreveu algumas vezes em La Décade Phi-
losophique [A Década Filosófica], jornal “ ideológico” ; ele estava ligado
à seção moral da Segunda Turma do Instituto. Seu jovem colega Cabanis
comungava de suas idéias sobre as mulheres. Os homens eram biologica
mente fortes, audaciosos e empreendedores; as mulheres eram fracas, tí
midas e apagadas. Apesar de sua amizade com madame de Staél e mada-
me Condorcet, Cabanis recusava qualquer papel intelectual e político às
mulheres; uma carreira pública destruiria a família, fundamento da so
ciedade e base da ordem natural. Jacques-Louis Moreau (de Sarthe), dis
cípulo de Cabanis, ideólogo como ele e freqüente colaborador de La Dé
cade Philosophique, concorreu para os progressos da nova ciência da “ an
tropologia morai” com seu estudo em dois volumes sobre a Histoire
naturelle de la fem m e [História natural da mulher] (1803). Suas idéias
são convencionais: “ Se é verdadeiro dizer que o macho é macho apenas
em certos momentos, mas que a fêmea é fêmea durante toda a sua vida,
isso deve ser atribuído principalmente a esta influência [a influência ute
rina]; é ela que lembra o sexo à mulher de maneira contínua e confere
a todas as suas maneiras de ser uma fisionomia tão acentuada”. Em con-
seqüência disso, ‘‘as mulheres são mais propensas do que os homens a
acreditar em espíritos e a ver aparições; elas se entregam com tanta maior
facilidade a todas as práticas supersticiosas na medida em que seus pre
conceitos são mais numerosos; foram elas, em grande parte, as responsá
veis pela fortuna do hipnotismo’\ Portanto, não admira que tais criaturas
fossem influenciadas pelos padres refratários e sofressem as formas mais
terríveis de escravidão sexual.
Já há muito tempo observou-se que foi no século XIX que as mu
lheres ficaram relegadas à esfera privada a um grau até então jamais co
nhecido. Essa tendência data do final do século XVIII (antes mesmo
REVOLUÇÃO FRANCESA E VIDA PRIVADA 51