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Por Ed N. Braga
Introdução
Senhoras e senhores, quando fui convidado
para dar uma série de palestras nos Estados Unidos
da América, tive alguma dúvida e hesitação.
Realmente não sou velho o bastante para dar
palestras, e estou mais a vontade com o processo do
pensamento do que em fazer afirmações
categóricas, já que não sinto que tenho qualquer
reivindicação sobre o que é geralmente chamado de
“A Verdade”. Compartilhei essas reservas e fui muito
educadamente informado de que minha opinião
pessoal não importava. O que importava era que eu
fosse capaz de oferecer alguns fatos sobre a França,
para que meus ouvintes pudessem formar suas
próprias opiniões. Sugeriram-me que eu informasse
meu público do estado atual do teatro francês, da
literatura francesa ou talvez até da filosofia francesa.
Respondi que talvez fosse mais interessante falar
sobre os esforços extraordinários dos trabalhadores
ferroviários franceses, ou sobre o tipo de trabalho
que os mineradores de carvão estão fazendo no
norte. Mas então me disseram, e com toda a razão,
que não se deve forçar os talentos de ninguém, e que
esses diferentes assuntos deveriam ser discutidos
por especialistas. Já que eu claramente não sei nada
sobre alavancas ferroviárias, e que tenho me
interessado em questões literárias por bastante
tempo, era mais natural que eu falasse de literatura, e
não de trens. Finalmente eu entendi: o que importava
no final era que eu falasse sobre o que sei e desse
alguma noção sobre o que está acontecendo na
França. Precisamente por essa razão, não escolhi
falar nem da literatura, nem do teatro. A literatura, o
teatro, a filosofia, a pesquisa e os esforços de uma
nação inteira são meras reflexões de uma questão
fundamental: uma luta pela vida e pela humanidade
que nos preocupa neste momento. O povo francês
sente que a humanidade ainda está sob ameaça, e
também sente que para continuar vivendo, deve
resgatar uma certa ideia central de humanidade da
crise que asfixia o mundo inteiro. Por lealdade a meu
país, escolhi falar sobre essa crise humana. Já que
estou aqui para falar sobre o que sei, o melhor que
posso fazer é esboçar, o mais claramente que eu
puder, a experiência moral de minha geração. Porque
vimos a crise humana desenrolar-se, nossa
experiência pode lançar um facho de luz tanto no
destino da humanidade, quanto, em alguns aspectos,
nas sensibilidades dos franceses de hoje.
Primeiramente, gostaria de definir esta geração para
vocês.
A crise humana
Os homens da minha idade na França e na
Europa nasceram tanto antes quanto durante a
primeira grande guerra, chegaram à adolescência no
momento da crise econômica mundial e
completaram os 20 no ano da chegada de Hitler ao
poder. Para completar sua educação, foi-lhes
oferecida a guerra da Espanha, Munique, a guerra de
1939, a derrota1 e quatro anos de ocupação e lutas
clandestinas. Suponho que essa é o que se pode
chamar de uma geração interessante. E que,
justamente por isso, será mais interessante para
vocês que eu fale não em meu próprio nome, mas em
nome de um certo número de franceses que têm
agora 30 anos e que formaram suas inteligências e
corações durante os anos terríveis nos quais, como
seu país, foram nutridos de vergonha e viveram em
revolta.
Sim, esta é uma geração interessante,
principalmente porque em face do mundo absurdo
que os mais velhos fabricavam-lhe, não acreditava
em nada e ansiava revoltar-se. A literatura de seu
tempo, o surrealismo em particular, revoltava-se
contra a clareza, a narrativa e a própria frase em si. A
pintura era abstrata, ou seja, revoltava-se contra o
figurativismo, o realismo, a simples harmonia, o
sujeito e a realidade. A música recusava a melodia.
Quanto à filosofia, esta ensinava que não existia “a
verdade”, mas simplesmente “fenômenos”; que
existiam o Sr. Smith, o Sr. Durand, Herr Vogel, mas
nada em comum entre esses três fenômenos
particulares. Quanto à atitude moral de tal geração,
tornou-se ainda mais categórica. O nacionalismo
lhes parecia uma verdade fora de moda e a religião,
um exílio. Vinte e cinco anos de política internacional
lhes ensinaram a questionar qualquer pureza, e a
pensar que ninguém jamais estava errado ou certo.
Quanto à moral tradicional de nossa sociedade, nos
parecia aquilo que jamais havia deixado de ser, isto
é, uma monstruosa hipocrisia.
II.
Em Lyon, um de meus camaradas é levado de
sua cela para um terceiro interrogatório. Como suas
orelhas já haviam sido rasgadas durante o
interrogatório anterior, ele usa um curativo ao redor
da cabeça. O oficial alemão que o interroga é o
mesmo homem que conduziu as primeiras sessões
e, no entanto, é ele quem pergunta com um tom de
afeição e solicitude na voz: “E então, como estão
suas orelhas?”
III.
Na Grécia, após uma operação do Maquis2, um
oficial alemão se prepara para fuzilar três irmãos que
tomou como reféns. A velha mãe se joga aos seus
pés e ele consente em poupar a vida de um deles,
mas sob a condição de que ela própria escolherá
qual. Como ela não consegue se decidir, ele aponta a
arma para a cabeça dela. Ela escolhe o mais velho
(pois ele tinha uma família para cuidar) mas ao
mesmo tempo condena os outros dois, como o
oficial alemão queria.
IV.
Um grupo de mulheres deportadas, incluindo
uma de nossas camaradas, é repatriado para a
França, passando pela Suíça. Assim que entram no
território suíço, elas percebem um enterro civil
acontecendo, e a mera visão desse espetáculo lhes
causa uma gargalhada histérica: “É assim que os
mortos são tratados aqui”, elas dizem.
II.
Essa crise também está baseada na
impossibilidade de persuasão. Pessoas só podem
realmente viver se acreditam que possuem algo em
comum, algo que as une. Se se reportam
humanamente a alguém, elas esperam uma resposta
humana. No entanto, descobrimos que certos
homens não podem ser persuadidos. Uma vítima nos
campos de concentração não pôde ter a esperança
de explicar aos homens da SS3 que o estavam
espancando que eles não deveriam fazer aquilo. A
mãe grega da qual falei não pôde persuadir o oficial
alemão de que ele não tinha o direito de forçá-la a
partir o próprio coração. A SS e o oficial alemão não
representam mais o homem ou a humanidade, mas
sim um instinto elevado ao status de uma ideia ou
teoria. A paixão, até mesmo a paixão mortal, teria
sido preferível. Pois a paixão segue seu curso, e uma
outra paixão, outro grito da carne ou do coração,
toma seu lugar. Mas um homem capaz de terna
preocupação pelas orelhas que ele recentemente
rasgou, não é um homem apaixonado, mas sim um
cálculo matemático que não pode ser contido e com
o qual não se pode arrazoar.
III.
Essa crise também é causada pela substituição
do real pela matéria impressa, isto é, pelo
crescimento da burocracia. O homem
contemporâneo tende mais e mais a colocar entre si
e a natureza um maquinário abstrato e complexo que
o lança na solidão: somente quando não há mais
pão, os cupons “vale um pão” aparecem. Os
franceses subsistem com uma dieta de 1.200
calorias por dia, mas possuem pelo menos 6
diferentes formulários cada um, e uma centena de
selos oficiais para cada um desses formulários. Em
todo lugar onde a burocracia está se expandindo, é a
mesma coisa. Para ir da França à América usei papel
à beça em ambos lugares, tanto papel que poderia
ter impresso cópias desta palestra suficientes para
serem distribuídas aqui e eu não precisaria sequer
comparecer. Com tanto papel, tantos oficiais e
funcionários, estamos criando um mundo no qual o
calor humano tem desaparecido. Onde ninguém pode
entrar em contato com ninguém, exceto através de
um labirinto do que chamamos de “formalidades”. O
oficial alemão que falou com carinho das orelhas
esfarrapadas de meu camarada achava que estava
tudo bem, já que rasgá-las era parte de sua missão
oficial, e que, portanto, não poderia haver nada de
errado com ela. Em suma, não mais se morre, não
mais se ama, e não mais se mata, exceto através de
uma procuração. Suponho que isso é o que se
chama de boa organização.
IV.
A crise também é causada pela substituição de
homens reais por homens políticos. A paixão
individual não é mais possível, apenas paixões
coletivas, ou seja, abstratas. Quer queiramos ou não,
não podemos mais escapar da política. Não importa
mais se respeitamos ou prevenimos o sofrimento de
uma mãe, o importante é assegurar o triunfo da
doutrina. O sofrimento humano não é mais
considerado um escândalo, mas apenas uma
variável numa conta cujos montantes terríveis ainda
não foram calculados. Está claro que esses
diferentes sintomas podem ser resumidos em algo
que pode ser descrito como o culto da eficiência e da
abstração. É por essa razão que os europeus de hoje
conhecem apenas a solidão e o silêncio. Eles não
podem mais comunicar-se uns com os outros
através de valores compartilhados. E já que não
estão mais protegidos pelo respeito mútuo baseado
nesses valores, sua única alternativa é se tornarem
vítimas ou executores.
I.
Devemos chamar as coisas pelo nome e
perceber que consentimos na morte de milhões de
seres humanos quando nos permitimos pensar
certos pensamentos. Um homem não pensa mal
porque é um assassino. Ele é um assassino porque
pensa mal. É assim que é possível ser um assassino
sem aparentemente nunca ter matado, e é assim que,
mais ou menos, todos nós somos assassinos. A
primeira coisa a se fazer é pura e simplesmente
rejeitar, em pensamento e em ação, qualquer forma
de pensamento realista e fatalista. Este é o trabalho
de cada um de nós.
II.
A segunda coisa a fazer é desoprimir o mundo
do terror que agora reina e que impede a nitidez do
pensamento. E já que me disseram que a
Organização das Nações Unidas está realizando uma
importante sessão nesta mesma cidade, podemos
sugerir-lhes que o primeiro texto escrito dessa
organização mundial, na esteira dos Tribunais de
Nuremberg, proclame solenemente a abolição da
pena de morte em todo o mundo. Este é o trabalho
dos governos.
III.
A terceira coisa a fazer é colocar a política,
sempre que possível, em seu devido lugar, que é um
lugar secundário. De fato, não é uma questão de dar
a este mundo um evangelho ou um catecismo
político ou moral. A grande desgraça do nosso tempo
é justamente esta política que tenta nos fornecer, ao
mesmo tempo, um catecismo, uma filosofia
completa e às vezes até uma arte de amar. Contudo,
o papel da política é fazer o trabalho doméstico, e
não resolver nossos problemas internos. Eu não sei
se existe um absoluto. Mas sei que ele não é político.
O absoluto não é um assunto para todos, mas para
cada um. E todos devem ajustar suas contas um
para com o outro, para que cada um possa ter o lazer
interior de se interrogar sobre o absoluto. Nossa vida,
sem dúvidas, pertence aos outros e é justo doá-la
quando se faz necessário. Mas nossa morte pertence
apenas a nós. Essa é a minha definição de liberdade.
Este é o trabalho dos legisladores e daqueles que
fazem as constituições.
IV.
A quarta coisa a fazer é buscar e criar, a partir
da negação, os valores positivos que permitirão uma
conciliação entre um pensamento pessimista e uma
ação otimista. Este é o trabalho dos filósofos, sobre
o qual mal falei aqui.
V.
A quinta coisa a fazer é entender que essa
atitude equivale a criar um universalismo onde todos
os homens de boa vontade possam encontrar um ao
outro. Para deixar a solidão para trás, devemos falar.
Mas devemos sempre falar com franqueza e, em
todas as ocasiões nunca mentir e sempre dizer
aquilo que sabemos ser verdadeiro. Mas só podemos
falar a verdade em um mundo no qual ela se
encontra definida e fundada em valores
compartilhados por todos. Não é o Sr. Hitler quem
decide o que é verdadeiro e o que é falso. Ninguém
neste mundo, nem agora nem nunca, deveria ter o
direito de decidir que a sua própria ideia de verdade é
boa o bastante para ser imposta em outros, porque
apenas a consciência compartilhada dos homens
pode realizar essa ambição. Os valores sustentando
essa consciência compartilhada devem ser
redescobertos. A liberdade que devemos finalmente
conquistar é a liberdade para não mentir. E só então
poderemos descobrir nossas razões para viver, e
para morrer. Este é o trabalho de todos.
Notas
Por Ed N. Braga