Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Terror
O ideal, no entanto, era simplesmente o que Robespierre dizia que era. E a lei
era o que Robespierre e seus seguidores desejavam que fosse. Eles mudavam
isso a seu bel-prazer e determinavam se sua aplicação num caso particular era
justa. A justificação de monstruosas ações apelando a um ideal
passionalmente conduzido, elevado a protótipo de razão e moralidade, é uma
marcante característica de ideologias políticas no poder. Para os comunistas,
era uma sociedade sem classes. Para os nazistas, pureza racial. Para os
terroristas islâmicos, sua interpretação do Corão. A característica comum é que
o ideal, de acordo com seus verdadeiros crentes, é imune à crítica racional ou
moral, porque ele é o que determina o que é razoável e moral.
Robespierre, conta Schama, “se rejubilou que ‘um rio de sangue agora separa
a França de seus inimigos’.”
Robespierre nunca se casou. Não são conhecidos seus casos amorosos. Ele
também não tinha qualquer interesse em sexo, dinheiro, culinária, artes,
natureza, ou realmente qualquer coisa além de política. Ele tinha cerca de
cinco pés e três polegadas de altura, com uma constituição leve, uma pequena
cabeça sobre os ombros largos e cabelos castanho claro. Ele tinha “espasmos
nervosos que, ocasionalmente, torciam seu pescoço e ombros, e exibia, ao
apertar suas mãos, movimentos característicos e piscadelas de suas
pálpebras”, diz Thompson. Vestia-se elegantemente e usava óculos “que ele
tinha o hábito de empurrar para cima na testa (…) quando queria olhar alguém
no rosto”. “Sua expressão habitual parecia melancolia a seus amigos e
arrogância a seus inimigos. Às vezes ele ria com a imoderação de um homem
com pouco senso de humor, às vezes o olhar frio se abrandava em um sorriso
de doçura irônico e bastante alarmante.” Com sua voz estridente e áspera “seu
poder como um orador (...) residia menos em como ele se apresentava e mais
na seriedade do que ele tinha a dizer, e na profunda convicção com que ele
dizia.”
Note que ao declarar como objetivo de criar uma sociedade onde “os princípios
imortais de igualdade, justiça e razão” prevaleceriam, Robespierre
simplesmente descartou a liberdade e a fraternidade, substituindo o que ele
considerava como a justiça e a razão. A justificação dos massacres foi que os
mortos eram inimigos da república, contra-revolucionários que tinham
conspirado contra a igualdade, a justiça e a razão cuja realização
“estabeleceriam a felicidade de, talvez, toda a raça humana.” O eixo sobre o
qual tudo girava eram aqueles princípios de igualdade, justiça e razão, que
Robespierre enunciou em uma declaração que formou a base da Constituição
de 1793. Alguns trechos: “Artigo 1. O objeto de toda associação política é a
salvaguarda dos direitos naturais e imprescritíveis do homem.” “Artigo 3. (...)
direitos pertencem igualmente a todos os homens, independentemente das
suas diferenças físicas e morais.” “Artigo 4. Liberdade é o direito de cada
homem exercer todas as suas faculdades à vontade. Sua regra é a justiça,
seus limites são os direitos dos outros, a sua origem é a natureza, sua garantia
é a lei.” “Artigo 6. Qualquer lei que viola os direitos imprescritíveis do homem é
essencialmente injusta e tirânica.”
Esta obra prima de sofisma era, então, uma novidade, mas para aqueles que
contemplam o século XX é tristemente familiar pelo uso que muitos regimes
assassinos fizeram dela. Todos eles afirmaram que seu objetivo era a
felicidade humana, mas que inimigos incorrigivelmente iníquos, disfarçando sua
verdadeira natureza e conspirando contra o mais nobre dos objetivos,
ameaçavam a sua realização. A suposta ameaça era muito grave, e o objetivo
muito importante, a ponto de justificar extremas, ainda que temporárias,
medidas – para identificar os inimigos, desmascarar suas conspirações e
exterminá-los. Para um punhado de heróis clarividentes e corajosos da
revolução – como a KGB, a SS, e a Guarda Vermelha – cabe o dever de
executar estas tarefas necessárias. Eles devem endurecer o coração e fazer o
que precisa ser feito no interesse do bem maior. Uma vez evitada a grave
ameaça, as medidas extremas não serão mais necessárias, e a felicidade
humana estará ao alcance de todos.
Uma característica notável dessa atitude mental é que aqueles sob sua
influência acreditam de fato nestas justificativas para arrancar entranhas,
linchar, mutilar, enterrar vivas, afogar e dilacerar suas vítimas infelizes. Na
verdade, as atrocidades apenas reforçam a segurança absoluta com as quais
os ideólogos abraçam suas convicções e impõem seus objetivos.
Mas quem são esses seres humanos não corrompidos que sabem o que é do
interesse geral? Robespierre responde: “Existem almas puras e sensíveis.
Existe uma suave, mas imperiosa e irresistível, paixão... um profundo horror da
tirania, um zelo compassivo pelo oprimido, um amor sagrado por sua pátria, e
um amor ainda mais sagrado e sublime pela humanidade, sem a qual uma
grande revolução não é mais do que a destruição de um crime menor por um
maior. Existe uma ambição generosa para fundar na terra a primeira república
do mundo... Vocês podem sentir isso, neste momento, queimando em seus
corações, eu posso sentir isso no meu próprio”. A mensagem clara quando a
retórica bombástica é esvaziada é que, desde que as pessoas têm sido
corrompidas, elas não podem ser confiáveis para saber o que é bom para elas,
mas ele, Robespierre, sabe, porque ele é incorruptível.
Se ele ficado apenas nisso, sua crença em sua própria pureza não seria mais
do que uma loucura atrevida de um megalomaníaco. Mas ele não ficou apenas
nisso. Ele se considerou no dever de coagir a população corrompida a viver de
acordo com o que ele em sua pureza considerava como virtude. Ele dizia: “Os
inimigos da República são covardemente egoístas, ambiciosos e corruptos.
Vocês têm expulsado os reis, mas vocês têm expulsado os vícios que a
dominação fatal deles criou dentro de vocês?” Robespierre se convenceu – e
coagiu os outros a acreditar ou a fingir acreditar – que sua vontade era a
vontade geral, a vontade que todos agissem como se todos fossem tão puros
como ele. Quando ele encontrou oposição, ele sabia com certeza absoluta que
seus adversários eram ou corrompidos e tinham que ser exterminados pelo
bem comum, ou ignorantes e tinham que ser coagidos para seu próprio bem a
agir como se fossem tão puros e virtuosos quanto ele. A base da ideologia de
Robespierre não era a razão e sim a paixão, que se tornou sua pedra de toque
da razão e da moralidade. Ele não perguntou se ele deveria alimentar essa
paixão, se a paixão era uma reação adequada aos fatos, se a paixão era muito
forte, ou se ele deveria ser guiado por ela. O objetivo de sua política era
adaptar o mundo a sua paixão, e não vice-versa. O resultado foi que se tornou
cego às necessidades reais da razão e da moralidade e decretou o assassinato
de milhares simplesmente por suspeitar que eles pudessem discordar de suas
opiniões passionais. Enquanto tudo isso acontecia, ele hipocritamente
proclamava que suas ações cruéis eram virtuosas e que ele era o campeão da
razão e da moralidade.
Robespierre, no entanto, não foi doutrinado. Ele construiu sua ideologia por si
mesmo, de suas leituras, educação, e experiências iniciais na política. Como
um advogado treinado para garimpar provas e analisar as interpretações dos
fatos, ele tinha habilidade para pensar criticamente sobre sua ideologia.
Contudo, ele não o fez. Ele é, portanto, responsável pelos assassinatos em
massa que causou. E o mesmo vale para os inúmeros comunistas, nazistas,
maoístas, ou os terroristas que escolheram suas ideologias em detrimento de
alternativas perfeitamente disponíveis, as quais eles não poderiam ignorar.
Mas e todos aqueles que seguiam Robespierre e que não partilhavam nem sua
ideologia e nem sua paixão monstruosa? Muitos seguiram porque ele os
deixava agir segundo seus piores instintos, os quais eles tinham tido que
reprimir quando a lei e a ordem prevaleciam.
Mas a principal razão por que as pessoas o seguiram foi o medo. Ninguém
estava seguro, e as pessoas ficavam ansiosas para provar com palavras e atos
que eram leais e entusiasmados partidários. Robespierre exercia seu poder
sobre a vida e a morte tão arbitrariamente como Hitler, Stalin e Mao.
Arbitrariedade é a chave para o terror: se não há regras, justificativas, ou
razões, então todo mundo está em risco. O único jeito de tentar minimizar o
risco é superar os outros na adesão à norma. Ditadores entendem isso, o que
explica muito das “manifestações espontâneas” e da adulação pública que
extraem do povo enganado e apavorado a sua mercê.
Condenar Robespierre mais de 200 anos depois de sua morte teria pouco
sentido se ele não fosse uma amostra do sistema psíquico ideológico que hoje
em dia nos é muito familiar. Se nós o entendermos, entenderemos também que
é totalmente inútil apelar à razão e à moralidade quando tivermos que tratar
com ideólogos. Pois eles estão convencidos de que a razão e a moralidade
estão com eles e que seus inimigos são irracionais e imorais, apenas por
serem inimigos. Negociações com essas pessoas só podem ter êxito se
tivermos uma força esmagadora do nosso lado e nos mostrarmos
determinados a usá-la. Uma justificativa do uso da força para o eleitorado de
um país democrático – acostumado a pensar a política como um processo de
negociação e de compromisso razoável – deve incluir a exposição com
detalhes doentios das monstruosidades cometidas em nome da ideologia. E é
por isso que faz sentido nos lembrarmos dos crimes do há muito tempo morto
Robespierre.