Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
LITERATURA
BRASILEIRA
HISTORIA DA
LITERATURA
BRASILEIRA
(SEUS FUNDAMENTOS ECONOMICOS)
If
J
A O LEITOR
1 0
indo portanto na marcha política da humanidade. E ffe-
ctivamente, o feudalismo teve, em cada paiz, caracteris-
.ticas próprias e, como exemplo, poderiamos apontar o
seu caracter hierarchico em certas nações, em contraste
com o aspecto dispersivo em outras. Mas, no fundo, o
que traçou os lineamentos das instituições feudaes foi
a posse precaria e o usufruoto do sólo por pailc dos que
o lavravam, não importando o cai'ecter de interdependên
cia dos senhores, entre si, ou para com o rei, a não ser
para quem se disponha a fazer uma historia detalhada do
tempo.
O desenvolvimento da riqueza, com o augmento pro
gressivo da actividade profissional, caraicterisada pelas
coi-porações; a alliança do rei com o povo na sua luta con
tra os senhores, a necessidade, cada vez maior, da unifi
cação da riqueza, o papel relevante desempenhado pela
egreja de Roma (com a unidade consolidada desde o sé
culo X I), são factores que conduzem á unificação do po
der e á integração nacional. Essa unificação teve, tam
bém, phases diversas e aspectos proprios em cada paiz.
Caracterisou-se, em França, pela união do povo com o rei,
na 'luta contra a nobreza 'latifundiaria. Na Inglaterra,
surgiu sob outro aspecto: ahi, rei e nobresa lutaram con
tra o povo, nos seus surtos, para novas liberdades e maior
amplitude na acquisição de bens. Em fins do século X V
as condições sociaes na Europa estão bem demarcadas.
Na França, Luiz XI, atravez duma política tortuosa, mas
lúcida, consegue aniquillar o poderio feudal. Na Ingla
terra, a substituição das relações feudaes entra em fran
ca accele)'ação. Surgem no palco europeu grandes nações
organisadas. Outras iniciam, nas brumas medievaes, a
sua organisação. A luta secular pela Flandres chega
ao fim. Os limites dos paizes se vão/'vincando. A
paysagem européa adquire linhas bém precisas. Na
Espanha ultima-se a guerra ao sarraceno. Portugal,
plenamente lançado na aventura marítima, já apoiara o
golpe contra o feudalismo nas oi^denações affonsinas, pas
sara por uma crise aspera de involução e encontrara o
seu destino sob D. João II que, reduzindo o poder dos al-
11
caides, refoiTnando as doações paternas, i-epi-imira as re
galias da nobreza.
Estreitamente ligadas a essa ordem de acontecimen
tos, acompanhando muito de perto o desenvolvimento po
lítico e economico do mundo moderno, surgem as inven
ções e a expansão commercial. Nada exprime melhor a
chamada edade moderna, ficção de oídem didactica para
divisão peidodica da historia, que o surto verdadeiramente
notável das actividades commerciaes, as relações de troca
e procura de mercadorias, após a quéda de Constantino-
pla. Esse phenomeno economico, vinculando todas as
manifestações de outra ordem ás oscilações por que pas
sava, é coroado pela força disciplinadora da egreja ro
mana, pelo christianismo, herança do mundo antigo trans-
mittida ao medievaUsmo após o collapso romano. O ap-
parecimento de algumas invenções, si não marcou o prin
cipio da expansão economica, como muitos querem fazer
crêr, suppondo que as navegações se originaram da sim
ples descoberta da bússola ou do astrolabio; o facto de sur
girem algumas creações novas no precário mundo scien-
tifico de então, não deixa de dar cuiãoso aspecto ao
advento da expansão maritima oídginada de uma ordem de
imperativos onde a simples aventura entrava apenas como
manifestação da phantasia com que sempre se envolvem
as cousas inaccessiveis ao entendimento popular.
Enti‘e as invenções do tempo, entretanto, uma foi
de consequências tão notáveis para a vida da humanida
de que, por si só, representou verdadeira subversão na
ordem dos valores existentes. Quando João Guttenberg,
natural de Moguncia, imprimiu pela primeira vez um li
vro, operando, talvez inconscientemente, uma das maiores
revoluções a que a humanidade tem assistido. E ’ preciso ^
notar que, no mundo medieval, como no mundo antigo, o •
saber se circunscrevia; a i)equeno numero de homens in
capacitados de transmittil-o aos demais pela extrema dif-
ficuldade na expansão do pensamento. Ora, a imprensa
atirava ás massas a somma de conhecimentos que dor
mia nas ricas biblio.thecas ou no cerebro de alguns sábi
os. Libertava-as da escravidão mental. O livre exame
1 2
encontra nesse meio prodigioso de expansão de idéas um
instrumento poderosissimo. A imprensa marca um novo
episodio na existência humana. Dá um impulso extra
ordinário ao cabedal de ccmhecimentos adquiridos e por
adquirir. Colloca-se ao serviço do raciocinio amplo e li
berto. Alarga os horizontes, dando velocidade conside
ravelmente maior á expansão das ideologias.
E ’ por isso que, quando Martinho Luthei'o, já no al
vorecer do século XVI, lança a Reforma, ella apparece in-
dissoluvelmente ligada á imprensa. Sem uma não pode
ría ter.àxistido a outra, isto é, sem imprensa a Reforma
não teria a repercussão que teve e não chegaria a domi
nar uma parte da sociedade do tempo, submettida á dis
ciplina christã, onde o livre exame só podia abrir brecha
ajudado por clava tão poderosa. A R e fo m a vem que
brar a profunda unidade do mundo christão. Effecti-
vamente, após o collapso romano, incapaz de manter a
unidade das terras dominadas, i-oído pelos barbaros que
não conseguira assimilar, o Império offertava ainda, á
edade seguinte, a maravilha da sua oi"ganisação escriptíi
e o movimento social perfeitamente constituído que era
o christianismo. Tendo acabado de arruinar o Império
Romano, minando-o e dividindo-o, o christianismo, que
adquirira delle a disciplina e muitas .das suas institui
ções, chegando intacto e cohesb,’ consolidado e forte á
edade moderna, ao commando do bispo de Roma, resol
vidas as questões da convocação dos concilios e da disper-
sividade da egreja ; o christianismo iria coroar a organi-
sação social. Quando a quéda de Constantinopla marca
0 advento de uma nova era, na vida tumultosa da huma
nidade, fechando o caminho do Oriente para os mercado
res que o frequentavam por terra, obrigando-os a bus
carem-no no mar, o christianismo domina o arcabouço da
sociedade do tempo e inflúe em todas as manifestações do
pensamento e da energia dos homens.
A Reforma quebra essa unidade fecunda e discipli-
nadora, introduz novos padrões na vida européa, e, na
ansia de demolição e rebeldia, encontra uma i’eacção as-
pera e terrível na contra Reforma. Esta não se caracte-
13
risou tão sómeate pela fixação, em concilio, das idéas
fundamentaes do mundo catholico, mas provoca a funda
ção das ordem x-eligiosas. Surge a Ckxmpanhia de Jesus,
organisada por um dos espirites mais objectivos e mais
precisos do tempo, Companhia que teria tanta influen
cia no Brasil.
A situação da Italia, sem unidade política, domina
da, em algumas partes pelo papa, em outras pelo Impera
dor allemão, pelos noi'mandos nas demais, fi’agmentada
assim por autoiüdades as mais diveisas, provocou o ap-
parecimento das republicas aristoci'aticas nas cidades
mais industriosas e desenvolvidas. Veneza, abx’igada
nas suas ilhas e nos seus canaes, das invasões barbaras;
Florença, Gênova, Pisa, Milão, Roma, eram centros do
commencio cada vez mais avultado para o Oxãente. O
dominio dos mares davadhes o instrumento para a aequi-
sição e para a ti'oca das mercadoifas trazidas das rejriões
longínquas e logo distribuídas pela Europa. A olygai’-
chia veneziana domina o MediteiTaneo. O poi-to da ci
dade max'avilhosa se tornava o mais importante do tem
po. Na ansia de conseguir os portos intei-mediarios, con
quista Coiíú e iChypi’e. Sobi’e uma organisação com-
mercial extox'siva e podexpsa dominava uma aristocracia
despótica, constituída em Gi’ande Conselho.
O commercio com o Oinente i-epx'esentava, então, uma
fonte de riqueza immensa e innesgotavel. A s republicas
italianas mantinham a supi^emacia desse commei'cio e px’o-
viam, com as mercadorias ti-azidas pelas suas frotas bem
apparelhadas, a Eui-opa inteii-a. Toda a riqueza circula
por essas pequenas cidades onde o smix) notável das ar
tes marca os momentos de ephemero dominio.
A s Cruzadas haviam despertado na Europa medieval
a fascinação do Oiãente. Genovezes e venezianos de lá
ti-aziam px'oductos que amenisai'am o padrão de vida da
sociedade chxdstã. Os centros do Mediterrâneo iniciavam
uma época faustosa. Revelações sobre a existência orien
tal, como a naiTativa de Marco Polo, enchiam de sonhos
onirificos a imaginação eui'opéa. A s primeiras navega
ções, 0 roteii’o terrestre, o impeto commercial veneziano
1 4
e genovez, abriam as possibilidades da vida commum no
mundo medieval. O commercio de longo curso provoca
uma das creações mais notáveis da vida economica de
todos os tempos. O intercâmbio dentro da própria Eu
ropa augmenta duma maneira verdadeiramente notável.
A acção mercantil da Liga Hanseatica abre novos hori
zontes a uma organisação economica em constante desen
volvimento. O processo primitivo e lerdo da troca de
productos em especie sentir-se-ia incapaz para acompa
nhar essa distensão formidável. A organisação com-
mercial torna-se cada vez mais complexa. Surge a le
tra de cambio, uma das mais impressionantes revoluções
da historia economica. O surto commercial vae favorecer
consideravelmente o poder real na sua obra de centralisa-
ção e de absolutismo. O entendimento directo de reis
e banqueiros offerece novo aspecto a um predomínio que
augmenta sem cessar. O mundo antigo abre caminho á
nova éra, á expansão commercial e economica que é o
fundamento da organisação moderna. Os descobrimen
tos maritimos derivam, então, de factores materiaes in
contestáveis, entre os quaes se póde apontar o imperialis
mo commercial de Veneza, as Cruzadas e a actividade da
Liga Hanseatica. Abertos os horizontes, rasgados os
caminhos, apontadas as diiectrizes, finnados novos valo
res, erigida a nova estructura, restava continuar e persis
tir. Na ponta da Europa surge um povo que realiza
uma das mais notáveis expansões de todos os tempos.
Portugal encontra o seu destino no mar.
CAPITULO II
Portugal — Resumo da sua formação
histórica — Caracteristicas do feudalismo
portuguez — A luta contra o sarraccno —
Nacionalismo precoce — Expansão geogra-
phica. Seus motivos c seus rumos — Por
tugal na época do descobrimento do Brasil.
2 6
no movimento europeu. Bernardin Ribeiro, Damião de
Góes, Diogo do Couto, são os vultos mais eminentes des
sa phase de transição. Algumas obras são ainda escri
tas em latim. A lingua passa por uma transformação mui
to rapida. Pedia o genio que compuzesse, nesse instru
mento ainda impreciso de expressão de vida e emoções,
0 momento definitivo. O obreiro extraordinaiúo surge
com Camões. Na sua obra a lingua adquire resonancias
poderosas e profundas. Grande lyrico, elle tira delia to
dos os recursos com que já se haviam adornado as tradi
ções poéticas do medievalismo. E’pico divino, servir-se-
ia delia para immortalisar as façanhas prodigiosas do
espirito portuguez. Sobre a “pedra angular” da épopéa
camoneana o portuguez se tonia um idioma dúctil e poly-
phonico. Deixa a infancia, assimila as influencias mais
diversas e toma a feição de obra acabada.
C APITU LO IV
_J
6 3
Mas ai! que a differença entre nós chora;
Pois acabando tu ao fogo que amas
Eu morro sem chegar á luz que adoro.
No Brasil a fidalguia
No bom sangue, nunca está;
Nem no bom procedimento.
Pois logo em que póde estar?
64
Consiste em muito dinheiro,
E consiste em o guardar;
Cada um o guarde bem,
Para ter que gastar mal.
Oh veja eu assolada
Cidade tão suja e má.
Avessa de todo o Mundo;
Só direita em se entortar.
íK
A partir dos últimos annos do século X V II a historia
brasileira entra numa nova phase. Vae soffrer as conse-E
quencias duma transfomação muito rapida, imposta por
um dos acontecimentos mais curiosos na vida do paiz: o.
apparecimento do ouro. A expansão linear, que se trans-'
formara em expansão em profundidade, affectada duma
nova dimensão, pelo espirito vigoroso da gente do planalto
de Pii'atininga, na sua necessidade premente de accudir
á lavoura como o braço do indio preado, a principio e, de
pois, indo atraz da illusão do ouro de lavagem, dá novos
e immensos limites a uma terra já enorme.
Foi em 1695. Antonio Rodrigues Arzão e Manoel
Garcia Velho, paulistas, appareceram, no Espirito Santo
tr
e no Rio de Janeiro, com as primeiras oitavas de ouro
descoberto no corrego de Ouro Preto. Installou-se uma
casa de fundicção em Taubaté e o Brasil iniciou um
novo cyclo do seu desenvolvimento, cyclo que muda com
pletamente os seus padrões de existência e altera as di-
rectrizes da sua historia.
67
0 ouro das minas mais facil e mais productivo, por
que possivel de colher em maior quantidade, mais com
pensador portanto, enche a imaginação da gente do tempo.
As lavouras, em toda parte, são abandonadas. A illusão
aurifera domina todos os espiritos. O assucar vê os seus
preços cahirem nos mercados europeus. As populações
correm para o interior, em busca da lúqueza facil. Do
nordeste, pelo valle do S. Francisco, descem os povos. De
S. Paulo marcham os bandeirantes. Estes já haviam se
meado de povoados uma extensão enorme. Agora iam
em busca da realidade. Já não os illudia uma miragem,
como anteriormente, quando se atiravam a longas cami
nhadas para o sul. O que se lhes deparava, no inteinor,
era uma esplendida realidade, a consumação do que fôra
um sonho desde os primeiros dias do descobrimento e que
andara na imaginação atomentada e visionária do eu
ropeu.
O ouro attrahia milhares de homens. Antonil refere:
“ Das cidades, villas, recôncavos e sertões do Brasil são
brancos, pardos e pretos, e muitos indios de que os paulis
tas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas:
homens e mulheres; moços e velhos; pobres e ricos; no
bres e plebeus; seculares, clérigos e religiosos de diver
sos institutos, muitos dos quaes não têm no Brasil con
vento nem casa.”
E o ouro, na faina a que obrigava e na pressa de
sustentar uma população de adventicios, urgia e creava
um commercio novo, provocando novos accessos á região,
tornando uma necessidade a descida do gado pelo S. Fran
cisco. As cidades vão surgindo vertiginosamente. A re
gulamentação das minas favorecia essa dispersão da horda
de adventicios. Uma phase de brilho sem par surge para
a região.
Mas logo, nas dobras da conquista maravilhosa, ap- -
parece a contenda, paulistas e emboabas disputam a pos
se das terras. O emboaba, mais organisado, mais esperto
e mais forte, consegue o dominio. Qual teria sido o des
tino do Brasil si os paulistas vencessem a luta contra os
adventicios e impuzessem a sua dominação? Mas foi o
6 8
/ contrario que se deu e os homens de Piratininga divergi
ram do rumo das suas conquistas para Matto-Grosso e
Goyaz, chegaram a Cuyabá, tocaram as pontas do Xingú.
O emboaba dominaria infrene a região aurifera. O
exodo das populações continuaida. Iam formar.se cida
des, da noite para o dia. Villa Rica chegaria a ter mais
de cem mil habitantes. A nova capitania das Minas Ge-
raes tornou-se a mais movimentada do Brasil. Inicia-se
nos meiados do novo século, o século X V III, o augmento
da população negra. 0 trafico se desenvolve assustado-
lamente. São negros para as lavras. Negros para o tra
balho. Negros para tudo que signifique esforço e suor.
E o branco, amollecido, adonnentado num luxo barbaro e
inconsequente, perde as suas qualidades, desfaz as suas
energias. 0 numero de escravos é, mesmo em Villa Rica,
tres, quatro vezes o numero de senhores. Ha mais escra
vos do que homens livres. A população negra se desen
volve prodigiosamente.
Isso acarretaria o deslocamento do eixo do paiz para
a região centro-sul. Néssa região se constituiría a zona
mais rica do paiz. Esse deslocamento, acearretado pela
mineração, se fixaria com a lavoura. A expansão em pro-
/
fundidade, muito maior no sul do que no norte, apezar de
que 0 bandeirismo não foi um phenomeno unicamente pau
lista, trouxe para a região central da colonia, com o adven
to do ouro, uma primazia que ella conservou até os nos
sos tempos.
As consequências da mineração seriam immensas
para a nacionalidade que estava se fom ando. Acarretaria
uma immigração desordenada para a região centro-su3.
Essa immigração occupou definitivamente o sertão e se
meou cidades, constituindo centros de commercio á bei
ra das estradas de penetração e ao longo do S. Francisco.
Ficava creado um grande mercado de gado e tropas que
desciam o rio, provindas da Bahia e do nordeste. Repel-
liría, com a luta de emboabas e mascates, os paulistas
para a conquista de Goyaz e Matto Grosso e para o sul.
Tornou possivel a constituição do Rio de Janeiro em ca
pital do paiz. E, segundo um dos mais lúcidos commen-
6 9
tadores da nossa historia economica, fez constituir-se na
região uma concentração e formação de capitaes, em es
cravos e tropas, que, mais tarde, facilitariam a lavoura
de café no valle do Pamahyba e nas regiões fluminenses.
Para Portugal as consequências não foram^ de menor |
monta. Elias não fixaram a sua historia nem modifi
caram a marcha dos acontecimentos da peninsula, mas
deram uma physionomia própria á sociedade portugueza
do tempo, influiram poderosamente nos padrões da época,
contribuiram para um surto notável de obras publicas no
reino, como o convento de Mafra, o palacio das Necessi
dades, a reconstrucção de Lisboa. Os gastos immodera-
dos da corte poi-tugueza, no esplendor dum luxo fonni-
davel, foram pagos com o ouro do Bi-asil. Portueal .es
tava, no inicio da minei'ação brasileira, em apertada si
tuação financeira. Essa situação era consequência da sua
luta contra Castella. Os produetos oriundos do Bi'asil
soffriam uma tenaz concurrencia dos de outras regiões.
O erário lusitano se resentia desse desequdlibrio todo.
E incentivava excitadamente a descoberta das mi
nas. O século X V n i marca a era de maior fartui’a do
erário portuguez. As suas arcas estão abarrotadas. Os
quintos da coroa, os rendimentos do districto diamantino,
a taxação extorsiva que as autoridades delegadas exer
ciam, tornam possivel um accumulo de ouro como a nação
lusitana não conhecera e não mais conheceu. Refere-se
que, em 1770, os réditos e monopolios, afóra os rendimen
tos provindos da mineração, deram acima de 600.000 li
bras. O mesmo historiador affinna que, mais de 40 % dos
pagamentos effectuados pelo importadores brasileiros en
travam para os cofres portuguezes sob a fo m a de impos
tos, pois o commercio da colonia era feito por intermédio
da metropole. Nos fins do século, 2/3 do commercio exte
rior de Portugal era mantido com produetos bi’asileiros. A
nação lusitana atravessava uma situação de abundancia
como jamais conhecera. Isso influiu poderosamente no
sentido da sua obra colonisadora que, ao envez de se ori
entar por uma cooperação e por uma visão mais larga, es
treitou-se, vincou-se duma brutalidade sem par. Não
7 0
houve liberdade que não nos fosse prohibida. Não houve
franquia que se nos permittisse. Era prohibido trabalhar
em ourivesaria. Era interdicto trabalhar o ferro e o ouro.
Imprensa não se podia crear. O Brasil conheceu a impren
sa só no século XIX... Os naturaes da terra não tinham
direitos. Mas os seus deveres sommavam uma serie de cou-
sas. A taxação era despropositada e extorsiva. Matava o
interesse e fazia com que o particular trabalhasse para o
erário portuguez. Isso conduzia a uma situação desagra
dável e brutal de burla e de fuga á fiscalisação, de con
trabando e de repressão barbara.
A s consequências da mineração brasileira, porém,
longe de affectar, apenas. Brasil e Portugal, affectou pro
fundamente a Europa e influiu grandemente na constitui
ção do predominio inglez que surgiu depois que a colonia
entrou a enviar para a metropole o ouro das suas minas.
No inicio do século a producção do ouro brasileiro provocou
um augmento geral nos preços, desde que importou na
baixa do valor do ouro, pelo accumulo da sua producção.
Phenomenos correlatos, a abundancia do metal padrão
com a baixa dos preços, essa nova fonte de ouro, em
grande escala produziu, como não podia deixar de ser,
uma elevação no preço das mercadorias.
Portugal, em consequência da rivalidade politica com
a Espanha, approxima-se da Inglaten-a. Conclue com
ella o tratado de Methuen que relega o paiz lusitano a
uma situação exclusivamente agricola, portanto sem al
cance no futuro, desde que só uma poderosa organisação
industrial póde constituir o arcabouço dum estado per-
feitamente organisado e apto a suprir-se de todas as
utilidades. O tratado obidgava Portugal a permittir
a entrada dos pannos e outras manufacturas de lãs ingle-
zas, em troca de tratamento preferencial aos vinhos lusi
tanos. O século X V III encontra Portugal com uma ba
lança negativa no commercio com a Inglaterra. Dessa fo r
ma, sem poder reter o ouro que lhe manda a colonia, esse
ouro transita pelas suas alfandegas e vae supportar o
advento do predominio inglez. A coincidência desse suiix)
da mineração com as descobertas industriaes que marcam
7 1
0 século X V III, acarreta para a Grã-Bretanha uma situa
ção excepcional. A Ingrlaterra inicia a sua curva ascen-
cional sobre a ruina porbugueza enfeitada duma opulência
fícticia e passageira.
0 natural espirito aggremiativo que busca reunir os
homens do mesmo officio, e que teve um prurido extraor
dinário nos fins dos tempos medievaes, apparece, em to
das as nações, quando o humanismo consolida a sua po
sição, como um acontecimento de oi'dem geral. Na Fran
ça, na Italia, na Espanha, surgem as academias, os cen
tros de reuniões, os cenaculos onde se reuniam os homens
de letras, sob a protecção de algum politico em evidencia
ou pelo simples prazer de encontrar um meio onde a dif-
fusão do pensamento estivesse mais nonnalisada, mais
comprehendida.
Isso devia acontecer no Brasil, com muito mais na
turalidade, de vez que o meio intellectual brasileiro, do
século X V III, era reduzido e ainda atrasado. A acção des
ses intellectuaes sobre a sociedade vigente não seria pon
derável nem efficaz. Elles não influiram na marcha
dos acontecimentos. Não teriam predominio sobre os pa
drões ethicos e moraes da sua época. Appareciam, ainda,
como acontecimentos esporádicos, isolados e sem uma
onda de influencia capaz de lhes proporcionar situa
ção de evidencia ou de predominio.
Dahi a constituição, copiada dos modelos europeus,
das chamadas academias. Elias tinham titulos extranhos
e pitorescos e aggremiavam os homens de pensamento que,
brasileiros ou não, frequentavam os estudos, liam e pro
duziam obras em verso e prosa. Em 1724, sob os aus-
picios do vice-rei D. Vasco Fernandes Cesar de Mendonça,
fundou-se na Bahia, uma sociedade literaria conhecida por
“Academia Brasileira dos Esquecidos” . A ella pertence
ram, entre outi-os. Sebastião da Rocha Pitta, Brito Lima,
José Pires de Carvalho e Albuquerque, os irmãos Bartho-
lomeu Lourenço de Gusmão e Alexandre de Gusmão. Doze
annos depois surgiría a dos Felizes, mais adeante a dos
Selectos e a dos Renascidos.
Sebastião da Rocha Pitta nasceu na Bahia, em 1660.
7 2
Estudou, como todos os brasileiros do seu tempo, no col-
legios dos jesuitas, seguindo, aos dezeseis annos, para Co
imbra, continuando um habito dos brasileiros abastados de
então. As primeiras letras, com o jesuita. A formação,
em Coimbra. De regresso á terra misturou os misteres
da lavoura com o das bellas letras. Recolheu-se a uma
fazenda que possuia junto das margens do Paraguassú e
ficou entregue ao cultivo da terra e á leitura dos autores
mais diffundidos no tempo. Escreveu, nessa época, alguns
cânticos, sonetos, eclogas e hymnos. Um soneto de Rocha
Pitta seria uma cousa terrível para os leitores dos nossos
dias. Escreveu, ainda, em castelhano, um romance. Mas
a obra que lhe deu celebridade, foi a sua Historia da
America Portugueza, depois de laboriosas pesquizas nos
archivos de Lisboa, obra que publicou em 1730. Dizem
.as chronicas que Rocha Pitta se entregou a annos de in
vestigações e de estudos antes de se dispor a escrever a
sua obra histórica. Iniciou essas pesquizas na Bahia, no
convento das ordens principaes, na bibliotheca dos jesui
tas. Isto feito, embarcou para Lisboa, a consultar os do
cumentos que lhe faltavam. Estudou linguas, aprofun
dou-se no francez, no italiano, no hollandez. Aprimorou o
seu castelhano que já sabia bem. Consumiu largo tempo
em compor a obra, ultimando-a em 1728. Ella abrange
desde o descobrimento até os annos que antecederam a
sua publicação. D. João V nomeou-o, como recompensa,
fidalgo da casa real e cavalleiro da Ordem de Christo.
O estylo de Rocha Pitta é o que ha de rebuscado e de
enfadonho. Esci’eve elle: “ Do Novo Mundo, tantos séculos
escondido e de tantos sábios calumniado, onde não chega
ram Hapnon com suas navegações, Hercules Lybico com
suas columnas, nem Hercules Thebano com suas empre-
zas, é melhor porção o Brasil; vastissima região, felicissi-
mo terreno, em cuja superfície tudo são fructos, em cujo
centx'0 tudo são lhesouros, era cujas montanhas e costas
tudo são ai’omas, tributando os seus campos o mais util
alimento, as suas minas o mais fino ouro, os seus troncos
0 mais suave balsamo. e os seus mares ambar o mais se-
lecto; admiravel paiz, a todas as luzes rico, onde pródiga-
7 3
mente profusa a natureza se desentranha nas ferteis pro-
ducções, que em opulência da monarchia e beneficio do
mundo apura a arte, brotando as suas cannas espremido
néctar, e dando as suas fructas sazonadas ambrosias de
que foram mentida sombra o licor e vianda que aos seus
falsos deuses attribuia a culta gentilidade” .
E" 0 lyrismo escolar que aprendemos na nossa infân
cia e de que nos apartamos tão cêdo, com sacrifício de
algumas illusões. Rocha Pitta é o primeiro mentiroso da
nossa historia. E ’ ò marco inicial da velha lenda em que
hos debatemos de que a teiTa é grande e cheia de cousas
preciosas, que o Brasil é a maior e mais poderosa nação
do mundo. Os defeitos da sua maneira de escrever eram
os da época. Amava-se o rebuscado, as imagens tiradas
á antiguidade. A sonoridade, o effeito da psrase, tinham
uma importância capital.
A analyse histórica de Rocha Pitta prima, também,
pela impassibilidade. Num tempo em que já havia um
forte sentimento nacional, em que se pensava sériamente
no Brasil, elle encara a colonia, apenas, como uma joia
engastada na coroa pox’tugueza. Os movimentos anterio
res ao seu tempo, as lutas pela posse da terra, os episodios
denunciadores duma consciência em formação, nada dis
so lhe desperta uma phrase, daquellas suas phrases enro
ladas, denunciando o brasileiro que entrevê a patria fu
tura, ou, pelo menos, o regionalista sensivel que aprecia
com maior ardor aquillo que toca ao seu torrão. A narra
ção decorre, impassivel e sonoi^a, como uma musica toca
da sem altos e baixos, num diapasão unico. Rocha Pitta
falhou ao seu destino de histoiãador do Bi’asil. O simples
facto de ter appelidado a sua obra de Historia da America
Portuguesa já o faz suspeito aos nossos olhos. Elle olhava
a terra com a visão do homem educado em Coimbra, do
portuguez nascido na colonia. Tudo nelle é portuguez, o
estylo, coimbi'ão puro, a maneira de apreciar os aconte
cimentos, 0 gongorismo.
Frei Manoel de Santa Maria Itaparica é, dos poetas-
tros do tempo, donos duma versalhada tenúvelmente en
fadonha e monotona, sem uma nota mais attrahente, sem
7 4
uma pintura simples, o menos desagradavel. O seu poe
ma Eustachidos, composto em oitava rima e dividido em
seis cantos, é uma cousa pesadona e terrível, difficil de ser
digerida. Adivinha-se nelle, como em muitos outros
f poetas desse tempo, uma vontade accentuada de imitar os
Lusíadas, de copiar Camões. A sua descrípção da ilha de
•i ítaparica figura em anthologias e é tida como uma pa
gina das melhores que escreveu.
Nuno Marques Pereira, autor do Peregrino da Ame
rica, parece que mereceu a admiração dos seus contempo
râneos. A sua obra teve cinco edições a acreditar na in
formação de Ronald de Carvalho. O seu portuguez, a lín
gua em que trabalhou, é quasi do mesmo estylo da de
Rocha Pitta. Talvez seja peior. Menos empolada, mas
menos correcta.
A maior figura do tempo, o Gregorio de Mattos da
época, é, sem sombra de duvida, o judeu Antonio José. V i
vendo em Portugal e lá se educando, elle pertence mais ao
pensamento portuguez do que ao nosso; entretanto, como
nasceu em nossa terra e como, enti‘e outros, está aiTolado
entre os brasileiros o lusophilo Rocha Pitta, não será de
mais discorrer sobre uma personalidade interessante como
a deste homem de espirito, escrevendo com uma clareza e
uma ironia que, para a sua época, constituem um dos acon
tecimentos mais notáveis.
Antonio José da Silva, mais conhecido por Judeu,
nasceu no Rio de Janeiro, em 1705, filho dum advogado
brasileiro, de origem judaica, João Mendes da Silva, e de
Lourença Coutinho. Foi para Lisboa com seus paes quan
do D. João V mandou recolher ao reino os judeus do Bra
sil. Tendo tenninado os estudos primários, foi para Coim
bra onde se fom ou . Ajudando o pae, no trabalho da advo
cacia, entretinha-se em versejar, o que provocou a atten-
ção da Inquisição, que não havia perdido de vista a fa
mília que mandara buscar ao Brasil. Preso, submettido a
torturas teve despedaçados os dedos das mãos. Peniten
ciado em auto de fé, procui’ou mostrai-se mais catholico.
visto como a Inquisição o não perdia de vista nem lhe
perdoava o talento e a origem. Impellido por uma incli-
í í>
)j
8 0
Como se vê era impossível o reino permittir a divul
gação de obra tão importante. Seria um contrasenso, na
mentalidade portuguesa de extorsão e de anniquilamento.
Consumou-se a prohibição. Interdicta a publicação de
obra de tão alto interesse, ficavam os sagrados e purís
simos ideaes dos colonisadores a salvo duma propagan
da insinuante. Repetiu-se o caso de Frei Vicente do
Salvador. Antonil, clássico brasileiro, veio a ser conhe
cido muito depois, quando já não havia colonia...
C APITU LO IX
L
<) 4
J
r
9 7
Tu não habitarás palacios grandes
Nem andarás em coches voadores;
Porem, terás um vate que te preze
E cante teus louvores.
i
9 8
Mas este bom soldado, cujo nome
Não ha poder algum que não abata,
Foi, Marilia, sómente
Um ditoso pirata,
Um salteador valente.
Se não tem uma fama baixa e escura,
Foi por se pôr ao lado da injustiça
A insolente ventura.
1
C APITU LO X
5^
7 ‘
CAPITU LO XI ■ ^^f,
L
1 .10
J
115
cultura, no pensamento brasileiro. Surgem poetas e pro
sadores, politicos e revolucionários, oradores e jornalistas,
homens de pensamento e homens de acção. As vozes que
pregam a autonomia já não são vozes sussurrantes e tí
midas; ellas se erguem cheias de audacia para propagar
idéas, numa agitação idealista que o paiz não conhece ain
da e a que ia assistir, virgem para essas contendas. As
marcas profundas que os annos de colonisação tinham
deixado no espirito brasileiro, ir-se-iam apagando lenta
mente, para serem substituídas por novas influencias, não
mais caracterisadas pelo dominio material, mas sublima
das pelo influxo das novas leituras, atravez das quaes
se adaptam alheias instituições. Nem seria de esperar
a emancipação absoluta, a consciência nitida do proprio
destino numa nação que mal ensaiava os primeiros passos
na senda da vida autonoma. O que distingue o processo
evolutivo das letras brasileiras nessa época de tumultua
ria transição, é a repulsa á influencia da lingua metro
politana, dos cânones metropolitanos. Coimbra já não
seria a viga mestra da nossa fom ação mental. O pensa
mento do paiz, liberto de peias, com ambiente para ex
pandir-se € meios proprios de vehiculação, toma rumos
muito diversos dos que, ate aquelle momento, vinha se
guindo.
Na poesia, que se libertou com mais lentidão, sente-se
ainda a influencia dos arcades, mas modificada pelas no
vas correntes philosophicas oriundas da França. Não sem
uma certa dóse de razão um viajante inglez noitara o pre
domínio do pensamento gaulez na indole dos nossos ho
mens que se occupavam de política. Vamos encontrar, ain
da na nossa poesia, sylphides e nayades. Mas são os ac-
cordes finaes. Elles irão extinguindo-se lentamente, para
dar logar a novos accentos e processos poéticos.
Entre os poetas do tempo notabilisava-se Souza
Caldas, sensibilidade profunda e viva num physico doen
tio, inclinado á melancolia, ao pessimismo á descrença.
sua poesia é uma evasão, necessidade de explicar-se e
dar expansão aos seus pendores. Na poesia sacra, elle
1
116
fica como figura impar na nossa lingua; mas é o unjj,
toque de serenidade da sua obra, porque, no mais, o q,,'
reponta é a nota plangente e lamentosa;
118
rico Elysio. A melancolia da derrota influiu-lhe podei-o»
mente no espirito. Rememora em seus versos episodioj
om que se vira envolvido, notando-se a repercussão puj.
funda de taes episodios no seu espirito.
Na Ode aos Bahianos ha allusões claríssimas:
Mais adeante:
Ou, ainda:
J
121
nhava os acontecimentos que sobreviriam ao regresso do
rei para Portugal. Autonomista, defendeu com ardor e
rara vibração a causa do paiz. Fez o que pôde para que
suas idéias se diffundissem e fossem conhecidas e esti
madas. Atormentou os dominadores, soffreu sem dimi
nuir no seu destemor. Possuia uma cultura sólida e, ao
par do movimento das idéias na Europa, acompanhando
de perto os acontecimentos que lá se desenrolavam, esta
va, como nenhum outro, em condições de chefiar um mo
vimento, de opinião.
Os acontecimentos brasileiros, ao influxo da cam
panha de Hyppolito José da Costa, e quando não se podia
mais supportar os desvios que a politica reinól nos que
ria impor, precipitavam cada vez mais a sepai’ação. Pas
sada a rajada napoleonica, Poiiiugal exigiu a volta do rei,
não para reimplantar o absolutismo, mas para r^einar se
gundo os novos princípios. A camarilha portugueza do
Brasil, que, pela força da inércia, influiu ainda nos des
tinos politicos do paiz por lai’gos annos, obrigaria D. João
VI a tomar o partido decisivo, submetter-se aos novos câ
nones politicos e regressar. Isso importava, para o Bra
sil, numa descontinuidade sensivel da sua evolução. Era
impossivel obstal-a e deu-se o inevitável.
O surto economico que marca a ascenção brasileira
com o advento da côrte aqui refugiada, soffi-e um collapso.
A producção continua no seu rythmo, o commercio per-
m.anece activo, mas a riqueza publica desfalca-se consi
deravelmente, desde que o rei, ao retirar-se, procedeu
como ao fu gir da metropole: retira-se com as arcas abar
rotadas. O contraste entre a riqueza particular e a po-
bresa do Estado devia produzir um desequilíbrio notá
vel na vida do Brasil. E’ esta a situação que coube em
herança ao principe regente.
D. João V I tinha lampejos de lucidez verdadeiramen
te notáveis na bonhomia do seu caracter e na apparente
displiscencia das suas maneiras. E ’ incontestável que
esse rei não foi apenas um glutão amodon-ado e pregui
çoso. A sua attitude, no caso do Bx'asil, e a solercia com
que jogou entre os interesses mais appostos, i-evelam nelle
L
122
esperteza e videncia dos acontecimentos. Comprehendeu,
mais cêdo do que os elementos portugueses que o cerca^
vam, que a separação era questão de tempo, e qualquer
desequilíbrio podia provocar uma luta de inevitáveis con
sequências, quer para Portugal, quer para a própria co-
lonia capaz de fragmentar-se pela violência e aspereza
com que as suas diversas partes encaravam os factos.
Retirar-se do Brasil, obedecendo aos imperativos da sua
gente e da mais forte das correntes politicas que domi
nava na metropole, importaria num abalo profundo, quer
economico, — e portanto subterrâneo — quer politico —
e portanto apparente, — produzindo uma impressão deso-
ladora no povo que se acostumara já áquelle arremedo de
vida independente, realçada pelas r^egalias de côrte. 0
povos olham, em geral, para a superficie dos aconteci
mentos, para o figurino governamental, para a physio-
nomia, agradavel ou não, das instituições. A ’ massa in
culta, incapaz de perceber os processos que se desenvol
vem no subconsciente das nacionalidades, de que os fa
ctos exteriores e a apparencia das instituições são ane-
nas a repercussão, só podem agi’adar o arcabouço ori-
Ihante e o jogo futil das palavras e attitudcs. Na muta
ção de processos por que passava a economia do velho
reino, o que surgia, como consequência clara e visivel,
era o constitucionalismo em contraposição ao velho abso-
lutismo. A população e os partidos do reino se apega
ram a essa nova bandeira. Era o ultimo recurso de Por
tugal, que necessitava subsistir e continuar. Em liga
ção com a camarilha portugueza, com a côrte que rodea
va 0 rei no Rio de Janeiro, a massa do reino exigia a
volta e 0 compromisso constitucional. Este foi presta
do. Mas, na visão do regresso, dois pontos de vista bi
furcavam-se neste dilemma: numa ponta, os homens da
nova terra; na outra, os fidalgotes do reino e a gente que,
de Lisboa, clamava sem cessar. D. João decidiu-se afi
nal: partiu e deixou o filho.
Ficava com os dois fios da meada nas suas mãos gor
duchas.
D. Pedro herda uma situação chaotica e dispersiva.
ir
123
0 paiz está em crise de crescimento, que se ia tornar agu
da com 0 desequilibrio financeiro provocado pela evasão
do ouro que o rei levava nas suas arcas.
Manter a unidade brasileira por entre os arrancos
da autonomia provincial, consolidando a massa humana,
que se espalhava nas distancias infinitas, exigia, mais do
que simples lucidez politica, segurança e habilidade no
manejo da cousa publica. Os movimentos sociaes e po-
liticos do paiz permaneceríam com a sua directriz unica,
do centro para a peripheria. O centro era a administra
ção, o poder, a força, a séde das instituições, o eixo na
tural. Delle promanavam todos os poderes. Delle se
distendia a cadeia que unia as differentes paiies duma
nacionalidade incipiente. As transfomações que nelle se
operavam propagavam-se, como ondas, para o interior e,
pela costa, para a norte e o sul, perdendo-se no territó
rio immenso. Por isto é facil verificar a triste realida
de do predominio sobre o pensamento do principe regen
te, duma camarilha portugueza que não podia deixar de
tentar a pei-petuidade da união ou de sonhar com um
Império duplo. A lijar essa influencia, nociva aos interes
ses brasileiros, era tarefa que exigiría annos e consumi-
ria muitas energias. D. Pedro não podia abalançar-se a
ella, entre outros motivos porque o commercio, em gran
de parte, no Rio de Janeii'o e no resto do paiz, estava
nas mãos dos portuguezes. A lavoura, sim, passava por
uma integração quasi completa, e das provincias affluiam
os grandes movimentos de opinião, que era preciso suf-
focar e esterilisar sem piedade.
Enquanto esses desencontros se succediam na côrte,
uma Constituinte moldada aos figurinos externos exer
cia 0 seu trabalho, distinguindo-se das que vieram de
pois pelo sentimento da responsabilidade. Aquelles ho
mens comprehendiam que a sorte do paiz caminhava por
incertos rumos e a eiles competia descobrir a via transi
tável. E tomavam uma série de medidas tendentes a
dar ao paiz a conformação de nacionalidade viril e au
tônoma. Raramente se assistirá, num agrupamento poli-
tico sentido mais nitido da hora terrível que a patria
124
atravessava. Elles, si a não compi'ehendiam em todos 05
seus detalhes, porque estavam muito perto dos factos, pelo
menos sentiam, ainda que imprecisamente e sem dire.
ctrizes, que era necessário um grande esforço para subsis-
tir, proclamada a independencia, na ruptura dos laços po
líticos. Ella não fizera mais do que consumar a reali
dade, solemnisar e theatralisar uma cousa positiva. Set«
de setembro não marca um movimento culminante: rek-
ga-se á condição de simples data, para os effeitos futuros
das commemorações civicas. Poi’que a independencia
já estava feita.
Nesse scenario tumultuoso e prenhe de ameaças, fe-
bricitante de idealismo e interesses, surgem os jornalis
tas violentos, descomedidos na linguagem e corrosivos
na analyse, e os oradores politicos, sarcastas e ironicos,
levando os debates para 0 teireno da doutiãna e accen-
dendo a chama da invectiva apaixonada e o fulgor pa
triótico. Evaristo da Veiga registra um dos momentos
culminantes do joraalismo brasileiro. Voz serena na ?s-
sembléa e penna incisiva na columna do jomal, elle seria
um dos grandes conduetores da opinião publica, no sen
tido dos supremos interesses do paiz, si bem que sem a
rebeldia e a brutalidade da violência. Na lama da in
juria em que chafurdavam os pequenos jornaes, a pen
na de Evaristo da Veiga distinguia-se pela elevação dos
seus commentarios e a linha recta que se traçara.
Na assembléa, uma figura dominava, physicamente
envelhecida e roida pela enfemoidade, mas espiritualmen
te viva e fulgurante: Bernardo Pereira de Vasconcellos.
Elle se afizera ao sarcasmo, com que iiritava os seus
adversários, um sarcasmo ferino e destruidor, peior do
que a violência. Certamente, a linha dos principios de
Bernardo Vasconcellos não obedeceu a uma recta rigoro
sa e nitida. Vacillou por vezes sob injuneções podero
sas, mas teve o talento da objectividade, tão raro num
paiz de sentimentaes e verbalistas. Ante a invasão da
oratoiia que enche os dois impérios, elle alteava a sua
palavra em discursos curtos e precisos, indo directamente
á fonte dos factos, buscando, sem rodeios, o fio dos acon-
i
125
.tecimentos conduzindo, sem preâmbulos, a argumentação.
Destruía, sem piedade, os valores que assentavam na il-
lusão e na sorte, no duvidoso e no problemático, para ex
por as suas doutrinas de modo px’eciso e limpido nos seus
termos, concludente nos ti’aços essenciaes.
Figura impai-, a sympathia não foi uma das suas
qualidades. Pelo contrario, physicamente fraco, tortu
rado por dores atrozes, vivendo e morrendo solitário, sem
0 carinho de mãos femininas, terrivel na polemica, não
gozou da popularidade facil, nem mesmo do affecto dos
seus companheiros. Mas, como homem das Minas Geraes,
manteve a segurança da medida, a sabia â5renidade dos
que se consei-vam equidistantes dos extremos, que o fa
riam considerado, apezar de tudo, e temido sempre.
Esses dois homens, Evaristo da Veiga e Vasconcellos
caminham juntos, por algum tempo. Elles representaram,
na Índole brasileira, dois casos rarissimos: serenidade no
joi-nalismo; objectividade na política.
1
C APITU LO X III
i
127
tos. A consolidação das conquistas liberaes, feita por Na-
poleão e cimentada numa legislação já codificada e ac-
ceita, não soffreria senão pequenos abalos, que não che
gariam mesmo a trincal-a. As conquista revolucionarias
estavam definitivamente sedimentadas.
Como em todas as épocas de transfonnação social, o
organismo economico da nacionalidade tinha passado por
mutações fundas e bruscas. A s grandes fortunas da mo-
uarchia, fundadas nos direitos derogados, cederam logar
a outras fortunas, feitas, como dissemos, ao calor das re
fregas desencadeadas pelo corso. O fornecimento aos
exercitos, que marchavam para os quati'o pontos cardeaes,
déra impulso á industria dos pannos, e por este e outros
meios, novas grandes fortunas se formaram. Essa trans
formação não podia deixar de affectar o aspecto da socie
dade. Nota-se por toda a parte a infiltração de gente
desconhecida e aventureira a substituir, nos salões da pro-
j)ría Restauração, a velha nobi'eza latifundiaria.
Ora, que melhor época para a agitação romantica as
sombrosa e sobrehumana? Em outros tempos, o advento
do Romantismo seria impossivel. O que agoi-a se assis
tia era uma formidável mutação, donde a extrema rece
ptividade dos novos homens ás novas theorias. O Ro
mantismo surgia numa sociedade de origens pouco pro
fundas: a tradição refugiava-se em poucos nomes antigos,
a maioria era a gente surgida da nova ordem de cousas.
Sociedade que Balzac pintou com tanta realidade, fazen
do entrar no romance, dominando a urdidura dos enredos,
a magestade singular do dinheiro.
O Romantismo nasce dessa ordem de cousas tran
sitória e vertiginosa, mantem a luta constante, a vibra
ção desordenada, a furia iconoclasta. Chega no momento
preciso, quando os tempos lhe propiciam a asoenção.
A subversão de valores economicos implica numa subver
são de valores ethicos e estheticos. A luta romantica
não é mais do que a refrega entre o mundo que surge e o
que quer permanecer pela força da inércia. E ’ um cho
que de mentalidades, a da revolução e a do feudalismo,
que dormitava sob as cinzas do uma monarchia decrepita
128
e sem força, sem nobreza e sem belieza. E ’ o contrâst^
entre a gente tradicional cuja vida exterior se reveste da
solcmnidade do passado, dii’eitos divinos e dominio feu.
dal, e a que surgira da terra, das novas instituições,
do fogo da Convenção, do tumulto dos Estados Geraes,
da noite do Terror, da empolgante poesia da aventui’a «a-
poleonica.
Nesse periodo verdadeiramente interessante, o mais
curioso da historia franceza, trava-se a grande luta ro
mântica. Não é por simples coincidência que o terreno
escolhido para os primeiros choques foi o theatro. O palco
está mais perto da alma popular. E ’ mais accessivel a
todas as bolsas. O livro, nesse tempo quasi aristocráti
co, pouco diffundido, restringiría o choque de escolas a
uma polemica esteril de intellectuaes mais ou menos ini
ciados; 0 theatro é popular, franqueado a todos, trans
ferindo para o povo a assistência e a participação no de
bate. Fazia 0 papel do jornalista moderno.
Assim, a bocca de scena, para platéas eminentemente
populares onde a gamma das opiniões e das posições 'jO-
ciaes era infinita, transfomou-se em barricada, ou numa
especie de Pateo dos Milagres. O Romantismo venceu
após um crepitar de incêndio, após um tumulto desorde
nado: triumphou totalmente porque é filho da revolu
ção, brota das camadas mais deslocadas na escala social.
A exposição dos assumptos tocando os sentimentos, o es
pirito egualitario que envolvia os dramas jogados por um
mundo de personagens, a solcmnidade de certos gestos, a
caricatura do arcabouço inteiro de uma sociedade des-
truida com os seus vãos preconceitos; a arte de ferir a
corda sensivel da alma humana, — tudo isso caracteri-
sava 0 theatro romântico, como vingança da sociedade que
surgia, desforra dos homens novos contra os séculos de
tyrannia aristocratica. Era o prazer intenso de espesl-
nhar a mentalidade dos que sonhavam com uma possivel
volta ao passado.
Nesse ambiente hostil, por vezes extremamente con
fuso e deshumano nos julgamentos, o Romantismo surge
com o seu gosto facil de agradar ao commum dos homens,
129
a sua maneira de explorar o que impressiona o coração do
povo, 0 sentido peculiar de expor os acontecimentos, enre
dando-os numa teia complexa, mas da qual surge trium-
phante a virtude popular, o sentimento calcado pelo pre
conceito, o amor desigual, coroação de tudo aquiilo por que
se haviam batido os homens na sua investida furiosa con
tra as velhas instituições.
Oi’a, podia desagradar á burguesia enriquecida subi
tamente, e agora dominadora da nova sociedade, aquella
consagração publica dos direitos recentes? Descontenta
ria 0 gosto popular aquella exposição de episodios em que
qualquer um se illumina dos esplendores do heroismo,
si tudo isso representava a queda das antigas barreiras,
0 triumpho da egualdade? Dahi a luta ter sido aspera,
mas rapida e fulgurante, e a fama ter favorecido os ba-
talhadores do theatro romântico, os mestres do drama
sentimental. Surgem, então, como iniciadores, os gran
des nomes do Romantismo.
Também no Brasil o Romantismo representa a eman
cipação. A nacionalidade iniciava a sua vida autonoma
quando as na.ções, sabidas da noite medieval, tendo pas
sado pela prova durissima da Revolução, davam novos
moldes ás suas instituições. Ao absolutismo succedia
0 constitucionalismo. Ao poder dos i'eis succedia a ti‘a-
dição das cartas politicas. Mudava a physicnomia das
sociedades. O nosso paiz recebe o éco dessas transfor
mações, convulsas ainda em vários paizes pelas peculia
ridades econômicas de cada um, mas fundamentadas e
fixas na maioria delles.
Si a separação fôra um golpe politico a sanccionar, ■'
um hiato economico que se prolongava, o Romantismo nos
trouxe 0 instrumento, o meio de expressão para a autono-
.Tiia mental. Já não preponderam os velhos mestres por
tugueses. O arcadismo ficará como uma lembrança.
Novos moldes vão servir á nossa literatura. Ella surge,
por coincidência nitida e interessante, com a indepen
dência. E por que? Porque até ahi nos fôra vedada a
imprensa, prohibida a typographia, escondido o livro. A
nossa evolução literaria, ao tempo da colonia, é lenta e
130
demorada. Havia um mundo de barreiras a romper. Coni
a autonomia, diga-se economica, desde que a politica foi
um acontecimento de superficie, iamos ter os meios de
expansão do pensamento, importar mais depressa as idéias,
que não seriam filtradas e censuradas pela metropole. A
acceleração do desenvolvimento literaido do Brasil cresce
prodigiosamente. Vamos evoluir, em poucos annos, mui
tíssimo mais do que o fizêramos na noite dos trez séculos
coloniaes.
O nosso primeiro escriptor nitidamente romântico,
que apparece já liberto dos processos dos arcades, escre
vendo uma lingua mais livre e mais fluente, é Domingos
José Gonçalves de Magalhães, Visconde de Araguaya. 0
autor dos Suspiros Poéticos segue mais cêdo do que seria
de esperar a nova coiTente, porque soffre a influencia ro
mântica no proprio theatro dos acontecimentos, na Fran
ça já dominada pelo.s cânones novos. Está, pois, em con
dições de nos enviar de lá as suas producções inspiradaj
pelos modelos românticos.
Verdade é que tivêramos, antes dos Suspiros Poéti
cos, algumas poesias já em accentuada divergência com
a feitura dos arcades: Maciel Monteiro, autor de alguns
sonetos de inspiração feliz; Odorico Mendes, traductor de
Homero e Virgílio; Salomé Queiroga, poeta bucolico.
Mas as producções desses versejadores não se filiam bem
á nova escola, e Magalhães não perde, por isso, o titulo
de iniciador do movimento romântico no Brasil. Ao tem-
no de Magalhães, já Vigny publicara os seus Poémes e
Lamartine as suas Méditations. O manifesto do Crom-
well passara aos domínios da historia. O romantismo
estava consolidado. Produzira Manzoni, na Itália. E co
meçava a repontar, em diversos paizes, com obras aJ
mais variadas.
A primeira producção de Magalhães são as Poesias,
publicadas em 1832. O seu estro, no livro iniciador, é ain
da fraco. Começa a ser um poeta apreciável nos Suspi'
ros Pocticos, de 1836, que nos manda de Paris. Salles Tor
res Homem saudou o apparecimento do livro do scii ami-
J
r
131
go com elogios descomedidos. A obra, pelo sabor de no
vidade, devia impressionar o tempo. E, depois, Maga
lhães, na sua poesia, era o brasileiro que se emancipa
va. Era um homem de letras da hora da autonomia.
Devia animar immensamente os nossos patriotas o ap-
parecimento de um poeta nosso que fizesse successo, aca
riciando a vaidade nacional tão sensivel naquelle momen
to. Por isso, a insipiente critica indigena não lhe faltou
com os louvores mais fortes. Na verdade, o que elle foi
está longe de ajustar-se á idéa que delle fizei’am os bra
sileiros do tempo. Magalhães tinha ainda uma inércia
pronunciada. Havia ainda, na sua poesia, muita cousa
que o prendia ao passado. Mas, sem ser um emancipado
completo, marcAva, entretanto, um ponto de referencia,
iniciando a nova phase da literatura brasileira. Carre
ava pai’a aqui a nova escola. Fazia-se o pi-ecursor e,
embora sem lai’gos vôos, só por esse titulo merece refe
rencia toda especial. O principal em Magalhães é que,
da Europa, cantava a terra natal, pintava-a com as <‘ores
vivas do sentimento, falava delia com o calor do exilado,
não se afastando, tão pouco, dos motivos principaes que
haviam dado os traços mai'cantes da nacionalidade, a
religião e a natureza prodigiosa. Nada mais era preciso
para cahir no agrado da nossa gente e fixar um momen
to feliz em nossas letras. Sob a influencia dos europeus,
e ao contacto das terras extranhas, teria motivos outros,
que não os nacionaes, para compor os seus versos: o éco
das conquistas napoleonicas ainda não morrera:
L
1
132
Sua obra philosophica, pois occupou-se da philoso.
phia com conhecimento, não fica na mesma plana da sua
poesia. A tragédia Antonio José representa um resto
de cultura classica. Nos Factos do Espirito Humano
frequentemente o verbalismo disfarça as passagens Jiiais
difficeis. Magalhães não estava em condições de appre-
hender o movimento philosophico do tempo, embora do
tado de espirito esi^eculativo. Dominava-o ainda a febre
da eloquência própria do nosso temperamento afeito ás
generalisações fáceis, pouco adaptavel á synthese.
ti
I
C APITU LO X IV
<<
136
Na pi-osa, o i-omantismo começou com algum atra2o^
E ’ pela poesia que o temperamento da nossa gente sofftg
o primeiro influxo das novas correntes. Pela poesia sç
iniciou o romantismo; pela poesia appareceu o chamado
modernismo. A iniciação dos nossos escriptores antigos
quasi sempre se fazia pelo indefectível volume de versos.
I Poetas quasi por destino, os nossos homens de letras aos
I' primeiros impulsos nos passos iniciaes da caneira, ver-
;lisejavam. Só depois se atiram á prosa, foim a superior,
;i dir-se-ia, para cuja execução se exige o treinamento im-
■';prescindivel na arte da rima e da m étrica...
Os primeiros prosadores da phase romantica não são
ainda nitidamente românticos. Recebem com certa relu
tância a influencia nova. E’ um Teixeira e Souza, escri-
ptor por Índole, abordando todos os generos numa grande
ansia de evasão, jornalista, novellista, poeta, com exhu-
berancia e falhas que se justificam na sua incultura de ho
mem modesto, aprendendo, ao passo que compunha. Cono
poeta, Teixeira e Souza foi falho e vulgar; o seu estro
não se elevou a grandes alturas. Permaneceu commum e
desinteressante. Como prosador, entretanto, deixou al
gumas obras de mérito. Escrevia para o povo, em es-
tylo folhetinesco e .simples no que narrava, mas accessivel
sempre na sua prosa despretenciosa. Abordou os themas
históricos, talvez por falta de arrojo imaginativo, pois
que a Historia foraece a trama e poupa ao autor o esfor
ço da fabulação. Deixou os romances O Filho do Pesca
dor, Tardes de um pintor, a Conspiração de Tiradentes c
varias composições de outros generos, inclusive a contiã-
buição jornalística.
Já se não póde dizer o mesmo de Joaquim Norberto
de Souza e Silva, trabalhador infatigável e narrador ex
plicito das nossas cousas históricas. Joaquim Noberto
cultivou, com Teixeira e Souza, quasi todos os generos li
terários. Abordou os assumptos mais diversos. A sua
obra poética, como a sua obra de ficção em geral, não
conseguiu atravessar o tempo, ao passo que a obra histó
rica é valiosa, e Sylvio Romero a estimou como indispen
sável para a pesquiza e o estudo dos acontecimentos de
137
que se occupa. Membro do Instituto Ilistorico. Joa-
Norbeito tratou com esmei’o a Inconfidência Mineira, de
que a sua monographia é uma das fontes mais autorisadas.
A sua bagagem pode ser assim inventariada: Romances ’
e novellas. O Martyrio de Tiradentes, Modulações Poéti
cas, O Livro de meus amoies, Cantos épicos, Flores cn-
fre espinhos, Ballatas, Clytemnestra, tragédia em verso, o
drama Amador Bueno, a monographia Historia da Conju
ração Mineira, a Memória histórica e documentada das al
deias dos Índios na província do Rio de Janeiro, as Bi’asi-
ieiras celebres, o Descobrimento do Brasil e diversos tra
balhos como introducção á obra de autores brasileiros.
Collaborou na revista do Instituto Ilistorico e Geographi-
co, cuja presidência occupou e escrevia com extrema fa
cilidade.
Joaquim Norberto surgiu ao tempo em que toma
vulto 0 interesse pelas nossas cousas. Passada a noite
colonial em que a pesquiza era quasi impossível — e a
obra de Frei Vicente disto se resente — ; findo o tumul
to dos dias que succederam á Independencia, começou a
apontar no paiz um grupo de homens curiosos do nosso
passado, ávidos de conhecer as nossas instituições, pes-
quizar os motivos da nossa formação. Procedem a busca
infatigável nos archivos e surgem monographias. Discu-
tem-se pontos controversos. Repontam os historiadores.
Os brasileiros carreavam o material pai’a a nossa ver
dadeira historia.
João Francisco Lisbôa, maranhense que viveu entre
1812 e 1863, foi uma das personalidades mais interessan
tes desse grupo de commientadores dos acontecimentos
brasileiros. A sua prosa fluente e correcta accumula no
Jornal de Timon uma das mais valiosas contribuições para
0 conhecimento da vida nacional. Lisbôa era um erudito
e um estudioso. Escrevia bem e sabia fixar os factos no
táveis da época. As suas paginas sobre os hábitos da
nossa gente, os acertos ou desacertos da politica que nos
dominava, são finas e profundas. Commentava sem acri-
monia os episodios mais chocantes. Foi um dos primei
ros escriptores nacionaes a abordar os problemas que de-
138
rivam da política e da administração. Não se circumscre-
veu a um genero. Muito ao contrario, abordou os assuni-
ptos mais diverso.s, com conhecimento de cau.sa, graças
a uma cultura séria adquirida no manuseio dos melhores
ohronistas e narradores do tempo. A s paginas que nos
deixou sobre a evolução duma parte do nosso povo, não
se limitavam á narração pura e simples, não eram apenas
expositivas. Lisboa busca inteipretar e comprehender as
directrizes políticas da sua época e do passado, e não eram
as intrigas cortesãs ou o jogo das influencias pessoaes >
que mais o seduziam. De par com a discriminação dos
factos, explica os accidentes economicos e administrati
vos. E ’ um realista. Também a malícia não lhe foi ex-
tranha, malicia de homem culto, experimentado, e não a
cólera destruidora e dispersiva. O organismo social da
nacionalidade mereceu-lhe mais de uma annotação objecti-
va. ■Lisboa foi um fino jornalista e a sua obra, V ila do
' Padre Antonio Vieira, está cheia de commentarios segu
ros sobre o meio em que o jesuita exerceu a sua acth idade
quer no Brasil, quer em Portugal.
Como repi-esentante do ambiente político em que a na
ção buscava encontrar os lineamentos institucionaes, po
demos apontar Francisco de Salles Torres Homem, viajado
e culto, tendo estudado em Paiis e exercido no Brasil car
gos de importância, que illustrou. Inhomirim se especia-
lisa em finanças; foi director geral das rendas, presiden
te do Banco do Brasil e Ministro da Fazenda por duas
vezes. N a política, chegou a deputado e senador. Era-
lhe egual a tribuna ou a imprensa. Manejava com a
mesma segurança a palavra escripta ou falada. Violento
quando adversário, Salles Homem temperava a mordacida-
de com a elegancia natural da phrase e a solida eloquên
cia do conhecimento. Como financista deixou vários tra
balhos de valor. Como orador parlamentar os annaes das
duas casas estão cheios de peças suas, em que ha vibra
ção e colorido de imagens. Como prosador, publicou o
Libello de Timandro, onde perfilha inclinações anti-dynas-
ticas que o imperador soube torcer aproveitando o seu
talento para os misteres administrativos. Inhomirim foi
i
139
adversado da escravidão e comprehendeu, melhor do que
qualquer outro político bi’asileiro da sua phase, as con
sequências da continuação do trabalho sei-vil. Com a sua
objectividade e cultura universal, podia sentir, melhor do
que os seus companheiros, os desacertos administrati
vos e os erros políticos que se prolongavam.
João Manoel Pereira da Silva, fluminense de Iguassú,
nascido em 1818, é um infatigável trabalhador dos nossos
assumptos históricos. A s suas contribuições podem ter
perdido muito da opportunidade, modificadas por pesqui
sas posteriores, mas isso não lhe tira o mérito do esforço,
si ajuizarmos que escreveu e estudou numa época em que
a pesquiza histórica, no nosso paiz, estava ainda na in
fância.
Também Pereira da Silva escreveu sempre sobre fa
ctos de que estava muito proximo e soffreu a deforma
ção de quem assiste o desenrolar dos acontecimentos. A
sua obra apanha os factos que vão de 1808, com o adven
to da corte portugueza ao Brasil, a 1840, com a maiori
dade do segundo imperador. Cita-se, delle, a Historia da
Fundação do Império Brasileiro, o Segundo Periodo do
Reinado de D. Pedro I e a Historia do Brasil durante a
nienoridade de D. Pedro II. Ora, elle escolhera justamen
te os períodos mais agitados e confusos da nossa forma
ção para, ao redor delles, bordar a sua analyse históri
ca; por estarem os factos ainda vivos na memória dos
contemporâneos, não os pôde resumir e estudar com isen
ção e imparcial discernimento. A formação do Império é,
por si só, um quadro de vastas proporções, a exigir extre
ma clarividência no distinguir-lhe os effeitos e as causas
diversas que tinham actuado sobre os homens e a mar
cha dos acontecimentos, conduzindo á Indenendencia. O
segundo periodo do reinado do primeiro imperador era
outra phase extraordinariamente obscura e complexa, a de
safiar a argúcia e o espirito de synthese do historiador.
Quanto á Regencia, periodo tumultuario em que a sorte
uo paiz esteve numa constante oscilação, não seria facil
dar-lhe os traços principaes. Depois, muitos dos homens
da Regencia viviam ainda, muitos dos effeitos que ella
140
J
141
nosso espirito, ligando o desenvolvimento literário ao j
desenvolvimento historico e politico. Em pontos como
esse, Vanihagen deixava indicações da lucidez do seu es
pirito e clareza do seu raciocinio. Também, na sua ma
neira de escrever está o homem de pesquiza antes do
divagador impreciso. O seu estylo é secco e simples. O
ornato extraordinário que sobrecarregava muitos dos es
crevinhadores da época, não apparece nas suas exposi
ções claras e despidas de lances imaginativos. Elle nar- ,
ra, tão sóment^ e explica. O seu Florilegio da Poesia
Brasileira é uma contribuição apreciável para o estudo
da evolução dos nossos poetas. As suas obras históricas,
a Historia das Luetas contra os Hollandezes, a Historia
da Independencia, — tão diversas, nos seus methodos, da
de Pereira da Silva, — e a Historia Geral do Brasil, são
obras indispensáveis. Embora os methodos de pesquiza i
histórica evoluissem consideravelmente depois de Varnha- '
gen, seria injustiça deixar de apontal-o com.o um dos nos
sos maiores historiadores, mesmo porque a sua obra fica,
como uma das fontes mais consideráveis a quem se aba
lançar a compor, novamente, os lineamentos da nossa ío i-
mação, pelo cabedal que offerece e pela segurança da ana-
!yse dos factos. A sua contribuição, como exeavador e
commentador de obras alheias, revela o interesse mais de
cidido pelas nossas cousas e o apego que lhe mereceram
sempre aquelles que haviam, de alguma fó m a , deixado al
go que se ligasse aos problemas da historia e da gente
brasileira. A sua erudição não se limitava a qualquer de
partamento do saber humano; tudo que diz respeito á
Historia, interessava-lhe com mais vei’acidade, pois aci
ma de todos os titulos, presa o de tornar-se um dos nossos
grandes historiadores.
Sotero dos Reis, como Pereira da Silva numa parte
•ia sua obra, é um dos iniciadores da critica literaria en
tre nós. A sua critica, porem, compendiada na Litera
tura Portugueza e Brasileira, é vaga e imprecisa, cheia
de comparações ao gosto da época, nebulosa e diffusa, or
nada ao extremo. Seriam os piúmeiros passos da critica,
sem objectividade, pois a cada passo transfere para o
142
dominio universal, em parallelos absurdos os nossos es-
crevinhadores. Outro autor de comparações formidá
veis e descabidas é Fernandes Pinheiro.
Francisco Octaviano de Almeida Rosa, jornalista e
politico, é mais importante como politico do que como
homem de letras na collaboração para as folhas do tempo.
Nos dominios da oratoria parlamentar, encontramos
um representante lidimo da eloquência vazia e cheia de
omatos que caracterisou a maior parte dos nossos parla
mentares, José Bonifácio, o Moço. A suas orações são
carregadas de imagens classicas, numa invocação solem-
ne aos defuntos celebres.
Da primeira phase de autonomia literaria. impreci
sa no tempo, como todas as escolas e todos os filões li
terários, poderiamos citar, grupando hetei'ogeneamente os
valores: Frei Sampaio, Azevedo Pizano, Luiz Gorçalves
dos Santos, Balthasar da Silva làsbôa, Cerqueira e Silva,
historiadores estes tres últimos; Azevedo Coutinho e An-
toiiio Carlos, oi-adores e politicos, o chronista Ayres do
Casal e o diccionarista Moraes.
Já quando as letras brasileiras haviam tomado gran
de impulso, após a Independencia, devemos apontar, de
passagem: o Barão de Paranapiacaba, traduetor; Dutra
e Mello, critico; Aureliano Lessa, poeta lyrico; Teixeira e
Mello, Pedro Luiz, que deixou algumas poesias muito po
pulares e diffundidas, precursor do condoreirismo; Tra-
jano Galvão de Carvalho, Francisco Leite Bittencourt Sam
paio, Gentil Homem de Almeida Braga, Victoriano Fa
lhares e Mello Moraes Filho, poetas, Moniz Barreto, Luiz
Gama, Bi-uno Seabra e Joaquim SeiTa.
J
CAPITU LO XV
i
146
lingua falada em Poi'tugal era a que se escrevia no Bra.'',
sil, numa disparidade chocante que vem até os nossos dias.
Naturalmente, “ escrever 6 disciplinar e construir” , ma.s
nessa disciplina não deve nem póde entrar o cabedal for-
malistico das regras mortas nem o peso duma tradição
velha e gasta. Alencar escreve differente e é, por isso,
criticado na metropole. Os literatos ultramarinos não po
diam deixar de sentir o divorcio que se accentuava, mas
queriam, como muitos querem, nos dias claríssimos que
vamos vivendo, que o idioma seja etemo e indeformavel,
organismo perfeito e acabado, insensivel ás influencias
poderosas do meio, das gentes e do tempo.
Alencar é um dos maiores talentos dcscriptivos que o
Brasil já produziu. Os seus painéis têm realidade, por
que não lhe faltam côr, movimento, luz, relevo. Tam
bém não abusa, no enredo dos seus romances, das com
plicações da novella vulgai’. Sabe consei’var o cquilibrio
que 0 destingue do commum e do secundário. A trama dos
seus livros consei-va um interesse que elle não subordina
ao gosto commum, antes mantem com energia c sentido
que quer imprimir e culmina na glorificação do que é nosso,
do que existe e vive na maravilhosa terra brasileira. 0
Guai‘any é uma empolgante exposição de motivos brasi
leiros. Haverá em Perj', talvez, o culto de qualidades só
possiveis entre os homens civilisados: mas os seus
Ímpetos barbaros, a sua paixão desordenada, a sua
communhão com a natureza não perde, na eloquência pom
posa da descripção, não descae e não se desequilibra. 0
contacto do portuguez senhorial com os aventureiros que
cercam os conglomerados humanos da colonia, e a inter
venção do indio na luta, e o quadro da natui’eza, têm al
guma cousa de fascinante, de profundamente brasileiro,
que nos faz sentir aquella naiTação.
O Guarany é a obra typica de Alencar, aquella em
que estão os seus traços principaes de escríptor, de ani
mador de scenas gi’andiosas. Ha no romance, talvez não
intencionada, a magnitude do panorama, do contacto bru
to do homem com a terra e a communhão do indio coni
a gleba fecunda. As Minas de Prata fôi’am um recheio
147
de complicada trama aventureira e algumas notáveis pin
turas da natureza. Iracema è um poema nativo onde ap-
parecem as primeiras paginas brasileiras da literatura
brasileira. Ubirajara é o seu par. O Gaúcho contem al
gumas descripções notáveis do pampa. O Tronco de Ipê
pinta a vida rural da região fluminense, ao fim do segun
do Império, lí os perfis de mulher, Senhora, Diva, Lu-
ciola, representam contribuições api’eciaveis para o ro
mance da cidade. Til, Encarnação, A Pata da Gazella,
são ficções mundanas em que o autor quiz, com certeza,
demonstrar que podia ser também um narrador da vida
frivola.
E ’ do tempo de Alencar, embora já tenha sido si
tuado en-adamente muito antes, um escriptor dos mais
interessantes que possuimos, um genuino pintor de cos
tumes, escapando, subtilmente, á influencia romantica para
nos offerecer algumas paginas cheias de equilibrio e so
briedade, tratando as situações do seu livro dum ponto
de vista inteiramente novo no paiz. Trata-se de Manoel
Antonio de A l^ id a . Só mais recentemente os pesqüi-
zadorés'"dã‘ hóssa historia literaria têm dado a importân
cia merecida a esse escriptor, dos maiores que temos tido.
Manoel Antonio escreveu pouco e viveu pouco. Mas pen
sava como um velho e observava com aquella argúcia que
só os annos trazem. Elle não fixou os costumes de 18.50
e 1860, como se affirmou, pois o desenrolar do seu romance
se passa, confonne elle diz, em tempos mais afastados:
“Era no tempo do rei” . . .
Curioso 0 a))parecimento desse itracejador de figuras
communs e medianas num tempo em que imperavam os
romances de Alencar, quer no indianismo, quer nas pa
ginas de mundanidade e perfis de mulher, e Macedo en
chia os lazeres com a feitura das suas novellas i’oman-
ticas e iguaes. Seria de e.sperar que Manoel Antonio,
com mais vivacidade e maior razão, se inclinasse para
aquillo que imperava e fazia a moda. Elle apresenta,
entretanto, alguma cousa de muito diverso, ou verdadei
ramente unico no tempo. As Memórias dum sargento
de milicias são um livro excepcional e desconcertante na
148
corrente que vinha dominando o pensamento dos cscripto-
res brasileiros e marcando o compasso da evolução das
nossas letras. A sua observação, em se tratando de cou.
sas passadas ha já quasi meio século, era tão fiel e pre
cisa que dava a idéa, confonne frisou bem um dos com-
mentadores da sua obra, de que elle assistira á vida da
Capital, embryonaria, cheia de provincianismo e bisonhice.
A s suas personagens, o Leonardo Pataca, a Maria Rega
lada, o Vidigal, este tirado á realidade, vivem nas paginas
do seu livro, movem-se, agitam-se, mostrando-se á luz com
duas ou tres pinceladas e meia. duzia de observações.
Eram typos reaes, tirados ao meio estreito da capital no
tempo que D. João VI, com a sua côrte, vinha dar um
impulso aos hábitos modestos do Rio de Janeiro. Ma
noel Antonio de Almeida narrou com tanta fidelidade os
costumes da capital do reino, que alguns criticos chega
ram a situal-o na época da naiTativa, deslocando-o paia
um periodo anterior ao em que realmente viveu, e isto
revela a sobriedade e a clareza da sua narração, a appro-
ximação entre o que contou e a realidade. Relegado, as
sim, aos annos do advento da côrte ultramarina, Manoel
Antonio estaiúa em condições de, conforme escreveu o sr.
Xavier Marques, por oceasião do seu centenário, “ ser ne
cessariamente um dos últimos arcades, amigos do jovem
Monte Alveme, de Souza Caldas e frei Francisco de São
Carlos; collaborador, não do “ Correio Mercantil” , mas
da “ Gazeta do Rio” ; administrador da Imprensa Régia,
antes de o ser da Typographia Nacional; medico, mas
diplomado ainda pela Escola Medico-Cirurgica installa-
da na rua do Ouvidor, habitação de familias, em um so
brado com gelosias e engradammto extemo de madei
ra” .
' Já José Veinssimo quer illudir a realidade com um
subterfúgio interessante.; Elle attribue a essa clareza
dc annlyse, a esse traço fino c incisivo, a essa naturali
dade de pintura, o facto dos usos e costumes da canital
terem tido uma evolução muito lenta, terem soffrido
pouca modificação, apresentarem quasi que os mesmos
aspectos. Ora, o ciitico não póde ter razão neste ixmto.
J
149
Muito pelo contrario, a phase de El-Rei foi typica e úni
ca na vida da cidadesinha. Dahi por deante é que o
burgo á beira da bahia iminensa começaria a desenvol
ver-se, matto a dentro, morro acima, numa expansão v i
gorosa. Ha uma distincção perfeita entre o Rio de Ma
noel Antonio, ou melhor, o Rio das Memórias de um
sargento de milicias, e a metropole que lhe succedeu.
Não que houvesse um progi'esso vertiginoso, marcado
com uma acceleração desconhecida para época. Isso se
ria forçar o argumento e obscurecer a analyse, mentir
á realidade. Não foi precisamente isso que aconteceu: a
mutação nos costumes é bem accentuada, e vejamos porque.
Quando D. João V I vem para o Brasil e se installa
‘ na capital, traz, no bojo das náos que deixaram o Tejo,
uma população inteira, uma sociedade organisada na sua
escala, uma administração já montada, toda uma hie-
rarchia de validos. Traz creados e escudeiros, damas
e cavalheii’os , nobres e commerciantes, um mundo, mistu
ra inextrincavel de gente de toda especie que, no alvoro
ço da fuga, quasi de trouxa ás costas, carreara apenas
algumas alfaias que foi possivel transportar. Traz, alem
dessa gente, tropas e officiaes. Elle se desloca, por as
sim dizer, com o presepe de Portugal.
E ’ esse presepe que se vem installar no Rio de Ja
neiro, é esse quadro completo e acabado de sociedade que
se fixa numa cidade que sahia das brumas coloniaes e
vivia debruçada nas aguas da Guanabara, sem aventu
rar-se pelo interior, expandir-se pela mattaria que a cer
cava. Ora, era preciso alojar essa gente, accomodar
essa turba confusa. O Rio soffreu a commoção da che
gada duma côrte inteira; e, com o passar dos mêses, foi
tratando, insensivelmente, de se amoldar á nova situa
ção. A cidade tomou-se de uma ansia brusca de mo
vimento, séges a correr pelas ruas mal calçadas, a ati
rar com os transentes para as paredes, a bater com as
portas que abriam para fóra.
Entretanto, esse tumulto e essa furia de gente no
va, passaria. O rei regressa a Portugal e leva grande
pai'te da gente que com elle viera, embora aqui se esta-
150
r beleça definitivamente a parte mais desfavorecida da côr-
' te ambulante. Aquillo que tinha sido impeto de desen
volvimento, apressado por uma situação premente, ia des-
cahir na monotonia e na calma. A capital, como o paiz
todo, ia soffrer dessa evasão bruca e solerte que raspa o
thesouro publico e deixa um terrível collapso financeiro.
Houve uma parada súbita, um momento de estupor, com
a consequente mudança 1'apida de modo de viver. Os cos
tumes, que haviam soffrido a influencia do advento des
sa multidão, iam padecer, agora, com a sua sahida. Os
tempos correram. Veio a Independencia. Veio o Impé
rio. Surge, então, o Rio de Janeiro do homem que ia
escrever sobre o passado recente.
Dahi a illusâo de que elle, pela justeza dos seus com-
mentarios, pudesse ter vivido na época anterior: "Era no
tempo do rei” . . .
Só podia causar espantosa maneira como o autor apre
sentava 0 seu romance. Na época do romantismo infrene,
om que o amor era motivo singular, amor pintado a ca
pricho, com as côi-es sombrias que irradiavam um clarão
de felicidade nas paginas finaes, mas em que havia, tam
bém por vezes, o desfecho trágico, a “ nuance” dolorosa
— esse narrador de caracteres apresentaria risonhamente
os seus typos, sem exeggeros sentimentaes, sem o carre
gado das tintas, sem a violência das situações. Tudo com-
mum, tudo possível, tudo realizável. Isto desconcertaria
ainda mais a critica. A sua heroina nada tinha de lyrica
nem de tuberculosa. Era forte e gozava saúde. Vivia
simplesmente, sem lances espectaculosos. Chegava aos
braços do marido sem que elle tivesse um só traco do
cavalheiro impávido, dono de excelsas virtudes, mas reves
tindo outras qualidades muito humanas, muito communs.
Outro aspecto diverso da obra de Manoel Antonio:
elle não ia buscar ao sertão, nem á matta, nem ás praias,
conforme obsei^vou ainda o sr. Xavier Marques, o scena-
rio para a sua narrativa. Tinha-o junto a si. Seria a
cidadesinha semi-provinciana, a capital brasileira. E ’ ver
dade que Alencar fixa na mesma cidade algumas das sua.s
151
historias. E Macedo fazia a chronica ligeira dos seus cos
tumes, na suavidade dos seus enredos.
Mas só Manoel Antonio foi um escriptor rigorosamen
te citadino. Só elle soube fixar os traços naturaes da vi
da vulgar e con-entia do Rio de Janeiro. Para isso, era
mister, mais da que a arte descriptiva, onde a côr predo
mina, a segurança na narração, a sobriedade na pintura.
Essas as suas qualidades mestras.
.<
'i í
:!ii
'•ii
CAPITU LO X V I ‘1
i
r
157
tuação do scientista resalta o ponto de vista dum homem
que encara a organisação familiar dum augulo inteira-
mente diverso, em contraste com o nosso meio sertanejo.
Innocencia ficou, na nossa literatura, como uma obra
relevantissima. Poucas se lhe comparam. Ao lado das
Memórias de um saigento de milícias e do Atheneu, per
manece como dos grandes livx'os que possuimos, pelo qua
dro da nossa vida simples e unção de poesia que a trans
figura e pela exactidão na pintura da natureza e dos cos
tumes.
As outras obras de Taunay são narrativas singelas
do nosso interior e de acontecimentos importantes da vi
da do paiz, mas não chegam a se collocar em nivel egual
ao dos dois livros citados.
Ia surgir no Brasil um grupo de poetas, quasi todos
muito jovens, enfermos de romantismo, infelizes, victi-
mas de mal incurável, lyricos e sensíveis, poetas que so
popularisaram logo porque os seus versos attendiam ao
gosto do tempo, tocavam os motivos mais api'eciados pela
gente brasileira de então, a magua, a infelicidade, a de-
sillusão, o opio dissociador de inexplicáveis amarguras.
Elles viviam de olhos postos na Europa. Em plena sel
va brasileira imitavam aquelles que versejavam em pla
gas distantes. 0 chamado “mal do século” os havia con
taminado até o mais profundo do ser. Quando Musset
declamava uma das suas poesias em França, ou Byron
compunha uon dos seus poemas, mal podiam saber a re
percussão no Brasil, onde uma febre nova dominava os
nossos homens de letras. Essa inclinação imitativa não
exclue a possibilidade delles terem tido talento. Tiveram-
mo, e o malbarataram allucinadamente. Quizeram até
copiar 0 modo de viver dos seus admiráveis modelos, ten
tando fazer do achamboado e prosaico ambiente paulis
ta e carioca a scinfillante atmosphera em que os mestres
de alem-már cantavam e soffriam. Viverani na America
um instante europeu.
Entre os mais notáveis e os mais typicos dessa ge
ração, destaca-se Manoel Antonio Alvares de Azevedo,
nascido em S. Paulo, em 1831. Estudou as primeiras le-
158
tras no Rio de Janeiro e fez o curso superior na Faculda
de de Direito da capital paulista. Alvares de Azevedo,
que mon-eu no anno da sua formatura, não foi um mau
estudante, como a sua vida extravagante pode fazer crêr.
Frequentou com assiduidade o Direito Romano e pesqui-
zou 0 Codigo do Commercio, confrontando-o com os ex-
trangeiros. Cursando ainda o primeiro anno da Facul
dade, imitou o 5.° acto do Othello de Shakspeai’e e tra
duziu a Parisina de Byron. Elle poderia versejar, mais
adeante:
Junto do leito meus poetas dormem
— O Dante, a Biblia, Shakspeare, Byron,
Na mesa confundidos...
Esse moço esgotou a mocidade trabalhando como
poucos. Parece que tinha o presentimento do fim pro-
ximo e desejava encher os poucos annos que lhe resta
vam. Encheu-os, effectivamente, e dispersou-os, tam
bém, numa vida desordenada. A melancolia domina a
sua existência. Mesclou-a com a mórbida tristeza dos
românticos. Aprofundou os seus males physicos com a
angustia dos que não esperam senão amargores, e soube
ser um dos maiores poetas que possuimos. A fascina
ção de Byron enche os seus annos de creador de imagens,
cuja obra é fragmentaria. Alvams de Azevedo, no tu
multo da creação e na vibratilidade do seu genio, produ
ziu muito e abordou generos os mais diversos. Poeta,
contista e dramaturgo, o que nos deixou, entretanto, de
peixJuravel, foram as suas poesias lyricas, onde ha ver
dadeira emoção lyrica. ao contrario dos que se limita
ram a decalcar desbragadamente os euippeus e não sou
beram infundir alguma cousa de pessoalmente sentido
naquillo que produzii-am. A idéa da morte prematura
pesava sobre os seus dias:
Minha mãe de saudades morreria,
Se eu morresse amanhã. . .
Ou, então, conformando-se com o destino que o es-
perava:
r Eu deixo a vida como deixa o tedio
159
r
185
não foi um desses pensadores cyclicos que abrem trilhas :
longas e exactas; apontou rumos novos, mas não focali-
sou precisamente e definitivamente os grandes problemas.
A sua cultura era fragmentaria e não podia deixar de ser
assim. Assimilava prodigiosamente, com uma facilida
de de aprehensão que foi a maior das suas qualidades, não
sabia disciplinar o pensamento e construir, com a ma
téria estudada, convicções próprias. As indecisões são
frenquentes na sua obra onde ha hiatos profundos, des-
continuidades desconcei-tantes. E ’ natural que uma cul
tura assim apressada e sôfrega, bebida nas fontes ori
ginarias, embora, mas destituída da analyse que apura
e escolhe, que dirime duvidas e esclarece directrizes, ti
vesse produzido, na crepitação dos seus clarões inteimit-
tentes, uma serie de contradicções que não são apenas ap-
parentes, mas claríssimas, offerecendo os flancos á cri
tica demolidora dos adversários.
Como quer que seja, o seu papel ficou mai'cado na
evolução das nossas letras. Não é por mera coincidência
que 0 anno do concurso de Tobias é também o do appareci-
,mento do primeiro livro natui’alista de Aluizio Azevedo. O
Mulato é de 1882 e foi assignalado logo pelo pensador de
Recife como a revolução que apontava nos dominios literá
rios. Aluizio sentira a necessidade duma refóim a nos mol
des da expressão, após a phase romântica, que a teve tam
bém. As intelligencias brasileiras tendiam para a subver
são e 0 abandono das velhas formas.
Ia surgir o naturalismo.
CAPITULO X IX
1
C APITU LO XX
J
193
0 longo reinado do segundo imperador encontraria
um homem que, pela combatividade e equilibrio de espi
rito, tenacidade e bom senso de que era dotado, consegui
ría supprimir os surtos de revolta que repontariam nas
províncias e daria ao Império uma continuidade de acção
capaz de traçar as linhas mestras da nossa unidade pro
digiosa. Esse homem foi o marquez de Caxias. Não se
conhece, de Caxias, um só lampejo de genio; tinha, porem,
a supprir essa lacuna, um conhecimento profundo dos ho
mens e um tacto maravilhoso para resolver as pendên
cias políticas e revolucionarias. No decorrer do reinado
de Pedro II, onde houve um movimento de rebeldia, ahi
esteve a espada de Caxias pai’a dominal-o, e a sua in-
telligencia para resolvel-o. Esses movimentos ei’am nada
mais nada menos que os impulsos do provincialismo.
A centralisação mata o Império. Estiola o desen
volvimento provincial; compi’omettia as instituições no
interior e só argamassava prestígios que vivessem ao ca
lor do throno. Toda a hierarchia burocrática emana do
centi-o. Todo o complexo organismo administrativo tinha
a sua séde e o fóco das suas actividades na côrte. O pen
samento político e social encontra no Rio de Janeiro o
unico logar onde pode viver, porque, no resto do paiz, é
uma ficção, uma risivel falsidade.
O desenvolvimento do nosso ruralismo, que chega ao
auge justamente no Segundo Império, não pode supportar
essa centralisação. Ao redor dos núcleos agrícolas, nas
províncias, iam-se formando as olygarchias, dominando as
fazendas de gado e café. Essa gente tinha necessidade
do governar a sua província, fazer as suas leis, attender
aos proprios interesses economicos que urna côrte longin-
qua não podia comprehender nem acceitar. Nada mais
humano, mais logico, mais consentaneo com o desenvol
vimento economico. A relativa autonomia estadoal con
solidaria o Império. Tal não podia acceitar’, entretan
to, a côi-te, no primarismo da sua visão e no temor de que
sempre se sentiu possuída, desde o inicio do primeiro Im
pério, de dar largas a essa expansão provincial, porque
jamais deixou de ligardhe a idéa de fragmentação.
194
0 systema fiscal, pela sua absorpção foimidavel, cox’-
respondia a uma ventosa insaciável applicada sobre o
organismo economico pi’ovincial. O fisco não tinha a hie-
rarchia que a Republica lhe deu, — e está exagei‘ando e
levando a limites extremos — pennittindo um desenvol
vimento parallelo e synchronico das tres partes, o Muni
cípio, 0 Estado e a Federação, quando equilibrado e con-
fonne com o poder acquisitivo das populações. A centra-
lisação economica, consequência da centx'alisação política
extorsiva e dissociadora, levava a esses lances convulsi
vos em que o Impei-io .ti'ansido via o genne terrível da
desagregação da teri’a immensa. Nem podia, com a falta de
communicações e transmissão de idéas que cai'acterisava
0 Brasil do século XIX, haver possibilidade dessa centra-
lisação insólita, que já ao tempo do fisco colonial, quando
da espansão do gado pelas “caatingas” e pelo valle dos rios,
produzia um desequilibido enomoe.
A s questões de política positiva não seidam, entre
tanto, no nosso parlamentarismo de encommenda, tidas
como tangíveis e naturaes.
Era 0 tempo em que as nossas camaras viviam de
olhos postos no paidamentarismo inglez. Inglezes eram
os nossos hábitos paidamentares. Inglezes os nossos usos
policos. Inglezes até os pseudonymos usados pelos com-
xnentadores jornalísticos das nossas cousas. . Esse parla
mentarismo apreciava as questões vitaes da nacionalida
de ati*avez das suas manifestações superficiass. O mal
estar provincial denunciava-se oi'a pelos surtos de rebel
dia, oi’a por exigências em matéria eleitoral, abolicionis
ta ou puramente política. Mas não se enxergava cousa
algumas nesse nevoeii'o político. Não se via que, atraz
delle, estava a ansia de autonomia provincial que pennit-
tixda a essas partes ten-itoriaes conduzix'em os seus inte
resses, na paixella de poder que lhes fosse confexddo. O
jogo político entre dois partidos, o Liberal e o Conser
vador', cuja identidade e igualdade de princípios era tal
que fazia com que, em bôa parte da nossa mi'acha polí
tica, conservadores executassem, no podei’, medidas que
os liberaes haviam proposto na opposição. Contraba
195
lançando essas alternativas onde havia successão de ho
mens públicos mas não de programmas definidos, estava
0 poder moderador, que se cingiu, em toda a sua longa
existência, a uma escolha de homens politicos para terem
assento no Senado, tirados da lista triplice, ou para che
fiarem o gabinete, tirados a uma maioria occasional.
A ordem de argumentos em que nos vamos esten
dendo tende a explicar como a Republica, quando deu o
seu golpe, nada encontrou a derrubar. O Império esta
va fallido. Faltava o impulso derradeiro que, exilando
0 chefe, tirasse ao systema a sua pouquíssima força,
aquillo que lhe restava depois de quarenta annos de cen-
tralisação, depois de leis sobre os circulos eleitoraes, de
pois da luta sobre o elemento servil. Esta, despresando
0 unico alicerce que ainda possuia o Império, a lavoura
do centro do paiz, tirava-lhe, pela abolição, esse esteio e
deixava-o como casa abandonada e semi-ruida, á espera
do vento mais forte que a derrubasse.
A Federação, entretanto, mais antiga do que a Re
publica nas cogitações dos nossos homens públicos de
clarividência, torna-se um programma de luta e uma ban
deira desfraldada por um dos homens mais lúcidos do tem
po do Imperuo, cuja intelligencia não se alça a cumes ge-
niaes, mas saber-ia orientar as suas campanhas pela ele
vação do debate, elegância da palavra, nitidez dos con
ceitos. Esse homem é Joaquim Nabuco. Elle represen
tou, no Brasil, uma dessas individualidades felizes a quem
a vida offerece louros sem conta e a morte não faz mais
do que augmentar uma admiração serena pelo seu vulto,
admiração tão semelhante a tudo que elle amava. Por
que, em Nabuco, individualidade marcante em tempos dif-
ficeis, de paixões soltas, o que releva é a calma perenne,
a atmosphera superior que o cercou sempre. Essa ele
vação, de que resulta a eloquência politica mais lógica,
mais serena e brilhante do paiz, revela nelle uma sorte
de aristocracia mental, rara no Brasil.
A vida lhe foi propicia e delia elle obteve tudo que
póde satisfazer um homem. A sua ascenção não soffreu
pausas prolongadas. Elle se elevou tranquillamente.
196
como quem recebe apenas aquillo que lhe é devido. Tra
zia um nome illustre, que não trocou jamais por titulo
algum, um nome que vinha ungido na tradição e que elle
havia de honrar cada vez mais e transmittir maior do
que recebera. Não tendo padecido crises materiaes, in
cólume nas contendas e nas paixões mais fortes, encou-
raçado na superioridade e na placidez do seu tempera
mento, não soffreria lambem profundas crises espiritu-
aes, dessas que caracterisam o crepúsculo duma crença
ou a txdsteza duma apostasia. A sua evolução interior
acompanhou a ascenção política que lhe daria urna pree-
minencia invulgar. Suas paixões, elle as trouxe da ado
lescência, quiçá da meninice. A escravidão, que abomina,
lhe accende o iprimeii’o ideal. Esse ideal, porem, não lhe
surgiu quando acadêmico mas muito mais cêdo, na vi
são da escravaria de Massangana, na sua angustia e na
sua tristeza, visão que elle pintou, mais tarde, com uma
nitidez evocativa modelar. Não seria um revoltado, po
rem. Patrocínio, sim, era a rebeldia fogosa, o exaspera
do, o inconfonnado. Nabuco, que foi sempre avesso á
demagogia, acalentou a idéa e pregou-a, de cima para
baixo, do alto da sua sabedoria, da sua crença e da sua
fé. Patrocínio pregou-a de baixo para cima, por isso a
envolveu, por vezes, em treva e blasphemia.
A eloquência do tribuno da Abolição e da Federação
soa, na Gamara imperial, como uma licção de sabedoria,
■professada com calor, mas com elegancia, riqueza verba,
cheia de idéas. Nabuco foi feliz. Ninguém conhe
ceu destino semelhante. Descendo a defender a ultima
camada, na escala humana, elle lhe emprestaria uma ri
queza de sentimentos e de espiinto que resaltava o con
traste chocante entre os fan-apos duma indigencia que
se an’astava de senzala a senzala e a opulência brilhante
dum espirito fino e superioi’. Mesmo quando fez cam
panha eleitoral, conclamando os homens da sua terra para
que se abrigassem sob a bandeira que alçou, não poz a
sua intelligencia ao serviço da phraseologica ôca e arti
ficial que caracterisa a eloquência dos “ meetings” políti
cos. Soube ser simples sem descer á vulgaridade, e Per-
1 197
iiambuco não assistiu mais a uma campanha como a que
elle desenvolveu.
A luta pela Abolição, que encetou desde que teve
uma tribuna para esplanar as suas idéas, attrahiu-o e
fascinou-o, — foi a moldura gigantesca da sua figura
invulgar. Atirou-se a ella por uma convicção profun
da que lhe indicava ser nocivo, vicioso e pouco producti-
vo o trabalho forçado. Era um apaixonado intimo, um
revolte.do polido, um “genfcleman” da polemica politica que
nunca mareou com a injuria, nem mesmo com a des
cortesia. Era liberal por indole, liberal como homem fe
liz com quem a natureza fôra pródiga e a vida propicia.
Não comprehendeu o eiTo economico da Abolição, talvez
porque o enthusiasmo da massa que arrastara e desen
cadeara, ultrapassando o seu, acabasse por dominais.
Por isso, elle começou por desejar a libertação como ideal
futuro. Quer que ella seja parcial e remota. Termi
na por exigil-a total e súbita. Tendo feito a sua educa
ção espiritual no cultivo e na admiração dos franceses, e
a sua educação politica na observação da Inglaterra, es
queceu de converter á escala brasileira, á realidade do
seu paiz, 0 liberalismo politico que o fascinava.
Foi o seu erro, que redimiu com a sinceridade das
suas campanhas, pois, abraçando as idéas que defendeu,
teve mais a perder do que a ganhar. Demais, a culpa
dos acontecimentos foi menos sua do que do systema po
litico vigente, no golpe vibrado na economia brasileira.
Mais idealista do que pragmatista viu no povo que admi
rou apenas o inglez, a elasticidade liberal da organisação
politica, não comprehendendo que essa conquista repou
sava num mundo real e objectivo, emanava duma soli
da organisação, apta a acceitar sem gravames o systema
politico vigente. Querendo applicar á sua terra aquillo
que admirou e amou, Nabuco não fez mais do que de
formar a realidade, o que, comtudo, não amesquinha e
apaga a sua acção sempre poderosa e justa, exaltada e
•politica, conduzida por um espirito alto e sincero, con
victo e seguro dos seus conhecimentos, offerecendo um
quadre que o Brasil não poude assistir mais porque, ef-
i
198
fectivamente, o paiz não produz senão raramente homens
dessa estatura.
A “ Minha Formação” é uma biographia escripta com
aquella elegancia innata que elle pcssuia e o Um Esta
dista do Império constitue uma narrativa singela dos acon
tecimentos em que foi parte o seu pae no quadro das
instituições do tempo, aproveitando uma ou outra op-
portunidade para analysar alguns factos importantes da
política imperial e pintar algumas figuras das mais signi
ficativas da época. O estylo de Nabuco, como a sua exis
tência, era límpido e correntio. Nada o deformava, nada
0 torcia. A sua correcção não prejudica a naturalidade
da narração.
A idéa federalista, que elle levanta e leva para o de
bate do legislativo, ia ser fundida no programma repu
blicano. No seu monaiehismo intransigente e coheren-
te, Nabuco foi um' das clavas mais violentas contra as
instituições. Bate do-se pela Abolição e pela Federação,
elle estava ajudando a aluir uma ordem de cousas que
assentava nesses dois supportes: e.scravidão e centrali-
sação. Destruídos esses dois sustentaculos que restava?
A Republica.
C APITU LO X X I
i
5-'i
202
do .fundo da alma convulso. A sua obra, onde ha força e
analyse, e onde ha belleza e forma bem cuidada, perma
nece como um dos conjunctos mais homogêneos produ
zidos pelos nossos poetas. A mediocridade é rara em
Raymundo. O trivial, quando nelle apparece, a sen.si-
bilidade apurada logo se perturba e recolhe, como no ca
so do soneto celebre. Elle foi capaz de compor alguma
cousa de colorido e vivo como a Missa da Ressurreição,
quadro perfumado de sensualidade, e a Noite de Inverno;
uma descripção fina e sensivel do mal interior, como o
Mal Secreto.
Alberto de Oliveira é um dos grandes coloristas da
nossa poesia. suas narrações da natureza classifi
cam-se como das melhores que temos. Não ha a preten
dida impassibilidade na sua fónna, que guarda os limi
tes da perfeição sem suffocar a idéa e prejudicar a pa
lheta desse colorista inimitável. Certo, os seus vei*sos
são menos populares que os dos seus companheiros. Is
so não 0 diminue, entretanto. Alberto de Oliveira foi
uma sensibilidade viva ao serviço duma fórma perfeita.
A sua obra, onde ha algumas paginas eternas, é das que
atravessarão o tempo. O enthusiasmo que o domina an
te 0 esplendor das nossas manhãs, a imponência das mon
tanhas e florestas não perdia ao ser transplantado para
a cadência e a rima. Artista do verso, elle aborda todos
os themas, sem descer á vulgaridade. A sua poesia é
toda filha da sensibilidade, uma apurada sensibilidade
que lhe permittia aprehender os instantes mais felizes
da terra, e pintal-os com a chamma e a claridade com
que elles se manifestavam:
\
204
A verdade é que soube ser comprehendido, quer pela
simplicidade da fôrma, quer pelo que de geral transfun-
diu em seus versos. Os seus sonetos ficaram como os
mais bellos da nossa lingua. Da sua obra, si muita cousa
perdeu a belleza, descahiu para abanalidade, como as
conhecidissimas Tentação de Xenocrates e Ouvir estrellas,
subsistem paginas que a gente ainda lê com raro encanto.
Luiz Murat unge os seus versos dum tom indeciso
que prenuncia a decadência e precede a poesia de Cruz
e Souza e Alphonsus de Guimarães. Elle não pode ser
classificado, a rigor, entre os parnasianos, pois ficou nmis
chegado aos românticos, sob a influencia enorme de Hugo.
A riqueza verbal e a eloquência das imagens o situam
mais recuado no tempo, distante dos cultores da fôrma.
Muitíssimo menos popular do que qualquer dos que fo
rem estudados nestes capitulo ha, entretanto, nos ver
sos de Mui'at indicios de uma sensibilidade apurada.
Augusto de Lima, produzindo pouco e deixando, nos
seus últimos annos, os velhos motivos para fazer poesia re
ligiosa, bôa poesia religiosa, fica apezar de tudo, como o au
tor de alguns versos ricos de idéas e imagens geométri
cas. A politica dessorou, talvez, nesse contemporâneo do
paniasianismo bi*asileii‘o, a seiva poética, abafando-lhe
o Ímpeto da creação; amarrou-o ao terra-a-terra, ao com-
mum, ao trivialismo das espertezas e combinações ras
teiras. Já no termo da existência, porem, nos offerta,
sobre o santo dos santos, uma poesia cheia de sensibili
dade e angelitude.
Vicente de Carvalho, nos Poemas e Canções, fixou-
se, quasi repentinamente, como um dos nossos melhores
paysagistas, incapaz de adulterar os quadros da natu
reza, preso á fascinação do mar, sentindo poeticamente
o tédio da posse e a indecisão do amor, podendo tradu
zir emoções as mais variadas e elevar-se em alguns ver
sos equilibrados e sonoros, dos mais sonoi'os que tivemos,
a aJituras por .poucos alcançadas.
Seria imperdoável esquecer aqui o nome de José Al-
bano, Amadeu Amaral, Adelino Fontoura, Francisca Ju-
lia e o quasi olvidado Severiano de Rezende.
C APITU LO X X II
■' r ■
206
observação e encanto, figura, no quadro das letras brasi
leiras, com um destaque unico. Poucos negaram Macha
do de Assis. Acreditamos mesmo que ele tivesse fugido
sempre á evidencia, ao commando e, si o elegeram chefe
vle clan literário, foi mais devido ao seu espirito associa
tivo, talvez a contra gosto seu. E, exercendo essa posi
ção, nunca se serviu delia para criticar ou oppor resistên
cias e restricções a quem quer que fosse. A tolerância
foi um dos seus traços mais salientes. Giemos mesmo
que ella tenha sido o segj-edo da sua timidez. Tolerân
cia igual, com a mesma dose de ironia e desencanto, só se
encontra, mais tarde, em João Ribeiro, espirito abeHo e
largo, cheio de sol e vida, olhando com benevolencia o tu
multo da existência e a luta das pequenas vaidades lite-
raiias em busca duma gloria ephemera.
Antes de Machado de Assis, os nossos livros viviam
entregues ao capricho duma imaginação alvoroçada. O
verbalismo inócuo, o estylo pomposo, representavam a su
prema elegancia. O romantismo quadrava melhor ao gê
nio dos nossos homens de letras. F oia feito para occul-
tar o vazio, para dar a illusão da côr e movimento, ser
vindo de maravilhoso instrumento á meia-sciencia de nos
sa gente da penna, afeita ás apparencias e apegada aos
cânones europeus. Machado de Assis, justamente o con
trario de tudo isso, foi o equilibrio, a sobriedade, a analy-
se. Decerto, o seu apparecimento não deixa de suipre-
hender o ambiente brasileiro. O gosto da minúcia, a ele
gancia inata no escrever, o apuro da fórma, — sempre
clara e rectilinea — são nelle os traços fundamentaes, des
conhecidos, nos demais escriptores de então, quasi duma
maneii'a absoluta. Machado foi um desencantado analys-
ta, um pesquizador sereno dos pequenos aspectos da al
ma do homem, na sua vida em sociedade, — isso sem fo r
çar o traço, sem these a demonstrar, sem principios vin
cados e preconcebidos. Naturalmente o que nos espanta é
a fonnação desse escriptor de raça, desse analysta nato,
no meio pequeno e estreito das letras nacionaes. I-ão se
sabe de onde herdou elle aquelles dons maravilhosos que
0 notabilisaram. Graça Aranha, que foi seu amigo e es
207
creveu sobre elle, se surprehende também, nesse ponto, e
não poude explicar a formação dum espirito tão subtil. A
origem da sua sensibilidade, do seu talento meticuloso e
exacto, da sobriedade do seu traço, da finura da sua ana-
lyse, pemanece imprecisa.
Esse homem que veio do nada e cuja ascenção foi
lenta e tenaz, sem incomodar ninguém, esse typo vulgar que
não tinha historia de familia e cuja personalidade foi creada
por elle proprio, essa figura humilde, dona duma prodigio
sa vida interior, duma serena opulência espiritual, esse
narrador perspicuo vem suiTjrehender o meio dos que o
cercam e vae formando a sua posição nesse meio, voe con
solidando 0 seu prestigio, pouco a pouco, sem succéssos es
trondosos e sem bruscas mut\ações, e chegar a ser a pri
meiro do cenaculo, o centro do mundo literário brasileiro, o
mestre consagrado.
Num paiz em que o prestigio pessoal, em qualquer
terreno, é conquistado asperamente, ás cotoveladas, aju
dado de expedientes ridiculos, elle triumphou sozinho e
silencioso. Levou annos a ser conhecido e acceito como
mestre, mas, uma vez attingido o cimo, ninguém contes
tou a sua posição, ninguém quiz negar a sua conquista, pelo
contrario, admitiram-na e a ella se affeiçoaram. Chegado
ao teimo da jornada, esse plebeu podia vingar-se das
suas origens. E, si elle sempre as temeu e escondeu, ja
mais procurou perturbar a harmonia da sua vida com
qualquer gesto deselegante. Naturalmente terá guardado
um travo de amargor, as suas recordações serão tristes,
as suas reflexões, profundas. Mas o que ha de notável
nessa luminosa ascenção, é o equilibrio da sua figura, e o
segredo de se tomar, mansamente, o dono das suas con-
quisitas, é a serenidade com que acceita o que lhe offe-
recem. Peimanece honesto, bom e justo. Nada devendo
aos outros, nem a cultura, nem a formação da sua men
talidade, nem o dom de escrever adquirido sem esforço e
apurado sem graves crises, elle vinga-se da humildade
das suas origens e da angustia da doença que o opprime,
— offertando á lingua uma obra forte, homogenea e so-
208
bria, na multiplicidade dos seus aspectos, obra como ne
nhuma appareceiy ainda sob este claro céo brasileiro.
Felizmente, para a posteridade, que quer conliecer-
Ihe as origens e as fraquezas, para admiral-as ou para
explical-as e exculpal-o, esse homem encerrado em si como
um caramujo, que nunca se abandonou completamente,
talvez nem mesmo á esposa felizmente para nós, por
tudo isso e pela muralha que ergueu enti’e a sua pessoa e o
mundo, entre a sua vida e a vida dos demais, se con
fessou nos seus livros, e esses livros são a unica senda
livre que deixou para devassai'mos a sua alma e a sua
existência.
A s attitudes mansas de Machado de Assis, o seu absen-
teismo, a sua aversão á luta, a fuga de toda a actividade
que impuzesse choques e competições, o abandono do jor
nalismo quando esse mister lhe acenava com triumphos
promptos e promissores, essa evasão á vida, essa deser
ção desalentada, inexplicável num lutador que tivera a se
rena energia de construir laboriosamente a sua própria
personalidade e impor-se ao meio, esses traços mai-cantes
que são as linhas mestras do typo que procurou integrar,
do papel que buscou desempenhar, da roupagem em que
se envolveu, a ausência de espirito critico num analysta
como elle o foi, — tudo são traços da sua timidez e do
pavor que lhe descobrissem as deficiências tão cuidado
samente occultas, tão mortificadoramente disfarçadas num
esforço continuo, numa dissimulação que raiava pelo sof-
fidmento mais intolerável.
Na sua obra ha a distinguir duas phases bem dis-
tinctas e que marcam, fundamentalmente, a evolução do
seu espirito. Na primeira elle é ainda um tacteante. um
infatigável trabalhador que busca o filão mais rico e mais
consentaneo com a sua indole e com as tendências do seu
espirito. E’ a phase romantica da poesia, a phase dos
primeiros livros, alguns quasi dispai’es no conjunto da
sua obra, em confronto com os que vieram depois, quando
0 seu estylo não se torneou ainda e as situações peccam
pela falta de equilibrio. Já ahi reponta, entretanto, a du
vida eteraa que o atonnentava, o desalento na visão das
209
cousas humanas, e que o levou para o pessimismo frio e
quasi transparente e para a ironia alada. E ’ a rotativi- I
dade dos destinos na mosca azul, é a mudança dos espi-
ritos no homem que no sone/to de Natal, não se reconhe-l
cia. O que ha de profundo nesses dois trechos de poe
sia subjectiva e fina marca indelevelmente o caracter dai
obra daquelle que soube ser, na dispersão das nossas le-l
tras, uma i>ersonalidade de excepção, dona dum conjunto|
de livi'os firmes e vigorosos, como não ha outra na nossa l
lingua. '
Si Machado de Assis foi a duvida que se occulta, Raul
Pompéa foi a ansia que procura desabafar-se e communi-
car-se. A sua existência tem um pouco da do outro. Tam
bém teve inferioridades a occultar, foi também uma sen
sibilidade extremamente apurada que buscou, no que es
creveu, o equilibrio, num esforço pasmoso e immenso.
Mas a vibratilidade de Pompéa tinha de manifestar-se se
não nas paginas pelo menos no convivio humano. E ella
se manifestou, descomedida e violenta, quasi incomprehen-
sivel, levando-o á deserção ultima e prematura. Antes
de ir-se, porem, antes de abandonar a cai’cassa humana
que o atonnentava, nas dores sem remedio e ansias sem
objectivo, Raul Pompéa deixou dois livros mestres, duas
obras sem exemplo nas nossas leti’as, alem duma contribui
ção joiTialistica escassa, mas digna de attenção. A pri-
.meira dessas obras foram as Canções sem metro, em que
soube ser original num tempo em que todos escoltavam
Bilac. A segunda, e a maior, livro único no Brasil, foi
O Atheneu. Interessante notar que, nessa “chronica de
saudades” , não ha desabafos extremos. Quando a sua vi
da nos indica o tom ento e a incorformação, quando es
peramos da sua obra sobre um dos quadros onde, geral
mente, ha recalques profundos, o ambiente do internato,
Raul Pompéa nos offerece uma nan-ativa subtil, flagrante
de realidade e repleta de vida. N a obra mestra não ha
nada da sua nervosidade desconcertante, não abi’e espaço
para desabafos tremendos, desde que os livros da infân
cia se caracterisam, quasi sempre, pela vingança, revide
á brutalidade com que os homens tratam os sêres hyper-
210
sensíveis. Mas já o sub-titulo desmente essa tendencia,
si ella pudesse manifestar-se num ou noutro traço. Essa
“chronica de saudades” é bem um desfiar continuo de re-
miniscencias tiradas á realidade, embora emaciadas por
um delicado subjectivismo.
O romance brasileiro, com Machado de Assis e Raul
Pompéia, foge aos ambientes communs. Libertasse da
teiTa. Foge á descripção vasta e colorida, voltando-se
para o mundo obscuro das emoções interiores.
A reconciliação não tardaria a effectivar-se, embora
com outras directrizes.
C APITU LO X X III
A
220
cabular, guardando o equilíbrio dentro duma inspiração
e uma doçura singularmente límpidas e hamoniosas.
Si Cruz e Souza segue a maneira de Baudelaire, na
composição dos seus versos, Alphonsus de Guimaraens
lembra Verlaine. Do poeta francez, tem mysticismo de
peccador inconsciente, fraco á exacerbação dos sentidos.
As suas recordações de amor, elle as expressa por esta
fórma encantadora:
226
tenor. Agita-os nas suas pequenas paixões, deante de
nós, tudo vasado numa prosa cheia ainda de resai-
bos românticos. Mas as personagens começam a agir
de accôrdo com o meio. A sua obra, onde ha uma poe
sia profunda envolvendo-a toda, deve ser apontada como
Índice dos novos rumos, com um sentido novo.
Coelho Netto nos dá alguns quadros movimentados
da existência sertaneja. Narra, em flagrantes agitados
e soberbos de colorido, alguns aspectos da existência do
homem do interior. Netto se perde, mais tarde, num ver-
balismo sonoro e sem vida, artificial e divorciado da ter
ra, mas a sua obra, na pahte que toca o sertão, pode ser
apontada como lun traço de communhão com a terra, não
na admiração ôca do seu panorama, não na estatica da
sua pintura, mas no dynamismo, na acção, no movimento,
no actuação sobre os homens, na gesta ^ o peipetua de
novos mundos.
Nos seus últimos tempos. Coelho Netto procura exi
lar-se da realidade. O que eUe escreveu depois das suás
paginas sobre o seittão resente-se da falta de resistência
á acção do tempo. O desenvolvimento iperenne das rela
ções humanas não perdoa aos que desejam, apenas, fazer
arte pela arte, fóra de motivos ligados aos impulsos per
manentes da especie. Quem não estiver de accôrdo com
os padrões da existência, quem se não approximar das
manifestações sensiveis da realidade, quem quizer ser la-
vorista e cultor da fórma, no seu apuro artificial, — fi
cará relegado ao culto dos secundários e dos mortos. Foi
o grande erro em que incidiu o autor do Rei Negro, em
cuja obra, heterogenea e dispersiva, ha algumas paginas
cheias de calor e de vida.
Mas 0 grande animador da nosso paysagem, o pri
meiro a pintar a tragédia do homem ante o mysterio da
natureza, é, indiscutivelmente, Euclydes da Cunha. Sen
sibilidade apuradissima, organisação nervosa vibratil e
unica, Euclydes estava em condições, mais do que qual
quer outro, de vêr o que os outros não viam, gravar em
baixo-relevos colossaes a nossa gente do sertão, nos de-
senconltros da sua incultura, impellida a todos os desva-
227
rios, no fundo emotivo e apaixonado da nossa indole. Os
Sertões é um dos livros máximos das nossas letras por
que soube apanhar, em instantâneos precisos e nitidos, os
impulsos do sertanejo apegado a cejtas directrizes prima
rias, sugeito mais do que o habitante da cidade, ao passado,
na sua acção perdmnvel e immensa, arbitraria e confusa, so
bre uma mentalidade que guarda ainda as linhas bem
vincadas dos organismos que evoluem muito lentamen
te.
O estylo de Euclydes estava em condições de sur-
prehender e fixar a realidade. As suas curvas, as ima
gens sumptuosas, o 'tom violento, por vezes a paixão com
que se apresenta, não são mais do que o reflexo da i’ea-
lidade, na grandeza barbara dos seus entrechoques. A l
gumas das suas narrações, como a do Judas, que desce rio
abaixo sob o vituperio das populações ribeirinhas, cons
tituem paginas eternas na nossa literatura. Euclydes
possuia, ao contrario de quasi todos os nossos homens de
letras, um lastra cultural sufficiente para apoiar aquillo
que traduzia em linguagem comimim e que lhe vinha atra-
vez duma sensibilidade torturadissima, dando-lhe a visão
segura dos aconitecimentos, a obseivação sagaz e minu
ciosa do ambiente. Os impulsos da alma sertaneja en
contraram nelle um historiador sem igual. Porque a sua
obra tem muito de histórica, no bom sentido, isto é, da
continuidade, indicando as fontes, mostrando motivos,
esmerilhado origens, sem nunca exftrahir os quadros ape
nas duma creação meramente esthetica. Si belleza ha no
que elle nan-ou, vem da tragédia da realidade, da violên
cia mesma dos instinctos humanos, presos a sentimentos
enraizados, apegados a uma influencia ambiente que os mo
dela e a uma deficiência de recursos que selecciona e dila
cera.
O apparecimento de um livro como O.s Sertões e de
algumas paginas camo as de A ’ Margem da Historia, não
deixa de ter sido um phenomeno curioso no nosso meio
literário, árido em manifestações dessa naturaza, mais pre
so aos efíeitos inunediatos, o que tanto valería dizer, ao
exito facil. O methodo e a clareza de raciocinio, que trans-
228
parecem no que elle escreveu, terá a sua origem, talvez,
no fundo da mentalidade nutrida pelas mathematicas que
disciplinam o pensamento e assentam directrizes. A cla
reza de alguns dos seus períodos lembra a rigidez geomé
trica. O jogo das impressões tem, bem antes dos moder
nos, certa semelhança com a technica dos volumes.
O contacto bruto entre a teiTa e o homem apparece
tão claro na sua obra, que elle não teve duvidas em dei-
xaJ-o transparecer até no ditulo dos capitulos. Esse con
tacto, que um analysta menos fiel tería pintado como con
duzindo a um amesquinhamento do homem, elle nos apre
senta situando devidamente o elemento humano. A obra
de Euolydes da Cunha fixa um momento da nossa evolu
ção Idteraida: a volta á teiTa, para estudal-a e inteipretal-a
— para explical-a, em summa.
Graça Aranha .talvez estivesse, mais do que nenhum
outro, em condições de escrever o romance da ten“a. A
sua evolução não padecera crises. Fôra desde logo liber
tado do “ teiTor cosmico” . Sentia a veracidade das esco
las novas. Orientara-se para um materialismo de que se
não libertou nunca, realizando a integi-ação no cosmos,
como parte infinitesimal do todo. Comprehendeu, desde
cêdo, a luta da existência e os pequenos dramas de um
continente que vae buscar o elemento humano em outras
terras, para ajudar a construir uma civilisação nova, fun
dindo esse elemento na nacionalidade, absoi^vendo-o com
uma singular capacidade de incorporar os typos mais op-
postos, centamente, uma das nossas dominantes caracte
rísticas. Graça Ai^anha approveitou, melhor que os ou
tros, a licção de Tobias Barretto. As palavras de Tobias
marcam o seu destino. Teve a felicidade de, ainda na in
fância, sentir as inclinações profundas para o novo sen
tido das cousas. Mais emotivo do que disciplinado, mais
vivo do que arguto, mais apto ás impressões do que á ana-
lyse, elle nos offerece, com Chanaan, um livro differente,
um livro que indica, melhor do que a obra de Euclydes, em
bora lhe seja inferior, a nova phase da vida mental brasi
leira. Era o tempo das migrações para a terra nova, da
ansia do trabalho e conflicto do pensamento alienigena
\
229
com o meio ameiúcano. O contacto das duas mentalida-
des, a de Milkau e a de Lentz, é apenas uma licção de rea
lismo político.
Clianaan é um dos primeiros livros brasileiros, apezar
de certas demasias do seu estylo e certos desbordamentos
do seu raciocínio. E’ a primeira vez que apparece, em
nosso paiz, a ficção romantica calcada na realidade da
terra, fazendo a rterra ter um papel preponderante, fazen
do-a activa e dynamica, commungando com o homem, na
força profunda que vem das suas entranhas mysteriosas,
— fonte eterna da vida.
Lima Barreto, o autor da “ Vida e morte de M. J. Gonza
ga de Sá” foi um dos maiores romancistas desta terra, foi,
principalmente, um grande caiicaiturista, um pintor da vi
da do Rio de Janeiro. Depois de Manoel Antonio de Almeida,
ninguém como aquelle escrevinhador desmazelado desci‘e-
veu a vida da grande cTdade, cõm os seus typos pittores-
cos e caractei-isticos, typos suburbanos na sua maioria.
Lima Barreto representou, na nossa vida literaria, o f i
lho desprezado, — o pária. De origem humilde, pobre
e desconhecido, olhando os homens e contemplando o espe
ctáculo delicioso da vida quotidiana da cidade immensa,
ello não conhecería, jamais, a fama e a fortuna. Talvez
nem mesmo tenha sonhado com ellas. Escrevia por uma
necessidade intima, um vicio de nascença.
Poderia ter se vingado, nos seus romances, da ironia
da sua sorte. Poderia ser o B. Lopes da prosa e cercar os
seus pei^sonagens de luxo e luminárias. Pintou-os, en
tretanto, no mesmo ambiente em que os conhecera, na
mediocridade das suas vidas, na tristeza das suas profis
sões.
O seu nome, que assignou algumas paginas das mais
expresivas que a língua conhece, não seria pronunciado nas
sessões da Academia nem nas festas do espirito ás quaes ,
0 nosso temperamento se compraz em cercar de luxos ar-
tificiaes. Seria sempre o isolado, o desconhecido, o des
prezado. Suburbano por indole e por temperamento A f-
fonso de Lima Bai-reto creou typos arrancadas ao vivo, á
230
multidão que o cercava, e misturou-os á sua existência
desordenada e mesquinha, Não teve amigos proeminen
tes, não teve leitores numerosos, não teve imprensa que
0 louvasse. Na pobre igreja do elogio mutuo não lhe de
ram guarida. Anítes, elle a não procuroiu preferindo, qui
çá, a comipanhia dos seus confrades de vida miserável e
paupérrima, sem lôas e sem luxos. Quando morreu, se
pultaram-no no cemiterio suburbano de Inhaúma, perto
do qual residira. Sua mor-te concordou com sua pobre
vida de retratista das ruas pobres, de creador de typos
vulgares.
Na sua obra haverá muito sarcasmo e muita ironia
amarga. Essa rispidez do traço traduziria, comtudo, a
própria realidade da comedia mais do que uma “ i-evanche”
contra a vida. Amava mais profundamente o prazer de
passar para o papel a mediania e, ás vezes, a vileza da
existência dos que o cercavam do que o gozo de alvejal-
os ou de os humilhar.
Lima Barreto foi, no fundo, um simples e um bom
a quem os seus livros quizeram deformar a physionomia.
Pobre diabo da literatura, mendigo das letras, pária da im
prensa, elle guardai^ia, no seu espirito fundamente obser
vador, apenas o amôr da creação, o gozo de roubar á vida
aquelles bonécos com que enfeitou a sua galeria humana,
0 prazer de rabiscar algumas paginas despretensiosas que
fixassem um momento, um quadro dá* existência na ci
dade em que vivia e que amava.
A sociedade ^ on y n ia das letras nacionaes não o ac-
ceitoú^os que éscreveramj no sêu'tempõ',’ fingiram ignoral-
0 mas é precizo que se leiam os seus livros, ricos de obser
vação e de ironia e de expressão pai’a que os brasileiros
saibam que este paiz já produziu um grande romancista.
Um pobre diabo de nome vulgar: Affonso de Lima Bar
reto.
CAPITULO XXVI
■‘ u . ^
ín d ic e d a m a t é r i a
r ■ h '
*.^* V- - ^ ^
s* .*
CAPITULO I
Panomma da Europa dos fins do século X V —
Unificação do poder real — Surto das invenções: a
imprensa — A Reforma — As republicas italianas
— Commercio com o oriente.
CAPITULO II
CAPITULO III
CAPITULO IV
C APITU LO VI
C APITU LO V II
CAPITU LO V III
CAPITULO X
CAPITULO X I
I
Vinda da corte portugueza para o Brasil — Sur
to economico — Abertura dos portos — Novos facto-
res na economia do paiz — Alternativas polilicas
— D. João V I — Imprensa, emfim!
CAPITULO X II
CAPITULO X IV
Em pleno romantismo e em plena autonomia —
Porto Alegre — Gonçalves Dias — Prosa — Teixei-
Í44
i"» e Souza — Joaquim Norberto — A histoi’ia e a
chronica — João Francisco Lisboa — Pereira da
Silva — Vamhagen — Sotero dos Reis — Fernan
des Pinheiro — Francisco Octaviano — José Boni
fácio, 0 Moço — Vultos menores.
CAPITULO XV
C APITU LO X V I
Religiosos e politicos — D. Antonio de Macedo
Costa — Oui’0 Preto e Couto de Magalhães — O
romance de Franklin Tavora e de Taunay — Inno-
cencia — A ipoesia dos vinte annos — Influencia eu-
ropéa — Alvares de Azevedo — Junqueira Freire —
Laurindo Rabello — Casimiro de Abi'eu — Varella.
CAPITULO X V II
CAPITULO XVTII
CAPITULO X IX
C APITU LO XXI
CAPITU LO X X II
CAPITU LO x x in
C APITU LO X X IV
C APITU LO XXV
CAPITULO X X V II