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“Podemos sonhar com um tempo em que a máquina de governar virá suplementar - para o
bem ou para o mal, quem pode saber? - a insuficiência hoje patente dos chefes e dos
aparelhos costumeiros da política.” Padre Dominique Dubarle, Le Monde, 28 dezembro
1948
1Do tradutor:
O não-autor (escrito por, algum, nenhum ou todos [ou as três coisas ao mesmo tempo] os membros
da revista Tiqqun entre os anos 1999 e 2001) se vale frequentemente de uma construção intraduzível
propriamente, e que tem muita importância no texto. Em português, quando dizemos algo como
“sabe-se que….”, usamos uma forma (próxima da idéia) de sujeito indeterminado neste “-se”. Em
francês, usa-se o pronome impessoal “on”: “On sait que….”. Em momentos específicos, o autor se
vale deste “on” em caixa alta: ON sait que. Optamos traduzir todas estas construções por um SE
“índice de indeterminação do sujeito” (as gramáticas, chatonildas, chamam às vezes de “partícula
apassivadora” também, conforme a regência do verbo em questão - não entro no mérito dessa
interpretação) assim em caixa alta. A caixa alta tem claro uso de despertar a questão de quem é este
sujeito indeterminado através do qual as coisas acontecem sistemicamente, globalmente, na
sociedade e nos ambientes. Apesar disso, nem todas as ocorrências de -se neste contexto são ON-
em-caixa-alta, e algumas vezes fomos obrigados a usar o -se indeterminado em frases em que o on
não ocorria em francês. As maiúsculas ocorrem apenas quando ocorrem em francês.
Disclaimer: o tradutor deste texto interessa-se por questões políticas, de anarquismo e de
cibernética. Longe de concordar com tudo o que o texto diz, penso que ele propõe um desafio
imenso, e talvez o mais importante desafio com que uma teoria política terá que lidar hoje. Para
anarquistas, pessoas de esquerda ou extrema-esquerda, liberais ou mesmo anarcocapitalistas
delirantes, muitos se beneficiarão deste texto, e poderão ver nele um retrato talvez assustador de
nossa situação atual. Dada a bela descrição teórica e histórica da questão, impressionante para
qualquer pessoa familiarizada com o assunto e que será valorizada por bons leitores, o autor propõe
algumas soluções: resta-nos ver se são soluções, se são boas, e mesmo se é possível haver outras.
I
“Eles quiseram uma aventura e vivê-la convosco. É finalmente a única coisa a dizer. Eles
acreditam resolutamente que o futuro será moderno: diferente, apaixonante, difícil
certamente. Povoado de ciborgues e de empreendedores de mãos nuas, febres da bolsa de
valores e homens neuronais. Como já é o presente para os que querem vê-lo. Eles
acreditam que o futuro será humano, mesmo feminino - e plural; para que cada um o viva, e
que todos nele participem. São elas, as Luzes que havíamos perdido, os soldados do
progresso, os habitantes do século XXI. Eles combatem a ignorância, a injustiça, a miséria,
os sofrimentos de todo tipo. Eles estão lá onde as coisas rolam, lá onde algo acontece. Eles
não querem perder nada. Eles são humildes e corajosos, a serviço de um interesse que os
ultrapassa, guiados por um princípio superior. Eles sabem colocar os problemas mas
também encontrar soluções. Eles nos farão ultrapassar as fronteiras mais perigosas,
segurarão nossa mão desde os riachos do futuro. Eles são a História em movimento, ao
menos o que resta dela, pois o mais duro já ficou para trás. São santos e profetas,
verdadeiros socialistas. Já faz muito tempo que eles compreenderam que maio de 1968
não foi uma revolução. A verdadeira revolução, eles a fazem. Não é nada além de uma
questão de organização e de transparência, de inteligência e de cooperação. Vasto
programa! E depois…”
DESCULPA! O QUÊ? O QUE ESTÁ DIZENDO? Que programa? Os piores pesadelos, você
sabe, são frequentemente metamorfoses de uma fábula, daquelas que nos contavam
quando éramos crianças para nos fazer dormir e cumprir nossa educação moral. Os novos
conquistadores, que chamaremos aqui de ciberneticistas, não formam um partido
organizado - o que teria deixado mais fácil a tarefa para nós - mas uma constelação difusa
de agentes, agidos, possuídos, cegados pela mesma fábula. São os assassinos do tempo,
as travessias do Mesmo, os apaixonados pela fatalidade. São os sectários da ordem, os
apaixonados da razão, o povo dos intermediários. As Grandes Narrativas podem bem estar
mortas como o repete à vontade a vulgata pós-moderna: a dominação permanece
constituída por ficções-mestras. Foi o caso daquela Fábula das Abelhas que publicou
Bernard de Mandeville nos primeiros anos do século XVIII e que tanto fez para fundar a
economia política e justificar os avanços do capitalismo. A prosperidade, a ordem social e
política não dependiam mais ali das virtudes católicas de sacrifício, mas da busca por cada
indivíduo de seu interesse próprio. Os “vícios privados” ali eram declarados garantias do
“bem comum”. Mandeville, “o Homem-Diabo” como se o chamava então, fundava assim,
contra o espírito religioso de seu tempo, a hipótese liberal que mais tarde inspirou Adam
Smith. Embora seja regularmente reativada, sob as formas renovadas do liberalismo,
aquela fábula hoje está caduca. Disso se seguirá, para os espíritos críticos, que não é mais
preciso criticar o liberalismo. É um outro modelo que tomou seu lugar, aquele mesmo que
se esconde atrás dos nomes de Internet, de novas tecnologias da informação e da
comunicação, de “Nova Economia” ou de gênio genético. O liberalismo não é daqui em
diante mais que uma justificativa remanescente, o álibi do crime cotidiano perpetrado pela
cibernética.
A hipótese cibernética é portanto uma hipótese política, uma nova fábula que, a partir da
Segunda Guerra mundial, definitivamente suplantou a hipótese liberal. Em oposição a esta
última, ela propõe conceber os comportamentos biológicos, físicos e sociais como
integralmente programados ou reprogramáveis. Mais precisamente, ela representa cada
comportamento como “pilotado” em última instância pela necessidade de sobrevivência de
um “sistema” que o torna possível e para o qual deve contribuir. É um pensamento de
equilíbrio nascido num contexto de crise. Enquanto 1914 sancionou a decomposição das
condições antropológicas de verificação da hipótese liberal - a emergência do Bloom, a
falência, manifesta em carne e osso nas trincheiras, da ideia de indivíduo e de qualquer
metafísica do sujeito - e 1917 sua contestação histórica pela “revolução” bolchevique, 1940
marca a extinção da ideia de sociedade, tão evidentemente trabalhada pela autodestruição
totalitária. Como experiências-limite da modernidade política, o Bloom e o totalitarismo
foram então as refutações mais sólidas da hipótese liberal. O que Foucault chamará mais
tarde de “morte do Homem” não é nada além da destruição suscitada por estes dois
ceticismos: um em direção ao indivíduo, o outro à sociedade, e provocados pela Guerra dos
Trinta anos que afetou a Europa e o mundo durante a primeira metade do século passado.
O problema que o Zeitgeist destes anos coloca é de novo o de “defender a sociedade”
contra as forças que conduzem a sua decomposição, restaurar a totalidade social apesar de
uma crise geral da presença que aflige cada um de seus átomos. A hipótese cibernética
responde por conseguinte, tanto nas ciências naturais como nas ciências sociais, a um
desejo de ordem e de certeza. Agenciamento mais eficaz de uma constelação de reações
animadas por um desejo ativo de totalidade - e não apenas por uma nostalgia por ela como
nas diferentes variações do romantismo -, a hipótese cibernética é parente das ideologias
totalitárias como de todos os holismos, místicos, solidários como em Durkheim,
funcionalistas ou mesmo marxistas, que ela apenas retoma.
Como todo discurso, a hipótese cibernética não pôde se verificar a não ser associando os
entes ou as ideias que a reforçam, ao experimentar o contato com eles, dobrando o mundo
a suas leis num processo contínuo de autovalidação. É doravante um conjunto de
dispositivos que tem por ambição encarregar-se da totalidade da existência e do existente.
O grego kubernèsis significa, em sentido próprio, “ação de pilotar um navio”, e, em sentido
figurado, “ação de dirigir, de governar”. Em seu curso de 1981-82, Foucault insiste sobre a
significação desta categoria de “pilotagem” no mundo grego e romano sugerindo que ela
poderia ter uma dimensão mais contemporânea: “A ideia da pilotagem como arte, como
técnica ao mesmo tempo teórica e prática, necessária à existência, é uma ideia que é,
acredito, importante e que mereceria ser eventualmente analisada de mais perto, na medida
em que se vêem ao menos três tipos de técnicas que são muito regularmente referidas e
este modelo de pilotagem: primeiramente a medicina; em segundo lugar, o governo político;
em terceiro, a direção e o governo de si mesmo. Estas três atividades (curar, dirigir os
outros, governar-se a si mesmo) são muito regularmente, na literatura grega, helenística e
romana, referidas a esta imagem da pilotagem. E creio que esta imagem da pilotagem
recorta muito bem um tipo de saber e de práticas entre os quais os gregos e os romanos
reconheciam um parentesco certo, e para as quais eles tentavam estabelecer uma tekhné
(uma arte, um sistema refletido de práticas referido a princípios gerais, a noções e a
conceitos): o Príncipe, como aquele que deve governar os outros, governar-se a si mesmo,
curar os males da cidade, os males dos cidadãos, seus próprios males; aquele que se
governa como se governa uma cidade, ao curar seus próprios males; o médico que tem que
dar seu visto não apenas sobre os males do corpo, mas sobre os males da alma dos
indivíduos. Enfim, vocês vêem, temos aqui todo um pacote, todo um conjunto de noções no
espírito dos gregos e dos romanos que procede, creio, de um mesmo tipo de saber, de um
mesmo tipo de atividade, de um mesmo tipo de conhecimento conjectural. E penso que se
poderia reencontrar toda a história desta metáfora praticamente até o século XVI, no qual
precisamente a definição de uma nova arte de governar, centrada em torno da razão de
Estado, distinguirá, então de uma forma radical, governo de si/medicina/governo dos outros
- não sem aliás que esta imagem da pilotagem, vocês sabem bem, permaneça ligada à
atividade, atividade que se chama justamente atividade de governo.”
O que o público de Foucault é reputado bem saber, e que ele bem evita expor, é que no fim
do século XX a imagem do piloto, quer dizer da gestão, se tornou a metáfora cardinal para
descrever não apenas a política mas também toda atividade humana. A cibernética se torna
o projeto de uma racionalização sem limites. Em 1953, quando publica The Nerves of
Government em pleno período de desenvolvimento da hipótese cibernética nas ciências
naturais, Karl Deutsch, um universitário americano em ciências sociais, leva a sério as
possibilidades políticas da cibernética. Ele recomenda abandonar as velhas concepções de
soberania do poder que foram por tempo demais a essência do político. Governar será
inventar uma coordenação racional dos fluxos de informações e de decisões que circulam
no corpo social. Três condições a efetivarão, ele diz: instalar um conjunto de captadores
para não perder informação alguma que venha dos “sujeitos”; tratar as informações por
correlação e associação; situar-se na proximidade de cada comunidade viva. A
modernização cibernética do poder e das formas obsoletas de autoridade social se anuncia
portanto como produção visível da “mão invisível” de Adam Smith que servia até então de
pedra angular mística para a experimentação liberal. O sistema de comunicação será o
sistema nervoso das sociedades, a fonte e a destinação de todo poder. A hipótese
cibernética enuncia assim, nem mais nem menos, a política do “fim da política”. Ela
representa ao mesmo tempo um paradigma e uma tecnologia de governo. Seu estudo
mostra que a polícia não é apenas um órgão do poder mas também uma forma do
pensamento.
A cibernética emerge então sob a chegada inofensiva de uma simples teoria da informação,
uma informação sem origem precisa, sempre já-lá em potência no ambiente de qualquer
situação. Ela pretende que o controle de um sistema seja obtido pelo grau ótimo de
comunicação entre suas partes. Este objetivo reclama a princípio a extorsão contínua de
informações, processos de separação dos seres e de suas qualidades, de produção de
diferenças. Dito de outra forma, a dominação da certeza passa pela representação e a
memorização do passado. A imagem espetacular, a codificação matemática binária - a que
Claude Shannon inventa na Mathematical Theory of Information no mesmo ano em que se
enuncia a hipótese cibernética - de um lado, a invenção de máquinas de memória que não
alterem a informação e o inacreditável esforço em sua miniaturização - é a função
estratégica determinante das nanotecnologias atuais - do outro, conspiram a criar tais
condições no nível coletivo. Assim elaborada, a informação deve retornar em seguida para o
mundo dos entes, ligando-os uns aos outros, à maneira pela qual a circulação das
mercadorias garante sua equivalência. A retroação, chave da regulação do sistema, reclama
agora uma comunicação no sentido estrito. A cibernética é o projeto de uma recriação do
mundo pelo entrelaçamento infinito destes dois momentos, a representação que separa, a
comunicação que religa, a primeira dá a morte, a segunda imita a vida.
O discurso cibernético começa por reenviar à raia dos falsos problemas as controvérsias do
XIX que opunham as visões mecanicistas às visões vitalistas ou organicistas do mundo. Ele
postula uma analogia de funcionamento entre os organismos vivos e as máquinas,
assimiladas sob a noção de “sistema”. Ademais, a hipótese cibernética justifica dois tipos de
experimentações científicas e sociais. A primeira visa transformar os seres vivos numa
mecânica, a dominar, programar, determinar o homem e a vida, a sociedade e seu “devir”.
Ela alimenta o retorno do eugenismo como fantasma biônico. Ela investiga cientificamente o
fim da História; estamos aqui inicialmente no terreno do controle. A segunda visa imitar o
vivo com máquinas, a princípio enquanto indivíduos, e isto conduz aos desenvolvimentos
dos robôs e da inteligência artificial; em seguida enquanto coletivos, e isto leva a colocar em
circulação as informações e à constituição de “redes”. Estamos aqui antes situados sobre o
terreno da comunicação. Embora socialmente compostos de populações muito diversas -
biólogos, médicos, informáticos, neurologistas, engenheiros, consultores, policiais,
publicitários, etc - as duas correntes de ciberneticistas nem por isso deixam de estar
reunidos pelo fantasma comum de um Autômato Universal, análogo ao que Hobbes tinha
sobre o Estado no Leviatã, “homem (ou animal) artificial”.
A unidade dos avanços cibernéticos provém de um método, quer dizer, ela se impôs como
método de inscrição do mundo, ao mesmo tempo ódio experimental e esquematismo
proliferante. Ela corresponde à explosão das matemáticas aplicadas que seguiu-se ao
desespero causado pelo austríaco Kurt Gödel quando este demonstrou que toda tentativa
de fundação lógica das matemáticas, e daí de uma unificação das ciências, estava
condenada à “incompletude”. Com a ajuda de Heisenberg, mais de um século de
justificação positivista acaba de afundar. É Von Neumann quem exprime ao extremo este
abrupto sentimento de aniquilação dos fundamentos. Ele interpreta a crise lógica das
matemáticas como a marca da imperfeição inelutável de toda criação humana. Ele quer por
conseguinte estabelecer uma lógica que saiba enfim ser coerente, uma lógica que apenas
poderia provir do autômato! De matemático puro, ele se faz o agente de uma mestiçagem
científica, de uma matematização geral que permitirá reconstruir de baixo, pela prática, a
unidade perdida das ciências da qual a cibernética deveria ser a expressão teórica mais
estável. Nenhuma demonstração, nenhum discurso, nenhum livro, nenhum lugar que não
seja desde então animado pela linguagem universal do esquema explicativo, da forma
visual do raciocínio. A cibernética transporta o processo de racionalização comum à
burocracia e ao capitalismo no estágio da modelização total. Herbert Simon, o profeta da
Inteligência Artificial, retoma nos anos 1960 o programa de Von Neumann a fim de construir
um autômato de pensamento. Trata-se de uma máquina dotada de um programa, chamado
sistema-expert, que deve ser capaz de tratar a informação a fim de resolver os problemas
que cada domínio particular de competência conhece, e, por associação, o conjunto dos
problemas práticos encontrados pela humanidade! O General Problem Solver (GPS), criado
em 1972, é o modelo desta competência universal que resume todas as outras, o modelo
de todos os modelos, o intelectualismo mais aplicado, a realização prática do adágio
preferido dos pequenos senhores sem senhorio segundo o qual “não há problemas; apenas
soluções”.
A hipótese cibernética progride indistintamente como teoria e como tecnologia, uma sempre
certificando a outra. Em 1943, Wiener encontra John Von Neumann, encarregado de
construir máquinas suficientemente rápidas e potentes para efetuar os cálculos necessários
ao desenvolvimento do projeto Manhattan no qual trabalham 15000 especialistas e
engenheiros assim como 300 mil técnicos e operadores sob a direção do físico Robert
Oppenheimer: o computador e a bomba atômica nascem juntos. Do ponto de vista do
imaginário contemporâneo, “a utopia da comunicação” é portanto o mito complementar do
da invenção do nuclear: trata-se sempre de alcançar o ser-conjunto por excesso de vida ou
por excesso de morte, por fusão terrestre ou por suicídio atômico. A cibernética se
apresenta como a resposta melhor adaptada ao Grande Medo da destruição do mundo e da
espécie humana. Von Neumann é seu agente duplo, o “inside outsider” por excelência. A
analogia entre as categorias de descrição de suas máquinas, dos organismos vivos e
aquelas de Wiener fecha a aliança da cibernética e da informática. É preciso alguns anos
para que a biologia molecular, na origem da decodificação do DNA, utilize por sua vez a
teoria da informação para explicar o homem enquanto indivíduo e enquanto espécie,
conferindo por isso mesmo um poder técnico desigual à manipulação experimental dos
seres humanos sobre o plano genético.
“Não é preciso ser profeta para reconhecer que as ciências modernas, em seu trabalho de
instalação, não tardarão a ser determinadas e pilotadas pela nova ciência de base, a
cibernética. Esta ciência corresponde à determinação do homem como ser cuja essência é
a atividade em meio social. Ela é com efeito a teoria que tem por objeto tomar em mãos a
planificação possível e a organização do trabalho humano.”
Martin Heidegger, O fim da filosofia e a tarefa do pensamento, 1966
A história contemporânea do discurso econômico deve ser encarada sob o ângulo desta
escalada do problema da informação. Da crise de 1929 a 1945, a atenção dos economistas
se detém sobre as questões de antecipação, de incerteza ligada à demanda, de ajuste
entre produção e consumo, de previsão da atividade econômica. A economia clássica vinda
de Smith vacila como os outros discursos científicos diretamente inspirados pela física de
Newton. O papel preponderante que a cibernética tomará depois de 1945 na economia se
compreende a partir de uma intuição de Marx que constatava que “na economia política, a
lei é determinada por seu contrário, a saber a ausência de leis. A verdadeira lei da
economia política é o acaso.” A fim de provar que o capitalismo não é fator de entropia e de
caos social, o discurso econômico privilegia, a partir dos anos 40, uma redefinição
cibernética de sua psicologia. Ela se apoia sobre o modelo da “teoria dos jogos”
desenvolvida por Von Neumann e Oskar Morgenstern em 1944. Os primeiros sócio-
ciberneticistas mostram que o homo oeconomicus não poderia existir senão na condição de
uma transparência total de suas preferências a si mesmo e aos outros. Impedida de poder
conhecer o conjunto dos comportamentos dos outros atores econômicos, a ideia utilitarista
de uma racionalidade das escolhas microeconômicas é apenas uma ficção. Sob o impulso
de Friedrich von Hayek, o paradigma utilitarista é portanto abandonado em proveito de uma
teoria dos mecanismos de coordenação espontânea das escolhas individuais que
reconhece que cada agente tem apenas conhecimento limitado dos comportamentos de
outrem e de seus próprios comportamentos. A resposta consiste em sacrificar a autonomia
da teoria econômica ao enxertá-la na promessa cibernética do equilíbrio dos sistemas. O
discurso híbrido que dali resulta, em seguida chamado de “neoliberal”, empresta ao
mercado virtudes de alocação ótima da informação - e não mais das riquezas - na
sociedade. A este título, o mercado é o instrumento da coordenação perfeita dos atores
graças aos quais a totalidade social encontra um equilíbrio durável. O capitalismo se torna
aqui indiscutível na medida em que é apresentado como simples meio, o melhor meio, para
produzir a autorregulação social.
Como em 1929, o movimento de contestação planetária de 1968 e, mais ainda, a crise pós-
1973 recolocam à economia política o problema da incerteza, sobre um terreno existencial e
político desta vez. Intoxica-se de teorias que roncam, aqui este velho piegas Edgar Morin e
sua “complexidade”, ali Joël de Rosnay, este simplório iluminado, e sua “sociedade do
tempo real”. A filosofia ecologista se nutre desta mística nova do Grande Todo. A totalidade,
agora, não é mais uma origem a se recuperar, mas um devir a se construir. O problema da
cibernética não é mais a previsão do futuro mas a reprodução do presente. Não é mais
questão de ordem estática mas de dinâmica de auto-organização. O indivíduo não é mais
creditado com poder algum: seu conhecimento do mundo é imperfeito, seus desejos lhe são
desconhecidos, ele é opaco a si mesmo, tudo lhe escapa, embora ele seja
espontaneamente cooperativo, naturalmente empático, fatalmente solidário. Ele não sabe
nada de tudo isto mas sabe-SE tudo dele. Aqui se elabora a forma mais avançada do
individualismo contemporâneo, sobre a qual se enxerta a filosofia hayekiana para a qual
toda incerteza, toda possibilidade de evento é apenas um problema temporário de
ignorância. Convertido em ideologia, o liberalismo serve de cobertura a um conjunto de
práticas técnicas e científicas novas, uma “segunda cibernética” difusa, que apaga
deliberadamente seu nome de batismo. Desde os anos 60 o próprio termo de cibernética
desagregou-se em termos híbridos. A explosão das ciências não permite mais com efeito
uma unificação teórica: a unidade da cibernética se manifesta doravante na prática pelo
mundo que ela configura a cada dia. Ela é a ferramenta pela qual o capitalismo ajustou uma
a outra sua capacidade de desintegração e sua busca por lucro. Uma sociedade ameaçada
por decomposição permanente poderá tanto melhor ser dominada quando se formará uma
rede de informações, um “sistema nervoso” autônomo, que permitirá pilotá-la, escrevem no
caso francês os macacos de Estado Simon Nora e Alain Minc em seu relatório de 1978. O
que SE chama hoje “Nova Economia”, que unifica sob um mesmo nome controlado de
origem cibernética o conjunto das transformações que os países ocidentais conheceram
nos últimos 30 anos, é um conjunto de assujeitamentos, uma nova solução ao problema
prático da ordem social e de seu futuro, isto é, uma nova política.
Nada exprime melhor a vitória contemporânea da cibernética que este fato de que o valor
pode ser extraído como informação sobre a informação. A lógica mercantil-cibernética, ou
“neoliberal”, se estende a toda atividade, inclusive a ainda não de mercado, com a
sustentação inabalável dos Estados modernos. Mais geralmente, a precarização dos
objetos e dos sujeitos do capitalismo tem como corolário um crescimento da circulação de
informações sobre eles: é tão verdadeiro para o trabalhador-desempregado quanto para a
vaca. A cibernética visa por conseguinte inquietar e controlar num mesmo movimento. Ela
se fundou sobre o terror que é um fator de evolução - de crescimento econômico, de
progresso moral - pois ela fornece a ocasião de uma produção de informações. O estado de
urgência, que é o próprio das crises, é o que permite à autorregulação ser relançada, a auto
entreter-se como movimento perpétuo. Embora ao contrário do esquema da economia
clássica, no qual o equilíbrio da oferta e da demanda deveria permitir o “crescimento” e por
isso o bem-estar coletivo, é doravante o “crescimento” que é um caminho sem limites rumo
ao equilíbrio. É portanto justo criticar a modernidade ocidental como processo de
“mobilização infinita” cuja destinação seria “o movimento para mais movimento”. Mas, de
um ponto de vista cibernético, a autoprodução que caracteriza tanto o Estado e o Mercado
quanto o autômato, o assalariado ou o desempregado é indiscernível do autocontrole que a
tempera e a desacelera.
IV.
“O único momento de permanência de uma classe enquanto tal é também aquela que
possui sua consciência para si: a classe dos gestores do capital enquanto máquina social. A
consciência que a conota é, com a maior coerência, a do apocalipse, da autodestruição.”
Giorgio Cesarano
Manual de sobrevivência, 1975.
Está consumado, a cibernética não é mais simplesmente um dos aspectos da vida
contemporânea, sua ala neotecnológica por exemplo, mas o ponto de partida e o ponto de
chegada do novo capitalismo. Capitalismo cibernético - que significa isto? Isto quer dizer
que fazemos face desde os anos 1970 a uma formação social emergente que substitui o
capitalismo fordista e que resulta da aplicação da hipótese cibernética à economia política.
O capitalismo cibernético se desenvolve a fim de permitir ao corpo social devastado pelo
Capital que se reforme e se ofereça a um ciclo a mais nos processos de acumulação. De
um lado o capitalismo deve crescer, o que implica uma destruição. Do outro ele deve
reconstruir a “comunidade humana”, o que implica uma circulação. “Há”, escreve Lyotard,
“dois usos da riqueza, quer dizer da potência-poder: um uso reprodutivo e um uso
saqueador. O primeiro é circular, global, orgânico; o segundo é parcial, mortífero, invejoso.
[...] O capitalista é um conquistador e o conquistador é um monstro, um centauro: suas
rodas da frente se nutrem em reproduzir o sistema regulado das metamorfoses controladas
sob a lei da mercadoria-estalão, e suas rodas de trás em pilhar as energias superexcitadas.
Com uma mão apropriar-se, portanto conservar, quer dizer reproduzir na equivalência,
reinvestir; com a outra tomar e destruir, roubar e fugir, perfurando um outro espaço, um
outro tempo.” As crises do capitalismo tal como Marx as compreendia vêm sempre de uma
desarticulação entre o tempo da conquista e o tempo da reprodução. A função da
cibernética é evitar esta crise ao assegurar a coordenação entre “as rodas da frente” e “as
rodas de trás” do Capital. Seu desenvolvimento é uma resposta endógena trazida para o
problema posto ao capitalismo, que é o de desenvolver-se sem desequilíbrios fatais.
Enquanto a ascensão do controle no fim do século XIX passava por uma dissolução dos
laços personalizados - o que faz com que SE possa falar de “desaparecimento das
comunidades” -, ela passa no capitalismo cibernético por uma nova tessitura de ligações
sociais inteiramente atravessadas pelo imperativo de pilotagem de si e dos outros em
serviço da unidade social: é este devir-dispositivo do homem que figura o cidadão do
Império. A importância presente destes novos sistemas cidadão-dispositivo, que esvaziam
as velhas instituições estatais e propulsionam a nebulosa associativa-cidadã, demonstra
que a grande máquina social que deve ser o capitalismo cibernético não pode passar sem
os homens, embora certos ciberneticistas incrédulos tenham gastado tempo em crê-lo,
como o testemunha esta desapontada tomada de consciência de meados dos anos 1980:
Com efeito.
V
Não se trata mais, como SE poderia ainda parecer acreditar em 1972, de pôr em questão o
capitalismo e seus efeitos devastadores, mas antes de “reorientar a economia de modo a
melhor servir, ao mesmo tempo, as necessidades humanas, a manutenção e a evolução do
sistema social e a busca de uma verdadeira cooperação com a natureza. A economia de
equilíbrio que caracteriza a eco-sociedade é portanto uma economia ‘regulada’, no sentido
cibernético do termo.” Os primeiros ideólogos do capitalismo cibernético falam de abrir para
uma gestão comunitária do capitalismo de baixo para cima, para uma responsabilização de
cada um graças à “inteligência coletiva” que resultará dos progressos das telecomunicações
e da informática. Sem recolocar em questão nem a propriedade privada nem a propriedade
do Estado, convida-SE a uma cogestão, a um controle das empresas pelas comunidades de
assalariados e de usuários. A euforia reformadora cibernética é tal, neste começo dos anos
1970, que SE evoca sem mais temer, como se se tivesse desde o século XIX tratado
apenas disso, a ideia de um “capitalismo social”, como o defendeu por exemplo o arquiteto
ecologista e grafômano Yona Friedman. Assim se cristalizou o que SE terminou por chamar
de “socialismo de terceira via”, e sua aliança com a ecologia, cuja empresa política SE
conhece hoje na Europa. Se era preciso reter um acontecimento que, naqueles anos, na
França, expôs a progressão tortuosa para esta nova aliança entre socialismo e liberalismo,
não sem a esperança de que outra coisa emerja, isso seria sem dúvida o caso LIP. Com ele
foi todo o socialismo, até suas correntes mais radicais como o “comunismo de conselhos”,
que fracassa em fazer cair o agenciamento liberal, e que, sem sofrer propriamente falando a
derrota, termina simplesmente absorvido pelo capitalismo cibernético. A adesão recente do
ecologista Cohn-Bendit, o gentil líder de Maio de 68, na corrente liberal-libertária é apenas
uma consequência lógica do redobro mais profundo das ideias “socialistas” sobre si
mesmas.
É que a partir dos anos 1970 o socialismo não é mais que um democratismo, doravante
absolutamente necessário à progressão da hipótese cibernética. É preciso compreender o
ideal de democracia direta, de democracia participativa como desejo de uma expropriação
geral pelo sistema cibernético de toda a informação contida em suas partes. A demanda de
transparência, de retraçabilidade, é uma demanda de circulação perfeita da informação, um
progressismo na lógica de fluxo que rege o capitalismo cibernético. É entre 1965 e 1970
que um jovem filósofo alemão, herdeiro presumido da “teoria crítica”, fundava o paradigma
democrático da contestação presente entrando fracassadamente em muitas controvérsias
com seus antepassados. Ao sócio-ciberneticista Niklas Luhmann, teórico hiperfuncionalista
dos sistemas, Habermas opunha a imprevisibilidade do diálogo, das argumentações,
irredutíveis a simples trocas de informações. Mas é sobretudo contra Marcuse que foi
elaborado o projeto de uma “ética da discussão” generalizada que devia radicalizar ao
criticar o projeto democrático das Luzes. Contra Marcuse que explica, comentando as
observações de Max Weber, que a “racionalização” quer dizer que a razão técnica, no
princípio da industrialização e do capitalismo, é indissoluvelmente uma razão política,
Habermas retorque que um conjunto de relações intersubjetivas imediatas escapam às
relações sujeito-objeto mediatizadas pela técnica, e que eles definitivamente os enquadram
e os orientam. Dito de outra forma, diante do desenvolvimento da hipótese cibernética, a
política deveria visar autonomizar e estender esta esfera dos discursos, multiplicar as
arenas democráticas, construir e buscar um consenso que, por natureza em suma, seria
emancipador. Além do fato de que ele reduz o “mundo vivido”, a “vida cotidiana”, o conjunto
daquilo que foge à máquina de controle, a interações sociais, a discursos, Habermas ignora
mais profundamente ainda a heterogeneidade fundamental das formas-de-vida entre si. A
mesmo título que o contrato, o consenso é anexado ao objetivo de unificação e de
pacificação por gestão de diferenças. No quadro cibernético, toda fé no “agir comunicativo”,
toda comunicação que não assume a possibilidade de sua impossibilidade, termina por
servir ao controle. É por isso que a técnica e a ciência não são simplesmente, como o
pensa o idealista Habermas, ideologias que viriam recobrir o tecido concreto das relações
intersubjetivas. São “ideologias materializadas”, dispositivos em cascata, uma
governamentalidade concreta que atravessam estas relações. Não queremos mais
transparência ou mais democracia. Há muito mais. Queremos, ao contrário, mais opacidade
e mais intensidade.
Mas não terei terminado de tratar do socialismo tal qual a hipótese cibernética o expirou
enquanto não tiver evocado uma outra voz; quero falar da crítica centrada sobre as relações
homens-máquinas que, desde os anos 1970, ataca o suposto nó do problema cibernético
ao colocar a questão da técnica além da tecnofobia - a de um Theodore Kaczinsky ou do
macaco letrado do Oregon, John Zerzan - e da tecnofilia, e que pretende fundar uma nova
ecologia radical que não seja idiotamente romântica. Desde a crise econômica dos anos
1970, Ivan Illich está entre os primeiros a exprimir a esperança de uma refundação das
práticas sociais não mais apenas através de uma nova relação entre sujeitos, como para
Habermas, mas também entre sujeitos e objetos, através de uma “reapropriação das
ferramentas” e das instituições, que deveriam ser ganhas por uma “convivialidade” geral;
convivialidade que estaria em porte de minar a lei do valor. O filósofo das técnicas
Simondon chega a fazer dessa reapropriação a alavanca da superação de Marx e do
marxismo: “O trabalho possui a inteligência dos elementos, o capital possui a inteligência
dos conjuntos; mas não é unindo a inteligência dos elementos e a inteligência dos conjuntos
que se pode construir a inteligência do ser intermediário e não mixto que é o indivíduo
técnico. [...] O diálogo do capital e do trabalho é falso porque está no passado. A
coletivização dos meios de produção não pode operar uma redução da alienação por si
mesma; ela só pode operar se for a condição preliminar da aquisição pelo indivíduo humano
da compreensão do objeto técnico individuado. Esta relação do indivíduo humano ao
indivíduo técnico é a mais delicada a se formar.” A solução ao problema da economia
política, da alienação capitalista como da cibernética residiria na invenção de uma nova
relação com as máquinas, de uma “cultura técnica” que teria até o presente faltado à
modernidade ocidental. É uma tal doutrina que justifica há trinta anos o desenvolvimento
massivo do ensino “cidadão” das ciências e das técnicas. Porque o vivo, contrariamente ao
que supõe a hipótese cibernética, é essencialmente diferente das máquinas, o homem teria
uma responsabilidade de representação dos objetos técnicos: “O homem como testemunha
das máquinas, escreve Simondon, é responsável por sua relação; a máquina individual
representa o homem, mas o homem representa o conjunto das máquinas, pois ele não tem
uma máquina de todas as máquinas, enquanto que pode haver um pensamento que vise
todas as máquinas.” Na forma utópica atual, como em Guattari no fim de sua vida ou hoje
num Bruno Latour, esta escola pretenderá “fazer falar” os objetos, representar suas normas
na arena pública através de um “parlamento das coisas”. No fim, os tecnocratas deveriam
dar lugar a “mecanólogos” e outros “midiólogos”, dos quais não se vê em quê difeririam dos
tecnocratas atuais se não for que eles serão mais incríveis na vida técnica, que serão
cidadãos idealmente acoplados a seus dispositivos. O que muito perdem em ignorar nossos
utopistas é que a integração da razão técnica por todos não afetaria em nada as relações
de força existentes. O reconhecimento da hibridez homens-máquinas dos agenciamentos
sociais certamente só faria estender a luta por reconhecimento e a tirania da transparência
ao mundo inanimado. Nesta ecologia política renovada, socialismo e cibernética alcançam
seu ponto ótimo de convergência: o projeto de uma República verde, de uma democracia
técnica - “uma renovação da democracia poderia ter por objetivo uma gestão pluralista do
conjunto de seus componentes maquínicos”, escreve Guattari em seu último texto publicado
- a visão mortal de uma paz civil definitiva entre humanos e não-humanos.
VI
Ora, é precisamente porque a valorização não é mais atribuível em última instância ao que
corre apenas na esfera produtiva que seria preciso doravante deslocar o gesto político -
penso na greve, por exemplo, sem sequer falar de greve geral - para as esferas da
circulação dos produtos e da informação. Quem não vê que a demanda por “papéis para
todos”, se for satisfeita, só contribuirá para uma maior mobilidade da força de trabalho em
nível mundial, o que bem compreenderam os pensadores liberais americanos? Quanto ao
salário garantido, se fosse obtido, não faria simplesmente entrar uma renda suplementar no
circuito do valor? Ele representaria o equivalente formal de um investimento do sistema em
seu “capital humano”, de um crédito; ele anteciparia uma produção futura. No quadro da
reestruturação presente do capitalismo, sua reivindicação poderia ser comparada a uma
proposição neokeynesiana de relançar a “demanda efetiva” que possa servir de filete de
segurança ao desenvolvimento desejado da “Nova Economia”. Daí também a adesão de
vários economistas à ideia de uma “renda universal” ou “renda cidadã”. O que justificaria
esta, segundo mesmo Negri e seus fiéis, é uma dívida social contraída pelo capitalismo
diante da “multidão”. E se eu disse acima que o marxismo de Negri funcionou, como todos
os outros marxismos, a partir de um axioma abstrato sobre o antagonismo social, é que ele
tem necessidade concretamente da ficção da unidade do corpo social. Em seus dias mais
ofensivos, como os que foram vividos na França durante o movimento dos desempregados
do inverno de 1997-8, suas perspectivas visam fundar um novo contrato social, chamado
comunista. No seio da política clássica, o negrismo já toma o papel de vanguarda dos
movimentos ecológicos.
Para reencontrar a conjuntura intelectual que explica esta fé cega no social concebido como
objeto e sujeito possível de um contrato, como conjunto de elementos equivalentes, como
classe homogênea, corpo orgânico, é preciso voltar ao fim dos anos 1950, quando a
decomposição progressiva da classe trabalhadora nas sociedades ocidentais inquieta os
teóricos marxistas, pois ela bagunça o axioma da luta de classes. Alguns crêem então
encontrar nos Grundrisse de Marx uma parada, uma prefiguração do que está em vias de
se tornar o capitalismo e seu proletariado. No fragmento sobre as máquinas, Marx vislumbra
em plena fase de industrialização que a força de trabalho individual possa deixar de ser a
fonte principal da mais-valia, pois “o saber social geral, o conhecimento” se tornaria a
potência produtiva imediata. Aquele capitalismo, que SE chama hoje “cognitivo”, não seria
mais contestado pelo proletariado que nasceu nas grandes manufaturas. Marx supõe que
ele o será pelo “indivíduo social”. Ele precisa a razão deste processo inelutável de inversão:
“O capital põe em movimento todas as forças da ciência e da natureza, ele estimula a
cooperação e o comércio sociais para liberar (relativamente) a criação da riqueza do tempo
de trabalho. [...] Estão aí as condições materiais que farão destruir os fundamentos do
capital.” A contradição do sistema, seu antagonismo catastrófico, viria do fato de que o
Capital mede todo valor em tempo de trabalho sendo ao mesmo tempo levado a diminuir
este por conta dos ganhos de produtividade que a automação permite. O capitalismo está
em suma condenado porque ele demanda ao mesmo tempo menos trabalho e mais
trabalho. As respostas à crise econômica dos anos 1970, o ciclo de lutas que dura mais de
dez anos na Itália, dão uma chicotada inesperada nesta teleologia. A utopia de um mundo
em que as máquinas trabalharão em nosso lugar parece ao alcance das mãos. A
criatividade, o indivíduo social, o general intellect - juventude estudantil, marginais
cultivados, trabalhadores imateriais, etc. - desligados da relação de exploração, seriam o
novo sujeito do comunismo que virá. Para alguns, dos quais Negri ou Castoriadis, mas
também os situacionistas, isto significa que o novo sujeito revolucionário se reapropriará de
sua “criatividade”, ou de seu “imaginário”, confiscados pela relação de trabalho, e fará do
tempo de não-trabalho uma fonte nova de emancipação de si e da coletividade. A
Autonomia enquanto movimento político será fundada sobre estas análises.
Em 1973, Lyotard, que frequentou por muito tempo Castoriadis no meio de Socialismo ou
Barbárie, nota a indiferenciação entre este novo discurso marxista ou pós-marxista do
general intellect e o discurso da nova economia política: “o corpo das máquinas que vocês
chamam de sujeito social e força produtiva universal do homem não é outra que o corpo do
Capital moderno. O saber que nele está em jogo não é de forma alguma o fato de todos os
indivíduos, ele está separado, momento na metamorfose do capital, obedecendo-lhe tanto
quanto o governante.” O problema ético que a esperança depositada na inteligência coletiva
coloca, que hoje se reencontra nas utopias de usos coletivos autônomos das redes de
comunicação, é o seguinte: “não se pode decidir que o papel principal do saber é o de ser
um elemento indispensável do funcionamento da sociedade e agir em consequência a seu
respeito a não ser que se tenha decidido que esta é uma grande máquina. Inversamente,
não se pode contar com sua função crítica e pensar em orientar seu desenvolvimento e
difusão neste sentido a não ser que se tenha decidido que ela não forma um todo integrado
e que permanece assombrada por um princípio de contestação.” Ao conjugar os dois termos
entretanto irreconciliáveis desta alternativa, o conjunto das posições heterogêneas cuja
matriz encontramos no discurso de Toni Negri e de seus adeptos, e que representam o
ponto de realização da tradição marxista e de sua metafísica, estão condenados à errância
política, à ausência de destinação diferente daquela que a dominação lhe provenha. O
essencial aqui, e que seduz tantos aprendizes intelectuais, é que estes saberes não sejam
jamais poderes, que o conhecimento não seja jamais conhecimento de si, que a inteligência
permaneça sempre separada da experiência. A visada política do negrismo é a de
formalizar o informal, de tornar explícito o implícito, patente o tácito, em suma de valorizar o
que está fora do valor. E com efeito, Yann Moulier-Boutang, cão fiel de Negri, termina por
afrouxar a peça em 2000, num rompante irreal de cocainômano debilitado: “O capitalismo
em sua nova fase, ou sua última fronteira, tem necessidade do comunismo das multidões.”
O comunismo neutro de Negri, a mobilização que ele ordena, não é apenas compatível com
o capitalismo cibernético, ele é doravante sua condição de efetuação.
Quer ela rompa apenas com os postulados individualistas da economia ou quer ela
considere a economia de mercado como aspecto regional de uma economia mais geral - o
que todas as discussões sobre noção de valor implicam, como as do grupo alemão Krisis,
todas as defesas da dádiva contra a troca inspiradas por Mauss, compreendida aí a
energética anticibernética de um Bataille, assim como todas as considerações sobre o
simbólico, seja em Bourdieu ou Baudrillard - a crítica da economia política permanece in
fine tributária do economicismo. Numa perspectiva de saudação pela atividade, a ausência
de um movimento de trabalhadores que corresponda ao proletariado revolucionário
imaginado por Marx será conjurada pelo trabalho militante de sua organização. “O partido,
escreve Lyotard, deve fornecer a prova de que o proletariado é real e ele não lhe pode mais
senão fornecer a prova de um ideal de razão. Ele pode apenas se fornecer a si mesmo
como prova e fazer uma política realista. O referente de seu discurso permanece
inapresentável diretamente, não ostensível. O diferente renovado revém ao interior do
movimento operário, em particular sob a forma de conflitos recorrentes sobre a questão da
organização.” A busca por uma classe de produtores em luta faz dos marxistas mais
consequentes produtores de uma classe integrada. Ora, isso não é diferente, existencial e
estrategicamente, de se opor politicamente mais que produzir antagonismos sociais, de ser
para o sistema um contraditor ou de ser seu regulador, de criar em lugar de querer que a
criatividade se libere, de desejar mais que desejar o desejo, em suma de combater a
cibernética em lugar de ser um ciberneticista crítico.
Poder-se-ia, habitado pela paixão triste da origem, buscar no socialismo histórico as
premissas desta aliança tornada manifesta há trinta anos, seja na filosofia das redes de
Saint-Simon, na teoria do equilíbrio em Fourier ou no mutualismo de Proudhon, etc. Mas o
que os socialistas têm em comum há dois séculos e que eles compartilham com aqueles
entre eles que se declararam comunistas, é de não lutar senão contra um só dos efeitos do
capitalismo: sob todas suas formas o socialismo luta contra a separação ao recriar o laço
social entre sujeitos, entre sujeitos e objetos, sem lutar contra a totalização que faz com que
SE possa assimilar o social a um corpo e o indivíduo a uma totalidade fechada, um corpo-
sujeito. Mas há também um outro terreno comum, místico, sobre cujo fundo a transferência
das categorias de pensamento do socialismo e da cibernética puderam se aliar, o de um
humanismo inconfessável, de uma fé descontrolada no gênio da humanidade. Assim como
é ridículo ver “uma alma coletiva” atrás da construção de uma colméia a partir das atitudes
erráticas das abelhas, como fazia no começo do século o escritor Maeterlinck numa
perspectiva católica, igualmente a manutenção do capitalismo não é em nada tributária da
existência de uma consciência coletiva da “multidão” alojada no coração da produção. Sob
cobertura do axioma da luta de classes, a utopia socialista histórica, a utopia dA
comunidade, terá sido em definitivo uma utopia do Um promulgada pela Cabeça sobre um
corpo que não pode mais com ela. Todo socialismo - quer se reclame mais ou menos
explicitamente das categorias de democracia, de produção, de contrato social -, hoje,
defende o partido da cibernética. A política não-cidadã deve se assumir como anti-social
tanto quanto anti-estatal, ela deve recusar contribuir à resolução da “questão social”,
recusar a formatação do mundo sob forma de problemas, rejeitar a perspectiva democrática
que estrutura a aceitação por cada um dos requisitos da sociedade. Quanto à cibernética,
não é mais hoje senão o último socialismo possível.
VII
“A teoria é o gozo sobre a imobilização. [...] O que vos faz escolher lados, teóricos, e vos
joga do nosso lado, é a frieza do claro e do distinto; de fato, apenas do distinto, que é o
oponível, pois o claro é apenas uma redundância suspeita do distinto, traduzida em filosofia
do sujeito. Segurai a barra, dizei: sair do pathos - eis vosso pathos.”
Jean-François Lyotard
Economia libidinal, 1973
É costume quando se é escritor, poeta ou filósofo apostar na potência do Verbo para
entravar, tirar de jogo, perfurar os fluxos informacionais do Império, as máquinas binárias da
enunciação. Vocês já os ouviram falar dos cantos da poesia como último baluarte face à
barbárie da comunicação. Mesmo quando identifica sua posição à das literaturas menores,
dos excêntricos, dos “loucos literários”, quando rastreia os idioletos que trabalham toda
língua para mostrar o que escapa ao código, para fazer implodir a própria ideia de
compreensão, para expor o mal-entendido fundador que faz falhar a tirania da informação, o
autor que, ademais, se sabe agido, falado, atravessado por intensidades, não fica menos
animado diante de sua página branca por uma concepção profética do enunciado. Para o
“receptor” que sou eu, os efeitos de sideração que certas escritas se puseram a buscar
conscientemente a partir dos anos 1960 não são a este respeito menos paralisantes que o
era a velha teoria crítica categórica e silenciosa. Ver da minha cadeira Guyotat ou Guattari
gozar a cada linha, contorcer-se, arrotar, peidar e vomitar seu devir-delírio não me faz
mudar, gozar, brigar senão muito raramente, quer dizer apenas quando um desejo me leva
aos litorais do voyeurismo. Performances certamente, mas performances de quê?
Performances de uma alquimia de internato em que a pedra filosofal é rastreada a jatos de
tinta e de foda misturados. A intensidade proclamada não é suficiente para engendrar a
passagem da intensidade. A teoria e a crítica, quanto a elas, permanecem caladas numa
polícia do enunciado claro e distinto, tão transparente que deveria ser a passagem da “falsa
consciência” à consciência esclarecida.
Que a visão cibernética do mundo seja uma máquina abstrata, uma fábula mística, uma
eloquência fria à qual múltiplos corpos, gestos, palavras escapam continuamente, não é
suficiente para concluir sua inelutável falha. Se algo faz falta à cibernética a este respeito, é
isto mesmo que a sustenta: o prazer da racionalização exagerada, a queimadura que o
“tautismo” provoca, a paixão da redução, o gozo do aplanamento binário. Atacar a hipótese
cibernética, é preciso repeti-lo, não é criticá-la e opor-lhe uma visão concorrente do mundo
social, mas experimentar ao lado dela, efetuar outros protocolos, criar novas espécies deles
e gozá-los. A partir dos anos 1950, a hipótese cibernética exerceu uma fascinação
inconfessada sobre toda uma geração “crítica”, dos situacionistas a Castoriadis, de Lyotard
a Foucault, Deleuze e Guattari. Se poderia cartografar suas respostas assim: os primeiros
se opuseram a ela desenvolvendo um pensamento de fora, em saliência, os segundos
usando um pensamento do meio, por um lado “um tipo metafísico de disputa com o mundo,
que visa os mundos supraterrestres transcendentes ou os contra-mundos utópicos”, por
outro “um tipo poiético de disputa com o mundo que vê no próprio real a pista que conduz à
liberdade”, como o resume Peter Sloterdijk. O sucesso de toda experimentação
revolucionária futura se medirá essencialmente por sua capacidade de tornar caduca esta
oposição. Isto começa quando os corpos mudam de escala, sentem-se espessos, são
atravessados por fenômenos moleculares que escapam aos pontos de vista sistêmicos, às
representações molares, e fazem de cada um de seus poros uma máquina de visão
pendurada nos devires mais que um aparelho fotográfico, que enquadra, que delimita, que
atribui os seres. Insinuo nas linhas que seguem um protocolo de experimentação destinado
a desfazer a hipótese cibernética e o mundo que ela persevera em construir. Mas, como
para outras artes eróticas ou estratégicas, seu uso não se decide nem se impõe. Ele só
pode provir do mais puro involuntarismo, o que implica, certamente, alguma desenvoltura.
VIII
“Falta-nos também esta generosidade, esta indiferença à sorte que dá, na falta de uma
grande alegria, a familiaridade dos piores declínios, e que o mundo que virá nos trará.”
Roger Caillois
“Sem cessar, o fictivo paga mais caro sua força, quando além de sua tela transparece o real
possível. Sem dúvida é apenas hoje que a dominação do fictivo se fez totalitária. Mas está
justamente aí seu limite dialético e “natural”. Ou bem na última pira desaparece até o desejo
e com ele seu sujeito, a corporeidade em devir da Gemeinwesen latente, ou bem todo
simulacro se dissipa: a luta extrema da espécie se desencadeia contra os gestores da
alienação e, no declínio sangrento de todos os “solos do futuro” começa a amanhecer enfim
um futuro possível. Não falta doravante aos homens, para ser, senão separar-se
definitivamente de toda ‘utopia concreta’.”
Giorgio Cesarano
Manual de sobrevivência, 1975
Todos os indivíduos, os grupos, todas as formas-de-vida não podem ser montadas em laços
de retroação. Há alguns que são frágeis demais. Que ameaçam partir-se. Alguns fortes
demais, que ameaçam partir.
Estes devires,
em instância de partição,
supõem que em um momento da experiência vivida os corpos passam pelo sentimento
agudo de que isto poderia acabar abruptamente,
de um instante ao outro,
que o nada,
que o silêncio,
que a morte estão ao alcance do corpo e do gesto.
Isto pode acabar.
A ameaça.
Fazer falhar o processo de cibernetização, fazer tremer o Império, passará por uma
abertura ao pânico. Porque o Império é um conjunto de dispositivos que visam conjurar o
evento, um processo de controle e racionalização, sua queda será sempre percebida por
seus agentes e seus aparelhos de controle como o mais irracional dos fenômenos. As linhas
que seguem dão um exame do que pode ser um tal ponto de vista cibernético sobre o
pânico e indicam muito bem a contrario seu poder efetivo: “O pânico está num teatro,
poderiam fugir todos juntos, como um rebanho de animais em perigo, e aumentar a energia
de fuga por movimentos em mesma direção. Um medo de massa desta espécie, ativa, é o
grande evento coletivo vivido por todos os animais que vivem em rebanho e que se salvam
juntos porque são bons corredores.” Tenho a este respeito como um fato político da mais
alta importância o pânico de mais de um milhão de pessoas que Orson Welles provocou em
outubro de 1938 ao anunciar por via de ondas a chegada iminente dos marcianos a Nova
Jérsei, numa época em que a radiofonia era ainda suficientemente virgem para que se
atribua a suas emissões um certo valor de verdade. Porque “quanto mais se luta por sua
vida, mais se torna evidente que se luta contra os outros que te dificultam por todos os
lados”, o pânico revela também, ao lado de uma despesa inaudita e incontrolável, a guerra
civil em seu estado nu: ela é “uma desintegração da massa na massa.”
Seria ingênuo deduzir diretamente desta descrição científica dos potenciais de desordem
uma nova arte política. O erro dos filósofos e de todo pensamento que se implementa sem
reconhecer em si, em sua própria enunciação, o que ela deve ao desejo é o de se situar
artificialmente acima dos processos que ele objetiva, mesmo a partir da experiência; ao que
não escapam, aliás, Prigogine e Stengers. A experimentação, que não é a experiência
terminada mas seu processo de realização, se situa na flutuação, em meio aos ruídos,
próximo à bifurcação. Os acontecimentos que se verificam no social, num nível bastante
significativo para influenciar os destinos gerais, não constituem a simples soma dos
comportamentos individuais. Inversamente, os comportamentos individuais não influenciam
mais por si mesmos os destinos gerais. Sobram entretanto três etapas que compõem uma
única e que, na falta de serem representadas, se experimentarão igualmente os corpos
como problemas imediatamente políticos: quero falar da amplificação dos atos não-
conformes; da intensificação dos desejos e de seu acordo rítmico; do agenciamento de um
território, se bem que “a flutuação não pode pervadir de uma vez o sistema inteiro. Ela deve
primeiro se estabelecer numa região. Segundo esta região inicial seja ou não menor que
uma dimensão crítica [...] a flutuação regride ou pode, ao contrário, pervadir todo o sistema.”
Três problemas portanto que demandam exercícios em vista de uma ofensiva anti-imperial:
problema de força, problema de ritmo, problema de fluxo.
Lawrence conta que foi também esta a questão que os Árabes tiveram que resolver depois
dos quais ele se alinhou com os Turcos. Sua tática consistia com efeito “sempre em
proceder por toques e retornos; nem empurrões, nem golpes. O exército árabe não buscava
jamais conservar ou melhorar a vantagem, mas se retirar e ir atacar em outro lugar. Ele
empregava a menor força no mínimo de tempo no lugar mais afastado.” Os ataques contra
o material e notadamente contra os canais de comunicação mais que contra as próprias
instituições são privilegiados, como privar um pedaço de vias férreas de seus trilhos. A
revolta só se torna invisível na medida em que chega em seu objetivo que é “tirar do
adversário qualquer objetivo”, jamais fornecer alvos ao inimigo. Ela impõe neste caso ao
inimigo uma “defesa passiva” muito custosa em materiais e homens, em energias, e
estende no mesmo movimento sua própria frente religando entre si os focos de ataque. A
guerrilha tende portanto desde sua invenção à guerrilha difusa. Este tipo de luta produz
além disso relações novas muito diferentes das que aconteciam nos exércitos tradicionais:
“Buscava-se um máximo de irregularidade e de flexibilidade. A diversidade desorientava os
serviços de informações inimigos. [...] Cada um podia voltar a si quando a convicção lhe
faltava. O único contrato que os unia era a honra. Por conseguinte o exército árabe não
tinha disciplina no sentido em que a disciplina restringe e sufoca a individualidade e no de
que ela constitui o menor denominador comum dos homens.” Para tanto Lawrence não
idealiza, como são tentados a fazê-lo os espontaneístas em geral, o espírito libertário de
suas tropas. O mais importante é poder contar com uma população simpatizante que
mantém então ao mesmo tempo o papel de domínio de recrutamento potencial e de difusão
da luta. “Uma rebelião pode ser levada a cabo por 2% de elementos ativos e 98% de
simpatizantes passivos”, mas isso precisa de tempo e de operações de propaganda.
Reciprocamente, todas as ofensivas de sabotagem das linhas adversárias implicam um
serviço de comunicações perfeito “que deve permitir elaborar planos com certeza absoluta”
a fim de jamais fornecer objetivos ao inimigo. É precisamente o papel que poderia ter daqui
em diante uma organização, no sentido que este termo tinha na política clássica, que esta
função de recepções e de transmissão dos saberes-poderes acumulados. Assim a
espontaneidade dos guerrilheiros não é necessariamente oposta a uma organização
qualquer enquanto reservatório de informações estratégicas.
Mas o importante é que a prática da sabotagem, tal qual Burroughs a concebe, e depois
dele os hackers, é vã se não se acompanha de uma prática organizada de informações
sobre a dominação. Esta necessidade é reforçada pelo fato de que o espaço nos quais a
revolta invisível poderia acontecer não é o deserto de que fala Lawrence. O espaço
eletrônico da Internet também não é o espaço liso e neutro de que falam os ideólogos da
era da informação. Os estudos mais recentes confirmam ademais que a Internet está à
mercê de um ataque planejado e coordenado. A malha foi concebida de tal maneira que a
rede funcionaria ainda depois de uma perda de 99% dos 10 milhões de “roteadores” - os
nós da rede de comunicação em que se concentra a informação - destruídos
aleatoriamente, em conformidade com o que queriam inicialmente os militares americanos.
Por outro lado, um ataque seletivo concebido a partir de informações precisas sobre o
tráfego, e visando 5% dos nós mais estratégicos - os nós das redes de alta capacidade dos
grandes operadores, os pontos de entrada de linhas transatlânticas - bastaria para provocar
o naufrágio do sistema. Virtuais ou reais, os espaços do Império são estruturados em
territórios, estriados por cascatas de dispositivos que traçam as fronteiras depois as
apagam quando se tornam inúteis, numa exploração constante que é o próprio motor dos
fluxos de circulação. E num espaço assim estruturado, territorializado e desterritorializado, a
linha de frente com o inimigo não pode ser tão clara quanto no deserto de Lawrence. O
caráter flutuante do poder, a dimensão nômade da dominação exigem por conseguinte um
aumento da atividade de informação, o que significa uma organização da circulação dos
saberes-poderes. Este deveria ser o papel da Sociedade para o Avanço da Ciência Criminal
(SACC).
Em Cibernética e sociedade, quando pressente um pouco tarde demais que o uso político
da cibernética tende a reforçar o exercício da dominação, Wiener se coloca uma questão
parecida, antes da crise mística na qual terminará sua vida: “Toda a técnica do segredo, da
distorção das mensagens e do blefe consiste em se assegurar de que seu próprio campo
pode usar mais eficazmente que o outro campo forças e operações de comunicação. Neste
uso combativo da informação, é tão importante deixar abertos seus próprios canais de
informação quanto obstruir os canais de que o adversário dispõe. Uma política global em
matéria de segredo implica quase sempre a consideração de muito mais coisas que o
próprio segredo.” O problema da força reformulado como problema da invisibilidade se torna
então um problema de modulação da abertura e do fechamento. Ele requer ao mesmo
tempo a organização e a espontaneidade. Ou, para dizer de outro modo, a guerrilha difusa
hoje requer que se constituam dois planos de consistência distintos embora misturados, um
em que se organiza a abertura, a transformação do jogo das formas-de-vida em informação,
o outro em que se organiza o fechamento, a resistência das formas-de-vida a sua colocação
em informação. Curcio: “O partido-guerrilha é o agente máximo da invisibilidade da
exteriorização do saber-poder do proletariado, invisibilizado com relação ao inimigo e
exteriorização em relação ao inimigo que coabita nele, no mais alto nível de síntese.” Pode-
se objetar que ali se trata só de outra forma de máquina binária, nem melhor nem pior que
as que se fazem na cibernética. Nisso há um erro pois é não ver que no princípio destes
dois gestos se encontra uma distância fundamental com os fluxos regulados, uma distância
que é a própria condição da experiência no seio de um mundo de dispositivos, uma
distância que é um poder que posso converter em espessura e em devir. Mas há nisso um
erro sobretudo porque é não compreender que a alternância entre soberania e impotência
não pode ser programada, que o curso que estas posturas desenham é da ordem da
errância, que os lugares que são eleitos por ele, sobre o corpo, na fábrica, nos lugares
urbanos e periurbanos, são imprevisíveis.
X
Philippe Carles, Jean-Louis Comolli, “Free Jazz, hors programme, hors sujet, hors champ”,
“Free Jazz, sem programa, sem assunto, fora de campo”, 2000
Insistiu-se frequentemente - T. E. Lawrence não é exceção - sobre a dimensão cinética da
política e da guerra como contraponto estratégico a uma concepção quantitativa das
relações de força. É esta tipicamente a perspectiva da guerrilha em oposição à da guerra
tradicional. Foi dito que na impossibilidade de ser massivo, um movimento devia ser rápido,
mais rápido que a dominação. É assim que a Internacional Situacionista formula por
exemplo seu programa em 1957: “É preciso compreender que iremos assistir, participar em,
um curso de rapidez entre os artistas livres e a polícia para experimentar e desenvolver as
novas técnicas de condicionamento. Neste curso a polícia já tem vantagem considerável.
De seu sucesso depende portanto a aparição de ambientes apaixonantes e libertadores ou
o reforço - cientificamente controlável, sem brecha - do ambiente do velho mundo de
opressão e de horror. [...] Se o controle destes novos meios não é totalmente revolucionário,
podemos ser levados ao ideal policiado de uma sociedade de abelhas.” Diante desta última
imagem, evocação explícita mas estática da cibernética alcançada tal qual o Império lhe
configura, a revolução deveria consistir numa reapropriação das ferramentas tecnológicas
mais modernas, reapropriação que deveria permitir contestar a polícia em seu próprio
terreno, criando um contra-mundo com os mesmos meios que os que ela emprega. A
rapidez é aqui concebida como umas das qualidades importantes para a arte política
revolucionária. Mas esta estratégia implica atacar forças sedentárias. Ora, sob o Império
estas tendem a se esmigalhar, enquanto que o poder impessoal dos dispositivos se torna
nômade e atravessa todas as instituições fazendo-as explodir.
Ao contrário, é a lentidão que deu forma a um outro pedaço das lutas contra o Capital. A
sabotagem ludista não deve ser interpretada numa perspectiva marxista tradicional como
uma simples rebelião primitiva em comparação com o proletariado organizado, como um
protesto do artesão reacionário contra a expropriação progressiva dos meios de produção
que a industrialização provoca. É um ato deliberado de desaceleração dos fluxos de
mercadorias e de pessoas que antecipa sobre a característica central do capitalismo
cibernético enquanto movimento para o movimento, vontade de potência, aceleração
generalizada. Taylor concebe ademais a Organização Científica do Trabalho como uma
técnica de combate contra a “frenagem operária” que representa um obstáculo efetivo à
produção. Na ordem física, as mutações do sistema dependem também de uma certa
lentidão, como o indicam Prigogine e Stengers: “Quanto mais rápida é a comunicação no
sistema, maior a proporção de flutuações insignificantes, incapazes de transformar o estado
dos sistema: mais estável é este estado.” As táticas de desaceleração são portanto
portadoras de poder suplementar na luta contra o capitalismo cibernético porque elas não o
atacam apenas em seu ser mas em seu processo. Mas há mais: a lentidão é também
necessária para relacionar formas-de-vida entre si de forma irredutível a uma simples troca
de informações. Ela exprime a resistência da relação à interação.
A violência é bem a primeira regra do jogo do encontro. E é ela que polariza as errâncias
diversas do desejo cuja liberdade Lyotard invoca soberana em sua Economia libidinal. Mas
porque ele se recusa a ver que os gozos se acordam entre si sobre um território que os
precede e no qual estavam as formas-de-vida, porque ele recusa compreender que a
neutralização de toda intensidade é ela mesma uma intensificação, nada menos que a do
Império, porque ele não pode deduzir que mesmo sendo inseparáveis, pulsões de vida e de
pulsões de morte não são neutras diante de um outro singular, Lyotard não pode finalmente
ultrapassar o hedonismo mais compatível com a cibernetização: descontraiam-se,
abandonem-se, deixem passarem os prazeres! Gozai, gozai, sobrará sempre algo! Que a
condução, o abandono, a mobilidade em geral possam aumentar a amplificação dos
desvios da norma não cria nenhuma dúvida na condição de reconhecer o que, no seio
mesmo da circulação, interrompe os fluxos. Face à aceleração que a cibernética provoca, a
velocidade, o nomadismo podem representar apenas elaborações secundárias em relação
a políticas de desaceleração.
Mas isto também significa que estes outros ritmos, enquanto manifestações de uma
mancada ontológica, sempre tiveram uma função política criadora. Canetti, ele ainda, conta
que de um lado “a repetição rápida pela qual os passos se acrescentam aos passos dá a
ilusão de um número maior de seres. Eles não mudam de lugar, eles perseguem a dança
sempre na mesma direção. O ruído de seus passos não morre, eles se repetem e
conservam por muito tempo sempre a mesma sonoridade e a mesma vivacidade. Eles
substituem com sua intensidade o número que lhes falta.” Por outro lado, “quando seu
pisoteamento ganha força, é como se chamassem reforços. Eles exercem, sobre todos os
homens nas proximidades, uma força de atração que não descansa enquanto não
abandonam a dança.” Buscar o bom ritmo abre portanto para uma intensificação da
experiência assim como para um aumento numérico. É um instrumento de agregação assim
como uma ação exemplar a imitar. Na escala do indivíduo como na escala da sociedade, os
próprios corpos perdem seu sentimento de unidade para se desmultiplicarem como armas
potenciais: “A equivalência dos participantes se ramifica na equivalência de seus membros.
Tudo o que um corpo humano pode ter de móvel adquire uma vida própria, cada perna,
cada braço vive como por si só.” A política do ritmo é então a busca de uma reverberação,
de um outro estado comparável a um transe do corpo social, através da ramificação de
cada corpo. Pois há bem dois regimes possíveis do ritmo no Império cibernetizado. O
primeiro, ao qual se refere Simondon, é o do homem técnico que “assegura a função de
integração e prolonga a auto-regulação fora de cada mônada de automatismo”, técnicos
cuja “vida é feita do ritmo das máquinas que o circundam e que ele religa umas às outras”.
O segundo ritmo visa minar esta função de interconexão: ele é profundamente
desintegrador sem ser simplesmente ruidista. É um ritmo da desconexão. A conquista
coletiva deste justo tempo dissonante passa por um abandono preliminar à improvisação.
“Nada nem ninguém oferece como presente uma aventura alternativa: não há aventura
possível que não a de conquistar-se uma sorte. Tu não poderás levar esta conquista a não
ser partindo do lugar espaço-temporal em que “tuas” coisas te imprimem como uma delas.”
Giorgio Cesarano
Manual de sobrevivência, 1975
Na perspectiva cibernética a ameaça não pode ser acolhida nem a fortiori superada. É
preciso que ela seja absorvida, eliminada. Já disse que a impossibilidade infinitamente
reconduzida deste aniquilamento do acontecimento é a última certeza sobre a qual fundar
práticas de oposição ao mundo governado pelos dispositivos. A ameaça, e sua
generalização na forma de pânico, põe problemas energéticos insolúveis aos adeptos da
hipótese cibernética. Simondon explica assim que as máquinas que têm alto rendimento em
informação, que controlam com precisão seu ambiente, têm fraco rendimento energético.
Inversamente, as máquinas que demandam pouca energia para efetuar sua missão
cibernética produzem um mau rendimento da realidade. A transformação das formas em
informações contém com efeito dois imperativos opostos: “A informação é num sentido o
que traz uma série de estados imprevisíveis, novos, que não faz parte de nenhuma
sequência anteriormente definível; ela é então o que exige do canal de informação uma
disponibilidade absoluta em relação a todos os aspectos da modulação que ele encaminha;
o canal de informação não deve trazer ele mesmo nenhuma forma predeterminada, não ser
seletivo. [...] Num sentido oposto, a informação se distingue do ruído porque se lhe pode
atribuir um certo código, uma relativa uniformização com a informação; em todos os casos
em que o ruído não pode ser rebaixado diretamente abaixo de um certo nível, opera-se
uma redução da margem de indeterminação e de imprevisibilidade dos sinais.” Dito de outra
forma, para que um sistema físico, biológico ou social tenha suficiente energia para
assegurar sua reprodução é preciso que seus dispositivos de controle esculpam a massa do
desconhecido, distingam no conjunto dos possíveis entre o que advém do puro acaso e se
exclui da prática do controle, e o que pode nele entrar enquanto alea, suscetível desde
então de um cálculo de probabilidade. Segue-se que para qualquer dispositivo, como no
caso específico dos aparelhos de registro sonoro, “um compromisso deve ser adotado que
conserve um rendimento de informação suficiente para as necessidades práticas e um
rendimento energético suficientemente elevado para manter o ruído de fundo num nível em
que não atrapalhe o nível do sinal”. No caso da polícia, por exemplo, se tratará de encontrar
o ponto de equilíbrio entre a repressão - que tem por função diminuir o ruído de fundo social
- e a vigilância - que informa sobre o estado e os movimentos do social a partir dos sinais
que ele emite.
Provocar o pânico vai querer dizer a princípio estender o ruído de fundo que se impõe na
ativação dos elos retroativos e que torna custoso o armazenamento dos desvios de
comportamento pela aparelhagem cibernética. O pensamento estratégico logo apreendeu a
importância ofensiva deste barulho. Quando Clausewitz afirma por exemplo que “a
resistência popular não é evidentemente apta a desferir grandes golpes” mas que “como
algo de vaporoso e fluido, ela não deve se condensar em parte alguma.” Ou quando
Lawrence opõe os exércitos tradicionais que “se parecem com plantas imóveis”, à guerrilha,
comparável a uma “influência, uma ideia, uma espécie de entidade intangível, invulnerável,
sem frente nem costas e que se dissemina por toda parte ao modo de um gás”. O ruído é o
vetor privilegiado da revolta. Transplantado ao mundo cibernético, a metáfora faz também
referência à resistência contra a tirania da transparência que o controle impõe. A bruma
bagunça todas as coordenadas habituais da percepção. Ela provoca a indiscernibilidade do
visível e do invisível, da informação e do acontecimento. É porque ela representa uma
condição de possibilidade deste último. O ruído torna a revolta possível. Numa novela
intitulada “O amor é cego”, Boris Vian imagina o que seriam os efeitos de um barulho bem
real sobre as relações existentes. Os habitantes de uma metrópole acordam numa manhã
invadidos por um “tsunami opaco” que modifica progressivamente todos os
comportamentos. As necessidades que as aparências impõem se tornam em breve caducas
e a vila se deixa ganhar pela experimentação coletiva. Os amores se tornam livres,
facilitados pela nudez permanente de todos os corpos. As orgias se espalham. A pele, as
mãos, as carnes retomam suas prerrogativas pois “o domínio do possível é estendido
quando não se tem medo de que a luz acenda.” Incapazes de manter um ruído que não
contribuíram para formar, os habitantes estão desamparados quando “o rádio assinala que
os doutos notam uma regressão regular do fenômeno”. Em meio a isso, todos decidem furar
os olhos para que a vida continue feliz. Passagem ao destino: o ruído de que fala Vian se
conquista. Ele se conquista por uma reapropriação da violência, uma reapropriação que
pode ir até a mutilação. Esta violência que em nada quer educar, que não quer construir
nada, não é o terror político que tanto faz glosarem as boas almas. Esta violência consiste
inteiramente em limpar o terreno de defesas, na abertura dos percursos, dos sentidos, dos
espíritos. “Será ela um dia pura?”, pergunta Lyotard. “Uma dança é verdadeira? Pode-se
dizer: sempre. Mas não está aí seu poder.” Dizer que a revolta deve se tornar ruído, isto
significa que ela deve ser ao mesmo tempo disseminação e dissimulação. Ao mesmo tempo
que a ofensiva deve se fazer opaca para ter sucesso, também a opacidade deve se fazer
ofensiva para durar: tal é a cifra da revolta invisível.
Mas isso também indica que seu primeiro objetivo será resistir a qualquer tentativa de
redução por exigência de representação. O ruído é uma resposta vital ao imperativo de
clareza, de transparência, que é a primeira tomada do poder imperial sobre os corpos.
Tornar-se ruído quer dizer que assumo enfim a parte de sombra que me comanda e me
impede de crer em todas as ficções de democracia direta enquanto gostariam de ritualizar
uma transparência de cada um a seus próprios interesses de todos aos interesses de todos.
Tornar opaco como o ruído é reconhecer que não se representa nada, que não se é
identificável, é assumir o caráter não-totalizável do corpo físico como do corpo político, é
abrir-se possibilidades ainda desconhecidas. É resistir com todas as suas forças a qualquer
luta pelo reconhecimento. Lyotard: “O que vocês nos pedem, teóricos, é que nos
constituamos em identidades, em responsáveis. Ora, se estamos certos de uma coisa é de
que esta operação (de exclusão) é uma miragem, que as incandescências não são fato de
ninguém e não pertencem a ninguém.” Não se tratará para tanto de reformar algumas
sociedades secretas ou algumas conspirações conquistadoras como foi o caso na franco-
maçonaria, o carbonarismo e como fantasmavam ainda as vanguardas do século passado -
penso notadamente no Colégio de Sociologia. Constituir uma zona de opacidade na qual
circular e experimentar livremente sem conduzir os fluxos de informação do Império é
produzir “singularidades anônimas”, recriar as condições de uma experiência possível, de
uma experiência que não seja imediatamente aplainada por uma máquina binária que lhe
atribui um sentido, de uma experiência densa que transforme os desejos e sua instanciação
num além dos prazeres, numa narrativa, num corpo espesso. Também quando Toni Negri
interroga Deleuze sobre o comunismo, este último bem se precave de não assimilá-lo a
uma comunicação realizada e transparente: “Você pergunta se as sociedades de controle
ou de comunicação não suscitarão formas de resistência capazes de dar de novo as
chances para um comunismo concebido como ‘organização transversal de indivíduos livres’.
Eu não sei, talvez. Mas não seria na medida em que as minorias poderiam retomar a
palavra. Talvez a palavra, a comunicação estejam podres. Elas são inteiramente penetradas
pelo dinheiro: não por acidente, mas por natureza. É preciso um desvio da palavra. Criar
sempre foi algo diferente de comunicar. O importante será talvez criar vacúolos de não-
comunicação, interruptores para escapar do controle.” Sim, o importante para nós são estas
zonas de opacidade, a abertura de cavidades, de intervalos vazios, de blocos negros na
malha cibernética do poder. A guerra irregular com o Império, na escala de uma lugar, de
uma luta, de um motim, começa desde agora pela construção de zonas opacas e ofensivas.
Cada uma destas zonas será ao mesmo tempo núcleo a partir do qual experimentar sem
ser apreensível e nuvem propagadora de pânico no conjunto do sistema imperial, máquina
de guerra coordenada e subversiva espontânea em todos os níveis. A proliferação destas
zonas de opacidade ofensiva (ZOO), a intensificação de suas relações, provocará um
desequilíbrio irreversível.
A fim de indicar sob quais condições pode-se “criar opacidade”, como arma e como
interruptor dos fluxos, convém voltar-se uma última vez à crítica interna do paradigma
cibernético. Para provocar a mudança de estado num sistema físico ou social é preciso que
a desordem, os desvios da norma, se concentrem num espaço, real ou virtual. Para que as
flutuações do comportamento contagiem é preciso com efeito que elas atinjam primeiro um
“tamanho crítico” cuja natureza Prigogine e Stengers especificam: “Ela resulta do fato de
que o ‘mundo exterior’, o ambiente da região flutuante, tende sempre a amortecer a
flutuação. O tamanho crítico mede a relação entre o volume no qual acontecem as reações
e a superfície de contato, lugar de acoplagem. O tamanho crítico é portanto determinado
por uma competição entre o ‘poder de integração’ do sistema e os mecanismos químicos
que amplificam a flutuação no interior da sub-região flutuante. Isso quer dizer que qualquer
implementação das flutuações num sistema está condenada ao fracasso se não dispõe
preliminarmente de uma ancoragem local, de um lugar a partir do qual os desvios que se
revelam ali poderiam contaminar o conjunto do sistema. Lawrence confirma, mais uma vez:
“A rebelião deve ter uma base inatacável, um lugar ao abrigo não apenas de um ataque
mas do medo de um ataque.” Para que um tal lugar exista, é-lhe preciso “independência
das vias de abastecimento”, sem a qual nenhuma guerra é vislumbrável. Se a questão da
base é central em toda revolta, é também em razão dos próprios princípios de equilíbrio dos
sistemas. Para a cibernética, a possibilidade de um contágio que faça alternar o sistema
deve ser amortecida pelo ambiente mais imediato da zona de autonomia na qual as
flutuações acontecem. Isto significa que os efeitos de controle são mais potentes na
periferia mais próxima da zona de opacidade ofensiva que é criada, em torno da região
flutuante. O tamanho da base deverá por conseguinte ser tão maior quanto melhor
sustentado é o controle de proximidade.
Estas bases devem ser tanto inscritas no espaço quanto nas cabeças: “A revolta árabe,
explica Lawrence, estava nos portos do mar Vermelho, no deserto ou no espírito dos
homens que a ela se juntavam.” São territórios tanto quanto mentalidades. Chamemo-lhes
planos de consistência. Para que zonas de opacidade ofensiva se formem e se reforcem, é
preciso que existam primeiro tais planos, que conectam os desvios entre si, que
alavanquem, que operem a inversão do medo. A Autonomia histórica - a da Itália dos anos
1970 por exemplo - como a Autonomia possível nada mais é que o movimento contínuo de
perseverança dos planos de consistência que se constituem como espaços
irrepresentáveis, como bases de secessão com a sociedade. A reapropriação pelos
ciberneticistas críticos da categoria de autonomia - com suas noções derivadas: auto-
organização, autopoiese, auto-referência, autoprodução, autovalorização, etc. - é deste
ponto de vista a manobra ideológica central destes vinte últimos anos. Através do prisma
cibernético, dar-se a si mesmo suas próprias leis, produzir subjetividades em nada contradiz
a produção do sistema e sua regulação. Ao clamar há dez anos pela multiplicação das
Zonas de Autonomia Temporária (TAZ) no mundo virtual e no mundo real, Hakim Bey
permanecia assim vítima do idealismo dos que querem abolir a política sem tê-la pensado
antes. Ele se via constrangido a separar na TAZ o lugar das práticas hedonistas, de
expressão “libertária” das formas-de-vida, e o lugar de resistência política, da forma de luta.
Se a autonomia, aqui, é pensada como temporária, é que pensar sua duração exigiria
conceber uma luta que se articule com a vida, de vislumbrar por exemplo a transmissão de
saberes de guerra. Os liberais-libertários do tipo de Bey ignoram o campo das intensidades
no qual sua soberania clama a se implementar e seu projeto de contrato social sem Estado
postula no fundo a identidade de todos os seres já que se trata em definitivo de maximizar
seus prazeres em paz, até o fim dos tempos. De um lado as TAZ são definidas como
“enclaves livres”, lugares que têm por lei a liberdade, as boas coisas, o Maravilhoso. Do
outro a secessão do mundo da qual elas advêm, as “dobras” nas quais elas se alojam entre
o real e sua codificação só deveriam se constituir depois de uma sucessão de “recusas”.
Esta “ideologia californiana”, ao pôr a autonomia como atributo de sujeitos individuais ou
coletivos, confunde de propósito dois planos incomensuráveis, a “autorrealização” das
pessoas e a “auto-organização” do social. É porque a autonomia é, na história da filosofia,
uma noção ambígua que exprime ao mesmo tempo o afrouxamento de qualquer limite e a
submissão a leis naturais superiores que ela pode servir a nutrir os discursos híbridos e
reestruturantes dos ciborgues “anarcocapitalistas”.
Quanto à autonomia de que falo, ela não é temporária nem simplesmente defensiva. Ela
não é uma qualidade substancial dos seres mas a condição mesma de seu devir. Ela não
parte da unidade suposta do Sujeito mas engendra multiplicidades. Ela não ataca apenas
as formas sedentárias do poder, como o Estado, para em seguida surfar sobre suas formas
circulantes, “móveis”, “flexíveis”. Ela se dá os meios de durar como de se deslocar, de
recuar como de atacar, de se abrir como de se fechar, de religar tanto os corpos mudos
como as vozes sem corpo. Ela pensa esta alternância como o resultado de uma
experimentação sem fim. “Autonomia” quer dizer que fazemos crescer os mundos que
somos nós. O Império, o exército da cibernética, reivindica a autonomia apenas para si
enquanto sistema unitário da totalidade: ele é obrigado a aniquilar assim qualquer
autonomia naquilo que lhe é heterogêneo. Dizemos que a autonomia é para todo mundo e
que a luta pela autonomia deve se amplificar. A forma atual que toma a guerra civil é
primeiro a de uma luta contra o monopólio da autonomia. Esta experimentação será o “caos
fecundo”, o comunismo, o fim
da hipótese cibernética.