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HISTÓRIA

I
DA VIDA PRIVADA
4
Da Devolução francesa
ã Primeira Guerra

Organização:
MICHELLE PERROT

Tradução:
DENISE BÜITM ANN (partes 1 e 2)
c BERNARDO JOFFtLY (partes 3 c 4)

10a. reimpressão

C o m p a n h ia D as L e t r a s
REVOLUÇÃO FRANCESA
E VIDA PRIVADA

Lynn H u n t

Durante a Revolução, as fronteiras entre a vida pública e a vida


privada mostraram uma grande flucuação. A coisa pública, o espírito
público invadiram os domínios habitualmente privados da vida. Não
cesta dúvida que o desenvolvimento do espaço público e a politização da
vida cotidiana foram dcflnitivamente responsáveis pela redefinição mais
clara do espaço privado no início do século XIX. O domínio da vida
pública, principalmente entre 1789 e 1794, ampliou-se de maneira cons­
tante, preparando o movimento romântico do fechamento do indivíduo
sobre si mesmo e da dedicação à família, num espaço doméstico deter­
minado com uma maior precisão. No entanto, atues de chegar a este
termo, a vida privada iria sofrer a mais violenta agressão já vista na histó­
ria ocidental.
Os revolucionários se empenharam em traçar a*distinção entre o pú­
blico e o privado. Nada que fosse particular (e todbs os interesses eram
parricitlares por definição) deveria prejudicar a vontade geral da nova na­
ção. De Condorcet a Thibaudeau e Napoleão, a palavra de ordem era a
mesma: “ Não pertenço a nenhum partido“ . As facções, a política parti­
dária — a política de grupos privados e de particufátcs — viraram sinôni­
mo de conspiração, e os “ interesses” significavam uma “ traição à nação”.
No período revolucionário, “ privado” sígnifica.f^ccioso, e tudo o que
se refere à privatização é considerado equivalente-aí sedicioso e conspira-
tório. A partir daí, os revolucionários exigem que nadá se furte à publici­
M istura de sexos, idades e roupas
dade. Apenas um a vigilância contínua e o serviço constante à coisa públi­ nessa m ultidão revolucionária
ca (que na época possui um sentido preciso) podem impedir que aflorem provisoriam ente cristalizada em to
interesses particulares (privados) c facções. Era preciso abrir as reuniões de Marat, "o A m igo do Povo ",
políticas “ ao público“ : as reuniões da legislatura extraem sua legitimida­ o destruidor dos " interesses
particulares". Louis L éopold B oilly
de de uma platéia numerosa e de interrupções frequentes. Os salões, os
dedica calorosam ente ã representaç
grupos e os círculos podem ser denunciados de imediato. Num país do­ de cenas populares urbanas, sendo
minado pela política, a expressão dos interesses privados só pode ser tida um observador sagaz. (Triunfo dc
como contra-revolucionária. “ Existe apenas um partido, o dos intri- Marat. lille , M useu de Belas A rtes.
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Uma das últim as ' ‘jornadas gantes!” , exclama Chabot. ‘‘Todo o resto é o partido do povo.” Essa preo­
revolucionárias. O povo sans-culotte cupação obsessiva em manter os interesses privados à distância da vida
invade a Convenção. A presença pública logo virá, paradoxalmente, a apagar as fronteiras entre o público
efetiva das m ulheres tam bém fa z
e o privado.
parte das representações m íticas da
Os termos ‘‘aristocrata” e ‘‘sans-culotte" assumiram uma acepção
violência sangrenta. (Jornada do
primeiro Prairial do ano III. Ferraud, política: um sans-culotte, caso esmorecesse em seu ardor revolucionário,
representante do povo, assassinado na poderia ser chamado de aristocrata; dessa forma, o caráter privado se
Convenção nacional. Paris, Biblioteca revestiu de um sentido político. Em outubro de 1790, Marat denuncia
Nacional. ) a Assembléia Nacional como ‘‘quase totalmente composta de antigos
nobres, prelados, togados, cortesãos, oficiais, juristas, homens sem alma,
sem costumes, sem honra nem pudor; inimigos da Revolução por princí­
pio e por condição”. A maioria dos legisladores “ é composta tão-somente
de velhacos manhosos, de charlatães indignos” . Eram ‘‘homens corrup­
tos, astutos e pérfidos” (L’A m i du Peuple [O Amigo do Povo]). Não
bastava errar de campo político; era preciso ainda que faltassem as quali­
dades humanas mais elementares. Se o homem público não defendia
a Revolução de maneira satisfatória, o homem privado só podia ser
corrupto. Marat abriu o caminho, outros o seguiram. Em 1793, um pan­
fleto bastante medíocre definia o ‘‘moderado, feuillant, * aristocrata” como
‘‘aquele que não melhorou a Sorte da Umanidade miserável e patriota,
tendo Notoriamente os meios para isso. Aquele que não usa por ruin-
(*) No período revolucionário, chamavam-se fe u illa n ts os moderados ou consti-
tucionalistas, por terem a sede de sua associação em Paris no antigo convento dos frades
bernardos {feuillants). (N. T.)
REVOLUÇÃO FRANCESA E VIDA PRIVADA 23

dadc uma Roseta de três polegadas de Circomferença; Aquele que


comprou roupas que não são nacionaes, e Principalmente os que não
Se orgulham do títolo e do Barrete de Sans-Culotte” (sic). As roupas,
a linguagem, as atitudes em relação aos pobres, os serviços prestados,
o uso dos bens móveis, tudo se convertia em critério de patriotismo.
Onde estava a linha de demarcação entre o homem público e o homem
privado?
A mescla do privado com o político e o público não era apanágio
das reuniões das seções e dos jornais mais exacerbados; o exemplo mais
conhecido é, certamente, o discurso de Robespierre, em 5 de fevereiro de
1794, “ Sobre os princípios de morai política”. Partindo do postulado de
que “o motor do governo popular em revolução é, ao mesmo tempo, a
virtude e o terror”, o porta-voz do Comitê de Salvação Pública contrapu­
nha as virtudes da república aos vícios da monarquia: “ Em nosso país,
queremos substituir o egoísmo pela moral, a honra pela probidade, os
usos pelos princípios, as conveniências pelos deveres, a tirania da moda
pelo império da razão, o desprezo à desgraça pelo desprezo ao vício, a
insolência pelo orgulho, a vaidade pela grandeza de alma, o amor ao
dinheiro pelo amor à glória, a boa companhia pelas boas pessoas, a intri­
0 D iretório ou a lu ta das aparências.
ga pelo mérito, o espirituoso pelo gênio, o brilho pela verdade, o tédio
A nova burguesia zom ba dos que não
da volúpia pelo encanto da felicidade, a mesquinharia dos grandes
aprenderam nada e se vestem de
pela grandeza do homem Daí se seguia que. “ no sistema da maneira extravagante, segundo
Revolução Francesa, o que é imoral é impolítico, o que é corruptor é a m oda aristocrática antiga. (Paris,
contra-revolucionário”. Desse modo, os revolucionários, mesmo pensando Biblioteca N acional.)
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que os interesses privados (entendendo por eles os interesses de pequenos


grupos ou Facções) não deviam ter representação na arena política, esta­
vam persuadidos de que a-atitude privada e a virtude pública guardavam
uma estreita ligação. Assim é que, em novembro de 1793» a “ Comissão
temporária de vigilância republicana estabelecida em VilIe-AfFrancbie“
(Lyon) declarou: “ Para ser realmente republicano, é preciso que cada ci­
dadão experimente e opere em si mesmo uma revolução igual à que trans­
formou a face da França. [...] todo homem que abre sua alma às frias es­
peculações do interesse, todo homem que calcula o quanto lhe vale uma
terra, um lugar, um talento [...] todos os homens de tal feitio e que ou­
sam se declarar republicanos mentiram à natureza [...] que frijam ao solo
da liberdade: não tardará que sejam reconhecidos e que o reguem com
seu sangue impuro". Em suma, a visão revolucionária da política é rous-
seauniana. A qualidade da vida pública depende da transparência dos
corações. Entre o Estado e o indivíduo, não há necessidade da mediação
dos partidos ou dos grupos de interesses, e os indivíduos devem realizar
sua revolução pessoal, refleto daquela que se realiza no Estado. Seguc-se
daí uma profunda polmzação da vida privada. Segundo os revolucio­
nários de Lyon, “ a República já não deseja em seu seio senão homens
livres".
MUDAR Um dos exemplos mais claros da invasão do público no espaço pri­
AS APARÊNCIAS vado é a preocupação constante com o vestuário. Desde a abertura dos
Estados Gerais em 1789» a roupa possui um significado político. Míchelet
descreveu a diferença entre a sobriedade dos deputados do Terceiro Esta­
do, à frente da procissão de abertura— “ uma massa de homens, vestidos
de negro [...] com trajes modestos" —, e “ o pequeno grupo refulgente
dos deputados da nobreza [...] com seus chapéus de plumas, suas rendas,
seus paramentos de ouro". Segundo o inglês John Moore, “ uma grande
simplicidade, e na yerdade a avareza no vestuário era [...] considerada co­
mo uma prova de patriotismo”. Em 1790, os jornais dedicados à moda
apresentam um “ traje estilo Constituição” para as mulheres que, em 1792,
torna-se o “ chamado traje estilo igualdade com um toucado muito em
moda entre as republicanas". Segundo oJournal de la Mode et du Gout
[Jornal da Moda e do Gosto], a “ grande dam a" de 1790 veste “ cotes lis­
tadas estilo nação", e a “ mulher patriota” usa “ tecido de cor azul-rei
com chapéu de feltro negro, fita do chapéu e roseta tricolores".
A moda masculina não se definiu de imediato com tanta clareza,
mas a indumentária logo se transformou num sistema semiótico inten­
samente carregado. Ela revelava o significado público do homem privado.
Os moderados e os aristocratas eram identificados por sua recusa em
usarem a roseta. A parrir de 1792, o barrete vermelho, o casaco estreito
com várias filas de botões e as calças largas passam a definir o sans-culotte,
isto é, o verdadeiro republicano. A roupa é investida de tal significa­
do polírico que a Convenção, em otltubro de 1793, vê-se obrigada a
reafirmar “ a Uberdade do vestuário". O decreto, em si, parece anódi-
REVOLUÇÃO FRANCESA E VIDA PRIVADA

A s cenas de jogos infantis fornecer


pretexto para a educação cívica
e a apresentação das novas m odas.
{Gravuras de B onnet, segundo
Jean-Baptiste H uet, A Bastilha dcsut
ou a pequena vitória. O tam bor
■ nacional. Paris, B iblioteca Naciona

Página anterior:
N a elaboração das novas aparência,
são m obilizados os principais norm
D avid desenha em 1794 um projet
de indum entária para os funcionar,
m unicipais, onde convergem todos
os tipos de influências: A ntigüidaa
Renascença, civism o republicano.
(Louis D avid, A veste dos
funcionários municipais com
a echarpe. Versalhes, M useu
de H istória.)
26 ERGUE SE A CORTINA

A s ‘'Senhoras de O rléans' ’ desfilam no: “ Nenhuma pessoa, de qualquer sexo, poderá obrigar qualquer ci­
em ordem , com flo r no chapéu dadão ou cidadã a se vestir de uma maneira particular [...] sob pena
e portando fu zis. Mescla deliberada
de ser considerada e tratada como suspeita’’.
de atributos e funções no espaço
extrem am ente organizado das festas
No entanto, essas discussões na Convenção mostram que tal de­
de 1793■ (Paris, Biblioteca N acional.) creto se dirige principalmente ás associações femininas cujas partici­
pantes usavam toucado vermelho e forçavam as outras mulheres a imi­
Página ao lado: tá-las. Aos olhos dos deputados, nesse auge de radicalidade revolucio­
Jovem francesa vai ao Campo de
nária — o momento da descristianização —, a politização da indumen­
Marte se exercitar. (Paris, Biblioteca
N acional.)
tária ameaçava subverter a própria definição da ordem dos sexos. O
Comitê de Segurança Geral temia que os debates sobre o vestuário
Toucados ‘‘estilo C onstituição fossem resultantes da masculinização das mulheres: “ Hoje se exige o
para essas m ulheres m etodicam ente barrete vermelho: não vão parar por aí; logo exigirão o cinto com pis­
' 'patriotas'' que se m antêm em seus
tolas” . Mulheres armadas nas longas filas do pão seriam bem mais
papéis de mães de fam ília honestas
e beneficentes, Ar associações
perigosas; e o pior era que fundavam associações. Fabre d ’Eglantine
fem ininas foram fechadas pelo observou que “ essas sociedades não são absolutamente compostas de
decreto de 9 Brumário ano II mães de família, de moças de família, de irmãs que cuidam de seus
(novem bro de 1793), como contrárias irmãozinhos menores, e sim de uma espécie de avencureiras, de cava­
ao papel param ente privado das
leiras andantes, de jovens emancipadas, de mocetonas de modos livres e
m ulheres. (Le Sueur. Clube patriótico
das mulheres. Paris, M useu
soltos”. Os aplausos que o interromperam mostram que ele havia tocado
Cam avalet.) na corda sensível dos deputados; todas as associações femininas foram su­
primidas, pois iam contra a “ordem natural” , na medida em que “eman­
cipavam” as mulheres de sua identidade exclusivamente familiar (priva­
da). Como dizia Chaumette: “ Onde já se viu que a mulher abandone
os cuidados do lar, o berço dos filhos, para ir à praça pública, discursar na
REVOLUÇÃO FRANCESA E VIDA PRIVADA 27

tribuna?” . As mulhêres eram tidas como a representação do privado, e


sua participação ativa enquanto mulheres em praça pública era rejeitada
por praticamente todos os homens.
Apesar do aparente apoio da Convenção ao direito de se vestir à von­
tade, o Estado desempenhou um papel crescente nesse campo. A partir
dcrA de julho de 1792, todos os homens passaram a ser obrigados por lei
a usar a roseta tricolor; a partir de 3 de abril de 1793, todos os franceses,
sem distinção de sexo, ficaram submetidos a esse decreto. Em maio de
1794, a Convenção solicitou ao pintor-deputado David que apresentasse
projetos e sugestões para melhorar o traje nacional. Ele fez oito desenhos,
entre os quais se incluíam dois para os uniformes civis. Não havia uma
grande diferença entre os trajes civis e os oficiais. Todos consistiam
em túnica curta e aberta, presa à cintura por uma faixa, calções justos, sa­
patos ou botas sem salto, uma espécie de gorro e uma capa três-quartos.
Nesse traje, misturavam-se detalhes da Antigüidade, da Renascença e
também de figurinos de teatro. A indumentária civil criada por David
nunca foi usada, a não ser por alguns jovens admiradores do mestre.
y
v No entanto, a simples idéia de um uniforme civil, surgida na Socie­
7 dade Popular e Republicana das Artes, mostra que havia quem dese­
jasse o fim da fronteira entre o público e o privado. Todos os cida-
\

i
28 EKGUESE A CORTINA

dãos, soldados ou não, andariam uniformizados. Os artistas da Sociedade


Popular diziam que os hábitos da época, no tocante às roupas, eram in­
dignos de homens livres; se era para a Revolução entrar no âmbito priva­
do, encão seria preciso remodelar totalmente os trajes. Como chegara igual­
dade se a distinção social continuava a se manifestar no vestuário? As rou­
pas femininas não pareciam tão importantes aos artistas e legisladores,
o que, aliás, não é de admirar. Segundo Wicar, as mulheres não precisa­
vam de grandes mudanças, " à exceção desses lenços ridiculamente em­
polados”. Como os papéis privados estavam reservados às mulheres, elas
não tinham nenhuma necessidade de usar o uniforme nacional dos ci­
dadãos.
Mesmo depois de abandonado o grandioso projeto de reformar e uni­
formizar a indumentária masculina, as roupas não perderam seu signifi­
cado político. Os muscadins [janotas] da reação termidoriana usavam li­
nho branco e criticavam os pretensos jacobinos que não empoavam os ca­
belos. 0 “ traje estilo vítima” dos vtuscadins consistia na “ bata quadrada
e decotada, sapatos bem rasos, cabelos soltos nos ombros”, andando ar­
mados com pequenas bengalas chumbadas. De modo geral, a Revolução
A Revolução tam bém se im prim e na contribuiu para diminuir o número de peças de roupa e deixar a indu­
decoração cotidiana de um quarto ou
mentária mais solta. Para as mulheres, isso significava um a tendência a
de um salão. (Fragm ento de p a p el
pintado, decorado com um a roseta se desnudarem cada vez mais, o que chegou a suscitar o comentário de
e um troféu, m odelo de 1793-1794. um jornalista: “ Várias deidades apareceram em trajes tão leves, cão trans­
V izille, M useu da Revolução parentes que despojaram o desejo do único prazer que o alimenta: o pra­
Francesa.) zer de adivinhar” .
MUDAR Os objetos do espaço privado não foram esquecidos. Os mais ínti­
A DECORAÇÃO mos objetos trazem a marca do ardor revolucionário. Na residência
D O COTIDIANO
dos patriotas abastados, encontram-se “ camas estilo Revolução”^ ou
“ çstiio Federação”. As porcelanas e faianças são enfeitadas com divisas
ou vinhetas republicanas. As tabaqueiras, os estojos de barba, os espe­
lhos, os cofres e até os jarros de lavatório são decorados com cenas
das jornadas revolucionárias ou com alegorias. À Liberdade, a Igualdade,
Calendário republicano do ano llí,
a Prosperidade, a Vitória, sob a forma de jovens deusas encantadoras,
1794, desenhado e im presso em
gravura p o r P. L D ebucourt. Obra de enfeitam os espaços privados da burguesia republicana. Mesmo os al­
G ilbert Rornm e e Fabre d 'êg la n tin e, faiates ou os sapaceiros mais pobres ostentam nas paredes os calendários
m em bros da Convenção, revolucionários com o novo sistema de datação e as inevitáveis vinhetas
o calendário revolucionário assinala ' republicanas. Ê inquestionável que os retratos dos heróis antigos e re­
um a ten ta tiva extrem a de rem odelar
volucionários e os quadros históricos mostrando os acontecimentos
o tem po e *'decretara eternidade"
(B. Baczko). 0 ano começa no fundadores da República não chegaram a substituir integralmente as
equinócio; o m ês conta com três gravuras e imagens da Virgem e dos santos, e não se pode afirmar com
grupos de d ez dias, tendo-se segurança que as atitudes populares tenham sofrido modificações pro­
elim inado o dom ingo; os dias., fundas com essa tentativa de nova educação política. Mas, por outro lado,
com em oram um a pla n ta o u um
é certo que a invasão dos novos símbolos públicos nos espaços privados
instrum ento agrícola. Portando o
barrete fríg io , a Filosofia restabelece a
foi determinante para a criação de uma tradição revolucionária. Da mes­
Ordem da natureza. (Paris, B iblioteca ma forma, todos os retratos de Napoleão e as numerosas representa­
N acional.) ções de suas vitórias ajudaram a criar a lenda napoleônica. Á nova deco-
í»
30 ERGUE SE A CORTINA

ração do espaço privado teve conseqüências a longo prazo, graças à


vontade dos dirigentes revolucionários e seus amigos de politizar todas
as coisas.
MUDAR
O simbolismo revolucionário não era unilateral. Os símbolos revo­
AS PALAVRAS
lucionários invadiam o âmbito da vida privada, mas as marcas da vida
privada, por seu lado, também invadiam o espaço público. O tratamento
familiar por “ tu ” se generalizou. Em outubro de 1793, um sans-culotte
zeloso encaminhou à Convenção uma petição ‘‘em nome de todos os meus
comitentes” para que se votasse um decreto determinando que todos os
republicanos “ tratem indistintamente por ‘tu ’ todos aqueles ou aquelas
com quem falem a sós, sob pena de serem declarados suspeitos”. Ele ale­
gava que tal prática levaria a “ menos orgulho, menos distinção, menos
inimizades, mais familiaridade no tratamento, mais pendor para a frater­
nidade; consequentemente, mais igualdade”. Os deputados recusaram a
obrigatoriedade do tuteamento, mas o uso do “ tu” se generalizou nos
círculos de revolucionários ardorosos. O emprego da linguagem “ fami­
liar” na arena política exercia um efeito deiiberadarnente destruidor. O
tuteamento invertia as regras usuais do discurso público.
Ainda mais chocante era a invasão maciça das “ imundícies do lin­
guajar chulo” no discurso político impresso. Jornais de direita como Les
A lu z circunda essa República m orena
Actes des Apôtres [Os Atos dos Apóstolos], panfletos anônimos como La
com seios de mãe ?iutriz, com
vie privée de Blondinet Lafayette, gênéral des bluets e Sabats jacobites
o barrete e o galo gaulês. N o regaço,
o esquadro de nível, sím bolo da inauguraram essa tendência desde os primeiros anos, parodiando o ritual
igualdade. (Paris, Biblioteca católico e divulgando as “ brejeirices gaiantes” tão apreciadas no “ mun­
Nacional.) do” do Antigo Regime. Logo se seguiram os jornais de esquerda, sobre­
tudo Le Père Duchesne, de Hébert. Em pouco tempo, as expressões vul­
gares bougre [bicha ou patife], jbutre [caramba, diabo] e torche-cul[limpa-
cu] se tornaram termos correntes, que podiam ser lidos ao lado de uma
lista interminável de “ pragas do mais puro estilo” (desde tonnerre de Dieu
a vingt-cinq mille millions de pétards). No caso de Hébert, como tam­
bém de muitos outros, o uso de termos coloquiais, vulgares ou grosseiros
acingiu o ápice nas descrições de Maria Antonieta: “A tigresa austríaca
era vista em todas as cortes como a mais miserável prostituta da França.
Ela era amplamente acusada de chafurdar na lama com criados, e seria
difícil distinguir quem era o pulha que havia fabricado os abortos coxos
[.sic], corcundas, gangrenosos, saídos de seu ventre triplamente. enruga­
do" (Le Père Duchesne). Maria Antonieta era apresentada como a antíte­
se de tudo o que as mulheres deviam representar: uma besta selvagem
ao invés de uma força civilizadora, uma prostituta ao invés de uma
mulher, um monstro gerando criaturas disformes ao invés de uma mãe.
Ela era a expressão última e mais baixa daquilo que — no temor dos
revolucionários — ocorreria às mulheres caso ingressassem no universo
público — já não seriam mulheres, e sim medonhas perversões do sexo
REVOLUÇÃO FRANCESA E VIDA PRIVADA 31

feminino. Essa perversão abominável parecia requerer uma linguagem tão


suja quanto a que os homens reservavam para suas histórias obscenas. Em
público, utilizavam-na para destruir a aura da soberania, da nobreza e
da deferência.
A linguagem reflete as flutuações da fronteira entre o público e o
privado sob vários outros aspectos. O Estado revolucionário tentou regu­
lamentar o uso da linguagem exigindo que se empregasse o trances em
lugar dos regionalismos e dos dialetos. Barère explicou a decisão do go­
verno da seguinte maneira: “ Em um povo livre, a língua deve ser uma
única e a mesma para todos’’. O conflito entre o público e o privado se
deslocou para o terreno lingüístico; as novas escolas tinham como tarefa
propagar o francês, principalmente na Bretanha e na Alsácia, e todos os
textos oficiais eram publicados em francês. Em muitas regiões, a língua
oficial era o francês, ao mesmo tempo relegando os regionalismos e os
dialetos para o âmbito privado.
Para alguns, a perda da vida privada foi compensada com a criação
de uma linguagem privada. Os soldados — que, com o recrutamento,
P erfil romano, véu virginal, busto
abandonavam toda e qualquer vida pessoal — criaram um “ falar dos ve­ ju v e n il para esta professora da
teranos’’ para se diferenciarem dos “ paisanos” , que não pertenciam às República, cuja cartilha é a
forças militares. Eles dispunham de seus próprios termos para designar Declaração dos D ireitos do H om em
e do Cidadão. [Parts, B iblioteca
o equipamento, o uniforme, as divisões do Exército (os soldados de guar­
N acional.)
da viraram os “ imortais” ), os incidentes nos campos de batalha, o soldo
(o dinheiro foi batizado de “ baixela de bolso” ) e até as fichas de loto
(o dois era a “ franguinha”, o trçs era a “orelha do judeu” ). O inimigo
alemão era conhecido como “ cabeça de chucrute” ^ o inglês, mais sim­
plesmente, era o “ goddam” [da expressão inglesa God damn. (N. T.)]
Os símbolos da vida familiar e doméstica podiam exercer um efeito MARIANNE,
político (e portanto público) durante esse período de confusão entre a MINHA MÃE
vida pública e a vida privada. O emblema da RepúBíica, a deusa romana
da Liberdade, muitas vezes ostentava um ar abstrato nos sinetes oficiais,
nas estátuas e nas vinhetas. Mas, num grande número de representações,
ela assumia o aspecto familiar de uma jovem doqzcla ou de uma jovem
mãe. Logo, primeiro por troça e depois carinhosamqaite, passou a ser co­
nhecida como Marianne, nome feminino muito corrente. A mulher e a
mãe, tão desprovidas de qualquer direito político, íòram capazes, apesar
disso (ou justamente por isso?), de se converter nòs^emblemas da nova
República. Até Napoleão, em 1799, imaginou que estaria a salvá-la de
um abismo de discórdia e divisão. Para ter eficácia, o poder devia apelar
à afeição e, por isso, de vez em quando precisava ser familiar.
O discurso político e a iconografia da década revolucionária con­
tam uma história de família. No começo, o rei é representado como
um pai benevolente que teria reconhecido os problemas de seu rei­
no, desejando resolvê-los com o auxílio de seus filhos agora adultos (par­
ticularmente os deputados do Terceiro Estado). Mas, depois de sua ten-
32 E R G U E SE A CORTINA

tativa de fuga em junho de 1791, tornou-se impossível sustentar essa Ycr-


são: pouco a pouco, os filhos passaram a requerer transformações funda­
mentais, e chegariam' a exigir a substituição do pai. Nesse momento, a
necessidade de eliminar o pai tirânico se intensificou duplamente com
a raiva contra a mulher que jamais fora possível representar com traços
maternos; o adultério tão explorado de Maria Antoniera constituía um
insulto â nação, servindo de certa forma para justificar seu fim trágico.
Agora, num novo esquema familiar do poder, substitui-se o casal monár­
quico pela Fraternidade dos revolucionários, protegendo suas irmãs mais
frágeis, a Liberdade e a Igualdade. As novas representações da República
nunca mostram a figura paterna, e é muito raro que apareçam mães, ex­
ceto as muito jovens: é uma família praticamente sem genitores. Restou
aos irmãos a tarefa de criar um mundo novo e de velar por suas irmãs ór­
fãs. Vez por outra, principalmente entre 1792 e 1793, as irmãs aparecem
nas representações defendendo ardorosamente a República; de modo ge­
ral, porém, figuram como personagens em busca de proteção. A Repúbli­
ca é amada, mas seu destino depende do povo, uma força poderosa e viril..
A RELIGIÃO PRIVADA Os efeitos da Revolução sobre a vida privada não se mantiveram ape-
CONTRA O ESTADO nas “ simbólicos", ou seja, limitados apenas às expressões da cultura-polí­
tica compostas pelo vestuário, pela linguagem e pelo ritual político. O
novo Estado atacou frontalmente os poderes das comunidades do Antigo
Regime em muitos outros campos — a Igreja, as corporações, a nobreza,
a comunidade de aldeia e o clã familiar —■, definindo simultaneamente
um novo espaço para o indivíduo e seus direitos privados. É claro que exis­
tiram resistências e ambigüídades. Estas se mostram principalmente na
luta contra a Igreja católica, a grande rival na disputa pelo controle da
Yida privada. O catolicismo, ao mesmo tempo um conjunto de crenças
privadas e cerimônias públicas, congregação de fiéis e instituição podero­
sa, foi campo das mais acesas lutas públicas (c talvez privadas). De início,
como bons liberais, os revolucionários esperavam fundar um regime so­
bre a tolerância religiosa universal; as questões religiosas permaneceriam
como assuntos privados. Mas os velhos hábitos e a crescente necessidade
financeira ditaram uma solução mais duvidosa: o confisco dos bens ecle­
siásticos e a Constituição Civil do clero. A partir daí, os bispos deviam
ser nomeados por eleição, tal como ocorria com a grande maioria dos re­
presentantes públicos; uma após a outra, as assembléias revolucionárias
passaram a exigir que o clero prestasse juramento e proibiram o uso de
vestimentas eclesiásticas. O apoio aos padres refratários veio a ser identi­
ficado com a contra-revolução, e o Estado passou a controlar cada vez‘mais
os locais, datas c cerimônias do culto religioso. Pela Concordata de 1801,
Napoleão renunciou ao controle tirânico do Estado, mas somente sob a
condição de que se reconhecesse o direito permanente do Estado em in­
tervir nas questões religiosas.
REVOLUÇÃO FRANCESA E VtDA PRIVADA
34 ERGUE SE /I CORTINA

Mesmo que muitos deles desejassem uma reforma, os católicos não


aceitaram irrestritamente o controle do Estado. Foi a primeira vez que in­
divíduos privados — em sua maioria, mulheres e crianças — assumiram
um papel público para defender sua igreja e seus ritos. Segundo o abade
Grégoire, a Igreja constitucional foi estrangulada pelas ‘‘mulheres devas­
sas e sediciosas”. Elas escondiam os padres refratários, ajudavam a cele­
brar missas clandestinas e até missas brancas; depois do Termidor, insti­
gavam os maridos a irem exigir do governo a reabertura das igrejas; recu­
savam batizar ou casar os filhos com padres jurados; e, quando nada disso
dava certo, realizavam manifestações em nome da liberdade religiosa. Em
protesto contra a intromissão do Estado, voltou-se a cultuar antigos san­
tos padroeiros e, nas regiões mais hostis à Revolução, criaram-se novos már­
tires. A reza do rosário nas vigílias se transformou num ato de resistência
política. Uma certa ‘‘Suzannc-sem-medo” teve ousadia suficiente para
expressar sua resistência num libelo do ano VII, numa aldeia de Ybnne
chamada Villethierry: ‘‘Não existe despotismo em nenhum governo que
se iguale ao nosso. Dizem-nos: vocês são livres e soberanos, enquanto so­
mos arrastados a tal ponto que não nos é permitido cantar, brincar e, quan­
Página 33:
do estamos endomingados, nem sequer nos ajoelhar para render home­
A q u i o sans-cuiotte se apresenta
como um ‘'sucedâneo saboiardo'' do
nagem ao Ser Supremo”.
cidadão Em iie. “Creio que o m undo Sob o ataque do Estado e dos revolucionários mais encarniçados,
í governado p or um a vontade principalmente nas cidades, a religião veio a se privatizar. Em 1794,
poderosa e sábia: vejo-o, ou melhor, após a emigração, a deportação, as execuções, as prisões, as demissões
sinto-o í)ean-Jacques Rousseau,
e os casamentos dos padres, pouco restou para que ainda se pudesse
Emiie, livro IV ). ( 0 sanculocte rende
celebrar uma religião pública. As pessoas realizavam suas devoções em
homenagem ao Ser Supremo. Parts,
Biblioteca N acional.) casa, com a família ou um grupo de amigos de confiança. Mas, com o

Crianças, jovens, adultos, autoridades


com em oram a velhice num a festa de
aldeia, fe ita em círculo e com ar de
alegria. A partir do ano IV, o
cerim onial das etapas da vida tende a
prevalecer sobre todos os dem ais. Esse
retom o á natureza e a sociedade civil
é, d iz M ona O zouf ‘‘um a maneira
de term inar a festa e, p or m eio dela,
a revolução '. (A festa revolucionária,
1976). (Gravura de
D uplessis-Bertaux, segundo Pierre
Alexandre W ille, Festa dedicada à
velhice. Parts. B iblioteca N acional.)
REVOLUÇÃO FRANCESA E VIDA PRIVADA 33

Uma Liberdade sem barrete,


m as com espada ao lado e coroando
a Igualdade, sim bolizada pelo
esquadro de nível. A m iniatura marca
um a form a de difusão pnvada das
im agens revolucionárias. (A nônim o,
m iniatura em m arfim , 1793-1793.
Vizille, M useu
da Revolução Francesa.)

término de todas as restrições, o mundo privado veio fazer reivindicações


públicas em nome de sua fé. As igrejas paroquiais, que haviam se trans­
formado em granjas, estábulos, salitreiras, peixarias óú'salas de reuniões
de associações, foram restauradas e reconsagradas. Os-vasos sagrados e as
roupas sacerdotais foram retirados de seus esconderijos, e, quando não
havia padre, quem se encarregava do ofício religioso era um mestre-escola
ou um antigo escriturário. Em muitos lugares, principalmente no campo,
não se dava nenhuma atenção ao décadif e os aldeões se reuniam aos
domingos para alardear sua recusa em trabalhar. Como eonseqüência dessa
intensa mescla entre o público e o privado, vê-se surgir‘uma nova estrutu­
ra durável de religiosidade praticante: as mulheres viridm a ser os pilares
da Igreja, a qual tinham defendido com tanto ardor, e os homens se tor­
nariam, na melhor das hipóteses, praticantes esporádicos. A partir desse
momento, novas formas de vida pública — a taverna e o café — vêm a
exigir a presença da população masculina.
A FAMÍLIA,
O âmbito em que se laz mais evidente a invasão da autoridade FRONTEIRA ENTRE
pública é o da própria vida familiar. O casamento foi secularizado, e(*) O PÚBLICO E O PRIVADO

(*) “ Semana” de dez dias instaurada pelo calendário republicano da Revo­


lução. (N. T.)
J6 ERGUE-SE A CORTINA

Os novos rituais do casam ento a cerimônia, para ser legal, devia se realizar na presença de um funcionário
laicizado acentuam o p a p el da municipal. No Antigo Regime, o casamento consistia na troca do “ sim”, e
concordância m útua e da autoridade
o padre desempenhava apenas o papel de testemunha desse mútuo consen­
pública, Mas o religioso sobrevive nos
sím bolos: o altar, a deusa (a Razão?), timento. Pelo importante decreto de 20 de setembro de 1792, um funcio­
o olho do Ser Suprem o. (Acima: nário ficou encarregado do estado civil, devendo também declarar o casal uni­
O voto conjugal; na outra página: do perante a lei. Desse momento em diante, a autoridade pública assumiu
G uarda nacional casando-se perante
uma participação ariva na formação da família. O Estado definiu os impe­
o Ser Supremo. Paris, Biblioteca
N acional.)
dimentos à união, restabeleceu e regulamentou o processo de adoção, de­
terminou os direitos (depois seriamente restringidos pelo Código Civil) dos
filhos naturais, instituiu o divórcio e limitou o poder paterno, em parte com
o estabelecimento de tribunais de família (que foram suspensos em 1796,
embora o Estado tenha continuado a limitar o poder paterno, prindpalmente
em questões de deserdamento). Ao tentar fundar um novo sistema de edu­
cação nacional, a Convenção partia do princípio que os filhos, como dizia
Danton, “ pertencem à República antes de pertencerem a seus pais”. O pró­
prio Napoleão insistiu para que “ alei tomasse a criança ao nascer, atendes­
se â sua educação, preparasse-a para uma profissão, regulamentasse como e
sob que condições poderia se casar, viajar, escolher um estado”.
A legislação da vida familiar mostra as preocupações heterogê­
neas dos governos revolucionários; tratava-se de conservar o equilí­
brio entre a proteção da liberdade individual, a preservação da uni-
REVOLUÇÃO FRANCESA E VIDA PRIVADA $

dadc familiar e a consolidação do controle do Estado. Principalmente sob


a Convenção, mas já antes dela, dava-se prioridade à proteção dos cida­
dãos contra a eventual tirania das famílias e da Igreja. As ordens regias,
em particular, foram consideradas vergonhosas, por terem sido usadas pelas
famílias para obter a reclusão dos filhos, por simples motivos de rebelião
ou dissipação. No entanto, a instituição dos tribunais de família, em agosto
de 1790, foi um estímulo jurídico para que as famílias resolvessem seus
conflitos internos, inclusive, caso necessário, através do divórcio (possibi­
litado pela lei promulgada em 20 de setembro de 1792). O Código Civil
iria mostrar uma preocupação bem menor pela felicidade e autonomia
dos cidadãos (sobretudo das mulheres), e aumentaria os poderes pater­
nos. Os poderes conferidos aos tribunais de família viriam a ser confiados
ao pai, chefe da família, ou aos tribunais do Estado. De modo geral, é
visível que o Estado fceqüentemente limitou o controle da família ou da
Igreja sobre o indivíduo afim de ampliar seu próprio controle. Ele garan­
tiu os direitos individuais, encorajou a união familiar e limitou o poder
paterno.
Pode-se avaliar a tensão entre os direitos individuais, a família e o DIREITO
AO DIVÓRCIO
controle do Estado especialmente no caso do divórcio, instituído pela pri­
meira vez na França pela Revolução. O divórcio foí a consequência lógica
das idéias liberais expressas na Constituição de 1791. O artigo 7 tinha se-
cuiarizado o casamento: “À Jei agora considera o casamento apenas como
um contrato civil”. Se o casamento era um contrato civil fundado sobre
o consentimento de ambas as partes, ele poderia ser rompido. O argu­
mento adquiriu peso pela força das circunstâncias. A O nstituição Civil
do clero abriu uma divisão dentro da Igreja católica, e muitos casais se
recusavam a trocar o juramento de união perante um.padre jur?do. Ao
secularizar o casamento, o Estado assumiu o controle do‘*estado civil e subs­
tituiu a Igreja como autoridade máxima nas questõesr da vida familiar,
Nos debates sobre o divórcio (que, a despeito de suà novidade, não fo­
cam muito numerosos), apresentaram-se outros argumentos a favor dele:
a emancipação dos casais infelizes, a liberação das mulheres do despotis­
mo marital e a liberdade de consciência para os protestantes e os judeus,
cuja religião não proibia o dÍYÓrcio. .
A lei de 1792 era notavelmente liberal. Sete motivò^justificariam um
pedido de divórcio: “ a insanidade; a condenação deSm dos cônjuges a
penas aflitivas ou infamantes; os crimes, sevícias ou injúrias graves de um
contra o outro; o notório desregramento de costumes; o abandono por dois
anos no mínimo; a ausência sem notícias durante cinco anos no mínimo;
a emigração". Nestes casos, o divórcio era concedido imediatamente. Além
disso, um casal também podia se divorciar por acordo mútuo num prazo
de quatro meses, e o divórcio seria igualmente concedido “ por incom­
patibilidade de gênio e personalidade", depois de um período de seis
meses para uma tentativa de reconciliação. Exigia-se um prazo de um
ano antes de um novo casamento. As despesas legais eram tão módicas
Com a le i de 1792, o divórcio é fácil,
mas pouco recom endado. Contra
as paixões destruidoras, a m oral
revolucionária, extrem am ente
fam iliar, apela à razão no interesse
dos filhos: noção nova que, na
verdade, não era tão central quanto
pretende sugerir a im agem . (Ao lado:
Le Sueur, O divórcio. Paris, M useu
Carnavalet. Abaixo: O divórcio, 1793.
Parts. Biblioteca N acional.)
REVOLUÇÃO FRANCESA E VIDA PRIVADA 39

que estavam ao alcance de quase todos; ainda mais surpreendente é que


tanto os homens quanto as mulheres podiam pedir o divórcio. Na época,
era a lei mais liberal do mundo.
No capítulo VI do Código Civil, os motivos foram reduzidos a três:
a condenação, as sevícias, o adultério. Em consonância com a reafirmação
napoleônica do poder paterno, os direitos da mulher foram consideravel­
mente reduzidos. O marido podia pedir o divórcio alegando adultério
da mulher, mas ela, por sua vez, só poderia pedi-lo caso seu marido man­
tivesse 1‘sua concubina na casa em comum’’ (artigo 230). Ademais, se fosse
reconhecida sua culpa de adultério, a mulher estaria sujeita a dois anos
de prisão, ao passo que o homem não receberia nenhuma punição. O di­
vórcio por acordo mútuo foi mantido, mas com muitas restrições: o mari­
do devia ter pelo menos 25 anos; a mulher devia ter entre 21 e 45 anos;
o casamento devia ter durado entre dois e vinte anos, e era necessária uma
autorização dos pais. Registraram-se quase 30 mil divórcios na França en­
tre 1792 e 1803, mas a seguir houve um grande decréscimo, sendo o di­
vórcio abolido em 1816. Em Lyon, para tomar um exemplo bastante estu­
dado, ocorreram 87 divórcios por ano entre 1792 e 1804, e apenas sete
entre 1805 e 1816. Em Roucn. 43% dos 1129 divórcios feitos entre 1792
e 1816 foram concedidos entre 1792 e 1795 — depois de 1803, não se con­
cederam mais do que seis divórcios por ano.
A possibilidade de se divorciar terá exercido uma influência efetiva A VIVÊNCIA
DO DIVÓRCIO
sobre a vida privada dos novos cidadãos da República? Nas cidades, sem
dúvida, mas no campo ela foi bem menor. Em Toulouse, por exemplo,
ocorreram 347 divórcios entre 1792 e 1803, mas nas regiões rurais de Re-
vel e Muret, no mesmo período, registraram-se apenasfdois em cada uma.
Nas cidades grandes, como Lyon e Rouen, analisando-se os casamentos
contraítfos durante a Revolução e sua situação no ano de 1802, ou seja,
dentro de um prazo de dez anos após a celebração, constatou-se que 3%
a 4% deles haviam terminado em divórcio. Por volta de 1900, após a res­
tauração do divórcio em 1884, o índice foi de 6,5% — taxa certamente
menos expressiva do que a da última década do século XVIII, levando-se
em conta que foi apenas na década posterior a 1792‘‘qpe houve grandes
facilidades para se conseguir o divórcio. Os casais divõrciados provinham
de todas as camadas da sociedade urbana, embora o maior índice de di­
vórcios se concentrasse entre os artesãos, os comerciantes e os profissio­
nais liberais. As mulheres, ao que parece, beneficiaram-se com as novas
leis; em Lyon e Rouen, dois terços dos pedidos feitos sem acordo mútuo
foram encaminhados por iniciativa das mulheres. Os pedidos por acordo
mútuo não são muito numerosos: isso ocorre apenas entre 20% e 25%
dos casos.
O motivo de divórcio que aparece com maior freqüência é o aban­
dono ou a ausência. O que vem a seguir é a incompatibilidade. Mesmo
40 ERGUE-SE A CORTINA

ü s estatísticas mais áridas vez por outra revelam histórias tristes: em Lyon,

um quarto dos que pedem divórcio por abandono se queixam de não ver
o cônjuge há dez anos ou mais! Metade dos cônjuges tinha deixado o lar
cinco anos antes, ou mais. A Revolução ofereceu a oportunidade de lega­
lizar uma situação de fato, numa realidade que envolvia problemas eter­
nos. Homens e mulheres citam o abandono e a incompatibilidade em
proporções praticamente iguais, mas — será de se admirar? — são as mu­
lheres que, na maioria das vezes, invocam as sevícias. As atas dos tribu­
nais de família e, posteriormente, dos tribunais civis estão repletas de his­
tórias de maridos que batem nas mulheres, muitas vezes ao voltarem das
tavernas, com socos, vassouradas, atirando pratos, ferros de passar e por
vezes chegando a facadas.
A legislação sobre o divórcio não foi concebida apenas para libertar
o indivíduo das coerções de uma situação doméstica deplorável. O casal
infeliz devia proceder por intermédio de um tribunal de família ou de
uma assembléia familiar, conforme o motivo do divórcio. Essa instância
se compunha de parentes (ou de amigos, caso não houvesse parentes) es­
colhidos pelos dois cônjuges, para julgar da aceitabilidade do pedido, pa­
ra tratar dos acertos financeiros e da guarda dos filhos. Ao que parece,
aceitava-se o divórcio de bom grado, já que apenas um terço e às vezes
a metade dos pedidos não eram consumados (certamente devido a pres­
sões familiares). O número de casos de concessão do divórcio é surpreen­
dente, considerando-se a novidade do procedimento e a resistência da Igre­
ja. Mesmo os bispos juramentados só aceitavam o divórcio sob a condição
de que nenhum dos cônjuges tornaria a se casar enquanto o outro estives­
se vivo. Todavia, cerca de um quarto dos homens e mulheres divorciados
tornaram a se casar (depois de 1816, a Igreja passou a reconhecer o segun­
do casamento, desde que o anterior tivesse sido apenas civil, pois esse ti­
po de casamento não tinha qualquer valor a seus olhos). Os pedidos de
divórcio raramente resultavam em conflitos pela guarda dos filhos, de um
lado porque a maiocia dos solicitantes já não tinha filhos pequenos (60%
dos casais registrados em Lyon e Rouen não tinham filhos menores de ida­
de), e de outro lado porque nem os tribunais nem os país consideravam
os filhos como parte integrante da célula familiar. Ademais, são raras as
referências aos filhos nos depoimentos dos casais ou nas discussões dos
tribunais: igualmente raros são os questionamentos das decisões relativas
à guarda dos filhos; quando citam os filhos, os casais frequentemente nem
A q u i, a m u lh er desem penha seu sequer mencionam os nomes deles ou, às vezes, nem dizem quantos são.
p a p el de m ensageira e ligação entre As formalidades do divórcio nos oferecem uma das raras vias de
o interior e o exterior da prisão.
acesso à sensibilidade privada durante a Revolução. Ê impossível dizer
O cesto da dona de casa tam bém e
um a arma. (A nônim o, m iniatura em
até que ponto a vida afetiva sofreu transformações. Nougaret conta a
m arfim , 1796. V izille, M useu da história de uma moça que engravidou de um amante casado. Para pro­
Revolução Francesa.) teger a honra de sua filha, a mãe da jovem anuncia que é ela mesma
kevoluçAo francesa e vida privada
42 ERGUE SE A CORTINA

que está grávida; assim, as duas podem se retirar para o campo, até o mo­
mento do parto. Esta mãe exemplar de Paris ou le ndeau levé [Paris ou
as cortinas levantadas] -(ano VIII) não parece muito atingida pela expe­
riência revolucionária. Os problemas vividos no casamento eram, decer­
to, os mesmos dos anos anteriores a 1789. A Revolução certamente não
inventou as sevícias contra as mulheres. Mas a possibilidade de divórcio,
por si só, deve ter exercido uma influência sobre o casamento. A partir
de então, podiam existir mulheres como a lionesa Claudine Ramey, que
queria deixar o marido porque “ não podia ser feliz com ele’’. Para mui­
tos, o amor devia ser a base do casamento. E o próprio casamento recru­
desceu durante a Revolução: de 239280 sob Luís XVI, o número anual
de matrimônios passou para 327 mil em 1793. Mas nem todos se casavam
por amor: a proporção de casamentos em que o marido tinha menos de
25 anos, sendo dez anos mais novo que a mulher, passou de 9% ou 10%
para 19% em 1796: o casamento não era a melhor maneira de escapar
ao recrutamento?
VIDA PRIVADA = E muito difícil expor a concepção da vida privada dos próprios revo­
VIDA SECRETA lucionários. As memórias das grandes figuras políticas são espantosamente
impessoais; são quase inteiramente dedicadas à vida pública, tal como
as memórias de seus predecessores do Antigo Regime, e, em sua maioria,
os aspectos da vida privada — o amor, as relações conjugais, a saúde —
permanecem na sombra, como se não guardassem nenhum vínculo com
a grande experiência de criação de uma nova nação. Mesmo as memórias
escritas muito posteriormente observam esses mesmos princípios. La
Réveilière-Lépeaux, que escreveu suas memórias por volta de 1820 e con­
sagrou muitas passagens de grande romantismo a seus primeiros amores,
reserva apenas um capítulo de seus três volumes para sua “ vida privada
antes da Revolução’’. A vida privada parece findar com a Revolução e re­
começar apenas quando se abandona a vida pública. “ Uma das circuns­
tâncias notáveis da [sua] vida privada” foi seu encontro de juventude com
o futuro deputado Leclerc (de Maine-et-Loire) no colégio de Angers. A
experiência da vida pública sob a Revolução parece ter tingido todas as
suas recordações do passado. Os únicos fragmentos de vida privada que
La Réveilière-Lépeaux comenta em suas Mémoires [Memórias] são os gran­
des acontecimentos de sua vida familiar: a busca de uma esposa e seus
sentimentos por ela e pelos filhos. Quando relata em detalhes sua expe­
riência revolucionária, ele elimina tudo o que não seja opinião política.
O público e o privado não se misturam.
A própria madame Roland escreve de maneira convencional. Sa­
bendo que iria ser guilhotinada, ela escreveu suas Notices bistoriques
sur la Révolution [Notícias históricas sobre a Revolução], que, como
as memórias dos homens políticos, constituem uma espécie de diário
político. Mas, ao mesmo tempo, ela também recorreu a seus anos de
juventude para as M.émoires, que concebia como um testemunho sobre
REVOLUÇÃO FRANCESA E VIDA PRIVADA 43
sua história privada: “ Eu me proponho empregar o tempo livre de meu
cativeiro para recordar o que me é pessoal”. Nessas páginas, ela descreve
pormenorizadamente sua vida com os pais e dá mais vazão a seus senti­
mentos privados do que La Révellière-Lépeaux. Sente uma imensa dor
com a morte da mãe; fala com um desprendimento muito maior sobre
suas primeiras impressões de monsieur Roland: “ Sua gravidade, seus cos­
tumes, seus hábitos, inteiramente consagrados ao trabalho, levavam-me
a considerá-lo, por assim dizer, sem sexo, ou como um filósofo que existia
somente pela razão”.
Em suas cartas da década de 1780, madame Roland havia consegui­
do mesclar um intenso interesse pelos acontecimentos políticos e um fas­
cínio constante pelos detalhes da vida cotidiana. Mas o tempo se acelera
e, completamente absorvida por sua vida pública nos anos seguintes, ela
jamais se tornará a madame de Sévigné da Revolução, com um engaja­
mento nos assuntos do momento que não mais lhe permite manter uma
correspondência de lazer. Mas ela soube reconhecer prontamente o im­
pacto da Revolução sobre a vida privada; em 4 de setembro de 1789, es­
crevia: “ Se um homem honesto pode seguir o facho do amor, é apenas
depois de tê-lo acendido ao fogo sagrado do facho da pátria”. O ano de
1789 é a grande divisória de sua vida privada, tal como o foi para a políti­
ca nacional. Suas Mémoiresparticuliers [Memórias particulares], maistpes-
soais, cobrem apenas o período que vai até a Revolução. Mesmo sabendo
que vai morrer, madame Roland dá curso a seus sentimentos pela filha:
“ Que ela consiga um dia cumprir, na paz e na sombra, õ^dever comoven­
te de esposa e mãe’ A participação na vida pública tinha anulado a vida
privada dessa mulher; ela esperava que sua filha tivesse: um destino di­
ferente.
O pouco que se sabe sobre os sentimentos íntimos das pessoas entre VIVER
E MORRER
1790 e os primeiros anos do século XIX revela uma grande preocupação,
SOB A REVOLUÇÃO
em primeiro lugar, pelo desenrolar da Revolução e, a seguir, pela edifica­
ção do Império. Cada um é atingido de alguma maneira* =— os filhos par­
tem para a guerra, os padres são deportados, as igrejas sé tornam locais
civis antes de serem reconsagradas, as terras são vendidaj èm leilão, e de­
pois readquiridas pelas famílias emigradas que.retornam-a França, os ca­
samentos não são mais celebrados da mesma maneira e o divórcio se tor­
na possível. Mesmo os nomes sofrem essa influência. Principalmente en­
tre 1793 e 1794, os filhos se chamam Brunis, Mucius-Scaevola, Péricles,
Marat, Jemmapes e até Nabiça, Beterraba ou Messidrice. São principal­
mente os meninos que recebem nomes revolucionários, e os ilegítimos
ou abandonados numa proporção maior do que os outros. A moda dos
nomes revolucionários passou depressa, depois do ano II, mas no começo
do século XIX ainda se encontravam aqui e ali alguns Prairial, Epicuro-
Demócrito ou Maria-Liberdade. Os nomes veiculavam tradições públicas.
44 ERGUE-SE A CORTINA

Local privilegiado da liberdade de Pode-se também ver a preocupação com os acontecimentos revolu­
expressão e da libertinagem no fin a l cionários nos excertos de cartas e fragmentos autobiográficos escritos por
do A n tig o Regim e, o Palais-Royal
pessoas menos ilustres. Ménétra, oficial de vidraceiro parisiense, relatou
conserva esse p a p el durante a
Revolução, deslocando-o a seguir para em seu diário sua experiência pessoal da vida revolucionária. Mesmo sen­
o com ércio privado. A í se fazem do uma visão pessoal, não raro ele emprega a linguagem dos termídoria-
todos os tip o s de negócios: neste caso, nos: “ O francês respirava apenas sangue [.„.]. [A Convenção sob Robes-
d e anim ais, m as tam bém de
pierre não passava] de um antro de delatores, de homens vingativos pro­
encantos. (Louis Léopold Boilly,
G aleria do Palais-Royal. Paris, M useu
curando destruir um partido para colocar outro em seu lugar”. Em suas
Carnavalet.) cartas ao irmão, o livreiro parisiense Ruault mostra as oscilações da políti­
ca parisiense e nacional com todos os detalhes, omitindo praticamente
todo o resto. De vez em quando, porém, os dois fàlam de sua vida fami­
liar (mas nunca com tantos detalhes como as Mêmoires de madame Ro-
land). Ruault interrompe sua correspondência por ocasião da morte de
seu filho único, explicando com desespero: “A febre ou o médico nos ar­
rebatou o que tínhamos de mais caro no mundo. Agora do que nos vale
viver?”. Ménétra fala do divórcio de sua filha, de seu segundo casamento,
esperando que ela esqueça “ as dores e as dificuldades que rinha sofrido
com o monstro do seu primeiro marido”. Durante o período de 1795,
tão pavoroso para todos, Ménétra tinha muito orgulho cm anunciar: “ Eu
vivia muito bem. [...] Não sentíamos de forma nenhuma a falta de ali­
mentos, (...] mantínhamos mesa farta” .
Os mais miseráveis pouco deixaram sobre suas vidas privadas. A taxa
de mortalidade atingiu seu auge em 1794, 1804 e 1814 (mas não supe­
rou, por exemplo, a de 1847). O número de suicídios atingiu o ponto má­
ximo nos anos de crise; os números parecem ter subido entre o ano VI
e o ano IX e, sob o Império, bateram todos os recordes em 1812. Sob Na-
poleão, ocorriam quase 150 suicídios por ano em Paris, em sua maioria
por afogamento no Sena. O índice de suicídios dos homens era três Yezes
superior ao das mulheres; sem dúvida, a proibição da Igreja católica exer­
cia uma maior influência sobre o sexo feminino. Não eram vagabundos
ou homens sem eira nem beira que decidiam terminar com uma vida in­
feliz lançando-se ao Sena: eram homens e mulheres abatidos, cuja exis­
tência já penosa se tornava a cada dia mais difícil, sem esperanças de me­
lhora. Deixavam pouca coisa: as roupas que estavam usando e o testemu­
nho de parentes, amigos e vizinhos que iam identificar os corpos. Tudo
o que sabemos sobre seus sentimentos íntimos é que estavam desespera­
dos demais para continuar a viver.
SADE OU Para falar da vida privada sob a Revolução, somos quase sem­
A REVOLUÇÃO
pre obrigados a nos basear em dados quantitativos da história social
DO SEXO
(o índice de divórcios e de suicídios) e em depoimentos diretos de
alguns membros da elite que tinham oportunidade de escrever seus
pensamentos “ privados”. Pouco sabemos do que sentia a maioria
das pessoas em seus espaços “ interiores” . O qué pensava o .soldado
em sua barraca, o prisioneiro em sua cela, a mulher do revolucionário en-
m V U 'Ç A O FMNŒSA E VIDA PXIVADA
quanto preparava as refeições, o carregador de água enquanto subia as
ruas ou quando não conseguia dormir em sua cama, no final do dia? Não
sabemos sequer se esses instantes fugidios de consciência privada possuíam
algum sentido para as pessoas que viviam sob a Revolução. Mas há um
exemplo que não pode ser ignorado em nenhuma história da vida priva­
da: é o do marquês de Sade. Os textos de Sade exploraram os limites mais
extremos da sexualidade, que certamente constitui uma das dimensões
mais importantes da vida privada, e ainda hoje essas explorações definem
os limites da consciência moderna sob vários aspectos. Será urna coinci­
dência que as principais obras de Sade tenham sido compostas entre 1785
e 1800 (com algumas outras datando dos anos que antecedem sua morte
em 1814)?
Nos primeiros anos de Donaticn Alphonse François de Sade, nada
nos permite antever o futuro autor de Justine, de La philosophie dam le
boudoir [A filosofia na alcova] e das Cent vingt joumées de Sodome (Cento
e vinte dias de Sodoma], O jovem Sade estudou em Louis-le-Grand, an­
tes de ingressar no Exército real, à semelhança de muitos jovens nobres
e futuros herdeiros de títulos de nobreza. Casou-se aos 23 anos e, nos meses
seguintes, ficou preso em Vincennes por ordem régia, devido a ‘devassi­
dão excessiva’ início de uma longa carreira de libertinagem pontuada
por encarceramentos. Entre 1778 e 1790, ele passou onze anos em Vin­
cennes e na Bastilha, e depois de 1801 não tornaria a sair da prisão (entre
1803 e 1814 ficaria em Charenton). Apesar de suas origens nobres, Sade
sobreviveu à Revolução em Paris, escrevendo peças e até trabalhando co­
mo funcionário (secretário da seção de Piques), antes de permanecer vá­
rios meses recluso, em 1794, na mesma prisão em que se encontrava Lados.
Antes de 1789, Sade era um libertino notório, mas, sob a Revolu­
ção, tornou-se ainda mais audacioso em seus textos: Justine teve seis edi­
ções no decênio que se seguiu à sua publicação em 1791. O romance
originai de trezentas páginas se converteu em 1797 em La nouvelle
Justine (A novajustine], com 810 páginas; Juliette, publicado no mesmo
ano, tinha mais de mil páginas. Aline et Valcour e La philosophie dans
le boudoir foram publicados em 1795. Os jornais denunciavam Sade
principalmente enquanto autor de Justine; La nouvelle Justine e Juliette,
os outros dois títulos do ciclo de Justine, acarretariam sua última con­
denação ao cárcere, de onde nunca mais sairia em vida. A quantidade
de edições e a notoriedade duradoura de Justine provam claramente
que Sade não era de todo desconhecido durante a Revolução. Lolotte
et Fanfan (1788), o romance mais conhecido de Ducray-Dumiml, o extra­
vagante autor sentimental que pode ser comparado à romancista inglesa
Ann Radcliffe, teve não menos de dez edições, mas Ducray-Duminil era.
o autor mais popular desse período. Numa época em que os novos gabi­
netes de leitura, que começaram a se multiplicar em Paris a partir de 1795,
estimulavam uma produção literária constante (de 4 a 5 mil títulos entre
REVOLUÇÃO FRANCESA E VIDA PRIVADA 47

1790 e ^814, segundo as estimativas) e um gosto crescente pelo romance,


a obra de Sade contava com um público significativo.
Os Contes philosophiques [Contos filosóficos] de Sade minavam o A DECLARAÇÃO
ideal revolucionário, não por rejeitá-lo, mas por levaç sua lógica ao extre­ DOS DIREITOS DE EROS
mo, chegando ao resultado mais repulsivo. Segundo ^Maurice Blanchot,
“ ele formula uma espécie de Declaração dos Direitos.do Erotismo’’, on­
de a natureza e a razão servem aos direitos de um egoísmo absoluto. Ao
longo de toda a sua obra, Sade inverte o habitual trfiíhfo da virtude sobre
jean-Jacques Lequeu (1757-1825),
o vício. Ele proclama: “ Sou em suas mãos apenas uma máquina que ela o m ais inspirado dentre os arquitetos
[a natureza] move a seu bel-prazer’’. Num mundo novo, de iguaidade visionários de um a época que
absoluta, a única coisa que importa é o poder, amiúde brutal e cruel. O conheceu m uitos deles... Lequeu teve
nascimento, os privilégios, as distinções de toda e qualquer espécie desa­ um a intensa produção durante
a Revolução, em bora sem pre
pareciam frente a esse regime revolucionário e sem lei (no sentido usual
m antendo um a posição contestadora.
do termo). A obra de Sade glorificava e ao mesmo tempo desencaminha­
Perturbadora beleza do corpo
va a liberdade, a igualdade e até mesmo a fraternidade. A liberdade con­ fem inino neste desenho, aliás
sistia no direito de buscar o prazer sem consideração pela lei, pelas con­ bastante m isterioso. {Paris, B iblioteca
venções, pelos desejos dos outros (e esta liberdade, ilimitada para alguns, N acional.)
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significava em gerai a escravidão das mulheres escolhidas). Buscavam-se


os prazeres na igualdade, e ninguém unha direito a eles por nascimento;
venciam apenas os maisimpiedosos e os mais egoístas (quase sempre ho­
mens). Haverá exemplo mais claro de fraternidade do que os quatro ami­
gos das Cent vingt joum êes ou da "Sociedade dos Amigos do Crime"
em Juliette, cujos regulamentos e rituais parodiam a maçonaria e os mi­
lhares de Sociedades dos Amigos da Constituição (mais conhecidos como
jacobinos) da década revolucionária?
O privado ocupa um lugar muito especial nos romances de Sade.
Ele é necessário para os jogos mais extremos e mais cruéis, apresen­
tando-se quase sempre sob a forma de uma prisão. Como observa Roland
Barthes, "o segredo sadiano não é senão a forma teatral da solidão".
Cavernas, criptas, passagens subterrâneas, gtutas figuram entre os locais
prediletos do herói sadiano. O lugar supremo dos segredos e da soli­
dão consiste naqueles castelos especialmente escolhidos por estarem
apartados do mundo exterior (a sociedade). O castelo dc Silüng, na
Floresta Negra., c a locação principal de Cent vingt joumêes de Sodo?ne;
ém Justine, é o castelo de Sainte-Marie-des-Bois. Há pouquíssimos dc-
. ralhes .sobre o exterior desses castelos. O interior é sempre descrito em
termos ligados ao encarceramento: insiste-se sobre a reclusão, mas tam­
bém sobre a ordem repetitiva. Em Silling, “ era .preciso nundar empa­
redar todas as potras que davam entrada ao interior e se encerrar to-
calmence no local como numa cidadela sitiada [...]. O conselho foi
executado, montou-sc uma tal barricada que já nem se poderia reco­
nhecer onde haviam estado as potras, e as pessoas se instalaram no inte­
rior". Uma vez dentro desse mundo isolado do exterior, esse mundo
exclusivamente privado, a insistência recai sobretudo na rigidez da ordem.
A perversão não ê sinônimo de anarquia: c a inversão sistemática de
todos os tabus, o enfrentamento regrado e repetitivo de todos os limites,
até o ponto em que o prazer exige o crime.
AS MULHERES, Nesse espaço hiperprivado, os objetos do prazer e da ordem em ge­
PRISIONEIRAS ral são mulheres: "Tremam, adivinhem, obedeçam, previnam e (...) tal­
D O SEXO
vez vocês não sejam inteiramente infelizes" (Cent vingt joum êes). Com
poucas exceções, as mulheres em Sade não são livres e raramente sentem
prazer de plena vontade. “ Todo gozo partilhado diminui." O amor usual
e heterossexual constitui uma exceção: dá-se preferência a outros orifícios
em vez da vagina. As mulheres são objeto de agressões masculinas e não
têm qualquer identidade física. Juliette parece ser exceção à regra, mas,
para sobreviver, precisa roubar e matar meessantemente. Por uma espécie
de torção tocquevilüana, a igualdade e a fraternidade entre os homens
servem apenas para o despotismo total deles sobre as mulheres. Inúmeras
vítimas são aristocratas, mas o homem do novo mundo sadiano restaura
uma espécie de poder feudal no isolamento do Castelo, como uma-cela.
REVOLUÇÃO francesa e vida privada

Não podemos tomar Sade como o verdadeiro representante das ati­ A ilha do amor, a ilha encantada
tudes em relação às mulheres durante a Revolução; sua obra, porém, cha­ dos prazeres amorosos. Transposiçãt
arquitetônica de um m ito literário.
ma a atenção para o papel desempenhado por elas enquanto figuras pri­
Flores, pássaros, anim ais de todas a
vadas. Nos romances de Sade, o privado é o lugar onde as mulheres (às espécies se encontram em abundam
vezes crianças, inclusive garotos) são encarceradas e torturadas para o go­ nesse palácio, onde se com binam
zo sexual dos homens. Não se tratará apenas de umajedução aü absurdo, todos os tipos de influências e
fantasm as, disciplinados num a
tipicamente sadlana, da concepção dos sans-culottesLt dos jacobinos so­
sim etria perfeita. Jean-Jacques
bre o legar da mulher mantida no espaço privado? Os revolucionários li­ Lequeu, Paris, Biblioteca Nacional.)
mitaram o papel das mulheres ao de mãe e irmã — dependendo, para
suas identidades, dos maridos e dos irmãos; Sade as converteu em prosti­
tutas profissionais ou em mulheres cujo papel principal é sua disposição
em se deixarem acorrentar pelos homens, tendo comb única identidade
a de objetos sexuais. Nessas duas representações do privado, as mulheres
não possuem qualquer identidade própria — peh> menos é o que dese­
jam os personagens masculinos, pois, na verdade,'elas são apresentadas
como destruidoras em potencial, como se fosse mais do que evidente que
jamais aceitariam voluntariamente os papéis que lhes são designados. Se
não fosse este o caso, por que os jacobinos, quando ás mulheres reivindi­
caram o direito de desempenhar um papel público, responderam que se­
ria o caos, reagindo com tanto mau humor e, ousamos dizer, tanta histe­
ria? E por que, encão, Sade teria uma tal obsessão pelo castelo fechado?
“ Para impedir os ataques exteriores não muito remidos e as invasões in­
teriores bem mais temidas" {Cent vingt joumêes).
A concepção da mulher, talhada especialmente para o privado (e in­
capaz para o público), é a mesma em quase todos os círculos intelectuais
do final do século X V III.'O tratado de Pierre Roussel, Du système physi-
que et moral de la fem m e [Do sistema físico e moral da mulher] (1775;
2a ed., 1783), tornou-se uma referência no discurso sobre a mulher. Esta
é representada como o inverso do homem. É identificada por sua sexuali­
dade e seu corpo, enquanto o homem é identificado por seu espírito e
energia. O útero define a mulher e determina seu comportamento emo­
cional e moral. Na época, pensava-se que o sistema reprodutor feminino
era particularmente sensível, e que essa sensibilidade era ainda maior de­
vido à debilidade intelectual. As mulheres tinham músculos menos de­
senvolvidos e eram sedentárias por opção. A combinação de fraqueza mus­
cular e intelectual e sensibilidade emocional fazia delas os seres mais ap­
tos para criar os filhos. Desse modo, o útero definia o lugar das mulheres
na sociedade como mães. O discurso dos médicos se unia ao discurso dos
políticos.
Sob a Revolução, Roussel escreveu algumas vezes em La Décade Phi-
losophique [A Década Filosófica], jornal “ ideológico” ; ele estava ligado
à seção moral da Segunda Turma do Instituto. Seu jovem colega Cabanis
comungava de suas idéias sobre as mulheres. Os homens eram biologica­
mente fortes, audaciosos e empreendedores; as mulheres eram fracas, tí­
midas e apagadas. Apesar de sua amizade com madame de Staél e mada-
me Condorcet, Cabanis recusava qualquer papel intelectual e político às
mulheres; uma carreira pública destruiria a família, fundamento da so­
ciedade e base da ordem natural. Jacques-Louis Moreau (de Sarthe), dis­
cípulo de Cabanis, ideólogo como ele e freqüente colaborador de La Dé­
cade Philosophique, concorreu para os progressos da nova ciência da “ an­
tropologia morai” com seu estudo em dois volumes sobre a Histoire
naturelle de la fem m e [História natural da mulher] (1803). Suas idéias
são convencionais: “ Se é verdadeiro dizer que o macho é macho apenas
em certos momentos, mas que a fêmea é fêmea durante toda a sua vida,
isso deve ser atribuído principalmente a esta influência [a influência ute­
rina]; é ela que lembra o sexo à mulher de maneira contínua e confere
a todas as suas maneiras de ser uma fisionomia tão acentuada”. Em con-
seqüência disso, ‘‘as mulheres são mais propensas do que os homens a
acreditar em espíritos e a ver aparições; elas se entregam com tanta maior
facilidade a todas as práticas supersticiosas na medida em que seus pre­
conceitos são mais numerosos; foram elas, em grande parte, as responsá­
veis pela fortuna do hipnotismo’\ Portanto, não admira que tais criaturas
fossem influenciadas pelos padres refratários e sofressem as formas mais
terríveis de escravidão sexual.
Já há muito tempo observou-se que foi no século XIX que as mu­
lheres ficaram relegadas à esfera privada a um grau até então jamais co­
nhecido. Essa tendência data do final do século XVIII (antes mesmo
REVOLUÇÃO FRANCESA E VIDA PRIVADA 51

da Revolução). Mas a Revolução deu um grande impulso a essa evolução


decisiva das relações entre os sexos e da concepção da família. As mulhe­
res estavam associadas a seu “ interior”, ao espaço privado, não só porque
a industrialização permitia que as mulheres da burguesia se definissem
exclusivamente por ele, mas também porque a Revolução tinha demons­
trado os resultados possíveis (e o perigo para os homens) de uma inversão
da ordem “ natural” .
A mulher se tornou o símbolo da fragilidade que devia ser protegi­
do do mundo exterior (o público); tinha se convertido no símbolo do pri­
vado. As mulheres só podiam ficar confinadas em espaços privados, devi­
do à sua fragilidade biológica, e o próprio privado se revelara frágil frente
à politização e à transformação pública do processo revolucionário.
Se o Estado podia regulamentar a vida familiar e alterar a medida
do tempo diário, mensal ou anual, se a política podia decidir o nome dos
filhos e a escolha das roupas, a vida privada também podia desaparecer.
E a vida mais íntima se encontrava submetida a pressões devido à secula-
rização do casamento, à restrição religiosa, à mobilização em massa; a or­
dem até então tida como natural se tornava instável. As mulheres podiam
se vestir como os homens e pretender lutar na frente militar. Se fossem
“ infelizes”, podiam pedir o divórcio. A abolição da deferência perante
os reis, as rainhas, os nobres e os ricos parecia pôr em questão a deferên­
cia da esposa em relação ao marido, dos filhos em relação aos ’pais.
Os próprios revolucionários sentiram a necessidade de marcar um li­
mite intransponível, de mostrar claramente que as mulheres estavam do
lado privado e os homens do lado público. A partir-de 1794, em 1803,
em 1816 e ao longo de todo o século XIX, essa demarcação entre o públi­
co e o privado, o homem e a mulher, a política e a fàmília, acentuou-se
de forma constante. Mesmo os revolucionários mais encarniçados não con-
seguirafh suportar a tensão criada pela invasão do público no privado, e
se distanciaram progressivamente de sua criação, bem antes do Termidor.
Mas as ondas de choque que criaram não deixaram de se fazer sentir até
a década de 1970, quando as leis francesas sobre a femília finalmente re­
tomaram alguns princípios de 1792: a lei sobre o divô'rcio de 11 de julho
de 1975 tornou o procedimento tão fácil quanto en* 1792; a lei de 4 de
junho de 1970 livrou o casal dos resquícios da supremacia conjugal do
marido, tal como nos primeiros anos da Revolução; a hei de 3 de janeiro
de 1972 assegurou aos filhos naturais direitos que já haviam sido conce­
didos a eles no ano II. Haverá maneira melhor de avaliar a modernidade
dos princípios da Revolução e os efeitos a longo prazo (positivos e negati­
vos) da herança revolucionária?

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