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especificando: “Ele será a última das grandes existências in-
dividuais; ninguém mais se elevará nas sociedades ínfimas e
niveladas”.5 Seguindo Chateaubriand, os “filhos do século”*,
em luto por seu “professor de energia” (de Stendhal a Barrès),
encontrariam na epopeia napoleônica, ornamentada em versos
e em prosa, a prova enlutada de seu dogma mais essencial: a
afirmação do indivíduo.
O cativo de Santa Helena pressentia essa fortuna literária
póstuma: “Que romance, porém, minha vida!”6, constatava em
sua ilha, quase exclusivamente dedicado a repassar, incansá-
vel, as cenas do passado. Romântico, ele tinha a aguda cons-
ciência, antes de Stendhal (A vida de Napoleão, 1817-1818),
antes de Chateaubriand (Vida de Napoleão, livros XIX a XXIV
das Memórias de além-túmulo), antes do Hugo da ode “À la
colonne de la place Vendôme” e do Cromwell (1826-1827),
de que sua vida era o “romance” por excelência: ela seria o
modelo inigualável de todos os grandes escritores do século,
de Balzac a Claudel, de Walter Scott a Dostoiévski, e conti-
nuaria sendo um sucesso de vendas no fim do século seguinte.
Mais que isso: o jovem Napoleão Bonaparte quisera ser
escritor. Primeiro-cônsul, imperador e depois exilado, continuara
querendo**, confirmando o laço particular entre a literatura e a
política, típico do romantismo, mas também do governo fran-
cês de François I a François Mitterand. Napoleão declarou no
Memorial, apesar de ter sido responsável pelo exílio dos dois
maiores intelectuais de seu tempo: “Os Antigos nos eram muito
superiores nesse aspecto [a escrita da História]; e isso porque,
neles, os homens de Estado eram homens de letras, e os homens
de letras, homens de Estado”.7 De fato, ao longo de toda a sua
vida ele atribuiu grande importância à transcrição por escrito
de suas ações, à publicação delas. Sua sólida correspondência,
seus discursos, proclamações e demais ordens do dia durante a
guerra, os boletins do Grande Exército e, por fim, o Memorial
* Alusão a Alfred de Musset, La confession d’un enfant du siècle [A confissão
de um filho do século] (1836).
** “‘E eles ousaram dizer que eu não sabia escrever!’, ele exclamou” [ao acabar
de ler em voz alta suas proclamações ao exército da Itália] (Memorial, p. 544).
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foram os instrumentos mais decisivos de sua arte de governar.
Ele inventou a “propaganda”, sendo o precursor tanto dos regi-
mes totalitários quanto da hipermidiatização das democracias
ocidentais (a preponderância da escrita concedia um lugar de
destaque à imagem: atenção dada aos pintores, David, Gros etc.).
Concordando com Madame de Staël, eterna oponente
por ele exilada, sabia tanto quanto ela, e melhor ainda, o quanto
a literatura (palavra que ela fortaleceu) e o romance, gênero
literário nascido com a morte de Napoleão, estavam ligados
às convulsões da Revolução Francesa.
O pequeno caporal que se tornou imperador encarna
de maneira exemplar e primordial, a seus próprios olhos e
aos de todo o século (inclusive do seguinte), as chances do
indivíduo em uma sociedade aberta pela vitória da vontade e
pela destruição das castas feudais. Pai tutelar do personagem
romanesco, ele criou um gênero de glória totalmente novo,
inteiramente ligado à promessa democrática da Revolução:
o do indivíduo qualquer que se arroga uma soberania e uma
liberdade de ação (uma potência) não garantidas a priori pelo
nascimento e dignas de um grande relato.
O paradoxo, porém – pois de fato existe um “porém”
(“Que romance, porém, minha vida!”8) –, é que Napoleão Bo-
naparte, por nascimento e educação, foi um homem do mundo
antigo. Toda sua ação política procurou, aliás, realizar o que
ele chamava de fusão entre a “aristocracia” e a “democracia”:
“A democracia eleva a soberania, somente a aristocracia a
conserva”9, ele explicaria a Las Cases.
Chegamos aqui à terceira dimensão do personagem: o
alcance religioso do Romance de Napoleão.* É o segundo
paradoxo: o homem da razão de Estado, o mais naturalmente
celebrado hoje, por quem a historiografia se interessa so-
bremaneira, o gênio administrador do primeiro-cônsul e do
imperador, construiu sua prática política sobre uma ambigui-
dade – nostálgico do caráter sagrado da antiga legitimidade,
* Essa dimensão religiosa é enfatizada no Memorial e, ao mesmo tempo,
contradita pela teoria pragmática nele apresentada, segundo a qual o exercício
da soberania deve ser uma simples “magistratura”.
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lúcido a respeito da impossibilidade de restaurá-la como tal,
convencido da força inquebrantável da ideia de “soberania po-
pular”, Napoleão Bonaparte contribuiu, depois de Robespierre,
e nisso foi o herdeiro do jacobino, para fundar espiritualmente
a política moderna sobre “as palavras mágicas de liberdade
e igualdade”.10
O mago é ao mesmo tempo supersticioso e racional: nem
sua prática de governo nem sua íntima convicção respeitarão
a dupla promessa messiânica e revolucionária de igualdade
e liberdade – apesar de consagrá-la como horizonte místico
da política.
A História é cíclica? – pergunta-se Victor Hugo em
Cromwell. Na peça de teatro que inaugurou o primeiro ro-
mantismo francês, o poeta mostra o Lorde Protetor inglês
hesitando em colocar na cabeça a coroa ensanguentada de sua
vítima, Carlos I da Inglaterra. A Revolução teria sido apenas
uma convulsão passageira, depois da qual a necessidade de
calma teria mecanicamente voltado à antiga ordem? Não
totalmente, responde de antemão o primeiro-cônsul, cercado
pelos regicidas Carnot e Fouché, preparando-se para ser sa-
grado imperador*; o poder era eterno, mas sua legitimidade
evoluía com as crenças: a época tornou necessário convencer
o povo de que, primeiro magistrado do Estado, Napoleão I
encarnava sua soberania, e não o direito divino. Mas o papa
não deixou de ser convocado para a cerimônia da consagração.
Legitimidades antigas e novas, melhor precaver-se de todas
as religiões: elas não seriam, todas, até mesmo a promessa
política nascida com a Revolução Francesa, as múltiplas
formas pelas quais a humanidade tanto procurou fundar sua
razão de ser?**
* Ver também sua análise desse paralelo, que deve ter inspirado Cromwell a
Hugo (Memorial, p. 613).
** “Todas as nossas religiões são evidentemente filhas dos homens […] a
inquietude do homem é tal que ele precisa dessa incerteza e desse maravi-
lhamento que [a religião] lhe apresenta […]. Dizer de onde venho, o que sou,
para onde vou, está acima de minhas ideias, e mesmo assim tudo isso existe”
(Memorial, p. 783-784).
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Ele só acreditava em sua “estrela”. A respeito da classe
dos novos-ricos e dos “negociantes” que “tirou proveito de
seus 25 anos de revolução”11 e sobre a qual se apoiava seu
regime, ele não hesitaria em dizer, em Santa Helena, que ela “é
o flagelo, a lepra de uma nação”12, que ela apenas “demonstrou
corrupção e versatilidade” e “perdeu a honra do povo”.13 Ele
sem dúvida se sentia bem colocado para afirmar que aqueles
que diziam combater pela liberdade só eram animados pela
vaidade*: ele pensava nos homens do Diretório, cuja fortuna
fizera, e não se colocava entre eles porque não tinha, como
eles, contribuído para a queda de Robespierre; esse julgamento
também pode ser aplicado à sua “Contrarrevolução de egotista
grandioso”.14
No entanto, seja qual fosse sua aversão pela “canalha”
anárquica, como ele chamava os insurgentes do ano II ou os
dos Cem Dias, o exilado de Santa Helena se atribuiria o mérito
de ter inscrito os “princípios revolucionários” no mármore do
Estado: a igualdade cidadã perante a lei sempre reivindicada
por nossas constituições democráticas.
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Fumaroli) que entrelaçou por no mínimo dois séculos os des-
tinos da política e da literatura. Chateaubriand tentará anular
o storytelling grosseiro do saltimbanco-chefe que construiu
sua imagem por meio das sutis nuanças da literatura. Contu-
do, as Memórias de além-túmulo não deixaram de contribuir
enormemente para erigir o monumento do grande homem. E
o novo teatro do mundo, constituído pelo romance realista,
nasceu dessa alucinação coletiva ao mesmo tempo literária e
política da qual Napoleão foi o arauto e o primeiro herói: o
direito supremo de nossas democracias não foi sempre aquele
que todos reivindicam, o direito de contar sua própria vida?
Ainda vivemos dessa alucinação. Não se trata sempre,
no fundo, de “tornar-se Napoleão” – ou no mínimo de reivin-
dicar esse direito?
O questionamento da igualdade cívica em nome do
“direito natural” e da igualdade real abalou o mito político da
grande nação igualitária. O cineasta Jean Renoir demonstrou,
em seu filme A grande ilusão, nos anos 1930, que a grande nação
igualitária havia se transformado, em 1914-1918, na grande
carnificina igualitária, e o romancista Claude Simon narrou a
agonia do mito durante a drôle de guerre, em seu romance La
Route des Flandres. Hoje, a questão é saber se ainda acreditamos
na possibilidade efetiva da liberdade, da igualdade e da fraterni-
dade supostamente resultante: ainda somos capazes de desejar
uma soberania política compartilhada, que todos sabem não se
realizar nem no individualismo consumista mais ou menos pau-
perizado ao qual as massas “democráticas” parecem devotadas,
nem nos quinze minutos de fama que a telerrealidade concede
aos mais ou menos anônimos, nem na remota Europa de antigas
divisões e de insuficiente funcionamento democrático? Ainda
somos capazes de desejar tornarmo-nos “grandes existências
individuais”, sem aspirar ao governo despótico?
Revisitar o Romance de Napoleão, fazer de Napoleão
Bonaparte (a quem devolvo, para isso, um nome e um so-
brenome) “um homem inteiro, feito de todos os homens”*, é
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necessariamente e duplamente a ocasião para colocar à prova,
a cada momento da narração, nossa convicção primordial na
igualdade e na liberdade das quais ele supostamente foi o
salvador.
Haveria uma maneira de narrar entre a heroicização
do grande homem fatalmente tirânico (o gênio nem sempre
o é, dizem) e a pulverização niilista da “grande ilusão” po-
lítica? Dos românticos, nostálgicos “filhos do século” que
interiorizaram a epopeia napoleônica para transformá-la em
lirismo íntimo e melancólico, à proclamação “pós-moderna”
do fim das grandes narrativas, a literatura contribuiu para
deslegitimar o laço que a prendia à promessa revolucionária.
Como desfazer o double bind (duplo vínculo) ao qual está
preso aquele que por sua vez quer contar a História, entre a
esquizofrenia formalista da desfusão sistemática e a ranço-
síssima e ultrapassada tendência ao fatalismo e aos discursos
mágicos de predestinação? Como romper com esse jogo de
espelhos perverso ao qual a literatura e a política (a História)
estão presas há duzentos anos, obrigando a primeira a ignorar
a segunda, ou a fazer-se sua cega propagandista, com algumas
raras exceções? Como colocar no centro da cena narrativa a
vontade de poder e a aspiração à soberania de um indivíduo
excepcional, sem nada perder do desejo político de igualdade?
Como conciliar a essência aristocrática do relato com o espírito
democrático da literatura pós-revolucionária: como não ceder
às sereias do niilismo político sem reativar a grande fatalidade
autocrática? Como, por fim, querer triunfar ali onde os maiores
e mais venerados de nossos escritores fracassaram?
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