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REFLEXÕES SOBRE O LIBERALISMO 

Prezar a liberdade, Defender a escravidão

Edição - 71
por ​Lucien Sève
3 de junho de 2013

Quem  faz  do  liberalismo  a  imagem  dada  pelos  liberais  terá  duras 

surpresas  ao  ler  esta  obra  magistral  de  Domenico  Losurdo, 

Contre-histoire  du  libéralisme​[Contra-história  do  liberalismo]  (Laterza, 

Roma/Bari,  2006),  que  já  de  saída  nos  apresenta  um  extraordinário 

paradoxo. 

Ser  liberal,  em  princípio,  significa  militar,  seguindo  a  escola  de grandes 

escritores  como  Hugo  Grotius  e  John  Locke,  Adam  Smith  e  Alexis  de 

Tocqueville,  pelas  liberdades  do  indivíduo  contra  o  absolutismo 

político,  o  intervencionismo  econômico,  a  intolerância  filosófica. 

Poderoso  movimento  de  pensamento  e  ação  que,  do  século  XVI  ao 

século  XVIII,  e  através  de  três  gloriosas  revoluções  na  Holanda, 

Inglaterra  e  América,  moldou  toda  a  história  contemporânea.  Mas  é 

justamente  com  ele  que  a  escravidão  conheceu  seu  maior 

desenvolvimento.  Na  América,  havia 330 mil escravos em 1700, cerca de 

3  milhões  em  1800  e  o  dobro  na  metade  do  século  XIX.  A  Holanda  só 

aboliu  a  escravidão  em  suas  colônias  em  1863.  Em  meados  do  século 
XVIII,  era  a  Grã-Bretanha  que  tinha  o maior número de escravos: quase 

900  mil.  E  tratava-se  do  pior  tipo de escravidão, a ​chattel racial slavery​, 

na  qual  o  escravo  negro  é  simplesmente  um  “bem  móvel”.  Não  se 

poderia  imaginar  uma  negação  mais  radical  da  liberdade  individual. 

Onde está o erro? 

É  isso  que  o  livro  se  dedica  a  explicar,  de  cabo  a  rabo,  com  uma 

impressionante  oferta  de  fatos  sangrentos  e  citações  sufocantes.  Não, 

não  se  trata  de  um  erro.  A  doutrina  liberal  nasceu  com  duas  faces  e 

nunca  as  abandonou:  mensagem  inflamada  de liberdade pessoal apenas 

para  os  cidadãos,  homens  brancos  proprietários  que  formavam  um 

Herrenvolk,​   um  “povo  de  senhores”  –  germanismo  adotado  sem  medo 

por  essa  ideologia  amplamente  anglófona;  negação  cínica  da 

humanidade  não  apenas  para  os  negros  nas colônias, mas também para 

aquelas  consideradas  “bárbaras”,  como  os  irlandeses  e  os  índios 

americanos,  e  toda  a  massa  de  servos  e  trabalhadores  nas  próprias 

metrópoles  –  ou  seja,  para  a  grande  maioria.  Essa  contra-história  do 

liberalismo,  sem  negar  a  face  luminosa,  revela  desde  o  princípio,  em 

toda  a  sua  extensão,  o  lado  escuro  que  a  hagiografia  liberal  não  cansa 

de  esconder.  Quando,  por  exemplo,  apenas  para  ficar  em  um  detalhe, 

aprendemos  que  o  grande  filósofo  liberal  Locke  era  acionista  da  Royal 
African  Company,  grande  organizadora  do  tráfico  de  negros, 

começamos  a  entender  melhor  muitas  coisas  em  nossa  história 

moderna. 

Mas  também  entendemos  que  esse  livro  iconoclasta  levou  tempo  para 

chegar  até  nós.  E  que  aquilo  que  nossa  grande  mídia  fala  dele, 

mesquinhamente,  revela  com  frequência  um  mau  humor 

envergonhado.  A  obra  é  erudita  demais  e  ao  mesmo  tempo  muito  clara 

para  ser  recusada  com  propriedade.  Por  isso  é  atacada  por  meio  dos 

desgastados  expedientes  da  polêmica.  Questionam-se  as  posições  do 

autor  sobre  qualquer  outro assunto, quando é perfeitamente admissível 

não  concordar  com  ele.  Acusam-no  de  unilateralismo,  quando  ele  não 

perde  nenhuma  oportunidade  de  mostrar  a  diversidade  de  aspectos  do 

liberalismo,  a  complexidade  de  suas  correntes,  muitas  vezes  a 

ambiguidade  de  seus  pensadores.  Por  fim,  lança-se  o  golpe  do  “mas 

todo  mundo  já  sabia!”,  quando  a  ideologia  dominante  age 

incessantemente  para  dar  vida,  em  sua  grosseira  parcialidade,  à  lenda 

dourada do liberalismo. 

Novo Mundo, um “berço vazio” 

É  preciso  dizer  que  o  livro de Losurdo está cheio de citações que fazem 

muito  mal  à  lenda.  Como  este  texto  de  Tocqueville  legitimando  o 


extermínio  dos peles-vermelhas: “A Providência, colocando-os em meio 

às riquezas do Novo Mundo, parecia não lhes ter oferecido mais que um 

curto  usufruto.  Eles  estavam  lá,  de  alguma  forma,  apenas  ​esperando.​  As 

costas  tão  bem  preparadas  para  o  comércio  e  a  indústria,  os  rios  tão 

profundos,  o  inesgotável  vale  do  Mississípi,  o  continente  inteiro,  tudo 

isso  aparecia  então  como  o  berço  ainda  vazio  de  uma  grande nação”. O 

“berço  vazio”:  eis  como  um  célebre  liberal  legitima  com  sua  pena  leve 

um  dos  maiores  genocídios  da  história,  fornecendo  por  antecipação 

uma  justificativa  muito  apreciada  aos  doutrinários  da  “terra  sem  povo” 

oferecida  por  Deus  a  um  povo  sem  terra…  Textos  dessa  seara  existem 

em  grande  número,  e  outros  ainda  mais  inesperados,  nessa 

contra-história. 

Oferecendo-nos  muito  a  aprender,  o  autor  ainda  mais  nos  dá  a  pensar. 

Por  exemplo,  e  de  maneira  central,  exibindo  a  proposição  de  um 

George  Washington  ou  de  um  John  Adams verdadeiramente reveladora 

a  respeito  da  Revolução  Norte-Americana  realizada  no  fim  do  século 

XVIII  por  colonos  liberais  proprietários  de  escravos,  absolutamente 

conscientes  de  serem  “súditos  britânicos  brancos  e  nascidos  livres”, no 

último  grito  contra  os  ingleses  da  metrópole  que  os  oprimia:  “Não 

queremos  ser  seus  negros!”.  O  que  logo  salta  aos  olhos  aqui  é  que  o 
pensamento  liberal  nunca  foi  autenticamente  universalista.  As 

liberdades  exigidas  “para  o  indivíduo”  não  são,  em  absoluto,  para  todos 

os  seres  humanos,  mas  apenas  para  o  pequeno  número  de  eleitos,  no 

duplo sentido bíblico e cívico do termo. 

“Há homens nascidos para a servidão” 

E  esse  particularismo  agressivo  é  fundador.  Hugo  Grotius,  um  dos  pais 

da doutrina liberal no século XVII, legitima sem reservas a instituição da 

escravidão  (“há  homens  nascidos  para  a  servidão”,  escreveu, 

reivindicando  Aristóteles),  chama  os  cidadãos  das  colônias  holandesas 

de  “bestas  selvagens”  e,  qualificando  sua  religião  de  “rebelião  contra 

Deus”,  justifica  a  mais  cruel  “punição  dos  culpados”.  Não  há,  portanto, 

desvios  da  prática:  é  a  própria  ideia  liberal  que  traz  em  si  um 

aristocratismo  antropológico  diretamente  segregador  e 

desumanizador. 

O  francês  Alexis  de  Tocqueville,  aristocrata-democrata,  tem  muitos 

pensamentos  bastante  parecidos.  Losurdo  cita  a  seguinte  afirmação: “A 

raça  europeia  recebeu  do  céu  ou  adquiriu  por  seus  esforços  uma  tão 

incontestável  superioridade  sobre  todas  as  outras  raças  que  compõem 

a  grande  família  humana,  que  aquele  entre  nós  que  esteja  no  último 

nível  da  escala  social,  por  seus  vícios  e  sua  ignorância,  será  ainda  o 
primeiro  entre  os  selvagens”.  Muitos  hoje  se  surpreendem  com  a 

arrogância  de  casta  ostentada  por  vários  membros,  homens  ou 

mulheres,  dos  meios  dirigentes;  lendo  essa  contra-história, 

entendemos  que,  mais  que  um  traço  psicossocial  dos  indivíduos, essa é 

uma  característica  fundamental da própria doutrina liberal e da postura 

prática  que  ela  sempre  comandou.  Liberalismo  e  democracia  nunca 

foram sinônimos. 

A  conclusão  de  Losurdo  é  que  “se  trata  de  um  discurso  inteiramente 

centrado  naquilo  que, para a comunidade dos homens livres, é o espaço 

sagrado  restrito”  –  espaço  sagrado  tal  como  o  legitima  uma  cultura 

ético-religiosa  protestante  fundamentalmente  nutrida  pelo  Antigo 

Testamento.  E  basta  fazer  intervir  na  análise  o  “espaço  profano”  (os 

escravos das colônias e os servos da metrópole) para perceber o caráter 

inadequado  e  enganoso  das  categorias  habitualmente  utilizadas  para 

traçar  a  história  do  Ocidente  liberal:  primado  absoluto  da  liberdade 

individual,  antiestatismo,  individualismo.  A  Inglaterra  dos  séculos  XVIII 

e  XIX  é  o  país  da  liberdade  religiosa?  Sobre  a  Irlanda,  o  liberal  Gustave 

de  Beaumont,  companheiro  de  Tocqueville  durante  sua  viagem  à 

América,  fala  de  uma  “opressão  religiosa  que  supera  qualquer 

imaginação”. 
Acompanhar  o  liberalismo  em  sua  longa  história  implica  também 

interessar-se,  pelo  menos  de  maneira  secundária,  por  aquilo que veio a 

contestá-lo,  ou  até  combatê-lo.  Através  do  livro  de  Losurdo,  vemos 

formarem-se  as  diversas  figuras  de  um  universalismo,  segundo  ele, 

católico  e  monárquico,  de  um  Jean Bodin, no século XVI, ao radicalismo 

anticolonial  e  abolicionista  algumas  vezes  alcançado  pelos  liberais 

avançados  do  século  XIX,  e  até  a  crítica  fundamental  de  Karl  Marx, que 

se  destaca  em  revelar  o  “caráter  conservador  da  revolução  inglesa”.  A 

emancipação  política  burguesa  foi  na verdade o sinal de um furor social 

não  apenas  contra  os  povos  coloniais,  mas  também  contra  o  próprio 

campesinato  inglês,  antes  de  atacar  o  proletariado  urbano 

incrivelmente  maltratado  das  ​workhouses  −  uma  análise  que  Losurdo, 

no  entanto,  não segue integralmente, esboçando uma visão de conjunto 

pessoal das revoluções liberais latino-americanas e europeias. 

Porém,  por  mais  significativas  que  sejam  essas  posições  antiliberais, 

mais  concretamente  produtivos  foram  os  movimentos  dos  próprios 

povos,  entre  os  quais  Losurdo  coloca  em  primeiro  lugar  a  revolta  de 

Santo  Domingo,  com  a  figura  de  proa  de  Toussaint  Louverture, 

verdadeiro  tiro  de  canhão  no  concerto  dominante  da  época  –  um  povo 

negro  tem  a  inacreditável  audácia  de  querer  ser  livre!  –,  uma  revolta 
que,  ao  mesmo  tempo  que  a  Revolução  Francesa,  provocou  uma  virada 

decisiva  na  independência  crioula  e  na  abolição  da  escravatura  na 

América  Latina.  Cento  e  vinte  e  cinco  anos  depois,  um  poderoso 

impulso  no  mesmo  sentido  foi  dado  pela  Revolução  de  Outubro  na 

Rússia.  “Tudo  bem  considerado,  foram  a  revolta  de  Santo  Domingo  e  a 

Revolução  de  Outubro  que  colocaram  em  crise,  respectivamente,  a 

escravidão  e  o  regime  terrorista  de  dominação  branca”:  dois  capítulos 

históricos “majoritariamente odiados pela cultura liberal da época”. 

Sem  abordar  a  história  recente  do  neoliberalismo,  Losurdo  termina 

questionando-se  sobre  a  responsabilidade  do  liberalismo  nas 

“catástrofes  do  século  XX”  e,  de  modo  totalmente  convincente, 

considera-a  pesada.  Evocando  a  tese  de  Hannah Arendt, que parte “das 

colônias  do  Império  Britânico  para  explicar  a  gênese  do  totalitarismo 

do  século  XX”,  ele  lembra  que  os  campos  de  concentração  e  outras 

instituições  antidemocráticas  “começaram  a  ser  esboçadas  bem  antes 

do  fim  da  chamada  Belle  Époque”,  citando,  por  exemplo,  as 

“deportações  sangrentas  e  repetidas  dos  índios,  a  partir  daquela 

colocada  em  prática  pelos  Estados  Unidos  de  Jackson  (designado  por 

Tocqueville como um modelo de democracia)”. 


Com  o  tratamento  infligido  aos  negros  do  Novo  Mundo, alcançaram-se 

em  matéria  de  desumanização  “picos  difíceis  de  igualar”.  Na  Jamaica 

britânica,  “um  escravo  foi  obrigado  a  defecar  na  boca  do  escravo 

culpado,  que  foi  então  costurada  durante  quatro  ou  cinco  horas”.  Nos 

Estados  Unidos,  crianças  em  idade  escolar  podiam  ganhar  um  dia  de 

folga  para  assistir  a  um  linchamento.  O  título  de  um  livro publicado em 

Boston  em  1913  evoca  a  “solução  final”  (​ultimate  solution)​   da  questão 

negra.  Um  pesquisador  norte-americano,  Ashley  Montagu,  escreveu 

sobre  o  racismo  e  o  nazismo  que  “o  monstro  que  conseguiu  saltar 

livremente  para  o  mundo  é  em grande parte nossa criação […], e somos 

responsáveis pela forma horrenda que ele tomou”. 

Está  errado  o  autor,  portanto,  em  pedir  o  fim  da  falsa  hagiografia  do 

liberalismo,  administrada  em  altas  doses  por  três  décadas  desde  o 

início do reinado de Margaret Thatcher? 

Lucien  Sève  é  filósofo,  autor  de  Penser  avec  Marx  aujourd’hui.  Tome  2: 

L’Homme, La Dispute, Paris, 2008. 

https://diplomatique.org.br/prezar-a-liberdade-defender-a-escravida

o/ 

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