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HISTORIA DA /

LITERATURA
BRASILEIRA

(SEUS FUNDAMENTOS ECONOMICOS)


Nelson Werneck Sodré

HISTORIA DA
LITERATURA
BRASILEIRA
(SEUS FUNDAMENTOS ECONOMICOS)

EDIÇÕES CULTURA BRASILEIRA S/A.


Rua Conselheiro Nebias, 255 — Phone, 4-6262
Caixa Postal, 2715 — SÃO PAULO
, VJ

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A O LEITOR

A Historia de um povo está mais na sua literatura


de ficção do que propriamente nos compêndios áridos onde
vem nan-ada objectivamente. Quem hoje quizer saber o
que foi o tumultuoso advento do regime liberal na França,
terá de recorrer forçosamente aos romances de Balzac. Mais
do que nenhum historiador profissional, o autor da Co­
media Humana fixou os aspectos caracteristicos da so­
ciedade que surgiu após a queda da realeza.
Ao lançar a HISTORIA DA L IT E R A T U R A BRA-
SILEHIA, estudada segundo os phenomenos que lhe im­
primiram esta ou aquella physionomia, variando sempre
de accordo com as mutações do ambiente, a empreza que
ha pouco divulgou a “ Historia do Romantismo” , de Ha-
roldo Paranhos, sente-se no dever de vir explicar a nova
obra, tarefa de que o autor se julgou dispensado pela pró­
pria natureza do seu trabalho. Discutir-se-á si se trata mes­
mo de uma HISTORIA DA LIT E R A T U R A em harmonia
com os moldes clássicos, ou de uma synthese do movi­
mento das idéas captadas por poetas e escriptores, desde
que o Biasil começou a sentir os primeiros estremeci­
mentos da sua personalidade, caminhando precocemente
para a adulta madureza. O titulo não importa; importa
é que o sr. Nelson Wemeck Sodi'é traz qualquer coisa
de inédito no genero. A té aqui, tudo quanto se escreveu
tem sido apenas a enumeração das escolas, a seriação
dos valores intellectuaes, classificando-lhes as tendên­
cias e idyosincrasias. Tomada no tempo, segundo esse
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velho processo, a nossa literatura se destacaria do espaço
que occupa como um edificio sem alicerces, vivendo por
si mesma, sem vinculo de qualquer especie que a prenda
a essa coisa ainda não claramente definida chamada
“ realidade brasileira” .
Já o sr. Haroldo Paranhos, na sua obra, ao estudar
as manifestações incoerciveis da nossa emancipação po- j
litica, tende a evitar o antigo systcma quando considera
indissolúveis os laços entre á poÚtica e a literatura. Aqui
como em França, como na Allemanha e em Portugal,
aquellas duas fôrmas de actividade humana se identifi­
cam e são inseparáveis. O sr. Nelson Weraeck Sodré,
desdobrando noutros nimos o critério seguido pelo sr.
Haroldo Paranhos, sem o preconceber, tornou o seu livro
como que o seguimento logico da “ Historia do Roman­
tismo” .
Nada mais é preciso para que o leitor adivinhe o
interesse tanto de uma como de outra dessas duas His­
torias. Releva notar que os dois autores não são histo­
riadores, literatos ou criticos profissionaes. Siquer a sua
formação cultural se confunde com a de todos quantos, no
Brasil, se entregam commumente ao cultivo das letras — o
bacharelato. O sr. Haroldo Paranhos é engenheiro e o sr.
Nelson Werneck Sodré, official do Exercito.
Bastaria essa singularidade para dar a quantos se in­
clinam ao estudo da nossa fonnação social, liter-aria e poli-
tica, uma idéa do quanto as intelligencias no Brasil refogem
á rigidez da especialisação, para enriquecer-se de conhe­
cimentos os mais variados. Como Euclydes da Cunha, que
sem embargo das suas occupações á margem da profissão
das letras nos deu os mais bellos estudos da sociologia bra­
sileira, os srs. Haroldo Paranhos e Nelson Werneck Sodré
não se desviam da mesma directriz, emprestando ao es­
tudo da historia das nossas letras as luzes da sua cultura
e do seu patriotismo.

Edições CU LTU R A B R A S ILE IR A SIA.


C APITU LO I

Panorama da Europa dos fins do sécu­


lo X V — Unificação do poder real — Surto
das invenções: a imprensa — A Reforma
— As Republicas italianas — Commercio
com 0 oriente.

Nada mais difficil do que descrever um dado momen­


to da vida da humanidade. N a analyse histórica os fa­
ctos se ligam de tal maneira, nas suas relações de causa
e effeito, que, apanhar um instante desse desenvolvimen­
to continuo, representa, quasi sempre, adulterar em al­
guma cousa a essencia dos acontecimentos. Nada mais
necessário, entretanto, para uma obra que se proponha
a ser um panoi'ama da vida literaria brasileira, do que
essa busca das origens. Eduaido Prado, espirito insinu-
ante e subtil, certa vez escreveu que a historia do nos­
so paiz pode ser escripta derivando para o scenario ame­
ricano, na escala precisa, os acontecimentos que se de­
senrolaram na Eui’opa. E ’ impossivel, para quem quei­
ra pesquizar as origens brasileiras, deixar de remontar á
situação européa dos fins do século XV, em cujo decorrer
a humanidade foi conduzida a novos destinos.
Um dos aspectos mais interessantes da ultima pha-
se do feudalismo foi, por certo, a luta clara ou latente, en­
tre o poder dos senhores da terra que, na divisão do la­
tifúndio encontravam a divisão do poder, da justiça e da
riqueza. O que caracterisa, justamente, a segunda me­
tade do século X V é o acii’ramento dessa luta, o desdo­
bramento duma rivalidade cujo teimo é a integração das
nações que influiam nos acontecimentos do tempo, influ-
’V

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indo portanto na marcha política da humanidade. E ffe-
ctivamente, o feudalismo teve, em cada paiz, caracteris-
.ticas próprias e, como exemplo, poderiamos apontar o
seu caracter hierarchico em certas nações, em contraste
com o aspecto dispersivo em outras. Mas, no fundo, o
que traçou os lineamentos das instituições feudaes foi
a posse precaria e o usufruoto do sólo por pailc dos que
o lavravam, não importando o cai'ecter de interdependên­
cia dos senhores, entre si, ou para com o rei, a não ser
para quem se disponha a fazer uma historia detalhada do
tempo.
O desenvolvimento da riqueza, com o augmento pro­
gressivo da actividade profissional, caraicterisada pelas
coi-porações; a alliança do rei com o povo na sua luta con­
tra os senhores, a necessidade, cada vez maior, da unifi­
cação da riqueza, o papel relevante desempenhado pela
egreja de Roma (com a unidade consolidada desde o sé­
culo X I), são factores que conduzem á unificação do po­
der e á integração nacional. Essa unificação teve, tam­
bém, phases diversas e aspectos proprios em cada paiz.
Caracterisou-se, em França, pela união do povo com o rei,
na 'luta contra a nobreza 'latifundiaria. Na Inglaterra,
surgiu sob outro aspecto: ahi, rei e nobresa lutaram con­
tra o povo, nos seus surtos, para novas liberdades e maior
amplitude na acquisição de bens. Em fins do século X V
as condições sociaes na Europa estão bem demarcadas.
Na França, Luiz XI, atravez duma política tortuosa, mas
lúcida, consegue aniquillar o poderio feudal. Na Ingla­
terra, a substituição das relações feudaes entra em fran­
ca accele)'ação. Surgem no palco europeu grandes nações
organisadas. Outras iniciam, nas brumas medievaes, a
sua organisação. A luta secular pela Flandres chega
ao fim. Os limites dos paizes se vão/'vincando. A
paysagem européa adquire linhas bém precisas. Na
Espanha ultima-se a guerra ao sarraceno. Portugal,
plenamente lançado na aventura marítima, já apoiara o
golpe contra o feudalismo nas oi^denações affonsinas, pas­
sara por uma crise aspera de involução e encontrara o
seu destino sob D. João II que, reduzindo o poder dos al-
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caides, refoiTnando as doações paternas, i-epi-imira as re­
galias da nobreza.
Estreitamente ligadas a essa ordem de acontecimen­
tos, acompanhando muito de perto o desenvolvimento po­
lítico e economico do mundo moderno, surgem as inven­
ções e a expansão commercial. Nada exprime melhor a
chamada edade moderna, ficção de oídem didactica para
divisão peidodica da historia, que o surto verdadeiramente
notável das actividades commerciaes, as relações de troca
e procura de mercadorias, após a quéda de Constantino-
pla. Esse phenomeno economico, vinculando todas as
manifestações de outra ordem ás oscilações por que pas­
sava, é coroado pela força disciplinadora da egreja ro­
mana, pelo christianismo, herança do mundo antigo trans-
mittida ao medievaUsmo após o collapso romano. O ap-
parecimento de algumas invenções, si não marcou o prin­
cipio da expansão economica, como muitos querem fazer
crêr, suppondo que as navegações se originaram da sim­
ples descoberta da bússola ou do astrolabio; o facto de sur­
girem algumas creações novas no precário mundo scien-
tifico de então, não deixa de dar cuiãoso aspecto ao
advento da expansão maritima oídginada de uma ordem de
imperativos onde a simples aventura entrava apenas como
manifestação da phantasia com que sempre se envolvem
as cousas inaccessiveis ao entendimento popular.
Enti‘e as invenções do tempo, entretanto, uma foi
de consequências tão notáveis para a vida da humanida­
de que, por si só, representou verdadeira subversão na
ordem dos valores existentes. Quando João Guttenberg,
natural de Moguncia, imprimiu pela primeira vez um li­
vro, operando, talvez inconscientemente, uma das maiores
revoluções a que a humanidade tem assistido. E ’ preciso ^
notar que, no mundo medieval, como no mundo antigo, o •
saber se circunscrevia; a i)equeno numero de homens in­
capacitados de transmittil-o aos demais pela extrema dif-
ficuldade na expansão do pensamento. Ora, a imprensa
atirava ás massas a somma de conhecimentos que dor­
mia nas ricas biblio.thecas ou no cerebro de alguns sábi­
os. Libertava-as da escravidão mental. O livre exame
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encontra nesse meio prodigioso de expansão de idéas um
instrumento poderosissimo. A imprensa marca um novo
episodio na existência humana. Dá um impulso extra­
ordinário ao cabedal de ccmhecimentos adquiridos e por
adquirir. Colloca-se ao serviço do raciocinio amplo e li­
berto. Alarga os horizontes, dando velocidade conside­
ravelmente maior á expansão das ideologias.
E ’ por isso que, quando Martinho Luthei'o, já no al­
vorecer do século XVI, lança a Reforma, ella apparece in-
dissoluvelmente ligada á imprensa. Sem uma não pode­
ría ter.àxistido a outra, isto é, sem imprensa a Reforma
não teria a repercussão que teve e não chegaria a domi­
nar uma parte da sociedade do tempo, submettida á dis­
ciplina christã, onde o livre exame só podia abrir brecha
ajudado por clava tão poderosa. A R e fo m a vem que­
brar a profunda unidade do mundo christão. Effecti-
vamente, após o collapso romano, incapaz de manter a
unidade das terras dominadas, i-oído pelos barbaros que
não conseguira assimilar, o Império offertava ainda, á
edade seguinte, a maravilha da sua oi"ganisação escriptíi
e o movimento social perfeitamente constituído que era
o christianismo. Tendo acabado de arruinar o Império
Romano, minando-o e dividindo-o, o christianismo, que
adquirira delle a disciplina e muitas .das suas institui­
ções, chegando intacto e cohesb,’ consolidado e forte á
edade moderna, ao commando do bispo de Roma, resol­
vidas as questões da convocação dos concilios e da disper-
sividade da egreja ; o christianismo iria coroar a organi-
sação social. Quando a quéda de Constantinopla marca
0 advento de uma nova era, na vida tumultosa da huma­
nidade, fechando o caminho do Oriente para os mercado­
res que o frequentavam por terra, obrigando-os a bus­
carem-no no mar, o christianismo domina o arcabouço da
sociedade do tempo e inflúe em todas as manifestações do
pensamento e da energia dos homens.
A Reforma quebra essa unidade fecunda e discipli-
nadora, introduz novos padrões na vida européa, e, na
ansia de demolição e rebeldia, encontra uma i’eacção as-
pera e terrível na contra Reforma. Esta não se caracte-
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risou tão sómeate pela fixação, em concilio, das idéas
fundamentaes do mundo catholico, mas provoca a funda­
ção das ordem x-eligiosas. Surge a Ckxmpanhia de Jesus,
organisada por um dos espirites mais objectivos e mais
precisos do tempo, Companhia que teria tanta influen­
cia no Brasil.
A situação da Italia, sem unidade política, domina­
da, em algumas partes pelo papa, em outras pelo Impera­
dor allemão, pelos noi'mandos nas demais, fi’agmentada
assim por autoiüdades as mais diveisas, provocou o ap-
parecimento das republicas aristoci'aticas nas cidades
mais industriosas e desenvolvidas. Veneza, abx’igada
nas suas ilhas e nos seus canaes, das invasões barbaras;
Florença, Gênova, Pisa, Milão, Roma, eram centros do
commencio cada vez mais avultado para o Oxãente. O
dominio dos mares davadhes o instrumento para a aequi-
sição e para a ti'oca das mercadoifas trazidas das rejriões
longínquas e logo distribuídas pela Europa. A olygai’-
chia veneziana domina o MediteiTaneo. O poi-to da ci­
dade max'avilhosa se tornava o mais importante do tem­
po. Na ansia de conseguir os portos intei-mediarios, con­
quista Coiíú e iChypi’e. Sobi’e uma organisação com-
mercial extox'siva e podexpsa dominava uma aristocracia
despótica, constituída em Gi’ande Conselho.
O commercio com o Oinente i-epx'esentava, então, uma
fonte de riqueza immensa e innesgotavel. A s republicas
italianas mantinham a supi^emacia desse commei'cio e px’o-
viam, com as mercadorias ti-azidas pelas suas frotas bem
apparelhadas, a Eui-opa inteii-a. Toda a riqueza circula
por essas pequenas cidades onde o smix) notável das ar­
tes marca os momentos de ephemero dominio.
A s Cruzadas haviam despertado na Europa medieval
a fascinação do Oiãente. Genovezes e venezianos de lá
ti-aziam px'oductos que amenisai'am o padrão de vida da
sociedade chxdstã. Os centros do Mediterrâneo iniciavam
uma época faustosa. Revelações sobre a existência orien­
tal, como a naiTativa de Marco Polo, enchiam de sonhos
onirificos a imaginação eui'opéa. A s primeiras navega­
ções, 0 roteii’o terrestre, o impeto commercial veneziano
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e genovez, abriam as possibilidades da vida commum no
mundo medieval. O commercio de longo curso provoca
uma das creações mais notáveis da vida economica de
todos os tempos. O intercâmbio dentro da própria Eu­
ropa augmenta duma maneira verdadeiramente notável.
A acção mercantil da Liga Hanseatica abre novos hori­
zontes a uma organisação economica em constante desen­
volvimento. O processo primitivo e lerdo da troca de
productos em especie sentir-se-ia incapaz para acompa­
nhar essa distensão formidável. A organisação com-
mercial torna-se cada vez mais complexa. Surge a le­
tra de cambio, uma das mais impressionantes revoluções
da historia economica. O surto commercial vae favorecer
consideravelmente o poder real na sua obra de centralisa-
ção e de absolutismo. O entendimento directo de reis
e banqueiros offerece novo aspecto a um predomínio que
augmenta sem cessar. O mundo antigo abre caminho á
nova éra, á expansão commercial e economica que é o
fundamento da organisação moderna. Os descobrimen­
tos maritimos derivam, então, de factores materiaes in­
contestáveis, entre os quaes se póde apontar o imperialis­
mo commercial de Veneza, as Cruzadas e a actividade da
Liga Hanseatica. Abertos os horizontes, rasgados os
caminhos, apontadas as diiectrizes, finnados novos valo­
res, erigida a nova estructura, restava continuar e persis­
tir. Na ponta da Europa surge um povo que realiza
uma das mais notáveis expansões de todos os tempos.
Portugal encontra o seu destino no mar.
CAPITULO II
Portugal — Resumo da sua formação
histórica — Caracteristicas do feudalismo
portuguez — A luta contra o sarraccno —
Nacionalismo precoce — Expansão geogra-
phica. Seus motivos c seus rumos — Por­
tugal na época do descobrimento do Brasil.

Os historiadoras portuguezes costumam dividir a his­


toria do paiz em duas partes muito distinctas e que, ef-
íeotivamente, tratam de duas épocas completamente di­
versas. A primeira refere-se ao Portugal antigo e a se­
gunda ao Portugal moderno. Mas, ainda dentro da pri­
meira parte, são obrigados a subdividir a historia em vá­
rios periodos: o da genese e constituição, comprehenden-
do a dynastia de Borgonha, com o seu te m o nos fins do
século X I V ; 0 caracterisado pela crise de crescimento,
comprehendendo o advento da dynastia de A viz e a luta
contra Castella, periodo curto, que vae dos fins do sé­
culo X IV á segunda década do século X V ; o periodo gran­
dioso da expansão geographica, cujo crepúsculo attinge
os fins desse século, e os subsequentes que não interes­
sam ao nosso pi’eambulo.
Portugal surge da luta contra o sarraceno. Essa
luta, que foi aspera e longa, marca, decisivamente, a phy-
sionomia do paiz. O condado de que se vae gerar a nação
poi^tugueza permanece, por largos annos, como sentinel-
la avançada do mundo christão em luta contra o mundo
mahom.etano. O desdobramento territorial do condado,
que se inicia ao alvorecer do século XI, passa por phases
successivas, atravessa os tempos, fazendo da terra um
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acampamento peimanente. Entre Ca-stella e Leão, o mou­
ro e o clero, ameaçado externamente e intemamente, lu­
tando e reagindo, ora dominando, ora dominado, Portugal
vence as décadas successivas da sua existência alternan­
do victorias com revezes e polindo o caracter do seu povo
que nessas escaramuças ia adquirindo um nacionalismo
precoce que vincaria fundamente o espirito do paiz. Es­
ses perigos que o atormentavam por todos os lados, a se­
cular campanha contra o mouro que domina parte do ter­
ritório europeu por oito séculos, a ameaça constante que
representa Castella, offerecem os moldes prodigiosos em
que se vae fo rja r a alma nacional. O que as nações eu-
ropéas adquirem com o lento passar dos annos, em des­
dobramentos que levam décadas, Portugal adquire no ca­
lor da refrega e na ansia pela libertação, passando, rapi­
damente, a possuir, para sustental-o conti-a a arremet-
tida adversaria, uma consiencia de necessidades communs
que é um dos traços caracteristicos da gente portugue-
za do tempo e permanece por longos annos como uma das
qualidades mestras do genio lusitano.
O inimigo interno seria representado por um clero
absorvente e dominador e por uma nobreza que válida
para os misteres da guexTa, iria atribular a realeza com
a sua ansia de predomínio. Jogando contra as influen­
cias externas a sua consciência nitida de povo, de com-
munidade, Poilugal forja muito cedo a tempera dos seus
homens e marca a sua physionomia. Jogando contra as
forças obscuras, latentes ou declaradas, que se degladia-
vam na formação da sua sociedade, firm a logo o arcabou­
ço da sua organisação. A luta conti-a Roma, — e contra
a nobreza acobertada com as regalias do clero, unindo-se
a elle na obra de solapamento do poder real, — offerece
0 quadro dos primeiros séculos. Era uma luta essencial-
merate politica, desde que o christianismo, na terra lu­
sitana, não teve o caracter commum aos povos da mesma
época. O christianismo portuguez teve caracteristicos dif-
ferentes do das nações que se constituem na ti'eva medie­
val para surgirem, como obras acabadas, no alvorecer dos
tempos modernos. O prodominio, a ascendência da mo-
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narchia sobre o feudalismo, Portugal denuncia-os muito
antes de qualquer outro paiz europeu e é uma consequência
lógica da luta contra o inimigo externo. Só a monarchia,
com a sua base unificadora poderia supportar os longos
amos de campanha contra o mouro obstinado na posse de
um pedaço da terra européa, e contra Castella e Leão que
ameaçavam o flanco do antigo condado. As lutas este-
reis. do feudalismo, a dispei’são de valores e forças que a
caracterisa em toda a parte, não podiam servir de alicei'-
ce a uma obra dessa natureza.
Em nenhuma outra nação da Europa o povo se mos­
tra tão refractario ás influencias essenciaes do mundo feu­
dal como na coirumunidade lusitaná. Isto leva muitos
historiadores, dos mais objectivos no estudo da Edade Mé­
dia, a a ffim a r que, rigorosamente, em Portugal não hou­
ve feudalismo. Essa resistência ás influencias dos pa­
drões característicos da sociedade contemporânea marcam,
fundamente, o isolamento de Portugal. Na ponta da Eu­
ropa, um pequeno povo, atravez de annos e annos de luta
exti-emada contra uma civilisação opposta, uma crença
adversa, uma absoi'pção que o ameaça, vae constituir,
mais cêdo do que as demais nações do mundo christão,
uma consciência nacional e ultimar a obra unificadora do
poder real, surgindo em plena Edade Média como nação
organisada.
Esse particularismo, esse refugir aos padrões com-
muns da cultura em foimação no resto da Europa, essa
autonomia na marcha e na integração, Portugal leva-os
ainda mais longe quando, depois de uma crise profunda
e dispersiva, apparece a casa de Aviz. Entre a rebeldia
popular, a hesitação duma burguesia desorientada e a tra-
hição da nobreza, o Mestre de Alviz retoma o fio que
devia conduzir a ascenção lusitana e, apoiado na espada
de Nuno Alvares, coHoca o paiz na ordem de acontecimen­
tos que marcou a sua decidida affirmação nacional. Por­
tugal formara, nos annos da dynastica borguinhona, um
processo complexo de producção, uma estructura sogioge- •.
nica bem caracteidsada. Era uma nação. A sua burgue­
sia se fortalecera no commercio e concentrara-se nalguns
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centros adeantados. Submetter-se ao dominio de Castel-
la significa dispersar e destruir toda essa construcção eco­
nômica. Por isso 0 Mestre, quando se decide pela luta e
reune os que o desejam seguir, encontra ao seu Jado a
burguesia commercial do Porto e de Lisboa, e delia tira os
homens que vão formar o seu governo. João das Regras
é 0 chanceller. O mercador inglez Perceval é o thesou-
reiro. A resistência á absorpção castelhana obriga-o a
completar essas providencias. Repellido o inimigo exter­
no, restava conquistar o paiz. E essa dynastia, que não
Be fundava na tradição, mas surgira dos acontecimentos
como solução portugueza ao conflicto em que perigava
0 seu nacionalismo, dá nova foim a á sociedade do paiz,
desde que, na luta com o estrangeiro, o que perigava não
era apenas a própria independencia mas a estructura so­
cial precoce em crise de crescimento. Cabe, entretanto, ao
rijo pulso de D. João II anniquilar as forças adversas qne
tentaram levantar-se no complexo organismo duma nação
onde a luta externa e a luta interna porfiam-se em subver­
ter os seus fundamentos. Da luta contra Castella sur­
ge, mais forte e mais progressista, a burguesia das cida­
des marítimas e commerciaes, alicerce em que se apoia
a formidável expansão marítima assignalada depois do
reinado do Mestre de Aviz. Portugal encontra, para a
conquista de novos mundos, uma oi’ganisação economica
apta a resistir a essa especie de distensão no espaço.
Quando D. João II sobe ao throno encontra, deixada
pelo pae, uma situação que é necessário consolidar. A
conquista dos mundos novos se iniciara ainda com a luta
interna e, para poder attender ás novas posses, é impres­
cindível uma ordem, interior bem assentada. Elle se ori­
enta no sentido de fiim ar o poder reál e reerguer a eco­
nomia da nação. Reduz o poder dos alcaides, relegando-
os á condição de simples delegados do throno. Revoga
as doações patenias. Repríme as regalias da nobreza.
Reune as cortes em Evora e, apoiado na burguesia com-
^ mei'cial que prospei’a com a colonisação de terras novas,
■’/<- inagura o absolutismo.
A capacidade expansionista de Portugal nasce, em
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primeira instancia, da sua unificação precoce, quando nas
demais nações prosegue a luta entre a monarchia e o
feudalismo. A centralisação do poder, que corresponde
a uma centralisação de riqueza, comporta essa arremet-
tida extraordinária, unica na historia dos povos, em con­
dições inteiramente peculiares e capaz dum desdobramento
verdadeiramente prodigioso. E ’ verdade que, na obra de
colonisação, essa mesma grandeza resultante de uma for­
mação precoce, vae resentir-se de meios para orientai’
uniformemente a conquista, cousa que, nos paizes de in­
tegração mais lenta foi possivel e realisavel.
O desenvolvimento notável da cartographia, a des­
coberta de instrumentos de navegação, a influencia pon­
derável dos arabes que se haviam notabilisado por uma
larga cultura mathematica, fornecem os meios necessá­
rios á expansão commercial apoiada na burguesia das ci­
dades maritimas e commerciaes. Ainda no inicio do sé­
culo XV, Perestrello descobre a ilha de Porto Santo. Con­
quista-se a Madeira. Inicia-se o ensaio feudal das capi­
tanias. Plantam-se a canna de assucar e a vinha. En­
tra-se no conhecimento do livro de Marco Polo e dos map-
pas dte Valseca. Gonçalo Velho Cabral descobre imia
das ilhas dos Açores. Gil Eannes dobra o cabo Boja-
dor. Os horizontes maritimos se alargam. Nos mela­
dos do século, Antão Gonçalves traz para o reino os pri­
meiros escravos e o primeiro ouro. Já Baldaya desco­
brira o rio do Ouro. Lançarote, depois de Antão Gon­
çalves, funda uma companhia em Lagos. Inicia-se a ca­
ça ao negro e a busca ao ouro, em terras da África. A
ansia de descobrimentos fáceis conclue por uma diminui­
ção no trabalho do branco. Diniz Dias descobre a Guiné
e Cabo Verde. Nicolau V, senhor da christandade, dá
a D. Henrique a posse de todas as descobertas ao longo
da costa africana. Cadamosto descobre a Gambia. João
de Santarém descobre a Costa da Mina e as ilhas de S.
Thomé e Principe. Diogo do Cão descobre o Congo. Bar-
tholomeu Dias dobra o Cabo das Tormentas. Prepara-
se uma expedição para ir a índia e escolhe-se Vasco da
Gama para commandal-a. Essa expansão portentosa in-
2 0
flue, necessai-iamente, na physionomia da sociedade por­
tuguesa e no caracter da sua gente. A continua ascen-.
ção histórica de Portugal, desde as lutas contra o sar-
raceno e a refractariedade á absorpção castelhana, desde
a unificação do poder real á transformação das institui­
ções, vae soffer o primeiro abalo, representado, justamen­
te, pelo descomedimento na distensão. A facilidade da
conquista como que se reflecte no animo da gente aven-
turosa e brava que a fizera. O ouro e a ansia cobiçosa
dos seus conquistadores, ameaçam quebrantar o animo
frugal, a resistência, a aptidão para o sofrimento phi-
sico, para a adversidade, apanagios dos primeiros nave­
gadores. Portugal encontra-se numa encruzilhada da
sua existência. A projecção histórica, indicada por uma
cui*va ascencional, encontra o seu ponto critico.
CAPITULO III
A imprensa em Poiiaigal quinhentista
— A Universidade — A Inquisição — A
língua — Gil Vicente e Sá de Miranda —
Medievalismo e humanismo — De Bemar-
din e Damião de Góes — Camões.

Quando, na segunda metade do século XV, Guten-


berg inventa a imprensa, os padrões humanisticos da Re­
nascença já iam devassando a bruma medieval. O pri­
meiro homem do Renascimento será, por ceito, o Dan-
te. A volta ao humanismo, a exumação dos padões clás­
sicos, é visivelmente marcada pela formação dos idiomas
e abandono do latim. Para transmissão de idéas,.para
a pi’opagação dos nossos impulsos ethicos e estheticos, a
imprensa havia de contribuir consideravelmente. Do
valle do Rheno ella não tardou a espalhar-se por toda a
Europa. Surge em Roma, em 1467. Appai’eceu em Pa­
ris, em 1469, com Martinho Crantz e Miguel Fidburger,
de Colmar. Em Veneza, João Spira obtem do Senado o
privilegio para exex’cer a sua arte. Em Nápoles, em
1471, Sixto Riesingei-, padre sti'aburguez, publica um li­
vro de direito. Florença e Bolonha são dotadas do novo
processo de expansão das ideas. A typographia italiana
desenvolve-se e logo se estende por doda a Europa. Em
fins do século já todas as cidades importantes tinham a
sua imprensa. Ella surge, em Budapest, com Coi^vino; em
Oxford, com Thierry Rood; em Praga; em Vienna. Em
1480 publica-se, em Londres, o primeiro livro impresso.
Por essa mesma época, surge em Portugal, em Faro,
a grande invenção. Década e meia antes do fim do sé-
2 2
culo, publica-se, em Lisboa, o “Caminho da Vida” de Ja-
cob ben Ascér. Em Leiria, annos depois, vem á luz a
edição dos “ Prophetas Primeiros” . Os primeiros typo-
graphos são Samuel Forteiro, Tzorba, Rabban e Zacuto.
A gande fonte de disseminação de pensamentos é, en­
tretanto, a Universidade. A refractariedade de Portu­
gal ás influencias essenciaes do feudalismo nota-se até
nesse ponto. Quem funda a Universidade, em Lisboa, é
D. Diniz, justamente aquelle que tivera uma educação feita
sob a orientação de mestres estrangeiros ou mestres por­
tugueses educados fóra das terras nacionaes. Os seus
preceptores são Domingos Jardo, Aym eric de Ebrard e
outros. Não se faziam sentir em Portugal as influenci­
as intellectuaes que o medievalismo vinha elaborando. E,
como veremos mais adeante, o proprio humanismo renas­
centista encontra difficuldade para penetrar o isolamen­
to lusitano, isolamento que, longe de ser, como parece á
primeira vista, um erro ou um mal, contribue para a in­
tegração nacional e dá linhas bem destacadas á formação
das instituições.
A Universidade surge, em Lisboa, em fins do século
X III. D. Diniz solicita o indulto apostolico para a sua fun­
dação. Vem o indulto, quasí dois annos depois, e esco­
lhe-se o sitio da Pedreira, no bairro de Alfama, junto ás
portas da Cruz da Moeda Velha, para a sua installação.
Ahi se ensinavam, segundo resam as chronicas, leis, câ­
nones, grammatica, lógica, medicina e, mais tarde, musica.
N o inicio do século X IV transferiu-se a Universidade pa­
ra Coimbra, por bulla de Clemente V, ficando sob a pro­
tecção de S. Vicente Martyr. No convento de Santa
Cruz accomodavam-se as duas faculdades de theologia e
artes. A s de medicina, jurisprudência e decretaes, eram
ensinadas numa casa junto á ponta de Belcouce. Não se­
ria definitiva, porem, a localisação da Universidade á mar­
gem do Mondego. Esta alternaria oom Lisboa a sua
séde, até quasi os meiados do século X VI. Ainda em
Lisboa, o infante D. Henrique é o seu protector. Dôa-
Ihe casas que compra á própria custa, “ contanto que se
estabelecessem nella aulas de Geometria e Astronomia” .
2 3
0 pensamento portuguez soffre, entretanto, uma das
influencias mais notáveis do tempo, influencia poderosa
e pouco estudada, moldando certos defeitos peculiares ao
do colonisador, promanada da Inquisição.
A obra de Herculano sobre o assumpto é exhaustiva.
Analysa certos acontecimentos, que, sem a sua conscien­
ciosa pesquisa, ficariam no olvido. Mas resente-se de
falha quando deixa á margem, justamente, o ponto cri­
tico, a face mais interessante da acção inquisitorial — a
influencia que a instituição podería ter tido no genio, no
temperamento, na evolução da mentalidade lusitana.
Não se sabe ao certo si, ao tempo de D. Diniz, exis­
tia já Inquisição em Portugal. Herculano não é adver­
so á hypothese, apoiando a sua opinião na bulla de Cle­
mente V ao marido da rainha a respeito do famoso pro­
cesso dos templarios, que tanto agitaria a politica do rei­
no. O que parece provável, porem, é que si existia, não
tinha o caracter permanente e organisado que possuía em
Hespanha, onde se estabeleceu, definitivamente, ao tem­
po de Fernando e Isabel, embora agisse desde muito an­
tes, como 0 comprovam os autos de fé de Aragão. A cor­
rente de judeus hespanhóes é expulsa para Portugal, pela
Inquisição, o que provoca neste paiz um augmento da ri­
queza. Com 0 casamento de D. Manuel, porem, os judeus
são enxotados de Portugal.
A Inquisição em Portugal, foi certamente muito mais
politica do que religiosa. Era um instrumento do poder
real, mais do que dos guardadores directos da fé, ao ser­
viço de causas econômicas que, em ultima analyse, aca­
baram por enfraquecer a nação.
A sua influencia no genio portuguez, transmittida
ao Brasil pelo colonisador, merece menção. Capistrano
de Abreu já apontava no gosto tão brasileiro pela ane-
cdota obscena, na curiosidade pelos viajantes estrangei­
ros, notadamente Saint-Hilaire, no espirito metediço e
inexeriqueiro, a transplantação, para a nossa terra,
de um dos traços peculiares que a pressão inquisi­
torial imprimira ao caracter lusitano. Opprimido pela
fiscalisação, o reinól desabafa-se na inclinação accentua-
24
da pai'a a conversinha miuda, para a curiosidade insatis­
feita, j)ara a anecdota picante e a intriga.
Canalisado por essas influencias, enquadrado na or-
ganisação das instituições do tempo, o pensamento poi-
tuguez modela o seu instrumento de expressão, a lingua,
e dádhe um sabor unico entre as derivadas do mesmo
tronco. Como o castelhano, o catalão, o provençal, o fran-
cez, 0 rumeno, o italiano, o valacliio, o portuguez deriva
fundamentalmente do latim espalhado no mundo antigo
pelas legiões romanas. Latina é a sua morphologia e de
origem latina é a maioida do seu léxico. O largo processo
de transformação que dá a fórma analytica ao idioma syn-
thetico que era o 'latim, soffre em Portugal influencias
bem dispares. Os mais antigos documentos escriptos em
portuguez, que se conhecem, são uma noticia particular,
sem data, attribuida ao tempo de D. Sancho I e uma no­
ticia de partilhas dos fins do século X II. O testamento
de D. Affonso II, de 1214, é escripto em portuguez; no
reinado de D. Affonso III surgem vários documentos es­
criptos na lingua vulgar e, ide 1334 em deante, o seu uso
se torna geral. A influencia celta, como a gi'ega, são
pouco sensiveis no portuguez. A geimanica é ponderá­
vel e a arabe de muito valor. A franceza apparece mui­
to cêdo. Com effeito, a prepondei^ancia intellectual da
França sobre o mundo christão surge desde o século XII,
com a vulgarisação das tradições poéticas da Bdade Mé­
dia.
Os estudiosos da lingua costumam dividir a sua for­
mação em tres períodos distinctos: o de elaboração até a
constituição da linguagem escripta, notando-se a influ­
encia de elementos latinos, celtas, phenicios, gennanicos
e arabes; o syncretismo, em que a lingua começa a ser
escripta, e o periodo final de disciplina e unificação. O
período de disciplina coincide com a phase seiscentista.
Apparecem as grammaticas de Fernão de Oliveira e João
de Barros. O humanismo renascentista ti'az um gosto
pelos latinismos, bipartindo a lingua em popular e eru­
dita.
O carecter essencial da literatura portugueza de
2 5
origem é o seu lyrismo, a sua doçura, a sua sentimenta­
lidade. Prestava-se á expressão das lendas e tradições
poéticas ;do medievalismo. Em portuguez fôram escri-
ptas as canções de amor dos poetas de toda a Ibéria. Os
primeiros modelos do romance pastoral são portuguezes.
E ’ considerável a contribuição da poesia popular lusi­
tana para o desenvolvimento do Cancioneiro. A té os
fins do século XIV, o gosto provençal domina a literatu­
ra portugueza. Dahi por deante as influencias são re­
ciprocas entre as partes da Ibéria. O século X V I marca
0 triumpho do classicismo. Essa influencia não trium-
iphou sem difficuldade, porem, e vamos assistir á resis­
tência do medievalismo portuguez, personalisada em Gil
Vicente, lutando contra o predominio clássico provindo
da Italia e trazido por Sá de Miranda.
A refractariedade de Portugal ás influencias exter­
nas encontra no Auto de Gil Vicente a sua vigorosa ex­
pressão. Não é sem contraste e sem resistência que as
ponderações do classicismo penetram a lingua e a litera­
tura lusitanas. O contraste entre o gosto medieval, re­
presentado pelos dois Gi! Vicente, o escriptor e o ourives,
e 0 gosto renascentista, que luta por se introduzir na
lingua e nas artes lusitanas, enchem largo periodo da his­
toria literária peninsular. Gil Vicente, o poeta, dá fôr­
ma literaria aos typos populares do theatro da Edade
Média e sustenta a luta contra os eruditos que, com a
imitação da comédia classica, amesquinham os autos. O
auto, de Gil Vicente, é a representação literaria das tra­
dições medievaes. Marca uma época, mas é um momen­
to de transição. Quando por fim prevalece o gosto clás­
sico, trazido por alguns portuguezes viajados, entre os
quaes figurava, em primeiro logar, Sá de Miranda, o que
acontece não é mais do que a derrota inevitável ante a
invasão da cultura dominante no tempo. Depois do au­
to vicentino, domina, sem obstáculos, o humanismo re­
nascentista. Em torno de Sá de Miranda agrupam-se os no­
vos talentos portuguezes. Reagindo contra a fôrma do
auto medieval, os cultores do classicismo impõem a nova
corrente á litei-atura em fom ação e enquadram a lingua
y-

2 6
no movimento europeu. Bernardin Ribeiro, Damião de
Góes, Diogo do Couto, são os vultos mais eminentes des­
sa phase de transição. Algumas obras são ainda escri­
tas em latim. A lingua passa por uma transformação mui­
to rapida. Pedia o genio que compuzesse, nesse instru­
mento ainda impreciso de expressão de vida e emoções,
0 momento definitivo. O obreiro extraordinaiúo surge
com Camões. Na sua obra a lingua adquire resonancias
poderosas e profundas. Grande lyrico, elle tira delia to­
dos os recursos com que já se haviam adornado as tradi­
ções poéticas do medievalismo. E’pico divino, servir-se-
ia delia para immortalisar as façanhas prodigiosas do
espirito portuguez. Sobre a “pedra angular” da épopéa
camoneana o portuguez se tonia um idioma dúctil e poly-
phonico. Deixa a infancia, assimila as influencias mais
diversas e toma a feição de obra acabada.
C APITU LO IV

Brasil — A terra — Expansão coloni-


sadora no litoral — O indigena — Seus usos
e costumes — Caracter da civilisação do pri­
mitivo habitante do Brasil — O jesuita —
Primeiros fócos da expansão linear — A fei-
toria.

Não interessa precisamente á Historia conhecer si


0 europeu tinha noticia da existência da terra brasileira
antes do anno de 1500. Também não muda nem affecta
a marcha dos acontecimentos a contenda especiosa sobre
si essa terra foi descoberta pela armada cabralina com
um proposito deteminado ou simples obra do acaso. N a
chronologia brasileira, comtudo, como alguém já affirmou,
a primeira data é a da chegada da frota portuguesa que
demandava a índia. E ’ o ponto de paii-ida, o marco de
referencia. Nada mais.
A idéat que, sobre a terra, formaram logo os desco­
bridores, era falsa. Acreditaram que se tratava de uma
ilha, e como tal a tiveram por alguns annos aquelles a
quem a nova do desbrimento foi transmittida. O pri­
meiro documento da vida brasileii'a não podia deixar de
ser a carta do escrivão da frota. Pero Vaz de Caminha
escreve o prefacio duma literatura que, si não pudemos
chamar nitidamente de brasileira, foi pelo menos inspirada
cm motivos bi'asileiros.
A linha da terra, o perfil da curva que tocava o
oceano, tinha, precisamente, quanto podia ter para o tem­
po, a sua representação no mappa de Cantino, em 1502.
Esse perfil surgiría das expedições successivas que aqui
2 8
aportam, não com o desejo de permanência e enraizamen­
to, mas de posse e policia. Apparece Américo Vespuc-
ci. E vae baptisando os accidentes da costa. Essa no­
menclatura encerra a mentalidade do tempo. Já a terra
tivera um nome christão: Vera Cruz. Os accidentes íreo-
graphicos, mencionados pelo aventureiro florentino, obe­
decem, de enfiada, á terminologia religiosa: S. Roque será
0 cabo, S. Francisco o rio, de Todos os Santos a bahia,
das Reis a angra, e assim por deante. Em 1503, nova
expedição, com Gonçalo Coelho. Funda-se uma feitoria
em Cabo-Frio.
A s expedições posteriores não têm outia finalidade.
Aportam, fazem aguada, e seguem. Nada de perduravel
deixam. Não os anima cousa alguma dessa terra que
pouco conhecem e de cujos recursos não esperam muito.
O unico atiactivo é a madeira. Para se abastecerem
delia chegam navegadores de diversas nações. A sua pas­
sagem deixa poucos vestigios. Afloram o üttoral, numa
approximação fugaz, mas desse primeiro contacto surge
a cellula da colonisação, o seu primeiro ensaio: a feitoria.
A expansão do Brasil primitivo é puramente lineai'.
A feitoria é o ponto gerador da linha que, percon'endo o
littoral, numa faixa muito estreita e comprida como a pró­
pria costa, será a pontuação da fileira indiana em que se
apresentam, ainda hoje, as grandes cidades brasileiras, os
nossos grandes centros de vida e civilisação. E a nossa
historia poderia ser escripta em poucos capitulos, em par­
cos episodios: Feitoria, Capitania, Provincia, Estado. Do
grupo de homens abandonados, é bem o termo, numa en­
seada propicia, para cmtar a madeira e ajudar o carrega­
mento nas passagens futuras da mesma embarcação; do
conjuncto de esperanças perdidas e unificadas ao calor da
selva e á brisa do mar vae surgir, por uma distensão pode­
rosa e immensa, seguindo a direcção da mesma linha, para
sugeitar-se, muito mais tarde, á geometria de duas dimen­
sões, quando tentarem a penetração; vae surgii-, diziamos
nós, 0 cerne da nacionalidade, o núcleo cujo desdobramen­
to pela terra que não se supunha tão grande, assegurará a
Portugal um predomínio maravilhoso.
2 &
0 primeiro contacto do homem europeu com o habi­
tante da terra virgem não padece contrastes violentos,
não chega a ser um choque. O indio espanta-se mais do
que se molesta ante o apparecimento do futuro invasor.
A sua attitude, longe de ser hostil, é de reserva simples
e indifferente, curiosa mas não adversa, ao contrario do que
succede na America espanhola. Quando Cortez e Pizarro
pisam a nova terra, o que se lhes depara é uma civilisação
adeantada, com características definidas. Havia naquel-
)es dois núcleos em que o espanhol surgiu, um agrupamen­
to humano seguro do seu destino e conscio da sua força.
Para 'dominal-o e, sobre as ruínas dessa civilisação, edifi-
car a sua civilisação, ou melhor, applicar-se como ventosa
extorsiva ás fontes inexhauriveis da gleba descoberta, se­
ria necessária a luta sem tréguas, a destruição irnplacavel
e o anniquilamento. O inca, como o azteca, jamais seri­
am escravos do invasor, jamais seriam assimilados pela
sua fúria depredadora e cobiçosa.
Para dobral-os seria preciso vencel-os. E a penetra­
ção se escreveu a ferro e sangue.
No Brasil, o panorama em totalmente diverso. Não
que 0 portuguez fôsse mais humano, ou menos bravio. Elle
demonstra, na conquista da índia, a mesma ferocidade que
não lhe era traço particular, mas a moral dominante da
época. Si a penetração littoranea, o desembarque nas
praias das enseadas, o contacto primeiro, não se revestem
da brutalidade hispanica, é porque, em primeiro logar o
ouro não surgiu inicialmente como objeotivo dos navega­
dores; em segundo, porque não havia uma civilisação da
terra a oppôr-se intransigentemente á civilisação adven-
ticia. Caramurú, João Ramalho, Martins Soares Moreno,
são acontecimentos plausíveis numa terra como a de Vera
Cruz.
0 indio se distingue em dois agrupamentos. O tupy
dominando o littoral. Para o interior, o tapuya, o barba-
ro, o nômade, incapaz de qualquer progresso, ainda o mais
rudimentar. Do tupy alguma cousa subsiste. Elle dei­
xa nos usos do colonisador primitivo certos hábitos. Pes­
cava e caçava. Construía casas rudes. Cultivava a terra.
3 0
A sua ornamentação tem alguma cousa de característico.
E ' mais dccil e mais apto. O tapuya, ao contrario, pre­
fere a vida errante. Só os sedentários constróem e dei­
xam vestígios. O nomadismo do tapuya não lhe permit-
tiu deixar algo de si. Não se afeiçôa á agricultura. Mais
guerreiro do que outra cousa, distinguir-se-ia pela maior
aptidão no uso das armas e por uma hostilidade impla­
cável, surdo rancor e indomita insubmissão. As lutas
fôram travadas, geralmente, contra esse erradio senhor
da selva.
O traço de união entre o indio e o portuguez é esta­
belecido por um elemento novo na vida da colonia, que de­
sempenhou relevante papel na primeira phase de expan­
são: o jesuita. As suas missões se afeiçoariam á exis­
tência brasileira. Com a sua constancia sem desfalleci-
mentos, per-severança e saber, abnegação, soffrimento e re­
nuncia, attenua um contacto que nem sempre foi genero­
so e doce, preservando quanto possivel a brutalidade e a
aspereza dos colonisadores.
Quando Portugal resolveu cuidar do aproveitamento
commercial da terra que um dos seus navegadores desco­
brira, e ultimou as medidas para prevenir as continuas
incursões de commerciantes extrangeiros num littoral que
era seu, agitava ainda o reino o sonho da índia. A índia
era a realidade palpavel, o lucro fabuloso, o thesouro inex-
haurível. O Brasil seria, quando muito, uma promessa.
Mas o estimulo, a emulação, a ui'gencia de ganho, po­
riam a metropole na necessidade de fazer alguma cousa
pela terra nova. Porisso vêm as esquadras de 1516 e de
1530. Costeam o perfil littoraneo. Vão deixando mui­
ta cousa de si. Martim Affonso manda levantar casa fo r­
te no Rio de Janeiro. Envia Pedro Lopes ao Rio da Pra­
ta. Funda a colonia vicentina, “a porta do Brasil” como
a chamaida alguém. Surgem feitorias mais prosperas, na
Bahia e em Pernambuco. Diogo Leite marca a costa do
Maranhão. Apparece o primeiro engenho de assucar, em
S. Vicente. Cultiva-se a canna em Pernambuco.
A perseguição ao judeu, após o casamento de D. Ma­
nuel, encaminhou para o Brasil a corrente dos mercadores
3 1
iaraelitas que haviam de estimular poderosamenite o com-
mercio da canna de assucar, dariam impulso muito grande
A economia incipiente da colonia, estabelecendo-se definiti­
vamente na terra. São estes os elementos heterogeneos
que formam inicialmente a população brasUeira: judeus e
jesuitas, Índios e marinheiros.
Apezar do seu ensaio frusto, as capitanias hereditá­
rias não foram uma excepção uiuficadora e centralisadora
na politica portugueza. Effectivamente, Portugal gover­
nou sempre a terra nova dentro dum critério uno e seguro.
Os governadores eram delegados da vontade real. Os seus
poderes são limitados. Quem resolve, quem nomea,
quem demitte, é o rei. Dessa fôrma se conservou a co­
lonia, mesmo no interregno da dualidade de governadores,
sob a vigilância attenta da metropole, centi-alisação acon­
selhada por uma lógica e clarividente politica. A capi­
tania não tinha fundos. Estendia-se na beira do mar. Para
0 interior nada especificava a sua dimensão, desde que a
linha do tratado luso-espanhol já fôra burlada por Mar-
tim Affonso. Teria sido talvez, uma sorte para o Bra­
sil o fracasso da capitania. A unidade favorecería mais
os seus impulsos, polindo certas arestas naturaes numa
tão grande extensão, ordenando, sob um denominador com-
mum, a marcha dos acontecimentos e as doações da be-
nemerencia real.
Desfeita a tentativa semi-feudal da divisão em capi­
tanias hereditárias, era necessário ultimar os aprestos para
uma colonisação mais vigorosa, principalmenté mais pro-
ductiva segundo o pensamento portuguez, enfraquecido
nas suas qualidades mestras de sobriedade e resistência,
pela conquista da índia. Transfomara-se a metropole
numa immensa e unica empreza commercial em que a
ganancia sem freios a todos confunde, sob a bandeira do
trafico ultramarino, numa furia que só encontra parelha
no luxo generalisado e no deperecimento dos valores pri­
mitivos.
Para isso surge Thomé de Souza, na Bahia de To­
dos os Santos e lança, quasi de improviso, a capital do
Brasil colonial. Surge uma cidade, a primeira villa bra­
3
sileira, subitamente, destinada a centralisar todos os im­
pulsos da terra, congregar todas as energias e vigiar a
sua vitalidade pi'odigiosa. Trezentos e vinte homens de
armas traz Tliomé de Sousa, que são trezentos e vinte
agricultores. Quatrocentos degredados fom aram o ter­
ceiro Estado — a plebe. Fortifica-se a cidade, chama­
da do Salvador. Com a expedição do goveimador, chega
também a primeira leva de jesuitas, chefiada por Manuel
da Nobrega.
As feitorias, em que as almas penadas de portugue-
zes, deixados pelas esquadras anteriores, se accomodavam
á nova ordem de cousas, não possuiam communicação fá­
cil entre si ou com a nova capital. Isso fixaria o elemen­
to extrangeiro e favorecería a sua radicação. Prevenia-
se, assim, a fuga, o desanimo, a nostalgia. Quem vinha
para o Brasil, desligava-se dos pátrios lares. Era um
homem novo, para uma ten'a nova.
O jesuita daria linhas suaves, iniciando-a numa cul­
tura rudimentar, a essa sociedade heterogenea e exilada.
Approximaria o indio desconfiado do casario da cidade
surgida, de repente, na linha do mar, junto á selva, ajudan­
do a construir o Brasil.
C APITU LO V

Desenvolvimento da lavoura da canna de


assucar — Expansão do gado. Penetração
pelo S. Francisco — Apparecimento do ne­
gro — O trafico — Raça — Influencias no­
vas sobre a lingua trazida de Portugal —
Anchieta, o primeiro escriptor — Bento
Teixeira Pinto — Portuguezes que escreve­
ram sobre cousas do Brasil.

0 Brasil nasceu sob o signo da unidade. Foi uno


em ,seu governo, delegado da vontade real. Foi uno em
sua lingua, moldada sob diversas novas influencias que
a suavisaram, que a tomaram mais expressiva, na escri-
pta e na pronuncia. Os pontos propicios á distensão li­
near, perlongando a costa, tal como as naves a haviam
percorrido, baptisando com nomes tirados ao calendário
catholico os seus accidentes, iam desenvolver-se ou estio-
lar-sc. Subsistem aquelles que, apoiados na lavoura da
canna de assucar, conseguem um surto economlco relati­
vamente notável.
A canna de assucar, como o ensaio mallogrado das
capitanias, nos veio da Madeira. Aippareceu em Pernam­
buco e S. Vicente, com successo. Foi devorada pela sanha
do indio em outros pontos, quando o rei destinou a terra
ao donatario e o deixou entregue aos proprios recursos. Os
que haviam gasto com a acquisição de utensilios e cons-
truido engenhos, viram-se arruinados. Mas Pernambuco
e S. Vicente subsistiram. E a lavoura da canna de as­
sucar iria supportar essa resistência á dispersão e ao an-
niquilamento fazendo desses dois pontos os maiores focos
da colonia.
3 4
0 desenvolvimento foi tôo intenso, mercê das con­
dições excepcionaes do sólo, que logo se formou, em Per­
nambuco, uma organisação commercial poderosa. Entra­
va-se a exportar a mercadoria. A Europa acceitava^a.
Penetra na Plandres, na França, em quasi todas as nações
conhecidas. E, sobre essa expansão feliz e rapida, en­
saia-se o commercio brasileiro, ainda em mãos extra-
nhas, é bem de ver, mas denunciando já o que a terra po-
deria produzir. Substitue. paulatinamente aquillo que
a índia começava a negar, O surto brasileiro coincidia
com 0 declinio da penetração no Oriente. Creavam-se
grandes fontunas e com ellas uma palida aristocracia, classe
de pretensos fidalgos que desce até a Bahia. O engenho é
a mola real da vida brasileira. A vida em Olinda, sur-
prehende pelos hábitos de luxo dos seus habitantes; e
a pobreza dos adventicios contrasta com esse vertigi­
noso surto de riqueza e com a rapida formação duma
sociedade de usos tão chocantes na selva obscura e lon­
gínqua.
Em S. Vicente, os colonisadores já haviam subido
a serra e plantado, no chão do planalto, o quadrado de Pi-
ratininga. O movimento geographico que, ao longo da
costa e pouco afastado delia, marcava uma linha con­
tinua, toma-se barreira intransponível aos aventureiros
que devastavam a littoral e surgiam, de quando em vez,
defronte a um porto desprotegido. Piiatininga, pondo
entre o seu casario e essas incursões a muralha da ser­
ra, toma coipo no altiplano, á beira duma estrada movei
t rolante, sussurrante e cheia de fascinio, o Tietê.
O gado veio pouco depois e o seu desenvolvimento
não se assignala por um progresso tão rápido. Foi mais
lento. Não produziu o fausto e os punhos rendados, não
deu reuniões á moda da Europa, mas propagou-st com
uma continuidade espantosa. Em breve, os rebanhos enor­
mes penetiavam a caatinga, desciam o curso do S. Fran­
cisco, entrando pelo sertão. Era a civilisação do couro,
como a denominou Capistrano sempre lúcido, juntando aos
marcos evolutivos o nome do instrumento de trabalho
ou a fonte da riqueza commum.
3 5
A expansão do gado produziu no Brasil um dos phe-
nomenos mais interessantes da nossa vida sociail. As fa ­
zendas, ou melhor, os latifúndios immensos, sem limites
precisos, que surgem da penetração dos rebanhos, são
como que a fuga á autoridade, i>or parte dos homens de­
dicados a esse mistei', descentralisação que, annos mais
tarde, como resultado natural, quando houvesse necessi­
dade de centralisar, produziría um desequilibrío, um cho­
que quasi traumático e não deixou de ter uma influencia
profunda e inconsciente na formação da mentalidade que
precedeu e fez amadurecer a Independencia.
O gado traria, na sua penetração pelo S. Francisco,
a descoberta duma das vias de accesso que desempenhou
papel dos mais importantes na nossa formação. O S.
Francisco, como via natural para o centro, liga as duas
partes do paiz, congrega os homens, põe em contacto dois
aspectos da nossa civrlisação, para que se comprehendam
pelo conhecimento reciproco, procura fundir num deno­
minador unico os anseios da nacionalidade bruxoleante.
Cultura de fixação, entretanto, a canna de assucar
exige braços. O indio não serve. O trabalho obrígato-
rio, o sedentarismo, a brutalidade do eito não o sedu­
ziam; mas foi, mesmo assim, o elemento utilisado. Ha­
via necessidade de cultivar a terra, pois a lavoura co­
meçava a apresentar resultados espantosos. Era preciso
incremental-a e a incrementaram preando o incola, obrí-
gando-o a lavrar, sujeitando-o ao trabalho. Viu-se porem,
que a situação em breve seria insustentável.
Um dos homens mais lúcidos do tempo da colonisa-
ção não teve melhor idéa do que solicitar do rei permis­
são para o trafico africano. E, contingência economica
sem a qual não havería Brasil, surgiu a escravidão ne­
gra, que enchería, por largos annos, a nossa historia e
traria, para a formação da raça, da lingua, do caracter
da gente, numa palavra da nossa sociedade, um novo ele­
mento, logo fundido na luta obscura que, por toda a ex­
tensão da terra brasileira, se ia processando. Elles vie­
ram da Guiné, do Congo, de Angola, vendidos pelos so­
bas boçaes e gananciosos aos preadores portuguezes.
3 6
Constituia o seu trafico o mais rendoso commercio da
época, proporcionando lucros fabulosos. Mas a margem
de lucro que Vasco da Gama conseguira na índia ultra-
< passa o commercio de rezes humanas, necessidade que
não mediu consequências e jamais se sugeitou a quaes-
quer imperativos sentimentaes. A moeda com que se
compravam os braços para a lavoura brasileira, engran­
decendo a terra e dando á colonia nova physionomia so­
cial, era o buzio, ou o rolo de fumo.
Sobre o numero de negros introduzidos ha divergên­
cias profundas. Não importa. O facto é que a impor­
tação de negros foi enorme. A população negra entrou
a predominar, em certos logares, de maneira quasi absoluta.
Era um novo corpo social que, posto deante do outro, ain­
da na infancia, iria influir poderosamente na nossa for­
mação e maturação, deixando os traços vivissimos da sua
passagem, integrando-se na sociedade dominante, offer-
tando-lhe a sua magia e o seu sonho, os seus temores in­
fantis e a sua molle sentimentalidade. Os tres elemen­
tos iniciaes da raça se fundiriam de maneira rapida, como
em nenhuma outra terra se viu. Conjugar-se-iam para
a busca dum typo que não pode ter a pretensão de ser
um padrão de raça, mas seria affectado de qualidades pe­
culiares á terra, amoldando-se ao ambiente donde tirava
a riqueza.
O negro trouxe, para a lingua, como para a mesti­
çagem, um cabedal immenso. Inundou-a com a sua ter­
minologia, afeiçôou-a ás suas necessidades, modelando-a
em padrões novos. O elemento branco, longe de impor a
sua civilisação e seus hábitos, teve a necessidade, preci­
samente feliz, de adquirir os hábitos da terra, de adaptar-
-se á sua vida, ambientar-se e não procurar, com um cho­
que de consequências imprevisiveis, aggravar as condi­
ções do meio. Do indio e do negro, assimilou muito, as­
similou um inundo de cousas, espirituaes e materiaes.
A surprehendente humanidade do jesuita se traduz
na sua attitude para com o elemento indigena. Procura
attrahil-o. Estuda a sua lingua. Impõe-lhe persuasiva-
3 7
mente a sua religião. Busca fundil-o na massa hetero-
genea que surge duma gestação accelerada.
Dessa conformação com a nova vida e o ambiente
brasileiro, surge o nosso primeiro escriptor. Sylvio Ro­
meno classificou-o, com o seu dogmatismo, neste caso
feliz, 0 marco inicial. Ronald de Carvalho acccitou a
opinião do sergipano illustre. Effectivamente, José de An-
chieta é o primeiro dos nossos homens de letras. Elle
não foi, como já se disse, precisamente um humanista. Não
teve aquella cultura de padrões clássicos que caracteri-
sa 0 humanismo renascentista, mas, dotado de muita in-
telligencia e duma rara percepção, chega a ser, na sua in­
genuidade nativa e sincera eloquência, um expressivo re­
presentante do temiK) e do meio em que viveu. Anchie-
ta nasceu em Teneriffe, no anno de 1530. Querem al­
guns que elle descendia de gente nobre e rica. Os An-
chieta, oriundos de Guipuzcoa, teriam emigrado de Es­
panha, ao tempo de Carlos V, devido ás perseguições que
esse rei moveu aos “ Conununeros” . Cursou Coimbra, dos
quatorze aos dezoito annos. Nesta idade frequentou a
Companhia de Jesus. Veio para o Brasil com vinte an­
nos. Iniciou a sua missão em S. Vicente. Dedicou-se á
catechese. Fazia representar os seus diálogos deante do
povo, e o povo daquelle tempo era a indiada e um ou outro
filho dos colonisadores. Anchieta formou, a doze léguas
de S. Vicente, em 1554, o terceiro collegio regular do Bra­
sil. Foi dita ahi u’a missa a 25 de Janeiro, data da con­
versão tie S. Paulo. O logar ficou consagrado ao apos-
tolo. Ao lado do collegio ergueu-se o seminário. Havia
falta de mestres e Anchieta tomou conta de todas as ma­
térias. Ensinou o latim, o castelhano, a doutrina chris-
lã e, mais tarde, a lingua do gentio.
Anchieta merece a nossa admiração por tudo quanto
fez pelo Brasil nascente. Foi a alma de S. Paulo, o de­
fensor da communidade contra a invasão estrangeira.
Animou os colonisadores. Auxiliou-os na penetração pri­
mitiva. Com os seus dotes de persuasão e i>aciencia, che­
gou onde não alcançaria a brutalidade da força. Lan­
3 8
çou, mais adeante, os primeiros alicerces do collejçio dos
jesuitas, na Bahia.
Na solidão da selva escreveu um Poema em louvor da
Virgem Nossa Senhora. Compoz uma A rte de gramma-
tica da lingua mais usada na costa do Brasil. Contribu­
iu para a nossa historia com a Vida dos religiosos da com­
panhia dos missionários no Brasil e com uma Dissertação
sobre a historia natural do Brasil que causou espanto a
Saint-Hilaire. Associou-se aos impulsos iniciaes da ter­
ra que adoptou, perfilhando os ideaes bruxoleantes da
gente que a compunha. Estudou e apprendeu a lingua
do gentio. Foi uma das mais aitas e das mais nobres f i ­
guras da primeira phase da existência do nosso paiz e
contribuiu, como nenhum outro adventicio, para o conhe­
cimento das nossas cousas e integração da nacionalidade.
Nenhuma sorte de adversidade o demovia dos seus pro-
positos. Naufrago, lutando contra os selvagens e os fran-
cezes, contra os impulsos dos proprios donos da terra,
elle teria sempre a animar as suas acções a perseveran­
ça, a infrangivel tenacidade que indica os traços funda-
damentaes de uma natureza superiormente dotada. Com­
punha, em prosa e verso, em latim como em portuguez,
em castelhano como em guarany. Os seus autos e can­
ções, diálogos e orações, possuiam a frescura da gleba que
percorria. Anchieta não foi um commentador amavel,
interprete fecundo dos acontecimentos, um escriptor for­
mado, mas demonstrou, nas producções que delle dos
restam, uma imaginação viva, o gosto do estudo, a ap-
plicação e a assiduidade no trato das nossas cousas, o
prazer no contar aquillo que dizia i-espeito aos nossos usos,
a dedicação que lhe mereceu a lingua do gentio, lingua
que praticou e ensinou e na qual, cêdo, se tomou mestm.
Essa ancia de interpretar aquillo que era peculiar á
terra em que exercia a sua actividade, prova a argúcia
do seu espírito e o aperfeiçoamento constante da sua in-
telligencia. O estylo das suas poesias não será perfei­
to. A escolha dos assumptos não chegará a uma varie­
dade illimitada, antes se atem aos accentos do mysticis-
mo. Haverá uma sorte de rudeza na sua imaginação e
3 9
nas suas composições; mas, para o tempo, foi grande e /
fo i unico. A s suas orações possuiam caioi*, os seus au­
tos tinham frescura de inspiração. Tomemos, como exem­
plo um trecho da oração, em verso, ao santissimo sacramen­
to. Ha nella vivacidade e graça, inspiração e fervor:

Com 0 sangue que derramastes


Com a vida que perdestes,
Com a morte que quizcstes
Padecer,

MoiTa eu, porque viver


Vós possaes dentro de mi,
Ganhae-me, pois me perdi
Em amar-me,

Pois que para incorporar-me


E mudar-me em vós de todo
Com tão divino modo
Me mudaes.

Quando na minh’alma entraes


E d’ella fazeis sacrario.
De vós mesmo é relicário
Que vos guarda.

Anchieta morre em plena missão; seu últimos dias,


passa-os em Irirityba, na capitania do Espirito Santo.
Si a existência toda de Anchieta decorre num ambi­
ente de luta e pobresa, entregue ao mister da catechese,
ao auxilio ao colonisador e á educação do gentio, no nor­
te do paiz ia se formando uma sociedade apoiada na ri-
quesa da canna de assucar, sociedade que apresentava pa­
drões os mais variados, distinguindo-se muito cêdo pelo
luxo e pelo surto rápido de relações imitadas das cortes
européas. O scenario era, também, maior. O gado pro­
vocara uma expansão formidável, a partir da segunda me­
tade do século. A primeira caravella, cai*regada de vac-
cas da ilha de Cabo Verde, chega á Bahia em 1550. Em
4 0
1573 Garcia d’A vila chega a Sergipe. As pontas de ga­
do, segundo refere um historiador, passam o Itapicurú.
Extendem-se pela campina entre o S. Francisco e o Real.
Tocado o valle do rio da penetração, os rebanhos iniciam
a descida ou procuram o interior de Minas Geraes. Eram
os curraes de Pernambuco e da Bahia que buscavam o
sertão. Os caminhos das boiadas ficaram sendo as vias
naturaes de accésso. Refere Pedro Calmon que. em
1600, ”a linha extrema da colonisação passava por Pene­
do, Sergipe, Natuba, Cachoeira, e continuava pela costa
aba’XO, para entrar novamente no sertão, em Angra dos
Reis, TTaubaté, S. Paulo” .
A expansão geographica attinge a segunda dimen­
são, a profundidade. Parte de alguns pontos, onde a la­
voura fixa a riquesa, e demanda o interior, na pista dos
bois, numa dispersão prodigiosa, apoiada sempre nos nú­
cleos que, á beira do oceano, abarrotando navios, produ­
zem 0 desenvolvimento notável do paiz. A producção as-
sucareira attingia um volume inesperado, caracterizando-
se pela extrema simplicidade dos seus processos. O ins­
trumental de que se servia era rústico e tosco. Um novo
typo de moenda, trazido de outras terras, marca promis­
sora etapa na sua evolução accelerada.
Ora, nesses centros, á beira dagua, junto aos pon­
tos de contacto com a Europa, onde se desenvolvia uma
sociedade recente, mas já com prerogativas próprias, de­
vem surgir, necessariamente, os commentadores das nossas
cousas, os narradores dos acontecimentos, os panegyris-
tas da terra. São portugueses, naturalmente, e trazem
uma cultura coimbrã. O nascimento, em todo caso, se­
ria mero accidente na existência desses contadores da vi­
da brasilica. Elles se identificam com a terra, criam in­
teresses locaes apegam-se aos succéssos que a sacodem.
Ao tempo de Jorge de Albuquerque Coelho, gover­
nador da capitania de Pei-nambuco, houve em Olinda uma
sociedade florescente, ávida de reuniões, trajando-se com
certo luxo, o que levou Cardim a escrever que em Per­
nambuco se encontrava mais vaidade do que em Lisboa.
A exportação do pau-brasil produz fortunas immensas.
4 1
Os negros entram em massa para o esplendor das fazen­
das e dos engenhos. Southey refere que, só na ilha de
Haniaracá, no alvorecer do século X V II, havia mais de
trezentos e vinte engenhos.E’ nesse meio que vae surgir
um grupo de escriptores, quasi todos de origem portu­
guesa, dedicados á visão das cousas da terra, conimen-
tando-as, descrevendo-as. Entre elles apparece o primei­
ro brasileiro de nascimento que escreveu sobre os acon­
tecimentos regionaes. Foi Bento Teixeira Pinto, natu­
ral de Pernambuco, “igualmente perito na poética que na
historia” . Das obras que lhe attribuem só não padece du­
vidas que é de sua autoria a Prosopopéa. A Relaqão do
naufragio lhe é contestada. E o Dialogo das Grandesas
do Brasil certamente não foi escripto por elle. Os dra­
mas Rico avarento e Lazaro pobre parecem ser de sua la­
vra. A Relação do naufragio tem propabUidades de ter
sido escripta por quem compunha a chronica do tempo do
governador, do qual era affeiçoado. Fôra seu companhei­
ro na viagem de que resultara o desastre maritimo. Tu­
do indica que Bento Teixeira Pinto fosse mesmo o autor
dessa relação, publicada na portuguesa Historia Tragico-
Maritima. O estylo, entretanto, é claro e directo, ©m-
quanto o da Prosopopéa é algo difficil de se vencer. So­
bre 0 Dialogo, a controvérsia é longa e sem resultados.
Tomaram parte neUa quantos têm estudado as nossas
cousas antigas, o padre Lourenço do Couto, Pereira da
Silva, Joaquim Norberto, Vamhagen, Capistrano. Var-
nhagen sustentou, por muito tempo, a opinião de que o
Dialogo fôra escripto por Bento Teixeira Pinto. Depois,
mudou e hesitou, preferiu opinar pelo provável e não pelo
decisivo. A controvérsia, entretanto, não nos interessa.
Bento Teixeira Pinto tem valor quasi chronologico. E ’
0 primeiro, o numero um, o marco inicial, para muitos.
Foi, effectivamente, o primeiro homem nascido no Bra­
sil que escreveu sobre as nossas cousas. A sua prece-
dencia não é contestada, quando á naturalidade. Anchie-
ta, porem, embora natural de Teneriffe, é um brasileiro
pela feição que deu á sua obra e preoccupação patente em
tudo que compunha, pelo quadro da nossa vida primitiTa.
4 2
, EUe póde, sem receio de contestação, figurar em primeiro
, logar. Bento Teixeira Pinto fica sendo, em todo caso,
um brasileiro, um natural da terra que surgiu num dos
momentos mais interessantes da nossa formação e escre­
veu sobre alguns acontecimentos do tempo, acompanhado
por outros escriptores, portugueses de nascimento que
contaram as suas impressões do ambiente e da gente que
aqui vivia.
Esses chronistas são Pero de Magalhães Gandavo, Ga­
briel Soares de Souza, Femão Cardim e Pero Lopes de
Souza.
Pero de Magalhães Gandavo, natural de Braga, foi
homem versado em humanidades e no latim. Professor
em Entre-Douro e Minho, onde residiu, Gandavo apri­
morou as suas qualidades de narrador. Vindo para o B ra­
sil escreveu uma Historia da Provincia de Santa Cma,
impressa em Lisboa, em 1756, precedida de versos de
Camões, e um Tratado das Terras do Brasil, que só ap-
pareceu em 1826. Foi o primeiro extrangeiro a occupar-
se concretamente das nossas cousas, abstracção feita, na^
turalmente, das narrativas epistolares de Vaz de Caminha
e de Vespuccá. Escreveu, também, uma Regra de orto-
graphia da lingua portugueza.
Gabriel Soares de Souza, filho de Lisboa, veio para o
Brasil nos meiados do século, viveu longos annos na nos­
sa terra e morreu na Bahia, em 1591. Foi o maior dos
commentadores 4o Brasil inicial. A sua obra Tratado
descriptivo do Brasil em 1587, veio á luz, em 1851, devi­
do ao esforço de Vanihagen. Gabriel Soares de Souza
escrevia melhor do que os demais chronistas da época.
0 seu saber era enorme, para o tempo. Abrangia toda
a sorte de conhecimentos. Por isso poude offerecer o
panorama das actividades da terra, tocando em todos
os seus aspectos, abordando todas as phases do seu de­
senvolvimento e focalisando as partes da sua natureza. O
eeu editor declara: “ Causa pasmo como a attenção de um
só homem poude occupar-se em tantas cousas” que jun­
tas se vêm raramente” , como as que se contêm na sua
obra, que trata a um tempo, em relação ao Brasil, de
4 :4
geographia, de historia, de topogiaphia, de hydrographia,
de agricultura entre-tropica, de horticultura brasileira,
de matéria medica indigena, das madeiras de construc-
ção e de marcenaria, de zoologia em todos os seus ra­
mos, de economia administrativa e ate de mineralogia!"
Pemão Cardim, jesuita portuguez, nasceu no Alem-
tejo em 1540. Foi mestre de Antonio Vieira. Entrou
para a Companhia de Jesus em 1555. Em 1582 veio
para o Brasil, acompanhando o visitador Christovão de
Gouveia e ficou exercendo o cargo de reitor do collegio
do Rio de Janeiro. Voltou á Europa, em viagem a Roma.
De regresso ao Brasil, em 1604, teve a amargurar os seus
últimos annos, na Bahia, onde era reitor e provincial, os
acontecimentos da invasão hollandeza que lhe apressaram
a morte. Era um escriptor apreciável, como se póde ve­
rificar pela Narrativa epistolar de uma viagem e missão je-
suitica pela Bahia, Ilhéos, Porto Seguro, Pernambuco, Es-
pirito Santo, Rio de Janeiro, etc. Essa narrativa foi pu­
blicada, em 1847, por Vamhagen, na Imprensa Nacional
de Lisboa. Contesta-se-Ihe a autoria do manuscripto de­
nominado Do principio e origem dos indios do Brasil e de
seus costumes, adoração e cerimônias.
Temos, finalmente, o navegador Pero Lopes de Sou­
sa, irmão de Martim Affonso de Sousa, vindo para o Bra­
sil cm 1530. Pero Lopes escreveu o Diário da navegação
da armada que foi á terra do Brasil em 1530. A obra teve
a sua publicação em Lisboa, em 1839, devido ao esforço
de Vamhagen. Não tem importância como escriptor, mas
0 relato das suas observações merece a attenção dos es­
tudiosos do Brasil primitivo.
C APITU LO V I

Continuação da expansão geographica —


Augmento da população negra — Penetração
para o sul — Extrangeiros na costa brasilei­
ra — Invasão hollandeza — Maurício de
Nassau — Dominio hollandez na zona assu-
careira — Commercio livre dos hoUandezes —
As Bandeiras — Os cyclos da phase ban­
deirante.

Só em 1610, creadas as capitanias do Ceará, Piauhy


e Maranhão, foi levantada, em Mucuripe, a primeira po-
voação do Ceará, origem da cidade de Fortaleza. O go­
verno geral, para attender a expansão para o norte, des­
locara-se para Olinda. Havia, certamente, nessa mudan­
ça de séde, a vontade de centralisar o desenvolvimento
economico do paiz, transportando a fiscalisação para a
zona mais rica e o porto mais importante. De Olinda era
facil dominar e abranger o surto da riquesa e prover essa
penetração ao longo da costa nortista, penetração que iria
até 0 Pará, em 1616, com Francisco Caldeira Castello
Branco. Em 1613 Jeronymo de Albuquerque parte para
o Maranhão e, em S. Luiz, encontra os francezes estabe­
lecidos desde o seculo anterior. A luta para a ejcpulsâo
dos invasores dura um anno. No meiado da terceira dé­
cada do novo século, quando os hoUandezes apparecem de-
ante da Bahia, já o littoral brasileiro é conhecido, de-
Laguna ao cabo Magory, chegando a faixa a ter cem ki­
lometros de profundidade em muitos pontos. O valle
4 5
do S. Francisco revela-se inteiro. Os frades franciscanos
Domingos de Brieba e André de Toledo sobem o Amazo­
nas, em 1636, e chegam a Quito. Pedro Teixeira percor­
re 0 rio immenso.
No sul, seguindo o Tietê e passando alem do Paraná,
os paulistas attingem o Paraguay e conseguem escravi-
sar mais de vinte mil indios, pertencentes á missão de
Guahyra. Em 1679, para senhorear-se da margem septen-
trional do rio da Prata, a metropole mandara D. Manoel
Lobo, governador do Rio de Janeiro, fundar uma colonia
no rio S. Gabriel. Surgiu dahi a colonia do Sacramento.
A população negra augmentava sem cessar; ainda não
havia attingido o auge, o que se daria no intervallo entre
os meiados do século X V III e os meiados do século XIX,
mas crescia vultuosamente. Tomavam-se os africanos de
origem e os negros “creoulos” nascidos no Brasil. Augmen-
tando pelo trafico que se desenvo'lvia, passo a passo com
0 surto economico da lavoura e expansão territorial, e
pela proliferação, fundindo-se com as outras, o indio e o
portuguez, o negro não deixou de se propagar, mesmo en­
tre si, duma maneira considerável e ainda hoje pouco es­
tudada. Arthur Ramos divide os negros entrados no Bra­
sil em dois grupos: “ sudanezes” e “bantus” . E affir-
ma: “O primeiro grupo foi introduzido inicialmente nos
mercados escravos da Bahia, de lá espalhando-se pelas
plantações do recôncavo e secundariamente por outros pon­
tos do Brasil. Desses negros “ sudanezes” , os mais im­
portantes fôram os “ yorubanos” ou “ nagôs” e os “ gêges”
'(“Ewes” ou “dahomeyanos” ) e em segundo logar os “ mi­
nas” (Tshis” e “Gás” ), os “ haussás” , os “ tapas” , os “ bor-
nus” € os “gruncis” ou “gallinhas” . Com esses negros
sudanezes entraram dois povos de origem berbere-ethio-
pica e influencia mahometana: “os fulahs” e os “ mandês” .
Os “ mantus” foram introduzidos em Pernambuco (esten­
dendo-se a Alagoas), Rio de Janeiro (estendendo-se ao
Estado do Rio, Minas e S. Paulo) e Maranhão (estenden­
do-se ao littoral paraense), fócos primitivos de onde se
irradiaram posteriormente para vários pontos do territó­
rio brasileiro” .
4 6
0 primeiro impulso do nativismo no paiz assigna/-
la-se por mn sentido opposto ao estrangeiro que assola
o littoral e dirige-se, naturalmente, contra o elemento no­
vo, de Índole nova, de religião nova, de raça nova, — novo
na accepção de differente, de contrario, de opposto, — e
vincula-se ainda ao .pensamento portuguez, ao sentimento
portuguez. Caminham juntos os elementos formadores
do grupamento racial brasileiro. Aggremiam-se, fun­
dem-se para o combate ao elemento adventicio que tenta
scnhorcar-sc da terra e estabelecer núcleos commerciacs
na costa. Ha, evidentemente, nesse primeiro impulso
para a luta, nessa primitiva arrancada para a posse da
gleba, um instincto fundamente calcado no interesse que
gera a idéa de patria, mas não se emancipou, não se dis-
tinguiu ainda do sentimento portuguez, não promoveu a
sua independencia mental. Lutam pela posse da terra,
para a cultivar e lavrar, para a fazer produzir, sem qual­
quer idéa egoista de emancipação. Querem a terra, sob
o beneplácito de Portugal e por isso lutam ao lado dos
portugueses para conserval-a una, para que lhes perten­
ça unicamente, sob a égide do governo da metropole. E ’
ainda um sentimento nativista luso-brasileiro, manifes­
tando-se onde haja um europeu a combater, os france­
ses do Maranhão e do Rio, e, principalmente, os hollande-
zes de Pernambuco e da Bahia.
As tres décadas de domínio hollandez na zona mais
rica do paiz, a zona assucareira, canalisando para Hol-
landa uma riqueza anteriormenté canalisada para Por­
tugal e suffocando o predomínio dos posseiros nacionaes
e portugueses, eram por si mesmo um grande absurdo. O
regime imposto pelos intrusos deu em resultado terrível
depressão economica. O hollandez não via adeante, no
tempo. Contentava-se com o resultado immediato. Pa­
rece que tinha o senso da transitoriedade da aventura.
Talava e sugava um dominio extranho, pouco se impor­
tando em deitar raizes, em edifical-o para si proprio, em
preparal-o como florão para a conquista futura e posse de­
finitiva. Não, o que elle queria, o que desejava, segundo
a idéa commercial de uma Companhia gananciosa e céga.
4 7
era o lucro immediato, a vantagem rapida, enquanto fosse
possível aguentar-se na terra. A sua expansão territo­
rial não foi mais do que o desenvolvimento da fome de
lucros. Apoderava-se, a um só tempo, das fontes de ri­
queza brasileira, e portuguesa, usurpando-as. Jamais co-
lonisou, jamais pensou, um instante, no que .poderia vir a
ser 0 seu dominio. Não teve mesmo a intensão políti­
ca de perpetuar-se. Permanecería, quanto pudesse, com
a bocca na botija.
Nassau é uma excepção no meio rapace. Só elle po­
dería vêr mais longe. Só elle podería prever. Da sua
obra 0 que nos fica é a intenção, o genio de quem, num
ambiente barbaro, comprehendeu a luta politica e a evo­
lução das cousas. Só o príncipe foi político, só os seus
actos revelam uma vontade nitida de permanecer e cons­
truir, de amoldar a conquista aos interesses da terra e
fazel-a mais forte, para eternisar-se no tempo e fructi-
ficar. Maurício de Nassau, entretanto, viveu inquieto e
solitário, figura impar num meio de aventui^eiros, com-
merciantes ávidos, guerreiros bravos e inexpertos. A
sua acção, clarividente e serena, lúcida e essencialmente
politica, não foi apenas contrariada pelos seus proprios
compatriotas, fo i também sabotada e neutralisada.
A tropilha que damnificara o commercio lusitano
e o substituira, a turma nova que, tomando posse da ter­
ra, pensou em permanecer nella apenas o tempo da pi­
lhagem, não podería subsistir. O dominio hollandez era
a obra prima do absurdo; não ix)dería concentrar-se, en-
chistar-se na terra. Expulsos das suas posses, impedi­
dos de commerciar e embarcar o producto das suas la­
vouras, soffrendo o peso duma dominação implacável e
cupida, não obstante as apparencias exteriores da nova
cultura, lingua, usos, religião, substituindo os do seu ha­
bito, e preferencia, o habitante da terra lutou, soffreu sa­
crificou-se e, na contumacia das guerrilhas, conseguiu
inquietar permanentemente o invasor até enfraquecel-o,
vencendo-o na arrancada final.
Da obra administrativa de Nassau, desde que não lhe
permittiram fazer obra politica, pouco nos restou. O pre-
4 8
dominio ephemero duma administração brilhante, os seus
homens de letras e artistas, não ficaram na nossa sensi­
bilidade, não se fundiram na alma nacional. Pennane-
ceram estrangeiros e, si as obras dos que aqui estiveram
são valiosas como fontes de consulta, não pódem ser pos­
tas na linha das obras coloniaes em que os portuguezes
procuraram estudar a terra, os seus cüstumes, a sua lín­
gua, os usos do gentio. Com o levantar das ancoras das
náos vencidas, foi-se uma cultura passageira, que nada
deixou de si no sentimento da gente e na physionomia da
sociedade, já fundamente constituída sobre os costumes
religiosos e a moral portuguesa. O commercio livre que
os hollandezes apregoavam era uma burla, um erro enoi-
jne em que insistiram, fonte de discórdia e um motivo
a mais a levantar o animo dos insurgentes. A taxação
era simplesmente extorsiva, o custo das mercadorias pro-
vindas da Europa, espantoso. O vinho subiu extraordi­
nariamente de preço. Os portos só eram accessiveis a
navios da Companhia ou dos que se dirigissem directa-
mente a portos hollandezes sob o seu controle. Os por­
tuguezes que tivessem reconhecido o (dominio [Picavam
com a liberdade de exportar os seus productos para a
Hollanda... Antes da invasão, exportava Pernambuco
cerca de sessenta mil caixas de assucar annualmente. Já
em 1639 a exportação cahira a trinta e tres mil caixas,
quasi a metade. A renda do imposto de sahida e dos fre ­
tes subia a quatrocentos mil florins. O trafico negreiro,
que elles acapararam na ansia de maiores proveitos, dava
um lucro liquido de trezentos a quatrocentos florins por
cabeça, num total de dois milhões de florins. Os mono-
■polios deram-lhes quatro milhões de florins. O dominio
hollandez findava num mallogro politico immenso, mas
numa prodigiosa colheita de resultados. Era, aliás, o
que 0 seu animo commercial e immediatista pretendia.
No sul, os homens do planalto piratiningano come­
çavam a devorar as distancias. Elles haviam descido para
o Paraguay. Haviam, na febre de prear o indio, penetra­
do estradas desconhecidas e infinitas. O caracter da sua
cultura, a physionomia da sua sociddade, eram completa­
4 9
mente diversas da do norte. Si em Olinda, mercê do
desenvolvimento da lavoura da canna de assucar, surgira
uma sociedade cheia de luxo e boas maneiras, em S. Pau­
lo era inteiramente o contrario. Aqui havia rudeza de
costumes, simplicidade e frugalidade. Os espolios da
gente bandeirante revelam a tristeza e a estreiteza da-
quellas vidas. Nada tinham de seu. A transitoriedade
marcava os acontecimentos em que estavam envolvidos.
Nao accumulavam e não enriqueciam. O meio era pobre,
desoladoramente, pobre. Os inventários o attestam.
Havia necessidade de prear o indio para a lavoura
de S. Vicente. Inicia-se o primeiro cyclo das bandeiras.
O segundo assignala-se pela ansia na busca do ouro de
lavagem. E o terceiro viria mais tarde com o ouro de
mina. As familias provinham da colonisação vicentina.
Propagavam-se, cresciam, augmentavam, numa severidade
de hábitos que torneavam os cai’acteres de bronze. As
botas de sete léguas corriam o interior, os homens ves­
tidos de algodão, dormindo ao relento, sob a intemperie,
iam semeando cidades, no curso das penetrações. A es-
cravaria era reduzida e o indio offerecia ainda uma fonte
de renda. Dahi o choque com o jesuita, rivalidade que
só trouxe vantagens. Quando o Brasil deu por si tinha
constituido um sem numei’o de cidades no interior, aber­
to um sem numero de vias de penetração, e constituido,
em torno de Piratininga, um núcleo de expansão, o maior
acontecimento na aventura colonial e um dos momentos
decisivos na ansia de abai’car a ten’a infinita.
CAPITULO VII

Sentimento nativista — Formação dum


meio brasileiro — Gregorio de Mattos —
Frei Vicente do Salvador.

Quando finda a luta hollandeza, e, após os duros


transes da campanha, reconhecendo que o Brasil resistiu
sem auxilio da metrópole, esmagados pela taxação bru­
tal do flamengo e ante a ausência de interesse ou impo­
tência de Portugal para o trato das cousas da colonia,
os insurretos experimentam os primeiros lampejos de
hostilidade aos dominadores, sentimento que não encon­
tra meios de objectivar-se, mas, latente, espera apenas a
opportunidade de traduzir-se.
Começam a formar-se, nos núcleos de maior riqueza,
fazendas e engenhos, uma nobresa latifundiaria, agru­
pamento de brasileiros com sentimentos brasileiros e no­
ção clara do destino que os espera. O Brasil apresenta
já o contorno duma nação prestes a consolidar-se vivendo
de si mesma, com uma oi'ganisação economica que suppor-
tava 0 crescimento e ia auxiliar, indevidamente, atravez
do f:sco rapace, o su.stento de Portugal. A foi*mação dum
meio sentidam.ente Lu-a.sileiro vae processando-se lentamen-
mente, e, ao alvorecer do século X V III, é facto consuma­
do.
Kos centros mais im.portantes ha uma viva curio­
sidade pelas c.‘'Usas das outras regiões do paiz, estenden­
do-se atravez da immensidade brasileira uma tenue cadeia
de interesses o comm unidade de ideaes.
5 1
Esse sentimento nativista accelera-se ao norte, thear
tro da luta aspera contra o dominador de outra raça, de
outros costumes, de outra religião. Lá, nos trinta an-
nos de dominio hollandez, a consciência brasileira, for­
mando a sua convicção de poderio e consciência da própria
força, attingiu, mais cêdo do que no sul, a completa cris-
talisação.
O culto das letras augmenta. Lêem-se os poetas do
renascimento hespanhol e italiano. Ha certo numero de
brasileiros que fazem seus estudos em Coimbra. E ’ um
luxo da época, uma das muitas apparencias de que se
reveste a sociedade que prima por querer adoptar os
usos europeus. Os cultores da latinidade são muitos. A
eloquência sacra se esmerava na copia e na imitação dos
escriptores mais conhecidos do tempo. Os mestres dos
collegios religiosos dominam entre os meditadores da bôa
leitura classica, e transportam para o púlpito aquelles ar­
roubos oratorios que ficariam na alma eloquente da gen­
te da terra. O púlpito semêa ideas e canalisa princípios,
tomando-se a arena de algumas lutas sensacionaes. Sem
imprensa, sem meios de transmissão das idéas e impres­
sões, 0 debate ficava confinado á eloquência sagrada, ele­
vava 0 tom das polemicas e dava logar á expansão da cul^
tura brasileira do tempo. Uma prosa mais facil e mais
viva começa a surgir. Apparecem Frei Vicente do Salvai
dor, Eusebio de Mattos, irmão de Gregorio, Manuel de
Moraes, Diogo Gomes Carneiro, Frei Christovão da Ma­
dre de Deus, Antonio de Sá.
Nos fins de 1627 Frei Vicente do Salvador, Vicente
Rodrigues Palha, no século, conclue a sua interessantíssi­
ma e valiosa Historia da Custodia do Brasil, que não che­
gou a ser publicada, mas a sua simples noticia, fruto das
abstracções religiosas de um monge, diz bem do espirito
da época. Frei Vicente é o primeiro brasileiro que reve­
la 0 sentimento da terra, claro, nitido insophismavel, a
exteriorisar os anseios da sua gente. Os motivos da não
publicação do manuscripto escapam á nossa observação.
Manoel Bomfim, um dos mais fervorosos admiradores da
obra do frade bahiano, attribúe a um proposito decidido
5 2
0 desapparecimento da obra histórica, base da pesquiza
t brasileira dos assumptos do tempo. E ’ possível que as-
I sim tenha sido, pois Frei Vicente foi a sincei*idade, a rea­
lidade, a objeotividade. Escrevia claro e bem, dizendo o
que se não podia dizer impunemente, contando cousas
que não agradariam ao portuguez dom.inador. Narrava, com
isenção e forte espirito nacional, a ti’ama cobiçosa em tor­
no da nossa riqueza, trama concertada pela metropole
para retirar á colonia todas as forças, e continuar alimen-
tanto em Portugal uma situação de luxo e preeminencia,
enquanto, na terra livre da America, nada se fazia pelo
seu progresso. A colonia era o ubere em que se alimen­
tava, inexhoravel e fartamente, uma nação em decadência,
0 agrupamento humano que, forçando a distensão immen-
sa, decahira das qualidades primitivas no entoipecimen-
to do parasitismo e do mysticismo.
Frei Vicente, nascido na Bahia, foi animado por um
portuguez seu amigo, Manoel Severim de Faria, amador
de erudições históricas, o qual confonne affirm a Mano­
el Bomfim, teria solicitado o frade a compor a resenha
do Brasil. O trabalho ficou prompto nos fins de 1627 e,
prefaciado pelo autor, com dedicatória ao seu grande ani­
mador, é a elle enviado para a publicação. Severim de
Faria apparece como o Mecenas, — as despezas do livro de­
viam correr por sua conta.
Frei Vicente esperou em vão. Ai>eifeiçoou ainda a
obra, augmentou-a em alguns pontos e finou-se, dez an-
nos depois, sem vêr realisado o seu sonho, tendo sido a
obra recolhida, em duas vias, ao archivo portuguez da
Torre do Tombo. Sonegada ou escondida? Não se sabe.
O certo é que o manuscripto tinha tanto valor que me­
receu a attenção de quantos o consultaram. Mas nin­
guém se atreveu a publical-o. Vários historiadores del-
le se aproveitaram, copiaram-no, falsificaram-no, detur­
param-no, mas não o entregaram ao prelo. O proprio
Varnhagen, e Manoel Bomfim não lhe perdoa isso, ten­
do se esmerado na publicidade de obras interessantes
sobre o Brasil, confinou o livro de Frei Vicente ao si­
lencio, deixou-o mofar, conhecido de alguns pesquisado­
5 3
res, apenas. E assim sc passaram os annos até que Ca-
pistrano... Bem, mas isto é já outra historia.
Em Frei Vicente, o que lhe marca a personalidade
é a soberba consciência dos acontecimentos. Elle via on­
de outros não viam, devassando o futuro. Assistia o de­
senvolvimento da colonia e a decadência da metropole e
previa que uma situação tão dispar não poderia perdurar
cternamente. O seu teimo era questão de tempo. A s­
sistia a um dominio impolitico. Assignalava a impor­
tância da colonia em face da metropole antevendo a época
em que aquella se tornaria o refugio da côrte portugue­
sa. E escreve, com grande sinceridade: . . . “ depois da
morte de D. João III, não houve outro que delle (o Bra­
sil) curasse, senão para colher as suas rendas e direitos.
E deste modo se hão os povoadores os quaes tudo pre­
tendem levar a Portugal. . . O que é fontes, pontes, ca­
minhos e outras cousas publicas é uma piedade... ne­
nhum as faz ainda que bebam agua s u ja ... e tudo isto
vem de não tratarem do que ha de ficar, sinão do que hão
de levar para o reino. . . ” Mais adeante a ff irma que “os
serviços do Brasil raramente se pagam” . Commenta as
proezas da gente de D. Fradique, na Bahia, assolada pelo
hollandez: “ O que os inimigos haviam deixado, levaram os
amiges. . . ”
Ninguém melhor do que Capistrano o estudou e admi­
rou, commentando Frei Vicente da seguinte maneira:
“Sua historia prende-se antes ao século X V II que ao sé­
culo XVI, neste com as difficuldades das communicações,
com a fragmentação do território em capitanias e das ca­
pitanias em villas, dominava o espirito municipal; brasi­
leiro era o nome de uma profissão; quem nascia no Bra­
sil, si não ficava infamado pelos diversos elementos de
seu sangue, ficava-o pelo simples facto de aqui ter nas­
cido — um masombo, se de algum corpo se reconheciam
membros, não estava aqui mas no Ultramar; portugue-
zes diziam-se os que o eram e os que o não eram. Frei
Vicente do Salvador representa a reacção contra a ten­
dência dominante: Brasil significa para elle mais do que
expressão geographica, expressão histórica e social. O
54
século XVn é a germinação desta ideia, como o século
X V III é a maturação.
“A sua “Historia” não repousa sobre os estudos ar-
chivaes. Havería difficuldades em examinar archivos?
Não era seu espirito inclinado á leitura penosa de papéis
amarellecidos pelo tempo? Dahi certa lassidão no seu li­
vro: muitos factos omittidos que hoje conhecemos e que
elle com mais facilidades e mais completamente podería
ter apurado, contornos esfumados, datas fluctuantes, du­
vidas não satisfeitas. A té certo ponto a historia de Frei
Vicente é comparável á geographia do meritissimo padre
Matheus Soares, um século mais tarde: correcta onde de-
tem inava posições astronômicas; em outros pontos fun­
dada sobre roteiros de bandeirantes e mineiros.
“ Mas esta pecha resgata-a por qualidades superiores.
A historia possue xim tom popular, quasi folkloríco; ane-
cdotas, ditos, uma sentença do bispo de Tusuman, uma phra-
se do rei do Congo, uma denominação de Vasco Fernan­
des. Mais ainda: vê-se o Brasil que era na realidade, ap-
parece o Branco, apparece o índio, apparece o Negro; o
preto Bastião, percebe-se que faz rir a boas gargalhadas
'' «osso autor. Informações por que suspiravamos, e au'
não esperavamos encontrar, elle as offerece ás mãos chei­
as, óra num traço fugitivo, óra demoradamente” .
A analyse de Capistrano situa, decisivamente. Frei
Vicente do Salvador, como historiador e como escriptor.
Aquella naturalidade no narrar toma o que elle escreveu
facil e accessivel.
Manuel de Moraes, brasileiro de S. Vicente, onde nas­
ceu em 1586, teve uma vida aventurosa. Cursou o col-
legio dos jesuitas, onde, apezar do seu aproveitamento,
não poude concluir o curso, pela asperesa do seu genio.
Indo para Amsterdam, casou-se e renegou a sua fé, con­
vertendo-se ao calvinismo. Como sua vida, na Hollanda,
não fôsse melhor, resolveu regressar ao Brasil. Ma pas­
sagem por Lisboa, porem, a Inquisição, que já o queimai^a
em effigie, deteve-o. Respondeu a julgamento. Foi
absolvido após ter abjurado o calvinismo, retornando á
crença antiga. Escreveu uma Historia da America, pro­
5 5
vavelmente perdida, Memórias sobre Portugal e o Brasil,
parece que um Diccionario dos nomes e palavras mais
communs na língua brasileira.
Diogo Gomes Carneiro, chronista geral do Brasil, ap-
parece na relação dos autores do tempo apenas com o
nome, pois não chegou a escrever sobre o paiz. Os seus
livros versam sobre assumptos differentes. Educado em
Portugal, lá permaneceu, morrendo em Lisboa em 1676.
Frei Christovão da Madre de Deus Luz, também pou­
quíssimo representa para a evolução das letras brasileiras.
Antonío de Sá, padre e orador, nasceu no Rio de Ja­
neiro em 1620. Estudou humanidades no collegio dos je ­
suítas formando-se em 1639. Ensinou theoria no colle­
gio e foi a Portugal e Roma, como secretario geral da
Companhia, permanecendo alguns annos nesses logares;
ao regressar, dedicou-se á prédica sagrada, fazendo os
seus sermões na Sé da Bahia, em Pernambuco e no Rio
de Janeiro»». Antonio de Sá foi considerado o maior
discípulo do Padre Antonio Vieira. Sua linguagem é cor­
recta e pura apezar de rebuscada. Deixou grande numero
de Sermões.
Eusebio de Mattos, iimão de Gregorio, fez, como o
outro, os primeiros estudos no collegio dos jesuitas, para
cuja Companhia entrou. Ensinou philo.sophia no collegio,
em substituição ao poituguez Antonio Vieira. Dedicou-
se á prédica, brilhando, entre Vieira e Antonio de Sá,
como dos melhores oradores sagrados do tempo.
Eusebio de Mattos foi, ainda, pintor e musico. Cul­
tivou as mathematicas. Compoz hymnos religiosos e pi‘o-
fanos. Tocava muito bem harpa e viola. Antonio V i­
eira disse delle que Deus se apostara em o fazer em tu­
do grande e não o fôra mais por não querer. Eusebio,
aborrecendo-se com os jesuitas, mudou de roupeta; pas-
sou-se para os carmelitas com o nome de Frei Eusebio
da Soledade. Vieira commenta o acontecimento com tris­
teza. Parecia-lhe que o orador sacro fazia falta na Com­
panhia de Jesus, que tão cedo não encontra quem o substi-
túa. “Tarde se criarão para a Companhia outros Mattos,
“ diria Vieira.
5 6
Vale notar como em torno do collegio jesuíta se gru­
pavam os homens mais esclarecidos do tempo. Assim
como o publico é a unica tribuna, substituindo o jornal
e 0 livro, 0 collegio forma os talentos indígenas que se
vão moldando á feição do ensino que se lhes ministra, en­
sino cheio dos erros e das mazellas do ternix) mas que pro­
duziu toda a cultura colonial e formou a mentalidade da
época. Alguns, como Gregorio de Mattos, estudam em
Coimbra, completando a cultura iniciada jífhto ao jesui-
ta. A maioida, porem, limita a sua actividade mental en­
tre os poucos livros que aqui chegavam para os religiosos
em geral, e os arroubos oratorios com que, artífices da elo­
quência sagrada, os padres da Companhia enchiam o tem­
po. Em torno da Companhia surge o grupo de homens
cultos, os Antonio de Sá, os Eusebio de Mattos, os Ma­
nuel de Moraes. Nesse meio, onde estudou as primeiras
letras, apparece, também, a maior figura literaria do tem­
po e uma das mais expressivas da época colonial:
Gregorio de Mattos. Nasceu Gregorio de Mattos
Guerra de paes abastados, em 1633, na cidade da Bahia,
então capital da America portuguesa e o maior centro
da colonia. Nella já se apontavam algumas fortunas
consideráveis em relação á época. Constituira-se na ca­
pital, um meio nitidamente brasileiro de senhores da ter­
ra, proprietários de gado ou de engenhos. Era o centro
de irradiação da acção jesuitica, eixo da administração
9. colonial. Nella fei^via o exame humano dependente da
burocracia official, sociedade que copia os hábitos da
metropole. A Bahia era um dos respiradouros da vida
do paiz que se ia formando.
Gregorio de Mattos provinha dum fidalgo portuguez,
do Minho, e duma matrona bahiana, filha de fazendeiros
ricos. A sua infancia decorre sem maiores acontecimen­
tos sob a influencia do meio brasileiro, assistindo o dra­
ma duma sociedade que evoluia acceleradamente, assi­
milando e fundindo o colono, o indio e o negro. Nada
denotava, nessa formação facil, nessa origem abastada e
suave, o genio irrequieto que seria o tormento e gloria do
seu dono. A sua ascenção se processa numa curva se-
o (

rena, sem pontos críticos, sem passagens difficeis. Tudo


indica que elle seria um vencedor, um triumphador, in-
telligencia muito viva, a abastança do meio de que se ori­
gina, as relações dos seus paes.
Gregorio de Mattos corôa a sua educação em Coim- /
bra, como o faziam alguns dos mais eminentes filhos —
famílias daquelle tempo. Notabilisa-se, ainda ahi, pelo
vigor do seu engenho e subtileza de espirito, recebendo
0 gráo de doutor em leis com os applausos de collcgas e
mestres. Em vez de regx^essar ao meio em que passara
a infancia, elle tem um dos golpes que assignalam a sua
videncia dos acontecimentos, preferindo pemanecer num
meio maior, campo mais vasto ás suas actividades de ho­
mem culto e visão larga. Fica em Lisboa. O simples ^
facto de o nomearem pai'a cai'gos de responsabilidade, juiz
do crime de um dos arrabaldes da capital portugueza, j uiz
de oi-phãos e ausentes de uma comarca próxima dessa
mesma capital, indica que o seu valor era reconhecido. ^
Consegue, também, a graça de D. Pedro II. Leva uma ■
existência pacata, sem acontecimentos de maior monta
na côrte portugueza e no desempenho de suas funcções. I
Naturalmente o seu talento vivo e subtil já se havia '
inclinado para a ironia facil, o dito improvisado, a sahida
espirituosa, mas não é verdade que tivesse exercido os dons
dc satyrico mordaz contra essa côrte portugueza que el­
le frequentou e onde o receberam e trataram á altura do
seu merecimento. A violência das suas palavras, a di-
cacidade da sua ironia, elle as empregará no Brasil, já na
curva descendente da existência, quando tudo o conduz
para a degradação do meio, no exilio entre os seus, no
isolamento a que se vota. A té o momento em que Pe­
dro II lhe propõe a missão de vir ao Brasil apurar os cri­
mes de Salvador Correia de Sá e Benevides, numa rigo­
rosa devassa, nada indica que Gregorio de Mattos se des­
gostasse do meio em que vivia, ou pretendesse redicula-
risal-o. E ’ bem verdade que, nesse ambiente, havia mui­
to fidalgote cheio de empafia, muita tolice vã e muita
vaidade sonora, mas tudo isso, si havia desafiado já a
5 8
verve do poeta, não era ainda o repasto dilecto ao seu
sarcasmo demolidor.
Também não está perfeitamente esclarecido que te­
nha sido o simples facto de Gregorio excusar-se pei'ante
0 rei, declinando do mandato que lhe queria conferir,
0 motivo principal ou unico da mudança de attitude do
seu protector. Pedro II não era um protector, no sen­
tido amplo da palavra, do poeta brasileiro, mas um apre­
ciador dos seus talentos, grato, alem disto, a alguns ser­
viços que lhe prestara. Parece que a razão forte do afas­
tamento de Gregorio de Mattos de Lisboa, e o seu conse­
quente regresso á Bahia, foi motivado por alguma intri­
ga, de que eram ferteis as cortes daquelle tempo.
A sua amargura faz que se desabafe na parte mais
viva e aspera da sua obra esparsa e em grande parte per­
dida. Seria impossivel reunir tudo o que elle disse e es­
creveu. As suas allusões pittoi’escas, os seus ditos espi­
rituosos, os seus versos improvisados, não poderiam ser
totalmente recolhidos, pois que se tratava de um talento
repentista. Gregorio nem sempi'e esci’evia as suas pro-
ducções; lançava-as de improviso, dispersava-as e ellas
percorriam, repetidas de boca em boca, o estreito meio
da capital da America portugueza, a cidadesinha da Ba­
hia seiscentista, e só uma vez por outra, eram gravadas
no papel por um admirador mais cuidadoso.
O que devia ter irritado por demais esse tempera­
mento afoito e irriquieto ei'a o seu isolamento, o contras­
te da sua existência no Brasil com a de Portugal, onde
tinha conseguido renome e desempenhado funcções de
certa importância. Não podia conformar-se com o meio
acanhado, ambiente esteril e vasio, quem preferira Lis­
boa, após a formatura, com toda certeza para não ter
de sugeitar-se á insipidez da sociedade incipiente. O
Brasil do seu tempo, a Bahia de Todos os Santos, não po­
diam agradar a esse tumultoso e lúcido espirito, sempre
prompto a envolver-se em complicações, amando o mo­
vimento e a balburdia. A pacatez, a serenidade, a me­
diocridade da cidadesinha bahiana, capital da colonia, não
convinha a esse temperamento. Por isso, começa a ex­
5 9
citar-s€, a desmandar-se a exercer a sua ferina mordaci-
dade contra todos os aspectos tristes e acanhados do meio,
contra todas as vaidades vazias e mofinas, contra todos
os desencontros da ignorância. Nesse campo elle teria
uma fonte perenne de inspiração, augmentando o poder
da sua verve e da sua ferocidade de verrineiro. Fez-se
0 “ boca de inferno” . Cahiu do conceito de muitos dos
seus amigos e protectores, incorrendo no desvalimento
dos que o amparavam. Foi-lhe retirada a graça de al­
guns e perdeu a amizade de todos. Tinha sido nomeado
Viigario Geral da Bahia, Thesoureiro-Mór da Sé. e tira-
ram-lhe estes empregos. Malbaratou o seu talento e a
sua facilidade surprehendente de improvisador, do sorte
que, com muita justeza, pôde pintar por esta fórma a
própria situação:

Querem-me aqui todos mal:


Mas eu quero mal a todos,
Elles, e eu, por vários modos,
Nos pagamos tal por qual.

E querendo eu mal a quantos


Me têm odio vehemente;
O meu odio é mais valente,
Pois sou só, e elles são tantos.

Algum amigo que tenho,


(Se é que tenho algum amigo)
Me aconselha, que o que digo
0 cale com todo o empenho.

Este, me diz, diz-me outro,


Que me não fie daquelle:
Que farei, se me diz delle,
Que me não fie aqueloutro?

Esquecido por uns, maltratado por outros, ferido por


aquelles a quem feria, despresado por aquelles a quem.
criticava, Gregorio de Mattos comette o ultimo e um dos
maiores entre os seus erros, casa-se. Elle, que levava uma
60 Ti

vida irriquieta e caprichosa, ao deus dará, ao léo da sorte,


procura finua-se num lar, procura um ancoradouro. Mas
não tinha temperamento domestico, não fora feito para
a bonança. A tempestade era o seu clima propicio, a sua
volúpia de desatinado. Estava bem no tumutto, e só no
tumulto. Agradava-lhe a agitação perenne. Não podia
se acostumar ao remanso da familia. Seria uma capitu­
lação. Seria arriar a flamula da rebeldia e içar a ban­
deira bi’anca da rendição. Comprehendeu logo o seu er-
ro. Era tarde, porem. Estava casado. A uiiica salii-
da foi justamente a que aconteceu: a esposa o abandonou.
Volta á sua solidão de homem forte, agitador impeni-
tente. E continua, como sempre, entre os apupos de uns
e a admiração receiosa de outros. Recorda-se dos seus
tempos de homem de leis, em Lisboa, e dedica-se, nova-
:nente, aos misteres profissionaes. Era dos que estavam
sempre destinados a perder, no tocante a pecunia. E per­
deu sorrindo e satyrisando. Perdeu compondo alguns ver­
sos que ficaram, no genero, como dos maiores da linjrua.
Attingiu quasi toda a sociedade bahiana com a fuzilaria
cerrada das suas satyras:

D ’estes que campam no mundo


Sem ter engenho profundo,
E entre gabos dos amigos.
Os vemos em papafigos.
Sem tempestade, neme vento:
A njo bento!

De quem com letras secretas


Tudo o que alca.nça é por tretas,
Baculejando sem pejo.
Por matar o seu desejo.
Desde a manhan té a tarde:
Deus me guarde!
Do que passeia farfante,
Muito prezado de amante.
Por fóra luvas, galões,
Insignias, armas, bastões.
6 1
Por dentro pão bolorento:
Anjo bento!
Déates beatos fingidos,
Cabisbaixos, encolhidos.
Por dentro fataes maganos.
Sendo nas caras uns Janos,
Que fazem do vicio alarde:
Deus me guarde!
Que vejamos teso andar
Quem mal sabe engatinhar,
Muito inteiro e presumido,
Ficando o outro abatido
Com maior merecimento:
Anjo Bento!
D’estes avaros mofinos,
Que põem na mesa pepinos.
De toda a iguaria isenta,
Com seu limão e pimenta,
Porque diz que o queira e arde;
Deus me guarde!
O avia, entretanto, nesse verrineiro contumaz, um ly-
rico apreciável, inspii-açâo viva aguardando melhores mo­
mentos. De quando em vez, reponta, nas poi-prias saty-
ras, um tom agri-doce de tédio, desalento e amargura. A
sua alma não era assim tão insensivel e só capaz de jo ­
gar entre os descantes ironicos e a demolição pura. - Mui­
to pelo contrario, quando a serenidade o dominava, — o
que era x'ai’o e instantâneo — Gregorio de Mattos denun­
ciava a sua capacidade de lyrico de bom estofo, poeta de|
inspiração facil e execução primorosa. Elle tx'ouxe pai’a '
a metrificção brasileira o verso italiano decasyllabo. Lon­
ge do rebuscado e do difficil dos seus antecessores e de
muitos que vieram depois delle, a sua poesia é facil e
accessivel. Lê-se sem desenconto nem tédio, o que não / <x/
acontece com outros temerosos versej adores consagrados
pela historia literaria do paiz, e cuja obi'a é um primor de
monotonia, e não raro a monotonia da própria perfeição.
6 2
Em Gregorio de Mattos espanta que a sua obra ainda
possa ser lida hoje, tendo resistido ao tempo. Quando
pensamos que esse homem escreveu ha quasi tres séculos,
não podemos deixar de admirardhe a correcção da lingua­
gem e a agilidade com que a maneja. Certamente, um
pregador, como Antonio de Sá, foi purista e também es-
correito, mas o instrumento de transmissão da sua idéa,
a vestimenta com que a adornou é por demais limitada
e dum rebuscado difficil e indigesto, ao gosto do tempo.
Em Gregorio de Mattos, entretanto, o notável é que elle
fo i o primeiro a sentir, talvez inconscientemente, a separa­
ção que se pi’ocessava, muito lenta e quasi insensivel, en­
tre a lingua falada em Portugal e a que se ia formando no
Brasil, tendo como fonte originaria o portuguez, mas sof-
frendo, já, as influencias da terra, da gente, dos elementos
novos,; que a vinham integrando. Gregorio de Mattos é
o primeiro brasileiro que escreve bem. Ha Frei Vicente
do Salvador, mas Frei Vicente, na ingenuidade da sua
narrativa, é mais um commentador das cousas do tempo,
um historiador, um pesquizador. Gregorio é o repentista,
a palavra sáe-lhe fluente, expontânea e, portanto, sem ar­
tifícios. Não visa a posteridade, não tem uma consciên­
cia precisa da immortalidade dos seus versos. Dissemos
que Gregorio de Mattos era um lyrico de bôa agua: ve­
jamos um dos seus sonetos:

Oh tu do meu amor fiel traslado.


Mariposa entre as chamas consumida!
Pois si á força do ardor perdes a vida,
A violência do jogo me ha prostado.

Tu, de amante o teu fim has encontrado,


Essa flamma girando appetecida:
Eu girando uma penha endurecida
No fogo que exhalou, morro abrasado.

Ambos de firmes anhelando chammas;


Tu a vida deixas; eu a morte imploro;
Nas constancias iguaes, iguaes em chammas.

_J
6 3
Mas ai! que a differença entre nós chora;
Pois acabando tu ao fogo que amas
Eu morro sem chegar á luz que adoro.

Com a sua penetrante intelligencia, elie não podia


deixar de notar a transfomação da sociedade colonial
onde já um agrupamento de brasileiros havia conquis­
tado a terra e delia tirava fama e fortuna. Producto de
um instante dessa evolução, e característico duma época,
Gregorio de Mattos prestaria aos brasileiros o inestimá­
vel favor de ir, com a sua obra corrosiva e dissociadora,
destruindo um mundo de dogmas até então sagrados, in­
dicando trilhas não seguidas no tempo mas que, pelo sim­
ples facto de se ter alguém lembrado de apontal-as, o pen­
samento brasileiro a ellas remontou mais tarde, forte e
ijwsitivo, já em plena consciência da sua força. Gregorio
de Mattos não tinha meias medidas para dizer o que pen­
sava. Na sua luta contra as autoridades, que acabaram por
neutralisal-o, mandando para Angola, donde regressou para
morrer, elle espelha os primeiros germens de revolta con­
tra a camarilha portugueza que nos dominava e que, de
posse do commercio, açambarcava a nosso riqueza agra­
ria. Em suas verrínas repontam não raip destas repre­
sálias nativistas:

Quem os brasileiros são bestas,


E estão sempre a trablhar
Toda a vida por manter
Maganos de Portugal.

Como se vir homem rico.


Tenha cuidado em guardar;
Que aqui honram os mofinos,
E mofam os liberaes.

No Brasil a fidalguia
No bom sangue, nunca está;
Nem no bom procedimento.
Pois logo em que póde estar?
64
Consiste em muito dinheiro,
E consiste em o guardar;
Cada um o guarde bem,
Para ter que gastar mal.

Consiste em dal-o a maganos,


Que 0 saibam lisongear.
Dizendo que é descendente
Da casa de Villa-Real.

Se guardar o seu dinheiro


Onde quizer casará,
Que os sogros não quei-em homens.
Querem caixas de guardar.

Oh veja eu assolada
Cidade tão suja e má.
Avessa de todo o Mundo;
Só direita em se entortar.

Gregorio não sabia calar. Os factuos e ociosos do­


minadores, os sugadores da riqueza alheia, bispos, confes­
sores, governadores, fidalgos tolos e vaidosos, pagaram
o seu tributo á satyra desse homem, destemeroso e intel-
ligente. Elle representou a reacção da terra, sob todas
as fôrmas. A reacção apparente contra a tolerância ba-
lofa dos governadores i'apaces e a absorpção do commercio
portuguez. Representou a i'eacção inconsciente contra
a lingua dura e massiça dos portuguezes que vinham es­
crevendo sobre o Brasil,contra a cobiça insaciável dos
senliores da terra. Elle descortinara, na sua passagem
pela côiie portugueza, no convivio da gente de Pedro II,
0 panorama claro e nitido subtrahido aos brasileiros: a
rapacidade do fisco metropolitano transformando-se no
luxo e na ociosidade, estygmas que acabaram por. estio-
lar, no caracter portuguez, os traços fundamentaes e no­
táveis da piúmitiva expansão; a sobriedade, o gosto da
6 5
luta, a tenacidade, a applicação abnegada, o denodo
obscuro.
Mais do que qualquer outro, Gregorio estava em con­
dições de medir o contraste, pois vivera nas duas patrias
e sentira quanto uma differia da outra. A sua obra fi ­
ca como a primeira reacção integralmente brasileira, na
historia da nossa literatura.
C APITU LO V III

Expansão em jprofundidade — Cydl


bandeiiTinte do ouro — Esplendor da mí
neração — Deslocamento do eixo do paii13
para a região centro-sul — Consequências
da mineração no Brasil — Consequencia|
em Portugal — Consequências na Europí
— A s academias literárias — Rocha Pitta
— Itaparica — Antonio José — Antonil,'

íK
A partir dos últimos annos do século X V II a historia
brasileira entra numa nova phase. Vae soffrer as conse-E
quencias duma transfomação muito rapida, imposta por
um dos acontecimentos mais curiosos na vida do paiz: o.
apparecimento do ouro. A expansão linear, que se trans-'
formara em expansão em profundidade, affectada duma
nova dimensão, pelo espirito vigoroso da gente do planalto
de Pii'atininga, na sua necessidade premente de accudir
á lavoura como o braço do indio preado, a principio e, de­
pois, indo atraz da illusão do ouro de lavagem, dá novos
e immensos limites a uma terra já enorme.
Foi em 1695. Antonio Rodrigues Arzão e Manoel
Garcia Velho, paulistas, appareceram, no Espirito Santo
tr
e no Rio de Janeiro, com as primeiras oitavas de ouro
descoberto no corrego de Ouro Preto. Installou-se uma
casa de fundicção em Taubaté e o Brasil iniciou um
novo cyclo do seu desenvolvimento, cyclo que muda com­
pletamente os seus padrões de existência e altera as di-
rectrizes da sua historia.
67
0 ouro das minas mais facil e mais productivo, por­
que possivel de colher em maior quantidade, mais com­
pensador portanto, enche a imaginação da gente do tempo.
As lavouras, em toda parte, são abandonadas. A illusão
aurifera domina todos os espiritos. O assucar vê os seus
preços cahirem nos mercados europeus. As populações
correm para o interior, em busca da lúqueza facil. Do
nordeste, pelo valle do S. Francisco, descem os povos. De
S. Paulo marcham os bandeirantes. Estes já haviam se­
meado de povoados uma extensão enorme. Agora iam
em busca da realidade. Já não os illudia uma miragem,
como anteriormente, quando se atiravam a longas cami­
nhadas para o sul. O que se lhes deparava, no inteinor,
era uma esplendida realidade, a consumação do que fôra
um sonho desde os primeiros dias do descobrimento e que
andara na imaginação atomentada e visionária do eu­
ropeu.
O ouro attrahia milhares de homens. Antonil refere:
“ Das cidades, villas, recôncavos e sertões do Brasil são
brancos, pardos e pretos, e muitos indios de que os paulis­
tas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas:
homens e mulheres; moços e velhos; pobres e ricos; no­
bres e plebeus; seculares, clérigos e religiosos de diver­
sos institutos, muitos dos quaes não têm no Brasil con­
vento nem casa.”
E o ouro, na faina a que obrigava e na pressa de
sustentar uma população de adventicios, urgia e creava
um commercio novo, provocando novos accessos á região,
tornando uma necessidade a descida do gado pelo S. Fran­
cisco. As cidades vão surgindo vertiginosamente. A re­
gulamentação das minas favorecia essa dispersão da horda
de adventicios. Uma phase de brilho sem par surge para
a região.
Mas logo, nas dobras da conquista maravilhosa, ap- -
parece a contenda, paulistas e emboabas disputam a pos­
se das terras. O emboaba, mais organisado, mais esperto
e mais forte, consegue o dominio. Qual teria sido o des­
tino do Brasil si os paulistas vencessem a luta contra os
adventicios e impuzessem a sua dominação? Mas foi o
6 8
/ contrario que se deu e os homens de Piratininga divergi­
ram do rumo das suas conquistas para Matto-Grosso e
Goyaz, chegaram a Cuyabá, tocaram as pontas do Xingú.
O emboaba dominaria infrene a região aurifera. O
exodo das populações continuaida. Iam formar.se cida­
des, da noite para o dia. Villa Rica chegaria a ter mais
de cem mil habitantes. A nova capitania das Minas Ge-
raes tornou-se a mais movimentada do Brasil. Inicia-se
nos meiados do novo século, o século X V III, o augmento
da população negra. 0 trafico se desenvolve assustado-
lamente. São negros para as lavras. Negros para o tra­
balho. Negros para tudo que signifique esforço e suor.
E o branco, amollecido, adonnentado num luxo barbaro e
inconsequente, perde as suas qualidades, desfaz as suas
energias. 0 numero de escravos é, mesmo em Villa Rica,
tres, quatro vezes o numero de senhores. Ha mais escra­
vos do que homens livres. A população negra se desen­
volve prodigiosamente.
Isso acarretaria o deslocamento do eixo do paiz para
a região centro-sul. Néssa região se constituiría a zona
mais rica do paiz. Esse deslocamento, acearretado pela
mineração, se fixaria com a lavoura. A expansão em pro-

/
fundidade, muito maior no sul do que no norte, apezar de
que 0 bandeirismo não foi um phenomeno unicamente pau­
lista, trouxe para a região central da colonia, com o adven­
to do ouro, uma primazia que ella conservou até os nos­
sos tempos.
As consequências da mineração seriam immensas
para a nacionalidade que estava se fom ando. Acarretaria
uma immigração desordenada para a região centro-su3.
Essa immigração occupou definitivamente o sertão e se­
meou cidades, constituindo centros de commercio á bei­
ra das estradas de penetração e ao longo do S. Francisco.
Ficava creado um grande mercado de gado e tropas que
desciam o rio, provindas da Bahia e do nordeste. Repel-
liría, com a luta de emboabas e mascates, os paulistas
para a conquista de Goyaz e Matto Grosso e para o sul.
Tornou possivel a constituição do Rio de Janeiro em ca­
pital do paiz. E, segundo um dos mais lúcidos commen-
6 9
tadores da nossa historia economica, fez constituir-se na
região uma concentração e formação de capitaes, em es­
cravos e tropas, que, mais tarde, facilitariam a lavoura
de café no valle do Pamahyba e nas regiões fluminenses.
Para Portugal as consequências não foram^ de menor |
monta. Elias não fixaram a sua historia nem modifi­
caram a marcha dos acontecimentos da peninsula, mas
deram uma physionomia própria á sociedade portugueza
do tempo, influiram poderosamente nos padrões da época,
contribuiram para um surto notável de obras publicas no
reino, como o convento de Mafra, o palacio das Necessi­
dades, a reconstrucção de Lisboa. Os gastos immodera-
dos da corte poi-tugueza, no esplendor dum luxo fonni-
davel, foram pagos com o ouro do Bi-asil. Portueal .es­
tava, no inicio da minei'ação brasileira, em apertada si­
tuação financeira. Essa situação era consequência da sua
luta contra Castella. Os produetos oriundos do Bi'asil
soffriam uma tenaz concurrencia dos de outras regiões.
O erário lusitano se resentia desse desequdlibrio todo.
E incentivava excitadamente a descoberta das mi­
nas. O século X V n i marca a era de maior fartui’a do
erário portuguez. As suas arcas estão abarrotadas. Os
quintos da coroa, os rendimentos do districto diamantino,
a taxação extorsiva que as autoridades delegadas exer­
ciam, tornam possivel um accumulo de ouro como a nação
lusitana não conhecera e não mais conheceu. Refere-se
que, em 1770, os réditos e monopolios, afóra os rendimen­
tos provindos da mineração, deram acima de 600.000 li­
bras. O mesmo historiador affinna que, mais de 40 % dos
pagamentos effectuados pelo importadores brasileiros en­
travam para os cofres portuguezes sob a fo m a de impos­
tos, pois o commercio da colonia era feito por intermédio
da metropole. Nos fins do século, 2/3 do commercio exte­
rior de Portugal era mantido com produetos bi’asileiros. A
nação lusitana atravessava uma situação de abundancia
como jamais conhecera. Isso influiu poderosamente no
sentido da sua obra colonisadora que, ao envez de se ori­
entar por uma cooperação e por uma visão mais larga, es­
treitou-se, vincou-se duma brutalidade sem par. Não
7 0
houve liberdade que não nos fosse prohibida. Não houve
franquia que se nos permittisse. Era prohibido trabalhar
em ourivesaria. Era interdicto trabalhar o ferro e o ouro.
Imprensa não se podia crear. O Brasil conheceu a impren­
sa só no século XIX... Os naturaes da terra não tinham
direitos. Mas os seus deveres sommavam uma serie de cou-
sas. A taxação era despropositada e extorsiva. Matava o
interesse e fazia com que o particular trabalhasse para o
erário portuguez. Isso conduzia a uma situação desagra­
dável e brutal de burla e de fuga á fiscalisação, de con­
trabando e de repressão barbara.
A s consequências da mineração brasileira, porém,
longe de affectar, apenas. Brasil e Portugal, affectou pro­
fundamente a Europa e influiu grandemente na constitui­
ção do predominio inglez que surgiu depois que a colonia
entrou a enviar para a metropole o ouro das suas minas.
No inicio do século a producção do ouro brasileiro provocou
um augmento geral nos preços, desde que importou na
baixa do valor do ouro, pelo accumulo da sua producção.
Phenomenos correlatos, a abundancia do metal padrão
com a baixa dos preços, essa nova fonte de ouro, em
grande escala produziu, como não podia deixar de ser,
uma elevação no preço das mercadorias.
Portugal, em consequência da rivalidade politica com
a Espanha, approxima-se da Inglaten-a. Conclue com
ella o tratado de Methuen que relega o paiz lusitano a
uma situação exclusivamente agricola, portanto sem al­
cance no futuro, desde que só uma poderosa organisação
industrial póde constituir o arcabouço dum estado per-
feitamente organisado e apto a suprir-se de todas as
utilidades. O tratado obidgava Portugal a permittir
a entrada dos pannos e outras manufacturas de lãs ingle-
zas, em troca de tratamento preferencial aos vinhos lusi­
tanos. O século X V III encontra Portugal com uma ba­
lança negativa no commercio com a Inglaterra. Dessa fo r­
ma, sem poder reter o ouro que lhe manda a colonia, esse
ouro transita pelas suas alfandegas e vae supportar o
advento do predominio inglez. A coincidência desse suiix)
da mineração com as descobertas industriaes que marcam
7 1
0 século X V III, acarreta para a Grã-Bretanha uma situa­
ção excepcional. A Ingrlaterra inicia a sua curva ascen-
cional sobre a ruina porbugueza enfeitada duma opulência
fícticia e passageira.
0 natural espirito aggremiativo que busca reunir os
homens do mesmo officio, e que teve um prurido extraor­
dinário nos fins dos tempos medievaes, apparece, em to­
das as nações, quando o humanismo consolida a sua po­
sição, como um acontecimento de oi'dem geral. Na Fran­
ça, na Italia, na Espanha, surgem as academias, os cen­
tros de reuniões, os cenaculos onde se reuniam os homens
de letras, sob a protecção de algum politico em evidencia
ou pelo simples prazer de encontrar um meio onde a dif-
fusão do pensamento estivesse mais nonnalisada, mais
comprehendida.
Isso devia acontecer no Brasil, com muito mais na­
turalidade, de vez que o meio intellectual brasileiro, do
século X V III, era reduzido e ainda atrasado. A acção des­
ses intellectuaes sobre a sociedade vigente não seria pon­
derável nem efficaz. Elles não influiram na marcha
dos acontecimentos. Não teriam predominio sobre os pa­
drões ethicos e moraes da sua época. Appareciam, ainda,
como acontecimentos esporádicos, isolados e sem uma
onda de influencia capaz de lhes proporcionar situa­
ção de evidencia ou de predominio.
Dahi a constituição, copiada dos modelos europeus,
das chamadas academias. Elias tinham titulos extranhos
e pitorescos e aggremiavam os homens de pensamento que,
brasileiros ou não, frequentavam os estudos, liam e pro­
duziam obras em verso e prosa. Em 1724, sob os aus-
picios do vice-rei D. Vasco Fernandes Cesar de Mendonça,
fundou-se na Bahia, uma sociedade literaria conhecida por
“Academia Brasileira dos Esquecidos” . A ella pertence­
ram, entre outi-os. Sebastião da Rocha Pitta, Brito Lima,
José Pires de Carvalho e Albuquerque, os irmãos Bartho-
lomeu Lourenço de Gusmão e Alexandre de Gusmão. Doze
annos depois surgiría a dos Felizes, mais adeante a dos
Selectos e a dos Renascidos.
Sebastião da Rocha Pitta nasceu na Bahia, em 1660.
7 2
Estudou, como todos os brasileiros do seu tempo, no col-
legios dos jesuitas, seguindo, aos dezeseis annos, para Co­
imbra, continuando um habito dos brasileiros abastados de
então. As primeiras letras, com o jesuita. A formação,
em Coimbra. De regresso á terra misturou os misteres
da lavoura com o das bellas letras. Recolheu-se a uma
fazenda que possuia junto das margens do Paraguassú e
ficou entregue ao cultivo da terra e á leitura dos autores
mais diffundidos no tempo. Escreveu, nessa época, alguns
cânticos, sonetos, eclogas e hymnos. Um soneto de Rocha
Pitta seria uma cousa terrível para os leitores dos nossos
dias. Escreveu, ainda, em castelhano, um romance. Mas
a obra que lhe deu celebridade, foi a sua Historia da
America Portugueza, depois de laboriosas pesquizas nos
archivos de Lisboa, obra que publicou em 1730. Dizem
.as chronicas que Rocha Pitta se entregou a annos de in­
vestigações e de estudos antes de se dispor a escrever a
sua obra histórica. Iniciou essas pesquizas na Bahia, no
convento das ordens principaes, na bibliotheca dos jesui­
tas. Isto feito, embarcou para Lisboa, a consultar os do­
cumentos que lhe faltavam. Estudou linguas, aprofun­
dou-se no francez, no italiano, no hollandez. Aprimorou o
seu castelhano que já sabia bem. Consumiu largo tempo
em compor a obra, ultimando-a em 1728. Ella abrange
desde o descobrimento até os annos que antecederam a
sua publicação. D. João V nomeou-o, como recompensa,
fidalgo da casa real e cavalleiro da Ordem de Christo.
O estylo de Rocha Pitta é o que ha de rebuscado e de
enfadonho. Esci’eve elle: “ Do Novo Mundo, tantos séculos
escondido e de tantos sábios calumniado, onde não chega­
ram Hapnon com suas navegações, Hercules Lybico com
suas columnas, nem Hercules Thebano com suas empre-
zas, é melhor porção o Brasil; vastissima região, felicissi-
mo terreno, em cuja superfície tudo são fructos, em cujo
centx'0 tudo são lhesouros, era cujas montanhas e costas
tudo são ai’omas, tributando os seus campos o mais util
alimento, as suas minas o mais fino ouro, os seus troncos
0 mais suave balsamo. e os seus mares ambar o mais se-
lecto; admiravel paiz, a todas as luzes rico, onde pródiga-
7 3
mente profusa a natureza se desentranha nas ferteis pro-
ducções, que em opulência da monarchia e beneficio do
mundo apura a arte, brotando as suas cannas espremido
néctar, e dando as suas fructas sazonadas ambrosias de
que foram mentida sombra o licor e vianda que aos seus
falsos deuses attribuia a culta gentilidade” .
E" 0 lyrismo escolar que aprendemos na nossa infân­
cia e de que nos apartamos tão cêdo, com sacrifício de
algumas illusões. Rocha Pitta é o primeiro mentiroso da
nossa historia. E ’ ò marco inicial da velha lenda em que
hos debatemos de que a teiTa é grande e cheia de cousas
preciosas, que o Brasil é a maior e mais poderosa nação
do mundo. Os defeitos da sua maneira de escrever eram
os da época. Amava-se o rebuscado, as imagens tiradas
á antiguidade. A sonoridade, o effeito da psrase, tinham
uma importância capital.
A analyse histórica de Rocha Pitta prima, também,
pela impassibilidade. Num tempo em que já havia um
forte sentimento nacional, em que se pensava sériamente
no Brasil, elle encara a colonia, apenas, como uma joia
engastada na coroa pox’tugueza. Os movimentos anterio­
res ao seu tempo, as lutas pela posse da terra, os episodios
denunciadores duma consciência em formação, nada dis­
so lhe desperta uma phrase, daquellas suas phrases enro­
ladas, denunciando o brasileiro que entrevê a patria fu­
tura, ou, pelo menos, o regionalista sensivel que aprecia
com maior ardor aquillo que toca ao seu torrão. A narra­
ção decorre, impassivel e sonoi^a, como uma musica toca­
da sem altos e baixos, num diapasão unico. Rocha Pitta
falhou ao seu destino de histoiãador do Bi’asil. O simples
facto de ter appelidado a sua obra de Historia da America
Portuguesa já o faz suspeito aos nossos olhos. Elle olhava
a terra com a visão do homem educado em Coimbra, do
portuguez nascido na colonia. Tudo nelle é portuguez, o
estylo, coimbi'ão puro, a maneira de apreciar os aconte­
cimentos, 0 gongorismo.
Frei Manoel de Santa Maria Itaparica é, dos poetas-
tros do tempo, donos duma versalhada tenúvelmente en­
fadonha e monotona, sem uma nota mais attrahente, sem
7 4
uma pintura simples, o menos desagradavel. O seu poe­
ma Eustachidos, composto em oitava rima e dividido em
seis cantos, é uma cousa pesadona e terrível, difficil de ser
digerida. Adivinha-se nelle, como em muitos outros
f poetas desse tempo, uma vontade accentuada de imitar os
Lusíadas, de copiar Camões. A sua descrípção da ilha de
•i ítaparica figura em anthologias e é tida como uma pa­
gina das melhores que escreveu.
Nuno Marques Pereira, autor do Peregrino da Ame­
rica, parece que mereceu a admiração dos seus contempo­
râneos. A sua obra teve cinco edições a acreditar na in­
formação de Ronald de Carvalho. O seu portuguez, a lín­
gua em que trabalhou, é quasi do mesmo estylo da de
Rocha Pitta. Talvez seja peior. Menos empolada, mas
menos correcta.
A maior figura do tempo, o Gregorio de Mattos da
época, é, sem sombra de duvida, o judeu Antonio José. V i­
vendo em Portugal e lá se educando, elle pertence mais ao
pensamento portuguez do que ao nosso; entretanto, como
nasceu em nossa terra e como, enti‘e outros, está aiTolado
entre os brasileiros o lusophilo Rocha Pitta, não será de­
mais discorrer sobre uma personalidade interessante como
a deste homem de espirito, escrevendo com uma clareza e
uma ironia que, para a sua época, constituem um dos acon­
tecimentos mais notáveis.
Antonio José da Silva, mais conhecido por Judeu,
nasceu no Rio de Janeiro, em 1705, filho dum advogado
brasileiro, de origem judaica, João Mendes da Silva, e de
Lourença Coutinho. Foi para Lisboa com seus paes quan­
do D. João V mandou recolher ao reino os judeus do Bra­
sil. Tendo tenninado os estudos primários, foi para Coim­
bra onde se fom ou . Ajudando o pae, no trabalho da advo­
cacia, entretinha-se em versejar, o que provocou a atten-
ção da Inquisição, que não havia perdido de vista a fa ­
mília que mandara buscar ao Brasil. Preso, submettido a
torturas teve despedaçados os dedos das mãos. Peniten­
ciado em auto de fé, procui’ou mostrai-se mais catholico.
visto como a Inquisição o não perdia de vista nem lhe
perdoava o talento e a origem. Impellido por uma incli-
í í>

nação profunda, dedicou-se a escrever peças de theatro e


fez representar, em 1733, a primeira, intitulada “ Historia
do Grande D. Quixotte de La Mancha e do Gordo Sancho
Pança, no theatro do BaiiTo Alto. O successo da peça cha­
mou novamente, sobre si as vistas da Inquisição e dos
seus ionimigos e invejosos que o procuraram anniquilar.
Por esse tempo casou-se com Leonor Maria de Cai*valho,
também de origem judia, já absolvida pela Inquisição hes-
panhola, depois “de se confessar arrependida". O seu
casamento contribuiu podeí’osamente para que a Inquisi­
ção redobrasse a vigilância que exercia em torno delle e
acabasse por captural-o de novo. Em seguida ao D. Qui­
xotte, apresentaram-se outras peças de Antonio José, como
a Esopaida, Os Encantos de Medéa, o Amphytrião, o La-
byrintho de Creta, as Guerras do Alecrim e da Mangero-
na e as Variedades de Proteu.
Rezam as chronicas que, quando se procedia aos en­
saios da nova peça Precipício de Phaetonte, o poeta, sua
mulher e sua velha mãe foram presos por ordem da ne-
fanda instituição e encarcerados no Rocio. Contam que
0 que se passou foi verdadeiramente monstruoso. Todos
os meios foram usados, os meios de que a Inquisição era
pródiga, para anniquilar esse engenho tão lúcido. O pro­
cesso revelou o proposito deteminado de inutilisar o poe­
ta. Condemnado á morte, mandado ao baraço .secular, a.s-
sistindo á condenmação da mãe e esposa á prisão perpe­
tua, facil é de se imaginar a angustia de quem tão dura­
mente provava a raiva da ignorância. Foi queimado em
praça publica, para escarneo de um povo, o maior poeta
comico da lingua, o unico homem que podia ser posto em
parallelo com Gil Vicente.
Como poderia esse espirito atribulado, vigiado e per­
seguido, produzir uma obi'a onde a ironia se insinúa gra­
ciosa e lépida? A sua vida devia tel-o inclinado mais ao
sarcasmo feroz, á satyra ou a uma beatice tola. Entre­
tanto, contra todos os revezes, elle mostra-se capaz de
construir uma obra soberba pelo riso claro e limpido que
a domina toda.
7 6
A brutalidade da primeira violência póde ser avalia'
da no vigor com que a pinta Alberto Rangel: “Ajoujado
nas traves de um potro, sobre o qual ficavam atados, por
oito partes, os seus membros nus, promptos a serem dis
tendidos, e até dilacerados, si preciso fosse, passou, assim,
todo 0 interrogatório, feito em presença dos maioraes do
officio. Dir-se-iam os esbirros moleiros atarefados cal­
cando os molinetes da mó benigna que pulverisa o trigo.
A arcada do peito do judeu, agarrunchada no trato, veio
a tomar-se de uma cor rubra, que se tornou violacea. Ar-
roxaram, também, os bi'aços, as mãos, os joelhos, a testa
€ os pés. Os ossos começaram a estalar, a pelle contusa
zebrava-se de faixos sanguinosos. Tumificaram-se os cor­
dões das veias. O sangue porejou de sobre as unhas. Os
olhos dir-se-ia expulsos das órbitas sob as torções dos
carrascos. As costellas assemelhavam aduélas de uma se^
lha desfeita. Durou quinze minutos o trato corrido.. .
Quando o tiraram, ainda desacordado, das voltas da ma-
china aperreante, tinha elle os dedos da mão, pisada hor­
rorosamente, inchados, não podendo por isso assigrnar c
termo lavrado pelo notario” .
O espantoso, em tudo isso, não é a atrocidade, a frie­
za, a incrível deshumanidade da tortura; o espantoso é que
esse homem tenha tido coragem sufficiente para, suppor-
tando isso tudo, e com o sentimento do que lhe iria acon­
tecer mais tarde, construir uma obra em que o riso
se expande, destinada a encher de alegria o povo
que 0 amava o admirava. O que espanta não é pro­
priamente que elle tenha passado pela dor immensa sem
se dobrar, mas que, com a espada sobre a cabeça, após a
prova sanguinolenta, pudesse ter a tranquillidade d«
compor alguma cousa que não fosse triste ou que não fos
se revolucionário. Ha, por certo, na sua ironia mordente,
em algumas figuras das suas comédias, no enredo de cer­
tas obras suas, uma vingança contra a ignorância do meio,
contra a abysmal cretinice que acabrunhava a nação por-
tugueza. São passagens, porém. São trechos na urdidura
inteira. Todos elles dominados pelo motivo principal, o
riso, um riso que o fazia popular, que o fazia admirado.
7 7
que 0 fazia querido. E que o fez, talvez por isso mesmo,
terrivelmente desgraçado.
João Ribeiro grupa as obras de Antonio José em tres
partes: as comédias que não existem e nunca foram im­
pressas — as authenticas — e as conjecturaes. Entre as
primeiras, conhecidas' de nome, duvidosos nomes e que
nunca foram publicadas, aponta Os Amantes de Escabe­
che, 0 S. Gonçalo de Amarante, o Telemaco na ilha de Ca­
lipso e o Amor vencido de amor. Entre as ultimas, as con­
jecturaes, indica Os Encantos de Circe, Obras do Diabi-
nho da Mão Furada e a Nympha Siringa. As authenticas
apparecem, em numero de oito: 1) a Vida do Grande D.
Quixotte de Ia Mancha e do gordo Sancho Pança, (Outu­
bro de 1733); 2) a Esopaida, (A bril de 1734); 3) — Os
Encantos de Metléa, (Maio de 1735); 4) — O Amphytrião
ou Júpiter e Alcmena, (Janeiro de 1736); 5) — O Laby-
rintho de Creta, (Novembro de 1736); 6) — as Guerras
do Alecrim e Mangerona, (Janeiro de 1737); 7) — as Va­
riedades de Proteu, (Maio de 1737) e 8) — o Precipício de
Phaetonte, (Janeiro de 1738).
Interessante assignalar que a sua producção vae num
crescendo. A principio offerece uma comédia por anno.
Começar a eccelerar o rsrthmo das suas creações, premido
pelo publico que o applaudia, que procurava, sem distinc-
ção de casta, o Theatro do Bairro Alto, e chega a produ­
zir, no ultimo anno, tres obras e, entre ellas, a sua obra
prima, a mais completa, a mais viva e a mais original das
comédias, as Guerras do Alecrim e Mangerona, Essa pro­
ducção não só marca a preeminencia no conjuncto das que
0 poeta creou, mas lhe fixa, nitidamente, o declinio. A s
que se lhe succedem não pódem ser postas no nivel das
demais. Parece que o impeto creador se esfalfara, na ac-
celeração do rythmo, e o prenuncio do fim o atormentava
já. Ha uma evidente confusão, um máo gosto manifes­
to, nas suas duas ultimas obras. Ellas se subordinam
demais ao appetite vulgar. Submettem-se em extremo
ás imposições do publico.
De facto, elle sacrificou muito aos imperativos popu­
7 8
lares. Deformou a trama das obi‘as. Sobrecarre«ou-as
duma chulice desordenada, duma linguagem tocando
as raias do calão, ao submetter-se ao gosto do pu­
blico, tudo para nivelar o seu pensamento, as suas crea-
ções, ao sentimento geral. E o seu publico, do Theatro do
Bairro Alto, era tudo o que Lisboa possuia, na escala deS'
cendente das classes sociaes, na gamma variada das opi­
niões, na casta confusa das profissões e das ci'enças. O
Precipício de Phaetonte e as Variedades de Proteu são
exemplos curiosos e nitidos do quanto Antonio José dei­
xava a opinião vulgar intromettei-se nas suas creações. Cus­
ta a crer que tenham sido compostas pelo poeta, por quem
pudera offerecer alguma cousa como as Guerras do A le­
crim e Mangerona. A mythologia, em que buscava, quasi-
sempre, o enredo das suas comédias, fica, em suas mãos,
uma trapalhada sem pés nem cabeça, onde elle altera, a
seu bel prazer, tudo aquillo que lhe não sirva ou não
esteja ao alcance da intelligencia mediana. Nessa parte,
0 Amphytrião é, talvez, a unica cousa que se salva. A Eso-
paida fez do fabulista uma personagem grotesca, para que
o publico pudesse achar interesse e vivacidade nessa figu­
ra antiga. Tornal-o grande, ou sceptico ou moralista, im­
portaria em collocal-o fóra da alçada da gente iniuda que
0 assistia, que o sustentava, que o enchia de applau.so.s.
A influencia de Antonio José sobre o theatro portu-
guez foi uma cousa clara e inegável. Antes delle o
theatro lusitano entrara numa deplorável decadência,
só interrompida por D. Francisco Manoel dê Mello,
que a inopia de D. João V não permittiu se consagras­
se. Ora, Antonio José não era apenas o intei-esse, a viva­
cidade, a popularidade do theatro, — mais do que isso elle
representava uma subversão, um ponto adeantado, uma
mutação do velho theatro portuguez, pela introducção de
novos effeitos. João Ribeiro i’eputa genial a sua innova-
ção de juntar, á comedia de typo hespanhol, algo da opera
italiana, entremeando de musicas nacionaes ou não, as
arias, os diálogos das suas peças. A s suas produc-
ções prendiam-se á alma popular. Subordinava-se
a ella. O publico tinha quasi uma influencia directa na
7 9
feitura das suas obras. Elle apreciava os effeitos dessas
creações sobre o espirito dos que o assistiam. E modifi­
cava. E aperfeiçoava.
O theatro, na sua realidade, no facto de viver, de ser
representado, deu ás obras escriptas de Antonio José uma
das qualidades mais nitidas, mais notáveis, o dom do
dialogo. Quando as suas personagens falam, ha muita
clareza, ha uma esplendida naturalidade. Isso faz com
que, ainda hoje, algumas das obras do Judeu, notadamen-
te as Guerras do Alecrim e Mangerona, constituam uma
leitura deliciosa, uma diversão que se atravessa sem
cansaço.
Não se póde dizer que Antonio José tenha tido qual­
quer acção sobre a vida literaria do Brasil. Eíle in­
fluiu, certamentc, sobre o espirito do seu tempo, e e.ssa
influencia chegou até nós, tanto mais que a lingua era a
mesma. Dahi a aquilatar que elle tenha sido um grande
autor brasileiro, um espirito da sua gente, como já se af-
finnou, vae uma distancia muito grande. Como, entre­
tanto, nos tempos em que elle actuava, era muito impre­
cisa a separação do espirito literário dos dois paizes, seria
injustiça obscurecel-o ou omittil-o.
Omissão vulgar comettem os historiadores das nossas
letras ao esquecerem o interessantíssimo Antonil. André
João Antonil foi pseudonymo de João Antonio Andreoni, A
escinptoi’ brasileiro de origem italiana, nascido em S. Pau- ,
lo entre 1670 e 1680. Antonil escreveu claro e bem. Con­
tou cousas altamente interessantes sobre a terra, sobre as
suas culturas, sobre a fiscalisação ultramarina, sobre os
lucros da metropole. Uma obra como a sua não podia
agradar ao espirito dos portuguezes. A sua circulação
foi prohibida pelo governo de D. João V. Pelo titulo se
póde avaliar o alcance do que narrou Antonil: Cultura e
opulência do Brasil por suas d-ogas e minas, com varias
noticias curiosas do modo de fazer o assucar, plantar e be­
neficiar o tabaco; tirar ouro das minas, e descobrir as da
pmta; e dos grandes emolumentos que esta conquista da
America Meridional dá ao reino de Portugal com estes e
outros generos e contractos reaes.

)j
8 0
Como se vê era impossível o reino permittir a divul­
gação de obra tão importante. Seria um contrasenso, na
mentalidade portuguesa de extorsão e de anniquilamento.
Consumou-se a prohibição. Interdicta a publicação de
obra de tão alto interesse, ficavam os sagrados e purís­
simos ideaes dos colonisadores a salvo duma propagan­
da insinuante. Repetiu-se o caso de Frei Vicente do
Salvador. Antonil, clássico brasileiro, veio a ser conhe­
cido muito depois, quando já não havia colonia...
C APITU LO IX

Phase aurea da mineiação, seu apo­


geu — Poetas da escola mineira — For.
ma-se um núcleo literário nas Minas Ge-
raes — De José Basilio da Gama a Silva
Alvarenga.

O desenvolvimento da mineração ia ter como conse­


quência 0 deslocamento do eixo do paiz para a região cen-
tro-sui, como já foi explicado, e traria a creação, nesse
ponto do interior brasileiro, de núcleos de cultura,
onde devia se expandir o espirito dos homens da terra, nos
impulsos naturaes que os levariam a um nativismo cada vez
mais acirrado. A ’ proporção que a safra annual de
ouro augmentava era natural que augmentasse, também,
e na mesma razão, a ganancia do fisco portuguez, no seu
desdobramento de formas de oppressão e de extorsão. A
ansia metropolitana para a peiqDetuação do luxo esteril
e ficticio, a illusão das grandes obras publicas feitas com
0 ouro do Bi'asil, a falsidade duma situação de desafogo
que parecia eterna, quando não era mais do que uma
aragem, mais do que um sonho, tx'azendo nas suas dobras
0 germe da própria destruição — tudo conduzia a que
Portugal se fizesse cada vez mais cégo na sua cobiça co-
lonisadora que perturbava a phase administrativa, desde
que grandes centros de commercio já se haviam constitui-
do e a colonia estava apta a funccionar, apta a produzir.
A mineração caracterisou-se, como em toda a parte,
pela improvisação de riqueza. O advento das populações
fazia 0 conglomerado das cidades. As que já existiam de­
8 2
senvolviam-se subitamente. E, em torno da mina, rodean­
do essa massa de adventicios, ergueu-se o arcabouço
fiscal, a hiei-archia das autoridades, a burocracia dos do­
minadores, acompanhada do seu cortejo de funccionarios.
Isso deslocou para as Minas Geraes o centro cultural do
Brasil. A civilisação do ouro não podia deixar de ser acom­
panhada, na sua vertigem, pelas modalidades todas duma
cultura que iniciava a sua emancipação. O surto de poe­
tas e escriptores que podia irromper em Recife ou no
Rio de Janeii'o, expande-se no interior de Minas, acom­
panhando a mai'cha da civilisação brasileira.
Esse agrupamento de escriptores, surgidos da época
da minereção e localisado na região do ouro, tem como
causa da sua fixação o deslocamento da administração da
colonia. Naturalmente esses homens cultos que appare-
cem nas Minas Geraes, e que, por isso, constituiam a cha­
mada “escola mineira” , não se sentii-am influenciados di-
rectamente, pelo drama que assistiam. Não os commoveu
a tragédia da realidade. Não ha na obra delles siernaes
de influencia da civilisação do ouro, da nova phase da vida
brasileira. Apenas, acompanhando a marcha territorial
da riqueza, o prolongamento da producção, elles foram
apparecer no local onde, mercê desse deslocamento, ha­
via se crystallisado a sociedade do tempo, com as suas ;
columnas mestras, a administração e o fisco.
A independencia nasceu no districto diamantino.
Foi alli que, brutalisada pela ganancia ultramarina, a
alma brasileira sentiu os seus maiores, mais ásperos e
mais nitidos impetos de revolta. Produzir pai'a si, é um
desejo latente, uma inclinação natural do homem. Con-.
tribuir para outrem, ainda que esse outrem se occulte
nas sombras da autoridade e do dominio, com o seu cortejo
de mythos, sempre constituiu um g e m e de rebeldia. O
sentimento natiyista não podia deixar de soffrer um im­
pulso considerável na região onde a ganancia se exercia
infrene e expoliadora. E esse sentimento ia crescer con­
tra 0 dominio oppressor duma autoridade devorada nela
volúpia especuladora e cegueira administrativa que Frei
8 3
Vicente já apontára e que, marcada pelo ouro, ia reves-
tir-se de um immediatismo muito semelhante ao do
hollandez em Pernambuco. Na vertigem do ganho, Por­
tugal perdería as ultimas luzes, ficaria desorientado e
louco. A separação, latente, abriria um hiato tremendo
entre o reino e a colonia. O que até então não passara de al­
guns lampejos de revolta, isolados e imprecisos, rápidos
e sem repercussão, ia marcar, nas Minas Geraes, pela
brutalidade do fisco, uma pemanencia, uma fundamenta­
da revolta, uma ansia contra a oppressão que vincariam
profundamente o espirito da colonia e lhe iriam offerecer
os alicerces da ideia de patria, de autonomia, de separa­
ção, mais adeante.
O processo historico não marcou a independencia na-
quella época porque não interessava ás grandes forças
vivas da colonia. Effectivamente o minerador era um
paria, um humilde, e as populações das Minaes Geraes,
que se atiravam em busca do ouro, não possuiam uma
hierarchia de valores, não se haviam constituido em gran­
des fortunas. Era um bando de desherdados na moldura
riquissima da mineração. Não havia um grupo de gran­
des proprietários. O que existia era uma multidão de
pequenos mineradores, de exploradores do solo, que nun­
ca attingiam á riqueza, pois o fisco lhes prohibia, na mul­
tiplicidade das suas prevenções, que se tomassem, um
dia, grandes senhores de minas ou proprietários de
fortunas enoraies. Si em Minas Geraes já se hou­
vesse constituido uma sociedade; íi essa sociedade es­
tivesse já perfeitamente delineada, na sua estructura; si
tivesse nesse tempo apparecido um núcleo de homens en­
riquecidos na mineração, grandes senhores da terra,
de escravos e de minas; si o agrupamento humano ex-
poliado e opprimido já possuisse o arcabouço duma soli­
dariedade de interesses, o drama da Inconfidência, a cons­
piração deixaria de interessar a um pequeno numero de
visionários para se tom ar em aspiração collectiva, e en­
tão. ..
8 4
0 que mallogrou o sonho de Tiradentes e seus com­
panheiros não foi a trahição nem o desanimo, foi a impos­
sibilidade absoluta de alguma cousa mais poderosa e mais
profunda. A Inconfidência attrahiu, na sua trama, ho­
mens de letras e cultura e interessou, pelas suas conse­
quências e pela época marcada para a sua explosão, um
bando enorme e desigual de mineradores. Mas não encon­
trou apoio em corrente alguma sólida da fortuna e do do­
mínio da terra. Nem podia encontrar desde que não exis­
tia, como já narramos, uma sociedade com os seus degraus
nitidos e inconfundíveis. Interessando a uma plebe tumul­
tuada e desorganisada, o seu golpe cahiria no vacuo, como
aconteceu, e o destino dos seus chefes não poderia ser ou­
tro senão offerecer ao dominador a opportunidade do
exemplo, pela brutalidade do castigo e pela violência da
repressão.
No grupo de poetas que apparece em Minas Geraes
ha, certamente, uma distincção sensível entre a fo m a de
uns e outros. Iniciaremos por um camoneano, pi’eso á for­
ma do vate portuguez:
Frei José de Santa Rita Durão nasceu em Catta Pre­
ta, arraial do Inficcionado, pe)'to de Marianna, em data
I imprecisa. Alguns apontam 1737, outros opinam por
1720. Seguiu os tramites naturaes; estudou com os je ­
suítas do Rio de Janeiro e foi para a ordem dos Agosti-
nhos, professando em Lisboa. Breve teve de deixar Por­
tugal e, ao atravessar a Hespanha, foi preso e mettido na
torre de Segovia, suspeito de espionagem. Posto em li­
berdade, pela paz estabelecida entre Portugal e Ilespa-
nha, continuou o seu caminho para Roma, onde foi bi-
bliothecario, protegido do cardeal Ganganelli, mais tar­
de papa sob o nome de Clemente X IV . De regresso a
Portugal viu-se nomeado lente oppositor da cadeira de
theologia.
Foi em 1871, tres annos antes de morrer, que Santa
Rita Durão fez publicar o seu poema Caramurú. Compol-o
já na velhice, dictando-o a um creado e ao padre José Agos­
tinho de Macedo. O fracasso do apparecimento do poema
apressou-lhe a morte. Desgostoso, Santa Rita Durão rea-
8 5
lisou um autc de fé em que queimou as suas producções
poéticas.
O Caramurú narra, em dez cantos, o naufrágio de
Diogo Alvares e os amores que por elle tiveram varias in­
dígenas, a sua preferencia por Paraguassú, o embar­
que para a P'rança, num navio que surgira na costa, o
casamento na corte franceza, a morte de Moema, no seio
das ondas, onde se atirara pai'a acompanhal-o, o regosijo
dos indigenas pelo seu regresso á Bahia. Santa Rita Du­
rão aproveitou os vários ensejos do poema para neWe en­
cartar os episodios mais notáveis da vida brasileira até o
seu tempo. Estuda o temperamento catholico dos brasi­
leiros, o espirito aventureiro dos portuguezes, os negros,
s.vnthetisados em Henrique Dias, os indios, as suas lendas,
os seus costumes, os seus usos, as tribus, os animaes, as
plantas. Aproveita um sonho de Pai-aguassú para pintar
a expulsão dos francezes, a fundação do Rio de Janeiro,
a guerra hollandeza. A acção desenrola-se na Bahia, cuja
fundação descreve, e vae se estendendo ao paiz todo, de
forma a acompanhar o desenvolvimento da colonia, os
acontecimentos mais notáveis que a atribularam, i'esumin.
do a formação brasileira.
Sobre o mérito do Caramurú, as opiniões divergem
sensivelmente. Garrett admira as pinturas da natureza.
Camillo acha-o duramente metrificado. Ao contrario, Teo-
philo Braga opina que Durão metrificava com facilidade
e foi um poeta nacional percursor da originalidade da li­
teratura brasileira.
O que parece certo, porem, é que o Caramurú, embora
na forma se prendesse á epopéa camoneana, tem o mérito
do assumpto. Elle indica que existe uma preoccupação da
terra, no espirito dos seus escriptores. E’ paia ella que se
volta esse velho, no seu latiro, e aproveita os seus últimos
annos para descx'evèl-a. Naturalmente o episodio de Diogo
Alvares offerecia margem para a poetisação. Entrava o
elemento indigena, com o se-', vasto cabedal de lendas, com
a variedade dos seus costumes. O simples facto de Santa
Rita Durão ter aproveitado todas as opportunidades, e ter
creado outras, para que surgissem os lances mais importan­
8 6
tes da vida da colonia, indica, de sua parte, um sentimento
regional profundo, o interesse pelo ambiente nativo. O
proposito patriótico é claro.
Quanto á questão da forma não ha muito que discutir.
A epopéa nunca foi do nosso agi'ado. Parece que o
terrível senso do ridiculo, qué no brasileiro anda á
flor da pelle, nos prohibe os aiToubos extraordinários,
os exageros, o carregado das tintas. Preferimos o
lyrismo, sentimo-nos mais á vontade na simplicidade. Oi'a,
para o tempo, evidentemente o modelo de epopéa era a
grande obra de Camões. Nada mais natural que Santa
Rita Durão imitasse essa fo m a , que se prestava melhor
ao genero que escolhei^a.
Outro aspecto interessante do poema é o appareci-
mento, nelle, do elemento indigena. Era o, indianismo que
surgia. O Uimguay, apparecido antes dó Caramurú, já
apontara o caminho. O elemento da terra, com as suas
lendas e a sua contribuição para o desbravamento, prepa­
rava os seus cantores. Nesse ponto, mais uma vez. Santa
Rita Dux‘ão teve mérito patriótico. Demais elle contou os
episodios interessantes da existência e da formação do
nosso povo, na phase colonial. Pintou-os dentro dum es­
pirito apegado ás cousas brasilicas. Deu realce aos senti­
mentos nobres do indigena. Poz em relevo as suas accões.
Isso era o Bx-asil.
E ’ clax'o que os seus vex-sos nem sempx'e são interes­
santes. A sua metrificação é, por vezes, aspex^a e dura.
Camillo, nesse ponto, tinha razão. Mas ha, em alguns
lances, mais do que interesse, belleza. A moxte do pxã-
sioneiro, a max-cha das nações gentias que se apx’essam
para combater os Tupinambás, a morte de Moema, presa
de um amor immenso e acompanhando, a nado, o navio em
que seguia Diogo Alvax'es, são trechos de grande vida, de
effeito impx'essionante.
Apezar dos defeitos, o Cax^amurú permanece como
0 maior poema nacional. Só elle abrange, dentro dum
certo tempo, todo o Brasil, na sua historia, nas suas len­
das, nos seus usos, na vida da sua gente, na fox-mação em
8 7
que entram os elementos que aqui trabalharam e produ­
ziram, 0 negro, o portuguez aventureiro, o indio. Este,
engrandecido, poetisado, no esplendor das qualidades no­
bres e viris. Ha, no episodio de Moema, certamente o
mais bello de todo o poema, o calor duma admiração enor­
me pelo indio:

Copiosa multidão da nau franceza i


Corre a ver o espectáculo assombrada; |
E, ignorando a occasião da estranha empresa.
Pasma da turba feminil, que nada;
Uma que as mais precede em gentileza,
Não vinha menos bella do que irada.
Era Moema, que de inveja geme,
E já vizinha á nau se apega ao leme.

“ Barbaro, (a bella diz) tigre e não hom em ...


Porém o tigre, por cruel que bi'ame,
Acha forças, amor, que emfim o domem;
Só a ti não domou, por mais que te ame:
Fúrias, raios, coriscos, que o ar consomem,
Como não consumis aquelle infame?
Mas pagar tanto amor com tédio e asco. . .
A h ! que o coidsco és tu . . . raio. . . penhasco.

“ Bem poderas, cruel, ter sido esquivo,


Quando eu a fé rendia ao teu engano;
Nem me offenderas a escutar-me altivo,
Que é favor, dado a tempo, um desengano;
Porém, deixando o coração captivo,
Com fazer-te a meus rogros sempre humano.
Fugiste-me, traidor, e desta sorte
Paga meu fino amor tão crua moi'te?

"Tão dura ingratidão menoar sentira,


E esse fado cruel doce me fôra,
Se a meu despeito triumphar não vira,
Essa indigna, essa infame, essa traidora;
8 8
P ot sei^va, por escrava te seguira,
Se não temera de chamar senhora
A vil Paraguassú, que sem que o creia,
Sobre ser-me inferior, é néscia e feia.

“ Emfim tens coração de ver-me affHcta,


Pluctuar moribunda entre estas ondas;
Nem 0 passado amor teu peito incita
a um ai sómente com que aos meus respondas.
Barbaro, se esta fé teu peito irrita,
(Disse vendo-o fu gir) ah! não te escondas;
Dispara sobre mim teu cruel r a io ...”
E, indo .dizer o mais, cai n’um desmaio.

Perde o lume dos olhos, pasma, treme,


Pallida a cor, o aspecto moribundo;
Com mão já sem vigor soltando o leme.
Entre as salsas escumas desce ao fundo;
Mas na onda do mar, que irado freme.
Tomando a apparecer desde o profundo:
“ A h ! Diogo cruel!” disse com magua,
E, sem mais vista ser, sorveu-se n'agu a...

Choraram da Bahia as nymphas bellas,


Que nadando a Moema acompanhavam,
E, vendo que sem dor navegam dellas,
A ’ branca praia com furor tomavam:
Nem póde o claro heroe sem pena vêl-as
Com tantas provas que de amor lhe davam;
Nem mais lhe lembra o nome de Moema,
Sem que o amante a chore, ou grato gema.

Si Santa Rita Durão abrange, no seu poema, o Bra­


sil inteiro, numa synthese da sua formação, aproveitan­
do todas as opportunidades para fazer surgir os episó­
dios principaes da integração da colonia, já José Basilio
da Gama, na sua epopéa, toma como assumpto apenas
uma parte do largo painel em que se desenrolavam os
acontecimentos coloniaes, e trata, tão sómente, da luta
8 9
que Portugal, com auxilio da Hespanha, mantem contra
os Índios dos Sete Povos das Missões do Uruguay. Já a
forma de Basilio da Gama, entretanto, inaugura a autono­
mia do escrever brasileiro. Elle se desapega muito mais
do que Santa Rita Durão, dos cânones do classicismo. Na
sua pcesia ha mais grandiloquência, mais harmonia. A
disposição dos versos é nova. As comparações são origi-
naes e os archaismos diminuem sensivelmente.
Basilio da Gama desenvolve a sua existência numa
das épocas mais interessantes da historia portuguesa, o
tempo de Pombal. Nascera em S. José das Mortes, hoje
Tiradentes, pouco depois da quarta década do século
XVIII. Era filho de fidalgos. Na sua formação percorre
caminho natural: primeiras letras com os jesuitas, no Rio
de Janeiro. Seguiria para Coimbra, si não sobrevies­
sem acontecimentos que atalharam tal rumo. Pombal
supprimira a Companhia de Jesus, em Portugal e
mandara expulsar os padres. Facilitava aos não professos
a clemencia, na expulsão, desde que desistissem de acom­
panhar os mestres. Basilio da Gama, que não tinha vo­
cação decidida, aproveitou-se da excepção e pemaneceu
no Rio de Janeiro, passando depois a Roma onde foi re­
cebido na Arcadia Romana. Voltou ao Rio de Janeiro e
embarcou para Lisboa, para reatar o curso interrompido:
iria cursar Coimbra.
A condição de ex-noviço chamou a attenção das
autoridades. Foi preso. A sua solercia salval-o-ia, en­
tretanto. Casava-se uma filha de Pombal e Basilio da
Gama mandou-lhe um epithalamio. Nessa versalhada ha­
via tudo 0 que pudesse agradar ao marquez, imprecações
contra os jesuitas, elogios á sua acçãb politica, augurios
de felicidades. Os versos, apezar da origem, deviam ser
bellos porque, suspensa a condemnação de exilio na Afxd-
ca, valeram-lhe ainda a pimtecção do primeiro ministro.
Sob os auspicios de Pombal é que vem á luz o poema O
Uruguay, destinado a contar os episodios da debellação
dos Índios das missões jesuiticas do Uruguay pelo gene­
ral portuguez Gomes Freire de Andrade. Gomes Freire
foi 0 heroe da epopéa. A obra satisfazia aos desejos
90
do ministro de D. José, atacava impiedosamente o jesuit:
torcia os acontecimentos, amoldava-se á situação do po<
ta, que foi melhorando, com o passar dos tempos, adqu
rindo Basilio da Gama posição de destaque na corte, gc
zando da benevolencia dos poderes e dos bafejos, senã
da fortuna, pelo menos dum conforto que a ella se ass(
melhava. Tomou parte na chamada guerra dos poetas qu<
sobre assumptos de tendências literárias, surgiu em Li:
bôa. Satyrisou e foi satyrisado. E mon-eu, commodí
mente, solteiro, tendo dobrado meio século de existencií
Da sua obra poética ficou-nos o Uruguay, poema ép
co em cinco cantos e 1402 versos brancos decasyllabos. I
o maior titulo de gloria do poeta. No dizer de Garrett
poeta era o de maior mérito de toda a poesia moderna.
O singular valor delle está em que Basilio da Gam
fugiu aos cânones camoneanos. A influencia do épico do
Lusiadas não apparece no cantor dos indios. Escrevend
a historia da conquista das missões indigenas pelos porti
guezes, 0 cantor deu ao elemento nacional uma primazi
sem par. Seria um nitido precursor do americanismo, o
melhor, do indianismo, forma que adornou o nacionalism
brasileiro, que o distinguiu, cêdo ainda, dos motivos portu
guezes. Basilio da Gama, no seu poema, rebelava-se cor
tra a forma usual. Elle abandonava a escravidão das re
gras classicas. Fugia aos recursos do pagão e do christãc
As suas imagens derivam de fontes diversas. Elias bus
cam motivos na natureza e na gente do paiz em que s
passavam os acontecimentos. Dava ao indio aquelJas qua
lidades românticas e nobres que constituiríam o fundo d
indianismo futuro. Levantava-se contra o preconceito d;
epopéa. Refundia a forma em que cHa se ornaria. In
dicava novos rumos ás letras brasileiras. Cantando em
bora os feitos de Gomes Freire, elle poderia invocar i
"gênio da inculta America” . E pintaria com amor a
scenas mais fortes, jogadas pelos indios, emprestando
lhes sentimentos elevados, fazendo-os quasi o motivo cen
trai do poema, em detrimento do heroe portuguez:
9 1
Nos olhos Caitetú não soffre o pranto
E rompe em profundíssimos suspiros,
Lendo na testa da fronteira gruta
De sua mão já tremula gravado
O alheio crime e voluntária morte,
E por todas as partes repetido
O suspirado nome de Cacambo.
Inda conserva o pallido semblante
Um não sei que de maguado e triste,
Que os corações mais duros enternece:
Tanto era bella no seu rosto a morte!

Outro épico, dos poucos que tivemos, foi Cláudio Ma­


noel da Costa, nascido na villa do Carmo, nas Minas Ge-
raes, no anno de 1729. Descendia de uma familia de pau­
listas que, nos primeiros tempos da mineração, se desloca­
ra para as Minas. Era commum isso de velhas famí­
lias paulistas darem origem a aiTaiaes e a novas famí­
lias, na região cujo progresso e cujo desenvolvimento foi
marcado pelo ouro. Sertão a dentro os paulistas deixa­
vam vestígios da sua passagem. Cláudio Manoel da Costa
não fugiu aos hábitos do tempo, estudou as primeiras le­
tras com os jesuítas e destinou-se a Coimbra. A estrada da
educação era sempre a mesma. Em Coimbra elle já se faz
notar como poeta. Suas producções circulam, de mãos de
collegas para mãos de mestres. Terminado o curso viajou
para Roma, onde fez parte da Arcadia, tal qual José Ba-
silio da Gama. Da Italia voltou a Portugal e, por fim, ao
Brasil, vindo para Villa Rica como advogado, chegando a
secretario do governo de D. Rodrigo José de Menezes.
Iniciado na conspiração do Tiradentes, Cláudio Manoel da
Costa não teve nella parte de realce. O poeta oi'çava, nes­
se tempo, pelos sessenta annos. Nem a edade, nem a en-
fennidade que o atomentava, o rheumatismo, esmorece­
ram nos carrascos da dominação poi^tugueza a violência no
tratamento. Levado ao desespero, Cláudio Manoel da Cos­
ta suicidou-se na prisão, cousa que o não fez merecedor de
clemencia pois foi condemnado, para que os descendentes
9 2
levassem a mancha com que os pretendia estigmatisar ^
repressão geral.
Cláudio fez parte do grupo dos arcades. Foi socio d?
Academia Brasileira dos Renascidos e da Arcadia Ultra­
marina. A sua poesia é lyrica e suave. Os sonetos qu«
compoz são dos que honram a infindável galeria dessa for­
ma poética. De quando em quando homenageava, como
era uso do tempo, um dos grandes da época. Assim se
explica que dedicasse versos á memória de Gomes Freire
de Andrade e ao conde de Bobadella. Escreveu uma espe-
cie de tratado de economia política, notável porque foi,
talvez, a primeira obra no genero a apparecer no Brasil.
Cláudio Manoel da Costa não era apenas um homem de le­
tras, era-o, também, de estudo e de pesquiza. Isso justi­
fica 0 facto de surgir, na poesia que é a sua obra total, um
compêndio de economia, cousas apparentemente oppostas.
O seu poema Villa Rica não é das melhores cousas que es­
creveu. Narra os acontecimentos históricos da cidade len­
dária, inclusive a sua fundação.
Cláudio não era por certo um poeta facil. Muito pelo
contrario a sua poesia é despida da inspiração viva
e subitanea. Não surge como uma ansia irreprimivel.
Elle sabe vestil-a, entretanto. E’ culto e viajado, conhece
os processos poéticos italianos. Chegou, ao tempo da sua
pei-manencia em Roma, a escrever com facilidade e cla­
reza o idioma do paiz. Está pois em condições de affectar
a forma das suas poesias de uma feição nova, differente
da daquelles que se apegavam ao classismo e não podiam
fu gir ao que nos mandava Portugal. Faltou-lhe, certa­
mente, naturalidade, cousa que vem com a inspiração fá ­
cil. A s suas pinturas da natureza a representam modi­
ficada ao gosto do poeta, uma natureza em que é patente
a mão de quem a torneou.
Os seus sonetos têm a impassibilidade marmórea da-
quillo que, sendo bem feito, omado e lapidado, não nos
commove. Mais artista do que poeta, cuidadoso na fe i­
tura do verso, mas sem uma vibratilidade communica-
tiva, Cláudio Manoel da Costa ficará, apezar de tudo, como
9 3
um dos melhores lyricos do nosso passado. O seu poema
Villa Rica é hoje quasi illegivel, perdeu o sabor, envelheceu.
0 poemeto allegorico Ribeirão do Carmo pôde ser classifi­
cado da mesma forma. Restam as Obras Poéticas, enfei-
xadas, com este titulo, em 1768, onde estão os celebres so­
netos que compoz. E’ a parte da sua obra que resistirá ao
tempo, em que pese á falta de vibração e de movi­
mento, de côr e de sonoridade. A sua influencia, entre­
tanto, sobre os contemporâneos, foi poderosa e pr’ofun-
da. Cláudio Manoel da Costa sabia manejar a lingua.
Usava-a, para o torneado do verso, com arte e conheci­
mento. Sabia tirar delia todos os effeitos. No seu modo
de escrever ha simplicidade e clareza. Embora tenha imi­
tado, de quando em vez, o estylo camoneano, de um modo
geral o que escreve é tecido na lingua mais simples. A
sua cultura, o seu conhecimento do mundo, a sua supe­
rioridade sobre o meio estreito e pobre, que era Villa Rica,
a sua mundanidade, faziam-no uma das figuras centraes
do tempo. O sexagenário que tomou pai^te na Inconfidên­
cia comprehenderia, certamente, na videncia dos homens
superiores, que a situação caminhava para a desordem
e para a ruina. Sentiu a vibração da alma do seu paiz,
amordaçada na casa de fundição, apisoada na der­
rama. Elle deu á conspiração as tinturas do saber, a so­
lidariedade da intelligencia, a cooperação do intellectual.
Por tudo isso merccc a nossa admiração.
As hypotheses de Vamhagen e João Ribeiro a res­
peito da autoria das Cartas Chilenas são confirmadas pe­
las pesquizas do sr. Caio de Mello Franco. O autor dellas
parece mesmo ser Cláudio Manoel da Costa. Diversas
illações do pesquisador foram confirmadas pelo exame de
dociunentos e pelo confronto de datas. Também certas
minuncias que o satyrico deixou escapar confirmam a sua
autoria. Cláudio Manoel da Costa teria tecido, já em ve­
lhos annos, aquelles versos terríveis e demolidores em
que espalhava a tolice humana.

L
<) 4

As Cartas Chilenas ficam, na nossa literatura, c


um dos seus documentos mais interessantes, uma
mais preciosas contribuições que um brasileiro já (
receu ao genero. O libello desolador das Cartas Chil
não tem parallelo nas nossas letras. Não ha nelle b
zas literárias. Não ha fulgurações impressionai
Mas a nitidez do traço, o vigor da caricatura, o tal
da minúcia defoiTnada para effeito critico, são nota'
Só um homem que conhecesse, como Cláudio Manoe
Costa, as pequenas tolices, as misérias da vida esti
e pesada de Villa Rica, podería ter composto, com
ta graça e talento, aquelles versos maldosos e corrosi
Demais, as Cartas Chilenas fixam uma época. A q
que se não podería dizer, em fórma de polemica, na
sia da demolição pura e simples, nos assomos de j
revolta, o nojo pela administração estreita, o hon-oi
mediocridade estatuida em dogma, da tolice erigida
autoridade; a aversão por um dominio que se esme:
nos requintes de extorsão e na vigência mais torpt
tyrannia — apparece nas Cartas Chilenas, envolto na
nia demolidora. O governador surge, atravez dc
versos cáusticos, da maneira seguinte:

Tem pesado semblante, a côr é baça,


O coi'po de estatura um tanto esbelta.
Feições compridas e olhadura feia,
Tem grossas sobrancelhas, testa curta.
Nariz direito, e grande; fala pouco
Em 1'ouco baixo som de máo falsete;
Sem ser velho já tem cabello ruço;
E sobre este defeito e fria calva
A força de polvilho, que lhe deita.

Ainda me parece que estou vendo


No gordo rocinante escarranchado!
As longas calças pelo embigo atadas,
Amarello collete e sobre tudo.
9 5
Vestida uma vennelha, e justa farda:
De cada bolso da fardeta, pendem
Listradas pontas de dous brancos lenços;
Na cabeça vasia se atravessa
Um chapéo desmarcado, nem sei como
Sustenta o pobre só do 'laço o peso.

O que não podia apparecer na poesia e na prosa /


do tempo, atravessar impune as ruas da cidade do ouro,
espelhando a repulsa pelo senhor da terra e das minas.
0 expoliador, — transparece nas dobras dessa ironia mor-
dente, ferína, dissociadora. As Cartas Chilenas fixam a
physionomia da época, o momento culminante em que
0 sentimento nativista descamba para a aversão ao do­
minador e para a ansia de libertação. E ’ bem o documen­
to do tempo da Inconfidência.
Outro poeta da phase mineira, brasileiro pelo es­
tro, ambientes que pintou, modo de escrever, e que mui­
tos querem transferir a Portugal, foi Thomaz Antoiiio
tionzaga, a lyra mais terna e mais suave do seu tempo,
cujos versos são lidos, ainda hoje, com delicia, reflectin-
do um amor romântico e profundo, dilacerado nos últimos
dias pela toi-peza da justiça metropolitana ante a qual
0 poeta não soube collocar-se com o viril desassombrc
duma personalidade surprehendente. Gonzaga era filho
de brasileiro. Nascera no Porto, mercê da carreii'a do
pae, que o levara á cidade portugueza como estivera já
em varias 'localidades brasileiras. Nascido em Portu­
gal, Thomaz Antonio Gonzaga é uma exoepção ás nor­
mas geraes da educação colonial. Não foi educado pe-
ios jesuitas do Rio de Janeiro nem da Bahia, mas transi­
tou pela via commum: Coimbra. Uma vez formado,
occupa 0 cargo de juiz em varias comarcas de Portu­
gal ; aos trinta e oito annos de edade vem para o Brasil,
como ouvidor de Villa Rica, onde encontra uma socie­
dade fina fornada de homens de pensamento, aos quaes
se ligaria. Nesse tempo, Cláudio Manoel da Costa dei­
xara 0 cargo de secretario do governo, mas advoga, faz
versos e é ouvido e acatado. Afastado das lides admi-
9 6
nistrativas, entretem os seus ocios na converea dos ami
gos 0 na feitura das suas poesias, ou ainda na compc
sição das Cartas Cliilenas^^em que zurziu a ignorancij
do novo governador Luiz da Cunha Menezes. A o ch
gar á cidade opulenta, Gonzaga vae habitar magnifi'
vesidencia na ladeira de Antonio Dias. Villa Rica ni
se fazia notar apenas pela sua sociedade; havia, ta:
bem, para notabilisal-a, as suas construcções. O Ale;
jadinho acaba de edificar a egreja de São Francisco
Assis, onde poz muito da sua a ife de atomentado e dc
enfem o. Associando-se aos homens de letras, no cort
vivio da bôa gente da terra, envolvida pela affabilidadt
mineira, Gonzaga trava relações com a familia de D.
Maria Dorothéa Joaquina de Seixas, — Marilia. Ac
conhecel-a, transtoma-se o espirito do ouvidor:

Mal vi o teu rosto,


Meu sangue gelou-se,
E a bngua prendeu-se;
Tremi e mudou-se
Das faces a côr.

E 0 tempo vago ao sei^viço do cargo, Gonzaga de-


dica-o ao amor. A conquista de Marilia seria uma obra
lenta, como era natural naquelle tempo em que o accés-|
so ao coração das donzellas não se fazia subitamente,
mas depois de um cerco pausado e pertinaz, obtendo-se
a audiência da parentela, o olhar complacente das ve­
lhas tias, o que não foi difficil ao garbo e á fidalguia^
do moço ouvidor. Gonzaga desabafava nos seus versos:

Muito embora, Marilia, muito embora


Outra belleza que não seja a tua,
Com a vem elha roda a seis puxada,
Faça tremer a rua;
Que as paredes da sala aonde habita
Adonie a sêda e o ti’emó dourado;
Pendam largas cortinas, penda o lustre
do tecto apainelado.
P'

J
r
9 7
Tu não habitarás palacios grandes
Nem andarás em coches voadores;
Porem, terás um vate que te preze
E cante teus louvores.

O tempo não respeita a formosura


E da pallida morte a mão tyranna
Arrasa os edificios dos Augustos,
Bem como a vil choupana.
Que bellezas, Marilia, floresceram
De que não temos nem siquer memorial
Só podem conservar um nome eterno
Os versos ou a historia.
Se não houvesse Tasso nem Petrarca,
Por mais que qualquer dellas fosse linda,
Já não sabia o mundo se existiram
Nem Laura nem Clarinda.
E ’ melhor, minha bella, ser lembrada
Por quantos hão de vir, sábios humanos,
Do que ter urcos, ter coches e thesouros,
Que morreu com os annos.

Embalado na cadência das próprias poesias, ouvin­


do, nos serões da casa de Cláudio Manoel da Costa, ver­
sos e satyras contra os mandões, obcecado no seu amor,
Gonzaga atravessa tempos de perfeita ventura. Não
tarda a vêr coroado o ideal mais alto: casar-se com Ma­
rilia. Celebra-se o noivado. O ouvidor está iicheio da
alegria louca dos amantes e sua lyra desfex’e os sons
mais ardentes:

Alexandre, Marilia, qual o rio


Que engrossando no inverno tudo aiTasa,
Na frente das cohortes.
Cerca, vence, abrasa
As cidades mais fo rtes. . .
Foi na gloria das armas o primeiro:
MoiTeu na flor dos annos, e já tinha
Vencido o mundo inteiro.

i
9 8
Mas este bom soldado, cujo nome
Não ha poder algum que não abata,
Foi, Marilia, sómente
Um ditoso pirata,
Um salteador valente.
Se não tem uma fama baixa e escura,
Foi por se pôr ao lado da injustiça
A insolente ventura.

O grande Cesar, cujo nome vôa,


A ’ sua mesma patria a fé quebranta,
N a mão a espada toma,
Oppi-ime-^lhe a garganta.
Dá senhores a Roma,
Consegue ser heroe por um delicto! . . .
Se acaso não vencesse, então seria
Um vil trahidor proscripto!

O ser heróe, Marilia, não consiste


Em queimar os impérios: move a guerra.
Espalha o sangue humano,
E despovoa a terra
Também o máo tyranno.
Consiste o ser heroe em viver justo;
E tanto póde ser heroe o pobre,
Como o maior Augusto.

Eu é que sou heróe, Marilia bella;


Seguindo da virtude á honrosa estrada
Ganhei, ganhei um throno:
A h ! não manchei a espada,
Não 0 roubei ao dono;
Ergui-o no teu peito e nos teus braços:
E valem muito mais que o mundo inteiro
Uns tão ditosos laços.

Aos barbaros, injustos vencedores


Atormentam remorsos e cuidados:
9 9

Nem descançam seguros


Nos palacios cercados
De tropa, e de altos muros.
E a quantos não mostra a sabia historia
A quem mudou o fado em negro opprobio
A mal ganhada gloria.

Eu vivo, minha bella, sim, eu vivo


Nos braços do descanço, e mais do gosto:
Quando estou acordado
Contemplo no teu rosto
De graças adornado;
Se durmo, logo sonho e alli te vejo.
A h ! nem desperto, nem dormindo sobe
A mais 0 meu desejo.

Já por esse tempo Gonzaga se envolvera na Incon­


fidência. Não se póde precisar até que ponto foi activa
a sua pai'te. Certamente, dias antes da pidsão, destrui­
ram-se os documentos em que se poderia apoiar um juizo
mais seguro. O caso é que não assistiu sem revolta ao
drama que se desenrolava ante seus olhos. Inteligente,
viajado, culto, como o seu confrade Cláudio Manoel da
Costa, comprehendeu, senão sentiu o absurdo daquella
monstruosa expoliação e barbaro dominio. Dias antes dos
esponsaes, o ouvidor foi preso. Júntaram-se, pai*a maior
roalce na tessitura da trahição, a felonia de Barbacena,
a denuncia aviltante de Joaquim Silverio e a fria cruel­
dade dos algozes que a metropole aqui mantinha. A l­
gemado, Gonzaga percorre as estradas a caminho do Rio
de Janeiro, como um reprobo.
Os seus dias, dahi por deante, são uma desventura
immensa, tanto maior quanto mais perto estava da rea-
lisaçãp do grande sonho de amor. No cárcere, poderia di­
zer de sua vida em Villa Rica e do exercicio das suas func-
ções:
100
Obrei quanto o discurso me guiava,
Ouvi aos sábios quando errar temia;
Aos bons no gabinete o peito abria,
Na rua a todos como eguaes tratava.

Julgando os crimes nunca os votos dava,


Mais duro, ou pio do que a lei pedia;
Mas devendo salvar ao justo, ria,
E devendo punir ao réo, chorava.

Não fôram, Villa Rica, os meus protestos,


Metter em ferreo cofre copia de ouro,
Que baste aos filhos e que chegue aos netos:

Outras são as fortunas que me agouro.


Ganhei saudades, adquiri affectos,
Vou fazer destes bens melhor thesouro.

Mandado ao axilio, Gonzaga mergulha nas sombras


• da loucura, que lhe foi, talvez, um lenitivo, soffrendo me­
nos no seu desvario. Ha quem lhe negue o seu casamen­
to posterior e até a participação na conjura. Verdade é
que affirmou, com todas as véras, não haver tomado
pai*te na conspiração. Tiradentes mesmo, nas suas decla­
rações, eximiu-o da culpa. Indiscutível é que delia tinha
conhecimento e a animara, embora não lhe coubesse a
responsabilidade daquillo que Joaquim Silverio lhe attri-
buiu na infame delação.
Gonzaga não foi apenas um dos maiores poetas do
iseu tempo; continúa como um dos maiores lyricos da
lingua. A s suas poesias constituem uma das preciosi­
dades que 0 idioma póde offerecer aos corações sensiveis.
Guarda, na doçura dos versos e na simplicidade das rimas,
uma linha habitual de clareza e suavidade raras. Lyri-
co, elle soube polir as estrophes, como Camões. Não c '
exagero comparal-o ao autor dos Lusíadas, na parte ly- i
rica da sua obra. Melhor do que qualquer affim ação,
a popularidade dos seus versos atravessa as épocas e che­
ga até nós, imi>ondo-se pelas qualidades mestras, sei’eni-
101
dade, doçura, clareza das imagens. Accessivel e facil,
ungida de teniura e levemente repassada, por vezes, de
desespero e renuncia, constitue essa poesia uma das mais
notáveis realizações das letras brasileiras, flor purissi-
ma do idioma.
Na Inconfidência também apparece José Ignacio A l­
varenga Peixoto, nascido no Rio de Janeiro em 1744. Se- \
( guiu 0 denominador commum da instrucção do temxx>:
jesuitas e Coimbra. Protegido do padre Manuel de Ma­
l!
cedo foi designado para o cargo de juiz de fóra de Cin­
tra. Em 1766 regressa ao Brasil, indicado para ouvidor
no Rio das Mortes. Terminado o tempo, viveu em S.
João d’El-Rei. Alvarenga Peixoto abrigou-se quasi sem­
pre, á sombra dos poderosos. Suas producções são, por
via de regi’a, offerecidas aos mandões da época. Gosta­
va do convivio dos que dominavam, mas isso não impediu
que se envolvesse na conspiração. Preso, conduzido pa­
ra 0 Rio, foi condemnado ao exilio. N o exilio morreu.
A sua obra poética não é das mais interessantes.
Traduziu o Merope, de Maffei, escreveu um drama em
verso, o Enéas no Lacio, restando-nos alguns fragmen­
tos da sua obra total, uns vinte sonetos, duas lyras, trea
odes, uma cantata e um canto genethliaco. A inspira­
ção de Alvarenga Peixoto não alça vôos largos, está sem­
pre na mesma altura, resôa no mesmo diapasão. Ha
certos trechos seus, entretanto, que revelam um poeta de
recursos que não soube aproveitar as próprias aptidões.
Também deu algumas mostras de agudeza de espirito,
quando se referiu á escravatura:

Elles mudam aos rios as correntes,


Rasgam as serras, tendo sempre armados
Da pesada alavanca e duro malho
Os fortes braços feitos ao trabalho.

Ou quando deu signaes de um nativismo que devia


ser escondido aos dominadores a quem elle agradava:
102
Isto, que Europa barbaria chama,
Do seio de delicias tão diverso.
Quão differente é para quem ama
Os temos laços do seu pátrio berço!

Isso devia ter sido balbuciado, porem, muito a mêdo


e disfarçado como offerta ao Capitão D. Rodrigo José
de Menezes, por occasião do baptismo de um seu filho.
A poesia de Alvax’enga Peixoto se resente do verbalismo
proprio da época, pi'eoccupando-se mais em pintar os in­
teriores do que as scenas da natureza, ou os acontecimentos
que assistia. Era um puro arcade, abastecendo-se de
nnagens na velha Greda.
Manoel Ignacio da Silva Alvarenga nasceu nas Mi­
nas Geraes, em Villa Rica ou em S. João d'El-Rei, em
1749. Os parentes custearam a educação do menino po­
bre no collegio dos jesuitas, no Rio de Janeiro. Dahi foi
para Coimbra e teve como companheiros a Alvarenga
Peixoto e Basilio da Gama, todos tres protegidos por
Pombal. Tendo o marquez refom ado a Universidade,
Silva Alvarenga dedicou-lhe o seu poema O Desertor das
Letras. Tenninado o curso, regressou ao Brasil e foi
advogar. Gosou das bôas graças de D. Luiz de Vascon-
ceilos e da aversão do conde de Rezende, que mandou dis­
solver a Ai'cadia Ultramarina, de que o poeta fazia parte,
por suspeita de que ella não passasse de um clube revo­
lucionário. Alvarenga deu largas, então, ao seu espirito
satyrico e parece que fundou mesmo uma sociedade se­
creta com caracter politico. Isso lhe valeu uma denun­
cia de desaffecto seu e a consequente prisão. Ficou en­
clausurado na ilha das Cobras por espaço de dois annos.
Sahindo alquebrado e doente) veio a morrer em 1814.
Silva Alvarenga é commumente apontado como um
dos iniciadores do romantismo no Brasil, o que nos pa­
rece exagei'ado. A batalha romantica não tinha sido tra­
vada ainda na Europa, e o Brasil que recebe a sua influ
encia com um atrazo de trinta annos, confom e já se a ffir-
:nou, não podia ter ainda um iniciador da nova escola.
Na verdade. Alvarenga não chegou a ser um iniciador de
103
escola, um revolucionário das letras. Seria muito para •
0 seu estro. Arcade na fó m a , Silva Alvarenga distingue-
se do classicismo e da imitação vulgar na simplicidade
commovedora com que narra os aspectos da natureza, na na­
turalidade, rara no tempo, em pintar as scenas communs.
Seria um arcade ao povoar os seus versos de nymphas,
zephyros e dryades, mas demonstra, de par com esse ar-
cadismo, certa espontaneidade que merece realce, como
neste trecho:

Entre o musgo a penha dura


Mostra azues, mosti’a i'osadas
As conchinhas delicadas
Com brandura a gottejar.
Sobre a fonte crystallina
Cedro annoso e cui*vo pende:
Namorado a rama estende,
E se inclina para o mar.

Silva Alvarenga foi bem situado por Ronald de Car­


valho, que o aponta como o élo entre os ai'cades e os
românticos. Essa parece ser a classificação que elle
merece.

1
C APITU LO X

Phase de transição — Mathias Ayres


— A poesia sagrada — A eloquenda do
púlpito — A oratoria política.

Dum modo geral as phases de transição, na historia


literaria de todos os paizes, se caracterisam por uma
pianicie onde a vista nada distingue que quebre a harmo­
nia monotona. Também no Brasil isso aconteceu. Fin­
da a escola mineira, surgida sob a influencia do deslo­
camento, para as Minas Geraes, do eixo politico do paiz,
até a nossa literatura entrar decisivamente na primeira pha­
se romantica, com Domingos José Gonçalves de Maga­
lhães, o que se assiste é ao apparecimento de alguns no­
mes sem importância, citados quasi que só para estabele­
cer a continuidade cuja existência é real e imprescin­
dível na concatenação histórica, desde que seria impos-
sivel uma parada brusca na nossa cultura, com um sal­
to subitaneo para a poesia mais valiosa do Visconde de
Araguaya e dos seus confrades.
Os poetas menores, que succedem aos grandes poe­
tas de Villa Rica ou versejaram pela mesma acasião, ma»
aos quaes o tempo mergulhou no esquecimento, offus-
cados pela chamma que os autos accenderam, pódem ser
citados quasi que em serie, sem mais commentarios. En­
tre os satyricos, contemporâneos dos arcades mineiros,
podemos apontar Antonio Mendes Bordallo, Gadelha, José
Joaquim da Silva, João Pereira da Silva e o prosador
Francisco de MeUo Franco. Lyricos seriar.i Bento de Fi­
gueiredo Tenreiro Aranha, Domingos Vid.-J Barbosa, Cal­
das Barbosa e outros mais apagados ainda.
105
A prosa que succedia á poesia dos mineiros apega­
va-se a assumptos vagos, não sahia da bitola commum.
Os prosadoi^s desse tempo seguiram ainda o caminho
dos Rocha Pitta. O motivo que abordavam era a chro-
nica insipida da colonia, sem relevo e sem traços excepcio-
naes. Pedro Taques de Almeida Paes Leme escrevería a
Nobiliarchia Paulista, livro base para as pesquizas sobre
as familias troncos de Piratininga, digno de ser con­
servado e consultado. Frei Gaspar da Madre de Deus e
Antonio de Santa Maria Jaboatão continuariam a fazer a
chronica despida de interesse, cheia de imagens falsas,
continuariam a mentir sobre a realidade brasileira, a or-
nal-a de adjectivos, occultando-a. Na prosa desses ho­
mens nada se encontra de notável e surprehendente. Não
escapam ao dominio dos que os precederam. Não fogem
ao commum e ao trivial. Nem mesmo lhes seria isso pos-
sivel. A fiscalisação metropolitana não se faz notar,
apenas, sobre a producção da colonia; actua também, por
mtermedio dos vice-reis, com rigidez e seccura, sobre o
pensamento brasileiro. Pensar só era possivel dentro
'dos limites que lhes traçavam os interesses ultramarinos,
estabelecidos com o caracter de exploração.
E’ nesse tempo, entretanto, que vamos assistir ao
apparacimento de um dos prosadores mais interessan­
tes do Brasil colonial, um homem fino, dono duma iro­
nia tremenda, jogando subtilmente com os argumentos e
escrevendo com mna facilidade excepcional para a época,
um prosador unico entre os do seu tempo, senhor duma
personalidade nitida e inconfundível. Trata-se de Ma-
thias Ayres Ramos da Silva de Eça, pensador e mora-V
lista, pensando sem esforços e fazendo moral sem ca-|
turrice. As suas Reflexões sobre a vaidade dos homens'
contêm paginas dignas de um humanista. Elle seria, pre­
cisamente, isto: um humanista no quadro triste e estrei­
to da colonia dominada e tolhida nos seus movimentos.
As suas reflexões nada têm do tom amargo e solenne.
As suas asserções não se fazem notar pelo dogmático e
pelo absoluto. Ninguém deu mais latitude ao pensamen­
106
to, num tempo de affinnações categóricas, do que Ma
thias Ayres. Os defeitos e as qualidades dos homens, a
suas paixões e os seus desvarios, esse prosador insigni
os fazia derivar da vaidade, nas suas múltiplas fónnas.
Homem culto e viajado, Mathias Ayres não possui»
apenas a sabedoria dos livros, mas a que se adquire nj
1 observação directa. E a sua observação, deduzida do que
escreveu, se fazia notar por uma argúcia extraordinária,
ia directamente ao amago das cousas, adivinhava os seus
motivos, percebia a razão dos desencontros, dos contras­
tes que a vida apresenta, notava o contonio dos aconte­
cimentos, indagava das suas origens. Mathias era um
escriptor fino e suave. O que escreveu não tem a marca
do seu tempo. Lembra outras épocas. Humanista pela
maneira de escrever, abordar os assumptos e pela própria
escolha delles, sua figura impar espanta o historiador que
0 encontra, como o minerador acha uma pedra na ganga
immunda, num meio de prosadores terrivelmente enfado­
nhos, que se não emancipavam siquer na escolha dos mo­
tivos, jungidos á canga dos predecessores, arrastando-se
na mesmice dos mesmos themas e processos.
Entre os homens cultos da sua época, Mathias Ayres
não constitue apenas uma cxcepção: alteia-se como uni
movimento verdejante de terreno, ou como uma fonte
amiga e corrente na planicie uniforme.
A ph.ase de transição se marcava por uma ausência
quasi absoluta de actividade mental, confinada nos as­
sumptos religiosos. Estes se traduziam, ou na poesia sa­
grada ou na eloquência de púlpito, que atravessou os gran­
des momentos da vida colonial e só iria entrar em declinio
quando, com a emancipação politica, conseguissemos a
emancipação mental e pudéssemos ter a nossa imprensa
para o debate amplo dos nossos problemas e das nossas
lutas politicas. O púlpito continuaria a ser, ainda por
algum tempo, a grande tribuna do pensamento brasileiro.
Nelle surgiriam as nossas personalidades mais eminentes,
que eram os educados e noviciados no collegio jesuita. O
saber, na época, ficava limitado ainda aos educandaiuos
dos padres, onde se iniciavam todos quantos pretendiam
107
alargar os horizontes. E ’ jKjr isso que se lê, como um ^
refrão immutavel sem discx'epancia, ao noticiar a fonna-
ção dos escriptores do tempo: “ Estudou com os jesuitas” .
Todos estudavam com os jesuitas. O collegio dos padres
era a fonte do saber, a unica existente na época. Um
degráo mais acima, Coimbra. E o 1'efrão se repete, ine­
xorável: “ E seguiu para Coimbra” a estudar isto ou
aquillo, cânones ou theologia ou outra cadeira das poucas
que a Universidade possuia. Ora, nada mais natural que-
os homens eminentes desse meio fossem os padres. Elles
tinham ainda, a escudar as suas opiniões, — si ellas discre-
pavam da bitola commum, incorrendo na censura dos
governadores, — a condição de religiosos sempre respeitada
^■ numa sociedade cuja educação por elles mesmos ministra­
da, funda-se na organisação da familia segundo os pre­
ceitos da fé e seus usos. O púlpito avultava, então, como
a grande tribuna. Delle se erguiam as vozes mais au-
torisadas do tempo, e estas vozes eram dos religiosos.
Frequentemente usavam a tribuna sagrada para o com-
mentario político, debate que não dizia de perto com o
dogma religioso, mas porque o púlpito era a unica valvula
para a expansão do pensamento brasileiro. Demais, o
clero tinha, nessa época, um numero considerável de re­
ligiosos brasileir-os, que, no estudo e na pesquiza, no
contacto com os livros, encontravam novas fontes de co­
nhecimentos pennittindo-lhes analysar friamente a situa­
ção da colonia e fazer o parallelo entre o reino e o Brasil.
Elles sentiam, então, o hiato tremendo tornado irreme­
diável a separar a metrópole do dominio. Explica-se por
que, nas conspirações e nas conjuras desse e dos tempos
que se seguiram, é tão frequente a participação dos pa­
dres, é tão commum encontrar entre os cabeças, os apai­
xonados, os guiões, um religioso.
A oratoria política vae iniciar-se, a eloquência dei­
xar de ser privilegio do púlpito que, enti^etanto. a acom­
panha ainda. Nos acontecimentos que precedem a vinda
da côrte portuguesa, surge a eloquência política brasileira,
que atravessa os tempos e chega aos nossos dias, cons­
tituindo um dos defeitos mai’cantes da nossa organisa-
108
ção administrativa e legislativa, eloquência que se apo;
num jogo verbal inconsequente e é o grande espectacu
de varias décadas dum parlamentarismo imperial a ^
conder as mazellas tremendas de uma nação, e para
cura das quaes esse verbalismo inócuo em nada conti>,
buiu.
O Brasil ia atravessar um dos momentos culminau.
tes do seu desenvolvimento, momento de pânico e cncru.
zilhada.
• »• *5TT-.T-

ÍLaJí <JL^o , <* </■i - í ^ . a :

5^
7 ‘

CAPITU LO XI ■ ^^f,

Vinda da côrte portugueza para o


Brasil — Surto economico — Abertura
dos portos — Novos factores na economia
do paiz — Alternativas politicas — D.
João V I — Imprensa, emfim!

A côrte portugueza de D. João V I jogava a sua poli-


tica indecisa entre a velha alliança com a Inglaterra e a
ameaça napoleonica. Atormentada pela rivalidade dos
partidos anglophilo e francophilo, essa' côrte irrequieta
e caprichosa oscilario, na sua duvida profunda, aguardan­
do que os acontecimentos se definissem. A situação, po­
rem, não admittia esperas. A decisão veio logo com a
invasão de Junot e a fuga para o Brasil.
Essa mudança de séde, entretanto, não era uma
idéa vinda na hora do desespero, ante a arremettida das
armas francezas. Ella consistia numa alternativa que ti­
nha suas raizes em tempos recuados e se offerecera va­
rias vezes como solução ás crises que assoberbaram a
nação lusitana. O que agora se tornava uma realidade,
imposta pela premencia do tempo e urgência de salvar
alguma cousa do sossobro completo, nada mais era do
que a exumação duma velha idéa que encontrava sua op-
portuna effectivação. Transportando-se para a colonia, com
a sua côrte e a riqueza que pôde trazer, D. João V I apres­
sa a situação americana a definir-se nos annos proximos e
acarreta, com a sua presença e algumas sabias medidas,
maior acceleração na marcha dos acontecimentos brasi-

L
1 .10

leiros. Avinda da côrte e a mudança apparente de pllj;


sionomia que isso importava para a colonia, tendo aqui, a§^
ra, a séde da sua administração, provocou um desvio de rj,
mo no desenvolvimento da idéa de separação, no pi'ocesso dj
divorcio compléto entre a colonia que possuia vida propiij
c a metropole que vivia da colonia.
Naturalmente, o advento duma côrte inteira occa.
sionoü um surto economico vertiginoso, em contraste com
a situação anterior.
I Era uma administração inteira que se deslocava, cer­
ca de quinze mil pessoas entre creados, dignitários e tro-
pa. Todos traziam os haveres que lhes fôra possivel
salvar na rapidez do deslocamento. Mais do que a trans­
ferencia de bens que a mudança acarretou, o que im­
porta para o Brasil, nessa transformação brusca, é a serie
precipitada de medidas com que o rei favoreceu a rea­
lidade economica. Abrindo os portos ás frotas mercan­
tes amigas, conforme diz o decreto que ultima tal me­
dida, 0 governo não faz sinão franqueal-os ao commer-
cio inglez que já dominava completamente as nossas pro-
ducções. Portugal, 'tragado pela aventura napoleonica,
não seria mais um entreposto. íamos iniciar uma éra
nova de commercio directo com a Inglaterra, sancção de
um facto positivo, pois o commercio brasileiro estava de­
finitivamente nas mãos dos inglezes. O movimento en­
tre 0 Brasil e a Gran-Bretanha era muito maior do que
entre a colonia e a metropole. Vista por este lado, a
abertura dos portos deixa de ser um acto de benemeren-
cia, não traduz um favor ou a videncia extraordinar-ia
do principe portuguez, porque foi imposta pela realida­
de, num momento em que era impossivel outra salrida.
A Inglaterra não usufruiu só essa vantagem, na protec­
ção á fuga da côrte ultramarina; também aproveita o
momento para completar a submissão de Portuaal ao
seu dominio economico, iniciada desde o tratado de Me-
thuen. A liberdade de commercio e uma tarifa alfan-
degaria elaborada pelos industriaes inglezes de tecidos,
evidentemente prenhe de bons resultados, seriam arraii-
111
cadas na premencia da px’otecção, numa política realis­
ta de dá cá toma l á . ..
Em 1808 e 1809 a importação ingleza de productos
brasileiros ultrapassava a portugueza; era maior, por
conseguinte, a navegação ingleza para os portos da colo-
nia; Londres e Livei^pool recebiam mais mercadorias bra­
sileiras do que as praças lusitanas. Emquanto Portu­
gal entra em collapso, o Brasil i-esurge para o mundo.
As transformações não param ahi. Ia produzir-se
uma compléta subversão na vida brasileixa. A indus­
tria ensaia os seus primeixas passos. O movimento pox'-
tuario toma um desenvolvimento espantoso. Em 1807,
entxavain no porto do Rio de Janeiro 90 navios; em 1808
esse numero attinge a 420. Maxd;ins aponta nas suas
notas, em 1818, o pox-to da Bahia recebendo dois mil
navios.
Esse sux*to pxadigioso de vida seria acompanhado da
ciaação de novos ox-gãos administrativos, como não po­
dería deixar de sei’, desde que o velho ox’ganismo buro-
cx’atico da colonia não podia suppx-ir as necessidades dn-
rna evolução tão rapida. Surgem a imprensa, o Supre­
mo Tx’ibunal de Justiça, academias, fabx’icas, bibliothe-
cas, arsenaes, museus, praças de commercio. O Banco
do Bx’asil se inaugux’a com um capital de 1.200 contos. O
desenvolvimento do commoi'eio muda a physionomia da
sociedade. As actividades mercantis, antes tidas como
pouco nobres, mex’eciam cuidados e condecoi’ações. As
cifras do commercio exterior cx’esciam enox-memente.
Em 1812 0 Bx’asil vendia cex’ca de oitenta mil contos.
A i-eceita publica augmenta na mesma progressão. Em- ■
bora as despezas da côx’te fossem consideráveis — cex’- '
ca de mil contos annuaes — o govexmo dispunha de perto
de tres mil contos. A Bahia expox'tava em 1817 um m i-!
llião e duzentas mil arrobas de assucar e quarenta mil
fardos de algodão.
A moeda soffre com esse desenvolvimento vex^tigi-
iioso da riqueza particular. O dinheix-o tivera até então
0 seu curso desenvolvido segundo as condições px’imiti-
vas de uma colonia onde o escambo, simples tx'oca de mer-
110

leiros. Avinda da côrte e a mudança apparente de phy-


sionomia que isso importava para a colonia, tendo aqui, ag<>-
ra, a séde da sua administração, provocou um desvio de ru.
mo no desenvolvimento da idéa de separação, no processo de
divorcio compléto entre a colonia que possuia vida própria
c a metrópole que vivia da colonia.
Naturalmente, o advento duma côrte inteira occa-
sionou um surto economico vertiginoso, em contraste com
a situação anterior.
I Era uma administração inteira que se deslocava, cer-
I ca de quinze mil pessoas entre creados, dignitários e tro­
pa. Todos traziam os haveres que lhes fôra possível
salvar na rapidez do deslocamento. Mais do que a trans­
ferencia de bens que a mudança acarretou, o que im­
porta para o Brasil, nessa transformação brusca, é a serie
precipitada de medidas com que o r*ei favoreceu a rea­
lidade economica. Abrindo os portos ás frotas mercan­
tes amigas, confoi-me diz o decreto que ultima tal me­
dida, 0 governo não faz sinão franqueal-os ao commer-
cio inglez que já dominava completamente as nossas pro-
ducções. Portugal, tragado pela aventura napoleonica,
não seria mais um entreposto. íamos iniciar uma éra
nova de commercio directo com a InglateiTa, sancção de
um facto positivo, pois o commercio brasileiro estava de­
finitivamente nas mãos dos inglezes. O movimento en­
tre 0 Brasil e a Gran-Bretanha era muito maior do que
entre a colonia e a metropole. Vista por este lado, a
abertura dos poitos deixa de ser um acto de benemeren-
cia, não traduz um favor ou a videncia exti’aordinaria
do príncipe portuguez, porque foi imposta pela realida­
de, num momento em que era impossível outra sahida.
A Inglaterra não usufruiu só essa vantagem, na protec­
ção á fuga da côrte ultramarina; também aproveita o
momento para completar a submissão de Portueal ao
seu dominio economico, iniciada desde o tratado de Me-
thuen. A liberdade de commercio e uma tarifa alfan-
degaria elaborada pelos industriaes inglezes de tecidos,
evidentemente prenhe de bons resultados, seriam arran­
111
cadas na premencia da protecção, numa política realis­
ta de dá cá toma lá . . .
Em 1808 e 1809 a impoi^tação ingleza de productos
brasileiros ultrapassava a portugueza; era maior, por
conseguinte, a navegação ingleza para os portos da colo-
nia; Londres e Liverpool recebiam mais mercadorias bra­
sileiras do que as praças lusitanas. Emquanto Portu­
gal entra em collapso, o Brasil resurge para o mundo.
As transformações não param ahi. Ia produzir-se
uma compléta subversão na vida brasileira. A indus­
tria ensaia os seus primeiros passos. O movimento por­
tuário toma um desenvolvimento espantoso. Em 1807,
entravam no porto do Rio de Janeiro 90 navios; em 1808
esse numero attinge a 420. Martins aponta nas suas
notas, em 1818, o porto da Bahia i'ecebendo dois mil
navios.
Esse surto prodigioso de vida seria acompanhado da
creação de novos orgãos administrativos, como não po­
dería deixar de ser, desde que o velho organismo buro­
crático da colonia não podia supprir as necessidades du­
ma evolução tão rapida. Surgem a imprensa, o Supre­
mo Tribunal de Justiça, academias, fabricas, bibliothe-
cas, arsenaes, museus, praças de commercio. O Banco
do Brasil se inaugura com um capital de 1.200 contos. O
desenvolvimento do commercio muda a physionomia da
sociedade. A s actividades mercantis, antes tidas como
pouco nobres, mereciam cuidados e condecorações. As
cifras do commercio exterior cresciam enomemente.
Em 1812 0 Brasil vendia cerca de oitenta mil contos.
A receita publica augmenta na mesma progressão. Em- •
bora as despezas da côrte fôssem consideráveis — cer- '
ca de mil contos annuaes — o governo dispunha de perto
de tres mil contos. A Bahia exportava em 1817 um mi- i
Ihão e duzentas mil arrobas de assucar e quarenta mil
fardos de algodão.
A moeda soffre com esse desenvolvimento vertigi­
noso da riqueza particular. O dinheiro tivera até então
0 seu curso desenvolvido segundo as condições primiti­
vas de uma colonia onde o escambo, simples troca de mer­
1
112
cadorias, annos antes ainda era cousa usual e praticada.
Mas a perturbação das finanças é compensada pelo pro.
gresso da agricultura, embora em transitório detrimen-
to do commercio.
O nivel mental do paiz não deixa de seguir de perto
essa expansão rapida e súbita. Kostei’, viajante inglez,
observa, em 1810, que as instituições publicas, no Bra­
sil, são excellentes. Louva o collegio de Olinda. Conta
que as escolas augmentam de numero e se diffundem pelas
cidades do interior. No convento da Madre de Deus
vendem-se almanaks e vidas de santos, impressas em
Lisboa. O Brasil, nesse anno, ainda não tem typogra-
phia. Livraria também não existe nenhuma. Em 1821
ainda é completa a ausência de livrarias. Mas apparece
o primeiro jornal, a Aurora Pernambucana. Imprensa,
emfim! Sahiramos do medievalismo da colonia sem, uma
valvula para a expansão das idéas, sem um meio paia
a transmissão do pensamento. íamos ter o jornal, ve-
hiculo de ideologias, guia de correntes de opinião. Mary
Graham conta que encontrou, na Bahia, duas livrarias.
A sua impressão sobre o nivel mental, entretanto, é de-
soladora: “Aqui, o estado geral da educação ê tão bai­
xo, que é preciso muito talento e muita força de vonta­
de para conseguir algum conhecimento. O numero dos
que lêm é reduzidissimo e os que estudain assumptos po­
líticos se dizem discipulos de Voltaire” . Em 1838 ^ mulher
dança já é completa. Passando pela sala de leitura da
Sociedade Literavia, Gardner encontrou “ muitos jornaes
scientificos e literários da França Inglaterra e Estados
Unidos.”
Em 1802 já havia theatro comico portuguez, diri­
gido por um italiano. O conde da Ponte manda cons­
truir 0 Theatro de S. João, inaugurado pelo conde dos
Arcos em 1812. Os divertimentos, entretanto, continu­
am a ser as festas dos santos, as procissões, a commemo-
ração das grandes datas da igreja.
Caldcleugh comenta que, em 1820, havia no Rio de
Janeiro quatro livreiros. Já em 1792 existiam duas livra­
rias na capital. Para vender livros impressos em Por-
r tugal, naturalmente. . .
113
A Bibliotehca Real. formada \
com os livros trazidos de Lisboa pelo principe regente,
reunidos aos do conde da Barca, era aberta á frequência
livre em 1814. Tres annos antes já o conde dos Arcos
abrira a Bibliotheca Publica da Bahia. A cultura se ex­
pandia vagarosamente mas com firmeza.
A producção typographica, suspensa a prohibição
que sobre ella pesara, começa a divulgar obi'as novas.
0 Brasil vae conhecer os primeiros livros impressos aqui.
A Imprensa Régia publica numerosas obras. O Patriota,
revista de divulgação scientifica, circula em 1813 e 14,
O Correio Brasiliense dura de 1808 a 1822. Faz a cri­
tica política. Já depois da Independencia, a Bibliotheca
Imperial é tida por Walsh como das melhores do mundo.
E’ elle ainda quem conta que “ o progresso literário do
Brasil, se não é grande, é muito maior que o de qualquer
outro Estado da America do Sul” . Isso em 1828, quando
já sahiam, no Rio de Janeiro, quinze jornaes. A capital
do Brasil tinha até a sua imprensa extrangeira. Circula­
vam o Courrier du Brésil e o Rio Heitild. Havia a Ma­
lagueta, celebre por sua critica violenta e corrosiva: o
.Tornai do Commercio, com as suas famosas “ Noticias pai-
ticulares” . Existiam mais: o Diário do Rio de Janeiro,
o Império do Brasil, diários; o Analista, a Aurora Flumi­
nense, a Astréa, que se publicavam tres vezes por semana;
Diário dos Deputados, Diário do Senado, Despertador
Constitucional, Censor Brasilico, que não tinham sahida
certa, mas quando havia necessidade ou opportunidade,
uma das curiosidades mais suggestivas da imprensa bra­
sileira do tempo; Espelho Diamantino, mensal, e o Pro­
pagador.
Em Villa Rica, Burton, na sua passagem, não encon-
ti-a uma só livraria. Já Gardner, não encontrando livra­
ria, fala em duas typographias e quatro jornaes.
O Brasil começa a sua vida mental independente, ini­
ciando a emancipação intellectual. Não precisaria receber
mais idéas europeas atravez do filtro metropolitano: ia to­
mar contacto directo com ellas.
CAPITU LO X II

Prosadores — Poetas — Políticos


Revolucionários — Oradores — Jonialis.!
tas — José Bonifácio — MonfAlverne
— Souza Caldas — Beraardo Pereira de
Vasconcellos — Frei Caneca — Evarista
da Veiga — Hyppolito José da Costa —'
Cayrú — Maricá. j

No tumulto duma organisação política que soffria o!


inflxo de correntes as mais diversas, na nebulosa que j
era o Brasil da phase de D. João V I e dos aunos que se j
lhe seguiram, no surto inteiramente novo de idéas. com
uma imprensa e um parlamento para a expansão da pa-1
lavra escripta e da palavra falada, na encruzilhada de j
idealismos os mais desencontrados, a nação ia viver uma \
das horas mais interessantes da sua existência, um dos
períodos mais suggestivos da sua fonnação, quando, ao
peso de qualquer componente nova, a resultante poderia
variar de sentimento e, talvez, de direcção. Nesse am­
biente de descontinuidades ha uma gestação prodigiosa de
actividades múltiplas. Apparecem elementos que a colo-
nia não conhecera e dos quaes procura utilizar-se tacte-
ando na sua inexperiencia desconcertante. A imprensa, por
exemplo, e o arremedo de parlamentarismo. Mas, como
em todas as horas de duvida surgiram homens afoitos,
capazes de orientar a opinião publica, conduzir os negó­
cios, numa palavra, ti'avestir as instituições, segundo os
figurinos mais em voga” rios” paizes que influíam, pela sua

J
115
cultura, no pensamento brasileiro. Surgem poetas e pro­
sadores, politicos e revolucionários, oradores e jornalistas,
homens de pensamento e homens de acção. As vozes que
pregam a autonomia já não são vozes sussurrantes e tí­
midas; ellas se erguem cheias de audacia para propagar
idéas, numa agitação idealista que o paiz não conhece ain­
da e a que ia assistir, virgem para essas contendas. As
marcas profundas que os annos de colonisação tinham
deixado no espirito brasileiro, ir-se-iam apagando lenta­
mente, para serem substituídas por novas influencias, não
mais caracterisadas pelo dominio material, mas sublima­
das pelo influxo das novas leituras, atravez das quaes
se adaptam alheias instituições. Nem seria de esperar
a emancipação absoluta, a consciência nitida do proprio
destino numa nação que mal ensaiava os primeiros passos
na senda da vida autonoma. O que distingue o processo
evolutivo das letras brasileiras nessa época de tumultua­
ria transição, é a repulsa á influencia da lingua metro­
politana, dos cânones metropolitanos. Coimbra já não
seria a viga mestra da nossa fom ação mental. O pensa­
mento do paiz, liberto de peias, com ambiente para ex­
pandir-se € meios proprios de vehiculação, toma rumos
muito diversos dos que, ate aquelle momento, vinha se­
guindo.
Na poesia, que se libertou com mais lentidão, sente-se
ainda a influencia dos arcades, mas modificada pelas no­
vas correntes philosophicas oriundas da França. Não sem
uma certa dóse de razão um viajante inglez noitara o pre­
domínio do pensamento gaulez na indole dos nossos ho­
mens que se occupavam de política. Vamos encontrar, ain­
da na nossa poesia, sylphides e nayades. Mas são os ac-
cordes finaes. Elles irão extinguindo-se lentamente, para
dar logar a novos accentos e processos poéticos.
Entre os poetas do tempo notabilisava-se Souza
Caldas, sensibilidade profunda e viva num physico doen­
tio, inclinado á melancolia, ao pessimismo á descrença.
sua poesia é uma evasão, necessidade de explicar-se e
dar expansão aos seus pendores. Na poesia sacra, elle
1

116
fica como figura impar na nossa lingua; mas é o unjj,
toque de serenidade da sua obra, porque, no mais, o q,,'
reponta é a nota plangente e lamentosa;

O’ homem, que fizeste? tudo bi'ada:


Tua antiga grandeza
De tudo se eclipsou; a paz dourada,
A liberdade com feiTos se vê presa,
E a pallida tristeza
Em teu rosto esparzida desfigura
De Deus, que te creou, a imagem pura.

Mesmo nos seus psabnos ha accentos de angus,


tiosa melancolia:

O’ Deus, me alimpa o carregado peito;


Nem me castigues por alheias culpas.
Se 0 meu esp’rito de tão grande peso
Não fô r cui^vado.

Puro e innocente de medonhos vidos.


Despedirei a voz sonora e grata
A teus ouvidos: este é todo objecto
Do meu desvelo;

A minha mente e o coração devoto.


Ante teus olhos, girará constante,
O’ meu Senhor, e todo o meu amparo,
Meu Redemptor!

Frei Francisco de S. Carlos foi pregador régio, elí-


vado a tal dignidade por D. João V I, que o admirava. Es­
creveu um poema sacro A Assumpção da Santa Virg'!®.
em que demonstra apreciáveis dotes de poeta, tocando o*'
motivos da religião e do patriotismo. Os seus sermõe»
lhe déram fama mei-ecida. Ha nas suas orações sagrada»
um frêmito de verdadeira eloquência.
Dominado ainda pelo arcadismo, José Eloy Otton'
é, como Souza Caldas, um triste. A melancolia domina
r
117
os seus versos. Conserva, apezar de tudo, certa graça
no contar.
José Bonifácio de Andrada e Silva, não satisfeito de
ser um dos mais lúcidos es-piritos da época, um dos ho­
mens mais cultos do seu tempo e de occupar-se exhausti-
vamente de politica, encontrou tempo, nos lazeres do exi-
lio, para poetai-, e nos deixou versos em que, si não ha
uma originalidade profunda, ha viva inspiração e fói-ma
perfeita. José Bonifácio apegava-se ás formas classicas
jiortuguezas e imitava Garção e Filinto Elysio. A sua
acção politica, — não é aqui o logar para analysal-a detida­
mente, mas deplora-se que um espirito superior ao meio
como elle incontestavelmente foi, não pudesse apprehender
a extensão dos anseios brasileiros, preferindo cerceal-os em
nome de uma prudência que se lhe afigurava opportuna,
quando o momento impunha attitudes mais vivas e mais
radicaes. A directriz politica de José Bonifácio subor-
dinou-se mais ás influencias da côrte, ás necessidades da //
dynastia bragantina, com a qual se solidarisou, do que
aos desejos do povo brasileiro. José Bonifácio não foi
revolucionário nem revoltado. Obstou, muita vez, a mar­
cha dos acontecimentos, por espirito puramente politico,
sem indagar dos rumos que a nacionalidade desejava tomar.
Quaesquer que sejam, entretanto, as restricçôes que se
lhe possam fazer, no terreno das idéas e das directrizes po­
líticas, José Bonifácio foi um espirito fino e sagaz, deci­
didamente superior ao ambiente brasileiro da época da
Independencia. Homem culto e viajado, professor e sci-
entista, elle se seirtiu, talvez, incapaz de descer aos subter­
râneos da alma popular para sen^tir os profundos anseios
da nacionalidade; ao contrario, preferia obedecer aos pró­
prios impulsos e, quem sabe?, aos interesses occultos e
impondei-aveis da nebulosa dos primeiros annos de vida
autonoma do Brasil e da phase que antecedeu a Indepen­
dência.
Tendo oscilado no rythmo incerto da nação que se
iniciava, José Bonifácio conheceu a bôa e a má fortuna,
gozou dos favores do imperador e provou a amargura do
exilio. Estampa em Box-déos as Poesias Avulsas de Ame-
1

118
rico Elysio. A melancolia da derrota influiu-lhe podei-o»
mente no espirito. Rememora em seus versos episodioj
om que se vira envolvido, notando-se a repercussão puj.
funda de taes episodios no seu espirito.
Na Ode aos Bahianos ha allusões claríssimas:

Duas vezes, Bahianos, me escolhestes


Para a voz levantar a pró da patria
Na assembléa geral; mas duas vezes
Foram baldados votos.

Mais adeante:

Amei a liberdade e a independencia


Da doce cara patria, a quem o Luso
Opprimia sem dó, com riso e mofa.
Eis o meu crime todo!

Ou, ainda:

Mon-erei no desterro, em terra estranha;


Que no Brasil só vis escravos medram.
Para mim o Brasil não é mais patría,
Pois faltou á justiça.

Elle tería, com toda a certeza, consciência do seu


papel e dos sei’viços que prestara. Doía-lhe a ingrati­
dão dos que auxiliara e servira. Dahi esse tropel de in­
jurias, esse contraste entre a doçura e a aspereza.
Frei Francisco de Mont’ Alvem e succedia a Frei S.
Carlos no primado da eloquência sagrada. Ha nos seus
sennões um traço fundo de grandiosidade e belleza. Os
seus arroubos oratorios eram tomados ao vei'balismo com-
mum dos que improvisam e usam da palavra, mas, como
poucos, elle sabia conduzir o fio das suas argumentações
e augmentar, progressivamente, a intensidade dramatica
para impressionar os que o ouviam. M onfAlverne disse
os sermões mais bellos do Brasil, no seu tempo. Lido,
perde muito, certamente, porque devia constituir sober-
T
119
bo espectáculo a scena da sua eloquência violenta e im­
prevista, rica nos ornatos com que a sobrecarregava, ma-
gica pela sonoridade da phrase e vehemencia da palavra,
pomposa e viva pela fulgurante expansividade da inspi­
ração. Mas ainda hoje não ha quem deixe de sentir
a belleza de alguns trechos de M onfAlvenie, em que pése
a opinião dos que lhe apontam descuidos de linguagem.
Na confusão dos dias da regencia e do império, um
virus tcriúvcl dc rebeldia infeccionava as províncias.
Aqui e alli, repontavam as revoltas. E era de vêr-se en­
tre os mais extremados e decididos, a figura dos padres
que, deixando os misteres puramente espirituaes, vinham
para a rua prégar a rebelião e conduzir as massas. En­
tre as mais nobres e as mais altas figuras dessa gale­
ria, que não é pequena, podemos citar Frei Caneca.
Os factos economicos, os phenomenos materiaes, a
organisação dos meios de producção, começavam a cha­
mar a attenção de espirites mais objectivos e pragma-
tistas. E’ exemplo disso José da Silva Lisboa, Visconde
de Cayrií, estudioso das nossas cousas, autor de algu­
mas obras em que a lingua não é facil e coiTentia, mas
tratam de assumptos de importanda capital para um
paiz que iniciava a sua vida autonoma. Cayrú distin-
gue-se num meio de verbalistas, num ambiente de pura
eloquência, como o primeiro a levar em conta os proble­
mas objectivos e a pôl-os em equação, tentando resol-
vel-os, estudando pi-ocessos de atalhar os males do paiz,
no collapso da sua economia e das suas finanças provo­
cado pela volta de D. João V I a Portugal, passada a
tempestade que Napoleão desencadeara sobre a Europa.
Silva Lisboa pesquisava os assumptos mais diversos;
abordava tanto o direito mercantil como a economia po­
lítica. Fazia a sua cultura nos autores dnglezes que
subverteram a economia do tempo, mercê da transfor­
mação dos meios de producção de que a Inglaterra fôra
theatro, irradiando sua influencia para o resto do mundo.
Versado em Historia, Direito, Philosophia, Silva Lisboa
escreveu algumas obras de grande alcance, como o En­
saio sobre o estabelecimento dos bancos, notável para um
1
120
meio em que a organisação bancaria era ainda primitiva e
quasi rudimentar. A s suas Observações sobre a fraqueza
da industiia e fabricas do Brasil denunciam observação
acux-ada e objectiva. Elle comprehendia, já naquelle tem­
po, a necessidade de amparar e fomentar a industria. A
sua Constituição Moi-aJ, ou Deveres do Cidadão, denota
o lúcido cultor da jurisprudência. Silva Lisboa era, era-
fim, um Mauá sem industrias e sem bancos. O que o
notabilisa não é a profundidade do saber, adaptado de
outros, nem a segurança da analyse politica, que não era
original, nem a clareza da lingua, que não era facil, mas
o simples facto de, num meio estreito e verbalista ter
podido dedicar-se, com afinco e honestidade, a assumptos
práticos, fóra do espirito natural da época, mais preoccupa-
do com as apparencias do que com as i’ealidades.
Marianno José Pereira da Fonseca, Marquez de Ma­
ricá, é 0 nosso moralista, o La Rochefoucauld bi'asileiro,
apezar de que, segundo conta Ronald, apoiado num depoi­
mento de Capistrano, o velho Maricá zangou-se um dia P'>r
ter alguém tentado comparal-o ao subtilissimo fran.;ez,
0 espirito mais fino e lúcido de todos os tempos. . . Ma-
thias Ayres saberia definir semelhante acontecimento...
Maricá iniciou sua actividade literaria ao tempo de Silva
Alvarenga. Foi preso, como o poeta, e tix’ou dahi, talvez, ca­
bedal para as suas sentenças. Deixou Maximas, Pensamen­
tos e Reflexões. Infenso ás subtilezas do espirito, a sua
moral é rigida e não relativa, resentindo-se com frequên­
cia do dogmatismo. Muitas vezes offerece modelos de
tiradas á conselheiro Accacio.
Hyppolilo José da Costa é um dos maiores jornalis­
tas da época. Não foi o maior, porque, pouco depois del-
le surgiu Evaristo da Veiga, segux‘o coordenador e con-
ductor de opiniões. Hyppolito da Costa precede Evaifs-
to, num tempo em que era impossivel fazer jornalismo
no Brasil. O Correio Brasiliense, impx*csso em Londres,
diffundia-se, ás occultas, na própria côrte. O vigor da
critica, quando ter opinião era quasi um crime, indica em
Hypolito da Costa uma organisação varonil e forte. Elle
sentia o Brasil, comprehendia os anseios da sua gente adivi-
i

J
121
nhava os acontecimentos que sobreviriam ao regresso do
rei para Portugal. Autonomista, defendeu com ardor e
rara vibração a causa do paiz. Fez o que pôde para que
suas idéias se diffundissem e fossem conhecidas e esti­
madas. Atormentou os dominadores, soffreu sem dimi­
nuir no seu destemor. Possuia uma cultura sólida e, ao
par do movimento das idéias na Europa, acompanhando
de perto os acontecimentos que lá se desenrolavam, esta­
va, como nenhum outro, em condições de chefiar um mo­
vimento, de opinião.
Os acontecimentos brasileiros, ao influxo da cam­
panha de Hyppolito José da Costa, e quando não se podia
mais supportar os desvios que a politica reinól nos que­
ria impor, precipitavam cada vez mais a sepai’ação. Pas­
sada a rajada napoleonica, Poiiiugal exigiu a volta do rei,
não para reimplantar o absolutismo, mas para r^einar se­
gundo os novos princípios. A camarilha portugueza do
Brasil, que, pela força da inércia, influiu ainda nos des­
tinos politicos do paiz por lai’gos annos, obrigaria D. João
VI a tomar o partido decisivo, submetter-se aos novos câ­
nones politicos e regressar. Isso importava, para o Bra­
sil, numa descontinuidade sensivel da sua evolução. Era
impossivel obstal-a e deu-se o inevitável.
O surto economico que marca a ascenção brasileira
com o advento da côrte aqui refugiada, soffi-e um collapso.
A producção continua no seu rythmo, o commercio per-
m.anece activo, mas a riqueza publica desfalca-se consi­
deravelmente, desde que o rei, ao retirar-se, procedeu
como ao fu gir da metropole: retira-se com as arcas abar­
rotadas. O contraste entre a riqueza particular e a po-
bresa do Estado devia produzir um desequilíbrio notá­
vel na vida do Brasil. E’ esta a situação que coube em
herança ao principe regente.
D. João V I tinha lampejos de lucidez verdadeiramen­
te notáveis na bonhomia do seu caracter e na apparente
displiscencia das suas maneiras. E ’ incontestável que
esse rei não foi apenas um glutão amodon-ado e pregui­
çoso. A sua attitude, no caso do Bx'asil, e a solercia com
que jogou entre os interesses mais appostos, i-evelam nelle

L
122
esperteza e videncia dos acontecimentos. Comprehendeu,
mais cêdo do que os elementos portugueses que o cerca^
vam, que a separação era questão de tempo, e qualquer
desequilíbrio podia provocar uma luta de inevitáveis con­
sequências, quer para Portugal, quer para a própria co-
lonia capaz de fragmentar-se pela violência e aspereza
com que as suas diversas partes encaravam os factos.
Retirar-se do Brasil, obedecendo aos imperativos da sua
gente e da mais forte das correntes politicas que domi­
nava na metropole, importaria num abalo profundo, quer
economico, — e portanto subterrâneo — quer politico —
e portanto apparente, — produzindo uma impressão deso-
ladora no povo que se acostumara já áquelle arremedo de
vida independente, realçada pelas r^egalias de côrte. 0
povos olham, em geral, para a superficie dos aconteci­
mentos, para o figurino governamental, para a physio-
nomia, agradavel ou não, das instituições. A ’ massa in­
culta, incapaz de perceber os processos que se desenvol­
vem no subconsciente das nacionalidades, de que os fa­
ctos exteriores e a apparencia das instituições são ane-
nas a repercussão, só podem agi’adar o arcabouço ori-
Ihante e o jogo futil das palavras e attitudcs. Na muta­
ção de processos por que passava a economia do velho
reino, o que surgia, como consequência clara e visivel,
era o constitucionalismo em contraposição ao velho abso-
lutismo. A população e os partidos do reino se apega­
ram a essa nova bandeira. Era o ultimo recurso de Por­
tugal, que necessitava subsistir e continuar. Em liga­
ção com a camarilha portugueza, com a côrte que rodea­
va 0 rei no Rio de Janeiro, a massa do reino exigia a
volta e 0 compromisso constitucional. Este foi presta­
do. Mas, na visão do regresso, dois pontos de vista bi­
furcavam-se neste dilemma: numa ponta, os homens da
nova terra; na outra, os fidalgotes do reino e a gente que,
de Lisboa, clamava sem cessar. D. João decidiu-se afi­
nal: partiu e deixou o filho.
Ficava com os dois fios da meada nas suas mãos gor­
duchas.
D. Pedro herda uma situação chaotica e dispersiva.
ir
123
0 paiz está em crise de crescimento, que se ia tornar agu­
da com 0 desequilibrio financeiro provocado pela evasão
do ouro que o rei levava nas suas arcas.
Manter a unidade brasileira por entre os arrancos
da autonomia provincial, consolidando a massa humana,
que se espalhava nas distancias infinitas, exigia, mais do
que simples lucidez politica, segurança e habilidade no
manejo da cousa publica. Os movimentos sociaes e po-
liticos do paiz permaneceríam com a sua directriz unica,
do centro para a peripheria. O centro era a administra­
ção, o poder, a força, a séde das instituições, o eixo na­
tural. Delle promanavam todos os poderes. Delle se
distendia a cadeia que unia as differentes paiies duma
nacionalidade incipiente. As transfomações que nelle se
operavam propagavam-se, como ondas, para o interior e,
pela costa, para a norte e o sul, perdendo-se no territó­
rio immenso. Por isto é facil verificar a triste realida­
de do predominio sobre o pensamento do principe regen­
te, duma camarilha portugueza que não podia deixar de
tentar a pei-petuidade da união ou de sonhar com um
Império duplo. A lijar essa influencia, nociva aos interes­
ses brasileiros, era tarefa que exigiría annos e consumi-
ria muitas energias. D. Pedro não podia abalançar-se a
ella, entre outros motivos porque o commercio, em gran­
de parte, no Rio de Janeii'o e no resto do paiz, estava
nas mãos dos portuguezes. A lavoura, sim, passava por
uma integração quasi completa, e das provincias affluiam
os grandes movimentos de opinião, que era preciso suf-
focar e esterilisar sem piedade.
Enquanto esses desencontros se succediam na côrte,
uma Constituinte moldada aos figurinos externos exer­
cia 0 seu trabalho, distinguindo-se das que vieram de­
pois pelo sentimento da responsabilidade. Aquelles ho­
mens comprehendiam que a sorte do paiz caminhava por
incertos rumos e a eiles competia descobrir a via transi­
tável. E tomavam uma série de medidas tendentes a
dar ao paiz a conformação de nacionalidade viril e au­
tônoma. Raramente se assistirá, num agrupamento poli-
tico sentido mais nitido da hora terrível que a patria
124
atravessava. Elles, si a não compi'ehendiam em todos 05
seus detalhes, porque estavam muito perto dos factos, pelo
menos sentiam, ainda que imprecisamente e sem dire.
ctrizes, que era necessário um grande esforço para subsis-
tir, proclamada a independencia, na ruptura dos laços po­
líticos. Ella não fizera mais do que consumar a reali­
dade, solemnisar e theatralisar uma cousa positiva. Set«
de setembro não marca um movimento culminante: rek-
ga-se á condição de simples data, para os effeitos futuros
das commemorações civicas. Poi’que a independencia
já estava feita.
Nesse scenario tumultuoso e prenhe de ameaças, fe-
bricitante de idealismo e interesses, surgem os jornalis­
tas violentos, descomedidos na linguagem e corrosivos
na analyse, e os oradores politicos, sarcastas e ironicos,
levando os debates para 0 teireno da doutiãna e accen-
dendo a chama da invectiva apaixonada e o fulgor pa­
triótico. Evaristo da Veiga registra um dos momentos
culminantes do joraalismo brasileiro. Voz serena na ?s-
sembléa e penna incisiva na columna do jomal, elle seria
um dos grandes conduetores da opinião publica, no sen­
tido dos supremos interesses do paiz, si bem que sem a
rebeldia e a brutalidade da violência. Na lama da in­
juria em que chafurdavam os pequenos jornaes, a pen­
na de Evaristo da Veiga distinguia-se pela elevação dos
seus commentarios e a linha recta que se traçara.
Na assembléa, uma figura dominava, physicamente
envelhecida e roida pela enfemoidade, mas espiritualmen­
te viva e fulgurante: Bernardo Pereira de Vasconcellos.
Elle se afizera ao sarcasmo, com que iiritava os seus
adversários, um sarcasmo ferino e destruidor, peior do
que a violência. Certamente, a linha dos principios de
Bernardo Vasconcellos não obedeceu a uma recta rigoro­
sa e nitida. Vacillou por vezes sob injuneções podero­
sas, mas teve o talento da objectividade, tão raro num
paiz de sentimentaes e verbalistas. Ante a invasão da
oratoiia que enche os dois impérios, elle alteava a sua
palavra em discursos curtos e precisos, indo directamente
á fonte dos factos, buscando, sem rodeios, o fio dos acon-

i
125
.tecimentos conduzindo, sem preâmbulos, a argumentação.
Destruía, sem piedade, os valores que assentavam na il-
lusão e na sorte, no duvidoso e no problemático, para ex­
por as suas doutrinas de modo px’eciso e limpido nos seus
termos, concludente nos ti’aços essenciaes.
Figura impai-, a sympathia não foi uma das suas
qualidades. Pelo contrario, physicamente fraco, tortu­
rado por dores atrozes, vivendo e morrendo solitário, sem
0 carinho de mãos femininas, terrivel na polemica, não
gozou da popularidade facil, nem mesmo do affecto dos
seus companheiros. Mas, como homem das Minas Geraes,
manteve a segurança da medida, a sabia â5renidade dos
que se consei-vam equidistantes dos extremos, que o fa­
riam considerado, apezar de tudo, e temido sempre.
Esses dois homens, Evaristo da Veiga e Vasconcellos
caminham juntos, por algum tempo. Elles representaram,
na Índole brasileira, dois casos rarissimos: serenidade no
joi-nalismo; objectividade na política.
1

C APITU LO X III

Romantismo — Panorama europeu


quando do seu apparecimento — Suas ori­
gens e fundamentos — O Romantismo no
Brasil — Gonçalves de Magalhães.

O Romantismo surgia em França justamente numa


hora em que os limites e as distincções entre os homens
iriam desapparecer, numa época em que se não poderia
mais affirm ar dum homem, que elle era aristocrata ou
cidadão, retrogrado ou revolucionário Momento de mu­
tação de valores, de brusca subversão, quando as g r a v
des fortunas do reinado orleanista se tinham fragmerca-
do e surgiam outras formadas ao sopro da guerra, ao
improviso da fumai’ada dos acampamentos. Um tempo
em que os valores se tornaram relativos e falsos, contigen­
tes e fóra de qualquer molde absoluto, os literários como
os humanos, os das idéias como os do dinheiro. Tempo
propicio ao advento de aventureiros, conquistando posições
palmo a palmo, ou subindo vertiginosamente. A ascen-
ção não se marcava por uma cui^va suave, limpida e niti-
da, mas pelos atrevidos impulsos, desfazendo barreiras,
esquecendo compromissos, em attitudes grotescas por
vezes.
O Romantismo apparece quando o Impeião napoleo-
iiico chega ao fim e o orleanismo retoma os destinos
da França, mas esta nova mudança politica não affecta-
ria a ordem social. O arcabouço politico e administra­
tivo que a Revolução destruiu, não voltará a imperar. O
rei reinava mas não possuia mais o condão de modificar,
pela sua presença no throno, a marcha dos acontecimen-
I

i
127
tos. A consolidação das conquistas liberaes, feita por Na-
poleão e cimentada numa legislação já codificada e ac-
ceita, não soffreria senão pequenos abalos, que não che­
gariam mesmo a trincal-a. As conquista revolucionarias
estavam definitivamente sedimentadas.
Como em todas as épocas de transfonnação social, o
organismo economico da nacionalidade tinha passado por
mutações fundas e bruscas. A s grandes fortunas da mo-
uarchia, fundadas nos direitos derogados, cederam logar
a outras fortunas, feitas, como dissemos, ao calor das re­
fregas desencadeadas pelo corso. O fornecimento aos
exercitos, que marchavam para os quati'o pontos cardeaes,
déra impulso á industria dos pannos, e por este e outros
meios, novas grandes fortunas se formaram. Essa trans­
formação não podia deixar de affectar o aspecto da socie­
dade. Nota-se por toda a parte a infiltração de gente
desconhecida e aventureira a substituir, nos salões da pro-
j)ría Restauração, a velha nobi'eza latifundiaria.
Ora, que melhor época para a agitação romantica as­
sombrosa e sobrehumana? Em outros tempos, o advento
do Romantismo seria impossivel. O que agoi-a se assis­
tia era uma formidável mutação, donde a extrema rece­
ptividade dos novos homens ás novas theorias. O Ro­
mantismo surgia numa sociedade de origens pouco pro­
fundas: a tradição refugiava-se em poucos nomes antigos,
a maioria era a gente surgida da nova ordem de cousas.
Sociedade que Balzac pintou com tanta realidade, fazen­
do entrar no romance, dominando a urdidura dos enredos,
a magestade singular do dinheiro.
O Romantismo nasce dessa ordem de cousas tran­
sitória e vertiginosa, mantem a luta constante, a vibra­
ção desordenada, a furia iconoclasta. Chega no momento
preciso, quando os tempos lhe propiciam a asoenção.
A subversão de valores economicos implica numa subver­
são de valores ethicos e estheticos. A luta romantica
não é mais do que a refrega entre o mundo que surge e o
que quer permanecer pela força da inércia. E ’ um cho­
que de mentalidades, a da revolução e a do feudalismo,
que dormitava sob as cinzas do uma monarchia decrepita
128
e sem força, sem nobreza e sem belieza. E ’ o contrâst^
entre a gente tradicional cuja vida exterior se reveste da
solcmnidade do passado, dii’eitos divinos e dominio feu.
dal, e a que surgira da terra, das novas instituições,
do fogo da Convenção, do tumulto dos Estados Geraes,
da noite do Terror, da empolgante poesia da aventui’a «a-
poleonica.
Nesse periodo verdadeiramente interessante, o mais
curioso da historia franceza, trava-se a grande luta ro­
mântica. Não é por simples coincidência que o terreno
escolhido para os primeiros choques foi o theatro. O palco
está mais perto da alma popular. E ’ mais accessivel a
todas as bolsas. O livro, nesse tempo quasi aristocráti­
co, pouco diffundido, restringiría o choque de escolas a
uma polemica esteril de intellectuaes mais ou menos ini­
ciados; 0 theatro é popular, franqueado a todos, trans­
ferindo para o povo a assistência e a participação no de­
bate. Fazia 0 papel do jornalista moderno.
Assim, a bocca de scena, para platéas eminentemente
populares onde a gamma das opiniões e das posições 'jO-
ciaes era infinita, transfomou-se em barricada, ou numa
especie de Pateo dos Milagres. O Romantismo venceu
após um crepitar de incêndio, após um tumulto desorde­
nado: triumphou totalmente porque é filho da revolu­
ção, brota das camadas mais deslocadas na escala social.
A exposição dos assumptos tocando os sentimentos, o es­
pirito egualitario que envolvia os dramas jogados por um
mundo de personagens, a solcmnidade de certos gestos, a
caricatura do arcabouço inteiro de uma sociedade des-
truida com os seus vãos preconceitos; a arte de ferir a
corda sensivel da alma humana, — tudo isso caracteri-
sava 0 theatro romântico, como vingança da sociedade que
surgia, desforra dos homens novos contra os séculos de
tyrannia aristocratica. Era o prazer intenso de espesl-
nhar a mentalidade dos que sonhavam com uma possivel
volta ao passado.
Nesse ambiente hostil, por vezes extremamente con­
fuso e deshumano nos julgamentos, o Romantismo surge
com o seu gosto facil de agradar ao commum dos homens,
129
a sua maneira de explorar o que impressiona o coração do
povo, 0 sentido peculiar de expor os acontecimentos, enre­
dando-os numa teia complexa, mas da qual surge trium-
phante a virtude popular, o sentimento calcado pelo pre­
conceito, o amor desigual, coroação de tudo aquiilo por que
se haviam batido os homens na sua investida furiosa con­
tra as velhas instituições.
Oi’a, podia desagradar á burguesia enriquecida subi­
tamente, e agora dominadora da nova sociedade, aquella
consagração publica dos direitos recentes? Descontenta­
ria 0 gosto popular aquella exposição de episodios em que
qualquer um se illumina dos esplendores do heroismo,
si tudo isso representava a queda das antigas barreiras,
0 triumpho da egualdade? Dahi a luta ter sido aspera,
mas rapida e fulgurante, e a fama ter favorecido os ba-
talhadores do theatro romântico, os mestres do drama
sentimental. Surgem, então, como iniciadores, os gran­
des nomes do Romantismo.
Também no Brasil o Romantismo representa a eman­
cipação. A nacionalidade iniciava a sua vida autonoma
quando as na.ções, sabidas da noite medieval, tendo pas­
sado pela prova durissima da Revolução, davam novos
moldes ás suas instituições. Ao absolutismo succedia
0 constitucionalismo. Ao poder dos i'eis succedia a ti‘a-
dição das cartas politicas. Mudava a physicnomia das
sociedades. O nosso paiz recebe o éco dessas transfor­
mações, convulsas ainda em vários paizes pelas peculia­
ridades econômicas de cada um, mas fundamentadas e
fixas na maioria delles.
Si a separação fôra um golpe politico a sanccionar, ■'
um hiato economico que se prolongava, o Romantismo nos
trouxe 0 instrumento, o meio de expressão para a autono-
.Tiia mental. Já não preponderam os velhos mestres por­
tugueses. O arcadismo ficará como uma lembrança.
Novos moldes vão servir á nossa literatura. Ella surge,
por coincidência nitida e interessante, com a indepen­
dência. E por que? Porque até ahi nos fôra vedada a
imprensa, prohibida a typographia, escondido o livro. A
nossa evolução literaria, ao tempo da colonia, é lenta e
130
demorada. Havia um mundo de barreiras a romper. Coni
a autonomia, diga-se economica, desde que a politica foi
um acontecimento de superficie, iamos ter os meios de
expansão do pensamento, importar mais depressa as idéias,
que não seriam filtradas e censuradas pela metropole. A
acceleração do desenvolvimento literaido do Brasil cresce
prodigiosamente. Vamos evoluir, em poucos annos, mui­
tíssimo mais do que o fizêramos na noite dos trez séculos
coloniaes.
O nosso primeiro escriptor nitidamente romântico,
que apparece já liberto dos processos dos arcades, escre­
vendo uma lingua mais livre e mais fluente, é Domingos
José Gonçalves de Magalhães, Visconde de Araguaya. 0
autor dos Suspiros Poéticos segue mais cêdo do que seria
de esperar a nova coiTente, porque soffre a influencia ro­
mântica no proprio theatro dos acontecimentos, na Fran­
ça já dominada pelo.s cânones novos. Está, pois, em con­
dições de nos enviar de lá as suas producções inspiradaj
pelos modelos românticos.
Verdade é que tivêramos, antes dos Suspiros Poéti­
cos, algumas poesias já em accentuada divergência com
a feitura dos arcades: Maciel Monteiro, autor de alguns
sonetos de inspiração feliz; Odorico Mendes, traductor de
Homero e Virgílio; Salomé Queiroga, poeta bucolico.
Mas as producções desses versejadores não se filiam bem
á nova escola, e Magalhães não perde, por isso, o titulo
de iniciador do movimento romântico no Brasil. Ao tem-
no de Magalhães, já Vigny publicara os seus Poémes e
Lamartine as suas Méditations. O manifesto do Crom-
well passara aos domínios da historia. O romantismo
estava consolidado. Produzira Manzoni, na Itália. E co­
meçava a repontar, em diversos paizes, com obras aJ
mais variadas.
A primeira producção de Magalhães são as Poesias,
publicadas em 1832. O seu estro, no livro iniciador, é ain­
da fraco. Começa a ser um poeta apreciável nos Suspi'
ros Pocticos, de 1836, que nos manda de Paris. Salles Tor­
res Homem saudou o apparecimento do livro do scii ami-

J
r
131
go com elogios descomedidos. A obra, pelo sabor de no­
vidade, devia impressionar o tempo. E, depois, Maga­
lhães, na sua poesia, era o brasileiro que se emancipa­
va. Era um homem de letras da hora da autonomia.
Devia animar immensamente os nossos patriotas o ap-
parecimento de um poeta nosso que fizesse successo, aca­
riciando a vaidade nacional tão sensivel naquelle momen­
to. Por isso, a insipiente critica indigena não lhe faltou
com os louvores mais fortes. Na verdade, o que elle foi
está longe de ajustar-se á idéa que delle fizei’am os bra­
sileiros do tempo. Magalhães tinha ainda uma inércia
pronunciada. Havia ainda, na sua poesia, muita cousa
que o prendia ao passado. Mas, sem ser um emancipado
completo, marcAva, entretanto, um ponto de referencia,
iniciando a nova phase da literatura brasileira. Carre­
ava pai’a aqui a nova escola. Fazia-se o pi-ecursor e,
embora sem lai’gos vôos, só por esse titulo merece refe­
rencia toda especial. O principal em Magalhães é que,
da Europa, cantava a terra natal, pintava-a com as <‘ores
vivas do sentimento, falava delia com o calor do exilado,
não se afastando, tão pouco, dos motivos principaes que
haviam dado os traços mai'cantes da nacionalidade, a
religião e a natureza prodigiosa. Nada mais era preciso
para cahir no agrado da nossa gente e fixar um momen­
to feliz em nossas letras. Sob a influencia dos europeus,
e ao contacto das terras extranhas, teria motivos outros,
que não os nacionaes, para compor os seus versos: o éco
das conquistas napoleonicas ainda não morrera:

Eil-o sentado em cima do, rochedo.


Ouvindo o echo fúnebre das ondas,
Que mumuram seu cântico de morte:
Braços cruzados sobre o largo peito.
Qual naufrago escapado da tormenta,
Que as vagas sobre o escolho regeitaram.
Ou qual m am oi’ea estatua sobre um tumulo,
Que grande idéa occupa e turbilhona
Naquella alma tão grande como o mundo!

L
1
132
Sua obra philosophica, pois occupou-se da philoso.
phia com conhecimento, não fica na mesma plana da sua
poesia. A tragédia Antonio José representa um resto
de cultura classica. Nos Factos do Espirito Humano
frequentemente o verbalismo disfarça as passagens Jiiais
difficeis. Magalhães não estava em condições de appre-
hender o movimento philosophico do tempo, embora do­
tado de espirito esi^eculativo. Dominava-o ainda a febre
da eloquência própria do nosso temperamento afeito ás
generalisações fáceis, pouco adaptavel á synthese.

ti

I
C APITU LO X IV

Em pleno romantismo e em plena au­


tonomia — Porto Alegre — Gonçalves Dias
— Prosa — Teixeira e Souza — Joaquim
Norberto — A historia e a chronica — João
Francisco Lisboa — Pereira da Silva — Var-
nhagen — Sotero dos Reis — Feimandes P i­
nheiro — Francisco Octaviano — José Bo­
nifácio, 0 Moço — Vultos menores.

Iniciado o movimento romântico, por largos annos elle


conduziu a literatura nacional. Manoel de Araújo Porto
Alegre, contemporâneo e amigo de Domingos José Gon­
çalves de Magalhães, já empresta ás suas estrophes a
pompa verbal tão do agrado da nossa gente; sendo um
dos primeiros batalhadores do movimento i-omantico. li-
bertou-se mais depressa do que o seu iniciador, dos câno­
nes clássicos. Viajado, tendo convivido com homens emi­
nentes do tempo, a Porto Alegre offereceu-se, como ao
cantor dos Suspiros Poéticos, a opportunidade de sentii',
na própria Europa, os influxos românticos. A patria foi
0 thema principal de tudo o que esci’eveu. Alem das poe­
sias reunidas sob o titulo gei’al de Brasilianas, escreveu
0 poema épico Colombo, prejudicado pelas minúcias escu-
saveis e superfluidades verbalistas próprias do tempo. Ha
no Colombo, entretanto, trechos de effeito. Quando Por.
to Alegre recita: “Jáz vencida Granada!” a gente como que
assiste ao desfilar da leva de guerreiros arabes por entre
ouro e sombra, no colorido e movimento que o poeta em­
presta aos seus painéis.
134
Mas a grande figura do romantismo no Brasil, ^
cantor das nossas cousas, que soube juntar o lyrismo
eloquência, trazendo para a poesia o indianismo, foi Au.
tonio Gonçalves Dias, mestiço maranhense que estudata
em Coimbra, mas comprehendeu logo a tendencia da épo-
ca e soube creai' alguma cousa de novo e perenne na tran-
sitoriedade das escolas politicas, transmittindo aos versos
que compoz a sensibilidade e vibração duma alma enfer­
ma e finamente dotada. Gonçalves Dias não é uma das
•maiores figuras apenas da phase romantica, mas de to­
dos os tempos. Ha nas suas estrophes uma commove-
dora unção, qualquer cousa que, sendo eloquente, é ao
mesmo tempo profundo. Nas suas rimas ha leveza e gra­
ça, quando são lyricas, grandiosidade e hannonia, quan­
do são épicas. Não se entregou ao culto da época, mas
soube, como poucos, “transfundir uma emoção poderosa e
profunda a algumas passagens das historias de indios que
contou. Haverá falhas no seu indianismo, mais litermo
do que real, mais suggestão de leituras do que da realidíAe e
da tradição. Mas, apezar de tudo, verdadeiro ou ■'also,
elle soube dar-.lhe os tons riquissimos da eloquência, o
colorido brilhante, o movimento e a violência dos impetos
cheios de belleza.
O seu lyrismo é um dos mais puros que a lingua co­
nhece e nada fica a dever aos que vieram depois, aos
poetas de vinte annos. A sua Canção do Exilio é
alguma cousa de commovente e sentida. Gonçalves Dias
soube misturar ás poesias lyricas a suave melancoba que,
nelle, era natural e expontânea.
Na ansia de glorificar o indio, é natural que lhe te­
nha attribuido costumes e sentimentos estranhos. O certo
é que buscou os elementos principaes da nossa terra para
pôl-os em relevo: a natureza, na sua pompa, o indio, como
residuo duma população vinculada á terra. Atravez da
sua finissima sensibilidade de mestiço exilado e infe­
liz, pôde traduzir a beleza sem par das personagens que
idealisava e pintar, com as tintas da saudade, os ambi­
entes que não esquecia.
Ninguém, antes delle, soube abranger assim a terra
135
natal nos estos duma poesia tão rica de sentimento e har­
monia. Celebrou o indio nos Tymbiras, no Y-Yuca Py-
rama e na Canção do Tamoyo; cantou o portuguez nas
Sextillias de Frei Antão; lastimou o negro na Escrava.
0 indio, porem, mais do que os outros elementos, lhe me- v
I receu o carinho de algumas estrophes que nos commovem j
I ainda hoje. Gonçalves Dias, um dos maiores poetas bra-
I sileiros, está hoje relegado para as anthologias; nas es­
colas, os meninos fremem ao lê r:

Um velho Tymbira, coberto de gloria.


Guardou a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi!
E á noite, nas tabas, se alguém duvidava
Do que elle contava.
Dizia prudente: “ Meninos, eu v i!

"Eu vi 0 brioso no largo terreiro


Cantar prisioneiro
Seu canto de morte, que nunca esqueci:
Valente, como era, chorou sem ter pejo;
Parece que o vejo,
Que 0 tenho nesfhora deante de mi.”

“ Eu disse commigo: Que infamia d’escravo!


Pois não, era um bi'avo:
Valente e brioso, como elle, não vi!
E á fé que vos digo: parece-me encanto
Que quem chorou tanto.
Tivesse a coragem que tinha o Tupi” !

Assim o Tymbira, coberto de gloria.


Guardava a memória
Do moço guenreiro, do velho Tupi.
E á noite nas tabas, se alguém duvidava
Do que elle contava,
Tornava prudente: “Meninos, eu v i!”

<<
136
Na pi-osa, o i-omantismo começou com algum atra2o^
E ’ pela poesia que o temperamento da nossa gente sofftg
o primeiro influxo das novas correntes. Pela poesia sç
iniciou o romantismo; pela poesia appareceu o chamado
modernismo. A iniciação dos nossos escriptores antigos
quasi sempre se fazia pelo indefectível volume de versos.
I Poetas quasi por destino, os nossos homens de letras aos
I' primeiros impulsos nos passos iniciaes da caneira, ver-
;lisejavam. Só depois se atiram á prosa, foim a superior,
;i dir-se-ia, para cuja execução se exige o treinamento im-
■';prescindivel na arte da rima e da m étrica...
Os primeiros prosadores da phase romantica não são
ainda nitidamente românticos. Recebem com certa relu­
tância a influencia nova. E’ um Teixeira e Souza, escri-
ptor por Índole, abordando todos os generos numa grande
ansia de evasão, jornalista, novellista, poeta, com exhu-
berancia e falhas que se justificam na sua incultura de ho­
mem modesto, aprendendo, ao passo que compunha. Cono
poeta, Teixeira e Souza foi falho e vulgar; o seu estro
não se elevou a grandes alturas. Permaneceu commum e
desinteressante. Como prosador, entretanto, deixou al­
gumas obras de mérito. Escrevia para o povo, em es-
tylo folhetinesco e .simples no que narrava, mas accessivel
sempre na sua prosa despretenciosa. Abordou os themas
históricos, talvez por falta de arrojo imaginativo, pois
que a Historia foraece a trama e poupa ao autor o esfor­
ço da fabulação. Deixou os romances O Filho do Pesca­
dor, Tardes de um pintor, a Conspiração de Tiradentes c
varias composições de outros generos, inclusive a contiã-
buição jornalística.
Já se não póde dizer o mesmo de Joaquim Norberto
de Souza e Silva, trabalhador infatigável e narrador ex­
plicito das nossas cousas históricas. Joaquim Noberto
cultivou, com Teixeira e Souza, quasi todos os generos li­
terários. Abordou os assumptos mais diversos. A sua
obra poética, como a sua obra de ficção em geral, não
conseguiu atravessar o tempo, ao passo que a obra histó­
rica é valiosa, e Sylvio Romero a estimou como indispen­
sável para a pesquiza e o estudo dos acontecimentos de
137
que se occupa. Membro do Instituto Ilistorico. Joa-
Norbeito tratou com esmei’o a Inconfidência Mineira, de
que a sua monographia é uma das fontes mais autorisadas.
A sua bagagem pode ser assim inventariada: Romances ’
e novellas. O Martyrio de Tiradentes, Modulações Poéti­
cas, O Livro de meus amoies, Cantos épicos, Flores cn-
fre espinhos, Ballatas, Clytemnestra, tragédia em verso, o
drama Amador Bueno, a monographia Historia da Conju­
ração Mineira, a Memória histórica e documentada das al­
deias dos Índios na província do Rio de Janeiro, as Bi’asi-
ieiras celebres, o Descobrimento do Brasil e diversos tra­
balhos como introducção á obra de autores brasileiros.
Collaborou na revista do Instituto Ilistorico e Geographi-
co, cuja presidência occupou e escrevia com extrema fa ­
cilidade.
Joaquim Norberto surgiu ao tempo em que toma
vulto 0 interesse pelas nossas cousas. Passada a noite
colonial em que a pesquiza era quasi impossível — e a
obra de Frei Vicente disto se resente — ; findo o tumul­
to dos dias que succederam á Independencia, começou a
apontar no paiz um grupo de homens curiosos do nosso
passado, ávidos de conhecer as nossas instituições, pes-
quizar os motivos da nossa formação. Procedem a busca
infatigável nos archivos e surgem monographias. Discu-
tem-se pontos controversos. Repontam os historiadores.
Os brasileiros carreavam o material pai’a a nossa ver­
dadeira historia.
João Francisco Lisbôa, maranhense que viveu entre
1812 e 1863, foi uma das personalidades mais interessan­
tes desse grupo de commientadores dos acontecimentos
brasileiros. A sua prosa fluente e correcta accumula no
Jornal de Timon uma das mais valiosas contribuições para
0 conhecimento da vida nacional. Lisbôa era um erudito
e um estudioso. Escrevia bem e sabia fixar os factos no­
táveis da época. As suas paginas sobre os hábitos da
nossa gente, os acertos ou desacertos da politica que nos
dominava, são finas e profundas. Commentava sem acri-
monia os episodios mais chocantes. Foi um dos primei­
ros escriptores nacionaes a abordar os problemas que de-
138
rivam da política e da administração. Não se circumscre-
veu a um genero. Muito ao contrario, abordou os assuni-
ptos mais diverso.s, com conhecimento de cau.sa, graças
a uma cultura séria adquirida no manuseio dos melhores
ohronistas e narradores do tempo. A s paginas que nos
deixou sobre a evolução duma parte do nosso povo, não
se limitavam á narração pura e simples, não eram apenas
expositivas. Lisboa busca inteipretar e comprehender as
directrizes políticas da sua época e do passado, e não eram
as intrigas cortesãs ou o jogo das influencias pessoaes >
que mais o seduziam. De par com a discriminação dos
factos, explica os accidentes economicos e administrati­
vos. E ’ um realista. Também a malícia não lhe foi ex-
tranha, malicia de homem culto, experimentado, e não a
cólera destruidora e dispersiva. O organismo social da
nacionalidade mereceu-lhe mais de uma annotação objecti-
va. ■Lisboa foi um fino jornalista e a sua obra, V ila do
' Padre Antonio Vieira, está cheia de commentarios segu­
ros sobre o meio em que o jesuita exerceu a sua acth idade
quer no Brasil, quer em Portugal.
Como repi-esentante do ambiente político em que a na­
ção buscava encontrar os lineamentos institucionaes, po­
demos apontar Francisco de Salles Torres Homem, viajado
e culto, tendo estudado em Paiis e exercido no Brasil car­
gos de importância, que illustrou. Inhomirim se especia-
lisa em finanças; foi director geral das rendas, presiden­
te do Banco do Brasil e Ministro da Fazenda por duas
vezes. N a política, chegou a deputado e senador. Era-
lhe egual a tribuna ou a imprensa. Manejava com a
mesma segurança a palavra escripta ou falada. Violento
quando adversário, Salles Homem temperava a mordacida-
de com a elegancia natural da phrase e a solida eloquên­
cia do conhecimento. Como financista deixou vários tra­
balhos de valor. Como orador parlamentar os annaes das
duas casas estão cheios de peças suas, em que ha vibra­
ção e colorido de imagens. Como prosador, publicou o
Libello de Timandro, onde perfilha inclinações anti-dynas-
ticas que o imperador soube torcer aproveitando o seu
talento para os misteres administrativos. Inhomirim foi

i
139
adversado da escravidão e comprehendeu, melhor do que
qualquer outro político bi’asileiro da sua phase, as con­
sequências da continuação do trabalho sei-vil. Com a sua
objectividade e cultura universal, podia sentir, melhor do
que os seus companheiros, os desacertos administrati­
vos e os erros políticos que se prolongavam.
João Manoel Pereira da Silva, fluminense de Iguassú,
nascido em 1818, é um infatigável trabalhador dos nossos
assumptos históricos. A s suas contribuições podem ter
perdido muito da opportunidade, modificadas por pesqui­
sas posteriores, mas isso não lhe tira o mérito do esforço,
si ajuizarmos que escreveu e estudou numa época em que
a pesquiza histórica, no nosso paiz, estava ainda na in­
fância.
Também Pereira da Silva escreveu sempre sobre fa ­
ctos de que estava muito proximo e soffreu a deforma­
ção de quem assiste o desenrolar dos acontecimentos. A
sua obra apanha os factos que vão de 1808, com o adven­
to da corte portugueza ao Brasil, a 1840, com a maiori­
dade do segundo imperador. Cita-se, delle, a Historia da
Fundação do Império Brasileiro, o Segundo Periodo do
Reinado de D. Pedro I e a Historia do Brasil durante a
nienoridade de D. Pedro II. Ora, elle escolhera justamen­
te os períodos mais agitados e confusos da nossa forma­
ção para, ao redor delles, bordar a sua analyse históri­
ca; por estarem os factos ainda vivos na memória dos
contemporâneos, não os pôde resumir e estudar com isen­
ção e imparcial discernimento. A formação do Império é,
por si só, um quadro de vastas proporções, a exigir extre­
ma clarividência no distinguir-lhe os effeitos e as causas
diversas que tinham actuado sobre os homens e a mar­
cha dos acontecimentos, conduzindo á Indenendencia. O
segundo periodo do reinado do primeiro imperador era
outra phase extraordinariamente obscura e complexa, a de­
safiar a argúcia e o espirito de synthese do historiador.
Quanto á Regencia, periodo tumultuario em que a sorte
uo paiz esteve numa constante oscilação, não seria facil
dar-lhe os traços principaes. Depois, muitos dos homens
da Regencia viviam ainda, muitos dos effeitos que ella
140

produzira persistiam no segundo Império, muitos dos acon­


tecimentos a que déra causa tinham se prolongado até os
dias em que o historiador os procurava fixar. Tudo isso
■diminuia as probabilidades de acerto e augmentava as qu<
■levaram o autor a conclusões apressadas. Demais, Perei.
ra da Silva foi um narrador puro e simples e suas obras
ficam como fontes de consulta, sem outro interesse, apc-
zar de que seria injustiça escrever sobre o tempo sem
0 seu auxilio. Na sua obra avultam livros de ordem pu­
ramente literaria, alem dos Varões Illustres do Brasil t
dum romance destituído de valor, Aspasia.
Da obra histoiuca de Francisco Adolj)ho Varnhagen
já se não poderá dizer o mesmo que da de Pereira da Silva,
Varnhagen merece, por muitos titulos, o cognom.e, que
lhe deram, de ]?ae_ da nossa historia. O seu esforço em
prol das obras què tratassem da nossa terra, o trabalho
estrenuo em favor das nossas cousas, a tenacidade na
pesquiza e a laboriosa narrativa da nossa formaçio, col-
locam-no em nivel superior a quantos, no seu tenrpo, te­
nham abordado os assumptos que elle abordou. Variiha-
gen apparece como o mais activo rebuscador de archivos
e 0 mais esperto descobridor de velhos papéis interessan­
tes. As suas pesquizas eram longas e conduzidas com
tenacidade e paixão. Esse filho de allemães possuia, da
raça de que provinha, o gosto da minúcia, a paciência do
■f
esforço continuado. Nelle, nada era apressado nem re­
dundante. A sua obra é immensa e abrange assumptos
todos correlatos com a historia; entretanto, não é, como
a de Peixeira da Silva, puramente expositiva. Varnhagen
sabia dar valor aos detalhes ethnographicos, aos filões
nobiliarchicos, aos roteiros de viagens, á narrativa dos
primeiros navegadores. Longe de cingir-se á superfície
dos acontecimentos, gosta de descer ao fundo delles, numa
t explanação exhaustiva em que traz as pequenas peças
com que compõe os seus trabalhos: dados anthropologi-
COS, apontamentos dos jesuitas e quasquer documentos que
lhe sirvam para a ellucidação duma data e esclarecimento
dum episodio. Teve, apezar de tudo, tempo para encarai'
a evolução das nossas letras como uma das facetas do

J
141
nosso espirito, ligando o desenvolvimento literário ao j
desenvolvimento historico e politico. Em pontos como
esse, Vanihagen deixava indicações da lucidez do seu es­
pirito e clareza do seu raciocinio. Também, na sua ma­
neira de escrever está o homem de pesquiza antes do
divagador impreciso. O seu estylo é secco e simples. O
ornato extraordinário que sobrecarregava muitos dos es­
crevinhadores da época, não apparece nas suas exposi­
ções claras e despidas de lances imaginativos. Elle nar- ,
ra, tão sóment^ e explica. O seu Florilegio da Poesia
Brasileira é uma contribuição apreciável para o estudo
da evolução dos nossos poetas. As suas obras históricas,
a Historia das Luetas contra os Hollandezes, a Historia
da Independencia, — tão diversas, nos seus methodos, da
de Pereira da Silva, — e a Historia Geral do Brasil, são
obras indispensáveis. Embora os methodos de pesquiza i
histórica evoluissem consideravelmente depois de Varnha- '
gen, seria injustiça deixar de apontal-o com.o um dos nos­
sos maiores historiadores, mesmo porque a sua obra fica,
como uma das fontes mais consideráveis a quem se aba­
lançar a compor, novamente, os lineamentos da nossa ío i-
mação, pelo cabedal que offerece e pela segurança da ana-
!yse dos factos. A sua contribuição, como exeavador e
commentador de obras alheias, revela o interesse mais de­
cidido pelas nossas cousas e o apego que lhe mereceram
sempre aquelles que haviam, de alguma fó m a , deixado al­
go que se ligasse aos problemas da historia e da gente
brasileira. A sua erudição não se limitava a qualquer de­
partamento do saber humano; tudo que diz respeito á
Historia, interessava-lhe com mais vei’acidade, pois aci­
ma de todos os titulos, presa o de tornar-se um dos nossos
grandes historiadores.
Sotero dos Reis, como Pereira da Silva numa parte
•ia sua obra, é um dos iniciadores da critica literaria en­
tre nós. A sua critica, porem, compendiada na Litera­
tura Portugueza e Brasileira, é vaga e imprecisa, cheia
de comparações ao gosto da época, nebulosa e diffusa, or­
nada ao extremo. Seriam os piúmeiros passos da critica,
sem objectividade, pois a cada passo transfere para o
142
dominio universal, em parallelos absurdos os nossos es-
crevinhadores. Outro autor de comparações formidá­
veis e descabidas é Fernandes Pinheiro.
Francisco Octaviano de Almeida Rosa, jornalista e
politico, é mais importante como politico do que como
homem de letras na collaboração para as folhas do tempo.
Nos dominios da oratoria parlamentar, encontramos
um representante lidimo da eloquência vazia e cheia de
omatos que caracterisou a maior parte dos nossos parla­
mentares, José Bonifácio, o Moço. A suas orações são
carregadas de imagens classicas, numa invocação solem-
ne aos defuntos celebres.
Da primeira phase de autonomia literaria. impreci­
sa no tempo, como todas as escolas e todos os filões li­
terários, poderiamos citar, grupando hetei'ogeneamente os
valores: Frei Sampaio, Azevedo Pizano, Luiz Gorçalves
dos Santos, Balthasar da Silva làsbôa, Cerqueira e Silva,
historiadores estes tres últimos; Azevedo Coutinho e An-
toiiio Carlos, oi-adores e politicos, o chronista Ayres do
Casal e o diccionarista Moraes.
Já quando as letras brasileiras haviam tomado gran­
de impulso, após a Independencia, devemos apontar, de
passagem: o Barão de Paranapiacaba, traduetor; Dutra
e Mello, critico; Aureliano Lessa, poeta lyrico; Teixeira e
Mello, Pedro Luiz, que deixou algumas poesias muito po­
pulares e diffundidas, precursor do condoreirismo; Tra-
jano Galvão de Carvalho, Francisco Leite Bittencourt Sam­
paio, Gentil Homem de Almeida Braga, Victoriano Fa­
lhares e Mello Moraes Filho, poetas, Moniz Barreto, Luiz
Gama, Bi-uno Seabra e Joaquim SeiTa.

J
CAPITU LO XV

Theatro — Martins Penna — Romance


— Macedo — Bernardo Guimarães — Alen­
car — Manoel Antonio de Almeida,

Ha de parecer a muitos que o theatro, no Bi'asil, te­


nha tido um desenvolvimento demasiado ionto, apparecen-
(lo muito tarde, sem acompanhar de perto o progresso
das letras. Explica-se. O theatro, ao tempo da colonia,
apezar do gosto natural do povo pela scena e pelo jogo
//
das personagens, estava no index. Era uma cousa pe­
rigosa, como tudo que pudesse suscitar a consciência da
expoliação e dominação, algum prurido de revolta, signaes
de vida autonoma. Accresce que o theatro sempre se
destinou mais ao povo do que aos letrados, vivendo mais
do applauso popular do que do incentivo duma minoria
culta. A platéa. em todos os tempos, car.acterisou-sc pelo
nivelamento. Já na explicação do apparecimento do ro­
mantismo em França, summariamos o papel do ribalta
no desenvolvimento das novas idéas.
Ao tempo da colonia, o theatro appai’eceu aqui e
acolá, sem grande influencia, gii-ando em redor dos senho­
res como os menestreis medievaes. Foi um genero incipi­
ente, animado pelos potentados coloniaes, delegados do /■
poder real na terra do Brasil. Jamais teve prestigio pro-
prio e continuidade.
Por isso 0 nosso grande autor theati-al surge com
Martins Penna, desde que os ensaios anteriores, Maga­
lhães e outros menores, careceram de mérito, collocados
fóra do alcance popular. Também Antonio José fez o
, A
144
seu theatro em Lisboa, no Bairro Alto, e isso o deslocou
para a metropole. Não póde ser tido como o iniciador do
nosso theatro; arrolado apenas entre os nossos escriptores
do genero porque nascido no Brasil, não se nega ao seu
modo de compor o jogo das scenas alguma cousa do es-
pirito da sua terra. Mas não influiu, de maneira alguma,
para que o theatro se desenvolvesse. O creador do thea­
tro brasileiro, é incontestável, foi Martins Penna.
Como homem de theatro, teve elle as qualidades prin-
cipaes: o dom do dialogo e a simplicidade dos argumen­
tos. Collocou as suas producções ao alcance de toda a
gente, saturando-as dum riso clai'o e ameno. Ironisou
as passagens mais grotescas da vida do paiz. No logar
da these, poz a anecdota, não desejando ser pi'ofundo nem
grave, refonnar os costumes, satyrisar os que domina­
vam. Foi leve e accessivel, inclinando-se para o gosto
trivial. Situou-se onde o exigia o publico, e soube assim,
fazer-se admirado e querido. O theatro de Martins Penna
não tem linhas grandiosas nem intenções profundas. E’
um divertimento, e nada mais.
O romance estava destinado a substituir o theatro
na generalidade do gosto popular. Pai’a isso teve, desde
logo, um autor capaz de fazer dos enredos novellescos o
que Martins Penna fizera das suas comédias; Joaquim
Manoel de Macedo. Poucos escriptores souberam, como
esse, comprehender o nosso publico. Macedo caracte-
risou-se pela ^spreten^ão com que urdia os seus enredos.
Os seus romances ficaram, até os nossos dias, como lei­
tura obrigatória duma mediania numerosa. Algumas das
suas personagens ati’avessaram os tempos. Ha sitios da
paysagem carioca, descriptos por elle, que se tornarani
lendários e inesqueciveis. A trama dos seus romances
singularisa-se pela simplicidade; mas em todos o final
corôa a virtude e castiga o vicio, triumpliando os bons
principios. E’ assim na Moreninha, no Moço Louro, em
Rosa. Soube, apezar de tudo, pintar os nossos costumes,
as nossas tradições, a nossa vida de familia, no ambiente
semi-provinciano da capital. Algumas das suas figuras têm
movimento e força, agitam-se, embora sem grande ampli­
145
tude, ao impulso mágico do autor. Macedo é um român­
tico nitido. Os seus livros têm todas as caracteristicas
da nova escola. E’ a luta entre o mal e o bem, embora
0 lado máo nunca chegue a causar verdadeiro horror, o
que não conviria á leveza dos seus enredos. O mais ciue
elle tenta, na escala negativa dos costumes, é caidcaturar
0 despeito, a inveja, o ciume, sobrepondo-lhes o amor,
a sinceridade, a confiança. Remate: o casamento.
Já Beniardo Joaquim da Silva Guimarães foi menos
))opular e menos expontâneo. As suas personagens não
se agitam, como as de Macedo, no scenario da capital, mas
no interior, no sertão. E ’ um pintor de costumes cam-
])esinos. A sua obsei^vação não é precisa e as suas nar­
rações por vezes refogem á realidade, porque Bernardo
transfomia as scenas e as enfeita de accordo com as pró­
prias emoções. A Escrava Isaura, Maurício, o Semina­
rista, 0 Ermitão são nai'rativas da vida duma sociedade
estreita e de movimentos emperrados. Preoccupavam-
no, mais do que tudo, a vida das personagens sertanejas,
os tropeiros, os religiosos, os negros. Mais feliz nas des-
cripções do que na pintura dos typos, Bernardo Guima­
rães deixou algumas pinturas aproveitáveis da natureza,
alguns quadros do ambiente do inteiãcr, poetisando-os.
O grande pintor da selva bi'asileira, o romancista mai­
or do paiz, surgiria com José de Alencar, romântico pela
suavidade das paginas que traçou, onde ha ti^cchos dos
mais interessantes das nossas letras. O seu indianismo,
como 0 de Gonçalves Dias, teria muito de literário, muito
de convencional, mas o talento do naiTador, o interesse
constante das suas paginas, salvai^am o sentido que quiz
imprimir á obra, um nacionalismo vivissimo de que é um
dos vigorosos precursores. Os que fugiam ás influen­
cias de Portugal, faziam-no, até então, muito timidamente.
Alencar é destemeroso na distincção. Marca um dos mo­
mentos decisivos da nossa emancipação literaria. Na sua
revolta contra os doutores de Coimbra, distinguiu-se por
alguma cousa mais do que um simples impulso pessoal;
estabelece a linha bem nitida dos meios de expressão, na
differenciação do idioma. A té o seu apparecimento, a

i
146
lingua falada em Poi'tugal era a que se escrevia no Bra.'',
sil, numa disparidade chocante que vem até os nossos dias.
Naturalmente, “ escrever 6 disciplinar e construir” , ma.s
nessa disciplina não deve nem póde entrar o cabedal for-
malistico das regras mortas nem o peso duma tradição
velha e gasta. Alencar escreve differente e é, por isso,
criticado na metropole. Os literatos ultramarinos não po­
diam deixar de sentir o divorcio que se accentuava, mas
queriam, como muitos querem, nos dias claríssimos que
vamos vivendo, que o idioma seja etemo e indeformavel,
organismo perfeito e acabado, insensivel ás influencias
poderosas do meio, das gentes e do tempo.
Alencar é um dos maiores talentos dcscriptivos que o
Brasil já produziu. Os seus painéis têm realidade, por­
que não lhe faltam côr, movimento, luz, relevo. Tam­
bém não abusa, no enredo dos seus romances, das com­
plicações da novella vulgai’. Sabe consei’var o cquilibrio
que 0 destingue do commum e do secundário. A trama dos
seus livros consei-va um interesse que elle não subordina
ao gosto commum, antes mantem com energia c sentido
que quer imprimir e culmina na glorificação do que é nosso,
do que existe e vive na maravilhosa terra brasileira. 0
Guai‘any é uma empolgante exposição de motivos brasi­
leiros. Haverá em Perj', talvez, o culto de qualidades só
possiveis entre os homens civilisados: mas os seus
Ímpetos barbaros, a sua paixão desordenada, a sua
communhão com a natureza não perde, na eloquência pom­
posa da descripção, não descae e não se desequilibra. 0
contacto do portuguez senhorial com os aventureiros que
cercam os conglomerados humanos da colonia, e a inter­
venção do indio na luta, e o quadro da natui’eza, têm al­
guma cousa de fascinante, de profundamente brasileiro,
que nos faz sentir aquella naiTação.
O Guarany é a obra typica de Alencar, aquella em
que estão os seus traços principaes de escríptor, de ani­
mador de scenas gi’andiosas. Ha no romance, talvez não
intencionada, a magnitude do panorama, do contacto bru­
to do homem com a terra e a communhão do indio coni
a gleba fecunda. As Minas de Prata fôi’am um recheio
147
de complicada trama aventureira e algumas notáveis pin­
turas da natureza. Iracema è um poema nativo onde ap-
parecem as primeiras paginas brasileiras da literatura
brasileira. Ubirajara é o seu par. O Gaúcho contem al­
gumas descripções notáveis do pampa. O Tronco de Ipê
pinta a vida rural da região fluminense, ao fim do segun­
do Império, lí os perfis de mulher, Senhora, Diva, Lu-
ciola, representam contribuições api’eciaveis para o ro­
mance da cidade. Til, Encarnação, A Pata da Gazella,
são ficções mundanas em que o autor quiz, com certeza,
demonstrar que podia ser também um narrador da vida
frivola.
E ’ do tempo de Alencar, embora já tenha sido si­
tuado en-adamente muito antes, um escriptor dos mais
interessantes que possuimos, um genuino pintor de cos­
tumes, escapando, subtilmente, á influencia romantica para
nos offerecer algumas paginas cheias de equilibrio e so­
briedade, tratando as situações do seu livro dum ponto
de vista inteiramente novo no paiz. Trata-se de Manoel
Antonio de A l^ id a . Só mais recentemente os pesqüi-
zadorés'"dã‘ hóssa historia literaria têm dado a importân­
cia merecida a esse escriptor, dos maiores que temos tido.
Manoel Antonio escreveu pouco e viveu pouco. Mas pen­
sava como um velho e observava com aquella argúcia que
só os annos trazem. Elle não fixou os costumes de 18.50
e 1860, como se affirmou, pois o desenrolar do seu romance
se passa, confonne elle diz, em tempos mais afastados:
“Era no tempo do rei” . . .
Curioso 0 a))parecimento desse itracejador de figuras
communs e medianas num tempo em que imperavam os
romances de Alencar, quer no indianismo, quer nas pa­
ginas de mundanidade e perfis de mulher, e Macedo en­
chia os lazeres com a feitura das suas novellas i’oman-
ticas e iguaes. Seria de e.sperar que Manoel Antonio,
com mais vivacidade e maior razão, se inclinasse para
aquillo que imperava e fazia a moda. Elle apresenta,
entretanto, alguma cousa de muito diverso, ou verdadei­
ramente unico no tempo. As Memórias dum sargento
de milicias são um livro excepcional e desconcertante na
148
corrente que vinha dominando o pensamento dos cscripto-
res brasileiros e marcando o compasso da evolução das
nossas letras. A sua observação, em se tratando de cou.
sas passadas ha já quasi meio século, era tão fiel e pre­
cisa que dava a idéa, confonne frisou bem um dos com-
mentadores da sua obra, de que elle assistira á vida da
Capital, embryonaria, cheia de provincianismo e bisonhice.
A s suas personagens, o Leonardo Pataca, a Maria Rega­
lada, o Vidigal, este tirado á realidade, vivem nas paginas
do seu livro, movem-se, agitam-se, mostrando-se á luz com
duas ou tres pinceladas e meia. duzia de observações.
Eram typos reaes, tirados ao meio estreito da capital no
tempo que D. João VI, com a sua côrte, vinha dar um
impulso aos hábitos modestos do Rio de Janeiro. Ma­
noel Antonio de Almeida narrou com tanta fidelidade os
costumes da capital do reino, que alguns criticos chega­
ram a situal-o na época da naiTativa, deslocando-o paia
um periodo anterior ao em que realmente viveu, e isto
revela a sobriedade e a clareza da sua narração, a appro-
ximação entre o que contou e a realidade. Relegado, as­
sim, aos annos do advento da côrte ultramarina, Manoel
Antonio estaiúa em condições de, conforme escreveu o sr.
Xavier Marques, por oceasião do seu centenário, “ ser ne­
cessariamente um dos últimos arcades, amigos do jovem
Monte Alveme, de Souza Caldas e frei Francisco de São
Carlos; collaborador, não do “ Correio Mercantil” , mas
da “ Gazeta do Rio” ; administrador da Imprensa Régia,
antes de o ser da Typographia Nacional; medico, mas
diplomado ainda pela Escola Medico-Cirurgica installa-
da na rua do Ouvidor, habitação de familias, em um so­
brado com gelosias e engradammto extemo de madei­
ra” .
' Já José Veinssimo quer illudir a realidade com um
subterfúgio interessante.; Elle attribue a essa clareza
dc annlyse, a esse traço fino c incisivo, a essa naturali­
dade de pintura, o facto dos usos e costumes da canital
terem tido uma evolução muito lenta, terem soffrido
pouca modificação, apresentarem quasi que os mesmos
aspectos. Ora, o ciitico não póde ter razão neste ixmto.

J
149
Muito pelo contrario, a phase de El-Rei foi typica e úni­
ca na vida da cidadesinha. Dahi por deante é que o
burgo á beira da bahia iminensa começaria a desenvol­
ver-se, matto a dentro, morro acima, numa expansão v i­
gorosa. Ha uma distincção perfeita entre o Rio de Ma­
noel Antonio, ou melhor, o Rio das Memórias de um
sargento de milicias, e a metropole que lhe succedeu.
Não que houvesse um progi'esso vertiginoso, marcado
com uma acceleração desconhecida para época. Isso se­
ria forçar o argumento e obscurecer a analyse, mentir
á realidade. Não foi precisamente isso que aconteceu: a
mutação nos costumes é bem accentuada, e vejamos porque.
Quando D. João V I vem para o Brasil e se installa
‘ na capital, traz, no bojo das náos que deixaram o Tejo,
uma população inteira, uma sociedade organisada na sua
escala, uma administração já montada, toda uma hie-
rarchia de validos. Traz creados e escudeiros, damas
e cavalheii’os , nobres e commerciantes, um mundo, mistu­
ra inextrincavel de gente de toda especie que, no alvoro­
ço da fuga, quasi de trouxa ás costas, carreara apenas
algumas alfaias que foi possivel transportar. Traz, alem
dessa gente, tropas e officiaes. Elle se desloca, por as­
sim dizer, com o presepe de Portugal.
E ’ esse presepe que se vem installar no Rio de Ja­
neiro, é esse quadro completo e acabado de sociedade que
se fixa numa cidade que sahia das brumas coloniaes e
vivia debruçada nas aguas da Guanabara, sem aventu­
rar-se pelo interior, expandir-se pela mattaria que a cer­
cava. Ora, era preciso alojar essa gente, accomodar
essa turba confusa. O Rio soffreu a commoção da che­
gada duma côrte inteira; e, com o passar dos mêses, foi
tratando, insensivelmente, de se amoldar á nova situa­
ção. A cidade tomou-se de uma ansia brusca de mo­
vimento, séges a correr pelas ruas mal calçadas, a ati­
rar com os transentes para as paredes, a bater com as
portas que abriam para fóra.
Entretanto, esse tumulto e essa furia de gente no­
va, passaria. O rei regressa a Portugal e leva grande
pai'te da gente que com elle viera, embora aqui se esta-
150
r beleça definitivamente a parte mais desfavorecida da côr-
' te ambulante. Aquillo que tinha sido impeto de desen­
volvimento, apressado por uma situação premente, ia des-
cahir na monotonia e na calma. A capital, como o paiz
todo, ia soffrer dessa evasão bruca e solerte que raspa o
thesouro publico e deixa um terrível collapso financeiro.
Houve uma parada súbita, um momento de estupor, com
a consequente mudança 1'apida de modo de viver. Os cos­
tumes, que haviam soffrido a influencia do advento des­
sa multidão, iam padecer, agora, com a sua sahida. Os
tempos correram. Veio a Independencia. Veio o Impé­
rio. Surge, então, o Rio de Janeiro do homem que ia
escrever sobre o passado recente.
Dahi a illusâo de que elle, pela justeza dos seus com-
mentarios, pudesse ter vivido na época anterior: "Era no
tempo do rei” . . .
Só podia causar espantosa maneira como o autor apre­
sentava 0 seu romance. Na época do romantismo infrene,
om que o amor era motivo singular, amor pintado a ca­
pricho, com as côi-es sombrias que irradiavam um clarão
de felicidade nas paginas finaes, mas em que havia, tam­
bém por vezes, o desfecho trágico, a “ nuance” dolorosa
— esse narrador de caracteres apresentaria risonhamente
os seus typos, sem exeggeros sentimentaes, sem o carre­
gado das tintas, sem a violência das situações. Tudo com-
mum, tudo possível, tudo realizável. Isto desconcertaria
ainda mais a critica. A sua heroina nada tinha de lyrica
nem de tuberculosa. Era forte e gozava saúde. Vivia
simplesmente, sem lances espectaculosos. Chegava aos
braços do marido sem que elle tivesse um só traco do
cavalheiro impávido, dono de excelsas virtudes, mas reves­
tindo outras qualidades muito humanas, muito communs.
Outro aspecto diverso da obra de Manoel Antonio:
elle não ia buscar ao sertão, nem á matta, nem ás praias,
conforme obsei^vou ainda o sr. Xavier Marques, o scena-
rio para a sua narrativa. Tinha-o junto a si. Seria a
cidadesinha semi-provinciana, a capital brasileira. E ’ ver­
dade que Alencar fixa na mesma cidade algumas das sua.s
151
historias. E Macedo fazia a chronica ligeira dos seus cos­
tumes, na suavidade dos seus enredos.
Mas só Manoel Antonio foi um escriptor rigorosamen­
te citadino. Só elle soube fixar os traços naturaes da vi­
da vulgar e con-entia do Rio de Janeiro. Para isso, era
mister, mais da que a arte descriptiva, onde a côr predo­
mina, a segurança na narração, a sobriedade na pintura.
Essas as suas qualidades mestras.

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CAPITU LO X V I ‘1

». : *í Religiosos e políticos — D. Antonio de]


if-. •
Macedo Costa — Ouro Preto e Couto de Ma-^
gaihães — O romance de Franklin Tavoraj
e de Taiuiay — Inocência — A poesia dos^
vinte annos — Influencia européa — Alvares
de Azevedo — Junqueira Freire — Laurin-
da Rabello — Casimiro de Abreu — Va-
rella.

Na segunda metade do século X X já existe, no Brasil, >


um movimento literário, mas cuja evolução não é auto-
noma. Seria uma variante da evolução européa. A com -;
panharia a marcha das letras extrangeiras, mórmente as i
francezas, desde que os nossos homens cultos faziam a sua '
erudição na leitura dos livros francezes. Então como ago- ■;
ra, tudo o que se passa no Brasil, em matéria literaria, é j
a repercussão daquillo que se desenvolve na França, com
um certo atrazo e sofrendo certa transfoiwaçâo. Si o
evolver das nossas instituições obedecia ao critério imita-
tivo, que se podería esperar das letras, onde esse critério
tem muito maior amplitude e onde as idéas não são mais
do que écos de outras idéas, alteradas pelo raciocinio in­
dividual, dissociadas no espiiúto de cada um? O que acon­
teceu não é um phenomeno puramente brasileiro nem ■
indica submissão pura e simples. E ’ cousa corrente e
commum em todos os paizes surgidos depois da Euro­
pa haver já delineado os limites e a constituição das
nações que se foimaram no crepúsculo do medievalismo.
Aconteceu na própria Europa, entre os povos que só al­
cançaram a sua integração no alvorecer dos tempos mo­
dernos. Succedeu na Rússia, por exemplo, e a Rússia
T 1Õ3
offereceu ao mundo, entretanto, alguns escriptores de
mérito incontestável.
Poderá caber aqui uma contenda especiosa para
saber a razão por que o Brasil não universalisou a sua
cultura, não deu um nome siquer que atravessasse as
fronteiras, alcançando a sua obra repercussão em outras
linguas. Attribue-se essa separação entre o que produ­
zimos e aquillo que os outx-os povos mais adeantados pro­
duziram, á baiTeira do idioma, que não tem ainda razão
positiva para se universalisar. A verdade, porem, é
que outros povos de lingua muito mais desconhecida
do que a nossa, e menos expressiva certamente, chega­
ram a universalizar um ou outro dos seus escriptores.
O que nos faltou, e que nos falta ainda, é, mais do
que esse phenomeno da lingua, razão de segunda ordem,
a transcendência e a emancipação mental. Não temos o
equilibrio e a sobriedade dos povos cultos. A nossa his­
toria está ainda na infancia e os processos de fazel-a co­
meçam, nos nossos dias, a tomar uma directriz conforme
os methodos positivos e racionaes. A nossa critica limi-
ta-se á narração pura e cimples, chronologica e arida.
Mão possuimos o senso da medida, só possivel no desen­
volver dos annos. Estamos ainda apegados a certos de­
feitos que se em^aizam num passado confuso e obscuro,
0 gosto do oniato, o horror á simplicidade, o prazer da
antithese.
Por largos annos, temos sido os traduetores de emo­
ções alheias, sem dar um sentido univei-sal áquillo que
creámos. Aletm disto, o nosso movimento literário, a
nossa producção mental data do advento da côrte portu-
gueza — como uma refei’encia no tempo — quando nos
foi dado possuir meios de expansão de idéas: a impx'ensa,
a typographia, o livro, a tribuna parlamentar. Natural
que tivéssemos de atravessar a phase imitativa, que está
para a literatura.^omo o anhnismo está para a religião.
Ao attingir a nossa historia os meiados do século XIX ,
temos um meio letrado constituído e relativamente impor­
tante. Existe já o debate de questões nadonaes. O ro-
xnantismo, que marcou a emancipação, começa a produ-
154
zir obras de sentido brasileiro. Dá-se um dos phenome-
nos mais curiosos da nossa fom ação. Começa a avolu-
mar-se nos dois ou tres centros nucleares do paiz, utn
grupo de homens cuja cultura se solidificara no trato dos
livros extrangeiros e, movimento summamente interessan­
te, estabelece-se o divorcio profundo entre a realidade bra­
sileira, na vastidão do seu obscurantismo, no infinito das
suas terras, na dispersividade da sua gente, no contras­
te das regiões ricas e pobres, progressistas e ati'azadas e o
pensamento dessas minorias isoladas que, das capitaes e
com os olhos postos no extrangeiix>, entra a legislar por
imitação, para um paiz de condições cspeciaes peculia-
rissimas. Inicia-se, então, o gosto dos figurinos extran­
geiros para vestir a pobreza nacional. Por causa desses
figurinos inicia-se a faina dos debates ruidosos e accende-
se a chamma das campanhas fulminadoras. Essa separa­
ção, esse hiato nitido e grave entre a realidade e a ima­
ginação, entre a massa confusa do paiz e uma minoria
de letrados afeitos a uma cultura extranha, chega até
nossos dias e só agora começa a desfazer-se. Os homens
do meiado do século XIX , na feitura da vestimenta das
nossas instituições, haviam esquecido uma cousa indis­
pensável nas representações caitographicas e real na
admissão de medidas extranhas: a escala.
As figuras brasileiras começam, entretanto, a vol­
tar-se para a própria terra. Surge um bispo como D.
Antonio de Macedo Costa, vulto dos mais inconfundiveis
do clero brasileiro do tempo, homem de cultura sólida,
lendo comprehendido, como poucos, a transcendência do
catholicismo na fonnação da sociedade brasileira. Ap-
parece um Visconde de Ouro Preto, cujas monographias
sobre o nosso passado são das mais estimaveis, escriptor
correcto, orador vigoroso, politico comedido e realista.
Couto de Magalhães retoma o fio de Anchieta e enceta o
estudo da lingua do gentio, deixando uma das contribui­
ções mais valiosas em que se possam apoiar os modenios
cultores do assumpto. Já havia a curiosidade da terra.
Publica-se o romance de Franklin Tavora, pintando typos
do nosso interior. Tavora não tem o vigor descriptivo
155
de Alencar, a sua narração é muito mais pobre do que
a do autor de Iracema, mais deixa alguns livros onde a
pintura de ambientes do interior brasileiro não está mui­
to longe da realidade. Os matutos, os campesinos, os
vaqueiros dominam na obra desse escriptor. Eram, jus­
tamente, os typos do interior ignorante e vazio, a contras­
tar com as figuras de beira-mar afeiçoadas aos modelos
europeos. O Cabelleira, onde estuda o cangaço; Casa de
Palha, Lourenço, O Matuto, são livros onde repontam no­
tas apreciáveis sobre os costumes das populações do in­
terior, pobres e desfavorecidas. Ha nas paginas de
Franklin Tavora uma tristeza immensa ao deparar o es­
tado da nossa gente do sertão, com a sua ignorância e
as suas mazellas. A nota melancólica predomãna nos
seus livros.
O grande desenhista dos hábitos da gente do in­
terior, na simplicidade dos seus motivos e na inércia dos
seus costumes, seria, entretanto, Alfredo de Escragnolle
Taunay, Visconde de Taunay. Esse filho de extrangei-
ros, apegado á sua terra de nascimento, serviu-a como
poucos e conseguiu tomar-se, por uma das suas obras, dos
nomes maiores das nossas letras, pois Innocencia é o li­
vro marcante da nossa evolução literaria. Moço ainda,
launay seguiu a carreira das armas e, com o advento da
guerra do Paraguay, tomou parte num dos maiores er­
ros de que ha memória na historia militar de todos os
povos; a columna que, pelo interior de Matto Grosso,
procurou atacar o inimigo. Do desastre inevitável que
succedeu a esse coi*po expedicionário salvou-se o herois-
mo lendário dos seus componentes e uma obra soberba
pelo vigor da narração, justeza do commentario, poesia
grandiosa que a envolve, limpidez de estylo, e que é, a
par do romance celebre sobre os costumes sertanejos, um
dos maiores florões da gloria do escriptor: A Retirada da
Laguna. Na literatura dispersiva e inócua que os acon­
tecimentos do Paraguay produziram, salvou-se esse livro,
grande como intenção e grande como realisação, pois fixa
um episodio, dos mais notáveis da campanha, tornado im-
mortâl pela energia sóbria e tenaz dos nossos soldados.
156
Ha na narrativa da angustia por que passariam os homens
que haviam tomado parte na arremettida, uma soberba
eloquência épica e um vigor descriptivo dignos da maior
attenção. Taunay tomava^se, com esse livro unico. um
dos grandes narradores do idioma, inscrevendo o seu no­
me na galeria dos nossos maiores homens de letras. Por
volta de 1872, enriquece elle a sua bagagem, onde ha obras
menos valiosas, com um dos livros mais bellos da nossa
t literatura de ficção: Innocencia. Jogando com um enredo
' vulgar, Taunay soube tratal-o com tanta maestria, con-
; sei*var em todo o decoiTer da acção tal interesse, coloril-
o de tal fórma, que a obi-a ficou como uma das mais po- j
pulares e valiosas que podemos apresentar. A trama é I
simples: trata-se de uma viagem de pesquizas que faz ao j
. interior do Brasil um scientista allemâo, Meyer; da inge- j
nuidade e da honestidade de um moço curandeiro, Cyrino; í
da hospitalidade e franqueza de um sertanejo, ignorância e 1
! brutalidade de um noivo, e da graça puríssima e belleza j
adoravel de Innocencia. Dois hospedes chegam, ao mes- '
mo tempo, á casa pobre de um habitante do interior: Me- !
yer, o allemão, e Cyrino, o brasileiro. O dono da casa j
teon a filha doente. Pede a Cyrino que a veja. O curan-1
deiro trata da moça e apaixona-se por ella. Manecão, seu |
promettido, vem a saber disso e, num encontro com Cy- |
rino na estrada, mata-o.
Desse jogo muito curto de situações Taunay soube fa­
zer, entretanto, pela simplicidade da narrativa e expon-
taneidade com que situou os motivos principaes, um dos
livros mestres da lingua. A pintura dos costumes do nos­
so interior, o patriarchalismo duro e vesgo que dominava
o ambiente do lar, a desconformidade dos velhos usos,
enclausurando as mulheres, casando-as segundo a vonta­
de do pae, que muito cedo lhes arranja o noivo, tudo isso
o esciãptor põe em relevo, não intencionalmente, mas por
amor á realidade.
Ha, porem, no amor dos dois jovens, alguma cousa
de alto e puro que poetisa as passagens mais amargas.
Mas suspeitas do velho em relação a Meyer, ha muito
da ingenuidade nativa, da desconfiança cabocla. Na si-

i
r
157
tuação do scientista resalta o ponto de vista dum homem
que encara a organisação familiar dum augulo inteira-
mente diverso, em contraste com o nosso meio sertanejo.
Innocencia ficou, na nossa literatura, como uma obra
relevantissima. Poucas se lhe comparam. Ao lado das
Memórias de um saigento de milícias e do Atheneu, per­
manece como dos grandes livx'os que possuimos, pelo qua­
dro da nossa vida simples e unção de poesia que a trans­
figura e pela exactidão na pintura da natureza e dos cos­
tumes.
As outras obras de Taunay são narrativas singelas
do nosso interior e de acontecimentos importantes da vi­
da do paiz, mas não chegam a se collocar em nivel egual
ao dos dois livros citados.
Ia surgir no Brasil um grupo de poetas, quasi todos
muito jovens, enfermos de romantismo, infelizes, victi-
mas de mal incurável, lyricos e sensíveis, poetas que so
popularisaram logo porque os seus versos attendiam ao
gosto do tempo, tocavam os motivos mais api'eciados pela
gente brasileira de então, a magua, a infelicidade, a de-
sillusão, o opio dissociador de inexplicáveis amarguras.
Elles viviam de olhos postos na Europa. Em plena sel­
va brasileira imitavam aquelles que versejavam em pla­
gas distantes. 0 chamado “mal do século” os havia con­
taminado até o mais profundo do ser. Quando Musset
declamava uma das suas poesias em França, ou Byron
compunha uon dos seus poemas, mal podiam saber a re­
percussão no Brasil, onde uma febre nova dominava os
nossos homens de letras. Essa inclinação imitativa não
exclue a possibilidade delles terem tido talento. Tiveram-
mo, e o malbarataram allucinadamente. Quizeram até
copiar 0 modo de viver dos seus admiráveis modelos, ten­
tando fazer do achamboado e prosaico ambiente paulis­
ta e carioca a scinfillante atmosphera em que os mestres
de alem-már cantavam e soffriam. Viverani na America
um instante europeu.
Entre os mais notáveis e os mais typicos dessa ge­
ração, destaca-se Manoel Antonio Alvares de Azevedo,
nascido em S. Paulo, em 1831. Estudou as primeiras le-
158
tras no Rio de Janeiro e fez o curso superior na Faculda­
de de Direito da capital paulista. Alvares de Azevedo,
que mon-eu no anno da sua formatura, não foi um mau
estudante, como a sua vida extravagante pode fazer crêr.
Frequentou com assiduidade o Direito Romano e pesqui-
zou 0 Codigo do Commercio, confrontando-o com os ex-
trangeiros. Cursando ainda o primeiro anno da Facul­
dade, imitou o 5.° acto do Othello de Shakspeai’e e tra­
duziu a Parisina de Byron. Elle poderia versejar, mais
adeante:
Junto do leito meus poetas dormem
— O Dante, a Biblia, Shakspeare, Byron,
Na mesa confundidos...
Esse moço esgotou a mocidade trabalhando como
poucos. Parece que tinha o presentimento do fim pro-
ximo e desejava encher os poucos annos que lhe resta­
vam. Encheu-os, effectivamente, e dispersou-os, tam­
bém, numa vida desordenada. A melancolia domina a
sua existência. Mesclou-a com a mórbida tristeza dos
românticos. Aprofundou os seus males physicos com a
angustia dos que não esperam senão amargores, e soube
ser um dos maiores poetas que possuimos. A fascina­
ção de Byron enche os seus annos de creador de imagens,
cuja obra é fragmentaria. Alvams de Azevedo, no tu­
multo da creação e na vibratilidade do seu genio, produ­
ziu muito e abordou generos os mais diversos. Poeta,
contista e dramaturgo, o que nos deixou, entretanto, de
peixJuravel, foram as suas poesias lyricas, onde ha ver­
dadeira emoção lyrica. ao contrario dos que se limita­
ram a decalcar desbragadamente os euippeus e não sou­
beram infundir alguma cousa de pessoalmente sentido
naquillo que produzii-am. A idéa da morte prematura
pesava sobre os seus dias:
Minha mãe de saudades morreria,
Se eu morresse amanhã. . .
Ou, então, conformando-se com o destino que o es-
perava:
r Eu deixo a vida como deixa o tedio
159

Do deserto o poento caminheirí>;


Como as horas" de um longo pesadelo,
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como um desterro de minha alma errante.


Onde fogo insensato a consumia...
Só levo uma saudade — é desses tempos
Que amorosa illusão embellecia.
Só levo uma saudade — é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas. . .
De ti, ó minha mãe, pobre coitada,
Que por minha tristeza te definhas!

Descansem o meu leito solitário


Na floi*esta dos homens esquecida,
A ’ sombra de uma cruz — e escrevam nella
Foi poeta, sonhou e amou na v id a ...

Alvares de Azevedo debate-se entre o lyrismo das


cousas puras e suaves e a violenta sensualidade pagã
de algumas das suas producções. Expira aos vinte e um
annos, quando tanto se esperava ainda do seu genio e da
sua fecunda sensibilidade.
Luiz José de Junqueira Freire, nascido na Bahia em
1832, cultivou, também, a nota plangente. Estudou com
os padres benedictinos, mas sentiu, muito cêdo, que lhe
faltava vocação para a vida do clausteo. Apezar de me­
lancólica, a sua musa tem momentos de transfiguração,
alçando-se as glorias mundanarias. O titulo de um dos
seus livros, as Contradicções Poéticas, indica a intima
inquietação de uma duvida profunda. O mysticismo se
mescla a uma ansia do grandioso e sublime, mas no sen­
tido bem terreno da palavra. Nas Inspirações do Claus-
t)o ha 0 fundo religioso que nunca o abandonou. A pas­
sagem pelos livros sagrados deixa marcas indeleveis na
sua inspiração. Conquanto não tenha sido dos maiores
do seu tempo, em que sobravam os poetas eminen­
tes, seria injustiça deixar sem referencia o nome de um
160
dos versejadores cuja nota humana e melancólica foi pro­
funda e real, evasão dum espirito atomentado e não
simples motivos de vaidosa exhibição literaria. Jun,
f queira Freire mon-eu aos vinte e tres annos, seguindo o
triste caminho dos poetas da sua época.

Laurindo José da Silva Rabello, nascido no Rio de


Janeiro em 1826, alcunhado o “ poeta lagartixa” , foi tam­
bém um infeliz. A vida mortificou-o com os males ter­
ríveis da pobreza e falta do conforto domestico. Tenta
a carreira ecclesiastica, impulsionado pela miséria e não
por uma decidida vocação. Orphão, só lhe restava buscar
0 aneio de poder educar-se. Não se accomoda, porem, aos
rigores do seminário. Desiste e tenta outra carreira, on­
de impera igualmente a disciplina a que elle não consegue
submetter-se: a militar. Nova desistência, mas desta vez
não sómente por vontade do alumno, mas também dos che­
fes feridos pela veia satyrica de quem dissolve a própria
tristeza no fel da ii-onia. A familia dá-lhe desgostos
enormes. Uma iim ã enlouquece, morre-lhe a mãe, um iimão
é assassinado. O destino se volta decididamente contra elle.
Em meio de tantos infortúnios, apparece-lhe, porem, um
protector, o dr. Salustiano Ferreira Souto, lente da Faculda­
de da Bahia, que o auxilia e faz concluir o cureo médico.
Voltando ao Rio de Janeiro, seu scenario querido, não
foi bem succedido na profissão e escolhe um derivativo:
fez-se médico militar e, nessa qualidade, seguiu para o
sul. Pobre, sem familia) com a eiva da mestiçagem, Lau­
rindo Rabello foi infeliz, não por motivo literário, para
collocai’-se ao nivel dos seus confrades, imitar a doença
da moda, em busca de motivos para a tristeza dos seus
versos. Foi infeliz porque a vida porfiou em fazel-o pa­
decer os transes mais dolorosos. A o peso de tanta des­
ventura, podia entregar-se á nota melancólica, mas a vi­
bração dos seus nei^vos era muito viva e o seu orgulho
não consentia o desalento. Laurindo tinha ansia de de­
sabafos, e os motivos de tristezas estavam de tal modo na
essencia do seu destino, que preferiu outra fórma de eva­
são: a satyra. Cultivou-a como pouccs. Soube rir e fa­
zer rir. No intimo, o desconsolo duma existência pre-
161
caria e a consciência da própria inferioridade e humilha­
da condição, minavam-o fundamente. Quando quiz, fe ­
riu a corda do mais sentido lyrismo. O desmazelo da
sua figura escondia as ansias do seu espirito atribulado.
Casimiro José Marques de Abi*eu, nascido na Barra
de S. João, Estado do Rio de Janeii*o, em 1837, foi outra
notável contribuição dos poetas românticos. Toda a poe­
sia de Casimii’o de Abreu é placida e dolente. Não ru-
gem, nos seus versos, imprecações violentas. Tudo é
suavidade e hamonia.
Nas suas rimas ha a doçura do exilado nostálgico.
A saudade ti-aduz-se em vereos felizes. Toda a obra di­
rige-se em linha recta ao coração popular, porque os mo­
tivos que 0 inspiraram não são singulares e extraordi­
nários, mas simples e vulgares. Elle soube, entretanto,
dar a esses motivos uma graça sem par, expressal-os com
muito talento e riqueza emotiva. A sua poesia é, antes
do mais, filha da pura sensibilidade, affectiva toda ella.
A natureza lhe merece poucos traços. O movimento
humano, os anseios coHectivos, não encontrai’am éco no
seu estro; mas as pequenas dôres, os soffrimentos que
atormentam a todos, o desconsolo, a saudade, o tédio da
existência, fizeram-no produzir alguns versos que só exigi­
am, para serem comprehendidos, sensibilidade. Ninguém es­
teve mais longe da amargura dilacerante, da raiva impo­
tente, da revolta desordenada. A sua tristeza, que era
a de todos os poetas do tempo, não se desviou para a re­
beldia e a mordacidade. A melancolia da sua vida de in-
comprehendido não o arrastou para os recursos extremos.
Elle recorda, com a simplicidade da emoção verdadeira,
a liberdade dos seus primeiros annos, a terra querida, es­
pectáculo furioso do oceano:

Dá-me os sitios gentis onde eu brincava.


Lá na quadra infantil.
Dá que eu veja uma vez o céo da patria,
O céo do meu Brasil.
162
Minha campa será entre as mangueiras»
Banhada ao luar,
Eu contente dormirei tranquillo
A ’ sombra do meu lar!

Nas estrophes dos “ Meus oito annos” ha a mesma


nota lyrica, o mesmo sentimento, a uncção quasi religio­
sa da saudade sem amargor, saudade pura e limpida,
cheia do conforto da renuncia e da conformação:

Oh! dias de minha infancia!


Oh! meu céo de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das magoas de agora,
Eu tinha nessas delicias
De minha mãe as caricias
E beijos de minha irmã!

Outro fluminense, filho de Rio Claro, vindo ao mun­


do em 1841 e, como os outros, infeliz, Luiz Nicolau Fa­
gundes Varella, teve o pincel mais colorido e mais vivo
do que todos esses lyricos. Os seus painéis da natureza
têm poesia e riqueza magica de inspiração. Poucos dos
nossos poetas de todos os tempos souberam, como elle,
dar um tão grandioso tom aos quadros natm^aes. Varella
não tem sido bem situado, nem mereceu dos nossos crí­
ticos a attenção a que fez ju ’s, porque foi uma individua­
lidade singular, com uma inspiração por vezes estonteante.
Seus vei’sos derivam de uma sensibilidade especial, apta
a ti-ansfoiTTiar as emoções, a soffrel-as e tomal-as, atra-
vez do verso, não miseros gemidos, mas arroubadas impre-
cações da dor humana. Desventurado da sorte que lhe ti­
rou mulher e filho, Varella estrega-se a pungentes re­
cordações e á aspera rebeldia com que procura enfrentar
o destino. As suas pinturas da natureza são das melho­
res que possuimos. Varella sabia dar-lhe o colorido ri­
sonho do sol e a vibração da vida. Não são quadros
mortos, mas quadros cheios de movimento e luz:
163
As trepadeiras curvam-se á janella,
Gemem no tecto os pombos amorosos,
Suspenso á porta, na prisão gorgeia
O sabiá das serras.
Tudo isso eIJa adorava, e ella não vive!
E ella passou ligeira como a nevoa
Que o vento da manhã varre do outeiro,
E dissipa nos ares!
Tudo isto ella adorava! Ao sol poente.
Leda e risonha, coroada a fronte
De rubras maravilhas, leve, airosa.
Vinha regar as flores;
E em meio, erguida a barra do vestido.
Saltava como a corça, ora amparando
A haste pendida de viçosa dhalia.
Outras vezes solicita
Bravias plantas arrancando em torao
Dos pequenos craveiros, ou tranquilla
Contemplando os botões que se entreabriam
A ’ frescura da tarde.

A graça como surge e passa, muito de leve, no qua­


dro fresco e colorido do jardim, uma figura de mulher, a
inconformação com a sua perda, como si a natureza ti­
vesse de choral-a e irmanar-se ao poeta na dor, guardam
a tem a meiguice e o carinho profundo que só os verda­
deiros poetas sabem interpretar. N o “ Cântico do Cal­
vário” soluçam os accentos da fesperança acabrunhadora:

Ouço 0 tanger monotono dos sinos,


E cada vibração conter parece
As illusões que murcham-se comtigo!

Os seus versos brancos são dos mais bellos que a


lingua conhece. Nelles, como que a rima se substitue
pelas ricas modulações do idioma. O recurso phonico e
0 arrojo da inspiração dispensam os artificios da própria
métrica.
164
I Fagundes Varella, na infindável galeria dos nossos
' poetas, não póde deixar de figurar entre os primeiros.
Nos seus vei'sos predominam as notas communs da
poesia do tempo, tristeza e desconsolo; tratou-as, entre­
tanto, duma fo m a nova, pondo nos seus lamentos força
e vibração; nos desesperos, rebeldia e impulsos bravios,
Ernquanto Alvares de Azevedo permanece fiel ao byronis-
mo, Casimiro repassa os seus versos de ternura simples,
l^aurindo provoca o riso com o seu talento satyrico, Va­
rella tranfugura-se na dor que o devora. Todos se ir­
manam, porem, pelo traço commum: o lyrismo que nal-
guns transparece mais nitido, em outros como nota que
reponta de quando em quando para não destoar da mu­
sica suavíssima do tempo.
CAPITU LO X V II

Esci'a,vidão — Seu papel na formação da


sociedade brasileira — Libertação dos escra­
vos — Seus motivos e suas razões — Marcha
da idéa abolicionista — Os seus defensores
— Castro Alves e a poesia dos escravos.

O trafico africano assignala o apogeu entre os meia-


dos do século X V III e os meiados do século XIX , época
em que mais escravos entraram no Brasil. Marcava essa
importação dos fardos humanos o desenvolvimento da la­
voura, ao Norte e ao Sul; ao Norte, até os fins do século
X V IIl, ao Sul, a partir dessa época. A população escra­
va dominava, em certas regiões; era mais numerosa, até
mesmo em cidades impoi-tantes como Villa Rica, ao tem­
po da mineração. Nem todas as actividades brasileiras
utilizavam o ti^abalho escravo. A s fazendas de gado do
Nordeste, de Minas Geraes e do Interior mais bravio, qua-
si não possuiam escravos. Seria difficil fiscalisal-os e
dominal-os. A gente que trabalhava no gado devia ser li­
vre, tinha de ser livre. Precisava movimentai*-se, trans­
portar dinheiro, merecer confiança, viver, largo tempo
longe das vistas do patrão. Só mesmo em casos excepcio-
naes podiam ser escravos. O engenho e a fazenda de
lavoura, entretanto, repousavam sobre o negro, sendo im­
possível dispensal-os. O braço escravo era, pois o alicerce
da lavoura bí'asileira. E a lavoura era a base da riqueza
do Brasil. Essa riqueza, no século XIX , finnara tres eta­
pas, tres deslocamentos no território: o engenho com a
canna de assucar dando predomínio economico ás regiões
do Norte, onde se concentravam os fócos mais importan­
166
tes da população colonial, de cujos grandes centros irra­
diava a incipiente cultura que possuiamos; a mineração,
com 0 surto economico das Minas Geraes e das regiões
próximas, transferindo para o centro a riqueza do paiz e
constituindo ahi, os novos fócos da população, de que re­
sulta o Rio de Janeiro converter-se em capital e núcleo
mais importante do paiz; e quasi sem transição entre as
actividades mineradoras e o desenvolvimento da lavoura
de café no estado do Rio de Janeiro e valle do Parahyba,
consolida-se o primado economico da região centro-Sul.
As tres etapas fôram alicerçadas no elemento servil. 0
engenho a mina e o cafezal apoiam-se necessariamente na
escravidão.
Ora, sendo a escravidão a base da riqueza, era natu­
ral, era logico que influisse poderosamente, fundamente,
na physionomia da organisação social e da organisação do­
mestica do tempo, facto tanto mais real quanto o negro,
não limitando sua influencia ás instituições, levou-a a to­
dos 03 domínios quer ás manifestações ethicas, quer ás
manisfestações estheticas da sociedade brasileira. Elle
deu ao temperamento do nosso povo a doçura sentimental
que se tomou logo um dos traços mais característicos da
nossa gente. Transfundiu na nossa religião o intimismo, o
tom familiar, a benignidade que lhe supprime o caracter
aggressivo e punitivo que possuiu em outras terras. Of-
fertou ao espirito da ten-a o cabedal de crenças e supersti­
ções que trouxe da África. Influiu na dansa e nas can­
ções. O phenomeno mais interessante do elemento afri­
cano no Brasil, foi, enti^etanto, a fó m a i'adical como se
infiltrou na alma brasileira. Argamassa-se com a popu­
lação que aqui encontrou. Solidarisa-se na lucta contra
as vicissitudes da terra. Entra definitivamente na com­
posição da raça e contribue para a mudança dos costumes.
A questão racial, ha poucos annos ainda circumscri-
pta nos dominios duma especulação falsa, alicerçada em
preconceitos duma vulgaridade desconcertante, encontra
agora o seu rumo e é conduzida por sendas novas e claras.
A questão da pureza de sangue, assumpto romanesco e
novellesco já muitissimo explorado, attrahiu alguns dos
167
nossos pesquizadores mais lúcidos. Revivem-im hoje os ,
Í falsos prophetas. Falar em aryanismo no Brasil não é ■
apenas pemosticismo de mulatos mas uma tolice que, não '
fazendo mal a ninguém, apenas diverte. . .
' 0 problema do elemento servil só despertou a atten-
ção dos nossos legisladores quando surgiram os primeiros
apostolos da Abolição. Antes, não se fez siquer o estudo
consciencioso da collocação desse elemento novo e do modo
como elle viria a influir na physionomia social e politica
do paiz.
A Abolição não surgiu, entretanto, como uma planta
que reponta da terra expontaneamente. Nasceu de for­
ças obscuras, que se desenvolviam no sub-consciente da
nacionalidade e pi’omanavam de causas tangiveis, envol­
tas embora numa nevoa de sentimentalidade e idealismo
que tem nimbado em todos os tempos os grandes movi­
mentos da opinião, impulsos traduzidos para a compre-
hensão vulgar em luna linguagem também vulgar, sinão
simplista.
Nós, brasileiros, a respeito da escravidão, tinhamos
de olhar para dois exemplos: os Estados Unidos, que. na
região sul haviam alicerçado a sua grandeza no braço
escravo, e a Inglaterra, que apoiara grande parte da sua
colonisação no trafico e foi, em todos os tempos, a mais
deshumana no tratamento ao negro escravisado. O adven­
to da machina a vapor e do consequente industrialismo
que deu uma physionomia nova á Europa, mudou também,
com 0 passar do tempo, a ordem de cousas na America do
Norte. Os Estados do Norte soffreram, desde logo, um
forte impulso industrial, emquanto os do Sul ficavam en­
tregues á lavoura. O padrão de vida nos Estados que
enveredaram para o industrialismo não tardou a differen-
ciar-se do padrão vigente nos que permaneciam amaiTa-
dos ás velhas foimas de producção. Surgiu o trabalha­
dor assalariado, repontando, nesse ambiente de liberdade
no dispôr da capacidade de trabalho, a idéa de emancipa­
ção.
A escravidão não foi um phenomeno americano neon
surgiu de improviso, com a necessidade premente de co-
168
ionisar a terra amei-icana. Sempre houve liomens escra-
visados por outros homens. E isso pareceu, em todos os
tempos, moral e justo. Nem podia deixar de ser, pois
correspondia a uma necessidade, e a necessidade não co­
nhece normas moraes, ao contrario subordina a moral ás
suas conveniências. De passagem, accentuemos que os
pontos de vista da moral ou dos sentimentos não encon­
tram logar nesta S3mthese, embora lhes conheçamos o
interesse e a importância. Comquanto marquem mui­
to bem a physionomia das sociedades, carecem de impor­
tância na explicação do desenvolvimento das sociedades,
pois são apenas emanações dos estados diversos por que
passa a producção.
Emquanto a escravidão servia aos interesses da pro­
ducção e do commercio do tempo, foi considerada perfei-
tamente compativel com os bons costumes e acceita por
todas as nações vanguardeii-as do mundo. Mas a muta­
ção social, que acompanha e varia segundo os processos
da producção, tom a moraes as cousas immoraes e trans­
fere para o terreno do absurdo aquillo que parecia logico
e viável.
A situação americana, aggravada pelo evidente dese-
quilibrio entre as duas partes da nação, o industrialis-
mo dos Estados do Norte e o agrarismo dos Estados do
Sul, caminhava para a solução guerreira, de que os Esta­
dos Unidos tiraram a sua integração. A Inglaterra, por
causas muito claras e cujo estudo não nos cabe fazer aqui,
não sente mais a necessidade de lançar mão do negro
africano.
Nessas condições viu-se o Brasil sozinho no terreno
da escravatura. A evolução dos paizes mais adeantados,
que lançavam mão do braço escravo e o achavam peiíeita-
mente moral, fôra mais apressada do que a nossa e, em
um dado momento, envergonhamo-nos de ser o ultimo re-
ducto do esclavagismo. E não apenas o manifesto sentimen­
to de inferioridade, a esse respeito, no concerto das na­
ções, nos mortificava; mais do que isso, molcstava-nos
a repressão dos inglezes, tomados desse singular purita-
nismo nascido das exigências da concorrência vital. A In­
169
glaterra não queria o trafico. Navios inglezes policiavaim '
os mares. A Inglateri^a victoriana, consolidado o domi-
nio dos oceanos, integrada no seu Tmperio ultramarino,
a Inglaterra cheia de bom senso e confomismo, atravessa­
va 0 caminho dos que queriam desenvolver as suas lavou­
ras. A Gran-Bi^etanha achava-se no estado das grandes
sei'pentes da selva africana e americana que, saciada a
sua fome nirvanica, ficavam como entorpecidas e inúteis.
A idéa abolicionista, de origem tão pouco nobre, teria
caminhado sem tropeços si fosse dado ao brasileiro o sen­
tido pragmático das cousas, a visão objectiva dos aconte­
cimentos. Mas era justamente 0 contrario. Bernardo Pe­
reira de Vasconcellos, imaginação pouco fértil mas intel-
ligencia comprehensiva, estudando todos os aspectos de
qualquer questão que lhe offereciam, já havia dito, com
a franqueza característica de suas affirmações, ao tempo
da pi-imeira Constituinte, a sabia e convicta Constituinte
Imperial, que a Á frica civilisava o Brasil. Elle queria
indicar, no apparente absurdo do seu pensamento, que o
braço escravo fôra o alicerce do nosso desenvolvimento
e seria um erro tremendo dar ouvidos a vozes desauto-
risadas que já se pronunciavam, sentimentalmente, pela
sua brusca solução. Esta só podia vir inspirada pela sa­
bedoria do tempo.
Também não se revestiu a escravidão, no Brasil, dos
traços de brutalidade que teve em outras partes do mun­
do. O trafico em si era mostruoso, mas, cessada a tra­
vessia dos mares, uma vez em nossa terra, comprado e des­
tinado á lavoura, o martyrio estava longe de ser o dos seus
iimãos em outros paizes. Aqui, o elemento seimil teve
um papel inteiramente diveiso daquelle que desempenhou
em outras regiões. Longe de exilar-se na teiTa, o escra­
vo teve a opportunidade de fundir-se na massa da popu­
lação.
Emquanto noutras nações se via confinado no seu
labor, como animal estranho ao convivio humano, aqui
vinha tomar posse, cooperar na labuta, ser um pouco do
Brasil. E’ claro que houve casos de senhores barbaros,
dominadores cruéis. Mas a evolução dos nossos costu­
170
mes aponta o caminho que o negro escravisado vem per­
correndo: funde-se, offerta-nos as suas qualidades mes­
tras, adapta-se ao meio, vincula-se á terra, ajuda a de-
fendel-a, a lavral-a e exploral-a, arranca o ouro das suas
entranhas, transforma o assucar em fonte estável de ri­
queza a acompanha a migração vertiginosa do café.
Mas a sentimentalidade doentia da nossa gente não
deixa de encontrar exaggeros capazes de a satisfazerem, na
luta pela Abolição.
A Abolição é o primeiro signal da ruina das institui­
ções imperiaes. E ’ o primeiro vestigio da d esa g reg a ^
que se approxima. E ’ a primeira pagina das que se iam
succeder, numa sequencia rapida, culminando com a fede­
ração, de que a Republica não foi mais do que o disfarce
vulgar. O Norte do paiz passou por um momento de pe­
núria. O sustento dos escravos começa e pesar na balan-
pa economica. E ’ uma massa considerável a alimentar,
a vestir, a abrigar. O senhor de escravos, como proprietá­
rio da machina de produzir, tinha de trazel-a sempre em
condições de trabalhar. E ’ mister medical-o, assistil-o,
alimental-o, vestil-o. Ora a massa de escravos era enor­
me no Norte e chega o momento eoi que isso representa
um problema de solução difficil c premente opportuni-
dade. 0 exercito de escravos, cujo trabalho não é pago
mas cuja existência tem de ser assegurada pelo proprie­
tário, pesa na balança. E o Norte começou a sentir o erro
tremendo que foi o deslocamento dessa avalanche negra
sem critério de collocaçâo e escolha. Inclina-se para a
Abolição. Que era a Abolição, no caso? Apenas isto: dei­
xar o negro entregue a si mesmo. Pagar-lhe um salario
Ínfimo, um salario de “ coolie", e, com esse salario, que
elle attendesse á sua subsistência, cobrisse a sua nudez e
se medicasse. A Abolição, para certas regiões do Norte,
representava, emfim, uima solução barbara para um pro­
blema premente, sem o que a producção soffreria um col-
lapso.
Mas ao Sul, na região fluminense, os cafezaes expan­
diam-se, carreando ouro para o Brasil, fazendo a nossa ri­
queza. E 0 negro, pois que o café tinha pauta mais al-
171
xa, servia para a lavoura, o preço do seu sustento ainda
estava de accordo com o que elle produzia, porque a cul­
tura caféeira dava para pagar tudo. Para esses proprie­
tários, libertar o escravo era matar a fonte da sua rique­
za e estancar a producção.
Não se trata, porem, apenas de libertar. E ’ preciso
pensar também em amparar uma população inteira que,
pelo paiz todo, se lança ao desamparo. Lei feita pelos
brancos, esquecia os serviços do negro. Dava-lhe a liber­
dade e arrancava-lhe o p ã o ... Como noutras occasiões, os
mythos libertários decorriam de condições materiaes que
se não quiz yêr, que os dirigentes espancaram do pensa­
mento como sonhos máos, deixando que o tempo e a terra
resolvessem por si um dos mais horrorosos e menos estu­
dados problemas do Brasil: o estado em que ficou a mas­
sa enorme de negros libertos pelo decreto de 13 de Maio.
Começam a entrar os primeiros immigrantes. Tra­
zem recursos em dinheiro para os primeiros dias na terra
promettida. Ser-lhes-á dada collocação. O trabalho lhes
está garantido. Não vêem aventurar. Quando chega, ha
gente do governo que os recebe e os encaminha. Distri­
buídos, têm um pedaço de terra para lavrar, alguma cou-
sa de seu. E têm direitos.
Quando soltaram o negro da “algema” da escravidão,
quem pensou nelle? Quem cuidou de amparal-o, de garan­
tir-lhe o ti'abalho, de assegurar-lhe a subsistência? A len­
ta assimilação dessa massa inumensa, liberta duma hora
para outra, sem preparo sufficiente, sem medida preven­
tiva, sem um gesto de alcance social, foi dos problemas
mais difficeis para o organismo da sociedade brasileira.
E começou a surgir a lenda, forjada pelo branco vadio e
inconsciente, de que o negro, com a abolição, não queria
mais trabalhar, cahira na ociosidade. . .
Levada para as multidões, erigida em thema eleitoral,
carreada para o parlamento, acceita e recusada pelos re­
publicanos, recusada e acceita pelos partidários da fede­
ração, a idéa abolicionista encontrara tremendo éco na
alma brasileira. Ella se dirigia ao que ha de mais sensí­
vel nessa ahna apta a todas as impressões e inclinada a
172
todas as paixões e alimenta-se da caridade humana e da
bondade singela que fôram, em todos os tempos, e sem alar-
de, característica mais estimavel da gente brasileira.
Deputados levaram-na para o legislativo. Joaquim
Nabuco, em correspondência com sociedades inglezas de
abolicionistas, ergue a sua voz eloquente em favor dos des­
favorecidos. Os ministérios promettiam. O governo es­
tudava a questão. Os debates se prolongavam, apaixona­
dos e sublimes.
A influencia duma questão de tal monta devia affe-
ctar a sensibilidade dos nossos poetas. A o fragor da
tempestade surgiu uma vez altisonora que dominou o
rumor das discussões em que o espirito nacional se com-
prazia Essa voz é a de Antonio de Castro Alves,
bahiano de Muiútiba, nascido em 1847. Castro Al­
ves foi 0 genio mais puro da poesia brasileira. Tudo
nelle é impeto vertiginoso. Suas idéas refulgem como
clarões. Ha lagrimas nos seus versos, provocadas pela
dor que se não confom a e pela impotência que se enrai­
vece, lagrimas que rebentam no tumulto das imprecações:

Companheiro da noite mal donnida,


Que a mocidade véla sonhadora,
Primeira folha d’ai-vore da vida,
Estrella que annuncia a luz á aurora!
Da haipa do meu amor nota perdida.
Orvalho que do seio se evapora,
E ’ tempo de p a rtir... vôa, oneu canto,
Que tantas vezes orvalhei de pranto!

Os seus gritos convulsos em favor do negro escravi-


sado déram a nota do grandioso a uma questão que se ar­
rastava na oratoria algo convencional do parlamento. Elle
a alçou ao nivel das campanhas libertarias. Fêl-a uma
iuta de impulsos bravios. Clamou contra os dominado­
res duma situação de deliquescencia. Pintou, com as co­
res mais negras, o trafico. E, como tinha um soberbo
talento de colorista, assignalou o momento mais impressio­
nante da poesia bi^asileira, um dos raros instantes em que
173
ella, deixando o lyrismo individualista que a domina quasi
Ioda, como que se sente arrebatada por uma grande cau­
sa e não perde a intensidade hamoniosa dos seus ímpe­
tos e não desce ao prosaismo. Nada é vulgar em Castro
Alves. Nas suas evoluções ha rugidos de leao e tristezas
presagas. Só o genio teria o condão de manter-se como
elle se manteve, penmanentemente, em tão elevadas alti­
tudes, sem descahir um só instante do grandioso e do su­
blime. Demais, Castro Alves não era penas uma alma
sensivel e um poeta prodigioso; mais do que isso, era uma
.soberba crença que, aos vinte annos, incendiava o paiz com
a cliamtma dos seus versos. Era um espectáculo como a
intelligencia brasileira nunca havia assistido e não assis­
tiría jamais. Excepção prodigiosa, elle alliava á grandio­
sidade da sua poesia a grandeza da sua vida, pondo os seus
Ímpetos desordenados, a sua febre altruísta, a sua gene­
rosa paixão a serviço da raça perdida e despresada. Sen­
do genial como creador de imagens, fez da sua existência
um manancial de acções nobres, orientando-se no sentido
do bello e do grandioso, o que não fizera nenhm dos nos­
sos poetas encerrados no mundo das harmonias, sem con­
tacto com 0 mundo material. Deu cores violentas a qua­
dros mortos. Transfundiu energia e titanismo a cousas
pequenas, que não ficaram amesquinhadas no contraste
com as i'oupagens com que elle as vestiu. Fez duma mí­
sera actriz de segunda ordem um motivo de inspiração.
Cantou-a em alguns dos melhores versos lyricos que se
escreveram em portuguez.
Mas 0 drama dos navios negreiros, a tragédia duma
raça inteira jungida ao tronco, seria o motivo principal,
a razão do seu estoo fulminante e épico:

Era um sonho dantesco! . . . o tombadilho,


Que das luzei-nas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar!...
Tinir de ferros, estalar de açoute. . .
Legiões de homens negros como a noute.
Horrendos a dansar...
174
Elle podería, sem ridiculo e sem desvario, alçar-se a
evocar os deuses, nos seus surtos condoreiros. Sua voz,
a mais audaciosa de quantas se ergueram para clamar, num
paiz de timidos submissos, não temia as dilacerantes im-
precações:

Senhor Deus dos desgraçados!


Dizei-me vós. Senhor Deus,
Se é mentira. . . se é verdade
Tanto horror perante os céos?! . . .
O’ mar, porque não apagas
Com a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?
Astros! noite! tempestades!
Rolai das immensidades!
Varrei os mares, t u fã o !...

A invocação das profundas e incertas forças da natu­


reza não fica mal na sua cólera ululante. Ao panorama
da patria, coberto pelo manto negro da escravidão. Castro
Alves dirige as suas estrophes num assomo de indignação
sagrada:

Existe um povo que a bandeira empresta


P ’ra cobrir tanta infamia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacchante f r i a ! . ..
Meus Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que imprudente na gávea tripudia?
Silencio, Musa. . . chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! . . .

f Auri-verde pendão da minha ten a, /


Que a brisa do Brasil beija e balança.
Estandarte que á luz do sol enceira
As promessas divinas da esperança. . .
Tu que da liberdade após a guerra
Foste hasteado dos heroes na lança.
Antes te houvessem roto na bataUia, \
Que servires a um povo de mortalha!. .V
175
Quem sabia apanhar, desse modo, os instantes épi­
cos do drama dos negros, podia suggerir os quadros mais
movimentados da natureza, a cachoeira, o despenhar das
aguas, a tempestade, a queimada, a revolta dos elementos
desencadeados:
Mas súbito da noite no arrepio
Um mugido soturno rompe as ti^evas...
Titubeantes — no alveo do rio —
Tremem as lapas dos titães coevas! . . .
Que grito é este sepulchral, bravio,
Que espanta as sombras ululantes, sevas ? ...
E’ 0 brado atroador da catadupa,
Do penhasco batendo na garu p a !...
Ou, então:
A queimada! A queimada é uma fornalha!
A irara pula; o cascavel chocalha...
Raiva, espuma o tapir!
A corça e o tigre — naufragos do medo —
E ás vezes sobre o cume de um rochedo
Vão trêmulos se unir!
Castro Alves ficou no coração da nossa gente pela
generosa eloquência da sua poesia. Adoptando o verso
hugoano, condor da poesia, elle encontrou lun motivo que
daria á sua obra uma feição nitidamente social, fazendo-a
vigorosa interprete de toda uma raça, fimdindo nos seus
rythmos o pranto do escravo açoitado, numa exhortação
heróica á liberdade, verbo altissimo de esperança, de fé,
de amor, evangelho dum povo triste, poema duma angus­
tia collectiva. Desde os bancos acadêmicos, viu o seu no­
me aureolado de uma admiração fanatica; no tempo em
que as academias do paiz eram focos de intelligencia, de
rebeldia e renovação, forjando caracteres capazes de im­
primir á vida do paiz um rythmo novo ao serviço dum alto
idealismo. Moito em plena juventude. Castro Alves teve
a acompanhal-o, no seu ultimo leito, as bençans duma raça
que a sua eloquência ajudaria a redimir, e a gratidão dum
lX)vo a que a sua poesia déra a idéa assombrosa do genlo.
CAPITULO X V III

Surto scientifico europeu — Darwin e


o transformismo — Influencia das novas
ideas no Brasil — Tobias BaiTeto.

O prodigioso surto industrial do inicio do século XIX,


na Europa, é logo seguido por uma grande transforma­
ção nos doaninios scientificos. Nem poderia a natural
mudança dos meios da producção e o advento da éra in-
dustrialista, deixar de influir nos padi'ões ethicos do tem­
po. Não decorrem muitos annos entre o apparecimento
da machina a vapor de James Watt, os trabalhos de Volta
e Benjamim Franklin sobre a electricidade, e a renovação
dos moldes segundo os quaes se processava o estudo das
grandes questões que sempre agitaram a humanidade. A
subversão da sociedade, marcada por uma transformação
muito rapida na sua escala de valores, a origem e o appa­
recimento das grandes fortunas, a consolidação do Impé­
rio colonial inglez e o seu poderio apoiado no industrialis-
mo de que se fez o centro principal, — abririam aos cul­
tores da sciencia novos horizontes de pesquiza. A signi­
ficação histórica das descobertas, em todos os campos da
sciencia, poz a civilisação na contingência de renovar os
seus valores humanos. O caracter pacifico — industrial
para o qual tende a civilisação modeima advem, natural­
mente, da maior capacidade que ella possúe para o apro­
veitamento das forças naturaes, capacidade que o surto
scientifico lhe proporcionou. Ora, mudando assim a cau­
sa dos acontecimentos, mudando as condições de existên­
cia, mudando os processos de relação da sociedade, — era
impossível que os valores estheticos e ethicos permaneces­
177
sem á margem dessa traTisfoimiação. Isso só seria possí­
vel mim organismo morto ou estratificado, e as socieda­
des humanas se caracterisam pelo seu eterno dynamismo.
As velhas idéas, os tabús tumulares que dominavam
a sciencia, impostas pelo dogmatismo e a férula religiosa,
iam partir-se como vasos que já não podem conte)’ as plan­
tas, não sem luta, pois a inércia não é apenas dos domínios
da matéria, mas também, e com campo mais vasto, do sa­
ber liumano.
Essa renovação não entraria em Portugal e no Bra­
sil, com facilidade. Encontraria nas aduanas tal barrei­
ra de obscurantismo que as tomaria impraticáveis e igno­
radas do grande publico, filtradas apenas para os cére­
bros aptos á evolução. Não seria trabalho facil, effecti-
vamente, atravessar a barreira de preconceitos e aba­
lar 0 alicerce granitico das instituições scientificas preten­
samente fonnalisticas, tarefa sobre-humana a que mette-
ram corajosamente hombros algumas mentalidadés aper­
cebidas da mutação que se processava em todos os domí­
nios da actividade humana. Si a receptividade aos novos
padrões, característica dos moços, é facto raro nos nossos
dias não era menos excepcional na época em que se pro­
cessava a transfom ação de que vimos tratando . '
€omprehende-se que a onda das idéas novas, antes de
atravessar o oceano, tocasse as plagas de Portugal.
Foi o que aconteceu e vamos assistir a um espectáculo dos
mais característicos sobre o advento das idéas novas, con­
tra as quaes reagem os organismos envelhecidos. Eça de
Queiroz, que foi no seu tempo de estudante victima da
malevolência e da cegueira dum ensino cachetico e duma
organisação universitária envelliecida e cheia de tabús
inexpugnáveis, escreve, mais tarde, que Portugal do tem­
po da transfoi^mação nos domínios scientificos. era um.
“ti-iste paiz da pedrada, do apito, da cutilada e do grito” .
Eça tivera a desventura de cahir no meio universitário de
Coimbra ao tempo dos Neiva e dos Britos, dos Jardins e
dos Bernardos. Que lhe poderia acontecer senão vêr-se
aperreado entre a idiotice do compêndio e a imbecilidade
da Sebenta? Como poderia penetrar esse ambiente cerca-
178

do de muralhas massiças o tufão das idéias novas ? E que


idéias seriam essas?
Eram as contribuições de Proudhon, de Michelet, de
Quinet. Erajn as pesquizas de Tyndal. Era a philoso-
phia de Hegel. Era a sociologia de Comte. Era o trans-
form isno de Darwin. Ante a arremettida dos novos câ­
nones, 0 meio coimbrão confinava-se entre a estupidez da
sabbatina e a ignorância abysmal dos velhos mestres, üs
meios universitários sempre fôram barricadas onde as
novas idéas encontram suas intelligencias maduras para
comprehendel-as, ao menos enthusiasmos juvenis para ac-
ceital-as. Em Coimbra, só encontraram a resistência da
inércia, uma inércia cheia de casmurrice e embolorada no
conformismo. E, si em Coimbra era assim, que dizer
do resto do paiz ? Eça escreve mais tarde, passada a tem­
pestade da incomprehensão, de que lhe ficara aquella iro­
nia atroz: “ E ’ necessário dar a mãe a essas pobres idéas
qua andam junto da fronteira sem poderem passar,
sem se atreverem a isso, atemorisadas pelo aspecto bru­
tal dos nossos concidadãos, receosas de serem esmaga­
das, apedrejadas e levadas ridiculamente para estação mu­
nicipal”.
A escola naturalista, de que elle seria um dos mestres,
fez na literatura o mesmo que a analyse experimental nos
domínios das sciencias, escorraçaria o dramalhão,
0 romantismo, emperrado num irritante e monotono
cantochão choramingas, imbuido dum lyrismo sem funda­
mento e eivado de tolice. O methodo experimentad, pré-
gado do alto de algumas cathedras revolucionarias, ia trans­
formar o meio, varrer os perconceitos theologicos e as teias
de ararJia duma desordenada metaphysica, limpando o ca­
minho da Sociologia, imprimindo-lhe caracter positivo e
scientifico mais consentaneo com a pesquiza social. Isso não
se faina, entretanto, sem a luta que se prolongou atravez dos
annos e fiimou cada uma das suas etapas vencendo o acir­
ramento funesto da ignorância erigida em dogma, a oppôr-
se á caudal que se avolumava. Portugal, que vivia
em pleno medievalismo scientifico, viu rasgarem-se novos
horizontes quando, vencidas as difficuldades creadas pela
179
resistência ignara, surgiram os padi‘ões tomados verda­
des pai-a 0 tempo até que nova transformação ruisse com
elles, na luta peiTJetua para o esclarecimento da razão hu­
mana.
Essa batalha, que precede o advento do naturalis­
mo no Brasil, foi aqui trávada quasi que por um só ho­
mem. Uma cabeça onde o talento é uma convulsão per­
manente, dotada da volubilidade dos mestiços, incapaz de
petrificar-se no dogmatismo ou congelar uma opinião, re­
presentou na terra brasileira o papel de epigono dos cano-
3ies revolucionários. Esse homem foi Tobias Barreto.
Tobias Barreto de Menezes nasceu na Villa de Cam­
pos, estado dé'Sergipe, aos sete de Junho de 1839. Fez os
seus primeiros estudos com um professor particular, na
sua cidade natal. Este primeiro mestre foi um dos seus
amigos e exerceu sobre a formação da sua mentalidade al­
guma influencia. De Campos, passou á Estancia, onde
cursa as aulas de latim dum padre local e estuda musica.
Transfere-se para Lagarto, continuando os estudos lati­
nos. Aos dezeseis annos, emtrega-se ao ensino das pri­
meiras letras, dedicando-se á carreira do magistério que
lhe seria o amparo em quasi toda a atribulada existência.
Aos dezoito annos, após concurso brilhante, consegue ser
provido numa cadeira de latim na villa de Itabayana. No
correr do anno de 1861 Tobias retira-se para a Bahia on­
de convive com Maciel Monteiro, seu parente, e cursa di­
versas aulas de preparatórios. Era sua intenção fazer
0 curso theologico e receber ordens sacras, talvez atemo-
risado pela existência que lhe fôra, até ahi, madrasta e,
apezar de alguns successos, ainda o crivaria de revezes
cruéis. Tobias passou apenas um dia e uma noite no se­
minário, pois escandalisara com uma modinha sergipana,
cantada ao violão, o ambiente solemne do collegio. Sem
recursos, desamparado, é o moço estudante obrigado a
retornar á terra natal, depois de ter-se arrimado a alguns
conhecidos da Bahia. Fôra um pouco de tudo, na sua
airsia de encontrar recursos: musico, cantor, compositor,
iroeta, revisor, paginador, jonalista, professor.
Em 1864 matricula-se na Faculdade de Direito do
180
Recife. Fom ado, abre ahi um collegio. Era a sua eter­
na ansia de buscar no magistério, para o qual o arrasta­
va decidida vocação, os meios de subsistência. Não se
sabe porque foi residir em Escada, onde passa a viver da
advocacia. Apóz quasi dez annos de vida no Interior, aper­
tado pelos pai-e-ites do sogro, com o qual abrira luta, vol­
ta de novo a Recife. Nos começos de 1882 presta con­
curso para lente da Faculdade de Direito. O que foi esse
concurso não é preciso dizel-o. E ’ a primeira etapa da
sua luta aspei-a e sem tréguas para a renovação da men­
talidade brasileira. Quando não tivesse sido um grande
poeta, quando tivéssemos de fazer reservas á instabilidade
das suas opiniões, a Tobias não se nega uma situação bem
definida na evolução do pensamento brasileiro, como o
renovador, o revolucionador da nossa mentalidade .iá es-
terilisando-se num romantismo decadente. A sua palavra,
vibrante e demolidora, marca o momento de subversão na
ordem imperante, ansia de desbravamento para a assi­
milação daquillo que, nos meios cultos da sociedade eum-
péa, eram já verdades adquiridas, sciencia fundamenta­
da, e que a inércia brasileira não queria admittir e muito me­
nos acceitar. Mais do que introductor da sciencia germâni­
ca, mais do que cultivador da poesia condoreira, Tobias fir­
ma-se, no scenario brasileiro, como indice de renovação dos
padrões culturaes.
Graça Aranha, no seu livro de Memórias, infelizmente
sem continuação, dá-nos uma pintura viva do que foi o
espectáculo .desse contacto crepitante entre a palavra re­
novadora e a mentalidade estratificada:
“ Abrira-se o concurso para professor substituto da
Faculdade. Foi o concurso de Tobias Barreto. Eu já
havia iniciado os meus estudos na Academia. O que me
ensinaram de philosophia do direito, eu não entendia.
Era superior a'o meu preparo, e professado sem clareza,
sem o fluido da communicação. José Hygino, mestre
spenceriano, nos enjoava e nós não o entendiamos. A
outra matéria era o direito romano, mais comprehensi-
vel, porem que professor calamitoso era o velho e ridiculo
Pinto Junior! O concurso abriu-se como um clarão para
181
os nossos espíritos. A electricidade da esperança nos in- -
flammava. Esperavamos, inconscientes, a coisa nova e
redemptora. Eu sahia do matyrio, da oppressão para a
luz, para a vida, para a alegria. Era dos primeiros a che­
gar ao vasto salão da Faculdade e tomava posição junto
á grade, que separava a Congregação da multidão de es­
tudantes. Immediatamente Tobias Barreto se tomou o
favorito. Para estimular essa predilecção havia o apoio
dos estudantes bahianos ao candidato Freitas, bahiano e
cunhado do lente Seabra. Tobias, mulato desengonçado,
entrava sob o delirio das ovações. Era para elle toda a
admiração da assistência, mesmo a da empemada Con­
gregação. O mulato feio, desgracioso, transformava-se na
arguição e nos debates do concurso. Os seus olhos flam-
mejavam, da sua bocca escancai'ada, roxa, movei, sahia
uma voz maravilhosa, de múltiplos timbres, a sua gesti-
culação transbordante, porem sempre expressiva e com­
pletando o pensamento. O que elle dizia era novo, pro­
fundo, suggestivo. Abria uma nova época na intelligen-
cia brasileira, e recolhíamos a nova semente, sem saber
como ella fructificaria em nossos espíritos, mas seguros
que iwr ella nos transfomaavamos. Esses debates incom­
paráveis eram pontuados pelas continuas ovações que fa ­
zíamos ao grande revelador. Nada continha o nosso en-
thusiasmo. A Congregação humilhada em seu espirito
reaccionario, curvava-se ao ardor da mocidade impetuosa.
Proseguiamos impávidos, certos de que, conduzidos por
Tobias Barreto, estavamos emancipando a mentalidade
brasileira, afundada na theologia, no direito natui'al, em
todos os abysmos do consei^vantismo. Para mim, era
tudo isto um delirio. Era a allucinação de um estado in-
vei’Osimil que eu desejava, adivinhava, mas cuja realisa-
ção me parecia sobrenatural. Tobias Barreto fez a sua
prova de prelecção oral. O orador attingiu para a minha
sensibilidade o auge da eloquência. Quando teimiinou,
recebeu a mais grandiosa manifestação dos estudantes,
a cujo enthusiasmo adheriram os lentes unanimes. Foi
então que, tomado de um impulso irreprimível, saltei a
grade e por entre as acclamações dos estudantes e deante
182
do assombro da Congregação, atirei^me aos braços de To-
bias Barreto, que me acolheu commovido e generoso” .
Esse espectáculo, tão bem descripto por Graça Aranha,
em cujas linhas ha o melhor Graça, aquelle que, quando
abandonava uma technica artificial, sabia escrever claro
e bem — devia marcar e marcou uma época no pensamen­
to brasileiro. Tobias era o renovador. Era a poderosa
influencia que ia canalisar correntes vivificadoras para a
anentalidade do paiz. Havia qualquer cousa de profun­
do e suggestivo na sua attitude. E o enthusiasmo que
provocou não podia ser essa vibração das admirações pes-
soaes, que morre com o tempo e não pôde viver longe
da influencia de quem as provoca. Era a cei^teza, que
essa mocidade .possuia, de que novos caminhos estavam
sendo traçados na eloquência tumultuaria daquelle mu­
lato desengonçado, aos estudos brasileiros. Era a cons­
ciência, por vezes divinatória na mocidade, de que aquellé
momento ia ficar, na evolução da nossa mentalidade, como
uma encruzilhada luminosa, pela affirmação de conceitos
inteiramente novos e vigorosamente pronunciados, em fa­
vor de horizontes desconhecidos e arejados para o espiri­
to brasileiro. Era a comprehensão de que a intelligencia
nacional vencia uma etapa decisiva na sua marcha, ope-
perando-se brusca e nitida mutação fim a d a em valores
positivos e conduzida ix)r um maior realismo na aprecia­
ção das cousas e da relação que as une e associa. Tobias
Barreto, na fulguração do seu concurso, deixava bem cla­
ros esses rumos. E transfigurava-se como o mestie diuna
geração que ia revolucionar o direito, proclamando a ruina
do direito natural, substituindo os mythos theologaes pela
affirmação scientifica, a estatica da sociedade pelo seu
sentido dynamico.
Quaesquer que tenham sido os recuos de Tobias no
curso da sua existência e no decorrer do seu magistério,
deve ser apreciado com indulgência. Pela ponte levadiça
que elle arreou corajosamente, iam passar os renovadores.
Muitos, no Ímpeto da caiTeira, ultrapassariam o mestre,
ironia do destino que faz com que alguns revolucionários
fiquem para traz do movimento que provocam e desenca-
] 83
Ueam, incapazes de acompanhar a marcha dos aconteci­
mentos. A historia está cheia desses exemplos e não nos
.deve contristar que o mestre de Recife tenha recuado
em muitos pontos. A continuidade não foi a virtude mai­
or de Tobias. Elle se conhecia e nunca temeu confessar:
Eu sou um pouco volúvel” .
O alcance da .subversão era profundo. Attingiria
os limites mais amplos, sem se limitar a determinadas m a­
nifestações da actividade mental, antes invadindo todos
os sectores em que havia necessidade de mutação e aber­
tura de novos caminhos. Graça Aranha escrevería, com
muita realidade, que a lição de Tobias Barreto fôra a
“de pensar desassombradamente, a de pensar com auda-
cia, a de pensar por si mesmo, emancipado das autorida­
des e dos canons. Mais adeante: “A sua primacial ac­
ção foi destructiva. Naturalmente. No Brasil ha sem­
pre muito que destruir. Mas ao mesmo tempo que a
sua critica destruía, novas perspectivas surgiam
para a cultura, novas bases para a intelligencia se firma­
vam. Para se avaliar o que foi a acção de Tobias Bar­
reto, basta attender o que eram os estudos do direito an­
tes delle e depois delle. Sahiamos da disciplina de Braz
Florentino, de Ribas, de Justino, pai’a as licções de tantos
mestres emancipados. O Codigo Civil Brasileiro, cons-
trucção de Clovis Bevilacqua, se fiHa á inspiração de To­
bias. A critica se renova por elle. Sylvio Romero, Ara-
ripe e o proprio José Veríssimo são seus discípulos. A
nossa mesquinha philosophia, o que tem de mais intelli-
gente, vem da libertação do grande mestre do pensamen­
to livre” .
Tobias Barreto leccionou, na Faculdade, apenas sete
annos. Mas, nesse curto espaço de tempo, impoz-se ao
mundo dos estudantes. Absorveu a admiração dos que
esperavam delle a aurora de novos caminhos. Foi mes­
tre de philosophia do direito, direito publico, direito cri­
minal, economica política e pratica do processo. Os úl­
timos mêses da sua existência foram amargos. Estava
reduzido, conforme Sylvio Romero, “ ás proporções de pen­
sionista da caridade publica” .
184
Como poeta, Tobias foi um lyrico de bôa agua, um
íiligranista de paixões em que não havia gritos, mas sus­
surros, onde a sm'dina era o toon commum, o diapasão
vulgar. Foi dos condoreiros e a sua voz alçou-se para
cantar movimentos collectivos e ansias nacionaes. Não
attingiu, apezar da sua cultura superior, ao nivel de Cas­
tro Alves. A poesia do cantor dos escravos era filha da
inspiração e da sensibilidade. Castro Alves nascera poe­
ta, nascera grande poeta, seria uma voz unica no paiz.
Mas, embora obscurecido pela figura gigantesca do seu
emulo, Tobias Barreto não foi um poeta destituido de va­
lor, antes muitos dos seus versos possuem vibração e in­
tensidade, não falando na sua composição que era supe­
rior e correcta. Poeta guerreiro, poeta popular, Tobias
foi mais ingênuo e mais vivo nas canções que o povo de­
corou, na simplicidade dos versos que compoz para serem
lidos, para ficarem na memória dos que o ouviam. As­
sim, “ Os Tabaréos” , “Trovadores das Seivas,” etc. O
grande peccado inconsciente, e de que elle não teve culpa,
foi, como poeta, ter apparecido num momento em que o
espaço era pouco para Castro Alves. O erro do destino
foi, — como o de collocar Niterói junto ao Rio de Janeiro,
— provocar o appareçimento desse lyrico suave e ingênuo
na mesma época em 'surgia um dos nossos maiores canto­
res, a voz que mais alto se elevou, a inspiração que se im­
pregnou de todas as dôres da terra, para expandir-se nu­
ma poesia que constituiu o espectáculo supremo da vida
literaria brasileira.
Do Tobias pensador, o grande elogio está no papel
que desempenhou. E ’ pena que alguns criticos da nossa
historia literaria, por incomprehensão ou pressa, tenham
passado ligeiramente sobre o relevo e a importância que
a cultura brasileira toma a partir de Tobias, não pelo vo­
' I lume mas pela indicação de novos rumos.
A sua cultura cra feita de afogadilho e amealhada nos
livros que lhe custavam um saferificio inaudito. Regen­
do um collegio, ainda creança, ganhando a vida com a maior
difficuldade, professor a vida toda, escarnecido por uns,
inferiorisado pela sua pobreza e condição de mestiço, elle

r
185
não foi um desses pensadores cyclicos que abrem trilhas :
longas e exactas; apontou rumos novos, mas não focali-
sou precisamente e definitivamente os grandes problemas.
A sua cultura era fragmentaria e não podia deixar de ser
assim. Assimilava prodigiosamente, com uma facilida­
de de aprehensão que foi a maior das suas qualidades, não
sabia disciplinar o pensamento e construir, com a ma­
téria estudada, convicções próprias. As indecisões são
frenquentes na sua obra onde ha hiatos profundos, des-
continuidades desconcei-tantes. E ’ natural que uma cul­
tura assim apressada e sôfrega, bebida nas fontes ori­
ginarias, embora, mas destituída da analyse que apura
e escolhe, que dirime duvidas e esclarece directrizes, ti­
vesse produzido, na crepitação dos seus clarões inteimit-
tentes, uma serie de contradicções que não são apenas ap-
parentes, mas claríssimas, offerecendo os flancos á cri­
tica demolidora dos adversários.
Como quer que seja, o seu papel ficou mai'cado na
evolução das nossas letras. Não é por mera coincidência
que 0 anno do concurso de Tobias é também o do appareci-
,mento do primeiro livro natui’alista de Aluizio Azevedo. O
Mulato é de 1882 e foi assignalado logo pelo pensador de
Recife como a revolução que apontava nos dominios literá­
rios. Aluizio sentira a necessidade duma refóim a nos mol­
des da expressão, após a phase romântica, que a teve tam­
bém. As intelligencias brasileiras tendiam para a subver­
são e 0 abandono das velhas formas.
Ia surgir o naturalismo.
CAPITULO X IX

O naturalismo — Aluizio Azevedo —


A historia e a critica — José Veríssimo —
Araripe Junior.

A reacção operada por Tobias Barreto ia expandir-


se pelo paiz e influir em todas as manifestações da intel-
ligencia e da cultura. A critica seria moldada em direc-
trizes mais nitidas e positivas. A historia fornecâiia al­
guns pesquizadores, afeitos ao trato das cousas novas e
não méros foçadores de archivos. 0 romance é refundido
desde as suás bases. A"póesia'soffre uma transfoimiação
immensa.
E ’ do tempo de Tobias um romancista que, vindo do
romantismo, ia produzir algumas obras calcadas num na­
turalismo forte e expressivo, narrando os costiunes bra­
sileiros, numa analyse directa e clara, mostrando no qua­
dro da nossa sociedade alguns aspectos que, até ahi, ha­
viam ficado esquecidos ou obscurecidos.
Aluizio Azevedo, nascido em S. Luiz do Maranhão,
em 1860, é o iniciador da nova escola. Aos dezeseis an-
nos escreve a sua obra romantica,Uma lagríma de Mulher.
Aos vinte já podia offerecer um livro forte e humano, on­
de havia ainda, certamente, resabios de romantismo, mas
que trazia nas suas nervuras os traços naturalistas. Era
O Mulato, que Sylvio Romero considei-a o centro de irra^
diação do naturalismo brasileiro. A analyse da socieda­
de, na obra de Aluizio, guarda os limites da exactidão e a
pintura dos costumes procura ser a mais fiel possivel. A
sociedade maranhense não podia deixar de ser aquillo que
apparecia no livro, irreductivel nos seus preconceitos de
187
côr. Entrava para o campo vastissimo do romance um
problema que até ahi não havia sido debatido e discutido,
a questão delicada das differenças sociaes baseadas na ra­
ça. Os quadros dos usos e costumes da gente maranhense,
nas suas festas, nas solenidades, apparece claro e e ^ re s -
sivo em O Mulato. Algumas personagens denunciam a
intenção do autor em flagrantear pessoas que existiram e
desempenharam papel dé rèlévò no Maranhão.
Aluizio é um dispersivo e não obsei^va na sua obra
certa continuidade; soffre descabidas bruscas. Mas, ape-
zar de tudo, que lampejos de talento em O Cortiço! 0
scenario já não é o da pequena cidade maranhense mas o
da capital brasileira, onde apparecem typos communs da
metropole. E a realidade corajosamente suiprehendida
sem os oculos côr de rosa do romantismo.
A obra total de Aluizio é cheia de altos e baixos. Si
offerece livros como os dois apontados e, tal vez, já num
nivel inferior , a Casa de Pensão e O homem, tem, a cons-
titul-a romances folhetinescos, de enredos complicadissimos,
indignos da sua assignatura. Apezar de tudo, Aluizo Azeve­
do fica com um dos nossos mestres do naturalismo, capaz de,
em traços vivos, retratar os movimentos duma sociedade
e pintar-lhe os costumes, approximando-se sempre da rea­
lidade e da simplicidade. O Mulato foi, effectivamente,
um acontecimento na vida literaria do paiz e fixou uma
corrente nova nas nossas letras. Aluzio é o iniciador da
nova escola, titulo que Sylvio Romero justamente lhe deu.
Seria omissão imperdoável esquecer Julio Ribeiro. .
Si o Padre Belchior de Pontes é uma obra exagerada, cheia
de tons violentos, apaixonada em algumas passagens, fo­
lhetinesca ás vezes, e bi-partida, pois foi composta em dois
lances, que apparecem bem nitidos na sua separação, já
não se pôde analysar pelo mesmo prisma A Carne, onde, a
par dos episodios escabrosos, feitos para chocar e para des­
cer aos menores detalhes na bisbilhotice realista, ha pagi­
nas fortes e hiunanas. A o seu livro de exaltação sensu­
al, Julio Ribeiro empresta alguns itons cheios de poesia e
força, de sorte que a sua figura não pode ser esquecida no
rol dos que seguiríam a escola naturalista, mesmo quando
188
não se queira, como é commum, confundir naturalismo,
processo literaiio, com escolha escabrosa de assumptos e
riqueza de detalhes provocantes, que é pomographia.
Sylvio Romero, sergipano do Lagarto, onde nasceu em
1851, revolucionou a critica brasileira, subverteu-a nos
seus fundamentos, mudou-lhe o habito das comparações
prodigiosas e dos exaggeros louvatminheiros para dar-lhe
orientação mais precisa e disciplinar o acervo literário que
se avolumava, pesquizando e estudando. Sylvio foi um dos
maiores trabalhadores das nossas letras. Abordou todos
os aspectos da cultura. Na sua capacidade enorme de tra­
balho e na tenacidade com que se entregou ao exame de
todas as faces do pensamento nacional, encontra na tortuo-
sidade do seu estylo desgracioso uma barreira' terrível, que
^não conseguiu transpor nunca. Elle escreveu mal, terri-
" velmente mal, e não soube tom ar accessivel o cabedal enor-
. me que accumulou. Isto explica porque a sua obra ficou no
dominio dos estudiosos e dos que se interessam pela evo­
lução da nossa cultura. Entre elle e a média dos leitores
ha 0 abysmo da incompi’ehensão. O seu estylo é duro e
áspero. O gosto da polemica e o prazer das reivindica­
/'
ções perturbam-lhe o senso da analyse. Si essas reivin­
dicações provacam a pagina fulgurante que é o elogio da
obra de Tobias Barreto, para que se fizesse justiça ao gran­
de pensador do Recife, em outros pontos ellas descamba­
ram para o exaggero, toldando o ambiente de serena isen­
ção em que deve ficar a critica, na constatação dos proces­
sos e explicação das causas das mutações operadas na evo­
lução do pensamento de um povo, atravez das suas mani­
festações literárias e culturaes.
Alicerçando a sua analyse, Sylvio Romero possuia uma
cultura fundada em moldes novos. Quando affii-ma, na
these de doutoramento, no Recife, que a metaphysica está
morta, o espanto dos ouvintes é quasi o mesmo daquelles
a quem Renan surprehende quando affirm a ter sido Jesus
um dos maiores homens do mundo. Era a explosão dP
seu pensamento, imbuido das novas idéas, contra a mu­
ralha da rotina dominante. A sua luta no concurso para
a cadeira de philosophia do collegio Pedro II, da capital do
189
Império, marca as linhas preciosas da sua mentalidade. A
these tinha um titulo extranho para os homens do tempo:
"Interpretação philosophica dos factos históricos” .
Não podia deixar de ser polemista vigoroso quem vi­
nha com taes armas para os estudos históricos, sociaes e
literários. Aliás, Sylvio Romero é o primeiro que, na nos­
sa terra, encaixa as manifestações litera)rias, não como pro-
ducto do diletantismo ou de ficções inconsequentes, mas
como emanações clarissimas da cultura, indices da evolu­
ção histórica, vinculando-as ao desenvolvimento total do
.paiz. Nem é possivel que uma intelligencia agil e pene­
trante como a sua tivesse a artificialidade de supix>r que o
panorama literário de um povo possa ficar alheio ao seu
desenvolvimento social e politicp, á evolução das suas ins­
tituições e ás transfoimações da sua capacidade produ-
ctora. Sylvio Romero foi o primeiro a compi-ehender e
encarar a cultura literária como phenomeno historico,
indo buscal-a desde as suas fontes, tradicção oral e folk-
lore, a'té á obra dos seus escriptores mais caracteristicos.
0 gosto da polemica, um dos seus maiores defeitos, estio-
lou muito da sua capacidade de escriptoi-. O exaggero de
certas affirmações unilateraes e apaixonadas, como o culto
que professou a certos vultos da nossa vida literaria e men­
tal, fizeram com que a sua obra se resentisse da falta de
equilibrio e sobriedade que a tornaria agradavel ainda mes­
mo vasada no estylo difficil e áspero em que foi escripta.
Apezar dessas restricções, que não o affectam pro­
fundamente, Sylvio Romero foi um dos fundadores da nos­
sa critica, o disciplinador do cabedal literário que já ha-
viamos constituido. Sua obra não póde deixar de ser con­
sultada e respeitada, producto que é duma grande cultura.
Outro critico que escreveu mal e cujas paginas a gen­
te atravessa penosamente é José,Veríssimo, paraense de
Óbidos, nascido em 1857. Veríssimo não possuia os mes­
mo recursos de Sylvio Romeroj, para a analyse literaria.
Nem seria propriamente um critico, um historiador das
nossas cousas. A critica surgiu nelle mais tarde, depois
de alguns livros sobre assumptos diversos. As suas Sce-
nas da Vida Amazônica têm um logar de destaque entre
190
as obras inspiradas pela violência da natureza’ daquella re­
gião. Veríssimo foi professor e director de collegio. Não
perdeu o habito de sabbatinar e corrigir, como quem está
ensinando a creanças. Mas foi um caracter puríssimo e
uma intelligencia agil e forte, honesta e decidida nos seus
jidgamentos. Esse traço, fiirme e dominante na sua
personalidade, trouxe-ihe innimieras desafeições, mas deu
á sua obra a segurança de isenção que Sylvio não teve.
Não que elle fosse invulnerável á raiva e á animosidade.
Tanto 0 foi que dedicou a Sylvio Romero, trabalhador te­
naz e incansável, apenas algumas linhas seccas e pobres na
sua obra sobre a nossa literatura. Mas, na sua analyse lite­
rária, 0 que já não é pouco num paiz em que a critica lite­
rária fica na dependencia de interesses amistosos, jámais
se inclinou a considerações pessoaes.
Os seus Estudos de Liteiatura Brasileira registram
a evolução do pensamento do tempo em que foram escri-
ptos. Muitas dessas paginas perderam a actualidade.
Faltou a José Veríssimo, certamente, o calor e a vi­
bração nas suas expansões. Retrahido e timido, no con-
vivio dos homens e no commercio das idéas, a sua obra
é heterogenea e descontínua, mas dotada de força e pene­
tração em muitos pontos. Soube situar-se sempre nos li­
mites dum livre exame onde não ha rebeldia, mas tam-
j bem onde a duvida não mora. Os seus estudos, si são dif-
I ficeis á leitura e enfadonhos em cei’tas passagens, pela
. minúcia e pela desgraciosidade do estylo não desmerecem
' o nome de quem soube ser integro na analyse. Elles são
como certas aguas, maiores em superficie do que em pro­
fundidade, mas essa siipeificie, que aqui não quer dizer
precariedade de talento, guarda, muita vez, limpidez e ful-
guração. José Veríssimo não sabia apprehender bem as
causas profundas que occasionam as súbitas mudanças na
vida de um povo. Nunca soube, como Sylvio Romero, si­
tuar as personagens no tempo, filial-as a uma dada cor­
rente histórica e social, dando a indicação segura dos fun­
damentos da escola ou tendencia estudada. Nesse ponto,
essencial como nenhum outro. Veríssimo foi apressado e
descuidado. Não se importou mesmo com isso. Faltou-
191
lhe o lastro philosophico que foi o alicerce da obra de Ro-
meix>.
Já Araripe Junior não póde ser posto em confronto
nem com Veríssimo nem com Sylvio Romero. Não teve
a segurança de um, nem o gosto pelo detalhe, do outro.
Alem de escrever mal, que parece ter sido o defeito dos
nossos críticos, a analyse de Araripe Junior se resentia
da confusão e da imprecisão. Em tudo fo i um indeciso,
um divagador. Faltaram-lhe, quiçá, o dominio da lingua, a
segurança na discriminação das idéas, os fundamentos cul-
turaes para uma obra mais precisa. Intelligencia agil,
com lampejos inconfundíveis, não raro, elle se perdeu e
dispersou no exame ligeiro dos assumptos.
Da obra critica' e histórica desses tres trabalhadores
sobrenadou, entretanto, um cabedal de muito valor a de­
safiar a attenção dos que viessem depois. Sylvio Romero,
principalmente, foi um pesquisador consciencioso. Veríssi­
mo, erudito e versado nas letras extrangeiras, estabelecia
aquillo que Sylvio não gostava de fazer, os parallelos, as
filiações, entre os nossos escríptores e os europeus que di-
rígiam movimentos e chefiavam escolas. A critica per­
dia o seu caracter de solmn idade tôla e descripção catalo-
gadora de nomes, a empafia de estabelecer comparações
grotescas, os processos puramente naxTativos.

1
C APITU LO XX

Panorama do fim do imperio-Pedro II


— O Parlamentarismo no Brasil — Joa»-
quim Nabuco — Centralisaç<ão e Federação.

O reinado de Pedro II não deccorreu sem sobresaltos


e convulsões. O Sete de Abril correspondeu a uma af-
finnação brasileira. O periodo que vae da Independên­
cia á Abdicaçáo do primeiro imperador, é ainda uma pha-
se de ti-ansição entre a autonomia e uma semi-submissão.
A regencia viu os seus dias cheios de desordem e disper­
são. Feijó, com a energia do seu caracter, não teve o
condão de dominar os surtos provinciaes. Os attrictos
que rebentavam em rebeldia ei'am indicios de que a nossa
unidade, com a vida autonoma, passara por um transe
doloroso, em vista de que essa vida automa não teve um
caracter nitidamente brasileiro, mas veio conturbada pelo
elemento portuguez que, na côrte, absoi-veu o pensamen­
to do príncipe, e esse elemento, como em quasi todo o
paiz, monopolisava o commei'cio das grandes cidades litto-
raneas.
As injuncções partidarias e a esperança que sempre
depositamos em que a mudança de nomes corresQDonda á
mutação profunda na ordem dos acontecimentos, fez com
que a Regencia visse terminados os seus dias, ao acena­
rem alguns politicos ao príncipe successor com a maiori­
dade forçada. “ Quero já ” , disse elle. E o povo enthu-
siasmado pensa resolver todos os males com a substitui­
ção dos dirigentes que vinham commandando aquelle me­
nino voluntarioso.

J
193
0 longo reinado do segundo imperador encontraria
um homem que, pela combatividade e equilibrio de espi­
rito, tenacidade e bom senso de que era dotado, consegui­
ría supprimir os surtos de revolta que repontariam nas
províncias e daria ao Império uma continuidade de acção
capaz de traçar as linhas mestras da nossa unidade pro­
digiosa. Esse homem foi o marquez de Caxias. Não se
conhece, de Caxias, um só lampejo de genio; tinha, porem,
a supprir essa lacuna, um conhecimento profundo dos ho­
mens e um tacto maravilhoso para resolver as pendên­
cias políticas e revolucionarias. No decorrer do reinado
de Pedro II, onde houve um movimento de rebeldia, ahi
esteve a espada de Caxias pai’a dominal-o, e a sua in-
telligencia para resolvel-o. Esses movimentos ei’am nada
mais nada menos que os impulsos do provincialismo.
A centralisação mata o Império. Estiola o desen­
volvimento provincial; compi’omettia as instituições no
interior e só argamassava prestígios que vivessem ao ca­
lor do throno. Toda a hierarchia burocrática emana do
centi-o. Todo o complexo organismo administrativo tinha
a sua séde e o fóco das suas actividades na côrte. O pen­
samento político e social encontra no Rio de Janeiro o
unico logar onde pode viver, porque, no resto do paiz, é
uma ficção, uma risivel falsidade.
O desenvolvimento do nosso ruralismo, que chega ao
auge justamente no Segundo Império, não pode supportar
essa centralisação. Ao redor dos núcleos agrícolas, nas
províncias, iam-se formando as olygarchias, dominando as
fazendas de gado e café. Essa gente tinha necessidade
do governar a sua província, fazer as suas leis, attender
aos proprios interesses economicos que urna côrte longin-
qua não podia comprehender nem acceitar. Nada mais
humano, mais logico, mais consentaneo com o desenvol­
vimento economico. A relativa autonomia estadoal con­
solidaria o Império. Tal não podia acceitar’, entretan­
to, a côi-te, no primarismo da sua visão e no temor de que
sempre se sentiu possuída, desde o inicio do primeiro Im­
pério, de dar largas a essa expansão provincial, porque
jamais deixou de ligardhe a idéa de fragmentação.
194
0 systema fiscal, pela sua absorpção foimidavel, cox’-
respondia a uma ventosa insaciável applicada sobre o
organismo economico pi’ovincial. O fisco não tinha a hie-
rarchia que a Republica lhe deu, — e está exagei‘ando e
levando a limites extremos — pennittindo um desenvol­
vimento parallelo e synchronico das tres partes, o Muni­
cípio, 0 Estado e a Federação, quando equilibrado e con-
fonne com o poder acquisitivo das populações. A centra-
lisação economica, consequência da centx'alisação política
extorsiva e dissociadora, levava a esses lances convulsi­
vos em que o Impei-io .ti'ansido via o genne terrível da
desagregação da teri’a immensa. Nem podia, com a falta de
communicações e transmissão de idéas que cai'acterisava
0 Brasil do século XIX, haver possibilidade dessa centra-
lisação insólita, que já ao tempo do fisco colonial, quando
da espansão do gado pelas “caatingas” e pelo valle dos rios,
produzia um desequilibido enomoe.
A s questões de política positiva não seidam, entre­
tanto, no nosso parlamentarismo de encommenda, tidas
como tangíveis e naturaes.
Era 0 tempo em que as nossas camaras viviam de
olhos postos no paidamentarismo inglez. Inglezes eram
os nossos hábitos paidamentares. Inglezes os nossos usos
policos. Inglezes até os pseudonymos usados pelos com-
xnentadores jornalísticos das nossas cousas. . Esse parla­
mentarismo apreciava as questões vitaes da nacionalida­
de ati*avez das suas manifestações superficiass. O mal
estar provincial denunciava-se oi'a pelos surtos de rebel­
dia, oi’a por exigências em matéria eleitoral, abolicionis­
ta ou puramente política. Mas não se enxergava cousa
algumas nesse nevoeii'o político. Não se via que, atraz
delle, estava a ansia de autonomia provincial que pennit-
tixda a essas partes ten-itoriaes conduzix'em os seus inte­
resses, na paixella de poder que lhes fosse confexddo. O
jogo político entre dois partidos, o Liberal e o Conser­
vador', cuja identidade e igualdade de princípios era tal
que fazia com que, em bôa parte da nossa mi'acha polí­
tica, conservadores executassem, no podei’, medidas que
os liberaes haviam proposto na opposição. Contraba­
195
lançando essas alternativas onde havia successão de ho­
mens públicos mas não de programmas definidos, estava
0 poder moderador, que se cingiu, em toda a sua longa
existência, a uma escolha de homens politicos para terem
assento no Senado, tirados da lista triplice, ou para che­
fiarem o gabinete, tirados a uma maioria occasional.
A ordem de argumentos em que nos vamos esten­
dendo tende a explicar como a Republica, quando deu o
seu golpe, nada encontrou a derrubar. O Império esta­
va fallido. Faltava o impulso derradeiro que, exilando
0 chefe, tirasse ao systema a sua pouquíssima força,
aquillo que lhe restava depois de quarenta annos de cen-
tralisação, depois de leis sobre os circulos eleitoraes, de­
pois da luta sobre o elemento servil. Esta, despresando
0 unico alicerce que ainda possuia o Império, a lavoura
do centro do paiz, tirava-lhe, pela abolição, esse esteio e
deixava-o como casa abandonada e semi-ruida, á espera
do vento mais forte que a derrubasse.
A Federação, entretanto, mais antiga do que a Re­
publica nas cogitações dos nossos homens públicos de
clarividência, torna-se um programma de luta e uma ban­
deira desfraldada por um dos homens mais lúcidos do tem­
po do Imperuo, cuja intelligencia não se alça a cumes ge-
niaes, mas saber-ia orientar as suas campanhas pela ele­
vação do debate, elegância da palavra, nitidez dos con­
ceitos. Esse homem é Joaquim Nabuco. Elle represen­
tou, no Brasil, uma dessas individualidades felizes a quem
a vida offerece louros sem conta e a morte não faz mais
do que augmentar uma admiração serena pelo seu vulto,
admiração tão semelhante a tudo que elle amava. Por­
que, em Nabuco, individualidade marcante em tempos dif-
ficeis, de paixões soltas, o que releva é a calma perenne,
a atmosphera superior que o cercou sempre. Essa ele­
vação, de que resulta a eloquência politica mais lógica,
mais serena e brilhante do paiz, revela nelle uma sorte
de aristocracia mental, rara no Brasil.
A vida lhe foi propicia e delia elle obteve tudo que
póde satisfazer um homem. A sua ascenção não soffreu
pausas prolongadas. Elle se elevou tranquillamente.
196
como quem recebe apenas aquillo que lhe é devido. Tra­
zia um nome illustre, que não trocou jamais por titulo
algum, um nome que vinha ungido na tradição e que elle
havia de honrar cada vez mais e transmittir maior do
que recebera. Não tendo padecido crises materiaes, in­
cólume nas contendas e nas paixões mais fortes, encou-
raçado na superioridade e na placidez do seu tempera­
mento, não soffreria lambem profundas crises espiritu-
aes, dessas que caracterisam o crepúsculo duma crença
ou a txdsteza duma apostasia. A sua evolução interior
acompanhou a ascenção política que lhe daria urna pree-
minencia invulgar. Suas paixões, elle as trouxe da ado­
lescência, quiçá da meninice. A escravidão, que abomina,
lhe accende o iprimeii’o ideal. Esse ideal, porem, não lhe
surgiu quando acadêmico mas muito mais cêdo, na vi­
são da escravaria de Massangana, na sua angustia e na
sua tristeza, visão que elle pintou, mais tarde, com uma
nitidez evocativa modelar. Não seria um revoltado, po­
rem. Patrocínio, sim, era a rebeldia fogosa, o exaspera­
do, o inconfonnado. Nabuco, que foi sempre avesso á
demagogia, acalentou a idéa e pregou-a, de cima para
baixo, do alto da sua sabedoria, da sua crença e da sua
fé. Patrocínio pregou-a de baixo para cima, por isso a
envolveu, por vezes, em treva e blasphemia.
A eloquência do tribuno da Abolição e da Federação
soa, na Gamara imperial, como uma licção de sabedoria,
■professada com calor, mas com elegancia, riqueza verba,
cheia de idéas. Nabuco foi feliz. Ninguém conhe­
ceu destino semelhante. Descendo a defender a ultima
camada, na escala humana, elle lhe emprestaria uma ri­
queza de sentimentos e de espiinto que resaltava o con­
traste chocante entre os fan-apos duma indigencia que
se an’astava de senzala a senzala e a opulência brilhante
dum espirito fino e superioi’. Mesmo quando fez cam­
panha eleitoral, conclamando os homens da sua terra para
que se abrigassem sob a bandeira que alçou, não poz a
sua intelligencia ao serviço da phraseologica ôca e arti­
ficial que caracterisa a eloquência dos “ meetings” políti­
cos. Soube ser simples sem descer á vulgaridade, e Per-
1 197
iiambuco não assistiu mais a uma campanha como a que
elle desenvolveu.
A luta pela Abolição, que encetou desde que teve
uma tribuna para esplanar as suas idéas, attrahiu-o e
fascinou-o, — foi a moldura gigantesca da sua figura
invulgar. Atirou-se a ella por uma convicção profun­
da que lhe indicava ser nocivo, vicioso e pouco producti-
vo o trabalho forçado. Era um apaixonado intimo, um
revolte.do polido, um “genfcleman” da polemica politica que
nunca mareou com a injuria, nem mesmo com a des­
cortesia. Era liberal por indole, liberal como homem fe ­
liz com quem a natureza fôra pródiga e a vida propicia.
Não comprehendeu o eiTo economico da Abolição, talvez
porque o enthusiasmo da massa que arrastara e desen­
cadeara, ultrapassando o seu, acabasse por dominais.
Por isso, elle começou por desejar a libertação como ideal
futuro. Quer que ella seja parcial e remota. Termi­
na por exigil-a total e súbita. Tendo feito a sua educa­
ção espiritual no cultivo e na admiração dos franceses, e
a sua educação politica na observação da Inglaterra, es­
queceu de converter á escala brasileira, á realidade do
seu paiz, 0 liberalismo politico que o fascinava.
Foi o seu erro, que redimiu com a sinceridade das
suas campanhas, pois, abraçando as idéas que defendeu,
teve mais a perder do que a ganhar. Demais, a culpa
dos acontecimentos foi menos sua do que do systema po­
litico vigente, no golpe vibrado na economia brasileira.
Mais idealista do que pragmatista viu no povo que admi­
rou apenas o inglez, a elasticidade liberal da organisação
politica, não comprehendendo que essa conquista repou­
sava num mundo real e objectivo, emanava duma soli­
da organisação, apta a acceitar sem gravames o systema
politico vigente. Querendo applicar á sua terra aquillo
que admirou e amou, Nabuco não fez mais do que de­
formar a realidade, o que, comtudo, não amesquinha e
apaga a sua acção sempre poderosa e justa, exaltada e
•politica, conduzida por um espirito alto e sincero, con­
victo e seguro dos seus conhecimentos, offerecendo um
quadre que o Brasil não poude assistir mais porque, ef-

i
198
fectivamente, o paiz não produz senão raramente homens
dessa estatura.
A “ Minha Formação” é uma biographia escripta com
aquella elegancia innata que elle pcssuia e o Um Esta­
dista do Império constitue uma narrativa singela dos acon­
tecimentos em que foi parte o seu pae no quadro das
instituições do tempo, aproveitando uma ou outra op-
portunidade para analysar alguns factos importantes da
política imperial e pintar algumas figuras das mais signi­
ficativas da época. O estylo de Nabuco, como a sua exis­
tência, era límpido e correntio. Nada o deformava, nada
0 torcia. A sua correcção não prejudica a naturalidade
da narração.
A idéa federalista, que elle levanta e leva para o de­
bate do legislativo, ia ser fundida no programma repu­
blicano. No seu monaiehismo intransigente e coheren-
te, Nabuco foi um' das clavas mais violentas contra as
instituições. Bate do-se pela Abolição e pela Federação,
elle estava ajudando a aluir uma ordem de cousas que
assentava nesses dois supportes: e.scravidão e centrali-
sação. Destruídos esses dois sustentaculos que restava?
A Republica.
C APITU LO X X I

Transformação na poesia — Luiz Gui­


marães — Theophilo Dias — Os parnasi­
anos — Alberto de Oliveira — Luiz Mu-
rat — Olavo Bilac — Raymundo Correia —
— Augusto de Lima.

Enquanto a prosa se modifica, o romance envereda


para o naturalismo, a poesia soffre, também, uma trans­
formação sensível. As leituras dos nossos homens de
letras eram, em geral, francezas. Franceza era a nossa
cultura. Dessa forma, a poesia acompanha, com o atra-
zo natural, o influxo dos versos europeus.
Luiz Guimarães póde ser apontado como um autor
de transição, entre o romantismo que ruia e a nova poé­
tica mais fresca, mais livre, mais liberta na sua expan­
são, buscando novos rythmos e indicando novas trilhas.
Os poetas dessa phase buscam o esmero da fórma, se­
guem o velho mytho da arte pela arte, conduzem-se como
lavoristas.
A poesia de Luiz Guimarães foge aos cânones an­
tigos. Ella guarda a expressividade sem descambar para
0 exagerado das imagens. Conduz-se num equilibrio en­
tre a fórma que encadeia e a imagem que reponta. O
soneto tem uma phase aurea. Pela sua feitura, estava
bem no sentimento dos que queriam encerrar, na estru-
ctura do verso, alguma cousa mais do que o pensamen-
200
to, o cuidado na expressão. A s pinturas da natureza fi ­
cam em primeiro plano. São pequenos quadros. Não têm
aquella vastidão dos que, na phase romantica, amplia­
vam 0 desenho. Restrigem-se a alguns traços coloridos
e vivos:

Dentro da sombra matinal os campos


Riem-se ao fresco pranto da Alvorada,
Sobre a planice fresca e perfumada
Vôa o bando dos tardos pyrilampos.

O arrieiro tonto de preguiça


Desperta apenas, — ao bulir das mattas:
Vem misturar-se o echo das cascatas,
E os lentos dobi’es da primeira missa.

Sob 0 véo orvalhado os olhos delia


Brilham fitando os meus: ao divisal-os
Cuido que Deus pei’deu mais de uma estrella.

Rincham, pulando, os nossos dois cavallos;


E atravez da manhã cheirosa e bella.
Ouve-se o canto festival dos gallos.

Os Sonetos e Rimas marcam o inicio duma escola no­


va. Luiz Guimarães volta-se para a terra natal. A sau­
dade dos seus campos e das cidade é uma nota que repon-
ta, quasi sempre, na sua poesia, escripta longe. E elle
pinta, em pequenos e graciosos quadros, scenas da nossa
natureza.
Já Theophilo Dias é o esmero na escolha da palavra.
O que ha de sonoridade na phrase de Luiz Guimarães, ha
de harmonia, de côr e de vida no vocábulo de Theophilo
Dias. Um, buscava a cadência que se completa e a har­
monia das phrases que cantam, outro procuraria a vibra­
ção das palavras que ficam nos ouvidos, como um éco
ruidoso. Ha, também na poesia, lyrismo e sensualidade,
volúpia e exhaltação. Os Cantos Tropicacs indicam as
qualidades citadas. Ha, nos seus versos, fulgurações que
201
lembram Hugo, lampejos de imaginação e de riqueza es-
pectacular. Guardados na moldura discreta dos sonetos,
repontam exhaltações profundas e imipetos ardentes.
O culto da fónna chega ao apogeu com os parnasia­
nos. Elles dariam á feitura do verso aquella importância
que Bilac enalteceu. Seriam artis1»tas do rythmo.
A penna lhes substituiu o escopro. Aitravez dessa meia
limitação elles se revelam, entretanto, dos maiores poetas
que possuimos. Poucos souberam compôr quadros da
natureza como Alberto de Oliveira, poucos tiveram a
profundeza de Raymundo Corrêa, poucos foram tão
vibrateis e exhaltados como Bilac. A tortura da fórma,
que era um principio, não os conduziu á impassibilidade.
EMa quiz occultar, apenas, temperamentos ardentes, con­
trastando com vigor dos que se alcançavam em arroubos
grandiosos.
Rnyniundo Correia foi o maior dos parnasianos e um
dos espiritos mais puros de toda a poesia brasileira.
Só elle, no Brasil, tem versos que, pela profunda analyse
e pelo tom ento espiritual, podem ser postos em parallelo
com os de Anthero do Quental. Raymundo era uma na/tu-
reza timida e recatada, dotada, enteetanto, de uma pro­
digiosa vida interior, tranfigurando-se nas suas poesias
onde ha notas lyilcas, pinturas cheias de graça, uma sen­
sualidade discreta, tudo nos limites da fórma apurada.
Elle tiirha uma aversão profunda pela sua iroesia mais
popular. As Pombas, soneto de fundo mediocre, e foi capaz
de dar originalidade a uma tradução, de transpor, para
a lingua, em versos dignos do autor traduzido, os grandes
poetas europeus. As suas poesias, que não são muitas,
ficam entre as mais bellas do parnasianismo e algumas
permanecem como instantes dos mais felizes da nossa lite­
ratura, O pessimismo, a sua inconformação, a sua visão
tragica das cousas, que transparece em algumas das suas
composições, não é uma nota forçada, simples motivo li­
terário, fonte de inspiração exterior, mas a expressão
sentida do proprio espirito cheio de desconcertos, avido
de belleza, mas timido, recatado e bom. A s suas confis­
sões sobre o desconsolo e a dor sem remedio, vinham-lhe

i
5-'i
202
do .fundo da alma convulso. A sua obra, onde ha força e
analyse, e onde ha belleza e forma bem cuidada, perma­
nece como um dos conjunctos mais homogêneos produ­
zidos pelos nossos poetas. A mediocridade é rara em
Raymundo. O trivial, quando nelle apparece, a sen.si-
bilidade apurada logo se perturba e recolhe, como no ca­
so do soneto celebre. Elle foi capaz de compor alguma
cousa de colorido e vivo como a Missa da Ressurreição,
quadro perfumado de sensualidade, e a Noite de Inverno;
uma descripção fina e sensivel do mal interior, como o
Mal Secreto.
Alberto de Oliveira é um dos grandes coloristas da
nossa poesia. suas narrações da natureza classifi­
cam-se como das melhores que temos. Não ha a preten­
dida impassibilidade na sua fónna, que guarda os limi­
tes da perfeição sem suffocar a idéa e prejudicar a pa­
lheta desse colorista inimitável. Certo, os seus vei*sos
são menos populares que os dos seus companheiros. Is­
so não 0 diminue, entretanto. Alberto de Oliveira foi
uma sensibilidade viva ao serviço duma fórma perfeita.
A sua obra, onde ha algumas paginas eternas, é das que
atravessarão o tempo. O enthusiasmo que o domina an­
te 0 esplendor das nossas manhãs, a imponência das mon­
tanhas e florestas não perdia ao ser transplantado para
a cadência e a rima. Artista do verso, elle aborda todos
os themas, sem descer á vulgaridade. A sua poesia é
toda filha da sensibilidade, uma apurada sensibilidade
que lhe permittia aprehender os instantes mais felizes
da terra, e pintal-os com a chamma e a claridade com
que elles se manifestavam:

Floresta de altas arvores, escuta:


Em minha dor vim conversar comtigo.
Como no seio do melhor amigo.
Descanço aqui de tormentosa luta.
Troncos da solidão intacta e bruta.
Sabei! . . . A h ! que, porem, como em castigo,
Vos estorceis, e o som do que vos digo,
Vae morrer, longe, em solitaria gruta.
203
Que tendes, vegetaes? remorsos? crime?
Açoita-vos 0 vento como um bando
De fúrias e anjos máos, que nós não vemos?

Mas explicae-vos, ou primeiro ouvi-me,


Que a um tempo assim braceando, assim gritando.
Assim chorando, não nos entendemos.

Olavo Bilac estaria mais perto da alma popular, tra­


duzindo nos seus versos as ansias communs da nossa
gente, a eloquência, a sensualidade atormentada, o gosto
da sonoridade. A sua poesia, onde o pensamento, ó)’a se
eleva em busca da perfeição, óra desce á vulgaridade,
guarda as qualidades sensiveis ao espirito brasileiro, do­
minando-a a nota do mais intenso erotismo. As suas
pinturas não ficam circunscriptas á moldura exigua do
soneto, ás illuminuras, embora tenha sido um principe
dessa forma da expressão poética; ellas se alargam, tor­
nam-se baixo-relvos formidáveis e cheios da côr e movi­
mento que a vida possúe. Sua imaginação portentosa
foi o filão em que a poesia que escreveu teve de haurir-
se. Essa imaginação deu-lhe o segredo da côr e o dese­
jo insatisfeito, mas não a levou nunca para longo da rea-
Uidade, de sorte que elle pôde ser o cantor das energias
da raça, nos seus arrancos heroicos, tomando-se o arau
to daquillo que ella pensava e queria.
Olavo Bilac soube fazer-se simples e, sendo simples,
accessivel á comprehensão de todas, o mais popular dos
artistas da sua época. Demais, como já foi accentua-
do, ha nos seus versos aquillo que transborda na alma
brasileira, sem comtudo deixar de dar grandiosidade ás
emoções e ansias vulgares. Conquanto elle aconselhasse:

Torce, aprimoi'a, alteia, lima


A phrase; e, emfim,
No verso de ouro engasta a rima,
Como um rubim.

\
204
A verdade é que soube ser comprehendido, quer pela
simplicidade da fôrma, quer pelo que de geral transfun-
diu em seus versos. Os seus sonetos ficaram como os
mais bellos da nossa lingua. Da sua obra, si muita cousa
perdeu a belleza, descahiu para abanalidade, como as
conhecidissimas Tentação de Xenocrates e Ouvir estrellas,
subsistem paginas que a gente ainda lê com raro encanto.
Luiz Murat unge os seus versos dum tom indeciso
que prenuncia a decadência e precede a poesia de Cruz
e Souza e Alphonsus de Guimarães. Elle não pode ser
classificado, a rigor, entre os parnasianos, pois ficou nmis
chegado aos românticos, sob a influencia enorme de Hugo.
A riqueza verbal e a eloquência das imagens o situam
mais recuado no tempo, distante dos cultores da fôrma.
Muitíssimo menos popular do que qualquer dos que fo ­
rem estudados nestes capitulo ha, entretanto, nos ver­
sos de Mui'at indicios de uma sensibilidade apurada.
Augusto de Lima, produzindo pouco e deixando, nos
seus últimos annos, os velhos motivos para fazer poesia re­
ligiosa, bôa poesia religiosa, fica apezar de tudo, como o au­
tor de alguns versos ricos de idéas e imagens geométri­
cas. A politica dessorou, talvez, nesse contemporâneo do
paniasianismo bi*asileii‘o, a seiva poética, abafando-lhe
o Ímpeto da creação; amarrou-o ao terra-a-terra, ao com-
mum, ao trivialismo das espertezas e combinações ras­
teiras. Já no termo da existência, porem, nos offerta,
sobre o santo dos santos, uma poesia cheia de sensibili­
dade e angelitude.
Vicente de Carvalho, nos Poemas e Canções, fixou-
se, quasi repentinamente, como um dos nossos melhores
paysagistas, incapaz de adulterar os quadros da natu­
reza, preso á fascinação do mar, sentindo poeticamente
o tédio da posse e a indecisão do amor, podendo tradu­
zir emoções as mais variadas e elevar-se em alguns ver­
sos equilibrados e sonoros, dos mais sonoi'os que tivemos,
a aJituras por .poucos alcançadas.
Seria imperdoável esquecer aqui o nome de José Al-
bano, Amadeu Amaral, Adelino Fontoura, Francisca Ju-
lia e o quasi olvidado Severiano de Rezende.
C APITU LO X X II

O romance liberta-se da terra — As


obras subjectivas — Macliado de Assis —
Raul Pompeia.

O subjectivismo, como succede com as creanças, ap-


parece mais tarde no espirito dos escriptores. Elle é
mais difficil de ser tratado. Exig-e tal ou qual maestria
no discorrer sobre os seus problemas que o toma, sem­
pre, uma phase mais avançada do aprendizado literário.
A phase primaria é, em quasi todos os casos, a da influ­
encia da natureza e o desenrolar de alguns acontecimen­
tos humanos, no quadro dessa natureza, o impeto român­
tico ou a inclinação realista. O mundo obscuro e som­
brio do espiiãto exige um iolego maior para ser sondado
e contado.
Machado de Assis surge, depois do turbilhão rom an-'
tico, depois do romance de Alencar, com o senso da jus­
ta medida na pintura dos nossos ambientes, compondo
uma obra cheia de intelligencia, obra sem paysagem,
adstricta a alguns traços incisivos, o essencial para tirar
do limbo as suas figuras, dar espaço ás suas personagens,
obra de anal.vse e intenções emanada dum introvertido,
dum timido, sugerindo um m.undo de cousas que elle não
quiz .apontar abertamente na sua pi^ecariedade de doente,
mulato e pobre.
Machado de Assis representa, na deficiente e curta
histonia das nossas letras, um caso singular, não só pela sua
formação e pelo seu feitio, mas também pelo aspecto da sua
obra. Essa obra, una, inteiiãça, homenagenea, cheia de

■' r ■
206
observação e encanto, figura, no quadro das letras brasi­
leiras, com um destaque unico. Poucos negaram Macha­
do de Assis. Acreditamos mesmo que ele tivesse fugido
sempre á evidencia, ao commando e, si o elegeram chefe
vle clan literário, foi mais devido ao seu espirito associa­
tivo, talvez a contra gosto seu. E, exercendo essa posi­
ção, nunca se serviu delia para criticar ou oppor resistên­
cias e restricções a quem quer que fosse. A tolerância
foi um dos seus traços mais salientes. Giemos mesmo
que ella tenha sido o segj-edo da sua timidez. Tolerân­
cia igual, com a mesma dose de ironia e desencanto, só se
encontra, mais tarde, em João Ribeiro, espirito abeHo e
largo, cheio de sol e vida, olhando com benevolencia o tu­
multo da existência e a luta das pequenas vaidades lite-
raiias em busca duma gloria ephemera.
Antes de Machado de Assis, os nossos livros viviam
entregues ao capricho duma imaginação alvoroçada. O
verbalismo inócuo, o estylo pomposo, representavam a su­
prema elegancia. O romantismo quadrava melhor ao gê­
nio dos nossos homens de letras. F oia feito para occul-
tar o vazio, para dar a illusão da côr e movimento, ser­
vindo de maravilhoso instrumento á meia-sciencia de nos­
sa gente da penna, afeita ás apparencias e apegada aos
cânones europeus. Machado de Assis, justamente o con­
trario de tudo isso, foi o equilibrio, a sobriedade, a analy-
se. Decerto, o seu apparecimento não deixa de suipre-
hender o ambiente brasileiro. O gosto da minúcia, a ele­
gancia inata no escrever, o apuro da fórma, — sempre
clara e rectilinea — são nelle os traços fundamentaes, des­
conhecidos, nos demais escriptores de então, quasi duma
maneii'a absoluta. Machado foi um desencantado analys-
ta, um pesquizador sereno dos pequenos aspectos da al­
ma do homem, na sua vida em sociedade, — isso sem fo r­
çar o traço, sem these a demonstrar, sem principios vin­
cados e preconcebidos. Naturalmente o que nos espanta é
a fonnação desse escriptor de raça, desse analysta nato,
no meio pequeno e estreito das letras nacionaes. I-ão se
sabe de onde herdou elle aquelles dons maravilhosos que
0 notabilisaram. Graça Aranha, que foi seu amigo e es­
207
creveu sobre elle, se surprehende também, nesse ponto, e
não poude explicar a formação dum espirito tão subtil. A
origem da sua sensibilidade, do seu talento meticuloso e
exacto, da sobriedade do seu traço, da finura da sua ana-
lyse, pemanece imprecisa.
Esse homem que veio do nada e cuja ascenção foi
lenta e tenaz, sem incomodar ninguém, esse typo vulgar que
não tinha historia de familia e cuja personalidade foi creada
por elle proprio, essa figura humilde, dona duma prodigio­
sa vida interior, duma serena opulência espiritual, esse
narrador perspicuo vem suiTjrehender o meio dos que o
cercam e vae formando a sua posição nesse meio, voe con­
solidando 0 seu prestigio, pouco a pouco, sem succéssos es­
trondosos e sem bruscas mut\ações, e chegar a ser a pri­
meiro do cenaculo, o centro do mundo literário brasileiro, o
mestre consagrado.
Num paiz em que o prestigio pessoal, em qualquer
terreno, é conquistado asperamente, ás cotoveladas, aju­
dado de expedientes ridiculos, elle triumphou sozinho e
silencioso. Levou annos a ser conhecido e acceito como
mestre, mas, uma vez attingido o cimo, ninguém contes­
tou a sua posição, ninguém quiz negar a sua conquista, pelo
contrario, admitiram-na e a ella se affeiçoaram. Chegado
ao teimo da jornada, esse plebeu podia vingar-se das
suas origens. E, si elle sempre as temeu e escondeu, ja­
mais procurou perturbar a harmonia da sua vida com
qualquer gesto deselegante. Naturalmente terá guardado
um travo de amargor, as suas recordações serão tristes,
as suas reflexões, profundas. Mas o que ha de notável
nessa luminosa ascenção, é o equilibrio da sua figura, e o
segredo de se tomar, mansamente, o dono das suas con-
quisitas, é a serenidade com que acceita o que lhe offe-
recem. Peimanece honesto, bom e justo. Nada devendo
aos outros, nem a cultura, nem a formação da sua men­
talidade, nem o dom de escrever adquirido sem esforço e
apurado sem graves crises, elle vinga-se da humildade
das suas origens e da angustia da doença que o opprime,
— offertando á lingua uma obra forte, homogenea e so-
208
bria, na multiplicidade dos seus aspectos, obra como ne­
nhuma appareceiy ainda sob este claro céo brasileiro.
Felizmente, para a posteridade, que quer conliecer-
Ihe as origens e as fraquezas, para admiral-as ou para
explical-as e exculpal-o, esse homem encerrado em si como
um caramujo, que nunca se abandonou completamente,
talvez nem mesmo á esposa felizmente para nós, por
tudo isso e pela muralha que ergueu enti’e a sua pessoa e o
mundo, entre a sua vida e a vida dos demais, se con­
fessou nos seus livros, e esses livros são a unica senda
livre que deixou para devassai'mos a sua alma e a sua
existência.
A s attitudes mansas de Machado de Assis, o seu absen-
teismo, a sua aversão á luta, a fuga de toda a actividade
que impuzesse choques e competições, o abandono do jor­
nalismo quando esse mister lhe acenava com triumphos
promptos e promissores, essa evasão á vida, essa deser­
ção desalentada, inexplicável num lutador que tivera a se­
rena energia de construir laboriosamente a sua própria
personalidade e impor-se ao meio, esses traços mai-cantes
que são as linhas mestras do typo que procurou integrar,
do papel que buscou desempenhar, da roupagem em que
se envolveu, a ausência de espirito critico num analysta
como elle o foi, — tudo são traços da sua timidez e do
pavor que lhe descobrissem as deficiências tão cuidado­
samente occultas, tão mortificadoramente disfarçadas num
esforço continuo, numa dissimulação que raiava pelo sof-
fidmento mais intolerável.
Na sua obra ha a distinguir duas phases bem dis-
tinctas e que marcam, fundamentalmente, a evolução do
seu espirito. Na primeira elle é ainda um tacteante. um
infatigável trabalhador que busca o filão mais rico e mais
consentaneo com a sua indole e com as tendências do seu
espirito. E’ a phase romantica da poesia, a phase dos
primeiros livros, alguns quasi dispai’es no conjunto da
sua obra, em confronto com os que vieram depois, quando
0 seu estylo não se torneou ainda e as situações peccam
pela falta de equilibrio. Já ahi reponta, entretanto, a du­
vida eteraa que o atonnentava, o desalento na visão das
209
cousas humanas, e que o levou para o pessimismo frio e
quasi transparente e para a ironia alada. E ’ a rotativi- I
dade dos destinos na mosca azul, é a mudança dos espi-
ritos no homem que no sone/to de Natal, não se reconhe-l
cia. O que ha de profundo nesses dois trechos de poe­
sia subjectiva e fina marca indelevelmente o caracter dai
obra daquelle que soube ser, na dispersão das nossas le-l
tras, uma i>ersonalidade de excepção, dona dum conjunto|
de livi'os firmes e vigorosos, como não ha outra na nossa l
lingua. '
Si Machado de Assis foi a duvida que se occulta, Raul
Pompéa foi a ansia que procura desabafar-se e communi-
car-se. A sua existência tem um pouco da do outro. Tam­
bém teve inferioridades a occultar, foi também uma sen­
sibilidade extremamente apurada que buscou, no que es­
creveu, o equilibrio, num esforço pasmoso e immenso.
Mas a vibratilidade de Pompéa tinha de manifestar-se se­
não nas paginas pelo menos no convivio humano. E ella
se manifestou, descomedida e violenta, quasi incomprehen-
sivel, levando-o á deserção ultima e prematura. Antes
de ir-se, porem, antes de abandonar a cai’cassa humana
que o atonnentava, nas dores sem remedio e ansias sem
objectivo, Raul Pompéa deixou dois livros mestres, duas
obras sem exemplo nas nossas leti’as, alem duma contribui­
ção joiTialistica escassa, mas digna de attenção. A pri-
.meira dessas obras foram as Canções sem metro, em que
soube ser original num tempo em que todos escoltavam
Bilac. A segunda, e a maior, livro único no Brasil, foi
O Atheneu. Interessante notar que, nessa “chronica de
saudades” , não ha desabafos extremos. Quando a sua vi­
da nos indica o tom ento e a incorformação, quando es­
peramos da sua obra sobre um dos quadros onde, geral­
mente, ha recalques profundos, o ambiente do internato,
Raul Pompéa nos offerece uma nan-ativa subtil, flagrante
de realidade e repleta de vida. N a obra mestra não ha
nada da sua nervosidade desconcertante, não abi’e espaço
para desabafos tremendos, desde que os livros da infân­
cia se caracterisam, quasi sempre, pela vingança, revide
á brutalidade com que os homens tratam os sêres hyper-
210
sensíveis. Mas já o sub-titulo desmente essa tendencia,
si ella pudesse manifestar-se num ou noutro traço. Essa
“chronica de saudades” é bem um desfiar continuo de re-
miniscencias tiradas á realidade, embora emaciadas por
um delicado subjectivismo.
O romance brasileiro, com Machado de Assis e Raul
Pompéia, foge aos ambientes communs. Libertasse da
teiTa. Foge á descripção vasta e colorida, voltando-se
para o mundo obscuro das emoções interiores.
A reconciliação não tardaria a effectivar-se, embora
com outras directrizes.
C APITU LO X X III

A historíã — Caspitrano de Abreu —


Eduardo Prado — Oliveira Lima — João
Ribeiro — O conto e o theatro — Lucio
de Mendonça — Arthur Azevedo — França
Junior.

A pesquiza histórica, de que Varnhagen fo i o cam­


peão absoluto, encontra, ao tempo da reacção naturalista,
um dos mais estrenuos investigadores em Capistrano de
Abreu, Não se pôde dizer que Capistrano tenha orien­
tado a nossa historia, dado um sentido á construcção dos
motivos que influiram na fonnação da nacionalidade. Pelo
contrario, o que falta á obra desse infatigável conhecedor
das nossas cousas, é justamente o methodo historico. Elle
ficou na situação de quem, accumulando material em de­
masia, sentiu-se incapaz para a construcção do edificio,
para alicerçar e fundamentar, numa synthese soberana,
tudo aquillo que escolhera e esmiuçara. Faltou a Capis­
trano, para ser o maior dos nossos historiadores, o lastro
philosophico que daria unidade á sua pesquiza e ultimaria
0 seu esforço immenso. Capistrano indicou trilhas, entre­
tanto, e, como nenhum outro, dirimiu duvidas e esclare­
ceu obscuridades. Aqui e acolá nota-se, no que elle nos
deixou, traços psychologicos muito felizes, filiações claras
e palpaveis. Si esse extraordinário conhecedor dos nos­
sos assumptos possuisse a intuição philosophica para illu-
minar a sua cultura, teria sido o historiador que o Bra­
sil, pelo mallogro de mais essa tentativa, está esperando.
Como quer que seja, a sua obra representa um dos ma­
iores mananciaes a que póde recorrer quem deseje ter uma
212
idéa precisa das razões que influiram nos rumos da nacio­
nalidade. Ha certos pontos que, sem elle, ficariam na du­
vida e na obscuridade. Capistrano tinha o faro agudo da
pesquiza, e o fanatismo da verdade salvou ^ suas con­
tribuições e fêl-as indispensáveis ao estudo dõ nosso pas­
sado.
Já Eduardo Prado, intelligenoia lúcida, talento de
escol, não tinha segurança opinativa sobre os aconteci­
mentos brasileiros. Sendo lun subtilissimo espirito, do­
tado de cultura e fundamentado nas suas aífim ações, via
apenas a supeificie das cousas. Faltou-lhe, quiçá, o fo-
lego para os mergulhos profundos. Displicente, não pro­
duziu senão quando espicaçado. Os seus livros dão, por isso
uma pallida idéa do seu talento. Seria capaz de mui­
to mais si fosse capaz de manter o gosto da pesquiza so-
lerte e apaixonado, como se mostrou apto a grandes em-
pi'ezas quando provocado.
Oliveira Lima, ao contrario de Eduardo Prado, estu­
dava muito e perdia longo tempo para nos offerecer al­
guma cousa. Era a applicação cuidadosa. O esmero na
escolha dos dados. Embora se possa divergir dos seus
methodos de analyse histoiúca, da sua interpretação dos
acontecimentos, do caracter que emprestou a certos fa ­
ctos, não se lhe pode deixar de admirar a conscienciosa
pesquiza em torno de D. João VI, sobre o qual escreveu
um livro util, quasi definitivo, mostrando-nos largamente
a acção do monarcha, o brusco desenvolvimento da terra
I quando aquelle glutão sensato e vidente se transportou pa­
ra cá com a sua côrte, os seus homens de Estado, os seus
administradores. Na realidade. Oliveira Lima não rehabili-
tou cousa alguma, como se quiz fazer crêr, apenas estudou o
assumpto, coisa que raramente se faz entre nós. Póde-se
discordar dos seus pontos de vista, póde-se suppor que elle
tenha errado em uma ou outra passagem, que não tenha
comprehendido o caracter de certas mutações da socieda­
de, mas o que se lhe não póde negar é a consciência da
pesquiza, o amor do trabalho. Certamente foi um apai­
xonado. Entregava-se totalmente á tarefa que empre-
hendia. Estava no seu sangue, fazia parte da sua per-
213
sonalidade. Não tinha, muita vez, meias medidas; abso­
lutamente sincero, tomava o partido do mais fraco, me­
nos, já se vê, nos suas investigações históricas.
João Ribeiro era mais tolerante e mais cheio de bene­
volência O trato dos homens poliu nelle alguma aresta
que, por ventura, a luta tivesse deixado. Foi um dos
maiores sabedores da nossa historia. Isso, entretanto,
não constituiu o traço principal da sua personalidade in­
vulgar. O que avulta, nesse estudioso, é a mocidade do
espirito em contraste com o Jento passar dos annos. Pou­
cos souberam envelhecer assim. Guardou sempre uma
total receptividade aos pensamentos novos, aos estados
de transfomação da sociedade, aos cânones que se trans-
mudavam. O definitivo, o estável, o permanente, não en­
contraram nesse agil e arguto espirito uma admiração fran­
ca e decidida. Ninguém melhor do que ehe comprehendeu a
relatividade das cousas terrenas, a vaidade doentia e as con­
vicções emperradas, e ninguém acceitou, com mais sereni­
dade, 0 estado de perenne evolução de todas as manifesta­
ções da actividade humana. Sabia abandonar velhos precei­
tos, sem remorsos, si os novos estavam mais de accordo
com a verdade e com o avanço scientifico. Acreditou,
por principio, na bondade e na convicção alheias. Soube
ser um mestre sem cahir no ridiculo de impôr ideas.
A ordem estatica não foi, em tempo algum, o seu ele­
mento. Comprehendendo e acceitando o dynamismo das
sociedades e de todos os organismo vivos, nunca fez praça
de pensamentos definitivos nem de soluções estáveis e
permanentes. O papel de João Ribeiro, na marcha do
pensamento do Brasil, foi maior do que em geral se pensa.
Num paiz de tabus inexpugnáveis e inamovibilidade ca-
chetica, elle representou o singular e preeminente papel de
inimigo do dogma e adepto da transformação e da ob-
jectividede. Soube ser jovem, apezar da maturidade
physica, quando os jovens eram velhos e andavam arrima-
dos a muletas, tristes e vaJetudinarios. Foi o mais moço
dos moços da sua geração e guardou como um filtro, o
segredo dessa juventude espiritual, maior do que a na­
tureza pôde offerecer aos que, sob o imperativo do tempo.
214
vão perdendo a lucidez e o vigor. João Ribeiro foi um
espectáculo dos mais interesantes e dos mais consoladores
da vida brasileira dos nossos tempos.
A reacção naturalista se fez sentir também no conto
e no tiheatro. Começamos a abandonar o dramalhão pe­
sado e cheio de transes dolorosos.
Arthur Azevedo, espirito subtil, intelligencia rica,
compôs algumas peças despretencio.sas cheias de graça e
movimento, que conseguiram animar o nosso semi-morto
theatro de um sangue novo.
Foi, alias, um dos phenomenos mais caracterisada-
mente brasileiros a impossibilidade de dar ao tehatro um
desenvolvimento continuo. A sua historia, ao contrario
do que se passa em outros paizes, é esporádica e fragmen­
taria. Vive a espaços, quando uma personalidade mais
viva e bem dotada apparece, autor ou actor.
Vejamos a sua explicação plausivel e clara. No Bra­
sil nunca houve, nem ha em nossos dias, uma gradação de
cultura. 0 publico que lê os livros philosophicos e históri­
cos é o mesmo que frequenta o romance e a novela policial.
Isso, do ponto de vista do theatro, tem mais importância
ainda porque indica a ausência de um grande publico ca­
paz de supportar a scena. 0 meio letrado é muito res-
tricto e delle já se passa, sem solução de continuidade,
bruscamente, ao abysmo dos analphabetos, incapazes de
sentir e comprehender alguma cousa que se dirija á in­
telligencia e á percepção mental. Dessa fôrma, sendo
esse estado aggravado á medida que se recúa no tempo,
nunca nos foi possivel ter um publico numeroso e constan­
te a animar a evolução do theatro. Os homens de letras
tiveram sempre amparo, auxilio e leitores nos outros ho­
mens de letras, em todos os tempos um circulo pequeno e
estreito, mas o theatro não ipodia viver da admiração das
coristas ou dos actores; isso seria um contrasenso.
Também a situação econômica influiu. O escriptor,
neste paiz, nunca viveu da penna. Sempre encontrou apo­
io num emprego, numa situação qualquer que o ajudasse
a prover o seu sustento. Machado e Manoel Antonio de
Almeida fôram honestos buiwratas, Lucio de Mendonça
215
e Rajitiundo Correia foram íntegros juizes. Graça A ra­
nha, Oliveira Lima e tantos outros escolheram a diplo­
macia. Alguns possuiram fotituna proipria.
No theatro é impossível esse desdobramento profis­
sional, dada a própria natureza do mister. Actor thea-
tral fió pode ser actor theatral e não director da secreta­
ria dc algum Ministério, ou dircdtor da Imprensa Nacio­
nal.
Por isso, o theatro nunca teve, em nosso paiz, con­
tinuidade, historia, desenvolvimento ininterrupto. Sur­
giu fragmentariamente, a espaços, aos solavancos e aos
impulsos que lhe déram, ou um talento dramatico que des­
pontou, ou um comediographo como Martins Penna, ou
um gracejador facil como Arthur Azevedo, ou um actor
excepcional no nosso meio como João Caetano.
Arthur Azevedo marca, com a sua obra, um desses
instantes felizes do theatro nacional, fazendo desfilar na
Ecena os typos communs, as personagens da rua, em si­
tuações l>em conhecidas e naturaes. Dahi o segredo da
sua ^popularidade. E ’ que foi sempre accessivel, nas suas
obras, ao espirito vulgar.
No conto, Arthur Azevedo produziría algumas das
melhoies paginas que possuímos no genero, que aliás tem
poucos cultores, e passageiros. Não possuímos um con­
tista, um escriptor que tenha, apenas ou príncipalmente
escripto esses ti^echos breves e completos, com uma si­
tuação bem conduzida a acabada. Arthur Azevedo, de
par com o theatro, soube escrever alguns esplendidos con­
tos.
Lucio de Mendonça também brilhou no genero. As
situações que creou e pintou em seus contos ficaram como
paginas perduraveis. Dominava-o certo pessimismo, uma
duvida cruciante. Lucio escreveu claro e escreveu bem..
Os seus contos são dos melhores que possuímos entre os
poucos que possuímos, pois os contistas dignos deste nome
são i'aix>s: Machado de Assis, em parte da sua obra; A r­
thur Azevedo e Lucio de Mendonça, Macedo, que o pra­
ticou uma vez por outra, e talvez uns poucos mais.
216
França Junior, que acreditou no thealtro, e deu-lho
alguma cousa de seu, é menos naturalista e interessante do
que Arthur Azevedo, mais folhetinesco, mais complicado,
mais preso ao romantismo. 0 destino do nosso theatro,
entretanito, é precário; não transporta para o palco a vi­
da das camadas populares, não podendo servir de barri­
cada para a luta social, ou esthetica e ethica. Permanece
quasi á margem da vida, o que tanto vale dizer á margem
da i^ealidade. Existiu por um esforço pessoal e particu­
lar, de um ou outro, e morreu quando esses esforços es­
porádicos afrouxaram de todo.
C APITU LO X X IV

; Reacção espiritualista e symbolista na


poesia — Cruz e Souza — B. Lopes — Emí­
lio de Menezes — Nestor Victor — Alphon-
sus de Guimaraens — Mario Pederneiras —
A prosa de Gonzaga Duque — Augusto dos
Anjos.

Entre os romaniticos e os naturalistas, adversos aos


dois extremos, surgem os que, no nosso panorama litei‘ario,
conseguiram um surto passageiro e apressado de reac-
ção espiritualista. Esse grupo, que não chegou a for­
mar escola entre nós, «pouca influencia exerceu sobre o
meio.
A reacção espiritualista e symbolista consistia nu­
ma volta ao domínio da finalidade humana dos versos,
transmittindo impressões e dôres, guardando ligação ex­
trema com a vida, abominando a impassibilidade da fôr­
ma, buscando maior vibração e maior calor para o verso.
O maior dos que emprehenderam esse movimento e
batalharam contra os cânones dominantes, foi um negro
de genio, uma das mais altas figuras da poesia brasilei­
ra de todos os tempos, não entendido pela sua época, sendo
que os que vieram depois hão quizeram estudar com o me­
recido carinho a sua obra: Cruz e Souza.
O poeta de O Caminho da Gloria precisa encontrar
quem faça um estudo capaz de chamar a attenção dos
brasileiros amantes das 'letras para a figura daquelle
que, tendo sido um dos nossos maiores poetas, ficou até
hoje despercebido, victima da malevolência de uns e da
displicência de outros. Cruz e Souza soffreu esse des­
218
prezo e transformou o seu exilio no meio literário brasi­
leiro em fonte de harmonia e belleza. Ha, no que elle
escreveu, como bem accentuou Ronald de Carvalho, aquelle
"horror da fôrma concreta” que faz com que os seus pen­
samentos nunca sejam completos, pareçam relâmpagos
de dôr, embora se notabilisasse por uma riqueza de har­
monia, rara em toda a historia dos versos brasileiros, e
por uma belleza de composição jamais ultrapassada.
Nos seus lamentos. Cruz e Souza deixou qualquer cousa
de indefinido, de impreciso, de vago, de penumbroso, ap-
proximando-o de alguns epigonos desse movimento na
Europa.
Ninguém melhor do que o sr. Agrippino Gricco de­
finiu Cruz e Souza. O autor da Evolução da Poesia Bra­
sileira chamou o poeta negro de “sublime ignorante” .
Grande verdade. Cruz e Souza foi um poeta instinctivo,
inspiração de fontes purissimas, pois era pouco lido em ou­
tros poetas, sendo o circulo dos seus conhecimentos sum-
mamente acanhado. Nascera poeta como outros nascem
para quebar pedras. Transfigurava-se quando compu­
nha alguns dos seus versos cheios de suggestões musi-
caes. Os seus lamentos, brotando de uma alma das mais
nobres que tivemos num meio literário de vaidades este-
reis e ridiculas, attingem a um diapasão grandioso como
0 deste soneto:

Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,


O’ ser humilde entre os humildes seres.
Embriagado, tonto de prazeres,
O mundo para ti foi negro e duro.

Atravessaste no silencio escuro


A vida presa a trágicos deveres,
E chegaste ao sabor de altos saberes
Tomando-te mais simples e mais puro.

Ninguém te vio o sentimento inquieto.


Magoado, occulto e aterrador, secreto,
Que o coração te apunhalou no mundo.
21 »
Mas eu que sempre te segui os passos
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços,
E 0 teu suspiro como foi profundo!

E ’ um grito que sóbe do mais profundo da sua alma.


Torturado e esquecido, guardou a serenidade estoica na
dor e no desconforto. Nestor Victor, que lhe acompanhou
grande paite da existência, é testemunlia de como esse
negro d© talento santificou a própria existência duma
nobre elevação.
A sua ascenção poética é assignalada por uma suc-
cessão de versos dum verbalismo sonoro, onde a idéa, por
vezes, fica esmagada ao peso dos omatos harmoniosos?

Este caminho é cor de rosa e é de ouro.


Estranhos roseiraes nelle florescem.
Folhas augustas, nobres, rcverdecem
De acanltho, myrtho e sempitemo louro.

Neste caminho encontrarse o thesouro


Pelo qual tantas almas estremecem;
E ’ por aqui que tantas almas descem
Ao divino e fremente soi-vedouro.

E’ por aqui passam meditando,


Que cruzam, descem, trêmulos, sonhando.
Neste celeste, limpido caminho.

Os seres virginaes que vêm da Terra,


Ensanguentados da tremenda guen'a,
Embebedados do sinistro vinho. . .

Não obstante a sua paupérrima influencia no meio


literário, seria injusto negar o relevo dum grupo de poe­
tas que deu um Alphonsus de Guimaraens: Nascido ein
Marianna, o autor do Septenario das Dores fica bem ao
lado de Cruz e Souza. No seu verso, mais do que nos
do negro genial, ha idéa e perfeita concatenação. Elle
não se perde na cadência da rima, nem na sonoridade a’o-

A
220
cabular, guardando o equilíbrio dentro duma inspiração
e uma doçura singularmente límpidas e hamoniosas.
Si Cruz e Souza segue a maneira de Baudelaire, na
composição dos seus versos, Alphonsus de Guimaraens
lembra Verlaine. Do poeta francez, tem mysticismo de
peccador inconsciente, fraco á exacerbação dos sentidos.
As suas recordações de amor, elle as expressa por esta
fórma encantadora:

— O amor tem vozes mysteriosas


No coração implume...
— Como são cheirosas as primeiras rosas,
E os primeiros beijos como têm perfume!

— O amor tem prantos de abandono


No coração que m orre. . .
— As folhas tombam quando vem o Outomno,
E ninguém as soccorre!

— O amor tem noites, noites inteiras.


De agonias e de lethargos. . .
— Que tristeza têm as rosas derradeiras,
E os últimos beijos com são amargos!

Ha uma indefinivel melancolia em tudo o que elle


canta, uma inexprimivel angustia domina tudo quanto
escreve. Os seus sonetos de amor são dos mais bellos da
lingua:

Hão de chorar por ella os cinamomos.


Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjaes hão de cahir os pomos,
Lembrando-se daquella que os colhia.

As estrellas dirão: — A i ! nada somos,


Pois ella se morreu, fulgente e f r i a . .,
E pondo nella os olhos como pômos.
Hão de chorar á imã que lhes sorria.
221
A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, ha de envolve-Ia
Entre lirios e pétalas de rosa.

Os meus sonhos de amor serão defuntos...


E os ai'chanjos dirão no azul, ao vêl-a.
Pensando em mim: — Porque não vieram juntos?

Alma simples, Alphonsus amava a sua cidadesinha


de hábitos proviiiciano.s, com as suas torres, as ruas es­
treitas, a monotonia da vida que perpassa vagarosa, man­
sa e imperceptivel. A religião dos seus versos tem a poe­
sia das creanças que não se limitam ás ameaças e ás pu­
nições. Era a religião do céo e das cousas nobres e bel-
las, dos templos anitigos e das procissões, festejos da se­
mana santa, crystallisação da fé puríssima.
Nestor Victor foi o critico da época e o commenta-
dor da obra dos symbolistas e dos chamados decadentes.
A sua crítica é mais de intelligencia o intuição do que
de methodo e analyse. Faltava-lhe muito pa)’a ser um
critico verdadeiro, situando os autores no tempo e fi-
Uando-lhes o pensamento aos movimentos sociaes. Se­
ria difficil, porem, apreciar a obra dos autores da sua
phase sem soccorrer-se das suas observações.
B. Lopes, quando abandonou a phantasia arbitraria
que 0 fazia figurar pompas aristocráticas e artificiacs,
deu-nos quadros simples e eiopontaneos, cheios de encan­
tadora frescura. Os seus chromos semelham pequenos
vitraes voltados contra o sol: atravez delles a realidade
nos apparece multicolorida. Infelizmcnte, elle preferiu,
0 foi menos popular nesse sentido, fazer uma poesia cheia
de filigi’anas, destituida de vibração. Os seus versos
que espelham os quadros da natureza, ficaram, enti-etan-
to, e denunciam um genio poético de indiscutível mere­
cimento.
Mario Pedemeii-as, que ficaria melhor enti-e os ro­
mânticos, foi 0 poeta da cidade, cujas particularidades
pintou com uma ternura de enamorado. O Rio de Ja­
neiro que apparece nos seus versos guarda aãnda uns
222
aspectos provincianos, villa de illuminação escassa, cheia
de jardins gradeados, luminosa e oniamentada como
para uma festa eterna. Mario Pederneiras votava deci­
dido horror ao artificio, e a sua poesia não Item, muitas
vezes, côr e movimento, é quasi monotona e fria, porque
elle preferia despretenção ao omato, achando, por certo,
que a cidade, na sua natureza, no seu ambiente ensolara­
do, no colorido das suas tardes de verão, no bulicio das
suas ruas, é de tal modo plethorica e excessiva que os
seus versos a espelhariam como ura retrato retocado es­
pelha esplendente realidade.
Gonzaga Duque, a quem a palavra estheta assentava
com justeza, foi o prosador do grupo. A sua Mocidade
Morta é ainda um livro do agrado de muita gente. As
suas criticas de arte são das melhores que tivemos, reve­
lando um temperamento para o ,^ual o movimento artis-
itico tinha realce e vida. A sua prosa cheia de curvas,
colorida e por vezes artificial, exige uma leitura lenta,
dessas leituras que a gente não tem mais tempo de fa ­
zer, só possivel no recinto das penitenciarias, ou nos tem­
pos quietos de collegios internos, quando a acceleração
da vida era muito relativa.
Emilio de Menezes, um fino parnasiano, trabalhan­
do o verso como uma joia de preço, teve lampejos de
talento, fulgurações invulgares que malbaratou na sua
mania satyrica, na irreverencia que foi moda e chegou
a ser epidemia. Emilio era inimitável, grande e unico
n.as nossas letras, só comprehensivel situado no meio em
que viveu, o velho Rio. Quando este se remoçou e ex­
pandiu na perspectiva das largas avenidas, perdeu o en­
canto que a bohemia adorava, o perfume provinciano que
a fazia mais suave e mais doce. Emilio fo i toda uma época
e não é crivei que alguém lhe pudesse continuar a tra­
dição de mordacidade, e muito menos a maneira parna-
seana de trabalhar o verso.
Um que ficou preso ao scientifismo que nos che­
gou atravez duns livros que Portugal nos mandava, pre­
so ao transfonnismo e ao monismo, apegado ás côres turvas
com que os sábios querem carregar, muita vez, a physio-
223
nomia da sciencia, foi esse grande e poderoso talento:
Augusto dos Anjos. Que versos nos teria dado esse poe­
ta si tivesse despido a sua composição do tom negro e
presago! Ha nos versos de Augusíto uma cadência es­
tranha, rythmo cavo e macabro. Nas .suas imagens, mes­
mo naiquellas em que a expressão é mais pejada do defei­
to que apontamos, o subjectivismo tenebroso se casa á
realidade. O que perturba nesse bardo triate de todas as
tristezas, é a ansia demoníaca de juntar á poesia, confun­
dindo-a como a sua dôr, a imaginação atormentada dos
que se debruçam sobre um mundo de retortas e geome-
trisam a vida, retraçando-a segundo os cálculos preci­
sos e mathematicos dos analystas de laboraltorio. E’ de
Augusto dos Anjos esta pequena obra prima, O Lamento
das cousas:
Triste, a escutar, pancada por pancada,
A successividade dos segundos.
Ouço, em sons subteiTaneos, do Orbe oriundos,
O chôro da energia abandonada!
E’ a dor da Força desaproveitada
— O cantochão dos dynamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
.Fazem ainda na estatica do Nada!
E ’ 0 soluço da fôrma ainda imprecisa,
Da transcendência que se não realiza,
Da luz que não chegou a ser lam pejo...
E ’, em summa, o sub-consciente ai formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!
Neste soneto está todo o Augusto dos Anjos, A dor
foi o seu signo máximo e por ella compoz algumas estro-
phps cheias de uma estranha belleza.
Vejamos:
Melancolia! Estende-me a tua asa!
E’s a ai*voi'e em que devo reclinar-me. . .
Se algum dia o prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que eu fugi de casa!
F 224
Na tontura da sua carne enfenna, elle podia ter se
atirado a um mysticismo consolador. E ’ esse o caminho
commum dos soffredores e não seria de admirar que o
seu espirito tão lúcido o trilhasse; mas preferiu abro-
quelar-se no maiterialismo, na crença das cousas humanas.
Augusto fez do seu drama intimo um motivo de força e
harmonia e construiu uma obra excepcional na nossa lín­
gua, pela cadência estranha dos seus versos, lãqueza da
imaginação e sobretudo a fonte em que se inspirou, não a
abandonando senão de raro em raro, para compôr estro-
phes como as deste Cântico de Agonia:

Agonia de amar, agonia bendita!


Mixto de infinda magua e de crença in fin ita ...
Nos desei*tos da vida 'uma estrella fulgura!
E o viageiro do amor, vendo-a, triste, murmura:
“ Que eu nunca chore assim! que eu nunca
Ohoi’e como chorei hontem, a sós, num voluptuoso
[assomo,
Numa pi'ece de amor, numa delicia infinda...
Delicia que ainda góso, pi'ece que ainda
Entre saudades réso, enrtre sorrisos e entre
Maguas soluço até que esta dôr se concentre
No âmago do meu peito e de minha saudade.
Amor, escuridão e etem a claridade...
Calor que hoje me alenta e que ha de matar-me
[em breve.
Frio que me assassina! Amor é frio e neve.
Neve que me embalou como um berço divino.
Neve da minha dor. neve do meu destino.
E eu aqui a chorar nesta noite tão fria !
Agonia! Agonia! Agonia! A g o n ia !...”
Diz e morre-lhe a voz, e, cançado e moiTendo,
O viageiro vai, vê a luz e vendo
Uma sombra que passa, uma nuvem que coi*re.
Caminha, vai, e louco abraça a sombi’a e morre!
E a alma se dilue na amplidão infinita.
Agonia de amar, agonia bendita!
C APITU LO X X V
co(\ íi - i^ jSid
communhão com a terra — Áffonso
Arinos — Coelho Netto — Euclydes de
Cunha — Giuca Aranha — Chanaan.

Um novo sentido é dado á prosa brasileira, mais de


accôrdo com a mentalidade do tempo. Enquanto os es­
tudos philosophico.s tomam o carecter de explicação dos
movimentos da sociedade, nos seus impulsos e aspirações
nas suas mudanças e inquietudes, o espirito dos escripto-
tores sensivel a essas variações, tende a abandonar o talen­
to descriptivo e buscar uma explicação da vida do homem e
da sua subordinação ao meio ambiente. Si os românti­
cos mai-caram a autonomia do pensamento brasileiro que,
com elles, começa a interessar-se pela terra, — ficaram,
comtudo, como pintores e paysagpstas bosquejando qua­
dros mortos. As suas descripções nos indicam uma “ po­
se’’ da natureza. Estão para os modernos prosadores
como a lanterna estatica, precursora do cinema, pava a
maravilha dos filmes contemporâneos, que nos apresen­
tam 0 movimento, a voz e a côr. Alencar e os companhei­
ros, Taunay mesmo, que deixou um livro definitivo, dé-
ram-nos apenas uma subvei^são para o tempo. Já era
muito. Ei'a tudo.
Os que agora nol-a mostram na maturidade do pen­
samento brasileiro, não nos dão apenas uma “ pose” mas
instantâneos, apanhando a violência com que essa natu­
reza actúa sobre o homem. E nes.se quadro gigantesco,
procurariam situar o elemento humano.
Affonso Arinos, nas narrativas sei’tanejas, apanha
os vultos pequenos e obscuros que fazem a vida do in-

226
tenor. Agita-os nas suas pequenas paixões, deante de
nós, tudo vasado numa prosa cheia ainda de resai-
bos românticos. Mas as personagens começam a agir
de accôrdo com o meio. A sua obra, onde ha uma poe­
sia profunda envolvendo-a toda, deve ser apontada como
Índice dos novos rumos, com um sentido novo.
Coelho Netto nos dá alguns quadros movimentados
da existência sertaneja. Narra, em flagrantes agitados
e soberbos de colorido, alguns aspectos da existência do
homem do interior. Netto se perde, mais tarde, num ver-
balismo sonoro e sem vida, artificial e divorciado da ter­
ra, mas a sua obra, na pahte que toca o sertão, pode ser
apontada como lun traço de communhão com a terra, não
na admiração ôca do seu panorama, não na estatica da
sua pintura, mas no dynamismo, na acção, no movimento,
no actuação sobre os homens, na gesta ^ o peipetua de
novos mundos.
Nos seus últimos tempos. Coelho Netto procura exi­
lar-se da realidade. O que eUe escreveu depois das suás
paginas sobre o seittão resente-se da falta de resistência
á acção do tempo. O desenvolvimento iperenne das rela­
ções humanas não perdoa aos que desejam, apenas, fazer
arte pela arte, fóra de motivos ligados aos impulsos per­
manentes da especie. Quem não estiver de accôrdo com
os padrões da existência, quem se não approximar das
manifestações sensiveis da realidade, quem quizer ser la-
vorista e cultor da fórma, no seu apuro artificial, — fi ­
cará relegado ao culto dos secundários e dos mortos. Foi
o grande erro em que incidiu o autor do Rei Negro, em
cuja obra, heterogenea e dispersiva, ha algumas paginas
cheias de calor e de vida.
Mas 0 grande animador da nosso paysagem, o pri­
meiro a pintar a tragédia do homem ante o mysterio da
natureza, é, indiscutivelmente, Euclydes da Cunha. Sen
sibilidade apuradissima, organisação nervosa vibratil e
unica, Euclydes estava em condições, mais do que qual­
quer outro, de vêr o que os outros não viam, gravar em
baixo-relevos colossaes a nossa gente do sertão, nos de-
senconltros da sua incultura, impellida a todos os desva-
227
rios, no fundo emotivo e apaixonado da nossa indole. Os
Sertões é um dos livros máximos das nossas letras por­
que soube apanhar, em instantâneos precisos e nitidos, os
impulsos do sertanejo apegado a cejtas directrizes prima­
rias, sugeito mais do que o habitante da cidade, ao passado,
na sua acção perdmnvel e immensa, arbitraria e confusa, so­
bre uma mentalidade que guarda ainda as linhas bem
vincadas dos organismos que evoluem muito lentamen
te.
O estylo de Euclydes estava em condições de sur-
prehender e fixar a realidade. As suas curvas, as ima­
gens sumptuosas, o 'tom violento, por vezes a paixão com
que se apresenta, não são mais do que o reflexo da i’ea-
lidade, na grandeza barbara dos seus entrechoques. A l­
gumas das suas narrações, como a do Judas, que desce rio
abaixo sob o vituperio das populações ribeirinhas, cons­
tituem paginas eternas na nossa literatura. Euclydes
possuia, ao contrario de quasi todos os nossos homens de
letras, um lastra cultural sufficiente para apoiar aquillo
que traduzia em linguagem comimim e que lhe vinha atra-
vez duma sensibilidade torturadissima, dando-lhe a visão
segura dos aconitecimentos, a obseivação sagaz e minu
ciosa do ambiente. Os impulsos da alma sertaneja en­
contraram nelle um historiador sem igual. Porque a sua
obra tem muito de histórica, no bom sentido, isto é, da
continuidade, indicando as fontes, mostrando motivos,
esmerilhado origens, sem nunca exftrahir os quadros ape­
nas duma creação meramente esthetica. Si belleza ha no
que elle nan-ou, vem da tragédia da realidade, da violên­
cia mesma dos instinctos humanos, presos a sentimentos
enraizados, apegados a uma influencia ambiente que os mo­
dela e a uma deficiência de recursos que selecciona e dila­
cera.
O apparecimento de um livro como O.s Sertões e de
algumas paginas camo as de A ’ Margem da Historia, não
deixa de ter sido um phenomeno curioso no nosso meio
literário, árido em manifestações dessa naturaza, mais pre­
so aos efíeitos inunediatos, o que tanto valería dizer, ao
exito facil. O methodo e a clareza de raciocinio, que trans-
228
parecem no que elle escreveu, terá a sua origem, talvez,
no fundo da mentalidade nutrida pelas mathematicas que
disciplinam o pensamento e assentam directrizes. A cla­
reza de alguns dos seus períodos lembra a rigidez geomé­
trica. O jogo das impressões tem, bem antes dos moder­
nos, certa semelhança com a technica dos volumes.
O contacto bruto entre a teiTa e o homem apparece
tão claro na sua obra, que elle não teve duvidas em dei-
xaJ-o transparecer até no ditulo dos capitulos. Esse con­
tacto, que um analysta menos fiel tería pintado como con­
duzindo a um amesquinhamento do homem, elle nos apre­
senta situando devidamente o elemento humano. A obra
de Euolydes da Cunha fixa um momento da nossa evolu­
ção Idteraida: a volta á teiTa, para estudal-a e inteipretal-a
— para explical-a, em summa.
Graça Aranha .talvez estivesse, mais do que nenhum
outro, em condições de escrever o romance da ten“a. A
sua evolução não padecera crises. Fôra desde logo liber­
tado do “ teiTor cosmico” . Sentia a veracidade das esco­
las novas. Orientara-se para um materialismo de que se
não libertou nunca, realizando a integi-ação no cosmos,
como parte infinitesimal do todo. Comprehendeu, desde
cêdo, a luta da existência e os pequenos dramas de um
continente que vae buscar o elemento humano em outras
terras, para ajudar a construir uma civilisação nova, fun­
dindo esse elemento na nacionalidade, absoi^vendo-o com
uma singular capacidade de incorporar os typos mais op-
postos, centamente, uma das nossas dominantes caracte­
rísticas. Graça Ai^anha approveitou, melhor que os ou­
tros, a licção de Tobias Barretto. As palavras de Tobias
marcam o seu destino. Teve a felicidade de, ainda na in­
fância, sentir as inclinações profundas para o novo sen­
tido das cousas. Mais emotivo do que disciplinado, mais
vivo do que arguto, mais apto ás impressões do que á ana-
lyse, elle nos offerece, com Chanaan, um livro differente,
um livro que indica, melhor do que a obra de Euclydes, em­
bora lhe seja inferior, a nova phase da vida mental brasi­
leira. Era o tempo das migrações para a terra nova, da
ansia do trabalho e conflicto do pensamento alienigena
\

229
com o meio ameiúcano. O contacto das duas mentalida-
des, a de Milkau e a de Lentz, é apenas uma licção de rea­
lismo político.
Clianaan é um dos primeiros livros brasileiros, apezar
de certas demasias do seu estylo e certos desbordamentos
do seu raciocínio. E’ a primeira vez que apparece, em
nosso paiz, a ficção romantica calcada na realidade da
terra, fazendo a rterra ter um papel preponderante, fazen­
do-a activa e dynamica, commungando com o homem, na
força profunda que vem das suas entranhas mysteriosas,
— fonte eterna da vida.
Lima Barreto, o autor da “ Vida e morte de M. J. Gonza­
ga de Sá” foi um dos maiores romancistas desta terra, foi,
principalmente, um grande caiicaiturista, um pintor da vi­
da do Rio de Janeiro. Depois de Manoel Antonio de Almeida,
ninguém como aquelle escrevinhador desmazelado desci‘e-
veu a vida da grande cTdade, cõm os seus typos pittores-
cos e caractei-isticos, typos suburbanos na sua maioria.
Lima Barreto representou, na nossa vida literaria, o f i ­
lho desprezado, — o pária. De origem humilde, pobre
e desconhecido, olhando os homens e contemplando o espe­
ctáculo delicioso da vida quotidiana da cidade immensa,
ello não conhecería, jamais, a fama e a fortuna. Talvez
nem mesmo tenha sonhado com ellas. Escrevia por uma
necessidade intima, um vicio de nascença.
Poderia ter se vingado, nos seus romances, da ironia
da sua sorte. Poderia ser o B. Lopes da prosa e cercar os
seus pei^sonagens de luxo e luminárias. Pintou-os, en­
tretanto, no mesmo ambiente em que os conhecera, na
mediocridade das suas vidas, na tristeza das suas profis­
sões.
O seu nome, que assignou algumas paginas das mais
expresivas que a língua conhece, não seria pronunciado nas
sessões da Academia nem nas festas do espirito ás quaes ,
0 nosso temperamento se compraz em cercar de luxos ar-
tificiaes. Seria sempre o isolado, o desconhecido, o des­
prezado. Suburbano por indole e por temperamento A f-
fonso de Lima Bai-reto creou typos arrancadas ao vivo, á
230
multidão que o cercava, e misturou-os á sua existência
desordenada e mesquinha, Não teve amigos proeminen­
tes, não teve leitores numerosos, não teve imprensa que
0 louvasse. Na pobre igreja do elogio mutuo não lhe de­
ram guarida. Anítes, elle a não procuroiu preferindo, qui­
çá, a comipanhia dos seus confrades de vida miserável e
paupérrima, sem lôas e sem luxos. Quando morreu, se­
pultaram-no no cemiterio suburbano de Inhaúma, perto
do qual residira. Sua mor-te concordou com sua pobre
vida de retratista das ruas pobres, de creador de typos
vulgares.
Na sua obra haverá muito sarcasmo e muita ironia
amarga. Essa rispidez do traço traduziria, comtudo, a
própria realidade da comedia mais do que uma “ i-evanche”
contra a vida. Amava mais profundamente o prazer de
passar para o papel a mediania e, ás vezes, a vileza da
existência dos que o cercavam do que o gozo de alvejal-
os ou de os humilhar.
Lima Barreto foi, no fundo, um simples e um bom
a quem os seus livros quizeram deformar a physionomia.
Pobre diabo da literatura, mendigo das letras, pária da im­
prensa, elle guardai^ia, no seu espirito fundamente obser­
vador, apenas o amôr da creação, o gozo de roubar á vida
aquelles bonécos com que enfeitou a sua galeria humana,
0 prazer de rabiscar algumas paginas despretensiosas que
fixassem um momento, um quadro dá* existência na ci­
dade em que vivia e que amava.
A sociedade ^ on y n ia das letras nacionaes não o ac-
ceitoú^os que éscreveramj no sêu'tempõ',’ fingiram ignoral-
0 mas é precizo que se leiam os seus livros, ricos de obser­
vação e de ironia e de expressão pai’a que os brasileiros
saibam que este paiz já produziu um grande romancista.
Um pobre diabo de nome vulgar: Affonso de Lima Bar­
reto.
CAPITULO XXVI

Em busca da simplicidade — A curva e


a sombra em contraste com a recta e a luz
— Reacção moderna — A poesia e a prosa.

A brusca subversão mental produzida pela guerra, e


que repontou nos livros appar-ecidos depois do aimisticio,
teve como consequência a mutação esthetica onde, em ge­
ral, os incautos só enxergaram o aprimoramento da for­
ma, tomado no sentido de uma clareza maior na expressão.
A mutação, entretanto, não se faria sentir unicamente nos
valores estheticos; affecta outras manifestações da acti-
vidade humana, mas sempre de molde a transformar ou
modificar aquelles valores.
Das cinzas da guerra surge uma mentalidade nova.
Nem pode deixar de ser assim, desde que o confUcto se
caracterisou como a mais violenta das lutas econamdcas e
industriaes levadas a um alto grau de aperfeiçoamento.
O horror da carnificina fez que os homens que estiveram
nas trincheiras e sentiram a todo momento a visinhança da
morte, serntissem a precariedade de tudo o que não se re­
lacione directamente com a vida. A arte, no rebuscado
dos seus arabescos e na estatica das suas representações,
deixou de interessar. Surgiu um estylo mais vivo, mais
approximado da realidade. A curva especiosa foi substi­
tuída pela recta pura e simples. A s sombras, os entre-
tons, o jogo macio das côres, foi morrendo e desáppare-
cendo. Para substituir essa technica de gabinete surgiu
a nitidez geométrica das imagens, a clareza dos symbolos
vivos.
f
232
Os grandes autores de antes da gueiTa os quaes,
mercê do atrazo com que chegam aos povos da America,
ahi pennauecem longaímente dominando e influindo, depois
do am isticio se tomaram secundários nos seus paizes de
origem. Anatole France, cuja obra se caracterisa por um
appelo constante á inteiligencia, é posto á margem, substi-
tuido pelos que procuram a impressão mais forte, a rea­
lidade pura, não no sentido de mostrar só os aspectos su­
jos da existência, por muita gente confundidos com realis­
mo, mas graças á luz directa que projectam nas cousas,
apresentação sêcca dos argumentos e das situações, cla­
reza geométrica das linhas e vigor descriptivo, não mais
dos ambientes, mas da immensa tragédia humana, só inte­
ressando o homem e nada mais.
Póde-se dizer que essa nova esthetica se caracterisa
pela reconciliação com a vida em todos os seus contornos,
em todos os seus tremendos contrastes. Os grandes pro­
blemas humanos passam para o primeiro plano. O roman­
ce, que era, commumente, o jogo de duas ou tres persona­
gens, foi mudado para um concerto de múltiplas vozes,
em que a multidão desempenha papel primordial. Sur­
gem nas suas paginas elementos desconhecidas e, para os
antigos quasi indignos de serem postos em romance, de
servirem como cabedal para a ficção. Entre esta e a
realidade, aliás, não ficou mais do que um traço, uma li­
nha muito tenue. A vida apossou-se, violentamente, brus­
camente, da arte literaria, taansfundiu-se nella. Vida no
que se póde representar como synthese de todos os movi­
mentos e anseios, não de um homeín, não de um ser, mas
de todos os seres .assistentes e comparsas de um drama col-
lossal em que todos têm o direito á palavra, não como uni­
dades, mas como collectividades.
Ora, essa mudança, resultante do contacto directo com
o trágico e o positivo, na luta fremente das trincheiras,
chegou-nos com algum trazo e importou numa subversão
completa do modo de escrever dos nossos homens de le­
tras, caracterisou-se por uma revolução na fó m a dos es-
criptores.
233
0 que houve de particular e peculiar, no Brasil, foi
^ es-pectaculo ter sido emprezado por alguns cm detrimen­
to da maioria; o movimento moderno se constituiu em
monopolio de poucos, que levantaram uma bandeira de
guerra, como si houvesse inimigos a extem inar. Não
havia. Os antigos, que não queriam renovar-se, estavam
mortos. Mais do que mortos, embalsamados. Viviam a
existência precaria e relativa dos que, tendo o cerebro no
século X X têm o espirito no século XIX .
A reacção moderna appareceu, co|mo nã.o\ podia dei­
xar de ser, primeiramente na poesia. I^ iz de poetas, mais
aptos a manifestar no verso do que na prosa as suas im­
pressões e os seus sentimentos, assistimos ao desenrolar
duma batalha em que não houve mortos nem feridos, mas
nmiita vaidadesinha espevitada: a semana modernista.
Havia talento e mediocridade, tudo de mistura. Havia
poetas e poetas. O tempo foi filtrando, filtrando, e ficou
0 que merecia ficar, aquillo que, com modernismo ou sem
modernismo, subsistiria, iwrque tem substancia e intel-
ligencia. Ficou Cassiano Ricardo. E ficaram alguns
mais, estes egressos de outras escolas, aquelles já nasci­
dos modeimistas. Na poesia appareceram como moder­
nistas os antigos fazedores de sonetos Ronald de Car\alho
e Guilherme de Almeida. IiTomperam libertos já da
rima e da métrica Oswald de Andrade, Jorge de Lima,
Carlos Dnimmond de Andrade. Ha em alguns versos de
Joige de Lima, como nos de Ascenso Ferreira, como nos
de Raul Bopp, um sentido de novidade absoluta. Tasso
d a Silveira, Augusto Meyer, Murillo Araújo, Murillo
Mendes, e meia centena de outros, — pois este é mesmo
um paiz de poetas, fôram figuras de destaque, fazendo
poesia saborosa, bôa poesia.
Muita gente de talento, e de muito talento, não adhe-
riu. Hermes Fontes continuou a ser um grande poeta,
um bellissimo poeta. Olegario Mariano peimaneceu on­
de estava e continuou dono de alguns versos cheios de pu­
ro encanto. Moacyr de Almeida representou de Castro
Alves. Brilhou e desappareceu muito rapidamente.
Belmiro Braga creou uma maneira muito pessoal de ver-
234
sejar e firmou uma personalidade. Havia logar para
todoe.
Raul de Leoni escreveu um livro de singular niere-
cimento. Ha na Luz Mediterrânea lampejos maravilho­
sos, versos da mais augusta belleza, mostrando que o
' talento, quando existe, sobrepuja escolas e novidades de
expressão.
O impulso do movimento moderno, porem, está lou-
ge de ter sido uma agitação esteril; .propagou-se e pres­
tou serviços inestimáveis. Varreu a athmosfera ILteraria
do Brasil. Trouxe muita cousa. ruim, muita cousa des-
valiosa, que melhor fora não ter apparecido, mas quando
0 tempo poliu as arestas, os annos déram contornos ao
que fora impeto, desorientação ou mystificação, o que
permaneceu e ahi está palpitante de vida, é bom e forte.
CAPITULO XXVII
O romance e o conto — A critica e a
satyra — Os estudos históricos e sociaes —
Cultura modelada pelo cyclo da canna de
assucar e cultura modelada pelo cyclo do
café — José Américo de Almeida — José
Lins do Rego — Graciliano Ramos — Jorge
Amado — Plinio Salgado.

Nada caracterisa melhor os tempos que coiTem do


que o gosto, cada vez mais diffundido e generalisado, pe­
los estudos sociaes e históricos. Esses estudos que, com
o passar dos annos, vão assentando em bases mais solidas,
numa visão realista dos problemas humanos, tiveram, no
nosso pais, de alguns annos a esta parte, um desenvol­
vimento muito grande. Elles se enquadram naquelle es­
pirito realista ante a visão da terra, que tivemos ensejo
de resaltar quando frisamos o contraste da phase que
chamaremos de conformação com o meio e a phase ro­
mântica, quasi que puramente descriptiva.
Os grandes problemas do paiz têm encontrado, da
parle de alguns homens cultos e que amam reduzir á es­
cala positiva os conhecimentos adquiridos no extrangei-
ro, uma comprehensão e uma analyse nitida e segura.
Ha rumos traçados como consequência 'do debate amplo
desses problemas. Alguns entraram em equação. Ou­
tros estão ainda na nebulosa das discussões. Mas sen­
te-se que ha vida e agitação. E’ principalmente, que a
terra brasileira, nas suas peculiaridades, symptomas pró­
prios da existência de um povo, começa a revestir-se de
236

um interesse novo para os seus filhos. Que se pensa em


brasileiro e que se escreve uma lingua cada vez mais di­
vorciada da velha lingua portugueza para aqui trans­
plantada.
Os estudos sociaes e politicos que constituem to­
da a obra de Oliveira Vianna, firmam-se como mais soli-
dos que possuimos. A sua reconstituição do nosso desen­
volvimento historico, guai'da uma linha severa de realis­
mo; é, sem duvida, o fruto de uma pesquiza conscienci­
osa. A contribuição jomalistica e os poucos livros de
Azevedo Amaral representam um cabedal de analyse do
mais alto valor. O livro de José Maria dos Santos sobre
um dos periodos da vida nacional, embora escripto para
defender um ponto de vista, revelou o pulso de um vigoro- j,
commentador e narrador. A obra histórica de Manoel Bom-
fim, conquanto unilateral e falha em alguns pontos, repre­
senta esforço digno de apreço na reconstituição do nosso de­
senvolvimento como paiz. A synthese de Ronald de Carva­
lho sobre a nossa historia literaria fez-se livro indispen­
sável e lúcido, escripto com maestria, e segurança. Re­
nato de Almeida restaurou a~Historia da nossa musica.
Roquettc Pinto deu novos rumos ás pesquizas anthropo-
logicas brasileii'as e reduziu muitos erros e falhas. Con­
tinuando a obra de Nina Rodrigues, Arthur Ramos deu
notável impulso aos estudos de psychologia social, fir ­
mando normas para as investigações a respeito do ele­
mento africano. Gilberto Freyre estabeleceu novos pa­
drões para a reconstituição histórica, subvertendo os mol­
des antigos. Paulo Prado e Alcantara Machado escre­
veram livros valiosos sobre a gente paulistana. Gilber-
berto Amado analysou com subtileza alguns aspectos po­
liticos e literários da nacionalidade. Alberto Rangel
deu-nos algumas contribuições históricas de mérito in­
discutível.
A critica teve o seu maior representante na pessoa
de Tristão de Athayde. O movimento literário brasilei­
ro estava a exigir, quer pelo volume, quer pela qualida­
de, um analysta fino e culto, um situador de persona-
237
gens. Os estudos do autor de Politica são dos mais lú­
cidos do tempo.
Monteiro Lobato nos dá uma série de contos dos me­
lhores que ha na lingua e dos mais caracterisadamente
brasileiros. Raymundo Moraes e Peregrino Junior nos
revelam o mundo amazonico. Afranio Peixoto, abordan­
do innumeros sectores da actividade intellectual, conse­
gue ser um romancista vigoroso. Agrippino Grieco ap-
parece como personalidade verdadeiramente unica na his­
toria das nossas 'letras, dotado de grandes conhecimentos
literários, maior, enti’etanto, como ironista e satyrico do
que como critico. Humberto de Campos deixa-nos um
depoimento pessoal oheio de calor, vasada num estylo
claro, másculo e insinuante.
A força do tempo apresenta, no Brasil, um dos con­
trastes mais desconcei'tantes. Enquanto, em S. PauJo, se
desenvolve um padrão de vida superior, graças á organi-
sação industrial adeantada e ao accumulo de riqueza con­
sequente, no norte do paiz é que apparecem os grandes
romancistas, revelando o conliecimento das cousas hu­
manas, trazendo-as para as paginas dos seus livros, fo-
calisando os aspectos duma civilisação que atravessou
os séculos. E ’ extranho para muita gente que assim seja.
Segundo a lógica dos acontecimentos, de São Paulo devia
irradiar o núcleo literário principal, situando-se ahi o
grupo de romancistas de maior mérito. Enquanto o nor­
te offerece um José Américo de Almeida, um José Lins
do Rego, um Jorge Amado, um Graciliano Ramos, um
Armando Fontes, uma Rachel de Queiroz, a contar a tra­
gédia da secca, o drama da miséria das populações inte­
riores, S. Paulo só nos offerece o conjunto de romances
de Plinio Salgado, dotados de uma grande força narrati­
va e pintando, em grandes traços, a oscillação do conglo­
merado humano que luta nesse meio prodigioso.
Vejamos a explicação. A lavoura da canna de assu-
car formou uma mentalidade, porque conta séculos de
existência. E ’ fixa. Tem um passado e uma longa tra­
dição que se sedimentou. Está em condições de produ­
zir, na sensibilidade dos filhos da terra onde se estende.
238
uma imipressão duradoura. A sua physionomia estável
projectou-se no tempo. A lavoura do café não tem mui­
tas décadas. Estende-se por poucos annos numa mesma
região. Desbrava, suga o sólo e segue adeante. E’ uma
cultura de movimento, de transplantação. Não poude
ainda dar physionomia a uma sociedade. Os cafezaes
caminham, caminham. Enquanto, no noxte, ha uma ci-
vilisação da cana de assucar, uma hierarchia social fun­
dada nessa lavoura, séculos de tradição que o engenho
iniciou e a usina vae continuando, no centro-sul, atravez
dos cafezaes infinitos, não se firmou ainda uma caracte­
rística social duradoura. Não_ ha uma civilisação do
café. -
r.
C O ^ ;v »' ^ { n,-, f '■ I ^ t.

■‘ u . ^
ín d ic e d a m a t é r i a
r ■ h '

*.^* V- - ^ ^

s* .*
CAPITULO I
Panomma da Europa dos fins do século X V —
Unificação do poder real — Surto das invenções: a
imprensa — A Reforma — As republicas italianas
— Commercio com o oriente.

CAPITULO II

Portugal — Resumo da sua fom ação histórica


— Características do feudalismo poi*tuguez — A
luta contra o seiTaceno — Nalcionalismo precoce
— Expansão geogi^aphica — Seus motivos e seus
rumos — Portugal na época do descobrimento do
Brasil.

CAPITULO III

A imprensa em Portugal quinhentista — A uni­


versidade — A inquisição — A lingua — Gil Vicen­
te e Sá de Mii*anda — Medievalismo e humanismo
— De Bernadin Ribeiro a Damião de Góes — Camões.

CAPITULO IV

Brasil — A terra — Expansão colonisadora no


littoral — O indigena — Seus usos e costumes — Ca­
racter da civilisação do primitivo habitante do Bra­
sil — O jesuita — Primeiros focos da expansão li­
near — A feitoria.
r
242
C APITU LO V
• »
Desenvolvimento da lavoura 'da canna de assu-
car — Expansão do gado — Penetração pelo S. Fran­
cisco — Apparecimento do negro — O trafico — P^a-
ça — Influencias novas sobre a lingiia trazidas de
Portugal — Anchieta, o piúmeiro escriptor — Ben­
to Teixeira Pinto — Portugueses que escreveram so­
bre cousas do Brasil.

C APITU LO VI

Continuação da expansão geographica — Aug-


mento da população negra — Penetração para o sul-
Extrangeiros na costa bi’asileira — Invasão hollan-
deza — Mauricio de Nassau — Dominio hollandez
na zona assucareira — Commercio livre dos hollande-
zes — As bandeiras — Os cyclos da phase bandei­
rante.

C APITU LO V II

Sentimento nativista — Formação dum meio


brasileiro — Frei Vicen'te do Salvador — Gregorio
de Mattos.

CAPITU LO V III

Expansão em profundidade — Cyclo bandeiran­


te do ouro de mina — Esplendor da mineração —
Deslocamento do eixo do paiz para a região centro-
sul — Consequências da mineração, no Brasil — Con­
sequências em Portugal — Consequências na Euro­
pa — As Academias literárias — Rocha Pitta — Ita-
parica — Antonio José — Antonil,
243
CAPITULO IX
Pliase aurea da mineração, seu apogeu — Poe­
tas da escola mineira — Forma-se um núcleo lite­
rário nas Minas Geraes — De José Basilio da Ga­
ma a Silva Alvarenga.

CAPITULO X

Phase de transição — Mathias Ayres — a poe­


sia sagrada — A eloquência do púlpito — A oratoria
politica.

CAPITULO X I
I
Vinda da corte portugueza para o Brasil — Sur­
to economico — Abertura dos portos — Novos facto-
res na economia do paiz — Alternativas polilicas
— D. João V I — Imprensa, emfim!

CAPITULO X II

Prosadores — Poetas — Políticos — Revolucio­


nários — Oradores — Jornalistas — José Bonifácio
— MonfAIverne — Souza Caldas — Bemardo Perei-
reira de Vasconcellos — Frei Caneca — Evaristo da
Veiga — Hyppolito José da Costa — Cayrú — Ma­
ricá.
\
CAPITULO x m
Romantismo — Panorama europeu quando do seu
appai^ecimento — Suas origens e seus fundamentos
— O romantismo no Brasil — Gonçalves de Maga­
lhães.

CAPITULO X IV
Em pleno romantismo e em plena autonomia —
Porto Alegre — Gonçalves Dias — Prosa — Teixei-
Í44
i"» e Souza — Joaquim Norberto — A histoi’ia e a
chronica — João Francisco Lisboa — Pereira da
Silva — Vamhagen — Sotero dos Reis — Fernan­
des Pinheiro — Francisco Octaviano — José Boni­
fácio, 0 Moço — Vultos menores.

CAPITULO XV

Theatro — Martins Penna — Romance — Ma-


cedo — Beniai-do Guimarães — Alencar — Manoel
Antonio de Almeida.

C APITU LO X V I
Religiosos e politicos — D. Antonio de Macedo
Costa — Oui’0 Preto e Couto de Magalhães — O
romance de Franklin Tavora e de Taunay — Inno-
cencia — A ipoesia dos vinte annos — Influencia eu-
ropéa — Alvares de Azevedo — Junqueira Freire —
Laurindo Rabello — Casimiro de Abi'eu — Varella.

CAPITULO X V II

Eswavidão — Seu papel na formação da socie­


dade brasileira — Libertação dos escravos — Seus
motivos e suas razões — Marcha da idéia abolicio­
nista — Seus defensores — Castro Alves e a poesia
dos escravos.

CAPITULO XVTII

Surto scientifico europeu — Dai^win e o trans-


formismo — Influencia das novas idéias no Brasil
— Tobias Barreto.

CAPITULO X IX

O naturalismo — Aluizio Azevedo — A historia


e a critica — José Verissimo — Sylvio Romero —
Araripe Junior.
245
CAPITULO XX
Panorama do fim do império — Pedro II — O
parlamentarismo no Brasil — Joaquim Nabuco —
Centralisação e federação.

C APITU LO XXI

Tnansformação na poesia — Luiz Guimarães •—


Theophino Dias — Os parnasianos — Alberto de Oli­
veira — Luiz Murat — Olavo Bilac — Raymundo
CoiTeia — Angusto de Lima.

CAPITU LO X X II

O romance liberta-se da terra — As obras subje­


ctivas — Machado de Assis — Raul Pompeia.

CAPITU LO x x in

A historia — Capistrano de Abreu — Eduardo


Prado — Oliveira Lima — João Ribeiro — O conto
e-o theatro — Lucio de Mendonça — Arthur Azeve­
do — França Junior.

C APITU LO X X IV

Reacção espiritualista na poesia — Cruz e Sou­


za — B. Lopes — Alphonsus de Guimaraens — Ma­
rio Pederneiras — Êmilio de Menezes — Nestor
Victor — A prosa de Gonzaga Duque — Augusto
dos Anjos.

C APITU LO XXV

A communhão com a teiTa — Affonso Arinos


— Coelho Netto — Euclydes da Cunha — Graça
Aranha — Chanaan — Lima Barreto.
A
/
246
CAPITULO XXVI

Em busca da simplicidade — A curva e a som­


bra em contraste com a recta e a luz — Reacção mo-
deiTia — A poesia e a prosa.

CAPITULO X X V II

O romance e o conto — A critica e a satyi‘a —


Os estudos históricos e sociaes — Cultura modelada
pelo cyclo da canna de assucar e cultura modelada
pelo cyclo do café — José Américo de Almeida —
José Lins do Rego — Graciliano Ramos — Jorge
Amado — Plinio Salgado.

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