Você está na página 1de 9

“A impaciência de certos nouvellistes costuma degenerar-se em frenesi.

Toda sua
existência é dedicada a percorrer os passeios públicos para ouvirem ou repetirem tudo o que
é dito, tudo o que é impresso. E na sofreguidão de acreditarem em tudo, as conjecturas mais
ingênuas tornam-se realidade diante de seus olhos. A corte, a cidade, repúblicas, reinos, o
universo inteiro é seu domínio; e nunca estão mais no seu elemento do que quando emitem
opiniões sobre ministros, generais do exército e até soberanos” (p.109)
O texto apelativo, as notícias escandalosas e as calúnias não são uma prerrogativa da
nossa época. Na verdade, existe desde sempre. Podemos traçar panfletos difamatórios pelo
menos até o Renascentismo italiano. Estas obras receberam vários nomes: gazetas, pasquinadas,
panfletos, nouvelles à la main, libelos. Em O diabo na água benta, Robert Darnton se concentra
em quatro dessas obras, escritas por franceses entre 1770 e 1795. São libelos, criados para
destruir a reputação de seus alvos através de anedotas, notícias e retratos.
Utilizando-se de um método indutivo, Darnton traça a partir dessas quatro obras uma
história da literatura difamatória da França pré e pós revolucionária. O livro começa com as
gravuras das capas desses libelos: Le gazetier cuirassé (1777); Le diable dans un
bénitier (1783); La police de Paris dévoilée (1789) e La vie sécrète de Pierre Manuel (1793).
Eles estão intimamente entrelaçados pelas histórias dos respectivos autores, e demonstram bem
a realidade política de seu tempo. Os dois primeiros foram editados nas Grub Streets de
Londres, onde seus autores estariam livres da perseguição de seus governantes, protegidos pela
lei britânica de liberdade de expressão. Os dois últimos mostram os caminhos da Revolução, da
queda da Bastilha ao Terror.
O nome do livro, O diabo na água benta, faz alusão ao segundo libelo. A expressão
foi originalmente utilizada para descrever a atuação policial na busca e repressão das
publicações ignominiosas. Para o libelistas, os policiais se debatiam sem chegar a lugar
nenhum, tal qual faria um diabo na pia batismal. Essas buscas infrutíferas e dispendiosas feitas
pela polícia francesa formam uma grande parte da obra, e a metáfora serve para o leitor ingênuo
e também para nós, leitores modernos, para quem a estrutura dos libelos franceses deve parecer
caótica. Quiçá teria sido essa a sensação que o autor teve ao ter de escolher apenas quatro dentre
tantas obras que parecem ser interessantíssimas.
Embora apoiados em elementos semelhantes, o autor nos mostra o quanto o teor dos
textos destinados a denegrir os grandes muda com as mudanças políticas. Começa por descrever
cada um dos libelos, dando um espaço razoável ao estudo de seus frontispícios, numa aula de
tipografia e impressão do século XVIII. Segue-se um estudo detalhado do teor dessas obras,
suas características principais, seu tom de segredo dividido com os leitores, através de enigmas,
chaves de compreensão ocultas no texto, enquanto contam histórias escabrosas sobre as
indiscrições na corte, os libelistas vendidos, os arquivos escandalosos da polícia.

Os textos são depois confrontados com a história de seus autores e às práticas de leitura
na França do século XVIII, no que formam os meus capítulos favoritos de toda a obra. O texto
de Darnton é fluido, fazendo com que muitas vezes eu tenha esquecido que estava com uma
obra de não ficção. Fui levada aos jardins do Palais Royal (residência dos Orléans), aos cafés,
aos livreiros e mascates ilegais. Sua descrição da avidez com a qual essas obras de “segunda
classe” eram consumidas e comentadas falou alto. Estava ao mesmo tempo em 1780 e em 2012,
levada a acreditar que o ser humano não muda em essência.

Aos poucos, novos personagens e novos libelos são introduzidos à obra, ainda que sua
âncora permaneça nos quatro já citados. Em uma avalanche de informações, temos a chance
de olhar para o passado nas letras de seus contemporâneos, temos um vislumbre da infinidade
de pequenas obras que eram na maior parte do tempo a única fonte de notícias de uma
comunidade. O autor claramente se deixa levar pela imensa pesquisa que fez, e às vezes se
perde em divagações. Mas isso não atrapalha a leitura, pelo contrário, a paixão com que ele fala
de sua pesquisa é contagiosa e me deixou com vontade de ir atrás dos originais de praticamente
tudo.

Caluniar, injuriar, difamar, maldizer, destruir e enlamear reputações, xin­ gar e


ofender, divulgar escândalos, vituperar e detrair - nunca se fez tanto disso como na França
do século xvm. Por outro lado, avilificação sempre existiu em quase todos os sistemas
políticos, desde a Antiguidade até o presente. O que podemos aprender examinando o
exemplo francês?
Primeiro, ninguém deve relegar a difamação como mero ruído de fundo, como
um acompanhamento inevitável do conflito em. qualquer tipo de gover­ no. Alguns
Estados podem ser capazes de absorvê-la sem maiores perturbações, mas a atividade
difamatória é capaz de infligir sérios danos em outros. Um Estado baseado no culto à
personalidade do líder tende a ser vulnerável a ataques pessoais, mesmo que monopolize
outras formas de poder. Cortes principescas podem ser derrocadas por libelos que
destruam reputações, rompam os laços de patronato e interrompam práticas dientelistas.
Mesmo o presidente de uma república moderna verá seu poder se esvair se seus gerentes
de campanha e especialistas em relações públicas não conseguirem silenciar escândalos
envolvendo sua vida privada.
Na monarquia do Ancien Régime, em que a soberania se identificava com a
pessoa do monarca e era investida de poder sagrado, a difamação do rei podia enviar ondas
de choque pelo sistema inteiro. Era crime de lesa-majestade. O
sistema conseguia absorver a maioria dos choques, não resta dúvida, e havia
outras fontes mais sérias de malefício ideológico: o jansenismo, que desafiava a

autoridade política mobilizando crenças religiosas; a obstrução parlamentar,

que solapava os fundamentos jurídicos do absolutismo Bourbon; até mesmo O

Iluminismo, que sujeitava toda autoridade à crítica racional. Como veículo de


ideologia, a literatura libelista não constituía ameaça comparável. Pouco con­
tribuía1em termos de reflexões políticas rigorosas, embora tenha sido identifi­ cada
com os interesses e ideias de diferentes facções políticas em épocas dife­ rentes ao longo
do século. Em vez de atuarem no âmbito intelectual, os libelos atingiam abaixo da
cintura e visavam produzir reações viscerais. Retrataram Luís xv como um simples
mortal - uma frívola mediocridade na juventude, um velhote safado no final do
reinado; fizeram Luís xv1 parecer impotente e incompetente; e caricaturaram Maria
Antonieta como um monstro moral e agente dos inimigos austríacos.

Para o leitor moderno, essas caricaturas talvez pareçam estapafúrdias de­ mais
para serem levadas a sério, mas o fato é que elas foram concebidas para sensibilizar
especificamente os leitores do século xvrn- e foram tão bem-suce­ didas nesse intento
que alarmaram o governo. Diplomatas, ministros e chefes de polícia fizeram de tudo, a
um custo enorme, para estancar a produção edis­ tribuição de libelos. Em vez de
relegarem calúnia e difamação como algo indig­ no sequer de desprezo - a atitude que
prevaleceu entre a elite inglesa-, te­ miam seus efeitos sobre um povo pouco
sofisticado. É provável que tivessem razão, embora não haja evidência suficiente para
um estudo mais completo das reações dos leitores.

"Dessacralização" é um bom termo para descrever a erosão da aura de santidade


que envolvera tradicionalmente o rei da França,1 mas não faz justiça aos efeitos mais
amplos dos libelos, que atacavam qualquer pessoa eminente, especialmente les grands
da capital e da corte. Os membros da corte eram parti­ cularmente vulneráveis à
difamação, pois neles conviviam governança e redes pessoais de patronato e proteção,
e quase todos viviam na atmosfera supercar­ regada de Versalhes, onde nos corredores
do poder ainda reluziam lembranças do Rei Sol. Como acontecera no século xvn, o
poder ainda era exercido por fa­ voritos e amantes, as facções ainda se congregavam
em torno dos aposentos reais, os lobistas ainda tramavam nas antecâmaras, e o reino
ainda era conduzi­

do pelos ministros que conseguissem conquistar a confiança oscilante do rei

Uma calúnia bem colocada desencadeava lutas de poder em diversos pon­


tos do sistema. Isso sempre aconteceu nas cortes, pelo menos desde os primór­ dios
do Renascimento. A França, porém, era o país mais populoso e mais pode­ roso da
Europa do século xvm. Seus administradores tinham idealizado maneiras
racionais de lidar com problemas complexos e podiam contar com uma burocracia
moderna (a palavra em si data de 1764) para executá-las. En­ tretanto, não tinham
concebido maneiras equivalentes de defender o Estado contra o tipo de
maledicência e perfídia que abalara as pequenas cortes italianas três séculos antes. O
fato de as pasquinadas continuarem tão letais tanto tempo depois de Aretino revela
muito sobre a evolução desigual do Estado moderno.
É claro que, como arma política, a injúria era muito mais do que o boca a
boca maldoso da corte. Em 1750, um grande público leitor passara a existir em todos
os centros urbanos da França e sobretudo em Paris. Em 1789, esse públi­ co tinha um
apetite enorme por notícias e obtinha nos panfletos difamatórios seu suprimento
básico de informações acerca dos afazeres dos grandes. Embora boa parte dessas
informações se originasse de boatos e mexericos em Versalhes, a maioria era passada
para a forma escrita por obscuros autores de aluguel. A população de escritores
também cresceu tremendamente entre 1750 e 1789, enchendo mansardas e cortiços
e transbordando nos cafés, onde o disse que disse se espalhava. Sempre enfrentando
dificuldades para se manter, os escrito­ res de aluguel às vezes vendiam seu talento
sicário para destruir reputações a quem pagasse o melhor preço. Mais amiúde,
porém, especulavam por conta própria, atendendo a grande demanda por sujidades
no lucrativo comércio li­ vresco clandestino ou conjuminando atividade literária e
extorsão. A colônia de libelistas franceses em Londres era apenas uma dentre muitas
operações simi­ lares numa rede de Grub Streets que se estendia por toda a Europa
ocidental.
Os libelistas londrinos merecem atenção especial porque suas atividades
podem ser documentadas em grande detalhe, tanto a partir de suas próprias
publicações como dos arquivos da polícia parisiense e do Ministério das Rela­ ções
Exteriores da França. A história traz um elenco esplêndido de patifes e trapaceiros,
dignos de estudo em si, mas ela é importante porque lança luz so­ bre como a
produção de libelos penetrara as fileiras das autoridades. Quando inspetores de
polícia como Goupil e Jacquet de la Douay contrataram libelistas e montaram seus
próprios empreendimentos editoriais clandestinos, o sistema de poder viu-se
ameaçado de dentro. O fato de homens poderosos como Ver
gennes e Lenoir terem dedicado tanto esforço a combater os libelos confirmaa
gravidade da ameaça.
Contudo, quão ameaçadores eram os libelos na realidade? A questão não pode
ser resolvida em definitivo, devido a nossa incapacidade de rastreare ponderar o impacto
que sua leitura teve sobre a opinião pública - não temos sequer como saber qual era
exatamente a opinião pública na época e como ela foi gaú.hando força às vésperas da
Revolução. Entretanto, há evidências sufi­ cientes para indicar a existência de uma
poderosa maré de hostilidade contra 0 governo em locais específicos como o Falais-Royal,
de onde partiu a convoca­ ção para a tomada da Bastilha. Os libelos ajudaram a mobilizar
a enfurecida população parisiense e a dirigir sua ira contra alvos específicos, como os
dois principais ministros de 1787-8, Charles-Alexandre de Calonne e Etienne­
-Charles Loménie de Brienne. Evidentemente, outros fatores, como o preço do pão
e a ameaça de impostos descabidos, também instigaram o descontenta­ mento popular,
mas o impacto dos libelos não se restringiu aos danos infligidos a um ou dois indivíduos.
O efeito deles foi cumulativo e contribuiu para a criação do que chamei de mitologia
política.
Do início ao fim do século XVIII, os libelistas martelaram o mesmo tema:
despotismo. Ao atacarem ministros, amantes reais e o próprio rei, estabeleceram a imagem de
uma monarquia crivada por abusos de poder. O mal, tal como o apresentavam, era sistêmico,
não um mero efeito colateral das lutas pelo poder entre pessoas de má índole. Por certo, os
libelos narravam histórias pessoais e eram essencialmente revelações sobre as vidas privadas
de figuras públicas, mas os detalhes concretos dramatizavam e enfatizavam seu assunto
principal. Os li­ belos mostravam como indivíduos maus chegavam ao topo da hierarquia
gover­ namental, onde davam plena vazão a sua maldade, sem qualquer tipo de restri­ ção
institucional. Embora tal conjuntura fosse propícia para promover discussões sobre
questões constitucionais e princípios normativos, os libelistas evitavam se envolver com
teoria. Eles moralizavam, mas não filosofavam. Os leitores interessados nas implicações
filosóficas das histórias que narravam ti­ nham de consultar outros livros- que, por sinal,
eram empacotados junto com os libelos nos engradados que abasteciam toda a rede de
literatura clandestina: as obras de Rousseau, Mably, d'Holbach e outros philosophes,
particularmente Montesquieu. Montesquieu denunciara os perigos do despotismo em
Lettres persanes e analisara-o em De l'esprit des lois. As monarquias tendem a se degene-
rar em despotismo, disse. O despotismo era uma variedade distinta de governo, com
seu próprio espírito ativador e sua própria cultura. Não era preciso estender rnuito a
imaginação para associar os serralhos orientais que Montesquieu des­ creveu ao"harém" do
Parc-aux-cerfs mencionado em muitos libelos contra Luís
xv. Mas os libelistas deixavam que os leitores fizessem essa ilação. Eles reduziam
questões complexas a jogos de personalidades e, ao fazê-lo, mostravam que a
corrupção pessoal atuava como a força motriz por trás dos acontecimentos - ou seja,
pintavam um quadro geral da história do seu tempo.
Em seus prefácios, os libelistas costumavam se identificar como historia­ dores e
descreviam seus livros como obras historiográficas, em parte para con- vencer o leitor a
aceitar sua pretensão de objetividade, mas também porque os textos eram realmente
histoíres, nos dois sentidos da palavra: contavam histó­ rias e narravam acontecimentos.
Mesmo as "vidas privadas" podiam ser lidas como histórias, notadamente Vie privée de
Louis XV, cujos quatro volumes oferecem um relato minucioso dos eventos de 1715 a 1774.
Evidentemente, to­ das as narrativas eram enviesadas e todas elas transmitiam a mesma
mensagem: a França mergulhava cada vez mais no despotismo. Transformavam o passado
recente numa sucessão de ministros corruptos, um pior que outro. Os reis não eram
particularmente perversos, mas entregavam o reino aos mais infames dentre seus
favoritos, geralmente às instâncias de alguma amante degenerada ou, no caso de Luís xvr,
de uma rainha depravada. Portanto, a história contem­ porânea podia ser reduzida a
variações sobre um único terna: o despotismo ministerial.
Embora os libelistas admitissem exceções ocasionais a essa fórmula - às vezes até
tinham algo de bom a dizer a respeito de Turgot ou de Necker -, ela certamente não fazia
justiça às complexidades da história francesa depois de 1715. Mas a questão é justamente
essa. Os libelos eliminaram a complexidade ao reduzirem suas narrativas a um enredo único,
ainda que desenvolvessem múlti­ plas variações desse enredo acrescentando-lhe detalhes sem
fim. Na prática, a técnica resumia-se a acumular anedotas e encadeá-las de modo a formar
uma história. Todavia, é preciso ter em mente que a noção de "anedota" no século XVIII difere
fundamentalmente da nossa atual: referia-se ao lado secreto da história, a eventos que tinham
efetivamente ocorrido mas tinham sido ocultados do públi­ co. As anedotas tomavam a forma
de informações sobre incidentes que pode­ riam comprometer pessoas no poder e, a princípio,
circularam de boca em boca
o u como itens de não mais de um parágrafo em boletins clandestinos E ragrafos
. -
tornaram-se os blocos de construção dos libelos· Os libelistas extrai•am-

-nos de nouvelles à la main ou de cartas e os transcreviam de fontes orais. Qual-


quer que fosse sua origem, eram tratados como fatos indubitáve,is fragment os

autênticosi de experiência passada que podiam ser reunidos numa históri·a coesa

Além dissb, os libelistas também reordenavam esses itens para criar novas
narra- tivas e costumavam usar anedotas tiradas dos textos uns dos outros. Com isso,
os libelos foram adquirindo certa semelhança, como uma série de mosaicos ou
afrescos da mesma escola de artistas. Em 1789, um corpus literário já havia se
formado, contendo os mesmos ingredientes que podiam ser encontrados em toda
parte, todos eles tidos como verdadeiros, cada um reforçando os demais numa
caracterização comum do passado recente. Havia, é claro, exceções_ um ou outro
libelo composto como narrativa contínua, que fluía normalmente sem ser interrompida
por anedotas. Mas a maioria dos libelos encaixava-se nomes­ mo quadro geral, ou
metanarrativa. Os leitores eram capazes de reconhecer os principais episódios e
distinguir a estrutura básica de todos os enredos, de tal modo que tinham uma
contextura mental através da qual podiam triar os acon­ tecimentos. Os libelos
desembocaram numa visão coletiva de mundo.
Estou ciente que essa afirmação envolve um pouco de especulação. Não
podemos reconstruir o mundo tal como era vivenciado por pessoas que morre­ ram
séculos atrás. Não podemos traçar seus processos mentais durante a leitu­ ra. O máximo
que podemos fazer é estudar os indícios que remanesceram, dispersos em fontes
díspares e nos textos em si. Mas uma leitura atenta e com­ parações entre os textos
revelam algumas tendências em comum. Os autores sempre se dirigiam diretamente
ao leitor, orientando suas reações e norteando­
-lhe o caminho ao longo das narrativas. Em alguns casos, lançavam charadas ou
enigmas que só admitiam uma solução ou desafiavam o leitor a identificar os vilões de
uma história à maneira de um roman à clef Porém, mesmo depois de descobrirem a
solução, os leitores eram convidados a tirar as conclusões que quisessem. Em última
análise, porém, não há como resolver os problemas apre­ sentados pelo caráter aberto e
multifacetado da leitura e, portanto, o argumen­ to depende da natureza daquilo que é
lido. Se o material de leitura fosse bastan­ te difundido e propagasse um conjunto
básico de temas, podemos esperar encontrar certa congruência entre esses temas e o
modo como o público os
apreendia
528
As páginas precedentes tentam defender essa tese. E a estendem até o pe­ ríodo
revolucionário. À primeira vista, seria de esperar que a literatura libelista
desaparecesse depois de 1789, visto que quase toda ela estava voltada à sensibi­ lidade
específica do Ancien Régime - o fascínio por jogos de palavras e ditos espirituosos,
por exemplo, e a conexão entre as anedotas e a vida interna da corte. Os libelos
certamente mudaram durante a Revolução. Em 1792, seus au­ tores não queriam mais
entreter os leitores e haviam deixado de ridicularizare começado a denunciar. O tom
dos libelos tornou-se mais rude, sua retórica mais moralista. Sua forma, no entanto,
permaneceu essencialmente a mesma: reuniam anedotas, esboçavam retratos e
revelavam notícias sensacionalistas, tal como antes da Revolução. Tinham predileção
pelas metáforas já gastas usadas na literatura anterior: puxavam cortinas, abriam véus
e tiravam máscaras para revelar os verdadeiros traços dos vilões que atacavam. E
continuaram narrando "vidas privadas", exatamente como os libelos sob Luís XIV, e
continuariam a fa­ zê-lo até a ascensão de Napoleão - e mesmo depois, século XIX
adentro.
Como seus predecessores, os libelos revolucionários não tratavam de
ideias abstratas nem ofereciam análises políticas. Também eles reduziam
even­ tos complexos ao choque de personalidades. Como todas as personalidades ti­
nham os mesmos defeitos - a luxúria por dinheiro e a ânsia de conspirar com os
contrarrevolucionários sob um verniz hipócrita de patriotismo -, todos eles são
notavelmente parecidos. A similaridade estendia-se até os partidos a que estavam
ligados, pois fossem fayettistas, brissotianos, dantonistas, hebertis­ tas ou
robespierrianos, todos eram identificados por nomes, não diretrizes po­ líticas; e não
representavam nada além elo perigo constante de colaboração com conluios
contrarrevolucionários.
Ainda que a tendência de personalizar a política não distinguisse os libelos
revolucionários daqueles do Ancien Régime, a retórica ela denúncia deu-lhes um novo
alento e esforçaram-se para atrair leitores plebeus. Entre os leitores parisienses de 1793
havia muito mais sans-culottes do que indivíduos de for­ mação sofisticada, e os autores
que escreviam para esse público mais rústico adotaram o estilo de jornalismo belicoso
desenvolvido por Hébert e Marat. Visavam provocar indignação e ira, as emoções
descomplicadas do Le Pere Duchesne. Comparada com Vie privée de Louis XV,a Vie
secrete de Pierre Manuel parece tosca e rudimentar. Era uma peça do esforço de
propaganda que clamava
por sangue e acabou levando Manuel para a guilhotina. O caráter letal dos
libe

los sob o Terror distancia-os dos livros libertinos que entretinham os leitores
sob o Ancien Régime. Todavia, tinham muitas características comuns e tal
continuidade não deve nos surpreender, pois revoluções não podem criar mun­ dos
novos a partir do nada, a despeito da energia utópica que as impele. Elas têm de
construir usando materiais catados das ruínas do regime antigo. Os li­ belistas do
Terror adotaram técnicas desenvolvidas por seus antecessores sob Luís xv, que por
sua vez tinham aprendido os truques do ofício com Aretino e Procópio..Todos
tentavam propagar sua causa perante o público expondo os vícios da vida privada.
Não é uma narrativa edificante. A história literária carece de nobreza quando vista de
baixo para cima, isto é, da perspectiva de Grub Street, onde os libelos eram montados à maneira
da vida de seus autores, a partir de sujeira e determinação. A sujeira pode ser desagradável, mas
a determinação infundiu energia num vasto corpo literário, hoje praticamente esquecido, mas
merece­ dor de estudo, pois atingia leitores em toda parte e ajudou a moldar sua com­ preensão
do mundo em que viviam. Esse mundo desapareceu, mas calúnia e difamação continuam nos
calcanhares dos grandes. Examinar como os libelos ajudaram a derrubá-los no século XVIII
não significa extrair uma lição do passa­ do, mas sim entender como regimes autoritários podem
ser vulneráveis a pala­ vras e como palavras bem colocadas são capazes de mobilizar a força
misteriosa que conhecemos como opinião pública.

Você também pode gostar