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sentado por Maria Tereza Sadek, Hobbes por Renato Janine Ribei
ro, Locke por Leonel Itaussu Almeida Mello, Montesquieu por Jo
sé Augusto Guilhon Albuquerque, Rousseau por Milton Meita do
Nascimento e os autores de “ O Federalista” por Fernando Papater-
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ra Limongi. Todos os apresentadores são professores da Universida
de de São Paulo.
Nicolau Maquiavel:
Os capítulos deste volume constam, portanto, de duas partes,
a primeira contendo o texto do apresentador (ou apresentadora) e
o cidadão sem fortuna,
a segunda trechos do pensador clássico de que se trate. Para o ca
so de Hobbes, porém, o Professor Renato Janine entendeu mais
o intelectual de virtü
adequada a fórmula de um texto único, transcrevendo no curso de
sua apresentação longos trechos do pensador inglês. Com pequena Maria Tereza Sadek
variação de forma, cumpre-se, assim, o objetivo comum de ofere
cer ao leitor o contato direto com o texto clássico e a ajuda do co
mentador.
ais de quatro séculos nos separam da época em que viveu
M Maquiavel. Muitos leram e comentaram sua obra, mas um
número consideravelmente maior de pessoas evoca seu nome ou pe
lo menos os termos que aí têm sua origem. Maquiavélico e maquia-
velismo são adjetivo e substantivo que estão tanto no discurso eru
dito, no debate político, quanto na fala do dia-a-dia. Seu uso extra
pola o mundo da política e habita sem nenhuma cerimônia o uni
verso das relações privadas. Em qualquer de suas acepções, porém,
o maquiavelismo está associado à idéia de perfídia, a um procedi
mento astucioso, velhaco, traiçoeiro. Estas expressões pejorativas
sobreviveram de certa forma incólumes no tempo e no espaço, ape
nas alastrando-se da luta política para as desavenças do cotidiano.
Assim, a acusação que recai hoje sobre Maquiavel não difere subs
tancialmente daquela que lhe impingiu Shakespeare ao chamá-lo
de “ The Murderous” , ou de sua identificação com o diabo — “ the
old Nick’’ — na era vitoriana, ou mesmo da incriminação que os je
suítas faziam aos protestantes na época da Reforma, considerando-
os discípulos de Maquiavel. Como assinala Claude Lefort, em sua
análise sobre o uso abrangente e multidirecional de tais acusações,
o maquiavelismo serve a todos os ódios, metamorfoseia-se de acor
do com os acontecimentos, já que pode ser apropriado por todos
os envolvidos em disputa. É uma forma de desqualificar o inimigo.
14 OS CLÁSSICOS DA P O l . l l ICA
NKQ1.AH MAQUIAYH : O CIDADÃO SLM F O R T U \ A , O [N I I I I ( I ; M DL r IR TC 15
apresentando-o sempre como a encarnação do m al.1 Personifican Igreja e a república de Florença, presidida pelos Médicis; ao norte,
do a imoralidade, o jogo sujo e sem escrúpulos, o “ maquiavelis- o ducado de Milão e a república de Veneza.
mo” , ou melhor, o “ antimaquiavelismo” tornou-se mais forte do Nos últimos anos do século, entretanto, a desordem e a insta
que Maquiavel. É um mito que sobrevive independente do conheci bilidade eram incontroláveis. Às dissensòes internas e entre regiões
mento do autor ou da obra onde teve origem. somaram-se as invasões das poderosas nações vizinhas, França e Es
A contraface da versão expressa no “ autor maldito” , respon panha. Assim / os Médicis são expulsos de Florença; acirram-se as
sabilizado por massacres e por toda sorte de sordidez — não há tira discórdias entre Milão e Nápoles; os domínios da Igreja passam a
no que não tenha sido visto como inspirado por Maquiavel —, é ser governados por Alexandre VI, um papa espanhol da família
sua reabilitação. Para a construção deste retrato acorreram filóso Borgia, guiado por ambições sem limites; o rei Carlos VIII, da Fran
fos da estatura de um Rousseau, de um Spinoza, de um Hegel, pa ça, invade a península e consegue dominá-la de Norte a Sul. Pou
ra citarmos apenas os primeiros. Nesta interpretação sustenta-se en co tempo depois, com a morte do papa Alexandre VI, o trono é
faticamente que Maquiavel discorreu sobre a liberdade, ao oferecer ocupado por Júlio II, que se alia primeiro aos franceses contra Ve
preciosos conselhos para a sua conquista ou salvaguarda. Rousseau, neza e em seguida, em 1512, funda a Santa Liga contra a França.
por exemplo, opondo-se aos intérpretes “ superficiais ou corrompí- f Neste cenário conturbado, no qual a maior parte dos gover
dos” do autor florentino, que o qualificaram como mestre da tira nantes não conseguia se manter no poder por um período superior—-
nia e da perversidade, afirma: “ Maquiavel, fingindo dar lições aos a Hojs meses. Maquiavel passou sua infância e adolescência. Sua fa
Príncipes, deu grandes lições ao povo” (Do contrato social, livro_C mília não era nem aristocrática, nem rica. Seu pai, advogado, co
3, cap. IV). mo um típico renascentista, era um estudioso das humanidades, ten
Ora apresentado como mestre da maldade, ora como o conse do se empenhado em transmitir uma aprimorada educação clássica
lheiro que alerta os dominados contra a tirania, quem era este ho para seu filho. Dessa forma, com orgulho, noticiava a um amigo
mem capaz de provocar tanto ódio, mas também tanto amor? Que que Nicolau, com apenas 12 anos, já redigia no melhor estilo em la
idéias elaborou que o tornam o mais citado entre os pensadores po tim, dominando a retórica greco-romana. Apesar da avaliação pa
líticos, a ponto de suscitar as mais díspares interpretações, e de sair terna, apenas em 1498, quando já tinha 29 anos, tem-se a primeira
das páginas dos livros eruditos para ocupar um lugar na fala mais notícia de Nicolau exercendo um cargo de destaque na vida públi
vulgar? Por que incitou tamanho temor, sendo sua obra mais co ca. Neste ano, Savonarola, que substituira os Médicis, é deposto,
nhecida colocada no Index da Igreja, e por que continua a dar ense enforcado e queimado. Acompanham sua queda todos os detento
jo a tão fundos preconceitos? res de cargos importantes na república florentina. Maquiavel passa
então a ocupar a Segunda Chancelaria, posição de considerável res
ponsabilidade na administração do Estado. Nessa atividade, cum
priu uma série de missões, tanto fora da Itália como internamente,
As desventuras Maquiavel nasceu em Florença em 3 de destacando-se sua diligência em instituir uma milícia nacional.
de um florentino maio de 1469, numa Itália “ esplendorosa Suas tarefas diplomáticas sofreram, no entanto, uma brusca
mas infeliz” , no dizer do historiador Garin. interrupção quando os Médicis recuperaram o poder e voltaram pa
A península era então constituída por uma série de pequenos Esta ra Florença. O governante Soderini vai para o exílio e é dissolvida
dos, com regimes políticos, desenvolvimento econômico e cultura a república. Era o ano de 1512. Maquiavel foi demitido, proibido
variados. Tratava-se, a rigor, de um verdadeiro mosaico, sujeito a de abandonar o território florentino pelo espaço de um ano, e fica-
conflitos contínuos e alvo de constantes invasões por parte de estran va-lhe vedado o acesso a qualquer prédio público. Mas o pior ain
geiros. Até 1494, graças aos esforços de Lourenço, o Magnífico, a da estaria por acontecer: em fevereiro de 1513 foi considerado sus
península experimentou uma certa tranqüilidade. Cinco grandes Es peito, acusado de tomar parte na fracassada conspiração contra o
tados dominavam o mapa político: ao sul, o reino de Nápoles, nas governo dos Médicis. Foi por isso torturado, condenado à prisão e
mãos dos Aragâo; no centro, os Estados papais controlados pela a pagar uma pesada multa.
16 OS C l ASSIC OS DA FOI 11 k A MCOl u M \ Q l I AVI I : O l II) \ 1) \ ( ) ST M / O R 1 L \ I. O IN ILL.LC H \1 1)1 I U O It \
Mas o sol parecia brilhar para os Médicis. Em 1513, a família 1525. Ao lado destas publicações, escreveu a comédia A mandrágo-
consegue uma nova vitória e esta sem precedentes: o cardeal Gio- ra, considerada obra-prima do teatro italiano; uma biografia sobre
vanni de Médicis transforma-se no papa Leão X — o primeiro flo- Castruccio Castracani e uma coleção de poesias e ensaios literários.
rentino a conquistar tamanha honraria. Com isso, a cidade, anterior Depois da redação de O príncipe, a vida de Maquiavel é mar
mente hostil à família que derrubara a república, passa a celebrar cada por uma contínua alternância de esperanças e decepções. Bus
os novos chefes. Maquiavel, por sua vez, tenta, com a ajuda de seu ca incessantemente voltar às funções públicas. Para conseguir os fa
amigo Vettori, embaixador em Roma, ligado aos Médicis, a liberta vores dos Médicis dedica-lhes seu livro e pede a intervenção de ami
ção e, posteriormente, recuperar seu antigo emprego. Sai da prisão, gos. Os governantes são pouco sensíveis aos apelos — para os tira
mas são inúteis suas repetidas gestões para voltar para a vida públi nos ele é um republicano. Finalmente, em 1520, a Universidade de
ca. Exilado em sua própria terra, impedido de exercer sua profissão, Florença, presidida pelo cardeal Júlio de Médicis, encarrega-o de es
passa a morar na propriedade que herdara de seu pai e avós em crever sobre Florença. Desta incumbência nasce sua última obra e
São Casciano. Ali inicia uma nova fase, vivendo modestamente e também sua última frustração. Pois, com a queda dos Médicis em
estudando os clássicos. Ele assim descreve seu dia-a-dia: 1527 e a restauração da república, Maquiavel, que imaginara terem
assim findados seus infortúnios, vê-se identificado pelos jovens re
De manhã, eu acordo com o sol e vou para o bosque fazer le
nha; ali permaneço por duas horas verificando o trabalho do dia ante
publicanos como alguém que possuía ligações com os tiranos depos
rior e ocupo meu tempo com os lenhadores, que sempre têm desaven tos, já que deles recebera a tarefa de escrever sobre sua cidade. Des
ças, seja entre si, seja com os vizinhos [...]. Deixando o bosque, vou ta vez, viu-se vencido. Esgotaram-se suas forças. A república consi
à fonte e de lá para a caça. Trago um livro comigo, ou Dante, ou Pe- derou-o seu inimigo. Desgostoso, adoece e morre em junho.
trarca, ou um destes poetas menores, como Tibulo, Ovídio ou outros:
leio suas paixões, seus amores e recordo-me dos meus, delicio-me
neste pensamento. Depois, vou à hospedaria, na estrada, converso
com os que passam, indago sobre as notícias de seus países, ouço
uma porção de coisas e observo a variedade de gostos e de caracte A verdade efetiva das coisas
rísticas humanas. Enquanto isso. aproxima-se a hora do almoço e.
com os meus, como aquilo que me permitem meu pobre sitio e meu
pequeno patrimônio. Finda a refeição, retomo à hospedaria [...] lá
O destino determinou que eu não saiba discutir sobre a seda.
me entretenho jogando cartas ou tric-trac [...]. Assim desafogo a ma-
nem sobre a lã; tampouco sobre questões de lucro ou de perda. Mi
lignidade de meu destino [...]. Chegando a noite, volto à minha casa
nha missão é falar sobre o Estado. Será preciso submeter-me à pro
e entro no meu gabinete de trabalho. Tiro as minhas roupas cobertas
messa de emudecer, ou terei que falar sobre ele.
de sujeira e pó e visto as minhas vestes dignas das cortes reais e
(Carta a F. Vettori, de 13/03/1513.r
pontifícias. Assim, convenientemente trajado, visito as cortes princi
pescas dos gregos e romanos antigos. Sou afetuosamente recebido Este trecho de uma carta escrita por Maquiavel revela sua “ pre
por eles e me nutro do único alimento a mim apropriado e para o
qual nasci. Não me acanho ao falar-lhes e pergunto das razões de
destinação” inarredável: falar sobre o Estado. De fato, sua preocu
suas ações: e eles, com toda sua humanidade, me respondem. Então, pação em todas as suas obras é o Estado. Não o melhor Estado,
durante 4 horas não sinto sofrimentos, esqueço todos os desgostos, aquele tantas vezes imaginado, mas que nunca existiu. Mas o Esta
não me lembro da pobreza e nem a morte me atemoriza [...]. do real, capaz de impor a ordem. Maquiavel rejeita a tradição idea
(Carta a F. Vettori, de 10/12/1513.) lista de Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino e segue a tri
Deste retiro forçado nasceram as obras do analista político. lha inaugurada pelos historiadores antigos, como Tácito, Políbio,
Como o próprio Maquiavel afirmava são textos que resultam de Tucídides e Tito Lívio. Seu ponto de partida e de chegada é a reali
sua experiência prática e do convívio com os clássicos. O príncipe dade concreta. Daí a ênfase na verità effettuale — a verdade efeti
data do s_ anos de 1512 a 1513; Os discursos sobre a primeira déca va das coisas. Esta é sua regra metodológica: ver e examinar a reali
da de Ti to Lívio, de 1513 a 1519; o livro sobre A arte da guerra, dade tal como ela é e não como se gostaria que ela fosse. A substi
de 1519 a 1520; e, por último, sua História de Florença, de 1520 a tuição do reino do dever ser, que marcara a filosofia anterior, pelo
IS OS U A S S IÍ OS I) \ p o l l l l l A
M ( OI \1 \ l M j n \ \ I I : O t II) \ l) \<> S I M / O K U \ I. O [ \ T [ ' I CC H \ l 1)1 1 W II I')
reino do ser, da realidade, leva Maquiavel a se perguntar: como fa tentativa de sistematizar os escritos de Maquiavel é sempre provisó
zer reinar a ordem, como instaurar um Estado estável? O proble ria e sujeita a novas interpretações. Vale assim, para os seus escri
ma central de sua análise política é descobrir como pode ser resolvi tos, a mesma metodologia que usava para ler a realidade e, afinal,
do o inevitável ciclo de estabilidade e caos. de há muito sua obra deixou de ser apenas uma referência de erudi
Ao formular e buscar resolver esta questão, Maquiavel provo ção ilustrada. Pelo que significa e tem significado nas práticas histó
ca uma ruptura com o saber repetido pelos séculos. Trata-se de ricas é ela própria simultaneamente um monumento e um instrumen
uma indagação radical e de uma nova articulação sobre o pensar e to político, retornando sempre como um enigma complexo que só
fazer política, que põe fim à idéia de uma ordem natural e eterna. pode ser decifrado pela análise de sua presença concreta e sua veri-
A ordem, produto necessário da política, não é natural, nem a ma rà effettuale.
Isto posto, ocupemo-nos do exame de alguns temas vitais pa
terialização de uma vontade extraterrena, e tampouco resulta do jo
ra a compreensão da intrincada construção do pensamento de Ma
go de dados do acaso. Ao contrário, a ordem tem um imperativo:
quiavel. É claro que este é apenas um ângulo possível num prisma
deve ser construída pelos homens para se evitar o caos e a barbárie,
multifacetado.
e, uma vez alcançada, ela não será definitiva, pois há sempre, em
germe, o seu trabalho em negativo, istoé, a ameaça de que seja desfeita.
“ Enveredando por um caminho ainda não trilhado” , como re-
' conhece explicitamente nos Discursos, o autor florentino reinterpre-
Natureza humana Guiado pela busca da “ verdade eletiva” ,
ta a questão da política. Ela é o resultado de feixes de forças, pro
e história Maquiavel estuda a história e reavalia
veniente das ações concretas dos homens em sociedade, ainda que
sua experiência como funcionário do Es
nem todas as suas facetas venham do reino da racionalidade e sejam tado. Seu “ diálogo” com os homens da antiguidade clássica e sua
de imediato reconhecíveis. Ao perceber o que há de transitório e cir prática levam-no a concluir que por toda parte, e em todos os tem
cunstancial no .arranjo estabelecido em uma determinada ordem, pos, pode-se observar a presença de traços humanos imutáveis. Daí
monta uní.enigma)para seus contemporâneos. Enigma que se recolo afirmar, os homens “ são ingratos, volúveis, simuladores, covardes
ca incessantemènte e que a cada significado encontrado remete a ou ante os perigos, ávidos de lucro" {Opríncipe, cap. XVII). Estes atri
tra significação para além de si. Este pensamento em constante trans butos negativos compõem a natureza humana e mostram que o con
mutação e fluxo, que determina seu curso pelo movimento da reali flito e a anarquia são desdobramentos necessários dessas paixões e
dade, transformará Maquiavel num clássico da filosofia política, instintos malévolos. Por outro lado, sua reiterada permanência em
atraindo a atenção e esforços de compreensão de seus leitores de to todas as épocas c sociedades transformam a história numa privile
dos os tempos. giada fonte de ensinamentos. Por isso, o estudo do passado não é
Tem-se sempre a sensação de que é necessário ler, reler, e vol um exercício de mera erudição, nem a história um suceder de even
tar a ler a obra e que são infindáveis as suas possibilidades de for tos em conformidade com os desígnios divinos até que chegue o dia
malização. Sua armadilha é atraente — fala do poder que todos sen do juízo final, mas sim um desfile de fatos dos quais se deve extrair
tem, mas não conhecem. Porém, para conhecê-lo é preciso supor as causas e os meios utilizados para enfrentar o caos resultante da
tar a idéia da incerteza, da contingência, de que nada é estável e expressão da natureza humana. Desta forma, sustenta o pensador
que o espaço da política se constitui e é regido por mecanismos dis florentino,
tintos dos que norteiam a vida privada. E mais ainda: o mundo da
política não leva ao céu, mas sua ausência é o pior dos infernos. \ aquele que estudar cuidadosamente o passado pode prever os acon-
1 tecimentos que se produzirão em cada Estado e utilizar os mesmos
Por outro lado, a forma que usa para expor suas idéias exige aten
meios que os empregados pelos antigos. Ou então, se não há mais
ção. Não só porque recoloca e problematiza velhos temas, mas so os remédios que já foram empregados, imaginar outros novos, segun
bretudo porque rediscute-os incessantemente, obrigando o leitor a do a semelhança dos acontecimentos.
pôr sempre em xeque a primeira compreensão. Por isso, qualquer (Discursos, livro I, cap. XXXIX.)
20 OS CLÁSSICOS DA POL ÍTIC A NU O l Al MAQ UI AV bl : O CI D A D Ã O SEM F O R T I S A . O I M hLECTUAL [)L I 1RTI 21
A história é cíclica, repete-se indefinidamente, já que não há não é um ditador; é, mais propriamente, um fundador do Estado,
meios absolutos para “ domesticar” a natureza humana. Assim, a um agente da transição numa fase em que a nação se acha ameaça
ordem sucede à desordem e esta, por sua vez, clama por uma no da de decomposição. Quando, ao contrário, a sociedade já encon
va ordem. Como, no entanto, é impossível extinguir as paixões e trou formas de equilíbrio, o poder político cumpriu sua função re-
os instintos humanos, o ciclo se repete. O que pode variar — e nes generadora e “ educadora” , ela está preparada para a República.
ta variação encontra-se o âmago da capacidade criadora humana e, Neste regime, que por vezes o pensador florentino chama de liberda
portanto, da política — são os tempos de duração das formas de de, o povo é virtuoso, as instituições são estáveis e contemplam a
convívio entre os homens. dinâmica das relações sociais. Os conflitos são fonte de vigor, sinal
O poder político tem, pois, uma origem mundana. Nasce da de uma cidadania ativa, e portanto são desejávqis.
própria “ malignidade” que é intrínseca à natureza humana. Além Face à Itália de sua época — dividida, corrompida, sujeita às
disso, o poder aparece como a única possibilidade de enfrentar o invasões externas — Maquiavel não tinha dúvidas: era necessário
conflito, ainda que qualquer forma de “ domesticação” seja precá sua unificação e regeneração. Tais tarefas tornavam imprescindível
ria e transitória. Não há garantias de sua permanência. A perversi o surgimento de um homem virtuoso capaz de fundar um Estado.
dade das paixões humanas sempre volt£ a se manifestar, mesmo Era preciso, enfim, um príncipe.
que tenha permanecido oculta por algum tempo.
mais como símbolo a cornucópia, mas a roda do tempo, que gira in sublinha que o poder se funda na força mas é necessário virtü pa
definidamente sem que se possa descobrir o seu movimento. Nessa ra se manter no poder; mais nos domínios recém-adquiridos do que
visão, os bens valorizados no período clássico nada são. O poder, naqueles há longo tempo acostumados ao governo de um príncipe
a honra, a riqueza ou a glória não significam felicidade. Esta não e sua família. No entanto, nem mesmo o principado hereditário é
se realiza no mundo terreno. O destino é uma força da providência seguro. Sua advertência — não há garantias de que o domínio per
divina e o homem sua vítima impotente. maneça — vale para todas as formas de organização do poder.
Maquiavel inicia o penúltimo capítulo de O príncipe referin- Um governante virtuoso procurará criar instituições que “ facilitem”
do-se a esta crença na fatalidade e à impossibilidade dos homens al o domínio. Conseqüentemente, sem virtü, sem boas leis, geradoras
terarem o seu curso. Chega, inclusive, com certa ironia, a afirmar de boas instituições, e sem boas armas, um poder rival poderá im-
que se inclinou a concordar com essa opinião. No entanto, o desen por-se. Destes constrangimentos não escapam nem mesmo os princi
rolar de sua exposição mostra-nos, com toda clareza, que se trata pados hereditários que pareciam a princípio tão seguros. Afora is
de uma concordância meramente estratégica. Concorda para poder to, como sustentar a radical distinção entre os principados antigos
desenvolver os argumentos da discordância. Assim, após admitir o e os novos, se ambos têm igual origem — a força?
império absoluto da Fortuna, reserva, poucas linhas a seguir, ao li- A força explica o fundamento do poder, porém é a posse de
vre-arbítrio pelo menos o domínio da metade das ações humanas. virtü a chave por excelência do sucesso do príncipe. Sucesso este
E termina o capítulo demonstrando a possibilidade da virtü conquis que tem uma medida política: a manutenção da conquista. O gover
tar a fortuna. Assim, Maquiavel monta um cenário no qual a liber nante tem que se mostrar capaz dc resistir aos inimigos e aos gol
dade do homem é capaz de amortecer o suposto poder incontrastá- pes da sorte, “ construindo diques para que o rio não inunde a pla
vel da Fortuna. Ou melhor dizendo, ao se indagar sobre a possibili nície, arrasando tudo o que encontra em seu caminho” . O homem
dade de se fazer uma aliança com a Fortuna, esta não é mais uma de virtü deve atrair os favores da cornucópia, conseguindo, assim,
força impiedosa, mas uma deusa boa, tal como era simbolizada pe a fama, a honra e a glória para si e a segurança para seus governados.
los antigos. Ela é mulher, deseja ser seduzida e está sempre pronta É desta perspectiva que ganha um novo sentido a discussão so
a entregar-se aos homens bravos, corajosos, aqueles que demons bre as qualidades do príncipe. Este deveria ser bom, honesto, libe
tram ter virtit. ral, cumpridor de suas promessas, conforme rezam os mandamen
Não cabe nesta imagem a idéia da virtude cristã que prega tos da virtude cristã? Maquiavel é incisivo: há vícios que são virtu
uma bondade angelical alcançada pela libertação das tentações terre des. Não tema pois o príncipe que deseje se manter no poder “ in
nas, sempre à espera de recompensas no céu. Ao contrário, o po correr no opróbrio dos defeitos mencionados, se tal for indispensá
der, a honra e a glória, típicas tentações mundanas, são bens perse vel para salvar o Estado” . (O príncipe, cap. XV). Os ditames da
guidos e valorizados. O homem de virtü pode consegui-los e por moralidade convencional podem significar sua ruína. Um príncipe
eles luta. sábio deve guiar-se pela necessidade — “ aprender os meios de não
Dessa forma, o poder que nasce da própria natureza humana ser bom e a fazer uso ou não deles, conforme as necessidades” . As
e encontra seu fundamento na força é redefinido. Não se trata sim, a qualidade exigida do príncipe que deseja se manter no poder
mais apenas da força bruta, da violência, mas da sabedoria no uso e sobretudo a sabedoria de agir conforme as circunstâncias. Deven
da força, da utilização virtuosa da força. O governante não é, pois, do, contudo, aparentar possuir as qualidades valorizadas pelos go
simplesmente o mais forte — já que este tem condições de conquis vernados. O jogo entre a aparência e a essência sobrepõe-se à distin
tar mas não de se manter no poder —, mas sobretudo o que demons ção tradicional entre virtudes e vícios. A virtü política exige também
tra possuir virtü, sendo assim capaz de manter o domínio adquiri os vícios, assim como exige o reenquadramento da força. O agir vir
do e se não o amor, pelo menos o respeito dos governados. tuoso é um agir como homem c como animal. Resulta de uma astu
— A partir destas variáveis pode-se retornar, mais uma vez, ao ciosa combinação da virilidade e da natureza animal. Quer como
início de O príncipe e dar um novo significado à distinção aparente homem, quer como leão (para amedrontar os lobos), quer como ra
mente formal entre os principados hereditários e os novos. Maquiavel posa (para conhecer os lobos), o que conta é “ o triunfo das diíieul-
24 OS CLÁSSICOS DA HOI I 11CA
Nota
Capítulo II