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Jeanne Marie Gagnebin LIMIAR, AURA E REMEMORACAO Ensaios sobre Walter Benjamin editoral—l34 EDITORA 34 Editora 34 Ltda. Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000 Sao Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3811-6777 www.editora34.com.br Copyright © Editora 34 Ltda., 2014 Limiar, aura e rememoracao © Jeanne Marie Gagnebin, 2014 4 FOTOCOPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO f ILEGAL E CONFIGURA UMA APROPRIAGAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS £ PATRIMONIAIS DO AUTOR. Imagem da capa: Julius Bissier, 23 Juli 62 Ca’ Rondine, 1962 (detalhe), témpera s/ tela, 45,2 x 59 cm, Kunstsammlung NRW, Diisseldorf Capa, projeto grafico ¢ editoracao eletrénica: Bracher & Malta Producao Grafica Revisao: Julia de Souza, Alberto Martins, Beatriz de Freitas Moreira 1? Edigao - 2014 CIP - Brasil. Catalogacdo-na-Fonte (Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) Gagnebin, Jeanne Marie © ‘“* > ; e4ey G1291 Limiar, aura e rememoragao: ensaios sobre Walter Benjamin / Jeanne Maris Sao Paulo: Editora 34, 2014 (1 272 p. ISBN 978-85-7326-572-9 1. Filosofia, 2. Literatura e estética. 3. Benjamin, Walter, 1892-1940. 1. Titulo. CDD - 102 = LIMIAR, AURA E REMEMORAGAG Ensaios sobre Walter Benjamin Nota da autora 0.0.00 Prélogo: Escrita, morte, transmissao ... LIMIAR 1. Limiar: entre a vida e a motte ...... eoseaen 2. Mito e culpa nos escritos de juventude de Walter Benjamin . 3. Do conceito de Darstellung em Walter Benjamin (ou Verdade e beleza) . 4. Comentario filolégico e critica materialista .... AURA 5. Atengao e dispersdo: elementos para uma discuss4o sobre arte contemporanea a partir de Adorno e Benjamin... 6. O olhar contido e o passo em falso 7. Eros da distancia.. ‘8. Identificagao e Katharsis “no teatro épico de Brecht. 9. De uma estética da visibi a uma estética da tatibilidade jidade REMEMORAGAO 10. Teologia e messianismo no, pensamento de Walter Benjamin... 11. Estética e experiéncia historica em Walter Benjamin. 12. O trabalho de rememoragao de Penélope 13. Esquecer o passado?..... Sobre os textos .... Sobre a autora is 33 51 63 75 99 121 131 141 12: O TRABALHO DE REMEMORAGAO DE PENELOPE Walter Benjamin é conhecido, talvez em demasia, por ser um te6rico da memoria e da conservagao do passado. Sua obra ofere- ce um manancial de belas citagées para historiadores, conservado- res de patriménio ou de museus, pesquisadores ¢ escritores que constatam, com razdo, a indiferenga que caracteriza nossa atual relagao com 0 passado. O desfecho tragico de sua vida (deve ser observado que tal desfecho nao foi nenhuma excegao durante a dominagao do nazismo), seu lado “saturnino” e solitario, por ele mesmo enfatizado, as fotografias do escritor com rosto pensativo apoiado na mao, tudo isso contribui a fortalecer uma visio nos- talgica e melancélica de Benjamin e de sua obra, suscitando admi- ragao e identificagao ou, entao, recusa e critica. Gostaria, neste pequeno ensaio, de matizar essa visio que me parece ser muito mais uma projegdo de nossa propria desorienta- * "a0 ps-moderna do que uma real apreensio da radicalidade pa- radoxal do seu pensamento. Nele, a problematica do lembrar sem- pre surge, nas pegadas de Nietzsche, atravessadalpélalinecessidade devesquecersye se o narrador rememora o distante, é para entrega- -lo a uma salvagao que significa, ao mesmo tempo, redengao (Er- lésung),¢ dissolucao (Auflésung)! feliz.« + Numa carta de inicio de maio de 1940 a sua amiga Gretel Adorno, esposa de Theodor W. Adorno, Walter Benjamin comen- ta o texto que acabara de escrever, “Sobre 0 conceito de histéria”, * Ambas as palavras remetem ao verbo [dsen, resolver e dissolver, cujo radical /6s-, que traduz em alemo o luein grego, indica o dissolver dos limi- tes e das formas no éxtase erético ou mistico e na embriaguez dionisiaca. O trabalho de rememoragao de Penélope 217 dizendo que nao pensa em publicé-1o no momento — porque, nes- sa primeira versao, poderia acarretar muitos mal-entendidos — e anuncia: “A questao do lembrar (e do esquecer) vai me ocupar ainda durante muito tempo”. Ora, esse texto, que contém as fa- mosas “Teses”, foi o dltimo que escreveu. Em junho de 1940, 0 exército alemao ocupou Paris. Refugiado na cidade desde a toma- da de poder de Hitler, em 1933, Benjamin fugiu na Gltima hora para o sul da Franca, ainda nao ocupado. Tentou atravessar a pé os Pireneus e chegar a Espanha, para embarcar aos Estados Unidos, onde o esperavam Adorno e Horkheimer, que mantinham o Ins- tituto de Pesquisa Social (nticleo da assim chamada “Escola de Frankfurt”) no exilio. A fuga clandestina fracassou na fronteira entre a Franga e a Espanha. Faltava a Benjamin um “visto de sai- da” da Franga, que ele, na condicao de refugiado e judeu-alemao de esquerda, nunca conseguiria do governo de Vichy. Benjamin se suicidou em Portbou, na fronteira espanhola, em 26 de setembro. Qual teria sido o desenvolvimento da questao do lembrar e do esquecer no seu pensamento? Digo desenvolvimento porque qualquer leitor de Benjamin sabe que esta questao atravessa sua obra inteira. Ea se coloca em dois contextos principais: um deles, que podemos chamar de te6rico-literdrio, esta ligado a teoria da narracdo e 4 transformagcao dos géneros literarios, reflexao eviden-, ciada sobretudo nos ensaios sobre Baudelaire e sobre “O narra- dor”; outro é o contexto historiografico, isto é, de reflexdo sobre a escrita da historia — que pode ser entendida como historia sin- gular do eu, portanto, autobiografia (como nos belissimos textos da Crénica berlinense e da Infancia em Berlim por volta de 1900), ou como historia coletiva, aquild que a filosofia do Idealismo Ale- mio chamou de “historia universal” ¢ cujos pressupostos Benjamin questiona notadamente no ja citado texto “Sobre 0 conceito de histéria”. Em outras palavras, a questo da memiéria é inseparavel de uma reflexdo sobre a narrag3o, bem como de uma histéria fic- cional da propria vida, da Historia de uma época ou de um povo. E as formas de lembrar e de esquecer, como as de narrar, so os meios fundamentais da construcao da identidade, pessoal, coletiva ou ficcional. Ora, meméria, historia ¢ identidade nao s4o, para Benjamin, conceitos imutdveis, mas instancias que sofrem transformacées historicas. A andlise dessas transformagées elucida as diferengas entre os varios géneros literarios (por exemplo, epos, romance, short story) e permite compreender melhor os dilemas da moder- nidade — e da literatura moderna e contemporanea que nao con- segue mais, segundo Benjamin, contar verdadeiramente uma his- téria. Em seu ensaio “O narrador”,? Benjamin esboga uma tipo- logia da memoria e da narracio, partindo da constatagao de que, depois da Grande Guerra (isto é, a Primeira Guerra Mundial; a Segunda sé aprofundaria esse processo), os sobreviventes que vol- taram das trincheiras, muitas vezes, nao conseguiam lembrar nem contar © que viveram em combate. Na mesma €poca, Freud devia chegar a conclusées parecidas a partir de suas observages sobre , os soldados traumatizados, incapazes de colocar suas lembrangas numa ordem simbélica; trauma, diz Freud, e choque, diz Benjamin (em particular nas suas anlises da lirica de Baudelaire), acarretam uma dupla incapacidade: a de lembrar e a de contar segundo uma certa ordem coerente ¢ totalizadora, produtora de sentido. Essa anilise da situagao historica especifica de nossa moder- nidade se alimenta igualmente de uma discussdo, muito viva na época, sobre as transformacées dos diferentes géneros literarios. A rigor, os precursores desse debate sao Schiller (Sobre poesia in- génua e sentimental) e 0 Romantismo alemao de lena — ao qual Benjamin consagrou sua tese de doutorado —, que transformou os varios géneros da Dichtung (poesia, mas também, num sentido mais amplo, literatura) em tantas formas de reflexao de alcance metafisicg. Na época de Benjamin, a discussao é retomada pelo joveni Lukkdcs, com sua fundamental Teoria do romance (publica- da numa revista de estética em 1916 e posteriormente como livro 2 “Der Erzihler. Betrachtungen zum Werk Nikolai Lesskows”, in Ge- sammelte Schriften (G. S.), 1-2, Frankfurt, Suhrkamp, 1974, pp. 438 ss. Cito as traducées de Modesto Carone (Walter Benjamin et al., colecdio Os Pensa- dores, Textos escolhidos, Sao Paulo, Abril, 1980), e de Sergio Paulo Rouanet (Walter Benjamin, Obras escolhidas, vol. I, Sao Paulo, Brasiliense, 1985). O trabalho de rememoragio de Penélope 219 1920)> e, de maneira menos especulativa Alfred Déblin, cujo romance Berlin Alexande: ensaio “Der Bau des epischen Werkes” (“A construgdo da obra épica”) serao lidos e referidos por Benjamin. Devemos aqui proceder a duas pequenas observacées de vo- cabulério para entender melhor esse lavra Erzabler, traduzida por len, narrar, contar em geral, » Por autores como rplatz (1929) e cujo debate. Primeiramente, a pa- “narrador”, remete ao verbo erzah- e€ nao necessariamente a nogio — pertinente ao universo da teoria literaria — do narrador como voz narrativa presente (ainda que disfarcada) num texto. Em segundo lugar, deve-se distinguir os diferentes usos do adjetivo “€épico”. Epico, num sentido amplo, seguindo as distingdes da Poética de Aristételes, opde-se ao dramatico e ao lirico, e designa de maneira abrangente o género narrativo, entendendo o epos como 0 relato, m prosa ou em versos, dos feitos ou acontecimentos que envolvem um heréi ou um povo. Lukacs insiste nas diferenciagdes entre o epos, o romance classico e a desilusio, enquanto Benjamin traba- lha mais a questdo do épico em geral, questo que também volta- r4 nas suas andlises de Brecht, j4 que este chama seu teatro de épico (episches Theater), em contraposi¢ao a teoria aristotélica da katharsis. Como veremos, essas distingdes lexicais ajudam a en- tender a importancia da dimensdo n§o sé literaria, mas, ousaria dizer, antropologica da narracao em Benjamin. O “narrador” auténtico, que j4 ndo pode existir, € caracteri- zado como o narrador épico, enraizado numa longa tradigao de memé6ria oral e popular, o que lhe permite escrever e contar aventu- ras representativas de experiéncias (Erfabrungen) das quais todos 0s ouvintes/leitores podem compartilhar numa linguagem comum. O modelo originario desse tipo. de parrativa é, para Benjamin e para Lukacs, a Odisseia, relato exemplar de uma’ longa viagem cheia de provagées e descobertas, da qual o her6i sai mais rico em experiéncias e em histérias e, portanto, mais sabio. & notavel, na 3 Edig&o brasileira: A teoria do romance: um ensaio hist6rico-filos6fi- co sobre as formas da grande épica, tradugio de José Marcos Mariani de Macedo, Sao Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2000. 220 Rememoragao Odisseia, que ao prazer de lembrar e de contar corresponde um prazer de escutar ¢ de aprender que a nés, modernos, parece ilimi: tado. Assim, os Fedcios nao se cansam de escutar as lembrangas de Ulisses e se esquecem mesmo do sono; 6 porqueiro Eumeu ado ra suas historias e as avalia com competéncia liter4ria; Penélope e Ulisses trocam histérias e caricias. Essa capacidade infinita de lem brar e de contar (que Benjamin compara a um rio), presente tam bém nas Mil e uma noites, remete a uma sociedade cujos ritmos de trabalho e de descanso (pelo menos para a aristocracia!) so totalmente diferentes dos da organizagao capitalista. Quando o tempo se torna uma grandeza econdmica, quando se trata de ganhar e, portanto, de poupar tempo, a memoria tam- bém se transforma. O lembrar infinito e coletivo do tempo pré- -capitalista cede lugar a narragao da vida de um individuo isolado, que luta pela sobrevivéncia e pelo sucesso numa sociedade marca- da pela concorréncia. O espago infinito da memoria coletiva co- mum encolhe, dividindo-se em lembrangas avulsas de historias particulares contadas por um escritor isolado, lidas por um leitor solitario: € o advento de uma outra forma literaria, o romance. Essas mutagoes histéricas e culturais sao lentas e nado seguem meca- nismos deterministas, mas nao podem ser eliminadas por boa von- _tade pu por uma decisdo pessoal. Assim, mesmo,que se lamente © .desapdrecimento das formas tradicionais de contar, o desapareci- mento da escuta paciente e respeitosa dos ancides, o desapareci- mento das lembrangas compartilhadas e de uma mem6ria coletiva (tema do sociélogo francés Maurice Halbwachs, contemporaneo de Benjamin), o desenvolvimento técnico capitalista contempora- neo torpa iluséria qualquer esperangarde retorno a essas formas comunitarias de vida, lembranga e narragdo, que sao facilmente idealizadas em retrospecto. Ao contrario: para lutar contra esse encurtamento da percepgao temporal, contra essa espécie de nar- cisismo do presente, que corre atrés de novidades rapidamente caducas segundo a lei do consumo de mercadorias novas, deve-se inventar outras formas de meméria e de narragao, capazes de sus tentar uma relagao critica com a transmissaio do passado, com 0 lembrar, e com a construgao do futuro e o esperar. él 1 O trabalho de rememoragao de Penélope 22 Se o ensaio “O narrador” de teoria literaria contemporanea a partir de de Nikolai Leskoy, seu alcance é, no entanto, mais amplo. Adorno no se enganou quando detectou nesse ensaio aquilo que chamou, para critica-lo em seguida, de “materialismo antropolégico” .4 Com efeito, Benjamin se pergunt: gicas da necessidade e da ativida Por isso mesmo seus exemplos sdo muitas vezes ligados nao a um género literario escrito especifico, mas a narracao oral’ — que inclui diversas formas, da narrativa tradicional do s4bio numa comunidade sem escrita as tentativas, geralmente malsucedidas, uma analise da obra de humanas de narrar e de contar, ‘a sobre as dimensoes antropolé- Aud dnds de contar hoje uma histéria num encontro social, Nao se trata “sre somente de detectar num texto literdrio escrito os rastros de uma Ways wine 1 oralidade primeva (como nos textos homéricos) ou as tentativas orn literarias de reinsergao da oralidade no escrito, como ocorre no romance Berlin Alexanderplatz, de Déblin, na propria obra de Leskov,® ou, seria o caso de acrescentar, no Brasil, na obra de Guimaraes Rosa. Chama a atengio que Benjamin nao fale dessas técnicas literarias de reproducao da oralidade, mas sim de algo anterior a literatura, cronolégica e ontologicamente, uma espécie de pulsao — oiiso empregar a palavra freudiana Trieb — da nar- ra¢&o, cujas formas histéricas séo certamente mutdveis, mas que 4 Ver a carta de Theodor W. Adorno a Walter Benjamin, 6 de setembro de 1936, in Adorno/Benjamin, Briefwechsel, Frankfurt, Suhrkamp, 1994, p. 193. 5 Sobre a importancia da oralidade no ensaio de Walter Benjamin, re- meto ao verbete “erzdblen”, de Alexander Honold, em M. Opitz e E. Wii la (orgs.), Benjamins Begriffe, vol. I (Frankfurt) Suhrkamp, '2000), e a0 texto « de D. Schéttker sobre “O narrador”, no volume editado por B. mndsice Benjamin-Handbuch (Stuttgart, Metzler Verlag, 2006). Ambos os volumes s4o, atualmente, obras de referéncia para a pesquisa sobre 0 autor. 6 Honold e Schéttker mencionam 0 ensaio do tedrico russo Boris Ei- chenbaum sobre Leskov (1925), que analisa sua obra segundo, a shave de “skaz”, isto é, da presenga artificial, literariamente construida, da orali no escrito. Rememora¢ao baru fn dy ition, vas pas; Ny ~ nw vote do sua fonte parece secar, como na contem- persiste mesmo quan’ re em verdadeiras historias. poraneidade, tao pob , Alexander Honold Em seu verbete dedicado ao “narrar” ligado a natureza chega a mencionar um conceito de narragao (Natur-Begriff des Erziblens)’ e comenta que essa pulsdo ou forga de pulsio (Triebkraft)® tem um duplo alvo: poder dizer a tempo- talidade- es portanto, procurar formas de reconciliagao com # ine= hatabilidade da finitude’e da morte através da memoria narrativa; « criar formas de relagdo comunicativa — fundada na mimesis — com aquilo que nao é humano, que € destituido de linguagem, mas que pode ser dotado de sentido por meio da narragao. Insisto nessa dimensao pulsional ou antropolégica por duas razdes prect- sas, ligadas a recepgio teérica do ensaio sobre “O narrador”, pois ela explica muitas das reticéncias de Adorno, e também as ressalvas deste em relagao aos conceitos de jogo ¢ de mimesis dos quais Benjamin langaré mao mais tarde, em particular na segunda versao do ensaio sobre “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”.? Tal dimensao pulsional permite estabelecer relagGes ins- tigantes com outras teorias contemporaneas sobre a marragao, se- jam de cunho etnolégico e antropol6gico (sobre as varias narrati- as initicas e sobre o desencanto da modernidade ocidental, mar- cada pelo “fim das grandes narrativas”, como disse Lyotard) ou Je cunho mais filos6fico (penso em particular na reflexao de Paul 7 Honold, op. cit., p- 366. § Ider, p. 367. : |. 9 Leinbro que essa segunda versio, tida por desaparecida pelos edito- res das G, S., quando publicaram os primeiros volumes, foi finalmente reen- contrada no Arquivo Horkheimer de Frankfurt em 1989 e publicada no veo" Ha I. Ela gofren criticas muito duras de Adorno e Horkheimes, provavel rare vcm ravao desses elementos mais antropol6gicos, ¢ foi censurada, N20 existe tradugdo dessa versio no Brasil. A esse respeito, ver 0 verbere de B. Lindner no Berjamin-Handbuch, op. cit., sobre 0 ensaio “A obra de arte 02 época de sua reprodutibiliddde técnica”. 223 A LW 4. waamaracda de Penélope eur a respeito das relacgGes entre Temps et récit).'° Num capitulo central de “O narrador” narragao primeiramente a partir da oralidade (isto é, da relagao ouvinte-narrador) e da transmissao. Cito 0 texto em alemao e, em seguida, sua traducio: : narragao e temporalidade em » Benjamin define a “Man hat sich selten dariiber Rechenschaft abge- legt, dass das naive Verhdiltnis des Hérers zu dem Erzah- ler von dem Interesse, das Erziihlte zu bebalten, beherrs- cht wird. Der Angelpunkt fiir den unbefangenen Zuh6- rer ist, der Méglichkeit der Wiederghe sich zu versichern. Das Gedachtnis ist das epische Vermégen vor allen an- deren, Nur dank eines umfassenden Gedéchtnisses kann die Epik einerseits den Lauf der Dinge sich zu eigen, andererseits mit deren Hinschwinden, mit der Gewalt des Todes ihren Frieden machen.” “Raras vezes da-se conta de que a relagao ingénua entre ouvinte e narrador é dominada pelo interesse em reter a coisa narrada. O ponto-chave para 0 ouvinte de- sarmado é garantir a possibilidade da reprodugado. A meméria é a capacidade épica por exceléncia. S6 gragas a uma memoria abrangente pode a épica, por um lado, apropriar-se do curso das coisas e, por outro, fazer as pazes com o desaparecimento delas — com o poder da morte.”!1 Essa passagem alude claramente a uma vontade de escutar, de guardar na meméria e de transhiitir que certahiente esté na‘ | fonte da escrita literaria, mas nao se esgota nela. Trata-se de trans- mitir de geracdo em gera¢do algo que merece ser narrado, isto é, 10 Paul Ricoeur, Temps et récit, Paris, Seuil, 1985-87, 3 vols. 11 Tradugdo de Modesto Carone, op. cit., p. 66. Para o original, ver “Der Erzahler”, G. S., II-2, p. 453. 224 Rememoragao algo que deve adquirir uma forma estética ¢ linguistica ¢ que, gra- S35 2 i880) € passivel de ser apropriado e transmitido, sto € nae, servado do esquecimento e, nesse sentido, continuar vive nue, méria dos homens — desctigdo exemplar da tarcfa dos roca a caracterizaram, baseados tanto nas Pesquisas de hist6ria e filo- logia antigas quanto nas de etnologia contemporanea sobre o assim chamado “xamanismo”. Afora a oralidade, a énfase do texto de Benjamin recai sobre a essencial relacio entre narragdo ¢ morte: morte empresta ao narrador sua “autoridade”,!2 poderiamos di zer tanto no sentido de poder normativo quanto no de instituicdo de um autor. Com efeito, o moribundo ainda é uma Ultima figura do viajante, daquele que nos coloca em relagdo com o longinquo, essa relacao de distancia ¢ de aproximagao que est4 na base da narra¢ao segundo Benjamin. Maisjainda:/a Violéncia ou'o poder (em alemao, Gewalt) da morte obriga os homens, mortais (no epos de Homero, os deuses, imortais, nao contam histérias, mas tentam se divertir de outra maneira, muitas vezes As custas dos mortais!), a se perguntar se tém algo a transmitir que nao se extingue com cada existéncia individual, se algo merece ser guardado e transmi- tido aos outros homens e as futuras geracées para além do circulo restrjto dalmeralvida singulan/Alimagem do moriburido que trans- thite uma ‘inensagem, uma narrativa ou um saber, domina o palco da narragao, como ocorre no inicio do pequeno ensaio “Experién- cia e pobreza”.13 Na modernidade as transformagées do tempo humano e da relagao com a morte acarretam transformagées pro- fundas, se nao desastrosas, para a propria possibilidade do narrar. Ainda que a,pulsao narrativa continue presénte, ela ndo pode mais se configurar nas grandes formas classicas do €pico, nao pode mais transmitir uma “experiéncia” comum e por todos compartilhada (no sentido forte da palavra Erfabrung), mas deve narrar as difi- Narr ajo Se 12 Idem, p. 64. Para o original, ver “Der Erzahler”, G. S., II-2, p. 450. 13 “Erfahrung und Armut”, G. S., U-1, p. 213; edigdo brasileira com tradugao de Sergio Paulo Rouanet, op. cit., p. 114. él 225 O trabalho de rememoracao de Penélope culdades da partilha e 0 esfacelamento da transmissao!4+ inttei: ‘i — Os es- foros intiteis do mensageiro que porta a mensa; ead ie gem de um impe- rador morto, enquanto “vocé... est sentado junto a janela e sonha com ela quando a noite chega”,15 no dizer paradigmatico de Franz Kafka, esse grande narrador da impossibilidade contemporanea de narrar, segundo Benjamin. Sea dimensao antropolégica da narragao, a necessidade de narrar, persiste na contemporaneidade, sua realizagao se torna, porém, cada vez mais problematica. Alias, poderiamos afirmar que muitas narrativas e muitos romances atuais tratam, antes de mais nada, dessa dificuldade e dessa necessidade. A “literatura do trau- a”, sobretudo depois da Shoah, é o exemplo maximo de tal apo- ria, pois nela coexistem a preméncia do relato, a necessidade da transmissdo daquilo que nao pode ser esquecido, e a impossibili- dade de conseguir dizé-lo. A obra de Primo Levi é, aqui, essencial. Em termos de teoria literdria, Benjamin nao faz sé lamentar o fim da narragao e da memoria tradicionais, como parecem afir- mar leituras saudosistas do ensaio sobre “O narrador”. Em textos da mesma época (como “Experiéncia e pobreza”), ele reivindica as invengdes das vanguardas e a busca por uma nova forma de narrar a partir das migalhas e dos escombros da narrativa tradi- cional. Tanto Brecht como Kafka (apesar de suas diferengas abis- sais, em particular no que diz respeito a propostas artisticas) ofe- recem exemplos dessas novas tentativas de narrar. E ambos os autores reformulam a relacio com o passado e com a meméria, colocando radicalmente em questdo a transmisso desse passado e a possibilidade de inser¢do nesta tradicao. A problematica da tradicao (Tradition) e, mais especificamen- te, da transmissao (Uberlieferung) introduzem na questao da me- ae el 14 Sobre a questo, tomo a liberdade de remeter ao capitulo intitulado “Ne plus raconter?”, de meu livro Histoire et narration chez Walter Benjamin (Paris, ’Harmattan, 1994); edicdo brasileira: “Nao narrar mais?”, in Histo- ria e narragao em Walter Benjamin, Sao Paulo, Perspectiva, 1994. 15 Franz Kafka, “Uma mensagem imperial”, in Um médico rural, tra- duce de Modesto Carone, Sao Paulo, Brasiliense, 1990, p. 40. Rememoragio méria e do lembrar uma dimensao bem mais critica e politica. Benjamin distingue a nogao geral de Tradition — um conceito muitas vezes solene ou sagrado que designa um conjunto de ensi- namentos e de histérias relevante até hoje — de outra, muito mais especifica e critica, de Uberlieferung, que analisa os portadores e as circunstancias histéricas, permitindo questionar o processo da tradico, isto é, questionar os valores ditos canénicos e lembrar aspectos negligenciados, esquecidos ou recalcados. A problemati- ca da memoria e da narracdo nao pertence somente a uma reflexao de teoria literdria, mas, fundamentalmente, diz respeito a uma reflexdo historiografica critica, que adquire em Benjamin tragos cada vez mais politicos e, como veremos, militantes. Podemos igualmente observar que a “invencdo” da psicana- lise se inscreve também nesse contexto de transformagées da nar- rag&o e das formas de narrar, proprio da modernidade, marcada pelo advento de uma experiéncia traumatica (portanto, nao ver- balizavel, nao realmente dizivel) em massa, a da Primeira Guerra Mundial. A pratica psicanalitica poderia ser entendida como uma nova forma de narrag4o, portanto, uma nova aproximagao a di- ndmica do lembrar e do esquecer, sem que nenhuma coeréncia, nenhum sentido ou fim a priori sejam pressupostos. A situagao’ analitica é, aliés, uma nova situagao em termgs narrativos de ‘fala’e de escuta, pois consagra a irremediavel soliddo do individuo €, ao mesmo tempo, procura lhe possibilitar uma saida de seu enclausuramento. Assim, uma leitura mais atenta do ensaio de Benjamin reme- te a uma tematica filoséfica e antropolégica muito maior do que a mera discussao sobre as transformageg dos géneros literdrios. Ou melhor? “tal discussdo s6 adquiré seu verdadeiro alcance quando reconfigyrada em contexto mais amplo. As reflexes de Benjamin em “O narrador” permitem, ademais, tecer lagos com quest6es antropolégicas, etnolégicas, pedagdgicas e psicolégicas. Destaco aqui, dentro da propria obra de Benjamin, a importancia nao sé pessoal ou subjetiva, mas tedrica e politica dos assuntos ligados a educacdo e a infancia, pois a infancia é 0 territério privilegiado do encontro singular com aquilo que vem de longe, com os mortos ¢ in 227 trabalho de rememoragio de Penélope assado, € que os vivos “trazem junto” e trans: Has vezes, de maneira nao consciente. Benjami sem bem-humorada para designar esse zebrachtes. Escreve no fragmento “Ar Berlim por volta de 1900: mitem, na maioria in utiliza uma ima- “trazido junto”, esse Mit- marios”, da Infancia em “Der erste Schrank, der aufging, wann ich wollte, war die Kommode [...]. Ich musste mir Bahn bis in den binteren Winkel machen; dann stiess ich auf meine Striimpfe, welche da gehauft und in jener althergebra- chter Art, gerollt und eingeschlagen, rubten, so dass je- des Paar das Aussehen einer kleinen Tasche hatte. Nichts 8ing iiber das Vergniigen, meine Hand so tief wie mogli- ch in ibr Inneres zu versenken. Und nicht nur ihrer willi- gen Warme wegen. Es war ‘das Mitgebrachte’, das ich immer im eingerollten Innern in der Hand hielt und das mich derart in die Tiefe zog.”'® “O primeiro armério que se abria quando queria foi a cémoda [...]. Era preciso abrir caminho até os can- tos mais recénditos; entao deparava-me com minhas meias que ali jaziam amontoadas, enroladas e dobradas a maneira antiga, de sorte que cada par tinha o aspecto de uma bolsa [Tasche: bolso ou bolsa]. Nada superava © prazer de mergulhar a mAo no seu interior tao profun- damente quanto possivel. E nao apenas pelo calor da 1a. Era o ‘trazido junto’ enrolado naquele interior que eu sentia na minha mao e que, desse modo, me atrafa para aquelas profundezas.”!7 thy ny *© Berliner Kindheit um Neunzebnbundert, G. S., 1V-1, p. 283. 17 “Infancia em Berlim por volta de 1900”, Sao Paulo, Brasiliense, 1987, bosa, modificada por J. M. G , in Obras escolhidas, vol. Il, P. 122. Tradugao de José Carlos Martins Bar. 228 Rememoragao A mesma imagem da meia enrolada sobre si mesma, simulta- neamente bolsa e contetido, trazido junto ou transmitido, essa meia cujo mistério se desfaz com um pequeno gesto da mao, retorna no ensaio sobre Proust para caracterizar a estrutura de semelhanga (¢ nao de igualdade ou de identidade) que rege sua obra, assim como © mundo dos sonhos.!8 A mao infantil que penetra o interior quente da meia ¢ des- mancha a bolsa-contetido Para, em seguida, experimentar sua re- composicao, ilustra uma aprendizagem erdtica e experimental da cultura, daquilo que foi trazido, ou da tradigdo, sem respeito exa- gerado € com insacidvel curiosidade. Trata-se, Portanto, de uma imagem paradigmatica de uma relagao feliz ¢ ativa com a tradigao € com a cultura, preconizada por Benjamin em seus ensaios sobre educagao, brinquedos e brincadeiras.! Os ensaios ditos autobio- graficos de Benjamin nao descrevem a formagao de uma identida- de pessoal com suas idiossincrasias ridiculas ou preciosas, nao perseguem a definicao de uma “identidade”, mas, como na Busca de Proust, esvaziam essa “armadilha, 0 eu”2° e empreendem “di- versas expedi¢6es na profundeza da lembranga”.?! Tal lembranga 18 Leia-se a propésito a seguinte passagem de “Zum Bilde Prousts” (G. ‘8. I1,.p. 314): “Kinder kennen ein Wahrzeichen dieser Welt, den Strumpf, der die Struktur der Traumwelt hat, wenn er im Waschekasten, eingerollt, ‘Tasche’ und ‘Mitgebrachtes’ zugleich ist”. Em portugués: “As criangas co- nhecem um sinal verdadeiro desse mundo: a meia, que possui a estrutura do mundo dos sonhos, quando enrolada no cesto de roupas é, ao mesmo tempo, ‘bolsa’, e ‘aquilo que foi trazido junto". Tradugao de J. M. G. 19 Remeto ao volume Reflexes sobre q crianca, o brinquedo e a edu- ca¢ao, traflugao de Marcus V. Mazzari, Sao Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2902. 20 “Zum Bilde Prousts”, op. cit. Remeto ao belo livro de Carla Milani Damiao, Sobre o declinio da sinceridade filosofia e autobiografia de Jean- Jacques Rousseau a Walter Benjamin (Sao Paulo, Loyola, 2006), que analisa essas estratégias de desconstruco do modelo autobiogréfico classico. 21 No original: “einzelne Expeditionen in die Tiefe der Erinnerung”. Carta de Benjamin a Scholem, 26 de setembro de 1932, in Walter Benjamin, Gesammelte Briefe, vol. IV, Frankfurt, Suhrkamp, 1998, p. 138. O trabalho de rememoragao de Penélope Rememoragao bela imagem nos previne contra uma interpretagao unilateral das relagdes entre narra¢ao e lembranga. Com efeito, se o narrador salva todos os acontecimentos e criaturas do passado, cumprindo de maneira profana o antigo gesto teolégico da apokatastasis, da restitutio omnium, da restituigao e salvacdo de todas as almas no paraiso, segundo a doutrina herética de Origenes,?5 e se, nesse sentido, ele é a personificag4o profana da figura religiosa do “Jus- to” (lembremos que na tradigdo judaica o mundo repousa, como 4 sobre pilares, sobre 36 Justos, tao ocultos e escondidos que nem Yi eles sabem de sua fungao sagrada),?° entao narrar nao é apenas salvar e conservar, mas é também, poderiamos dizer, salvar tao Neadi completamente que se possa deixar de conservar, de arquivar, de classificar, de manter; que se possa abrir mao, esquecer 0 passado de maneira feliz, porque aquilo que devia ser resguardado ja foi posto a salvo, ja foi redimido no sentido profundo da Erlésung: (ii redengao e resolugao/dissdlucao.2” No vocabulario teolégico da apokatastasis, as almas salvas no paraiso nao precisam mais nem lembrar nem ser lembradas, porque gozam da paz celestial; no vocabulario de Nietzsche, o esquecimento feliz é aquele que per- mite ir além do ressentimento, isto é, nio um esquecimento prima- tio € tosco, ndéo uma amnésia ou anistia, mas um esquecimento adquirido, muitas vezes a duras penas, por um trabalho de lem- ‘pranga'tdo profundo que permite fazer as pazes com o passado: aquilo que Freud chama de Durcharbeitung, de “perlaboragao” e que pressupde que o labor do lembrar possa libertar 0 sujeito do passado. Arriscar-me-ia a propor uma distingao terminolégica. O vo- cabularig sobre a questao da meméria em Benjamin nem sempre se'vé com clareza que ela pode ser rompida, quando o volume de 4gua da narragao é suficientemente forte para levar embora tudo que encontra em seu caminho até o mar do esquecimento feliz”. Tradugao de J. M. G. 25 “Der Erzahler”, op. cit., pp. 458 ss. 26 Cf. Gershom Scholem, “Die 36 verborgenen Gerechten in der jiidi- schen Tradition”, in Judaica I, Frankfurt, Suhrkamp, 1963. 27 Ver nota 1, p. 217 deste volume. é! 231 O trabalho de rememoragao de Penélope Ab Mouton rigoroso. No entanto, um termo se sobressaiz palavra que podemos traduzir com “comemoracio”, oficial e triunfalista, Esse conceito de rem co da obrigagao do isto é, de rememorar REEMA RINT UR das Eingedenken, Orarnioecus - Por “Fem@iHiOrAgas” (nao confundir ) » Palavra ligada muito mais a uma meméria 9, Por exemplo, nas comemoracées de Estado). lemorac4o remete ao contexto biblico e juda 4 € recordar seu cativeiro no Egito e sua liber- ta¢ado por Iahweh. Assim, Para traduzir o famoso versiculo do Deuteronémio, 5, 15: “Recorda que foste escravo na terra do Egi- to, € que Iahweh teu Deus te fez sair de 14 com mao forte e brago estendido”,?* Lutero usa o verbo ligado ao radical de Eingeden- ken: “Du sollst gedenken...” [“Tu deves rememorar...”]. Esse con- texto teoldégico esta muito presente em Benjamin, em particular no caderno|N das Passagen8, quando reflete sobre as relagdes entre historia, ciéncia e rememoragao.?? 28 Cito a tradugao da Biblia de Jerusalém, Sao Paulo, Paulinas, 1985, p. 283. 29 Em resposta a uma carta de Horkheimer, em que este argumentava que 0 passado nao pode ser dito “nao fechado”, “em aberto” [unabgeschlos- sen], suscetivel, portanto, de transformagées posteriores, e que as injusticas do passado sao, nesse sentido, irremediaveis, Benjamin escreve: “Das Kor- rektiv dieser Gedankengdnge liegt in der Uberlegung, dass die Geschichte’ nicht allein eine Wissenschaft sondern nicht minder eine Form des Einge- denkens ist. Was die Wissenschaft ‘festgestellt’ hat, kann das Eingedenken modifizieren. |...] Das ist Theologie; aber im Eingedenken machen wir eine Erfabrung, die uns verbietet, die Geschichte grundsdtzlich atheologisch zu begreifen, so wenig wir sie in unmittelbar theologischen Begriffen zu schrei- ben versuchen diirfen” (G. S., V-1, p..589; N8, 1). Na edi¢ao brasileira: \ corretivo desta linha de pensamento pode ser encontrado na consideracaio de que a historia ndo é apenas uma ciéncia; mias igualmente:yma forma de re- memoragao. O que a ciéncia ‘estabeleceu’, pode ser modificado pela rememo- ; taco. [...] Isto é teologia; na rememoragao, porém, fazemos uma experiéncia _ que nos proibe de conceber a histéria como fundamentalmente ateolégica, embora tampouco nos seja permitido tentar escrevé-la com conceitos imedia- tamente teolégicos”. Tradugao de Irene Aron em Passagens, Sao Paulo/Belo Horizonte, Imprensa Oficial/Editora da UFMG, 2006, p. 513. A esse respeito, tomo a liberdade de remeter a meu verbete acerca das teses “Sobre 0 concei- to de histéria” no Benjamin-Handbuch, op. cit., p. 297. 232 Rememoragao 1) nos Uren bebalha , Vraerde VYwFS nn Povo de Istael de lembrar de nao esquecer, Wr" 9 “ove Sap. Levels brovslne i. No ensaio sobre “O narrador”, Benjamin usa 0 conceito de wrt __Eingedenken para caracterizar 0 esforgo de meméria que deseja eternizar o destino de um her6i singular, de uma viagem ou de uma gynnoy Ita especifica, em oposig¢ao 4 meméria narradora de miltiplos destinos e aventuras.2° Lendo essa passagem, Ursula Link-Herr propée a hipétese de um “golpe semantico” na interpretagao de i Benjamin desse conceito:\Bingedenken poderia aludir também @ - recordagao (Gedenken) de um tinico ou de um singular (Ein-).>! - No entanto, nao ha diivida de que o conceito retorna, surpreen- dentemente, sob a pena de Benjamin, para caracterizar 0 conceito proustiano de mémoire involontaire e, de maneira notavel, para caracterizar a dinamica do lembrar e do esquecer. Benjamin é um dos primeiros leitores de Proust a ressaltar 0 quanto o esquecimen- to, que rejuvenesce,2? é imprescindivel para as pequenas “ressur- reicdes da memoria” (Proust) — dalmemoria involuntaria, portan- to, isto é, aquela que lembra daquilo de que nao quer lembrar, daquilo que lhe escapou, daquilo que nao tinha dominado, mas de que'tinhayjjustamente, esquecido. Assim escreve Benjamin no se- gundo paragrafo do seu ensaio sobre Proust: " “Man weiss, dass Proust nicht ein Leben wie es .gewesen ist in seinem Werk beschrieben hat, sondern ein » '*: Leben, so wie der, der’s erlebt hat, dieses Leben erinnert. Und doch ist auch das noch unscharf und bei weitem zu grob gesagt. Denn hier spielt fiir den erinnernden Autor die Hauptrolle gar nicht, was er erlebt hat, sondern das Weben seiner Erinnerung, die Penelopenarbeit des Ein- ‘ om 30 *Der Erzahler”, op. cit., p. 454. 31 Ursula Link-Herr, verbete sobre “Zum Bilde Prousts” no Benjamin- -Handbuch, op. cit., p. 518. 32 “Nichts erneuert so sehr wie Vergessenheit” (“Nada renova tanto como 0 esquecimento”), escreve Benjamin num pequeno ensaio intitulado “Literaturgeschichte und Literaturwissenschaft” (G. S., Ill, p. 287), numa alusdo clara a Segunda consideragdo extempordnea de Nietzsche. O trabalho de rememoragio de Penélope 233 gedenkens. Oder sollte man nicht besser von einer Pene- lopenarbeit des Vergessens reden? Steht nicht das unge- wollte Eingedenken, Prousts mémoire involontaire dem Vergessen viel naber als dem, was meist Erinnerung genannt wird? Und ist dies Werk spontanen Eingeden- kens, in dem Erinnerung der Einschlag und Vergessen der Zettel ist, nicht vielmehr ein Gegenstiick zum Werk der Penelope als sein Ebenbild? Denn hier lost der Tag auf, was die Nacht wirkte. An jedem Morgen halten wir, erwacht, meist schwach und lose, nur an ein paar Fran- sen den Teppich des gelebten Daseins, wie Vergessen ihn in uns gewoben hat, in Handen. Aber jeder Tag lost mit dem zweckgebundenen Handeln und, noch mehr, mit zweckverbaftetem Erinnern das Geflecht, die Ornamen- Yad Cann, te des Vergessens auf.” rysn meriingity- Hnonyshn v reysn Ab das mone dAvoda: “rads ob DUN ME Sher oh urn. UL “Sabemos que ‘Proust nao descreveu em sualobra) >, ryan uma vida como de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem/aviveu Porém esse comentario ainda é impreciso, (uni) Lure v0 sALA ! e demasiadamente grosseiro. Pois o importante para o Laynw 5 Sama autor que lembra, nao é o que ele viveu, mas 0 tecido de eats sua lembranga, 0 trabalho de Penélope da rememoracao. “Ayo vs - Lunhen(s * Ou seria preferivel falar da obra de Penélope'do esque- Bee uv Palais, ¢ cimento? A rememoracdo involuntaria, a mémoire in- Ne dest volontaire de Proust, nao esta muito mais préxima do ri bon. esquecimento que daquilo qie em geral chamamos de Uy aabayes lembranga? Nao seria essa obra de rememoragao espon- uc hy dua tanea — em que a lembranga é a trama e 0 esquecimen- to a urdidura — muito mais 0 oposto [a contrapartida] da obra de Penélope que sua cépia? Pbis aqui é'0 Yia que Le meainsty us Bag. 45 ur dtlvalley V40 Varela i i ound eu Gna dy Saguitar Go , 33 “Zum Bilde Prousts”, G. S., II-1, p. 311. Benjamin foi um leitor ‘paixonado de Proust, um tradutor pioneiro e, com esse ensaio publicado em 929 (apenas sete anos apés a morte de Proust) na Literarische Welt, tornou- se um dos primeiros criticos alemaes a saudar sua importancia. 34° Rememoragao sha phew = desfaz o que a noite produziu. Cada manha, quando acordamos, muitas vezes fracos e dispersos, seguramos em nossas mos apenas algumas franjas do tapete da existéncia vivida, tal como 0 esquecimento o teceu em nés. Cada dia, com seu agir intencional e, mais ainda, com seu lembrar intencional desfaz a teia, os ornamen- tos do esquecimento.”*4 Esse texto merece alguns comentarios mais precisos. Ele vive da metdfora exemplar que aproxima texto, tecido, tecelagem e trabalho da rememoragdo, definido com precisao como um entre- cruzamento entre o lembrar (a trama) e o esquecer (a urdidura). O véu de Penélope é obra conjunta do tecer e do desmanchar, co- mo 0 texto é a trama do lembrar e do esquecer. Se Penélope nao tivesse desfeito de noite aquilo que tecia de dia, deveria ter casado novamente, seu véu nao seria conhecido como um ardil maior e, podemos também inferir, nao haveria Odisseia nenhuma, se é bem verdade que Ulisses conclui seu ciclo de aventuras, matéria da narrativa, e chega em ftaca quando Penélope, trafda por uma do- méstica, teve a obrigacao de tecer até o fim 0 tecido da mortalha de Laertes, nessa bela analogia estrutural entre a viagem do nar- rador ¢€ 0 trabalho de tecelagem de sua esposa. + , “” 'Aithetdfora do tecido e da tecelagem, tao presente no contex- to das reflexdes benjaminianas sobre narragao, nao remete, por- tanto, apenas a uma nostalgia do autor em relagdo ao trabalho artesanal e a uma Idade Média idealizada, como foi apontado por v4rios comentadores.25 A imagem ressalta muito mais 0 movi- mento duplo dos fios, a dinamica do esquecer e do lembrar, em 1 af, 7 34 «A imagem de Proust”, in Obras escolhidas, vol. I, op. cit. Modif quei a tradugao para tentar deixar mais clara a distingao entre “Erinnerung”, , lembrar) e “Eingedenken”, rememoragao. lembranga (de “erinnern” B, Witte no texto “A crise da transmis- Edvaldo $. Couto e Carla M. Damido ercepgao na modernidade, Salvador 35 Ver algumas observacées de sibilidade: cidade, escrita, meméria”, in (orgs.), Walter Benjamin: formas de p Quarteto, 2008. 235 ie ambos, esquecimento e lembran ii Pi Sa; SAO ativos: isto é : quecimento nao é somente um apagar to é, 0 es ou um “branco” bém i » mas tam- a eae cria ornamentos, como diz 0 texto citado. A alusio ‘stingao bergsoniana (em Matiére et mémoire) entre memoria ¢ icra oe sem contexto intencional, hail Ghe ca: i eras embrar intencional, voluntario, s de lembranga (erinnern, Erinne- §), € um outro tipo de lembrar, atravessado pelo movimento conjunto e€ oposto do esquecimento, aquilo que Proust chama de mémotre involontaire e Benjamin, nesse texto, de rememoragio (Eingedenken). : Na edicdo critica das obras de Benjamin, encontramos um Pequeno texto intitulado “Aus einer kleinen Rede iiber Proust, an meinem vierzigsten Geburtstag gehalten”,>¢ isto é, “Extraido de uma pequena conferéncia sobre Proust, proferida no dia do meu quadragésimo aniversério”. A data é notavel, sobretudo porque sabemos que Benjamin tomou varias medidas para se suicidar num quarto de hotel em Nice nesse dia,37 deixando varias cartas de despedida. E o texto contém uma alusao as imagens de uma vida inteira que desfilam rapidamente aos olhos do moribundo, numa velocidade comparavel, diz Benjamin, as imagens desses pequenos caderninhos, precursores do filme, que mostravam o movimento de uma personagem, boxeador ou nadador, quando a crianga os folheava rapidamente. Nesse extrato de conferéncia, Benjamin aprofunda o conceito de mémoire involontaire, especialmente a novidade de suas imagens: “Zur Kenntnis der mémoire involontaire: ihre Bil- der kommen nicht allein ungerufen, es handelt sich viel- rain 36 G. S., II-3, p. 1.064. °7 Depois da leitura do belo livro de Vicente Valero, Experiencia y po- breza: Walter Benjamin en Ibiza, 1932-1933 (Barcelona, Ediciones Peninsu- 1a, 2001), devo corrigir esse dado: parece que Benjamin conseguiu ainda festejar seu quadragésimo aniversdrio na ilha de Ibiza, partindo para Nice, onde pensou em se matar alguns dias depois. 236 Rememoragao

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