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Wallace K. Ferguson ∗
política da Itália do fim do século XV e início do XVI, período entre aqueles que Gibbon e
Robertson trataram nas biografias de dois dos membros mais influentes do clã dos Medici. O
resultado foi o famoso A vida de Lorenzo de Medici, chamado de O Magnífico (1796) e a
obra, menos popular, Vida e Pontificado de Leo, o Décimo (1805). Ambos os trabalhos
tiveram sucesso imediato e duradouro com diversas edições esgotadas e traduções para todas
as principais línguas europeias. Havia boa razão para a recepção entusiástica do trabalho de
∗
FERGUSON, Wallace K. The Renaissance in historical thought. Five centuries of Interpretation. Cambridge:
1
[Voigt, Die Wiederbelebung des classischen Altertums, oder das erste Jabrhundert des Humanismus (Berlin,
1859)], p. 410.
2
Para a historiografia geral do período ver as autoridades citadas acima, p. 113.
3
F. Guizot, Histoire de la civilisation em Europe (1829-32; nova edição. Paris, 1846), pp. 292 ff. Na falta de uma
Renaissancebegriff (?) em Ranke, ver C. Neumann, “Ende des Mittelalters?,” Deutsche Vierteljabrsschrift für
Literaturwissenschaft und Geistesgeschichte, XII (1934), 50 f.
4
Cf. R. Marshall, Italy in English Literature, 1755-1850 (Nova York, 1934), pp. 271 ff.
5
Voltaire e Iselin sugeriram o mesmo (ver acima, pp. 91 e 109), mas Roscoe deu à “era dos Medici” um
significado mais literal.
1
Roscoe. Foi o primeiro deste tipo e excepcionalmente bom, considerando as dificuldades de
pesquisa “numa remota parte deste remoto reino”. A obra, porém, não deixou de ter suas
6
e a estimativa de seus efeitos foi fora de proporção para a causa. Seu julgamento a esse
respeito foi revertido por vários liberais do século XIX, mas sua convicção de que a influência
dos Medici foi de importância vital tornou-se um fator quase constante na historiografia sobre
o Renascimento. No século atual, a apologia de Roscoe aos Medici foi repetida com poucas
modificações no estudo da família pelo Colonel G. F. Young. 8
uma ode funerária. Foi também a primeira e única tentativa de escrever uma história completa
e detalhada de todos os estados italianos, desde a ascensão das comunas até o início do século
XVI. A obra foi suplantada em quase todas as suas partes, mas não ainda por inteiro, e sua
abrangência aliada a um grande grau de precisão manteve-a útil até o tempo presente.
Sismondi abre sua história com uma declaração de filosofia histórica que surgiu
diretamente do século XVIII e foi uma negação igualmente direta das teorias românticas
correntes.
Uma das mais importantes conclusões que podemos extrair do estudo
da história [ele escreveu] é que o governo é a causa primordial do
caráter dos povos; que os vícios e virtudes das nações, suas energias
6
W. Roscoe, Life of Lorenzo de Medici, Called the Magnificent (1796; nova ed. Londres, 1846), p. xlii.
7
Ibid., pp. 192 ff.
8
G. F. Young, The Medici, 2 vols. (Londres, 1909).
9
J. C. L. Simonde de Sismondi, Histoire des republiques italiennes au Moyen Age, 16 vols. (Zurique e Paris,
1807-18; eu uso a ed. de Paris, 1826). Tradução condensada para o inglês (Londres, 1832).
2
ou fraquezas, seus talentos, seus esclarecimentos ou ignorâncias,
quase nunca são efeitos do ambiente ou de atributos de uma raça em
particular, mas do trabalho das leis; que tudo foi dado aos homens
pela natureza, mas que o governo retira ou garante aos homens que
são sujeitos a ele a herança da espécie humana. 10
causaram séculos de bom gosto para suceder àqueles de barbárie . O século XIV foi mais
12
brilhante. “Em tempo algum as letras foram cultivadas com mais ardor ou os estudiosos foram
honrados com maior entusiasmo, ou maior luz adquirida e amplamente disseminada entre os
homens”. Mas não foi um período feliz, pois a virtude e a moral já estavam sendo
13
corrompidas pelos governos tirânicos e pelo exemplo das cortes tirânicas. Ao século XIV,
segundo Sismondi, faltava o caráter definitivo dos dois séculos precedentes. Ele não tinha
nenhum propósito de unificação. Os indivíduos se separavam da população, diferenciando-se
por grandes feitos, grandes talentos e grandes crimes, mas não impulsionaram sua nação em
direção alguma. Somente Florença reteve o espírito da liberdade, e até esta caiu sob a tirania
14
dos Medici no século seguinte. Em geral, o século XV apresenta uma visão sombria na
15
Carlo Troya.
Ibid., I, v.
10
Ibid., VIII, 2.
11
Ibid., VI, 1.
13
Ibid., VIII, 2 f.
14
Ibid., VII, 394, Cf. IX, 33 ff; 358 ff; X, 167 ff; XI, 257 ff.
15
C. Balbo, Sommario dela storia d’Italia (1844, nova ed. Bari, 1913-14); Vita di Dante (Turin, 1839). Tradução
16
3
Perdendo apenas para a política libertária, Sismondi enfatizou o papel predominante
das cidades na formação da vida social e cultural italiana. E não somente porque elas
formaram as comunas. Sismondi sempre admirou a classe burguesa ‘que vive bem’ e tinha
pouco respeito pela nobreza cavalheiresca. Ele notou como um fator extremamente
17
significativo no desenvolvimento das sociedades italianas que os nobres foram cedo atraídos
para as cidades e que os novos senhores não eram feudais, mas filhos das cidades. “Essa
influência predominante das cidades”, ele declarou, “é a verdadeira origem do caráter distinto
dos italianos”. A vida urbana prematura da Itália deu aos italianos um espírito mais ativo,
18
e a imitação dos clássicos haviam tido um efeito pernicioso. Ele desenvolveu essa teoria mais
21
à frente, em sua história d’A Literatura do Sul da Europa (1813). Aqui ele definitivamente
excluiu os homens “aos quais nós devemos o renascimento das literaturas grega e latina” em
sua discussão no sentido de que elas “não pertencem propriamente à literatura italiana”. 22
Aqui, ainda, ele aceitou a distinção de Mme. De Staël entre as nações teutônicas e latinas.
Finalmente, Sismondi esteve em total acordo com os românticos, ainda que nem sempre pelas
mesmas razões, em sua convicção da superioridade moral dos séculos XII e XIII na visão que
apresentou da irreligiosidade, imoralidade, crimes, paixões e egoísmo irresponsável da
sociedade renascentista. 23
Cf. Sismondi, De la littérature du Midi de l’Europe (Paris, 1813), I, 88 ff. Tradução para o inglês (Londres,
17
1823).
Sismondi, Républiques, V, 3.
18
Ibid., V, 4.
19
4
nas publicações póstumas de suas palestras em A Filosofia da História (1837) e {169} A 24
História da Filosofia (1833-36) . Essas obras tiveram como efeito introduzir uma forma de
25
tratou de forças grandes, inconscientes e abstratas. Para citar George Sabine, quem tem uma
aptidão incomum para dar sentido à “terminologia formidável” de Hegel:
Na interpretação hegeliana da história, é a nação, ao invés do
indivíduo ou de qualquer grupo de indivíduos, que forma uma unidade
significativa. O gênio ou espírito da nação (Volksgeist), trabalhando
através de indivíduos mas largamente independentemente de suas
vontades conscientes e de suas intenções, é o verdadeiro criador da
arte, da lei, da moral e da religião. Consequentemente, a história da
G. W. F. Hegel, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte (Berlim, 1837), Weke (Berlim, 1832-87), IX.
24
Tradução para o inglês (Londres, 1857). O trabalho crítico de Hegel é muito extenso, mas a melhor explicação
de sua filosofia da história ainda é essa em sua própria introdução. Como a linguagem de Hegel é incomumente
difícil, ofereço referências alternativas às traduções americanas para todas as citações. Ver também o sumário em
R. Flint, La philosophie de l’histoire em Allemagne (Paris, 1878), pp. 260-334. Há uma excelente discussão de
Hegel em R. G. Collingwood, The Idea of History (Oxford, 1946), pp. 113-22, da qual eu não tomei
conhecimento até que meu próprio trabalho estivesse em prova. É particularmente interessante a discussão de
Collingwood sobre os predecessores da filosofia histórica de Hegel: Herder, Kant, Fichte e Schelling (ibid., pp.
88-113) e sua análise da dívida de Hegel para com eles.
Hegel, Vorlesungen über die Geschichte der Philosphie, 2 vols. (Berlim, 1833-36), Werke, XIII-XV. Tradução
25
5
civilização é uma sucessão de culturas nacionais para as quais cada
nação traz sua contribuição peculiar e oportuna para a realização
humana em geral. 27
Deste modo, o espírito nacional é a força criativa, como nos Românticos, mas ele
opera sob a direção do espírito mundial e está constantemente mudando em direção ao
desenvolvimento. Em qualquer ponto da história o espírito mundial se faz manifestar pelo
espírito da nação, em seu estágio particular de desenvolvimento, como o espírito da época. Os
historiadores devem, é claro, selecionar para citar somente aquelas nações, aqueles eventos
em suas histórias ou aspectos de suas culturas, que demonstrem o funcionamento do espírito
mundial, ou seja, que tenham significância histórico-mundial. Ideias como essa, mesmo
quando não aderidas estritamente, levaram facilmente a uma generalização solta sobre o
Zeitgeist [espírito do tempo] ou Volkgeist [espírito do povo], sobre a tarefa de uma nação, seu
papel na história mundial, ou sobre a contribuição que se destina à civilização.
Muito dessa mesma generalização foi fomentada pelo hábito de Hegel de caracterizar
uma nação ou uma era por algumas de suas qualidades abstratas. Esta era uma parte natural de
seu sistema, onde cada civilização nacional representava um aspecto do espírito do mundo em
processo de desenvolvimento. Para citar um exemplo não sem relevância para nosso assunto,
ele caracterizou o espírito grego antigo como “individualmente condicionado pela beleza”, e 28
explicou a civilização grega pelas “diversas radiações de que esta ideia lança mão ao realizar-
se”.
{171} Todas as questões nas obras de arte, podemos organizá-las sob
três cabeças: a obra de arte subjetiva, isto é, a cultura do homem em si
mesmo; a obra de arte objetiva, isto é, a moldagem do mundo das
divindades; e finalmente, a obra de arte política - a forma de
constituição e de relações dos indivíduos que as compõe. 29
27
G. H. Sabine, A History of Political Theory (Nova York, Hnery Holt and Company, 1937), p. 261.
28
Hegel, Philosophie der Geschichte, Werke, IX, 292 [p. 248].
29
137 Ibid., IX, 293 [p. 250].
6
tradição, o surgimento e conclusão de seu oposto, e a subsequente amalgamação do que era
mais permanente em ambos para formar uma tradição nova e mais elevada. Nós já notamos
Hagen aplicando este método para o Renascimento na fórmula da diversidade medieval e o
retorno do Renascimento à natureza, e a síntese moderna de ambos produzida pela Reforma.
A dialética hegeliana poderia facilmente fortalecer a duradoura concepção do Renascimento
como antítese da Idade Média e precursor da Reforma, emprestando-lhe a autoridade da
necessidade lógica.
De fato, tal era a própria interpretação de Hegel sobre o Renascimento. Tanto em A
Filosofia da História como em A História da Filosofia, Hegel trabalhou para demonstrar que
durante a Idade Média, feudalismo e Igreja combinaram-se para destruir a liberdade e
depreciar o Espírito. O pensamento escolástico e o sistema sacramental desespiritualizaram a
religião vinculando-a a externalidades. Mas isso, {172} quando totalmente desenvolvido,
30
30
138 Ibid., IX, 457 ff; cf. 497 ff [pp.392 ff;429 ff].
31
139 Hegel, Geschichte der Philosophie, Werke, XV, 177 ff [III, 95 ff].
32
140 Ibid., XV, 189 [III, 106 f].
33
141 Ibid., XV, 190 [III, 108]; Philosophie der Geschichte, Werke, IX, 493 ff [pp.425 ff].
7
emprestando beleza e sentimento aos objetos materiais de adoração. O segundo foi o estudo
da {173} antiguidade ou studia humaniora. “O nome humaniora”, Hegel acrescenta, “é muito
expressivo, pois na obra da antiguidade a honra é feita ao ser Humano e ao desenvolvimento
da Humanidade: através deste estudo, o Ocidente conheceu o elemento verdadeiro e eterno na
atividade do homem”. E de novo “Os homens voltaram-se para o trabalho dos antigos….
34
como studia humaniora, onde o homem é reconhecido no que diz respeito a si mesmo e no
que ele faz… Homens, porque eles são homens, considera interessante estudar homens como
homens.” Essa é uma distorção do sentido original do termo, mas que, como já observamos,
35
terceira característica do período, Hegel apontou para “esse impulso do espírito para fora -
esse desejo por parte do homem de se familiarizar com seu mundo”, que resultou nas
explorações e descobertas. “Esses três eventos”, ele conclui, “podem ser comparados com o
rubor do amanhecer, que após longas tempestades indica o brilhante e glorioso dia.” O 38
de “Escola Romântica” , e Robert Flint sob “escola histórica democrática” , enquanto Louis
40 41
Halphen coloca-o à frente do seu capítulo “o retorno para a história sintética” . Há uma razão 42
para cada uma dessas classificações. A reconstrução da história feita por Michelet é ao mesmo
tempo lírica e subjetiva no mais alto grau. Ele compartilhou o amor romântico pelo passado
nacional e sua cor local era a mesma da teoria romântica do espírito nacional. Ele foi o
primeiro grande historiador democrático em virtude de seu sentimento pelo povo e seu ódio a
toda tirania. E estava sempre procurando encontrar em qualquer evento ou personalidade que
atingiu sua impressionável imaginação, um profundo significado, a expressão característica de
34
142 Ibid., IX, 494 [p.427].
35
143 Hegel, Geschichte der Philosophie, Werke, XV, 190 [III, 108]
36
144 Veja acima, p. 155.
37
145 Hegel, Geschichte der Philosophie, Werke, XV, 191 ff; cf. 179 [III, 109 ff; cf.96].
38
146 Hegel, Philosophie der Geschichte, Werke, IX, 496 [p. 428].
39
147 E. Fueter, Geschichte der neueren Historiographie (Munich, 1936), pp. 425 ff.
40
148 G.P. Gooch, History and Historians in the Nineteenth Century (London, 1935), pp. 175 ff.
41
149 R. Flint, History of the Philosophy of History ( New York, 1894), pp. 531 ff.
42
150 L. Halphen, L’ Historie en France depuis cent ans ( Paris, 1914) pp. ,81 ff.
8
uma era ou de uma raça, e construir uma síntese histórica a partir daí. Sempre ávido por
ideias, ele foi assumidamente influenciado por diversos pensadores como Vico, Voltaire,
Rousseau, Herder, Kant, Sismondi e Guizot. Também absorveu boa parte da filosofia idealista
alemã da história a ele contemporânea, provavelmente por intermédio de seus amigos Cousin
e Quinet. Ele foi, de fato, um dos principais expoentes na França do que Augustin Thierry
chamou “aquele método, que vem da Alemanha, que vê em cada fato o símbolo de uma ideia
e no curso dos eventos da humanidade, uma perpétua psicomaquia” , e foi essa tendência,
43
publicação do sexto volume (que tratava do fim da Idade Média) e do sétimo (que tratava do
século XVI) que recebeu o título de La Renaissance (1855). Ao mesmo tempo em que
Michelet escrevia a história da {175} Revolução Francesa, envolveu-se na agitação
democrática e anticlerical que levou à Revolução de 1848. Durante o conflito, perdeu a
cátedra e perdeu também o último vestígio do amor romântico de outrora pela Idade Média. A
discussão retrospectiva sobre a civilização medieval que ocupou grande parte da introdução
do sétimo volume foi motivada por um implacável antagonismo, intensificado por uma
amargura pessoal, em direção à aristocracia, ao clero, e à Igreja. Uma diferença notável entre
este e seus volumes anteriores.
Como Hegel, Michelet pensou a civilização medieval na escala do espírito, e a achou
carente. Estava baseado num erro fundamental. Como Hegel escrevera sobre “a infinita
falsidade que governava a Idade Média e constitui sua vida e espírito”, Michelet pôde então
45
Renascimento é, de fato, muito similar à de Hegel, apesar de seus símbolos serem concretos e
particulares mais do que abstratos, e seu argumento depender mais de uma declaração
apaixonada e de um retrato colorido do que da lógica. Ele também viu no feudalismo e na
Igreja os inimigos que destruíram a liberdade humana e, juntamente com a escolástica,
contribuíram para depreciar o Espírito. Suas seções sobre filosofia escolástica foram
eloquentemente intituladas de: “Acerca da criação de um povo de tolos” e “A proscrição da
Natureza”. Mas Michelet não pôde achar esperança, como Hegel fez, no crescimento do
47
Estado Monárquico no fim da Idade Média, embora ele tenha notado o começo de uma
43
151 A. Thierry, Récits des temps merovingiens, précédés de considérations sur l’historie de France (Paris,
1861), p. 181. NT: Aqui suponho que ele faça referência ao poema de Prudêncio. Uma definição bem simples
sobre o poema: lutas alegóricas entre as virtudes e os vícios. Entendo que Thierry quis dizer algo como conflito
dual.
152 J. Michelet, Historie De France (1833-62; ed. définitive, Paris, 1898). Eng. trans. (New York, 1845 ff).
44
153 Hegel, Philosophie der Geschichte, Werke, IX, 444 [p. 380].
45
9
“revolução, obscura, mas grandiosa e sagrada” no surgimento das línguas nacionais e do
sentimento pela patrie. Numa expressão remanescente de Hegel, Michelet declarou que a
48
monarquia tornou-se, no final da Idade Média, uma espécie de igreja, de caráter divino, mas 49
lastimou o fato de ela ter ascendido às custas da liberdade municipal. Michelet era demasiado
democrático para depositar sua confiança nos príncipes e, como fez Sismondi, {176}
idealizou comunas democráticas que haviam criado “todas as artes e formas de civilização”. 50
Como resultado, ele considerou os séculos XIV e XV, nos quais essas comunas perderam sua
liberdade e se tornaram não democráticas, como um período de declínio espiritual. Mesmo a
alta burguesia, pela qual ele não compartilha a admiração de Sismondi, possuía o nível
espiritual mais baixo. Com a dominação dessa burguesia por toda a Europa, inclusive na Itália
dos Médici, “o Renascimento não poderia vir por uma revolução popular”. Michelet não 51
pôde encontrar mais do que uma única evidência do renascimento no Quattrocento na Itália, o
gênio de Brunelleschi, e todo o espírito de uma era estava contra ele.
Nunca houve uma época menos favorável a essas altas tendências. A
Itália tinha entrado em uma prosa profunda, o materialismo vivo dos
tiranos e os bandos de mercenários, a banalidade dos homens de
finanças e do dinheiro. Uma religião começou nos bancos de Florença
tendo no ouro sua presença real e nas cartas de câmbio sua eucaristia. 52
Nesse grande movimento, a antiguidade ressuscitada tomou seu lugar como um dos
fundamentos da “nova fé”. Isso “reconhece a si mesmo {177} como idêntico à idade
moderna”. Arte, também, foi parte do Renascimento. “Arte e Razão reconciliadas, esse é o
Renascimento, o casamento da beleza e da verdade”. Esse espírito foi previsto por Abelardo
54
e Joachim de Fiori, por Brunelleschi e Jan van Eyck, mas não desenvolvido até Leonardo da
48
156 Ibid., VII, 53 ff;
49
157 Ibid., VII, 14; cf. Hegel, Geschichte der Philosophie, Werke, XV, 188 [III, 106].
50
158 Michelet, VII, 23 f; cf. 15.
51
159 Ibid., VII, 77; cf. 25.
52
160 Ibid., VII, 62.
53
161 Ibid., VII, 7 f.
54
162 Ibid., VII, 66.
10
Vinci. A fonte para a nova arte foi a reconciliação com a natureza. “A Idade Média tremia
timidamente na presença da natureza”. Da Vinci, ao contrário “sentiu que ele próprio era
também natureza”. Lembre-se a frase mais abstrata de Hegel: “Na contemplação da natureza
55
base dialética da construção hegeliana, que incluía a Reforma, a qual Hegel considerou um
etapa do progresso do espírito. Mas possuía os mesmos ingredientes essenciais: arte e o
renascimento da antiguidade, reconciliação com a natureza, a redescoberta da natureza interna
dos homens e seu mundo exterior. Mas era acima de tudo um renascimento do espírito
humano. Para Michelet, um renascimento espontâneo e sem precedentes. “Começou a partir
do nada. Foi a explosão heroica de uma imensa vontade”. 57
55
163 Ibid., VII, 68 ff.
56
164 Hegel, Geschichte der Philosophie, Werke, XV, 189 [III, 107]; ver também Hagen, acima, pp. 157 ff.
57
Michelet, VII, 13.
11
“Nossa concepção da Renascimento é criação de Jacob Burckhardt”. Dessa forma 58
muitos que sentiam que a civilização contemporânea, apesar do progresso essencial, sofria de
problemas graves e que no crescimento do materialismo burguês, da mecanização industrial, e
da democracia havia perigos inerentes para a vida do espírito. Foi dessa combinação de fé no
*Esse capítulo apareceu pela primeira vez como um artigo no Bulletin of the Polish Institute e é reproduzido
com a sua permissão.
W. Goetz, ed., Propylaen Weltgeschichte, IV (Berlin, 1932), p. 157
58
12
progresso moderno e repulsa contra certos atributos que o homem se voltou para o
Renascimento como um ideal cultural. À moda do Helenismo e Romantismo sucedeu algo
como um novo movimento intelectual, ao qual historiadores alemães deram o bárbaro nome
de Renaissancismus . O motivo primário do Renascentismo foi, na maioria das instâncias,
60
estético. Como sempre, o Renascimento foi considerada de um lado como a antítese da Idade
Média. {181} Aproveitou dessa maneira a crescente reação contra o sentimento nacionalista,
religioso, e o medievalismo sentimental da crítica romântica do início do século XIX. Ao
mesmo tempo, visto de outro ponto de vista, o Renascimento aparece como o começo da
idade moderna, mas distinguia-se do presente, como tinha sido a visão geral desde
Winckelmann, por um declínio artístico no período intermediário. Ele também se aproveitou
da repulsa contra o gosto burguês contemporâneo e o filistinismo. Estetas do período final do
século XIX estavam frequentemente inclinados a sentir que a produção industrial estava
destruindo a beleza e vulgarizando o gosto, que o reinado do homem de negócios
extremamente ambicioso estava forçando o artista a uma posição de isolamento, e que a arte
contemporânea como um todo era sem forma e superficial. A mesma reação que levou
homens como Ruskin e os pré-rafaelitas de volta à Idade Média tardia guiou para o
Renascimento aqueles cujas inclinações eram clássicas e que valorizavam acima de tudo a
forma. De qualquer modo, isso foi uma reconstrução nostálgica de uma idade em que a arte
havia sido uma parte integral da vida e na qual o artista era universalmente apreciado.
Mas o presente descontentamento e o consequente apelo ao Renascimento se
estenderam além do campo da pura estética, embora raramente dele desassociado de forma
total. Aristocratas intelectuais tendiam a dirigir um olho pessimista sobre a democratização
crescente de todos os ramos da cultura, enquanto humanistas do tipo de Goethe viram na
crescente uniformidade e materialismo que eram os resultados sociais da industrialização uma
ameaça a ambos os valores, humanos e intelectuais. Os primeiros encontraram no
Renascimento uma cultura da elite; os segundos perceberam nela um conceito de humanitas
altamente desenvolvido ausente em seus próprios dias. Finalmente, todos que se encontraram
constrangidos pelos estreitos padrões de moral e as tímidas convenções da sociedade de classe
média estavam propensos a procurar no Renascimento o paraíso para todos seus desejos. Eles
tinham aprendido com Heinse, Stendhal, Byron, Browning, e um grupo de novelistas
românticos a pensar no Renascimento Italiano como o feliz campo de caça de personalidades
desinibidas, fortes e apaixonadas.
Fugas românticas do presente para um passado ideal era, entretanto, apenas um
aspecto da Renascimento, seu lado negativo. Foi como a hora do nascimento do mundo
moderno que o Renascimento adquiriu seu significado histórico positivo, e também a
justificativa para seus excessos.
O termo parece ter sido originado com F. F. Baumgarten, Das Werk C. F. Meyers> Renaissance- Empfinden
60
13
{182} As correntes estreitamente associadas do liberalismo, novo humanismo e idealismo
alemão no século XIX tinham se combinado para estabelecer como atributos essenciais do
progresso moderno o crescimento da liberdade individual de pensamento e expressão, o total
desenvolvimento da personalidade autoconsciente e a evolução da autonomia moral baseada
em uma alta concepção da dignidade do homem. A fé no progresso destas qualidades não era
incompatível com o medo de que fossem ameaçadas por outros fatores na vida moderna. Tal
medo, de fato, apenas enfatizou sua importância. Ao mesmo tempo, o crescimento das
ciências naturais e uma racional, secular Weltanschaung [visão de mundo] desde o
Iluminismo haviam apontado para o positivismo mundano como um traço igualmente
distintivo de civilização moderna e uma das mais potentes forças para o progresso.
Finalmente, a tradição ininterrupta do classicismo nunca havia deixado de enfatizar o papel
principal da antiguidade ao moldar uma cultura moderna. E por meados do século XIX, uma
longa série de interpretações, aproximando o problema de vários ângulos, ensinaram o
homem a ver no Renascimento, limitado em um lado pela Idade Média e no outro pela
Reforma e Contra Reforma, a idade na qual todos esses traços do mundo moderno haviam
primeiramente aparecido e florescido com vigor juvenil. A contribuição decisiva de
Burckhardt foi a de reunir todas essas tendências de interpretação juntas em uma única síntese
coerente, baseada em uma respeitável fundação de pesquisa histórica.
Jacob Burckhardt era em muitas maneiras peculiarmente apto para o papel que estava
participando de cristalizar o incipiente Renascentismo do final do século XIX. Nascido em 61
Basel em 1818 de uma família local com uma longa tradição de liderança cultural e religiosa,
ele herdou o individualismo cosmopolita da Suíça, junto com os preconceitos de um
62
intelectual aristocrata. {Pg. 183} Ele era um esteta sensível para quem a beleza da forma era
quase uma religião, um humanista treinado em filologia clássica e profundamente impregnado
do sentimento novo-humanista de dignidade do homem, um mundano cultivado que possuía
ainda uma integridade de caráter ascético e portador de firmes princípios fundamentais da
moral Protestante. Ele odiou os poderes políticos agressivos e a subordinação da liberdade
individual que viu se desenvolver no estado Bismarquiano, mas ele também temia o
crescimento da democracia industrial. Ele era por natureza desapaixonado e de alguma
63
maneira mais um cético observador do que um homem de ação, e sempre foi um completo
individualista. Burckhardt recusou tomar parte nas controvérsias políticas de seu tempo e
procurou somente não ser perturbado em sua vida pessoal. Até a crise pessimista de seus
Há uma vasta literatura sobre Burckhardt. A melhor biografia é feita por K. Lowith (1937); a de Carl Neumann
61
é tendenciosa. Ver também R. Stadelmann, “Jacob Burckhardt und das Mittelalter”, Historische Zeitschrift,
CXLII (1930), 457-515; A introdução de W. Kaegi’s Die Cultur der Renaissance in Italien in Burckhardt,
Gesamtausgabe (Stuttgart, 1930-1934), V; e Nachwort a sua edição de Burckhardt, Weltgeschichtliche
Betrachtungen (Leipzig, 1935) de R. Marx.
Cf. F. Ernst, “La tradition médiatrice de la Suisse”, Revue de littérature comparée, VI (1926), 586-606; K. Joel,
62
14
últimos anos, ele manteve uma fé esperançosa no progresso da civilização moderna através do
livre desenvolvimento individual, o qual ele sempre considerou a condição indispensável da
cultura. Entretanto, muito do que havia na sociedade contemporânea ofendia sua estética, sua
64
alma humanista, e fez com que ele, um Petrarca moderno, buscasse fuga no companheirismo
com homens de uma idade mais aprazível. 65
Seu entusiasmo pelo alvorecer da idade moderna foi esmaecido por um crescente pessimismo
sobre seus frutos, um pessimismo estimulado pela melancólica observação das guerras da
Prússia e o barbarismo em massa da Comunaa de Paris de 1870. Quando, em 1889, Ludwig
von Pastor pediu-lhe uma crítica sobre sua obra História dos Papas desde o Fim da Idade
Média, Burckhardt respondeu que ele “infelizmente se distanciou daquela idade”. Ele nunca 72
66
J. Burckhardt, Kunstwerke der belgischen Stadte (1842); Conrad von Hochstaden (1843); ambos em
Gesamtausgabe, I.
Cf. J. Burckhardt, Cicerone (Leipzig, 19525), p. 91.
67
F. Kugler, Handbuch der Geschichte der Malerei (Berlin, 1837; 2nd ed. Revisada e aumentada por Burckhardt.
68
J. Burckhardt, Die Renaissance in Italien, in F. Kugler, Geschichte der Baukunst (Stuttgart, 1867), IV.
71
15
publicou outro livro. As palestras filosóficas sobre história mundial (1868-71), as quais 73
refletiram seu pessimismo crescente sobre o mundo moderno e seu História da Civilização
Grega não foram publicados até depois de sua morte com oitenta anos.
74
Críticas recentes de Burckhardt são talvez muito inclinadas a sublinhar os motivos que
levaram à sua idealização do Renascimento e explicar seu sucesso em termos de seus apelos
aos desejos e preconceitos das gerações seguintes. Esses são, de fato, de fundamental
importância. Mas não deve ser esquecido que Burckhardt também era um historiador
excepcionalmente competente {185}, um artista literário, e um dos mais significativos
fundadores da moderna Kulturgeschichte [História da cultura]. A Civilização do
Renascimento não foi apenas a formulação decisiva do conceito moderno de Renascimento,
ela também foi a primeira “obra de arte” em um novo gênero, e com convicção, em parte pelo
menos, devido a seus méritos intrínsecos. Os primeiros ensaios na história da civilização
foram feitos por Voltaire, Winckelmann, os românticos, Guizot, Buckle, Riehl, Freytag e
outros. Voltaire tinha declarado a desiderata com sua habitual claridade. Mas nenhum chegou
tão perto de alcançar o ideal até Burckhardt. A influência de seu exemplo se estendeu muito
além do campo da historiografia renascentista. Para citar um dos mais distinguidos
historiadores da civilização, e um crítico pouco amigável do Renascimento Burckhardtiano:
“Kulturgeschichte hoje enfrenta em muitos aspectos a tarefa de se libertar de Burckhardt, mas
isso não menospreza sua grandeza nem diminui a dívida que lhe temos.” 75
73
J. Burckhardt, Weltgeschichtliche Betrachtungen, ed. J. Oeri (Basel, 1905). Tradução inglesa. Força e
Liberdade, Reflexões na História (Nova Iorque, 1943).
J. Burckhardt, Griechische Kulturgeschichte, 4 vols (Stuttgart, 1898-1902).
74
16
somente porque ele não gostava de seu fim teleológico, mas porque {186} era uma construção
cronológica da qual em nenhum ponto demonstrou uma pausa longa o suficiente para dar uma
imagem concreta do cenário humano. Burckhardt preferia pensar em sua aproximação da
76
história como um artista, e não como um filosofo. Tendo identificado a filosofia da história
77
com Hegel, ele nutriu uma perversa satisfação em negar toda a capacidade de pensamento
filosófico. “Eu nunca em minha vida pensei filosoficamente”, escreveu uma vez para um
amigo. E de novo, discutindo seu propósito em Observações da História Mundial: “Além
78
disso, nós renunciamos a qualquer sistema, nós não reivindicamos as ‘ideias históricas
mundiais’, mas estamos satisfeitos com a observação e damos “cortes transversais” à história,
a partir, de fato, do máximo de direções possíveis; acima de tudo não oferecemos nenhuma
filosofia da história. Era nessa tendência de “dar cortes transversais à história”, a qual ele
79
ensaio sobre o Renascimento, escrito uma década antes. Para começar, ele era cuidadoso ao
distinguir entre seus objetivos e os dos antiquaristas e historiadores políticos, os quais haviam
até então monopolizado o campo. Enquanto eles se contentavam em {187} estabelecer “fatos”
e sequências de “eventos”, o historiador da civilização deve devotar sua pesquisa ao
descobrimento da mentalidade das pessoas e do espírito da época. E todo o pensamento
Burckhardtiano era baseado em pressupostos tácitos de que havia uma mentalidade peculiar,
umcaráter, ou espírito, um Volksgeist, comum a toda nação em uma dada época.
Nossa tarefa, como entendemos, é dar à história da Grécia um modo
de pensar e ver as coisas, de lutar pela percepção das forças vivas,
construtivas e destrutivas, que eram ativas na vida grega. Não pela
narrativa, ainda histórica... nós devemos considerar os gregos em sua
peculiaridade essencial... Para isso, para a história do espírito grego,
todo estudo deve ser direcionado. O fato particular e, acima de tudo, o
Cf. Burckhardt, Wetgeschichliche Betrachtungen, Gesamtausgabem VII, 2f. Ver também discussão geral, K.
76
Ibid., p. 278
78
17
tão chamado evento pode ser medido aqui apenas como evidência do
comum, não próprio interesse em si mesmo; por meio dos dados o que
nós procuramos são os modos de pensamento, os quais são também
fatos. Mas as fontes, se nós as consideramos desse ponto de vista,
falarão muito diferentemente do que em uma mera pesquisa de
material antiquário.
Burckhardt era consciente de o suo que fazia das fones diferia do método crítico-
histórico que havia aprendido em um seminário de Ranke, mas ele pensava que era um
resultado necessário aos objetivos da Kulturgeschichte, a qual “vive principalmente do que
fontes e monumentos indicam involuntariamente, sem interesse próprio, além deles mesmos”.
Ele estava mais interessado no ponto de vista expresso pelas fontes do que propriamente em
sua precisão. “Se uma ação recontada em realidade não aconteceu, ou não aconteceu dessa
forma, ainda assim o ponto de vista a partir do qual se afirma que aconteceu de tal maneira
possui seu valor por causa da qualidade típica do relato.” Aqui Burckhardt estava
racionalizando a prática, comum entre historiadores românticos, de tratar todas as fontes
literárias como expressões autênticas do espírito nacional, e esquecendo, como eles fizeram,
81
que uma novela pode ser “mentirosa” como um documento oficial. Como o que ele buscava
era o constante e o típico de uma civilização, seguiu-se que “uma característica parece maior e
mais instrutiva do que uma ação; pois ações são apenas as únicas expressões das capacidades
internas correspondentes... O que é desejado e planejado é, dessa forma, tão significativo
quanto qualquer coisa realmente realizada.” Partindo desse argumento, {188} Burckhardt era
otimista e estava convencido de que a Kulturgeschichte tem maior veracidade que a história
tradicional, a qual não pode nunca estabelecer dados para além das perguntas. Ela tem
“primum gradum certitudinis”. Contudo, ele reconheceu certas dificuldades. “Como alguém
sabe o que é constante e típico, e o que é uma força e o que não é?” E para essa pergunta a
única resposta que foi capaz de encontrar foi uma leitura ampla das fontes materiais
disponíveis. A longo prazo, a percepção de Burckhardt do espírito interno da civilização, a
qual era o objetivo maior de sua pesquisa e seu único guia para a seleção e avaliação de
fontes, era baseada em nada mais do que em sua intuição e sem dúvida, sua familiaridade com
a literatura dos campos escolhidos.
como uma pesquisa sobre o espírito interno da Itália durante o Renascimento ao longo das
linhas então formuladas. Seu subtítulo, Um ensaio, não era meramente o produto de sua
habitual e irônica modéstia. Ele não pretendia que a obra fosse uma história compreensiva ou
um livro de referência, como Geiger fez dele mais tarde. Mesmo no uso de material ilustrativo
82
J. Burckhardt, Die Celsur der Renaissance in Italien: Ein Versuch (Basel, 1860). A terceira (1877) e última
edições foram expandidas por Ludwig Geiger até o texto original ficar praticamente encoberto. Este foi
restaurado por W. Goetz na décima terceira edição. Tradução para o inglês, 2 volumes, (Londres, 1878). Eu uso
a primeira edição alemã e a oitava edição inglesa (Londres, 1921).
18
ele praticava uma restrição permanente. Ele se congratulava de que não a tinha feito “três
vezes mais espessa”, como ele facilmente poderia ter feito. Mas ele não queria confundir a
tese essencial ou prejudicar a forma artística da obra. Como resultado, o desenho
arquitetônico se estende claramente e deixa a impressão de uma síntese perfeitamente
integrada.
Destacar o argumento do livro tão bem conhecido pode parecer um injustificável
desperdício de espaço, ainda que de nenhuma outra forma se possa fazer justiça à construção
orgânica que é uma das suas características mais efetivas. No entanto, não é impossível que
existam estudiosos cuja familiaridade com a interpretação do Renascimento de Burckhardt
seja baseada em alguma coisa menor do que a leitura completa de seu trabalho. {189} O livro
é dividido em seis partes, cada uma visando a civilização da Itália do início do século XIV ao
início do século XVI a partir de diferentes ângulos. A primeira parte estabelece o pano de
fundo político geral. Aqui Burckhardt se aproximou quase totalmente da tradição narrativa,
embora mesmo aqui a narrativa esteja estritamente subordinada à discussão tópica de uma
condição prevalecente. O caráter particular da política da Itália ele atribuiu, em geral, ao
conflito entre os imperadores e os papas. Mas a causa não era seu maior interesse. A principal
tese desta parte é indicada no título: “O Estado como uma obra de arte”, uma frase
remanescente da caracterização de Hegel da civilização grega. Há narrativas suficientes para
ilustrar sua conclusão de que nos estados italianos “o moderno espírito de estado europeu
apareceu pela primeira vez, livre para seguir suas próprias inclinações”, e que com eles “um
novo fator entra na história, o estado como uma criação consciente e calculada, o estado como
uma obra de arte”. Entrelaçado com este tema maior está o tema secundário do caráter do
83
83
Ibid., p. 2f [p.4].
84
Ibid., p. 6 [p. 8]; cf. 132f.
19
Na Idade Média, ambos os lados da consciência humana – a que se voltava
para fora em direção ao mundo e a que se voltava ao interior {p. 190} em
direção ao próprio homem – quedavam-se sonhando semi-acordados sob um
véu comum. O véu era tecido de fé, ilusão e predisposição infantil, pelo qual o
mundo e a história eram vistos vestidos em estranhas tonalidades. O homem
tinha consciência de si mesmo apenas como membro de uma raça, povo,
partido, família ou corporação - apenas por meio de alguma categoria geral. Na
Itália esse véu primeiro se dissipou no ar; ali desenvolveu-se uma consideração
e tratamento, do estado e de todas as coisas deste mundo, objetivos; ao mesmo
tempo o subjetivo afirmou-se com poder total; o homem tornou-se um
indivíduo espiritual e se reconheceu como tal. Da mesma maneira com que os
gregos uma vez se distinguiram dos bárbaros... 85
Existem ecos de Hegel nisso e uma notável similaridade com a análise de Voigt do
espírito corporativo da Idade Média e da percepção da consciência de Petrarca acerca da
personalidade individual como um traço de distinção do “antepassado do mundo moderno” . 86
Ainda, Burckhardt não havia lido Voigt até seu próprio trabalho estar quase impresso , e ele 87
não precisava ter realmente lido Hegel. Que o individualismo foi o traço dominante da
civilização moderna e que primeiramente apareceu durante o Renascimento foram ideias que
estiveram no ar por algum tempo . E os românticos tinham enfatizado o inconsciente,
88
casos isso evidentemente significou uma nova autonomia moral ou emancipação dos padrões
e autoridades herdados. {p. 191} O cosmopolitismo era ainda outro de seus traços eventuais. 90
Nesta seção, na qual ele desenvolve a ideia mais especificamente, Burckhardt enfatizou acima
de tudo a estimulante consciência da personalidade, e o impulso resultante de dar total
expressão a cada talento e cada face do personagem. Leo Battista Alberti, o multifacetado
homem e artista, é aqui o protótipo. Desta consciência da personalidade em si mesmo e em
outros resultou a ideia moderna de fama e sua contraparte, a sagacidade maldosa e a sátira dos
humanistas. O egoísmo era um ingrediente sempre presente na mistura, mas mais significante
é a constante sugestão da liberação, uma nova consciência de liberdade espiritual.
Na terceira parte, mas não antes dela, Burckhardt defendeu a “Redescoberta da
Antiguidade”, “o ‘renascimento’ da qual havia sido unilateralmente escolhido para resumir
85
Ibid., p. 131[p.129].
86
G. Voigt, Die Wiederbelebung des classischen Altertums (Berlin, 1859), p. 81.
87
Cf. Burckhardt, Cultur, p. 564.
88
CL R. Koebner, "Zur Begriffsbildung der Kulmrgeschichte,” Historische Zeitschrift, CXLIX (1933), 253-93.
89
Burckhardt, Cultur, p. 134 [p. 131].
90
Cf. ibid. 135 f.
20
todo o período”. E ele começou com a notável afirmação de que, apesar da influência dos
antigos colorir a civilização do Renascimento em mil maneiras, não foi essencial para sua
evolução. “A essência do fenômeno poderia ter sido a mesma sem a renovação da
antiguidade.”
Nós precisamos insistir nisto [ele adicionou] como uma das proposições
principais deste livro, que não foi apenas o renascimento da antiguidade, mas
sua união com o gênio (Volksgeist) do povo italiano, que alcançou a conquista
do Mundo Ocidental. 91
Aqui Burckhardt estava correndo contra uma poderosa tradição, apesar de Hegel,
Hagen, e, mutatis mutandis, Jules Michelet já terem sugerido que o renascimento clássico era
apenas uma parte do Renascimento. Burckhardt foi mais longe que eles, entretanto, em
demonstrar sua relação com tendências maiores da época como um resultado mais que uma
causa.
Por isto [o entusiasmo italiano pela antiguidade] um desenvolvimento da vida
cívica foi requerido, o que se deu somente na Itália, e lá não até então [o século
XIV]. Foi necessário que nobre e burguês devessem primeiro aprender a viver
juntos em termos iguais, e que surgisse um mundo social que sentiu o desejo
de cultura e teve o tempo livre e meios de obtê-la. Mas a cultura, quando
primeiro tentou livrar-se das fantasias da Idade Média, não pôde encontrar seu
caminho para o conhecimento do mundo físico e intelectual pelo puro
empirismo. Precisava de um guia, e encontrou um na civilização antiga com
sua riqueza de verdade evidente, objetiva, em cada esfera intelectual. 92
91
lbid., p. 171 [p. 171].
92
Ibid., p. 175 [p. 175].
93
Ibid., p. 304 [p. 308].
21
Na quinta seção, “Sociedade e festivais”, Burckhardt prossegue para colocar o
indivíduo em sua configuração social. Aqui o fator primário é novamente a associação de
nobre e burguês em uma sociedade urbana fundada em riqueza e cultura ao invés de
nascimento. Como resultado disso “o indivíduo foi forçado a aproveitar ao máximo suas
94
julgamento dos homens de sua era favorita. {p. 193} O tom desta parte é ditado pela máxima
de Maquiavel: “Nós italianos somos irreligiosos e corruptos acima de todos os outros”. E
Burckhardt concluiu que “a Itália no início do século XVI se encontrou em meio a uma grave
crise moral” . Sem nenhum suporte moral restante exceto a noção de honra pessoal, as classes
97
superiores permitiram que imaginação e paixão reinassem livres, com resultados que eram
frequentemente deploráveis. A concepção de Burckhardt de moralidade renascentista se
enquadrava na tradição de Heinse e Stendhal, com qualificações, mas ele não idealizou
egocentrismo e paixões desinibidas. Ele pode ter inconscientemente sentido o fascínio de
forças de caráter que não possuía, mas sua moralidade suíça protestante era demasiado e
firmemente enraizada para permitir a suspensão de julgamentos morais. Ele estava de fato
distante da aprovação positiva de Nietzsche do super-homem amoral. A apologia de
98
Isso foi o mais longe que ele conseguiu ir para desculpar a imoralidade dos homens
renascentistas, ou sua indiferença à religião, pois, como Piere Bayle e Voltaire, ele estava
convencido que eles tinham pouca religião, apesar de frequentemente notar sinais de piedade
verdadeira. O tom irreligioso da sociedade renascentista foi por ele considerado parcialmente
culpa da Igreja, em parte por reverência à Antiguidade pagã, mas principalmente como
94
Ibid., pp. 355 ft.
95
Ibid., p. 365 [p. 369]; cf. pp. 379 ft.
96
Ibid,. p. 427 f.
97
Ibid., p. 429 f [p. 433].
98
Cf. Stadelmann in Historische Zeitschrift, CXLII, 493 f.
99
Burckhardt, Cultur, p. 455 f [p. 454 f].
22
resultado do mesmo individualismo que fez do Renascimento italiano em todos os aspectos
precursor do mundo moderno.
{p. 194} Esses homens modernos... nasceram com os mesmos instintos
religiosos de outros europeus medievais. Mas seu individualismo mais
poderoso fez deles na religião, como em outras coisas, inteiramente subjetivos,
e o encanto intenso que os universos externo e interno exerciam sobre eles os
tornaram marcadamente seculares. 100
100
Ibid., p. 494 [p. 490].
101
Ibid., p. 428.
23