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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - + autores: Jacques Rancière: De uma tortura a outra - 10/06/2001

São Paulo, domingo, 10 de junho de 2001

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+ autores

De uma tortura a outra


Jacques Rancière

Com o que nos indignamos hoje e que rosto conferimos ao


intolerável? Algumas semanas atrás, a França era sacudida
pelo retorno de um recalque não muito antigo. Um general,
comandante dos serviços especiais franceses durante a
Guerra da Argélia, revelava em livro o detalhe das torturas
sistematicamente praticadas pelos especialistas da
informação contra os suspeitos. Revelar é dizer muito. Faz
mais de 40 anos que escritores e docentes tomaram da pluma
para denunciar os métodos dos serviços especiais. Seus
livros foram então perseguidos ou proibidos, e os governos,
socialista, depois gaullista, que moviam na época a guerra na
Argélia, trataram continuamente essas revelações como
fábulas destinadas a desmoralizar as tropas e a nação em
proveito da insurreição argelina.
Assim, hoje não podemos senão achar cômicas as
declarações horrorizadas de Jacques Chirac ou dos ministros
socialistas, indignando-se contra esse abominável torturador,
que não fora mais que um executor da política liderada pelos
chefes de Estado ou de governo de que eles são os herdeiros.
Todos os que denunciaram na época a tortura na Argélia não
se furtaram a dizer que a questão não dizia respeito às ações
de um militar perverso, mas à política de um Estado, à
política da razão de Estado que justifica tudo e do segredo do
Estado que tudo acoberta.
Essa "revelação" de um segredo amplamente conhecido põe
os governos de hoje, filhos daqueles de ontem, numa posição
desconfortável. Felizmente, os potenciais públicos de
indignação logo se iriam fixar num objeto de escândalo bem
diverso, um objeto de escândalo do nosso tempo. Uma
televisão privada francesa lançou, segundo o modelo do "Big
Brother" holandês, já aclimatado em numerosos países, a
transmissão de "Loft Story". Onze jovens foram encerrados
sob o olhar das câmaras que retransmitiam dia e noite os
episódios de sua vida engaiolada: conversas triviais,
necessidades fisiológicas ou folguedos eróticos. O conjunto
dessa (in)atividade era ao mesmo tempo orientado pelo
objetivo do jogo: a eliminação progressiva dos ocupantes do
loft por pré-seleção interna e voto dos telespectadores até
que só restasse um casal, o casal ganhador.
Em poucos dias, os recordes de audiência foram batidos. Em
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1006200109.htm 1/4
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poucos dias, também, a opinião jornalística e intelectual se


debruçou sobre esse novo "fenômeno de sociedade". A nota
dominante era a indignação. Por vezes, ela se circunscrevia
aos aspectos econômicos e culturais do negócio: essa gente
que ganha um salário mínimo para oferecer a imagem da
vida como ela é era a um tempo uma nova forma de
exploração do trabalho e o meio de reduzir ao mínimo as
despesas da indústria cultural, necessárias para atrair as
receitas publicitárias. "A grana varreu a cultura", declarava
um semanário de esquerda. Mas, na maioria dos casos, bem
mais que uma infração à legislação do trabalho, se
denunciava o triunfo do sistema totalitário.

Ligeiras diferenças Essas cobaias fechadas dia e noite sob o


olhar das câmeras, escancarando ao olhar de todos sua vida
privada, essa comunidade fictícia de indivíduos que não
possuem outro objetivo senão eliminar os outros não seria a
realização do grande sonho de controle total dos indivíduos?
Nas colunas do "Monde", um filósofo tirava disso a lição:
fazendo eco à "pornografia dos campos de concentração",
"Loft Story" figurava "o ideal terrível, mas domesticado, da
sociedade com a qual sonhou o totalitarismo, sem poder
realizá-lo".
Em vão se fez notar aos profetas da catástrofe final que
havia, ainda assim, ligeiras diferenças entre os 11
concorrentes de "Loft Story" e os milhões de prisioneiros dos
campos stalinistas ou nazistas. Estes, aliás, não tinham
escolhido estarem onde estavam; quem os havia encarcerado
não se preocupava minimamente em lhes dar a vida em
espetáculo, antes pelo contrário: queriam atirá-la na sombra.
O extermínio em massa, a eliminação lenta ou a destruição
psíquica lá faziam as vezes da mansão prometida aos felizes
ganhadores.
Os denunciadores não se deixaram perturbar por tão pouco:
este, retrucam eles, é justamente o totalitarismo
aperfeiçoado, o "totalitarismo soft" que não procede a
nenhuma tortura, que não destrói nenhum corpo, mas que é
exercido "somente sobre as consciências, somente em
imagens".
Reconhece-se a lógica do argumento: a causa é tanto mais
confirmada quanto mais invisível é seu efeito. Ironicamente
essa foi sempre a lógica paranóica dos poderes totalitários.
Era assim que o procurador Vichinsky reconhecia os
sabotadores mais perversos da pátria soviética: para esconder
que eram sabotadores, eles nunca se abandonavam a nenhum
ato de sabotagem. Do mesmo modo, o totalitarismo é
reputado tanto mais perfeito quanto mais internalizado, mais
imaterial. Da mesmo forma, claro, as histórias de torturas, de
razão e de segredo de Estado somem pelo alçapão. O
totalitarismo, hoje nos ensinam, é a lei interiorizada da
transparência generalizada. Na era da publicidade planetária,
estamos todos encerrados, em todos os campos, vítimas da
lógica pura e perfeita do sistema que os torturadores à antiga
e os chefes de campos de extermínio ainda não podiam
imitar senão de modo artesanal.
Michel Foucault inquietava-se outrora com as consequências
um pouco simplistas demais que se podiam tirar de suas
teses sobre a "sociedade do controle". Ele temia que todas as
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perseguições políticas do mundo fossem agrupadas e


dissolvidas numa noite de "encarceramento" na qual todos os
gatos seriam pardos. Deplorava um modo cômodo demais de
dizer: "Todos temos o nosso Gulag: ele está à nossa porta,
em nossas cidades, em nossos hospitais, em nossas prisões.
Está aqui em nossas cabeças".
Esse temor revelou-se totalmente justificado. Desde então
não cessaram de proliferar, sob o próprio manto da referência
à "biopolítica" de Foucault, os discursos que remontam às
mais diversas atrocidades da razão de Estado ao conceito de
um totalitarismo "soft" que está em toda parte, mas em
primeiro lugar e sobretudo nas telas de TV e nas cabeças dos
telespectadores. Denunciar o comércio das imagens torna-se
então o primeiro dos deveres e o menos custoso dos
"heroísmos".
Não cabe ampliar a paranóia. Certamente os promotores
dessas transmissões não lançaram seus produtos para fazer
esquecer os genocídios e as torturas. E os filósofos
denunciadores tampouco os pretendem fazer olvidar.
Contudo, por meio da própria marcha da polêmica, um
estranho consenso parece se instalar entre os comerciantes de
imagens, os denunciadores da imagem e os governantes.
Estes, sempre pouco à vontade ante o retorno dos recalques
da razão de Estado, geralmente acolheram com indulgência
essas transmissões "totalitárias". O espetáculo televisual da
vida comum oferecida ao consumo de indivíduos comuns
está bem de acordo com sua divisa atual: a do realismo
cotidiano a serviço das preocupações cotidianas dos
"cidadãos". "Escuta" e "proximidade", que são hoje as
palavras-chave de nossos governos, encontram ali sua mais
exata ilustração.

Virtudes e tumultos As antigas representações do Estado e


a denúncia política de sua "razão" e de seus segredos são
substituídas por uma dupla descrição de nossa sociedade. De
um lado, ela é representada como a sede das ocupações
calmas e cotidianas, dos pequenos problemas e dos pequenos
prazeres que opõem suas virtudes pacificadoras aos tumultos
democráticos e sociais, responsáveis primeiros pelas grandes
catástrofes totalitárias. Essa sociedade tranquila se
harmoniza assim com o modesto Estado gestor, que liquida
as grandes utopias. De outro lado, a mesma sociedade do
"cotidiano", da "escuta" e da "proximidade" é apresentada
como a realização extrema de um totalitarismo cuja sede não
é outra senão o narcisismo do indivíduo democrático comum
encarnado pelo telespectador.
De um lado, o sábio Estado gestor e realista opõe-se ao
"totalitarismo" nascido das paixões utópicas da efervescência
popular. De outro, o nobre Estado republicano, fiador da
ordem simbólica e dos valores universalistas, é invocado
para conter o "totalitarismo" inerente ao narcisismo dos
indivíduos democráticos.
Dos dois lados a razão de Estado se acha discretamente
desonerada do peso de seus crimes reais e novamente
legitimada contra aqueles de um totalitarismo imaginário.

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Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e autor


de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (ed. 34), entre outros. Ele escreve
regularmente na seção "Autores", do Mais!.

Tradução de José Marcos Macedo.

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