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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - + autores: A democracia criminosa - 28/03/2004

São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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+ autores

A democracia criminosa
Jacques Rancière

Há alguns meses apareceu na França um livro de título


intrigante: "As Tendências Criminosas da Europa
Democrática" ["Les Penchants Criminels de l'Europe
Démocratique", ed. Verdier]. O autor, Jean-Claude Milner,
não deixava os leitores ignorarem por muito tempo de qual
crime a democracia era, segundo ele, culpada. Por uma
demonstração que mobilizava com extrema sutileza todos os
recursos da filosofia e da lingüística, da psicanálise e da
história, ele afirmava uma tese simples. O crime que a
democracia carregava em si era simplesmente o extermínio
dos judeus da Europa. Inútil responder que o regime nazista
que havia planejado esse extermínio não invocava a
democracia. O argumento era exatamente virado pelo
avesso: segundo Milner, o que tornara possível depois de
1945 a construção de uma Europa apoiada sobre o princípio
da democracia fora precisamente o fato de o nazismo haver
suprimido nos anos precedentes aquilo que contrariava seu
advento, a saber, a existência na Europa de uma forte
comunidade judaica. O argumento histórico incontrolável
devia evidentemente ser apoiado por um argumento teórico,
que se apresenta assim: o reinado da democracia moderna é
o de uma sociedade que não quer mais conhecer nenhum
limite a seus poderes. Essa não-limitação se ilustra
particularmente nos sonhos contemporâneos da manipulação
genética, abolindo a diferença última entre natureza e
artifício e dando filhos fabricados in vitro a casais
homossexuais. Ora, essa tendência da sociedade democrática
moderna a levar seu poder ilimitado inclusive até a abolição
da filiação depara com um inimigo irredutível: o povo
reunido em torno do princípio mesmo da filiação e da
transmissão, ou seja, o povo judeu. A conclusão era tirada
naturalmente: ao exterminar os judeus da Europa, Hitler
realizava o sonho íntimo da democracia e permitia seu
reinado europeu. Por extrema que seja, essa demonstração se
inscreve sem dificuldade na paisagem do pensamento
político e filosófico de hoje. Sabe-se da importante virada
que nele se operou nos anos 1980. Até então o mundo dito
ocidental vivia uma certa idéia da democracia como sistema
jurídico-político. Uns opunham seu direito universalista e
suas liberdades individuais à coerção totalitária. Outros
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denunciavam sob suas formas universais a realidade da


exploração econômica e da dominação de classe.
Democracia real contra democracia formal ou, em sentido
inverso, direitos do homem democrático contra totalitarismo,
tal era a paisagem. A oposição, por certo, autorizava algumas
mediações: os partidários da democracia real por vir podiam
mostrar-se mais orgulhosos quanto à defesa das liberdades
formais que os cantores da democracia liberal. Estes últimos,
por seu lado, responsabilizavam com freqüência as fraquezas
ou os excessos da democracia pelo advento de regimes
totalitários. Mas faltava muito para chegar à idéia de que o
extermínio dos judeus fosse a realização direta do princípio
democrático. Para dar um passo lógico tão desconcertante, é
preciso que a paisagem do pensamento político tenha sido
seriamente abalada nesse meio tempo. Esse abalo de fato
ocorreu, mas também tomou uma forma à primeira vista
paradoxal. De um lado, a denúncia do totalitarismo, desde os
anos 1980, fez-se mais radical e mais insistente do que
nunca. Mas, de outro lado, a distinção entre o totalitarismo
denunciado e a democracia tendeu a fazer-se cada vez mais
tênue.

O acontecimento radical
De um lado, o fim do sistema soviético foi acompanhado de
um inventário minucioso que fazia de toda a história do
comunismo uma única e longa lista de crimes registrados em
volumosos "livros negros". Ao mesmo tempo, o genocídio
nazista suscitava uma atenção inteiramente nova, que se
traduzia não apenas por uma multiplicação dos testemunhos,
mas por uma corrente de pensamento que fazia dos campos
de extermínio o acontecimento radical sob cuja luz devia ser
repensada toda a história dos dois últimos séculos.
Mas é então que aparece o paradoxo. Podia-se acreditar que
o desmoronamento da alternativa soviética e o novo balanço
dos crimes nazistas e soviéticos reforçaria a frágil fé
ocidental nas virtudes da democracia. Não foi o que
aconteceu. Ao contrário, à medida que os crimes desses
regimes conheciam uma nova publicidade, os antigos
cantores dos direitos do homem ocidental e democrático se
voltavam contra seu ídolo de ontem. Os mais encarniçados
em denunciar os crimes soviéticos eram, como o historiador
François Furet, os primeiros a ver neles a conseqüência
direta da Revolução Francesa. Podia-se ainda, é verdade,
denunciar os excessos do "governo do povo" revolucionário
e opô-los aos "direitos do homem" proclamados pela
revolução liberal norte-americana.
Mas esses direitos mesmos logo caíam sob suspeita. Era o
tempo em que sociólogos americanos, como Daniel Bell,
denunciavam os danos do individualismo de massa que
arruínam toda forma de autoridade comum. Junto com eles,
politicólogos franceses, como Marcel Gauchet, faziam dos
direitos humanos a fórmula mesma desse individualismo
democrático de massa, destruidor não apenas da autoridade
mas do próprio sentido da comunidade política.
Assim, as oposições tradicionais tendiam aos poucos a
desaparecer. Os furores das multidões revolucionárias
tornavam-se idênticos à dispersão dos indivíduos egoístas e
narcísicos da sociedade democrática. E o "desligamento"
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democrático, idêntico à catástrofe totalitária. Podia-se então,


com Giorgio Agamben, mostrar nos "direitos do homem" a
confusão da identidade cidadã e da vida nua e ver sua lógica
igualmente realizada no genocídio nazista e no cotidiano de
nossas democracias. Podia-se, com Jean-Claude Milner,
fazer da democracia o princípio mesmo do genocídio.
O problema então é saber que forma de bom governo é
oposta a essa democracia que não se distingue mais do
totalitarismo. Alguns chamam-na República e opõem a
virtude do bom governo republicano à anarquia dos
indivíduos democráticos guiados apenas por seu prazer.
Quanto a Milner, ele escolhe um termo mais cru: governo
pastoral.
Com isso ele nos lembra a origem muito antiga dos discursos
atuais sobre a democracia. Foi Platão que, na "República",
esboçou o quadro da cidade democrática que nossos
sociólogos retomam indefinidamente: a democracia, diz ele,
é o regime sedutor em que todo mundo é livre e só faz o que
lhe apetece; não apenas os homens, mas também as mulheres
e as crianças e mesmo os cavalos e os burros, cujo orgulho
democrático leva a ocuparem a rua e a esbarrarem nos
passantes. É sempre desse burro democrático indócil que nos
falam as descrições complacentes da sociedade do conforto
ilimitado, na qual os trabalhadores que o exigem sempre
mais e os desempregados inebriados de prazeres novos
destroem, por suas exigências insensatas, a comunidade
republicana. Mas a denúncia do burro indócil oculta
certamente uma perturbação mais profunda.
Na democracia, nos diz Platão, os governantes têm o aspecto
de governados e, os governados, de governantes.
Compreendemos então, ao lê-lo, que o verdadeiro escândalo
da democracia não reside nos furores das massas ou na
licença dos indivíduos. Reside simplesmente em que o fato
de governar se mostre ali como puramente contingente,
fundado em nenhum título dado pelo nascimento, pela idade,
pelo saber ou uma outra superioridade manifesta. A
democracia é a forma de governo baseada na idéia de que
nenhum indivíduo ou grupo possui título para governar os
outros.
Esse governo contingente de seja lá quem for indica, para
Platão, um mundo que gira ao contrário. Houve um tempo
em que o mundo guiado pela divindade girava no bom
sentido: o poder era então comparável à solicitude
esclarecida do pastor que sabe o que é bom para seu rebanho.
É com esse governo pastoral, no qual as elites se preocupam
paternalmente com o rebanho e o protegem contra seus
próprios humores rebeldes, que hoje as pessoas sonham em
voz cada vez mais alta no Ocidente. Quanto a saber quem
deve educar esses pastores e como reconhecer sua sabedoria,
a coisa permanece mais obscura.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O


Dissenso" (ed. 34). Ele escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Paulo Neves.

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