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A democracia criminosa
Jacques Rancière
O acontecimento radical
De um lado, o fim do sistema soviético foi acompanhado de
um inventário minucioso que fazia de toda a história do
comunismo uma única e longa lista de crimes registrados em
volumosos "livros negros". Ao mesmo tempo, o genocídio
nazista suscitava uma atenção inteiramente nova, que se
traduzia não apenas por uma multiplicação dos testemunhos,
mas por uma corrente de pensamento que fazia dos campos
de extermínio o acontecimento radical sob cuja luz devia ser
repensada toda a história dos dois últimos séculos.
Mas é então que aparece o paradoxo. Podia-se acreditar que
o desmoronamento da alternativa soviética e o novo balanço
dos crimes nazistas e soviéticos reforçaria a frágil fé
ocidental nas virtudes da democracia. Não foi o que
aconteceu. Ao contrário, à medida que os crimes desses
regimes conheciam uma nova publicidade, os antigos
cantores dos direitos do homem ocidental e democrático se
voltavam contra seu ídolo de ontem. Os mais encarniçados
em denunciar os crimes soviéticos eram, como o historiador
François Furet, os primeiros a ver neles a conseqüência
direta da Revolução Francesa. Podia-se ainda, é verdade,
denunciar os excessos do "governo do povo" revolucionário
e opô-los aos "direitos do homem" proclamados pela
revolução liberal norte-americana.
Mas esses direitos mesmos logo caíam sob suspeita. Era o
tempo em que sociólogos americanos, como Daniel Bell,
denunciavam os danos do individualismo de massa que
arruínam toda forma de autoridade comum. Junto com eles,
politicólogos franceses, como Marcel Gauchet, faziam dos
direitos humanos a fórmula mesma desse individualismo
democrático de massa, destruidor não apenas da autoridade
mas do próprio sentido da comunidade política.
Assim, as oposições tradicionais tendiam aos poucos a
desaparecer. Os furores das multidões revolucionárias
tornavam-se idênticos à dispersão dos indivíduos egoístas e
narcísicos da sociedade democrática. E o "desligamento"
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