Este documento discute a história da democracia nos Estados Unidos e na Europa, argumentando que na verdade eram "democracias para o povo dos senhores", ou seja, democracias que valiam apenas para a raça dominante e não incluíam escravos, povos indígenas ou colonizados. Também sugere que este regime pode facilmente se transformar em ditadura e discute como influenciou o desenvolvimento do nazismo e do Estado racial.
Descrição original:
Andrew Jackson era o presidente do Estados Unidos no momento em que
Tocqueville fez a viagem que levou à publicação da "Democracia na
América". É verdade que este presidente liquida em grande parte a
discriminação censitária [1] dos direitos políticos. Mas, paralelamente,
encontramo-nos com um proprietário de escravos que, igualmente, ordena
a deportação dos Peles Vermelhas (os cherokees). Foram homens,
mulheres, velhos, crianças: um quarto morreu durante a viagem.
Deveríamos considerar que Jackson é um democrata? Os autores da
Declaração da Independência e da Constituição de 1787 são igualmente
proprietários de escravos, logo, durante trinta e dois dos primeiros trinta
e seis anos de existência dos Estados Unidos, a função de presidente é
ocupada por proprietários de escravos, muitas vezes implicados na
expropriação e deportação dos Peles Vermelhas.
Título original
LOSURDO, Domenico. A Democracia Para o Povo Dos Senhores, No Passado e No Presente
Este documento discute a história da democracia nos Estados Unidos e na Europa, argumentando que na verdade eram "democracias para o povo dos senhores", ou seja, democracias que valiam apenas para a raça dominante e não incluíam escravos, povos indígenas ou colonizados. Também sugere que este regime pode facilmente se transformar em ditadura e discute como influenciou o desenvolvimento do nazismo e do Estado racial.
Este documento discute a história da democracia nos Estados Unidos e na Europa, argumentando que na verdade eram "democracias para o povo dos senhores", ou seja, democracias que valiam apenas para a raça dominante e não incluíam escravos, povos indígenas ou colonizados. Também sugere que este regime pode facilmente se transformar em ditadura e discute como influenciou o desenvolvimento do nazismo e do Estado racial.
Mas esta pode facilmente transformar-se numa ditadura para os deste povo por Domenico Losurdo [*]
Andrew Jackson era o presidente do Estados Unidos no momento em que
Tocqueville fez a viagem que levou publicao da "Democracia na Amrica". verdade que este presidente liquida em grande parte a discriminao censitria [1] dos direitos polticos. Mas, paralelamente, encontramo-nos com um proprietrio de escravos que, igualmente, ordena a deportao dos Peles Vermelhas (os cherokees). Foram homens, mulheres, velhos, crianas: um quarto morreu durante a viagem. Deveramos considerar que Jackson um democrata? Os autores da Declarao da Independncia e da Constituio de 1787 so igualmente proprietrios de escravos, logo, durante trinta e dois dos primeiros trinta e seis anos de existncia dos Estados Unidos, a funo de presidente ocupada por proprietrios de escravos, muitas vezes implicados na expropriao e deportao dos Peles Vermelhas.
Os Estados Unidos daquela poca eram uma democracia?
Em geral, afastam-se estas questes atravs do recurso a um historicismo
vulgar: as sociedades liberais teriam herdado prticas e relaes sociais universalmente difundidas. Mas os factos so inteiramente diferentes. Tocqueville publica o primeiro livro da "Democracia na Amrica" em 1835. Nesta data, a escravido havia desaparecido em grande parte do continente. Na esteira da Revoluo Francesa, a revoluo dos escravos negros em So Domingos d o impulso do processo de emancipao. Depois a revoluo da Amrica Latina explode a dominao espanhola: ela tambm se conclui com a abolio da escravatura. A revoluo dos colonos ingleses que conduziu fundao dos Estados Unidos a nica do continente americano a manter e mesmo reforar e estender a instituio da escravatura: depois de ter arrancado o Texas ao Mxico, a repblica norte-americana ali reintroduz a escravatura anteriormente abolida. Mais uma vez coloca-se a questo: os Estados Unidos daquela poca eram uma democracia? mais
adequado falar de Herrenvolk democracy, ou seja, de democracia que vale
somente para o "povo dos senhores". Quando este regime acabou nos Estados Unidos? Com o fim da Guerra de Secesso e a abolio da escravatura que se seguiu? Na realidade, um dos captulos mais trgicos da histria dos afro-americanos foi escrito entre o fim do sculo XIX e princpios do sculo XX. O linchamento era um horrvel espectculo de massa. Quero citar aqui um historiador americano:
"As notcias de linchamento eram publicadas nas folhas locais e vages
suplementares eram acrescentados aos comboios para [transportar] os espectadores, por vez milhares, vindos de localidades situadas a quilmetros de distncia. Para assistir ao linchamento, as crianas das escolas podiam ter um dia de liberdade. O espectculo podia incluir a castrao, o esfolamento, a assadura, o enforcamento, os tiros. As recordaes para os compradores podiam incluir os dedos das mos e dos ps, os ossos e mesmo os rgos genitais da vitimas, assim como cartes postais ilustrados do acontecimento".
Outro historiador americano (George M. Fredrickson) observa que "os
esforos para manter a "pureza da raa" no Sul dos Estados Unidos antecipam certos aspectos da perseguio lanada pelo regime nazi contra os judeus nos anos 1930". Nos Estados Unidos, o Estado racial sobreviver algum tempo aps o afundamento do Terceiro Reich: em 1952, uma trintena de estados da Unio ainda proibiam o casamento e as relaes sexuais inter-raciais, por vezes consideradas como delitos graves.
A "democracia para o povo dos senhores" e a histria do Ocidente
Contudo, seria errado concentrar a ateno exclusivamente nos Estados Unidos. A categoria Herrenvolk democracy tambm pode ser til para explicar a histria da Inglaterra que, imediatamente aps a Gloriosa Revoluo liberal de 1688-89, arrebata Espanha o monoplio do trfico dos escravos negros e refora sua opresso sobre os irlandeses impondo- lhes uma condio comparvel quela dos Peles Vermelhas. Ou melhor, a categoria Herrenvolk democracy pode ser til para explicar a histria do Ocidente enquanto tal. Com efeito, entre o fim do sculo XIX e os princpios do XX, a extenso do sufrgio na Europa caminha a par com o processo de colonizao e a imposio de condies de trabalho servis ou semi-servis s populaes submetidas: a rule of law, o governo da lei na metrpole capitalista entrelaa-se com o poder arbitrrio e policial e mesmo com o terror imposto nas colnias. Se se examinar bem, o mesmo fenmeno que caracteriza a histria dos Estados Unidos com esta diferena: no caso da Europa as populaes colonizadas ao invs de viverem na metrpole so dela separadas pelo oceano. De modo significativo, na segunda metade do sculo XIX, um liberal de esquerda como John Stuart Mill por um lado celebra a liberdade e justifica-a, por outro lado celebra o "despotismo" do Ocidente sobre as raas ainda "menores" destinadas a observar uma "obedincia absoluta".
A "democracia para o povo dos senhores" tem vida dura!
Chegado a este ponto, sintetizando e actualizando os resultados do meu
livro, Contre-histoire du libralisme (La Dcouverte, 2013 na traduo francesa), coloco-me trs perguntas: a ultrapassagem da "democracia para o povo dos senhores" resulta de uma evoluo espontnea do liberalismo? A resposta deve ser um no categrico. Em Dezembro de 1952, o ministro americano da Justia envia uma carta eloquente ao Tribunal Supremo que est em vias de discutir a questo da integrao nas escolas pblicas: "a discriminao racial leva gua ao moinho da propaganda comunista" que se difunde entre os afro-americanos (assim como entre todos os povos submetido dominao colonial e racista). No sculo XX, o movimento comunista foi o grande adversrio do colonialismo, da "democracia para o povo dos senhores" e do Estado racial.
E agora a segunda pergunta: o Estado racial americano exerceu influncia
sobre a Europa? Em 1930, um idelogo do nazismo de primeiro plano, como Alfred Rosenberg, exprime sua admirao pela Amrica da white supremacy, este "esplndido pas do futuro" que teve o mrito de formular a feliz "nova ideia de um Estado racial", ideia que era pois questo de tambm por em prtica "com a fora da juventude" na Alemanha. Hitler tambm se reclama explicitamente do modelo americano: na Europa Oriental, os ndios a submeter so os eslavos que preciso dizimar a fim de permitir a germanizao do territrio e aqueles que sero poupados sero destinados a trabalhar como os escravos negros ao servio da raa dos senhores (os judeus, ao contrrio, so assimilados aos bolcheviques, tanto uns como outros devendo ser eliminados enquanto idelogos e instigadores da revolta das "raas inferiores"). Naturalmente, preciso manter em mente a distino entre democracia (ainda que limitada somente raa dos senhores) e ditadura. E contudo... Retornemos aos Estados Unidos nos anos que antecedem a Guerra de Secesso. Tocqueville observa a dureza das pensa infligidas queles que ensinavam os escravos a ler e escrever. Naturalmente, a proibio visava excluir a raa dos servos de toda forma de instruo. E em caso de violao desta regra, os proprietrios brancos eram os primeiros a serem atingidos. Alm disso, as regras proibiam a miscigenao, as relaes sexuais e os casamentos inter-raciais. Ou, mais uma vez, visando tornar hereditria e invarivel a condio dos escravos, estas regras acabavam por trazer um grave atentados liberdade dos proprietrios. Por outras palavras, o regime da "democracia para o povo dos senhores" limitava profundamente a liberdade dos proprietrios de escravos, confirmando a grande frmula de Marx e Engels segundo a qual um povo que oprime outro no poderia ser livre.
Pode-se pensar do que acontecia quando os escravos se rebelavam ou
quando os proprietrios temiam serem privados da sua "propriedade" de um modo ou de outro. As testemunhas da poca relatam: "o servio militar [das patrulhas brancas] assegurado noite e dia, Richmond parece uma cidade sitiada [...] Os negros [...] no se arriscam a comunicarem entre si por medo de serem punidos". Os abolicionistas brancos tambm eram afectados porque eram considerados como traidores da raa branca e por isso eram assimilados aos negros. Vamos dar, mais uma vez, a palavra s testemunhas da poca: aqueles que criticam a instituio da escravatura "no ousam sequer intercambiar opinies com aqueles que pensam como eles por medo de serem trados". Todos so constrangidos pelo terror a "no abrirem as bocas, a abafar suas prprias dvidas e a enterrar suas prprias reticncia". Como se v, a dominao terrorista que os proprietrios de escravos exerciam sobre os negros acabava por atingir duramente os membros e as fraces da classe dominante. Em condies de crise aguda, a "democracia para o povo dos senhores" pode facilmente transformar-se numa ditadura para o povo dos senhores. Entre o Estado racial nos EUA e o Estado racial na Alemanha, h elementos de continuidade e de descontinuidade.
Finalmente, a ltima pergunta: a "democracia para o povo do senhores"
desapareceu totalmente dos nossos dias? Inegavelmente, muitas coisas mudaram a gigantesca vaga de revolues anti-coloniais irrompendo no mundo a partir de Outubro de 1917 e, sobretudo, de Estalingrado. Contudo, a ideologia dominante celebra Israel como a nica democracia autntica do Mdio Oriente. Salvo que a rule of law, o governo da lei para os cidados israelenses de pleno direito caminha a par com a expropriao, a deportao, a priso arbitrria e mesmo a execuo extra- judicial perpetrados contra os palestinos: a democracia para o povo dos senhores. E escala internacional? Pisoteando de modo explcito o princpio da igualdade entre as naes, os Estados Unidos e o Ocidente continuam a arrogar-se o direito soberano de invadir, bombardear, submeter a embargo e fome este o aquele pas mesmo sem a autorizao do Conselho de Segurana da ONU. s proclamaes vibrantes prestando homenagem liberdade e democracia corresponde a tentativa de exercer uma ditadura no plano internacional. Infelizmente, a "democracia para o povo dos senhores" tem a vida dura! [1] Discriminao censitria: sufrgio que exclui categorias de eleitores com base em factores como riqueza, classe de tributao, classe social, religio, conhecimento, raa, idade, criminalidade, residncia, nacionalidade, naturalizao, funo.
O original encontra-se em http://projet.pcf.fr/38614
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