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Prefácio

Por Ed N. Braga

A crise humana (do original francês: La crise de


l’homme) foi uma conferência dada por Albert Camus
em 28 de março de 1946, no Teatro McMillin (hoje
Teatro Miller) da Universidade de Columbia, em Nova
Iorque, e repetida também no Brooklyn College e em
Harvard. Camus, na época com 32 anos, havia
terminado de escrever seu mais importante
romance, A peste, que viria a ser publicado na França
no ano seguinte, e já havia iniciado os primeiros
rascunhos de seu livro filosófico mais complexo e
polêmico, O homem revoltado, publicado cinco anos
depois. O texto da conferência foi escrito durante a
viagem de Camus para os Estados Unidos, parte de
uma missão governamental oficial para promover a
cultura francesa. Acompanhado por alguns de seus
companheiros da Resistência Francesa da qual era
membro, entre eles o escritor judeu Jean Bruller,
Camus havia sido alertado pelo então diretor de
Serviços Culturais da Embaixada Francesa em Nova
Iorque, o famoso antropólogo francês Claude Lévi-
Strauss, de que somente assuntos concernentes à
literatura e à arte deveriam ser abordados nas
palestras. A embaixada não queria mexer com
questões políticas e potencialmente desconfortáveis,
e o aviso de Lévi-Strauss era justificado pela
situação atravessada pela França durante aquele
período. O país havia sido ocupado pelos nazistas
por quatro anos, e estava livre a apenas um. O clima
de insegurança política era palpável no ar apesar do
alívio da Liberação, e o mundo inteiro ansiava por
notícias vindas daqueles que lutaram contra anos
negros de miséria e fanatismo. Enquanto o processo
de decomposição do fascismo moribundo de Hitler
lançava seus fedores por toda a Europa, e a maior
parte da classe intelectual francesa se preocupava
em fazer apologias ou defesas descaradas das
atrocidades da Rússia comunista de Stalin, Camus
unia seu fervoroso protesto pela liberdade ao
daqueles que se recusavam a contribuir com a
destruição dos valores, do diálogo racional e da
soberania legal dos indivíduos levada a cabo pelos
totalitarismos do séc. XX. Com isso em mente, fica
fácil entender a resposta dada por Camus a Lévi-
Strauss acerca da restrição às discussões artísticas
durante sua passagem pelos EUA. O jovem escritor
não acreditava ser possível falar sobre a arte e a
cultura sem que as devidas consequências de
posicionamentos nessas áreas para o ser humano
fossem devidamente levadas em conta. O
desembarque foi cheio de dificuldades burocráticas
(Camus foi detido por mais de quatro horas ao
desembarcar, por suspeitas de sua ligação com o
Partido Comunista francês – do qual havia sido
expulso quase dez anos antes – e só foi liberado por
terem sido encontrados artigos em jornais
americanos nos quais Hannah Arendt o defendia),
mas a presença de Camus conseguiu lotar o Teatro
McMillin com mais de 1500 jovens americanos,
número cinco vezes maior que o esperado para uma
palestra em francês. Àquela altura, os americanos
conheciam o ilustre convidado como o famoso autor
de O estrangeiro, mas ficaram surpresos pelo fato de
um homem que conhecia e descrevia tão
ardentemente a condição interna do indivíduo num
universo absurdo, possuir um senso tão forte de
comunidade e liberdade, que o levava a lutar contra
toda domesticação do homem e de seu tecido social
pela ideologia. Como o próprio Camus explicitaria
mais tarde em O homem revoltado, o comunismo e o
fascismo são culpados por essa atrocidade; são, no
final das contas, irmãos, filhos de um mesmo
niilismo. De fato, A crise humana é o texto camusiano
que anuncia com mais força a chegada de um novo
ciclo na carreira de seu autor: o ciclo da revolta. O
deserto do absurdo permanece apenas como um
ponto de partida. Deve-se ser capaz de fazer
nascerem num universo inóspito, assolado pelo
absurdo metafísico e pelo absurdo político, as flores
da beleza e do amor entre os homens, unidos por
valores positivos e por um destino comum.

Introdução
Senhoras e senhores, quando fui convidado
para dar uma série de palestras nos Estados Unidos
da América, tive alguma dúvida e hesitação.
Realmente não sou velho o bastante para dar
palestras, e estou mais a vontade com o processo do
pensamento do que em fazer afirmações
categóricas, já que não sinto que tenho qualquer
reivindicação sobre o que é geralmente chamado de
“A Verdade”. Compartilhei essas reservas e fui muito
educadamente informado de que minha opinião
pessoal não importava. O que importava era que eu
fosse capaz de oferecer alguns fatos sobre a França,
para que meus ouvintes pudessem formar suas
próprias opiniões. Sugeriram-me que eu informasse
meu público do estado atual do teatro francês, da
literatura francesa ou talvez até da filosofia francesa.
Respondi que talvez fosse mais interessante falar
sobre os esforços extraordinários dos trabalhadores
ferroviários franceses, ou sobre o tipo de trabalho
que os mineradores de carvão estão fazendo no
norte. Mas então me disseram, e com toda a razão,
que não se deve forçar os talentos de ninguém, e que
esses diferentes assuntos deveriam ser discutidos
por especialistas. Já que eu claramente não sei nada
sobre alavancas ferroviárias, e que tenho me
interessado em questões literárias por bastante
tempo, era mais natural que eu falasse de literatura, e
não de trens. Finalmente eu entendi: o que importava
no final era que eu falasse sobre o que sei e desse
alguma noção sobre o que está acontecendo na
França. Precisamente por essa razão, não escolhi
falar nem da literatura, nem do teatro. A literatura, o
teatro, a filosofia, a pesquisa e os esforços de uma
nação inteira são meras reflexões de uma questão
fundamental: uma luta pela vida e pela humanidade
que nos preocupa neste momento. O povo francês
sente que a humanidade ainda está sob ameaça, e
também sente que para continuar vivendo, deve
resgatar uma certa ideia central de humanidade da
crise que asfixia o mundo inteiro. Por lealdade a meu
país, escolhi falar sobre essa crise humana. Já que
estou aqui para falar sobre o que sei, o melhor que
posso fazer é esboçar, o mais claramente que eu
puder, a experiência moral de minha geração. Porque
vimos a crise humana desenrolar-se, nossa
experiência pode lançar um facho de luz tanto no
destino da humanidade, quanto, em alguns aspectos,
nas sensibilidades dos franceses de hoje.
Primeiramente, gostaria de definir esta geração para
vocês.

A crise humana
Os homens da minha idade na França e na
Europa nasceram tanto antes quanto durante a
primeira grande guerra, chegaram à adolescência no
momento da crise econômica mundial e
completaram os 20 no ano da chegada de Hitler ao
poder. Para completar sua educação, foi-lhes
oferecida a guerra da Espanha, Munique, a guerra de
1939, a derrota1 e quatro anos de ocupação e lutas
clandestinas. Suponho que essa é o que se pode
chamar de uma geração interessante. E que,
justamente por isso, será mais interessante para
vocês que eu fale não em meu próprio nome, mas em
nome de um certo número de franceses que têm
agora 30 anos e que formaram suas inteligências e
corações durante os anos terríveis nos quais, como
seu país, foram nutridos de vergonha e viveram em
revolta.
Sim, esta é uma geração interessante,
principalmente porque em face do mundo absurdo
que os mais velhos fabricavam-lhe, não acreditava
em nada e ansiava revoltar-se. A literatura de seu
tempo, o surrealismo em particular, revoltava-se
contra a clareza, a narrativa e a própria frase em si. A
pintura era abstrata, ou seja, revoltava-se contra o
figurativismo, o realismo, a simples harmonia, o
sujeito e a realidade. A música recusava a melodia.
Quanto à filosofia, esta ensinava que não existia “a
verdade”, mas simplesmente “fenômenos”; que
existiam o Sr. Smith, o Sr. Durand, Herr Vogel, mas
nada em comum entre esses três fenômenos
particulares. Quanto à atitude moral de tal geração,
tornou-se ainda mais categórica. O nacionalismo
lhes parecia uma verdade fora de moda e a religião,
um exílio. Vinte e cinco anos de política internacional
lhes ensinaram a questionar qualquer pureza, e a
pensar que ninguém jamais estava errado ou certo.
Quanto à moral tradicional de nossa sociedade, nos
parecia aquilo que jamais havia deixado de ser, isto
é, uma monstruosa hipocrisia.

Assim, permanecemos em negação.


Obviamente, isso não era novidade. Outras gerações,
de outros países, tiveram a mesma experiência em
períodos semelhantes da história. Mas a novidade é
que esses mesmos homens, estranhos a todos os
valores, tiveram de ajustar suas posições pessoais
para dar conta primeiramente da guerra, e em
seguida, do assassinato e do terror. Foi essa
situação que os levou a acreditar que poderia haver
uma crise humana, já que eram obrigados a viver na
mais desoladora das contradições. Pois eles
entraram na guerra, de fato, como quem entra no
inferno – se é verdade que o inferno é renegação.
Não amavam nem a guerra nem a violência; mas
tiveram de aceitar a guerra e praticar a violência. Não
odiavam nada a não ser o ódio, mas foram forçados
a aprender essa difícil ciência.

Por causa disso, cabia a eles lidar com o terror


ou o terror lidaria com eles. E se encontraram diante
de uma situação que, ao invés de caracterizar no
geral, eu gostaria de ilustrar através de quatro
histórias curtas de um tempo que o mundo está
começando a esquecer, mas que ainda queima em
nosso coração.
I.
No edifício da Gestapo de uma capital europeia,
após uma noite de interrogatório, estão dois
acusados amarrados ainda sangrando, e a porteira
do prédio (fazendo seu trabalho doméstico), com o
coração em paz, já que provavelmente havia
acabado de tomar o café da manhã. Censurada por
um dos torturados, ela responde indignada, com uma
frase que traduzida para o francês ficaria mais ou
menos assim: “Eu nunca me intrometo com o que
meus inquilinos fazem.”

II.
Em Lyon, um de meus camaradas é levado de
sua cela para um terceiro interrogatório. Como suas
orelhas já haviam sido rasgadas durante o
interrogatório anterior, ele usa um curativo ao redor
da cabeça. O oficial alemão que o interroga é o
mesmo homem que conduziu as primeiras sessões
e, no entanto, é ele quem pergunta com um tom de
afeição e solicitude na voz: “E então, como estão
suas orelhas?”

III.
Na Grécia, após uma operação do Maquis2, um
oficial alemão se prepara para fuzilar três irmãos que
tomou como reféns. A velha mãe se joga aos seus
pés e ele consente em poupar a vida de um deles,
mas sob a condição de que ela própria escolherá
qual. Como ela não consegue se decidir, ele aponta a
arma para a cabeça dela. Ela escolhe o mais velho
(pois ele tinha uma família para cuidar) mas ao
mesmo tempo condena os outros dois, como o
oficial alemão queria.

IV.
Um grupo de mulheres deportadas, incluindo
uma de nossas camaradas, é repatriado para a
França, passando pela Suíça. Assim que entram no
território suíço, elas percebem um enterro civil
acontecendo, e a mera visão desse espetáculo lhes
causa uma gargalhada histérica: “É assim que os
mortos são tratados aqui”, elas dizem.

Se escolhi essas histórias, não é por conta de


seu caráter sensacionalista – sei que devemos
poupar a sensibilidade do mundo e que, na maioria
das vezes, ele prefere fechar os olhos para manter a
tranquilidade – mas sim porque elas me permitem
responder de outra forma que não seja o
convencional “sim” à pergunta: “Existe uma crise
humana?”. Elas me permitem responder como todos
os homens dos quais falei responderam: “Sim, existe
uma crise humana, pois a morte ou a tortura de
alguém em nosso mundo de hoje pode ser
examinada com um sentimento de indiferença,
interesse amigável, experimentação científica, ou
simples passividade.”

Sim, existe uma crise humana, porque o abate


de um ser humano pode ser considerado com outra
coisa além do horror e do escândalo que deveria
suscitar, já que a dor humana é aceitada como um
serviço um pouco entediante, ou mesmo como um
abastecimento ou uma obrigação de ficar numa fila
para pegar um grama de manteiga. É fácil demais, a
essa altura, acusar somente a Hitler e dizer que uma
vez morta a besta, seu veneno desapareceu. Nós
bem sabemos que o veneno não desapareceu, que
nós o carregamos inteiro em nossos próprios
corações e que sentimos isso pelo modo como as
nações, os partidos e os indivíduos se encaram com
resquícios de raiva. Eu sempre acreditei que uma
nação deve responder tanto por seus traidores
quanto por seus heróis. Mas uma civilização
também. E a civilização ocidental, em particular, é
responsável tanto por suas perversões quanto por
seus sucessos. Sob esse ponto de vista, todos nós
devemos responder pelo hitlerismo e devemos
procurar as causas mais gerais que tornaram
possível o horroroso mal que começou a corroer a
face da Europa. Espíritos mais elevados poderiam
fazer dessa crise geral o assunto de discursos
edificantes. Mas a geração da qual estou falando
sabe que essa crise não é isso nem aquilo. Então
tentemos, com a ajuda das quatro histórias que
contei, enumerar os sintomas mais óbvios da crise.
I.
O primeiro sintoma é a ascensão do terror, que
é a consequência de uma perversão de valores tal,
que um homem ou uma força histórica não são mais
julgados em função de suas dignidades, mas de seu
sucesso. A crise moderna é inevitável porque
nenhum ocidental está assegurado de um futuro
imediato, e todos vivem com a angústia mais ou
menos definida de serem triturados de um modo ou
de outro pela história. Se não queremos que este
homem miserável, esse Jó dos tempos modernos,
pereça em meio às suas feridas e seu esterco,
devemos primeiro tirar de suas costas essa dívida de
medo e angústia, para que ele encontre a liberdade
de espírito sem a qual não resolverá os problemas
que se impõem à consciência moderna.

II.
Essa crise também está baseada na
impossibilidade de persuasão. Pessoas só podem
realmente viver se acreditam que possuem algo em
comum, algo que as une. Se se reportam
humanamente a alguém, elas esperam uma resposta
humana. No entanto, descobrimos que certos
homens não podem ser persuadidos. Uma vítima nos
campos de concentração não pôde ter a esperança
de explicar aos homens da SS3 que o estavam
espancando que eles não deveriam fazer aquilo. A
mãe grega da qual falei não pôde persuadir o oficial
alemão de que ele não tinha o direito de forçá-la a
partir o próprio coração. A SS e o oficial alemão não
representam mais o homem ou a humanidade, mas
sim um instinto elevado ao status de uma ideia ou
teoria. A paixão, até mesmo a paixão mortal, teria
sido preferível. Pois a paixão segue seu curso, e uma
outra paixão, outro grito da carne ou do coração,
toma seu lugar. Mas um homem capaz de terna
preocupação pelas orelhas que ele recentemente
rasgou, não é um homem apaixonado, mas sim um
cálculo matemático que não pode ser contido e com
o qual não se pode arrazoar.

III.
Essa crise também é causada pela substituição
do real pela matéria impressa, isto é, pelo
crescimento da burocracia. O homem
contemporâneo tende mais e mais a colocar entre si
e a natureza um maquinário abstrato e complexo que
o lança na solidão: somente quando não há mais
pão, os cupons “vale um pão” aparecem. Os
franceses subsistem com uma dieta de 1.200
calorias por dia, mas possuem pelo menos 6
diferentes formulários cada um, e uma centena de
selos oficiais para cada um desses formulários. Em
todo lugar onde a burocracia está se expandindo, é a
mesma coisa. Para ir da França à América usei papel
à beça em ambos lugares, tanto papel que poderia
ter impresso cópias desta palestra suficientes para
serem distribuídas aqui e eu não precisaria sequer
comparecer. Com tanto papel, tantos oficiais e
funcionários, estamos criando um mundo no qual o
calor humano tem desaparecido. Onde ninguém pode
entrar em contato com ninguém, exceto através de
um labirinto do que chamamos de “formalidades”. O
oficial alemão que falou com carinho das orelhas
esfarrapadas de meu camarada achava que estava
tudo bem, já que rasgá-las era parte de sua missão
oficial, e que, portanto, não poderia haver nada de
errado com ela. Em suma, não mais se morre, não
mais se ama, e não mais se mata, exceto através de
uma procuração. Suponho que isso é o que se
chama de boa organização.
IV.
A crise também é causada pela substituição de
homens reais por homens políticos. A paixão
individual não é mais possível, apenas paixões
coletivas, ou seja, abstratas. Quer queiramos ou não,
não podemos mais escapar da política. Não importa
mais se respeitamos ou prevenimos o sofrimento de
uma mãe, o importante é assegurar o triunfo da
doutrina. O sofrimento humano não é mais
considerado um escândalo, mas apenas uma
variável numa conta cujos montantes terríveis ainda
não foram calculados. Está claro que esses
diferentes sintomas podem ser resumidos em algo
que pode ser descrito como o culto da eficiência e da
abstração. É por essa razão que os europeus de hoje
conhecem apenas a solidão e o silêncio. Eles não
podem mais comunicar-se uns com os outros
através de valores compartilhados. E já que não
estão mais protegidos pelo respeito mútuo baseado
nesses valores, sua única alternativa é se tornarem
vítimas ou executores.

Eis o que os homens da minha geração


compreenderam, e eis a crise diante da qual se
encontraram e se encontram. Nós tentamos resolvê-
la com os valores dos quais dispúnhamos, ou seja,
nenhum, exceto a consciência do absurdo em que
vivíamos. Foi nesse estado de espírito que fomos
apresentados à guerra e ao terror, sem consolação
ou segurança. Sabíamos que não podíamos ceder às
bestas que se elevavam dos quatro cantos da
Europa, mas não sabíamos justificar essa obrigação
na posição em que estávamos. Além disso, até
mesmo os mais conscientes de nós perceberam que
ainda não haviam pensado em qualquer princípio que
lhes permitisse se opor ao terror e repudiar o
assassinato. Porque se não se acredita em nada, de
fato, se nada faz sentido e não se pode afirmar
qualquer valor, então tudo é permitido e nada tem
importância. Portanto, se não há nem bem nem mal,
Hitler não estava nem errado, nem certo. Pode-se
fazer milhões de inocentes passarem por
crematórios, como também pode-se devotar ao
tratamento de leprosos. Pode-se rasgar as orelhas
de alguém com uma mão, e embelezá-las com a
outra. Pode-se limpar a casa na frente de torturados.
E podem-se prestar honras aos mortos ou jogá-los
no lixo. Tudo isso é equivalente. E como pensamos
que nada fazia sentido, tivemos de concluir que
aquele que está certo é aquele que é bem sucedido, e
que este estará certo pelo tempo em que conseguir
ser bem sucedido. E isso é tão verdadeiro que, ainda
hoje, um monte de pessoas inteligentes e céticas
dizem a vocês que se por acaso Hitler tivesse
vencido a guerra, a história teria lhe rendido
homenagens e teria consagrado o pedestal atroz no
qual ele estava empoleirado. E, na verdade, não há
dúvidas de que a história como a conhecemos teria
consagrado o Sr. Hitler e justificado o terror e o
assassinato, assim como nós consagramos no
instante em que nos atrevemos a pensar que nada
faz sentido.

De fato, alguns dentre nós pensaram que na


ausência de qualquer valor superior, poderiam ao
menos acreditar que a história tinha um sentido. Em
todo caso, agiam como se pensassem assim.
Disseram que esta guerra era necessária porque
liquidaria a era dos nacionalismos e prepararia o
tempo dos Impérios depois dos quais se sucederiam,
após conflitos ou não, a sociedade universal e o
Paraíso na terra. Mas pensando assim, chegaram ao
mesmo resultado que teriam chegado se tivessem
pensado, como nós, que nada fazia sentido. Porque
se a história tem um sentido, ou é um sentido total
ou não é nada. Esses homens pensavam e agiam
como se a história obedecesse a uma dialética
soberana e como se todos nós nos movêssemos
juntos em direção a um objetivo definitivo.
Pensavam e agiam de acordo com o princípio
detestável de Hegel: “O homem é feito para a história,
e não a história para o homem.” Na verdade, todo o
realismo4 político e moral que hoje guia os destinos
do mundo obedece, muitas vezes sem sabe-lo, a
uma filosofia alemã da história, segundo a qual a
humanidade inteira se dirige, de acordo com
caminhos racionais, para um universo definitivo. O
niilismo foi substituído pelo racionalismo absoluto, e
em ambos os casos, os resultados são os mesmos.
Pois se é verdade que a história obedece a uma
lógica soberana e fatal, se é verdade, de acordo com
essa mesma filosofia alemã, que o estado feudal
deve fatalmente suceder o estado anárquico, e então
as nações ao feudalismo, e os impérios às nações,
para que então finalmente se alcance a sociedade
universal, então tudo o que serve a essa marcha fatal
é bom, e as conquistas da histórias são as verdades
definitivas. E como essas conquistas só podem ser
obtidas pelos meios comuns de guerras, intrigas e
assassinatos individuais e coletivos, todos os atos
são justificados não como bons ou maus, mas como
eficientes ou não.
Assim, no mundo de hoje, os homens da minha
geração foram entregues durante anos a uma
tentação dupla: pensarem que nada é verdadeiro ou
pensarem que apenas a rendição à fatalidade da
história é verdadeira. Foi assim que muitos
sucumbiram a uma ou outra dessas tentações. E foi
assim que o mundo foi entregue à vontade de poder,
ou seja, e por fim, ao terror. Pois se nada é verdadeiro
ou falso, se nada é bom ou mau, e se o único valor é
a eficiência, então a regra deve ser a do mais
eficiente, isto é, a do mais forte. O mundo não é mais
dividido entre justos e injustos, mas entre senhores e
escravos: aquele que está com a razão é aquele que
escraviza. A faxineira está certa, e não os torturados.
O oficial alemão que tortura e executa, os homens da
SS transformados em coveiros, eis os homens
razoáveis deste novo mundo. Olhem ao redor de
vocês e vejam se, mesmo agora, isso não é verdade.
Estamos presos em laços da violência e estamos
sufocando. Seja no interior das nações ou no mundo,
desconfiança, ressentimento, ganância e a corrida
pelo poder estão fabricando um universo sombrio e
desesperado no qual todo homem se vê obrigado a
viver no presente, com a simples palavra “futuro” a
retratar-lhe todas as angústias, pois está entregue a
poderes abstratos, emagrecido e embrutecido por
uma vida precipitada, separada das verdades
naturais, dos sábios passatempos e da simples
felicidade.
Afinal de contas, talvez vocês, nesta ainda feliz
América, não possam ver isso ou veem com
dificuldade. Mas os homens dos quais falo para
vocês têm visto isso a anos, provam desse mal em
sua carne, leem-no no rosto daqueles que amam, e
das profundezas de seus corações doentes ergue-se
uma terrível revolta que, eventualmente, acabará
arrastando tudo. Muitas imagens monstruosas ainda
os assombram para que pensem que isto será fácil,
mas sentem o horror desses anos profundamente
demais para permitir que continue. É aí onde começa
o verdadeiro problema. Não é suficiente que
conheçamos a doença. Devemos curá-la. Mas
como? Que remédios imediatos poderíamos aplicar à
nossa moléstia? Se as características desta crise
são a vontade de poder, o terror, a substituição do
homem real pelo homem político e histórico, o
reinado das abstrações e da fatalidade, e a solidão
sem futuro, então essas são as características que
devemos mudar se quisermos resolvê-la. Nossa
geração foi confrontada com este imenso problema
em todas as suas negações. Portanto, é dessas
mesmas negações que ela deve tirar sua força para
lutar. Era perfeitamente inútil dizer-nos: “vocês
devem acreditar em Deus, ou em Platão, ou em
Marx”, justamente porque não tínhamos esse tipo de
fé. A única questão era saber se iríamos aceitar ou
não um mundo onde só é possível ser vítima ou
executor.

Claro que não queríamos ser nenhum dos dois,


porque sabíamos no fundo de nossos corações que
essa distinção era uma ilusão e que na prática só
haveriam vítimas, uma vez que matar ou ser morto
equivaleriam ao mesmo resultado; os assassinos e
os assassinados acabariam todos sofrendo a
mesma derrota. O problema não era mais aceitar ou
não essa condição e esse mundo, mas saber que
razão poderíamos ter para nos opor a ele. Por isso
procuramos essas razões em nossa própria revolta, e
entendemos que não lutávamos apenas por nós
mesmos, mas por algo que era comum a todos os
homens. Como isso aconteceu? Num mundo privado
de valores, neste deserto do coração no qual
habitávamos, o que de fato a revolta poderia
significar? Ela nos transformou em homens que
diziam “não”, e ao mesmo éramos homens que
diziam “sim”. Dizíamos “não” ao mundo, à sua
absurdidade essencial, às abstrações que nos
ameaçavam, e a uma civilização da morte que estava
sendo preparada para nós. Dizendo “não”,
afirmávamos que as coisas já haviam durado o
bastante e que havia um limite que não poderia ser
cruzado. Mas ao mesmo tempo afirmávamos tudo o
que estava aquém daquele limite. Afirmávamos que
havia algo dentro de nós que rejeitava o escândalo
do sofrimento humano, algo que não seria humilhado
por mais tempo. É claro, essa contradição deveria ter
nos feito parar e refletir. Pensávamos que o mundo
existia e lutava sem valores reais. E ainda assim, lá
estávamos nós, numa luta contra a Alemanha.

Os franceses que conheci na Resistência, que


liam Montaigne nos trens enquanto
contrabandeavam seus panfletos, provaram que nós
podíamos, ao menos em nosso país, entender os
céticos5 enquanto mantínhamos um senso de honra.
E consequentemente todos nós, em virtude do
simples fato de que vivíamos, esperávamos e
lutávamos, afirmávamos algo. Mas esse algo
possuía algum valor geral? Seria algo mais do que a
opinião de um indivíduo e poderia servir como uma
regra de conduta? A resposta é bastante simples. Os
homens dos quais falo estavam prontos para morrer
no curso de sua revolta. A morte provaria que eles
sacrificaram a si mesmos por uma verdade maior do
que suas existências individuais, e que excedia seus
destinos individuais. O que nossos revoltados
estavam defendendo contra um destino hostil era um
valor comum a todos os homens. Quando homens
foram torturados diante de suas faxineiras, quando
orelhas foram retalhadas com diligência, quando
mães foram forçadas a condenar à morte os próprios
filhos, quando os justos foram enterrados como
porcos, esses homens em revolta julgaram que
algo neles estava sendo negado. Algo que pertencia
não apenas a eles, mas que era um bem comum
através do qual todos os homens poderiam alcançar
a solidariedade. Sim, esta foi a grande lição daqueles
anos desastrosos. A de que um insulto proferido
contra um estudante em Praga afetaria um
trabalhador nos subúrbios de Paris; que o sangue
derramado às margens de um rio no oriente europeu
poderia levar um fazendeiro do Texas a derramar o
seu nas colinas Ardennes que acabara de conhecer.
E mesmo isso era algo absurdo e louco, impossível
ou quase impossível de contemplar. Mas ao mesmo
tempo, havia naquele absurdo, a lição de que nos
encontrávamos em uma tragédia coletiva onde o
sentimento de uma dignidade compartilhada estava
em jogo. Uma comunhão entre os homens precisava
ser defendida e sustentada. Com isso em mente,
sabíamos como agir e aprendemos que os homens,
mesmo em situações de degradação moral absoluta,
podem encontrar valores suficientes para guiar suas
condutas. Uma vez que os homens começaram a
perceber a verdade subjacente no ato de se
comunicarem um com o outro, e no mútuo
reconhecimento da dignidade um do outro, ficou
claro que era exatamente a essa comunicação que
deveriam servir. Para poderem mantê-la, os homens
precisavam ser livres, já que um senhor e um escravo
não possuem nada em comum, e não se pode falar
ou estabelecer uma comunicação com um escravo.
Sim, a escravidão é um silêncio: o mais terrível de
todos os silêncios. Para manter essa comunicação,
teríamos de eliminar a injustiça, porque não há
contato entre o oprimido e seu explorador;
precisaríamos suprimir a mentira e a violência,
porque o homem que mente se exclui do contato
com outros homens, e aquele que tortura e
constrange impõe um irrevogável silêncio. Do ímpeto
negativo que era o ponto de partida de nossa revolta,
traçamos um ethos de liberdade e sinceridade. Sim,
era essa comunicação que nos permitia fazer
oposição ao mundo do assassinato, e é ela que deve
ser mantida hoje para que nos defendamos desse
mesmo assassinato.
Como agora já sabemos, devemos lutar contra
a injustiça, a servidão e o terror, pois esses três
flagelos são os que fazem o silêncio reinar entre os
homens, que levantam barreiras entre eles, que os
obscurecem um para o outro, e que os impedem de
encontrar o único valor que pode salvá-los deste
mundo desesperado, que é a dura fraternidade dos
homens em luta contra seu destino. No fim desta
longa noite, finalmente sabemos o que devemos
fazer diante deste mundo dilacerado por sua crise.

I.
Devemos chamar as coisas pelo nome e
perceber que consentimos na morte de milhões de
seres humanos quando nos permitimos pensar
certos pensamentos. Um homem não pensa mal
porque é um assassino. Ele é um assassino porque
pensa mal. É assim que é possível ser um assassino
sem aparentemente nunca ter matado, e é assim que,
mais ou menos, todos nós somos assassinos. A
primeira coisa a se fazer é pura e simplesmente
rejeitar, em pensamento e em ação, qualquer forma
de pensamento realista e fatalista. Este é o trabalho
de cada um de nós.
II.
A segunda coisa a fazer é desoprimir o mundo
do terror que agora reina e que impede a nitidez do
pensamento. E já que me disseram que a
Organização das Nações Unidas está realizando uma
importante sessão nesta mesma cidade, podemos
sugerir-lhes que o primeiro texto escrito dessa
organização mundial, na esteira dos Tribunais de
Nuremberg, proclame solenemente a abolição da
pena de morte em todo o mundo. Este é o trabalho
dos governos.

III.
A terceira coisa a fazer é colocar a política,
sempre que possível, em seu devido lugar, que é um
lugar secundário. De fato, não é uma questão de dar
a este mundo um evangelho ou um catecismo
político ou moral. A grande desgraça do nosso tempo
é justamente esta política que tenta nos fornecer, ao
mesmo tempo, um catecismo, uma filosofia
completa e às vezes até uma arte de amar. Contudo,
o papel da política é fazer o trabalho doméstico, e
não resolver nossos problemas internos. Eu não sei
se existe um absoluto. Mas sei que ele não é político.
O absoluto não é um assunto para todos, mas para
cada um. E todos devem ajustar suas contas um
para com o outro, para que cada um possa ter o lazer
interior de se interrogar sobre o absoluto. Nossa vida,
sem dúvidas, pertence aos outros e é justo doá-la
quando se faz necessário. Mas nossa morte pertence
apenas a nós. Essa é a minha definição de liberdade.
Este é o trabalho dos legisladores e daqueles que
fazem as constituições.
IV.
A quarta coisa a fazer é buscar e criar, a partir
da negação, os valores positivos que permitirão uma
conciliação entre um pensamento pessimista e uma
ação otimista. Este é o trabalho dos filósofos, sobre
o qual mal falei aqui.

V.
A quinta coisa a fazer é entender que essa
atitude equivale a criar um universalismo onde todos
os homens de boa vontade possam encontrar um ao
outro. Para deixar a solidão para trás, devemos falar.
Mas devemos sempre falar com franqueza e, em
todas as ocasiões nunca mentir e sempre dizer
aquilo que sabemos ser verdadeiro. Mas só podemos
falar a verdade em um mundo no qual ela se
encontra definida e fundada em valores
compartilhados por todos. Não é o Sr. Hitler quem
decide o que é verdadeiro e o que é falso. Ninguém
neste mundo, nem agora nem nunca, deveria ter o
direito de decidir que a sua própria ideia de verdade é
boa o bastante para ser imposta em outros, porque
apenas a consciência compartilhada dos homens
pode realizar essa ambição. Os valores sustentando
essa consciência compartilhada devem ser
redescobertos. A liberdade que devemos finalmente
conquistar é a liberdade para não mentir. E só então
poderemos descobrir nossas razões para viver, e
para morrer. Este é o trabalho de todos.

Eis o ponto onde nos encontramos. Certamente


talvez não valesse a pena ir tão longe para chegar
até aqui. Mas no final, a história dos homens é a
história de seus erros, e não da verdade deles. A
verdade é provavelmente como a felicidade: simples
e sem história.

Isto significa que todos os problemas estão


resolvidos pra nós? Claro que não. Este mundo não é
nem melhor nem mais razoável; ainda não estamos
fora do absurdo, mas temos pelo menos uma razão
para nos esforçarmos para mudar esse mundo, e é
essa a razão da qual sentíamos falta. O mundo seria
sempre desesperado se não existisse o homem, mas
o homem existe e também suas paixões, seus
sonhos e sua comunidade. Na Europa somos poucos
os que unem uma visão pessimista de mundo e uma
profundamente otimista de homem. Nossa pretensão
não é escapar da história, porque estamos na
história. Pretendemos apenas lutar dentro da história
para preservar dela a parte do homem que não a
pertence. Queremos redescobrir os caminhos para a
civilização onde o homem, sem dar as costas à
história, não será mais escravizado por ela. Com a
obrigação que cada pessoa incorre com relação aos
outros, serão equilibrados pelo tempo de reflexão, o
prazer e a felicidade que cada pessoa deve a si
mesma. Creio que posso dizer que sempre nos
recusaremos a venerar acontecimentos, fatos, a
riqueza, o poder, a história como ela se desenrola e o
mundo como ele está. Queremos ver a condição
humana como ela é. E ela é o que é, sabemos disso.
É essa condição terrível que exige que caminhões6 de
sangue e séculos de história resultem numa
modificação imperceptível no destino dos homens.
Essa é a lei. Durante anos, no séc. XVIII, cabeças
caíram por toda a França como granizo. A Revolução
Francesa queimou todos os corações com o
entusiasmo e o terror e, finalmente, no início do
século seguinte, substituímos a monarquia legítima
pela monarquia constitucional. Nós, franceses do
séc. XX, conhecemos muito bem essa lei terrível.
Houve a guerra, a Ocupação, os massacres, os muros
terríveis das prisões, uma Europa desgrenhada de
dor, e tudo isso para que alguns de nós adquirissem
dois ou três insights que ajudassem a diminuir o
desespero. Nessa conjuntura, o otimismo é que seria
o escândalo. Sabemos que aqueles dentre nós que
morreram foram os melhores de nós, pois foram eles
próprios que se apresentaram. E nós que ainda
estamos vivos, somos forçados a dizer a nós
mesmos que estamos vivos apenas porque fizemos
menos que outros. É por isso que continuamos a
viver em contradição. A única diferença é que esta
geração pode agora unir essa contradição a uma
imensa esperança no homem.
Já que eu queria contar a vocês algo sobre a
sensibilidade francesa, será suficiente que vocês se
lembrem disto. Hoje, na França e na Europa esta
geração pensa, resumidamente, que aquele que
deposita esperanças na condição humana é um
louco, e que aquele que se desespera diante dos
acontecimentos é um covarde. Ela recusa
explicações absolutas e o reinado das filosofias
políticas, mas quer afirmar o homem em sua carne e
em seu esforço pela liberdade. Ela não acredita que
seja possível transformar a felicidade e a satisfação
universais em realidade, mas acredita que é possível
diminuir a dor dos homens. É porque o mundo é
infeliz em sua essência, que devemos fazer algo pela
felicidade; é porque é injusto que devemos trabalhar
pela justiça; e é porque é absurdo que enfim
devemos dar-lhe suas razões. No final, o que isso
significa? Significa que devemos ser modestos em
nossos pensamentos e ações, agarrarmo-nos ao
nosso lugar e fazermos bem o nosso trabalho.
Significa que todos devemos criar comunidades de
reflexão fora dos partidos e dos governos, que
iniciarão o diálogo entre as nações e que afirmarão,
por meio de suas vidas e seus discursos, que esse
mundo deve deixar de ser o mundo de policiais,
soldados e dinheiro, para ser o mundo do homem, da
mulher, do trabalho fecundo e do lazer pensativo. É
para este lugar que penso que devemos dirigir nosso
esforço, nosso pensamento, e se for necessário,
nosso sacrifício. A decadência do mundo antigo
começou com o assassinato de Sócrates. E nós
matamos muitos Sócrates na Europa nos últimos
anos. Esta é uma indicação. Uma indicação de que
apenas o espírito socrático de indulgência para com
os outros e de rigor para consigo, são perigosos para
as civilizações do assassinato. É a indicação de que
somente esse espírito pode regenerar o mundo.
Qualquer outro esforço, por mais admirável que seja,
se dirigido ao poder e à dominação, só pode mutilar
ainda mais gravemente o homem. Essa é, de
qualquer forma, a revolução modesta que nós,
franceses e europeus, experimentamos atualmente.
Talvez vocês tenham ficado surpresos com o
fato de que escritores franceses que vieram
oficialmente à América não se sentiram obrigados a
apresentar a vocês uma imagem idílica de seu país e
ainda não fizeram nenhum esforço no sentido do que
se convencionou chamar de “propaganda”. Mas
talvez ao refletir sobre o que pusemos diante de
vocês, essa atitude pareça mais natural. A
propaganda é feita, suponho, para provocar nas
pessoas sentimentos que elas não têm. Mas os
franceses que compartilharam nossa experiencia
não pedem nem que reclamemos deles nem que os
amemos em função de uma ordem. O único
problema nacional que enfrentaram não dependia da
opinião do mundo. Para nós, durante cinco anos, ele
era o de saber se poderíamos salvar nossa honra, ou
seja, manter o direito de falar por nós mesmos no
rescaldo da guerra. E não precisávamos que
ninguém nos reconhecesse esse direito. Cabia
apenas a nós reconhece-lo. Não tem sido fácil, mas
se finalmente o reconhecemos, é porque nós, e
somente nós, conhecemos a verdadeira extensão de
nossos sacrifícios. Mas isso não nos dá o direito de
dar lições. Temos apenas o direito de escapar do
silêncio humilhante daqueles que foram espancados
e derrotados por terem desprezado o homem por
muito tempo.

Além disso, peço-lhes que acreditem que


manteremos o nosso lugar. Talvez, como disseram
alguns, exista a chance de que a história dos
próximos cinquenta anos seja em parte feita por
outras nações que não a França. Não tenho uma
opinião pessoal sobre esse assunto. Sei apenas que
nossa nação, que perdeu 1.620.000 homens a 25
anos atrás e que acabou de perder centenas de
milhares de voluntários deve reconhecer que talvez
tenha abusado, ou permitido que outros abusassem,
de sua força. Isso é um fato. E a opinião do mundo,
sua consideração ou seu desdém não podem mudar
esse fato. Por isso me parece insignificante solicitar
algo do mundo ou convencê-lo. Mas não me parece
insignificante destacar, em minha opinião, o quanto a
crise do mundo depende justamente dessas disputas
de precedência e poder.

Para resumir os debates dessa noite, e para


falar pela primeira vez em meu próprio nome,
gostaria de dizer apenas isto: sempre que julgarmos
a França, ou qualquer outro país, ou qualquer outra
questão em termos de poder, introduziremos um
pouco mais no mundo uma concepção de homem
que levará à sua mutilação, fortaleceremos a sede
por dominação e, em última análise, tomaremos
parte no assassinato. Tudo o que é para o mundo, é
também para as ideias, e aquele que diz ou escreve
que os fins justificam os meios, ou que a grandeza é
julgada pela força, é absolutamente responsável
pelos horríveis montões de crimes que desfiguram a
Europa contemporânea. Eis aí claramente definido,
creio eu, tudo aquilo que pensei ser meu dever dizer a
vocês. De fato, é um dever nosso, eu suponho,
permanecermos fiéis à voz e à experiência de nossos
camaradas na Europa, para que vocês não sejam
tentados a julgá-los precipitadamente, porque eles
não julgam a mais ninguém, exceto aos assassinos;
e olham para todas as nações com a esperança e a
certeza de encontrarem a verdade humana que cada
uma delas contém. No que concerne especialmente à
juventude americana que nos ouve esta noite,
podemos dizer que os homens dos quais falamos
têm grande respeito pela humanidade que existe em
vocês, e por esse gosto de liberdade e felicidade que
havia nos rostos dos grandes americanos. Sim, eles
esperam de vocês o que esperam de todos os
homens de boa vontade: uma contribuição leal ao
espírito de diálogo que querem estabelecer no
mundo. Temos apenas uma palavra mais a dizer
sobre esse assunto: não rejeitem a mão que eles
oferecem a vocês. Nossas lutas, nossas esperanças
e nossas reivindicações, vistas à distância, podem
parecer confusas ou fúteis para vocês. E é verdade
que no caminho da sabedoria e da verdade, se é que
existe tal caminho, esses homens não escolheram a
via mais simples e direta. Mas isso é porque o
mundo e a história não lhes ofereceram nada que
fosse simples e direto. O segredo que não puderam
encontrar em sua própria condição, eles tentaram
forjar com as próprias mãos. E eles falharão, talvez.
Mas minha convicção é a de que a falha deles será a
do mundo. Nesta Europa ainda envenenada pela
violência e por um ódio surdo, neste mundo
dilacerado pelo terror, eles tentam preservar do
homem o que ainda pode ser preservado. E essa é
sua única ambição. Se este último esforço ainda
pode encontrar uma de suas expressões na França, e
se nós pudemos dar a vocês esta noite uma vaga
noção da paixão de justiça que anima todos os
franceses, este será nosso único consolo e o meu
mais modesto orgulho.

Notas

Por Ed N. Braga

1. A derrota em questão havia ocorrido em 10 de


maio de 1940, e ficou conhecida como a Queda da
França. Após esse incidente trágico, no qual as tropas
francesas foram vergonhosamente derrotadas pelas
forças nazistas, a Alemanha ocupou o país até a
Liberação, em agosto de 1944.

2. Maquis era o nome dado a grupos de guerrilha


rural que lutavam a favor da Resistência, contra a
Ocupação Nazista na França; seus membros, homens
e mulheres, eram bastante diversificados
ideologicamente: haviam desde nacionalistas,
liberais e conservadores, até comunistas e
anarquistas. Um dos escritores que acompanhou
Camus em sua viagem, Jean Bruller (conhecido entre
os resistentes como “Vercors”), era um membro
ativo do Maquis de Vercors.
3. A Schutzstaffel (em português: Tropa de
proteção), ou simplesmente SS, foi uma organização
paramilitar nazista, uma das principais forças
responsáveis pelos crimes cometidos durante o
Terceiro Reich.

4. Camus possuía uma noção própria do significado


do “realismo” no contexto político e social. Para ele
era uma postura de valor negativo, caracterizada
pelo conformismo consequente de uma negação da
existência de uma natureza humana. Essa negação
implicaria na crença em uma maleabilidade infinita
do homem, pondo em risco sua posição como objeto
de direitos individuais.

5. Os “céticos” aos quais Camus se refere são


filósofos dos séc. XVI e XVII, como La Rochefoucauld,
La Bruyére e Michel de Montaigne. Conhecidos
também como “moralistas” esses filósofos da moral e
da natureza humana ajudaram a popularizar o
ensaio como gênero textual, as máximas e os
aforismos, que influenciariam toda a tradição
filosófica continental subsequente – o próprio Camus
figurando como um dos expoentes modernos dessa
tradição. Jean-Paul Sartre, em seu obituário escrito
em homenagem a Camus um dia após sua morte em
janeiro de 1960, localiza, com razão, o absurdismo
camusiano como um herdeiro muito mais forte dos
céticos moralistas, do que como uma parte do
existencialismo.
6. No original francês, “tombereaux”. Camus está se
referindo aos típicos caminhões lotados de
cadáveres, tão comuns no cenário dos campos de
trabalho comunistas e nazistas durante a guerra.

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