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A j u s t i f i cação

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Reitora Denise Pires de Carvalho

Vice-reitor Carlos Frederico Leão Rocha

Coordenadora do Tatiana Roque


Fórum de Ciência 
e Cultura

Editora Universidade Federal do Rio de Janeiro

Diretor Michel Misse

Diretora adjunta Fernanda Ribeiro

Conselho editorial Michel Misse (presidente)


Alexandre Pinto Cardoso
Francisco Carlos Teixeira da Silva
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Marco Americo Lucchesi
Roberto Kant de Lima

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Luc Boltanski
Laurent Thévenot

A j u s t i f i cação
Sobre as economias da grandeza

tradução
Alexandre Werneck

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© Copyright Éditions Gallimard 1991
© Copyright Editora UFRJ 2014, pela tradução

Ficha catalográfica elaborada pela Divisão de Processamento Técnico SIBI-UFRJ

B694j Boltanski, Luc, 1940-


A justificação: sobre as economias da grandeza / Luc Boltanski, Laurent
Thévenot; tradução: Alexandre Werneck. – Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2020.

564 p.; 16 x 23 cm – (Coleção Sociologia e Antropologia)


Tradução de: De La justification: les économies de la grandeur.
Bibliografia: p. 527-549.
ISBN: 978-85-7108-448-3
1. Sociologia - Filosofia 2. Filosofia política. 3. Teoria crítica. I. Thévenot, Laurent.
II. Título.
CDD: 301

Coordenação editorial Índices


Thiago de Morais Lins Leonardo Arroniz

Preparação de originais Capa, projeto gráfico e diagramação


Thereza Vianna Ana Carreiro

Revisão
Paula Halfeld
Patrícia Vieira

Universidade federal do rio de janeiro


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Rio de Janeiro, RJ – CEP 22290-902 Rio de Janeiro, RJ – CEP 22290-160
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Apoio:

Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d’Aide à la Publication année X Carlos Drummond
de Andrade de l’Institut Français du Brésil, bénéficie du soutien du Ministère de l'Europe et des
Affaires étrangères.
Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação ano X Carlos Drummond de
Andrade do Instituto Francês do Brasil, contou com o apoio do Ministério francês da Europa e das
Relações Exteriores.

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Para
Joëlle Affichard
e Elisabeth Claverie

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Sumário

Sobre a tradução 9
Apresentação 17
Prefácio à edição brasileira 29
Prefácio 85

Primeira parte – O imperativo de justificação 111

Capítulo 1. As ciências sociais e a legitimidade do acordo 113


Capítulo 2. A fundamentação do acordo na filosofia política: 133
o exemplo da cité mercantil

Segunda parte – As cités 159

Capítulo 3. Ordens políticas e um modelo de justiça 161


Capítulo 4. As formas políticas da grandeza 183

Terceira parte – Os mundos comuns 235

Capítulo 5. O julgamento submetido à comprovação 237


Capítulo 6. A apresentação dos mundos 275

Quarta parte – A crítica 337

Capítulo 7. O conflito entre os mundos e a colocação do 339


julgamento em questão
Capítulo 8. O quadro das críticas 365

Quinta parte – O apaziguamento da crítica 409

Capítulo 9. Os compromissos em nome do bem comum 411


Capítulo 10. Figuras do compromisso 431
Capítulo 11. A relativização 483
Posfácio 497
Notas 511
Referências 527
Índice Remissivo 551
Índíce Onomástico 559

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Sobre a t r a d u ção

Uma das categorias centrais do modelo das economias da grandeza


(EG), proposto por Luc Boltanski e Laurent Thévenot nos anos 1980, o
termo cité será, nesta edição brasileira de De la justification, mantido como
no original – opção demarcada ainda pela utilização de tipologia normal,
sem grifo. A sugestão, dessa maneira, é radical: incorporar essa palavra à
língua portuguesa, pelo menos àquela usada pelos cientistas sociais (mas não
apenas). Este é, então, um livro sobre a justificação e seu espraiamento no
denominado modelo da cité – uma das primeiras obras, e certamente uma
das mais fundamentais, de uma linhagem que se consolidaria como o que
vem sendo conhecido como sociologia pragmática da crítica (como chama o
próprio Boltanski em seu livro De la critique: précis de sociologie de l’éman-
cipation, publicado em 2009)* ou, como tem sido mais comumente chamada,
sociologia pragmática.
Há vários motivos para essa opção. O primeiro – embora evidentemente
não o mais central – é a consagração de cité como categoria formal já opera-
da por pesquisadores do Brasil e de Portugal desde a publicação do original
francês, em 1991. Acredito ser altamente relevante essa manutenção, pelo
bem da circulação do modelo, baseando-me no intenso diálogo estabelecido
entre essa sociologia francesa e a brasileira – tanto na forma de conversações
formais entre grupos de pesquisa (nas quais eu mesmo me incluo, entre tan-
tos colegas) quanto na abstrata mobilização individual da teoria – desde os
primeiros momentos de sua consolidação. Isso poderia ser uma justificativa
relevante e suficiente. Há, no entanto, uma série de motivos propriamente
analíticos para essa decisão.
Primeiramente, considerei fundamental explicitar a dimensão mais cen-
tral da maneira como o modelo das EG lança mão do termo: a palavra cité,
em francês, refere-se, fundamentalmente, a uma construção da Antiguidade,

* Boltanski, Luc. De la critique: précis de sociologie de l’émancipation. Paris: Gallimard,


2009.

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10 A justificação

a saber, à comunidade política autônoma governada de certa maneira pelos


próprios cidadãos e que fundamenta a democracia. Trata-se, então, da pólis,
de uma imagem de cidade-Estado. No entanto, esse uso é fundamentalmente
metafórico: Boltanski e Thévenot tomam emprestado dessa ideia sua forma
abstrata, sua imagem como abstração modelar, sua dimensão de utopia.
Isso fica bastante claro na obra de Boltanski que poderia passar ao
português como O amor e a justiça como competências, de 1990,* na qual
ele associa a ideia de cité à de “utopia realizada”, isto é, uma forma abstrata
cuja manifestação no mundo deva ser buscada pelos atores sociais, mas que se
efetiva apenas nas possibilidades de haver no mundo real dispositivos que
a concretizem – ou, nos termos do modelo, que possa haver para ela um
mundo correspondente. Igualmente, no trabalho de Thévenot sobre “a ação
que convém”, apresentado em artigo também de 1990,** fica claro que é no
horizonte de um “imperativo de coordenação” que se forma um ambiente
abstrato de fundamentação da vida comum entre os homens. Tudo isso é
construído a partir daquilo que, conjuntamente, os atores chamam de “ca-
pacidade metafísica”, fundamentando a substância de uma cité justamente
como uma matéria abstrata.
Dessa maneira, soluções como Cidade, com letra maiúscula, opção das
traduções de A Cidade de Deus, de Santo Agostinho – formato inclusive res-
peitado aqui, já que esse clássico é centralmente mobilizado pelos autores –,
poderia ser um caminho para traduzir cité, porque impele o debate para o
caráter metafísico dessa configuração. No entanto, essa forma ainda chama
por demais a atenção para um cognato*** e para a ideia de um ordenamento
espacial e de interações diretas. Com isso, foi necessário sustentar a distinção

* Boltanski, Luc. L’amour et la justice comme compétences. Paris: Métailié, 1990.


** Thévenot, Laurent. L’action qui convient. In: Pharo, Patrick; Quéré, Louis (org.). Les
formes de l’ action. Paris: Éditions de l’ÉHESS, 1990. p. 36-69.
*** A versão brasileira de O novo espírito do capitalismo, de Boltanski e Éve Chiapello (São
Paulo: Martins Fontes, 2009), feita pela grande tradutora Ivone C. Benedetti, optou por
usar cidade, em caixa-baixa, solução gramaticalmente correta, deve-se dizer, já que essa é
uma das acepções possíveis para cité, mas que, do ponto de vista desse modelo, na minha
opinião, não é a melhor por conduzir o leitor a um espelhamento direto com a ideia de
uma urbanidade, uma geografia. Em outra proposta, em uma resenha do citado De la
critique, o professor Diogo Corrêa sugere traduzir cité como Cidadela, em caixa-alta.
Mas essa solução igualmente sublinha o caráter geográfico do conceito e ainda insere
um ingrediente distinto ao de concórdia que marca o modelo das EG, já que a palavra
escolhida resgata o sentido militar do ordenamento proposto. Ver: Corrêa, Diogo Silva.

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Sobre a tradução 11

mais fundamental entre cidade (ville) e o tipo de configuração espacial nomeá-


vel de cité. Outra boa opção poderia ser seguir a tradutora americana deste
livro, Catherine Porter, que optou por levar cité para o inglês como polity, isto
é, como sinônimo de organização política, de ordem social. Mas, com isso, não
apenas se perderia a oportunidade de conversação automática com o origi-
nal francês como ainda se eclipsaria o fato de uma cité não ser tanto uma
ordem social quanto é um ordenamento, uma metafísica flexível mais que
uma normatividade incontornável.
Ela é, portanto, uma unidade mais gramatical – no sentido da gramática
gerativa, de Noam Chomsky, organizada em torno da ideia de competência,
conceito central para o modelo das EG – que geográfica, mais lógica que
morfológica. Não se está em uma cité, não se vive em uma cité. Uma cité é
mobilizada; dela se lança mão; com ela, como aparato, se justifica.
A escolha por um nome geográfico para a categoria guarda relação não
apenas com um enquadramento aristotélico gritante no trabalho de Boltanski –
veja, por exemplo, toda a sua discussão sobre ágape na obra de 1990 aqui
citada – como também com uma certa vontade de demarcação de posição em
relação a Pierre Bourdieu, que traçou, ele também, uma geografia – no seu caso,
de campos. Mas enquanto o patron – como os integrantes mais jovens de seu
grupo o chamavam na década de 1980, quando Boltanski e Thévenot dele
se afastaram* – finca sua geografia no chão de uma vida social centrada em
uma dominação demarcada em campos (correlatos a contextos simbólicos) de
competitividade fundados, por sua vez, em diferentes substâncias disputadas
(que ele chama de capitais), a geografia de Boltanski e Thévenot é mais uma
geometria, de modo que, nela, se desliza – não é, então, à toa a escolha de
um termo que dê conta de um movimento delicado, sutil, como glisser – de
uma cité a outra (o que não ocorre necessariamente entre quaisquer campos)
de forma mais ou menos livre e criativa e sem que uma metáfora efetiva-
mente espacial seja necessária, conferindo ao termo um estatuto muito mais,
como disse, de abstração que de urbanidade. A diferença fundamental entre
as duas geografias, no entanto, é que as naturezas das EG não podem, por
definição, ser associadas fundamentalmente aos atores: elas são qualificadores

De Luc Boltanski: De la critique: précis de sociologie de l’émancipation. Sociedade e


Estado, Brasília, v. 25, n. 3, p. 589-600, 2010.
* Sobre a história desse processo, ver: Dosse, François. O império do sentido: a humani-
zação das ciências humanas. Bauru: Edusc, 2003.

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12 A justificação

de estados de grandeza situados, vigentes em uma situação. De fato, de cité a


cité se vai mais como quem pega um acessório em uma caixa de ferramentas
portátil – toda essa geometria de mundos comuns está disponível a quaisquer
atores sociais para ser mobilizada situadamente, conforme cabível (e necessá-
rio) – do que como quem sai de um espaço para entrar em outro. Uma boa
prova disso está justamente na estratégia do próprio livro de recorrer a um
mesmo espaço empírico (a empresa, mas poderia ter sido qualquer outro)
para aplicar todos os mundos, por meio de seus manuais de conduta.
Assim, como forma de traduzir o bem comum em um regime de justiça,
uma cité é, no final das contas, mais como uma língua, uma forma de dizer,
de traduzir esse bem comum e a ideia de justiça. Eis, então, um motivo ex-
pressivo para manter cité como proponho: para que seus vários dialetos – o
inspirado, o doméstico, o cívico, o da opinião, o mercantil, o industrial e os
outros que os autores insinuam e que proporiam posteriormente, além dos
que ainda surgiriam e surgirão na investigação empírica de outros pesqui-
sadores – sejam reconhecíveis na substância linguística que os unifica. São
todos dialetos da mesma língua, como sotaques distintos, mas que comungam
de uma identidade, digamos, pátria; a cité é, assim, o idioma da justiça, o
idioma do bem comum. E como se trata de uma estrutura de linguagem em
abstrato, o mais importante, como o próprio livro demonstra, é seu reba-
timento no mundo por meio da configuração de mundos. Assim, a opção
pela proposta de incorporação da palavra cité à língua portuguesa também
se beneficia para além de seu sentido de todo peculiar, de seu pareamento
pragmático: toda cité, abstrata, tem um mundo irmão, concreto, e é ele o
plano sociologicamente mobilizado na maior parte das análises que tomam
esse modelo como ponto de partida ou de apoio. Evidentemente, quando se
tratar dos usos independentes dessa partida teórica, como em alusões às ci-
dades-Estado gregas ou da Renascença, o termo cité será objeto da tradução
gramaticalmente devida e/ou em conformidade com a tradução estabelecida.

Outra opção digna de nota diz respeito ao subtítulo original e seus usos
conceituais ao longo do livro: este é um quadro de “economias” – por paren-
tesco com o trabalho anterior de Laurent Thévenot com as chamadas “eco-
nomias da coordenação”, na continuidade de um empreendimento que ele,
economista de origem, mantinha como um dos grandes nomes da chamada
“economia das convenções”. Assim, trata-se da descrição de diferentes formas
de gerir, em sentido amplo, a relação entre custo e retorno de investimento

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Sobre a tradução 13

(o que resultará, entre outros desenvolvimentos, no axioma da “fórmula de


investimento” descrito no livro). Tal relação é gerida pelos atores no que diz
respeito a essa forma de qualificação chamada grandeza, por meio da mo-
bilização de formas convencionais de equivalência. Nas palavras do próprio
autor, trata-se de pensar que cada ordem de grandeza conta com uma eco-
nomia própria. Ao mesmo tempo, no entanto, o modelo em si descreve uma
economia, de várias grandezas, em uma espécie de administração de escassez
(delas) com base na equivalência, de modo que em alguns momentos optei
por tratá-lo como economia das grandezas. Evidentemente, isso só é possível
por representar total congruência com o tratamento original dos autores e,
portanto, não reduzir a abordagem a um quadro competitivo com base em
um capitalismo das posições de qualificação – justamente o que se diz que os
atores sociais trabalham para modular com a coordenação em equivalência.
O primordial é que ambas as expressões dão conta de um modelo que trata
a ideia de economia em uma geometria menos competitiva que situadamente
relacional. Não se trata, portanto, de um modelo conflitualista.
Algumas outras soluções de tradução foram conceitualmente determina-
das. Algumas delas, mais pontuais, apresento ao longo do texto, em notas de
rodapé – não interferindo com as notas dos autores, colocadas em geral no
fim do livro. Outras, no entanto, considero fundamental detalhar um pouco
mais já aqui, anteriormente ao mergulho no texto. Vamos a elas.
Primeiramente, como fica claro desde o título, optei por traduzir gran-
deur por grandeza, evitando soluções como magnitude ou, especialmente,
tamanho. Aqui, o caminho reconhece o parentesco objetivista do termo: as
grandezas valorativas aqui em jogo são semelhantes a qualquer coisa que
possa ser medida, justamente o que a física chama grandeza: trata-se de
situar valores e competências em escalas de medida e, mais especialmente,
de comparação.
Épreuve foi traduzido com uma série de soluções, a partir de um núcleo
básico, o termo comprovação. O conceito diz respeito a um processo, aquele
segundo o qual se coloca algo à prova, no qual se verifica sua legitimidade,
se testa se pode ser aceito pelos atores em termos do critério estabelecido
situadamente para tal, sua competência. Assim, trata-se de uma situação es-
pecífica, na qual se colocam situações em questão, demandando-se que delas
se prove a efetividade em termos de determinada grandeza. Assim, trata-se
de um momento em que algo passa por uma verificação na qual, por meio
da apresentação de provas (preuves), evidências, é comprovado, ratificado,

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14 A justificação

confirmado, aprovado. Ao mesmo tempo, em alguns casos, trata-se de uma


provação, de um processo custoso e de sacrifício para os envolvidos, de modo
que esse corpo de sentidos também será eventualmente mobilizado. Assim,
uso preferentemente situação de comprovação, processo de comprovação
e, na maior parte das vezes, e em síntese, simplesmente comprovação. Mas
também esses vários outros sinônimos listados.
Rapprochement diz respeito à construção de uma categoria, ao proce-
dimento (literalmente traduzindo) de aproximação entre objetos particulares
sob um mesmo conjunto com base em características comuns que os definam
como um mesmo. É um termo fundamental, já que um dos pontos de partida
do modelo aqui exposto são as operações de qualificação dos entes e sua
tensão com o pertencimento a categorias. Optei por, salvo em casos pontuais,
evitar sinônimos e sempre me fixar na palavra aproximação, a fim de insistir
na demarcação do conceito.
Finalmente, uma nota sobre a ideia de senso comum, também primordial
nesta abordagem: sens commun terá aqui em vários momentos um duplo
registro, ao mesmo tempo dizendo respeito ao conjunto de representações
externas à ciência que certas abordagens científicas desvalorizam como va-
lorativa/opinativa e sem rigor, mas também como um plano de uma racio-
nalização comum, de uma definição comum das situações – para usar uma
expressão do pragmatismo filosófico de grande influência para esse modelo.
Para uma abordagem como esta, que recusa saber de antemão o que é justi-
ça – e, em última instância, o que é moral – e vai aos atores sociais deixar
que eles a definam e construam suas formas de funcionamento, um debate
sobre esse trânsito entre fala analítica e fala operativa é fundamental – tanto
que é justamente o ponto de partida de toda esta discussão. Assim, em vários
momentos, procurei expressar tal complexidade: por vezes uso senso comum,
por vezes racionalidade comum, racionalização comum e outras formas que
sugerem essa ideia.

***

Esta é uma obra enormemente complexa, alimentada, como qualquer


trabalho acadêmico, por referências a muitas obras. Neste caso, especifica-
mente, de maneira fundamental, a alusão mais privilegiada é a clássicos da
filosofia política, que servem não como fonte de interlocução teórica, e sim
como objetos, como “empiria” mesmo, sobre a qual a construção do modelo
se sustenta. Seria quase impossível a um tradutor sozinho fazer jus a toda

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Sobre a tradução 15

essa produção com a qualidade a ela devida, em tantas línguas e em tantas


tradições e escolas de pensamento. Assim, adotei a estratégia de recorrer a
traduções (bem) estabelecidas em português dessas obras sempre que houves-
se – e as assinalei em nota de rodapé. Isso se justifica evidentemente pelo es-
forço empreendido por cada um dos tradutores com as peculiaridades de cada
língua, cada livro e cada quadro terminológico. E essa decisão se manteve
mesmo nos casos em que a tradução não tivesse sido feita a partir da língua
original da escrita – expediente recorrente na área da filosofia e nas traduções
mais antigas –, embora tenha procurado sempre encontrar a edição oriunda
da língua original e, entre elas, a mais confiável conceitualmente. A marca
de um cuidado com o conteúdo justifica ainda essa medida. Mantive-me em
geral fiel às opções desses tradutores – aos quais cumprimento e celebro –,
mesmo em momentos em que tivesse soluções diferentes para originais em
francês e inglês. Isso, a fim de manter a terminologia consagrada e permitir
o diálogo com a tradição de leitura já estabelecida para esses clássicos. Em
raríssimos casos, entretanto, pequenas adaptações para adequação às estru-
turas do parágrafo, para atualização e para o enquadramento conceitual à
discussão foram necessárias. Em casos de intervenções do tradutor sobre
traduções ou comentários dos autores, elas serão feitas entre colchetes e em
grifo. Igualmente, uma tradução desta monta não se faz sem diálogo. Assim,
agradeço pelas inestimáveis colaborações da colega franco-brasileira Jussara
Freire e pela imensa gentileza de Luc Boltanski e, especialmente, Laurent
Thévenot para rever alguns pontos, a fim de tornar esta edição mais clara
para o leitor de língua portuguesa.

Alexandre Werneck
Professor do Departamento de Sociologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Apresentação

A j u s t i f i cação :

o r e s p l a n d e c i m e n to d e u m n ovo g e s to

p r ag m át i c o na s o c i o l o g i a f r a n c e s a

O surgimento de uma obra literária, artística ou científica combina


com o nascimento da crítica e do crivo daqueles que se tornarão leitores
ou observadores daquilo que foi criado. Alguns trabalhos adquirem, desde o
início, uma posição privilegiada de reconhecimento no seu domínio, enquanto
outros levam anos para que possam se tornar “clássicos” e, portanto, uma
referência seminal para as gerações futuras. Por isso há sons, livros, pinturas
ou esculturas que não se tornam “clássicas”, mas portam consigo essa insígnia
desde seu nascimento. É o caso de A justificação, cuja tradução a Editora
UFRJ agora apresenta.
Publicado originalmente em 1991 pela importante e prestigiosa editora
Gallimard, A justificação produziu, de início, um forte impacto nas ciências
sociais francesas e, posteriormente, nas ciências sociais internacionais, com
a sua difusão em diversas línguas (inglês, russo, alemão, etc.), bem como
nos distintos campos do conhecimento, tais como sociologia, antropologia,
história, filosofia e linguística. Um dos grandes filósofos contemporâneos,
Paul Ricoeur, por exemplo, realça, em Parcous de la reconaissance (2004),
a importância do livro A justificação na contribuição para uma teoria da
justiça e do reconhecimento:

[...] eu me deparei pela primeira vez com essa obra [considerando-a] do ponto
de vista da pluralidade de fontes de justiça em paralelo com a leitura da obra de
Michael Walzer, Sphères of justice. É para eles que gostaria de trazer os problemas
ligados à pluralidade de mediações estruturais em relação à estima pública.
O que eu denomino reconhecimento, nossos autores chamam justificação. A jus-
tificação é a estratégia pela qual os competidores fazem com que se tornem
verossimilhantes seus lugares respectivos, nisso que os autores definem como as
economias da grandeza. [...] É preciso especificar a forma de justiça não como

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18 A justificação

o fez Michael Walzer, a partir de uma base de “valores compartilhados”, mas


ancorada nas estratégias de justificação, revelando isso que os autores chamam
de cités ou de mondes para sublinhar a coerência interna dos sistemas de tran-
sação e dos dispositivos e objetos implicados na transação. É, portanto, uma
sociologia da ação que esse empreendimento intelectual aponta, mesmo sendo
mobilizados conceitos habermasianos, como discussão e argumentação. (Ricoeur,
2004, p. 320)*

Nesse sentido, A justificação renova questões importantes trazidas pela


tradição hegeliana e pela Escola de Frankfurt, aportando relevantes contri-
buições às questões formuladas por Habermas e, mais recentemente, Axel
Honneth. Este último reconhece, em Dissoluções do social: sobre a teoria
social de Luc Boltanski e Laurent Thévenot, o esforço de Boltanski e Thé-
venot em orientarem o projeto da sociologia segundo as aspirações de seus
fundadores, como Durkheim, Weber e Parsons, diante da produção de uma
teoria social devotada a empregar as fontes da filosofia moral no campo das
ciências sociais. Segundo ele, “depois da ‘teoria da ação comunicativa’ – o
último grande esboço de uma teoria social completa baseada nas fontes da
filosofia prática –, tudo isso parece ter sido esquecido. De qualquer forma,
até recentemente, parece que, com o livro de Habermas, a tradição de uma
sociologia normativamente orientada chegou ao fim. É principalmente devi-
do aos esforços de um pequeno grupo de pesquisadores na França – que se
reuniram em torno de Luc Boltanski e Laurent Thévenot – que continua a
existir uma vertente dentro da teoria social empregando fontes de filosofia
moral” (Honneth, 2019, p. 3).
Esse pequeno grupo de cientistas sociais sediados na França, ao qual
Axel Honneth faz menção, esteve vinculado a um empreendimento intelectual
de maior fôlego no final das décadas de 1970 e 1980, inspirados por novas
orientações críticas do pensamento sociológico e filosófico, as quais firma-
ram um novo gesto às ciências sociais: o gesto pragmático, que em grande
medida reuniria figuras como Bruno Latour, Steve Woolgar, Michel Callon,
sediados na École de Mines; e Thévenot e Boltanski, vinculados ao Groupe
de Sociologie Politique et Morale da École des Hautes Études en Sciences So-
ciales (GSPM-EHESS), fundado em 1984 (Nardacchione, 2016).** O chamado

* Ricouer, Paul. Parcours de la reconiassance. Paris: Gallimard, 2004.


** Nardacchione, Gabriel. Laurent Thévenot, autor de una sociologia heterodoxa en la
Francia del siglo XX. In: Thévenot, Laurent. La acción en plural. Buenos Aires: Editora
Siglo Veintiuno, 2016.

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Apresentação 19

gesto pragmático da sociologia francesa (Breviglieri e Stavo-Debauge, 1999)*


consistiu em uma renovação dos instrumentos analíticos e metodológicos
da disciplina, a partir de pesquisas empíricas desenvolvidas no interior do
GSPM e de outros centros, como o Institut National de la Statistique et des
Études Économiques (Insee) e no Centre d’Études de l’Emploi, tendo sido
publicado neste último um livro chave para esse programa robusto de pes-
quisa. Justesse et justice dans le travail,** publicado originalmente em 1987,
trouxe a contribuição dos dois autores e de figuras que hoje se notabilizaram
nas ciências sociais, tais como Alain Desrosières, Nicolas Dodier, Francis
Chateauraynaud, Claudette Lafaye, entre outros.
Uma das figuras centrais para essa renovação das ciências sociais con-
temporâneas, Bruno Latour, enfatiza que

Boltanski e Thévenot inventaram uma vacina antirrábica, comparando tran-


quilamente todas as fontes de denúncia – as cidades que fornecem os diversos
princípios da Justiça –, e cruzando as mil e uma maneiras de que dispomos
hoje, na França, para montar um caso na justiça. Eles não denunciam outros.
Não os desvelam. Antes, mostram as artimanhas que nós todos usamos para
acusar-nos mutuamente. O espírito crítico torna-se um recurso, uma competên-
cia entre outras, a gramática de nossas indignações... A importância do livro
de Boltanski e Thévenot vem do fato de eles esgotarem a denúncia, ao mesmo
tempo em que fazem do objeto envolvido nas provas de julgamento o centro
de suas análises. (Latour, 1994, p. 48-49)***

Essa chamada “virada pragmática francesa” permitiu uma reorientação


das ciências humanas que vou mais à frente buscar sistematizar de forma
resumida, pois uma exposição bem mais elaborada e consistente se encontra
disponível para os leitores desta edição em língua portuguesa de A justifi-
cação. Afinal, para ela, Boltanski e Thévenot se esmeraram em elaborar um
prefácio inédito, quase trinta anos depois da primeira publicação do livro,
apontando o percurso da obra e seus desdobramentos, leituras e críticas
formuladas por terceiros ou por eles próprios. Minha intenção é buscar

* Stavo-Debauge, Joan; Breviglieri, Marc. Le geste pragmatique de la sociologie française,


autor des travaux de Luc Boltanski e Laurent Thévenot. Antropolítica, Niterói, n. 7,
1999.
** Boltanski, Luc; Thévenot, Laurent (org.). Justesse et justice dans le travail. Paris: Presses
universitaires de France, 1989.
*** Latour, Bruno. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34, 1994.

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20 A justificação

sistematizar algumas das principais contribuições da obra para as ciências


sociais contemporâneas.
A primeira delas consistiu em reunir neste trabalho diversos domínios
do saber científico, como sociologia, filosofia, ciência política, psicanálise,
psicologia, direito e antropologia, sem produzir uma salada de misturas
inconsequentes, mas, pelo contrário, demonstrando de forma refinada como
entrelaçar artesanalmente esses diferentes corpus teóricos. Aliás, como os
autores salientam no prefácio, grande parte da incompreensão sobre o tra-
balho advém das leituras enviesadas e ortodoxas das tradições disciplinares
mais disciplinadas, normativas e positivistas das ciências sociais. Embora os
autores certamente reivindiquem um lugar, o de sociólogos, isso não implica
transformar as fronteiras epistêmicas em verdadeiras muralhas de contenção
de ideias, experimentações e reformulações de conceitos e métodos. Aliás, o
livro é produto de um experimento, fruto de uma colaboração entre um so-
ciólogo fortemente influenciado pelo estruturalismo de Pierre Bourdieu (como
é o caso de Bolstanki) e outro formado pela École Polytechnique e pela École
National de la Stastitique et de l’Administration Économique (Ensae), com
fortes inclinações e sensibilidade ao trabalho de natureza etnográfica, como
os leitores poderão constatar na leitura desta obra e das demais publicadas
pelos dois autores posteriormente.
A forma ousada como os autores produzem experimentações inova-
doras se reflete no modo como tratam o material empírico e etnográfico,
realizando um vai e vem entre as construções clássicas da filosofia política e
as formas ordinárias de justificações operadas pelos atores nas situações de
conflito ou disputas, articulando-as com manuais e com a fina observação
dos atores em situação. Esse trabalho tem enorme relevância no exercício de
diluição das oposições tradicionalmente formuladas, particularmente, entre
ciências sociais e direito, com relação à polarização entre regra e prática.
Esse ponto é particularmente crítico para o nosso “mundo”* que se caracteriza

* O mundo é uma categoria analítica importante na obra de Boltanski e Thévenot, e


suas formas e sentidos ganham diferentes feições ao longo do desenvolvimento da
obra dos dois autores. Ver, por exemplo, os trabalhos de Luc Boltanski: L’amour et la
justice comme compétences (Paris: Taili, 1990) e De la critique. Précis de sociologie
de l’émancipation (Paris: Gallimard, 2009), e de Laurent Thévenot: L’action au pluriel.
Sociologie des régimes d’engagement (Paris: La Découvert, 2006); Laurent Thévenot,
Kathy Rousselet e Françoise Daucé (org.), Critiquer et agir en Russie (Revue d’Études
Comparatives Est-Ouest, v. 48, n. 3-4, 2017 [dossier thématique]); e Laurent Thévenot

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Apresentação 21

pela desarticulação entre a “esfera pública” e o “espaço público” brasileiro


(Cardoso de Oliveira, 2002),* ou seja, entre o mundo das regras e das normas
impessoais e uniformes e das interações face a face, bem como pelo forte
viés dogmático e inquisitorial do universo jurídico brasileiro (Kant de Lima,
2011),** que concede, de forma tutelar, os direitos desigualmente distribuídos
aos tidos como naturalmente desiguais, fazendo com que prevaleça a lógica
do “cada juiz, uma sentença” (reformulando o ditado popular cada cabeça,
uma sentença). A centralidade da autoridade que é detentora de legitimidade
e de competência para interpretar, de forma não uniforme e isonômica, aquilo
que as regras definem como “padrões”, produz um efeito no modo como se
formulam os julgamentos impregnados de moralidades sobre as pessoas e não
acerca de suas práticas (Kant de Lima, 2011), como é hoje possível aprender
através das grandes mídias, ao acompanharmos o papel desenvolvido pela
Justiça brasileira em casos de grande repercussão, como Mensalão, Lava
Jato, entre outros.
Do ponto de vista da pesquisa sociológica e antropológica, essa operação
de entrelaçamento entre o pensamento filosófico, sociológico e o pensamento
ordinário dos atores em situação se torna muito potente para a confecção
de um olhar atento às variações de gramáticas e regimes inscritos nas ações
e operações críticas dos sujeitos, sem cair num relativismo ingênuo (um tipo
de niilismo) e determinista, realçando a indeterminação presente nas relações
humanas.***
A relação entre direito, sociologia e antropologia segue uma via original
ao considerar variações de regimes que nos convidam a um confronto com
o direito, rompendo com a divisão de trabalho clássica, segundo a qual os
juristas se ocupam da normatividade formal e os sociólogos daquilo que

e Michele Lamont, Rethinking comparative cultural sociology: repertoires of evaluation


in France and the United States (Cambridge: Cambridge University Press, 2000).
* Oliveira, Luís Roberto Cardoso de. Direito legal, insulto moral. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2002.
** Lima, Roberto Kant de. Ensaios de antropologia e direito. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Juris, 2011.
*** C abe frisar, como os autores mencionam neste livro, a importância do trabalho de
Louis Dumont (ver, por exemplo, O individualismo. Uma perspectiva antropológica da
ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985).

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22 A justificação

advém das práticas. Segundo Thévenot (2006, p. 16),* as “aproximações


entre direito e sociologia se dão a partir do tratamento das justificações no
direito e das transformações esperadas das pessoas e das coisas para que as
formalidades do direito, as qualificações e as responsabilidades achem seus
pontos de aplicação”. O encontro entre o direito e a sociologia, na obra dos
dois autores, deve ser orientado pela perspectiva comparada e cruzada entre
as formas ordinárias de elaboração das normas e aquelas emprestadas ao
universo formal da justiça. Para os autores, as provas do regime de justifica-
ção permitem a ação a “bom direito”, fazendo com que o olhar sociológico
se dirija a compreender as operações de julgamento e de provas, visando
relacionar a política e a moral como numa perspectiva weberiana, na qual
as justificativas são evidenciadas a partir dos “justos motivos” ou “motivos
legítimos” dos juízes, na qualidade de operadores da justiça. Partindo de
uma abordagem simétrica entre os objetos e as pessoas, Boltanski e Thé-
venot apontam que o direito é o modo de investimento que assegura uma
maior validade e perenidade às marcas de referência convencionais pela sua
capacidade de identificar os seres e de unir-lhes qualidades informadas por
gramáticas morais e políticas.**
O aporte de determinadas correntes anglo-saxãs, como o pragmatismo
de Jonh Dewey, a etnometodologia e o interacionismo simbólico, passa por
um processo de renovação na sociologia francesa a partir do aparelhamento
conceitual que visa enfatizar o caráter plural, incerto e crítico da produção
disso que denominados sociedade. Ao privilegiarem os momentos de disputas
e os acordos, que reclamam por uma generalidade (montée en generalité) para
que os atores possam qualificar suas concepções de bem comum, Bolstanski e
Thévenot abrem uma nova lente que permite a construção de uma sensibili-
dade analítica às multiplicidades de regimes que operam no percurso de uma
ação. Todavia, em contraposição a uma noção de bem comum habermasiano

* Thévenot, Laurent. L’action au pluriel. Sociologie des régimes d’engagement. Paris: La


Découvert, 2006.
** Traçando um paralelo para colaborar com a leitura de A justificação, no domínio da
antropologia, tal esforço foi realizado por Clifford Geertz ao desenvolver uma categoria
analítica com enorme feição pragmatista (por considerar as pluralidades de modos de
justiça e o caráter crítico e indeterminado da ação): a de sensibilidade jurídica, em um
de seus trabalhos seminais (ver: Geertz, Clifford. O saber local: novos ensaios em antro-
pologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997, em especial o capítulo “O saber local:
fatos e leis em uma perspectiva comparativa”).

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Apresentação 23

(Habermas, 1993), focalizada sobre a ideia do consenso, os autores concedem


uma maior atenção à elaboração da crítica e das formas de produção do
acordo e do desacordo nas situações de interação. Mais do que seguir um
“eu” que representa, os dois autores propõem constituir um quadro, uma
variedade de figurações, que não sejam reduzidas a escalas de representações,
mas que possam se diferir de acordo com as animações de figurinos, nos
quais os seres humanos são equipados da capacidade de ação e de interação
entre os atores e os objetos que os circundam. Esse aspecto é potencialmente
importante para o nosso “mundo”, no qual a atividade humana exige uma
competência extra para lidar com as dimensões da imprevisibilidade marcan-
tes em nossas dinâmicas interacionais, cujo princípio do “você sabe quem
está falando” (DaMatta, 1979)* é reinante.
Por outro lado, esse estilo sociológico foi particularmente fecundo na
direção de contribuir para o desenvolvimento de noções alternativas às de
“papel social”, “identidade”, dentre outras caras às ciências sociais contem-
porâneas. No lugar de usos correntes de categorias como classe, habitus, raça,
etc., os autores desenvolvem a ideia de ordens de grandeza, apontando, por
um lado, para o pluralismo radical com o qual as pessoas são confrontadas
nas sociedades contemporâneas, e, por outro lado, para as diferentes formas
com as quais os atores podem se investir de distintas maneiras.** Eles apontam
para uma perspectiva teórica que permite conceber a ação humana como algo
situado em diferentes sequências nas quais as pessoas mobilizam competên-
cias diversas para se adequarem a uma situação apresentada, considerando
não somente a dimensão plural, processual e híbrida da composição dos
sujeitos, mas as dimensões morais que compõem os repertórios das ações e
experimentações. Isso nos permite problematizar como os próprios instrumen-
tos analíticos que se voltaram à compreensão dos procedimentos e processos
de construção das “identidades” se tornam, em grande medida, reféns dos
próprios esquemas analíticos e categorias locais, se tomarmos, por exemplo,

* DaMatta, Roberto. Você sabe com quem está falando?. In: Carnavais, malandros e heróis.
Rio de Janeiro: Rocco, 1979.
** Ver, por exemplo, os artigos seminais de Laurent Thévenot, “Les investissements de forme”
(In: Thévenot, Laurent (org.) Conventions économiques. Paris: Presses Universitaires de
France (Cahiers de Centre d’Etude de l’Emploi, 1986, p. 21-71) e “Une vie éprouvée.
Entre migration postcoloniale, discrimination à l’embauche, maternité affectée et adop-
tion salvatrice: quelle ‘identité forgée’?” (In: Vrancken, Didier (org.). Penser l’incertain.
Québec: Presses de l’Université de Laval, 2014).

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24 A justificação

os grandes e importantes modelos desenvolvidos pelas ciências sociais, através


de trabalhos seminais como de Erving Goffman e Fredrik Barth.*
Em outras palavras, os relevantes modelos de análise desses dois gran-
des nomes das ciências sociais (Goffman e Barth) naturalizam a forma de
produção liberal dos sujeitos informada pelo “mercado das identidades”, no
qual os atores operam como optantes dos papéis possíveis e disponíveis em
um grande portfólio de “identidades” em jogo. O trabalho, portanto, na obra
de Boltanski e Thévenot, consiste em tratar as operações de qualificação que
são feitas pelos próprios atores diante de diferentes gramáticas e moralidades
que variam sensivelmente de um quadro a outro ou mesmo dentro de um
mesmo quadro interativo. Busca-se, com isso, estender uma análise para o
conteúdo moral disposto na produção dos múltiplos investimentos de forma
que os sujeitos são capazes de encarnar numa situação de disputa ou conflito.
Essa ótica pluralista da ação humana é particularmente importante para o
Brasil nos dias atuais, diante das mudanças vividas nos últimos anos com a
renovação de nossa noção de Estado nacional, que incorporou a gramática
do multiculturalismo a sua agenda política e pública, posta hoje em risco
ante a emergência de postulados fascistas e nacionalistas, críticos às políticas
de diferença identitária. Importante frisar que os dois autores franceses não
ignoram a existência e pertinência de noções como raça, gênero, identidade,
etnicidade, mas as consideram como categorias que podem sofrer variações
de acordo com as arquiteturas da vida em comum e os estados e grandezas dos
atores. Trata-se de um esforço em diferenciar os quadros e arquiteturas da vida
em comum, sem reduzi-los a esquemas previamente definidos. Isso é parti-
cularmente importante para compreendermos que, em distintos mundos, há
diferentes formas de confecção disso que genericamente denominamos “iden-
tidade”, como as divergências entre a gramática liberal anglo-americana, que
concede uma posição privilegiada aos marcadores da diferença (como raça e
gênero), e a gramática republicana francesa, que acentua a dimensão cívica
do tratamento isonômico, geral e indiferente aos pertencimentos identitários
em prol do citoyen abstrato e universal (Boltanski e Thévenot, 1991; Mota,

* Em especial, os trabalhos de Erving Goffman: Representação do eu na vida cotidiana


(Petrópolis: Vozes, 1975); Estigma, notas sobre a manipulação da identidade deteriorada
(Rio de Janeiro: Zahar, 1975); e Erving Goffman e Fredrik Barth, Os grupos étnicos e
suas fronteiras (In: Barth, Fredrik. Guru, o iniciador e outras variações antropológicas.
Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002).

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Apresentação 25

2014).* Ou seja, para ambos os momentos de disputas ensejam formulações


de estados diferentes das pessoas e dos objetos. Tomemos, por exemplo, o
caso de um pai de santo ou mãe de santo, cujo investimento de forma oscila
consideravelmente de acordo com os quadros interacionais. Caso a interação
se dê no interior de uma casa de santo, a grandeza e o estado de um pai ou
mãe de santo é de uma ordem, ao passo que, em um ambiente de trabalho,
no qual ocupem uma posição de menor prestígio e autoridade, como a de
auxiliar de uma empresa ou de um escritório, essa grandeza será de outra
natureza.
Portanto, a proposição dessa tournant pragmatique, desenvolvida a
partir de A justificação, foi orientada por uma perspectiva fina que desloca
a atenção em direção às competências reclamadas pelos atores para identifi-
car a natureza da situação em vez de orientar o olhar sobre as identidades
sociais monolíticas, o status, os papéis, as disposições, ou habitus (Thévenot,
2006, p. 227). Tal perspectiva é importante por colocar o ator em evidência
na análise sociológica, assim como lhe destinar um tratamento que o asso-
cia a uma pluralidade de formas presentes quanto a sua conformação como
sujeito, um sujeito plural.
A postura adotada por esse estilo sociológico sobre o lugar dos atores
tem grandes implicações no trabalho de pesquisa, pois, do ponto de vista da
análise, há o imperativo de levar a sério o modo como os atores qualificam
suas críticas e seus sentidos de justo e justiça, não somente levando em con-
sideração o ponto de vista do nativo – nos moldes formulados por Geertz,
por exemplo, em sua antropologia hermenêutica** –, mas também realçando
o caráter crítico que os atores podem ter sobre os seus próprios pontos de
vista e o ponto de vista dos outros (entre eles, sociólogos ou antropólogos).
Essa sociologia da capacidade crítica*** desloca o projeto clássico de uma so-
ciologia crítica, nos termos propostos por Pierre Bourdieu e outras correntes
do pensamento sociológico e filosófico, para uma sociologia da crítica sen-
sível às variações dos sentidos da crítica em seus múltiplos quadros. Sendo
assim, a abordagem positivista que concede um lugar privilegiado ao cientista

* Mota, Fabio Reis. Cidadãos em toda parte ou cidadãos à parte. Demandas de direitos
e reconhecimento no Brasil e na França. Rio de Janeiro: Consequência, 2014.
** Geertz, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópo-
lis: Vozes, 1997. Em especial o capítulo “Do ponto de vista do nativo: a natureza do
entendimento antropológico”.
*** Boltanski, Luc; Thévenot, Laurent. Sociologia da capacidade crítica. Antropolítica, Ni-
terói, n. 23, 2007.

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26 A justificação

social, como detentor da capacidade de desvelar a realidade, cai por terra,


concedendo lugar a um princípio de simetria restrita (e não generalizada,
no sentido atribuído por Latour ou Callon), no qual as oposições e grandes
divisões entre operações cognitivas científicas, operações cognitivas ordiná-
rias, entre senso comum e conhecimento experimentado, entre qualificação
jurídica e qualificação ordinária, dão lugar a um modelo analítico devotado
a lidar com a continuidade, a modulação e a passagem entre estas operações
e posições.* O cientista social, nesse caso, tem o papel de tornar inteligíveis
essas formas e mundos, e não necessariamente de revelar uma “verdade”
sobre seus significados e propriedades.
Desse modo, tanto as ações dos atores como as teorias formuladas pelo
tratamento sistemático de análise, por parte do cientista social, estão frequen-
temente sob o crivo das provas públicas, em virtude da avaliação daquilo que
é justificável ou não. Colocar-se à prova nas interações evidencia a ligação
entre cognição e emoção, pois os movimentos da emoção contribuem para
dar visibilidade à apreciação sobre o que é conveniente ou não. Dessa forma,
“o alargamento da perspectiva não provém apenas da diversidade dos tipos
de atividade tomadas em consideração, mas igualmente de uma visão menos
centrada sobre o ator humano e mais ligada às dinâmicas da relação entre
esse ser e seu meio” (Thévenot, 2006, p. 241). No lugar de tomar o mun-
do social como um lugar regido por pautas e harmonias pré-estabelecidas,
como em uma música clássica, em A justificação a vida social equivaleria
a uma banda de jazz na qual as provas do convívio em um mesmo universo
interacional supõem um constante improviso e um grau de incerteza sobre a
melodia e os arranjos para a composição do comum. Para Boltanki e Thévenot,

* As diferenças entre a noção de simetria na obra de Latour e Callor e de Bolstanki e Thévenot


são apresentadas de forma bem esquemática no livro Introduction à lá sociologie pragmatique,
de autoria de Mohamed Nachi (Paris: Armand Colin, 2006). No prefácio apresentado aqui
pelos autores, tal distinção também é considerada de maneira muito mais substantiva
e esclarecedora. Da mesma forma, os leitores encontrarão importantes subsídios para a
compreensão dessa virada pragmatista em textos já aqui mencionados, como o de Marc
Brevilgiei e Joan Stavo-Debauge, Le geste pragmatique de la sociologie française, autor
des travaux de Luc Boltanski e Laurent Thévenot (Antropolítica, n. 7, 1999); o de Diogo
Silva Correa e Rodrigo de Castro Dias, A crítica e os momentos críticos: De la Justifica-
tion e a guinada pragmática na sociologia francesa (Mana, v. 22, 2016); o de Fabio Reis
Mota, Deslocamentos, movimentos e engajamentos: as formas plurais da ação humana na
perspectiva de Laurent Thévenot (Antropolítica, n. 24, 2008); o de Frédéric Vandenbergue,
Construção e crítica na nova sociologia francesa (Sociedade e Estado, v. 21, 2006); e o
de Diogo Silva Correa, Do problema social ao social como problema: elementos para
uma leitura da sociologia pragmática francesa (Revista Política e Trabalho, n. 40, 2014).

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Apresentação 27

a sociedade é modulada por um conjunto de provas (épreuves) com as quais


os atores se deparam no percurso de sua existência.*
Por fim, cabe mencionar que a compreensão por parte dos autores de
que o social é regido por uma pluralidade de mundos compósitos nos abre
caminhos enriquecedores para o trabalho de comparação, pois a comparação
ortogonal proposta no livro, e nos trabalhos posteriores (em particular nos
desenvolvidos por Thévenot na Rússia, nos EUA, na China, na Finlândia e
no Brasil), não se restringe à compreensão de quadros culturais singulares,
uma vez que a atenção é dirigida para as gramáticas que podem conviver
em diferentes mundos e culturas de forma dinâmica e plural. Nesse sentido,
o exercício comparativo se torna ainda mais rico por não se prender às
fronteiras nacionais ou culturais, alargando a possibilidade de produzir uma
compreensão das diferentes formas de expressão do social no plural.
Estamos, portanto, diante de uma grande obra que nasceu clássica
(e assim permanece) e que nos fornece instrumentos de bordo para plainar-
mos sob os céus cinzentos da vida social, reconhecendo que estamos diante
de um trabalho cuja intenção não é elaborar uma teoria geral, abstrata, que
manualize e dogmatize o trabalho sociológico, como se a pesquisa consistisse
em uma espécie de caça aos regimes, justificações ou cités, mas, pelo contrá-
rio, que nos fornece múltiplas aberturas e possibilidades de usos e abusos.**
Como frisa Boltanski,***

* Uma das referências importantes do pragmatismo francês, Isaac Joseph chama atenção
para o caráter transitório e dinâmico da vida social ao considerar que o social é uma
entidade en train de se faire. Ver, por exemplo, Joseph, Isaac. L’athlète moral et l’en-
quêteur modeste. Paris: Economica, 2007.
** Ver, por exemplo, as apropriações originais dessa abordagem em trabalhos de cientistas
sociais no Brasil, tais como: Alexandre Werneck, A desculpa: as circunstâncias e a moral
das relações sociais (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012); Gabriel Feltran, Fronteiras
de tensão (São Paulo: Editora Unesp; CEM, 2011); Letícia de Luna Freire, Próximo do
saber, longe do progresso: histórias de uma vila residencial no campus universitário da
Ilha do Fundão (Niterói: Eduff, 2014); Jussara Freire, Mobilizações coletivas e problemas
púbicos em Nova Iguaçu (Rio de Janeiro: Garamond, 2016); Soraya Simões, Histoire
et ethnographie d’une cité à Rio: la Cruzada São Sebastião do Leblon (Paris: Karthala,
2010); Daniel Cefai, Fabio Reis Mota, Felipe Berocan Veiga e Marco A. da Silva Mello,
Arenas públicas: por uma etnografia da vida associativa (Eduff, 2011); Fabio Reis Mota,
Cidadãos em toda parte ou cidadãos à parte. Demandas de direitos e reconhecimento
no Brasil e na França (Rio de Janeiro: Consequência, 2014); dentre outros trabalhos
que foram desenvolvidos nas ciências sociais brasileiras na última década.
*** Boltanski, Luc. Préface. In: Nachi, Mohamed. Introduction à lá sociologie pragmatique.
Paris: Armand Colin, 2006.

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28 A justificação

segundo o meu ponto de vista, o melhor método para ir em direção a uma


clarificação conceitual consiste em fazer circular os conceitos e as noções que a
gente, no percurso do tempo, acumula em uma caixa de ferramentas, não para
se convencer de que elas funcionam a todo custo e em todos os lugares, mas,
pelo contrário, para colocar à prova o seu mau uso quando esses instrumentos,
que guardam sempre os traços de sua origem local, são deslocados para outros
trabalhos de campo. (Boltanski, 2006, p. 13)

Finalmente, diante das circunstâncias atuais em que vivemos no Brasil


quanto ao ataque ao conhecimento e à Universidade Pública, não poderia deixar
de mencionar que a tradução deste livro só foi possível pelo esforço coletivo de
muitos pesquisadores e intelectuais que estão sob o abrigo de núcleos de pes-
quisa de excelência, a saber: Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisa (Nufep);
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados
em Administração de Conflitos (INCT-InEAC), ambos da Universidade Federal
Fluminense (UFF); Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Ur-
bana (Necvu); Laboratório de Etnografia Metropolitana (LeMetro), sediados
na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que estiveram à frente de
cooperações bilaterais envolvendo a França e o Brasil através de dispositivos
como o Capes Cofecub.* Sem o investimento público da França e do Brasil, essa
empreitada não lograria o êxito que obteve ante tantos trabalhos, cooperações
e laços institucionais tecidos nos territórios francês e brasileiro, considerando
sobretudo que a editora que permitiu a tradução e publicação desse importante
livro está sediada em uma Universidade Pública.
Portanto, para os leitores e as leitoras, desejo bom proveito dessa bela
obra-prima das ciências sociais contemporâneas!

Fabio Reis Mota


Professor do Departamento de Antropologia
da Universidade Federal Fluminense

* As dimensões da história desses encontros foram relatadas em capítulo de livro em


homenagem a Isaac Joseph: Mello, Marco Aurélio; Valladares, Licia; Kant de Lima,
Roberto; Veiga, Felipe Berocan. Si tu vas à Rio! L’expérience brésilienne d’Isaac Joseph.
In: Cefaï, Daniel; Saturno, Carole (org.). Itinéraires d’un pragmatiste. Autour d’Isaac
Joseph. Paris: Economica, 2007.

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prefácio à edição brasileira

C r í t i ca s e j u s t i f i caç õ e s d e A j u s t i f i cação

1. O pa p e l da m o d e l i z ação na s o c i o l o g i a d o j u l g a m e n to

Os autores de um livro estão longe de ser inteiramente responsáveis


pela maneira como o fruto de seu trabalho é utilizado, de modo que, não
sendo capazes de prever e controlar todas as formas de mobilização a que
ele dá origem, cabe a eles especificar e detalhar aquelas pelas quais nutrem
suas preferências, o que constitui uma das funções que se pode esperar de um
prefácio após a primeira publicação. No caso de A justificação, alguns desses
usos nos pareceram simplesmente não corresponder ao que queríamos fazer.
Apesar disso, dedicar atenção a essas críticas e mal-entendidos nos ajudou a
esclarecer nossas próprias intenções. Ademais, as reflexões geradas por essas
reações desempenharam um importante papel em nossos trabalhos posterio-
res. Com base nessas reflexões e nos novos desenvolvimentos promovidos
por ambos, hoje podemos tornar mais clara a delimitação do objeto que a
obra pretendia modelizar, inserindo-o em uma discussão mais ampla sobre
a manutenção de uma ordem política e sobre a maneira como tomam parte
nisso as pessoas nela implicadas.
Pode-se, especialmente, destacar interpretações de dois tipos, frequen-
temente associadas e muitas vezes adotando um tom crítico. As primeiras
consideraram que o modelo desenvolvido em A justificação era normativo
e, portanto, próprio à filosofia política, na medida em que esta se destina
a ser prescritiva. As outras consistiram em discutir nosso trabalho como se
ele pretendesse descrever a realidade social em toda a sua complexidade e,
com isso, como se propusesse uma nova e completa teoria do social. Ao nos
defendermos dessas críticas, consequentemente, nos tornamos mais cons-
cientes da particularidade do que pretendemos realizar. Nosso objetivo era,

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30 A justificação

com efeito, modelizar o senso de justiça* colocado em prática pelas pessoas


quando, no decurso de disputas, trocam críticas e justificativas para encerrar
um julgamento que permita ordenar as questões e os seres envolvidos por
referência a uma definição de bem comum.

1.1. Nossa concepção de sociologia

Para que este projeto seja bem entendido, precisamos dizer algumas
palavras sobre a concepção de sociologia que adotamos. Deixamos de lado a
premissa de tomar como dado que os seres humanos sejam, de algum modo,
por determinação, seres sociais, o que muitas vezes leva a se considerar que
“tudo é social”. Esse pressuposto tem o defeito de privar a sociologia de um
objeto específico, apresentando como algo definido, ou pelo menos colocado
entre parênteses, aquilo que seria exatamente a questão com a qual a discipli-
na deve lidar. Em vez disso, partimos da dificuldade dos seres humanos para
produzirem o comum e mesmo da permanente ameaça de incompatibilidade
com a qual eles são confrontados, o que conduz a disputas, quiçá a confron-
tos violentos. De fato, as comunidades, nesse sentido, geralmente designadas
como “sociedades”, são associações que pretendem estabelecer uma relativa
condição de segurança e de paz, para além daquelas proporcionadas pelo
parentesco quando este, com base na biologia, dá origem a uma ordem ba-
seada na filiação e na aliança. Essas associações comunitárias estabelecem e
instituem um terceiro, ao qual é entregue o poder propriamente político de orde-
nar e, tanto quanto possível, de pacificar as relações de intercâmbio e rivalidade
entre parentelas. Essas comunidades, que oferecem a vantagem de proporcionar
segurança, devem, não obstante, fazer face à incerteza e até mesmo à ameaça
devida ao fato de serem compostas de seres dotados de uma interioridade cujas
peculiaridades sempre permanecem parcialmente desconhecidas e estranhas. Es-
ses seres devem, portanto, colocar em prática formas comuns, assegurando uma
relativa coordenação, da qual a lei oferece as versões concretas mais elaboradas
(Thévenot, 1984). Essas formas comuns fornecem recursos para evitar que a

* Traduzi “sens” ora como “senso” (de justiça) ora como “sentido” (da justiça ou do termo
justiça) conforme o conteúdo específico de cada trecho. Como se vê ao longo de todo o
livro, “sens de la justice” assume ora o significado de uma racionalização comum e de
uma faculdade cognitiva dos atores, ora de um elemento semiótico. Assim, fui levado
ao sabor de cada problematização pontual. (N. do T.)

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Prefácio à edição brasileira 31

disputa seja resolvida pela força (Boltanski et al., 1984). Os integrantes adminis-
tram a possibilidade de uma validação e de uma hierarquização de demandas
incompatíveis por meio da implementação de quadros mais formais. Estes
últimos, longe de serem imagens específicas das situações das quais emergem
(como sugerido pela etnometodologia), contam com uma validade que deve
se estender e ser conservada ao longo do tempo, assim como a comunidade
que eles contribuem para manter. O recurso a esses quadros e a essas formas
comuns torna possível se passar das exigências da situação para as formas
convencionais de se fazerem valer pretensões. E essas formas constituem um
dos principais objetos tratados em A justificação. Nós as identificamos ini-
cialmente a partir de observações empíricas de disputas comuns e depois as
modelizamos, tirando proveito de um corpus de obras da filosofia política.
Com efeito, diferentemente da sociologia, orientada para a descrição, assim
como a linguística, a filosofia política, da mesma forma como a economia e
outras ciências de sustentação da engenharia, põem-se a conceber essas for-
mas convencionais, algumas das quais consagradas na lei e nas instituições.
Nossa hipótese era que os membros de nossas sociedades, diante das
tensões e disputas da vida cotidiana, colocam em prática um senso de jus-
tiça que, sendo mantido pela mobilização dessas formas, permite uma certa
convergência entre as interpretações. E uma vez que a justiça implica uma
comparação e que esta não nos é necessariamente favorável, pode-se pensar
que todo senso de justiça inclui o pressuposto de que os outros contam com
igual acesso a ela, de modo a ser possível se entender com eles a respeito
da definição de um bem comum a propósito do qual as posições divergentes
se confrontam. É necessário que, ao final do processo de comprovação que
estabelece um julgamento a respeito de um ordenamento, aqueles que se
encontrem em desvantagem não questionem o sentido de justiça resultante.
Isso não impede que, em uma situação concreta, essas comprovações sejam
recolocadas em questão, mas desta vez invocando-se que seu agenciamento
e sua implementação tenham sido incorretos. Na verdade, o senso de justiça
que modelizamos é uma norma que se revela particularmente em situações
nas quais alguns integrantes considerem que ela os traiu em favor de uma
forma de dominação.

1.2. Para além da argumentação

Um primeiro mal-entendido contra o qual advertem os dois primeiros


capítulos do livro é considerar que A justificação trate da relação entre

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32 A justificação

pessoas com cada uma delas concebida sob o modelo do individualismo


metodológico. Contra essa interpretação, esforçamo-nos para sublinhar desde
o início as construções comuns necessárias para que, apesar das pretensões
diferentes – e não a priori compatíveis – apresentadas por seus participantes,
uma ordem possa ser estabelecida sem o recurso à força. Segundo o mesmo
mal-entendido, o ator pressuposto por A justificação poderia ser visto como
homólogo de uma consciência kantiana, oferecendo-se um ideal para julgar e
a partir do qual desenvolver argumentos no decurso de uma disputa. Assim,
alguns leitores trataram nossa obra como uma teoria da argumentação e, mais
precisamente, dos lugares argumentativos, ou até mesmo confundiram o livro
com a Teoria do agir comunicativo, de Habermas (1987[1981]), que propõe
um modelo normativo no qual a comprovação consiste em uma troca de
argumentos, cuja validade é colocada à prova. Para esse autor, as coisas são
levadas em consideração apenas de um ponto de vista negativo, na medida
em que constituam um sistema e dificultem a boa comunicação.
O esquema desenvolvido em A justificação se distingue enormemente
desse modelo. Se reconhecemos a parcela dedicada à argumentação e seus
fundamentos normativos, que relacionamos a um senso de justiça, por outro
lado, a comprovação em si não pode ser considerada uma simples confronta-
ção entre argumentos, e sim uma confrontação entre elementos que, materiais
ou não, são associados em categorias como coisas. As operações qualificado-
ras que constituem a comprovação participam elas próprias de um processo
de reificação, estabelecido por um julgamento e objetivado em formas. Essas
coisas qualificadas – sem as quais a comprovação não poderia ter lugar, ou
estaria condenada a ser puramente “palavras”, no sentido em que se fala
ironicamente de “palavras vazias” – compõem dispositivos sedimentados
nos ambientes sociais. E essa é a razão pela qual é possível uma história
das mudanças no senso/sentido de justiça, na medida em que comprovações,
apesar de antigas e fora de uso, deixam na realidade depósitos, sedimentos,
constituídos por coisas já anteriormente qualificadas.
Essa atenção aos mundos qualificados distingue claramente o modelo
apresentado neste livro de um idealismo subjetivista, com esses sedimentos
constituindo referências comuns. Por outro lado, do ponto de vista da socio-
logia e da história, esse enquadramento permite o acesso objetivo a provas
com as quais o sociólogo trave contato sem que ele tenha que delas tomar
parte ou que se fundamentar inteiramente na experiência dos atores. A so-
lidez dessas coisas é necessária no momento da comprovação e justamente

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Prefácio à edição brasileira 33

por isso permite estudá-las, o que torna essa sociologia indissociavelmente


cognitiva e materialista. Por outro lado, contrariamente às antigas formas de
positivismo, nossa sociologia não ignora que os dispositivos de comprovação
mais robustos na aparência possam ser colocados em questão pela crítica e
dar lugar a interpretações diversas, quiçá provocar disputas. Essa pode ser a
característica distintiva que apreendemos desses dispositivos na medida em
que eles contribuem para criar e sustentar a humanidade dos seres viventes.

1.3. Nem modelo normativo nem modelo de sociedade

Um segundo mal-entendido foi ler que estaríamos propondo um mo-


delo normativo. Ora, aquilo que procuramos modelizar carrega, sim, um
caráter normativo, pois trata de uma norma a orientar o senso de justiça.
No entanto, não pretendemos defendê-lo normativamente, como fizeram os
filósofos políticos ou teóricos da justiça, como John Rawls (1987[1971]), ou
certos sociólogos que se dedicaram a uma tarefa semelhante, como o citado
Jürgen Habermas ou ainda Michael Walzer (1997[1983]). Nosso livro, em
vez disso, visa descrever as convenções subjacentes ao senso de justiça, e não
fazer proselitismo dessas convenções. Ele, aliás, não aborda a relação entre
essas convenções e outras construções visando a ordem, um ponto sobre o
qual retornaremos na parte 4 deste préfácio.
Esse equívoco indubitavelmente se deve, em parte, ao fato de termos
recorrido, para modelizar as diferentes cités, a construções derivadas de filo-
sofias políticas clássicas, estabelecidas em épocas diferentes (da Antiguidade
até o século XIX). Mas o próprio movimento de aproximar e comparar
essas filosofias políticas, muitas vezes em oposição umas às outras, busca
precisamente colocar entre parênteses seu caráter normativo. De fato, des-
viamos cada uma dessas filosofias políticas de sua mobilização normativa e
a tratamos como uma forma particular de os atores fundamentarem os laços
sociais e de justificarem ou criticarem as ações. Sua aproximação, que pode
ter sido criticada como “relativista”, cria, no entanto, a possibilidade de se
levar em conta a diversidade, limitada, de pontos de apoio normativos aos
quais os atores podem se referir para fazer valer suas experiências e realizar
operações de justificação ou crítica, o que abre caminho para uma concepção
pluralista da vida social. Assim, por exemplo, experiências limítrofes, como
as do misticismo (Claverie, 2003), geralmente ignoradas pela sociologia ou
tratadas apenas na modalidade da ilusão, podem ser reintegradas ao universo

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34 A justificação

das práticas passíveis de compor uma ordem social justificável, redescrevendo­


‑se a elas por referência a uma cité da inspiração.
Um terceiro mal-entendido consistiu em acreditar que nossa descrição
do senso de justiça como ideal convencional correspondia a uma descrição do
estado de nossas sociedades. Se fosse esse o caso, a crítica que muitas vezes
recebemos de representar a sociedade como irenista seria justificada. Ora,
a existência desse senso de justiça como algo suposto como compartilhado
pelos atores e tomado como quadro normativo não implica que seu acesso
seja igual em todos os fatos, nem que possa ser implementado ao mesmo
custo em todas as condições sociais. Aquilo que chamamos de “os mundos”
não descreve universos em suas manifestações empíricas. Apesar de o uso
da palavra mundo e de os exemplos serem tomados emprestados da vida
cotidiana, eles são extraídos de manuais e, portanto, de obras que não pro-
movem descrições de universos na forma de uma pesquisa, tal como eles se
manifestam na prática, e sim que qualificam esses universos com vistas a uma
orientação normativa dos comportamentos. Assim, por exemplo, abordamos
a dominação por meio das críticas feitas a ela pelos atores a partir de cada
mundo.
E além da crítica de sociólogos de não levarmos em conta o verdadeiro
“mundo social”, derivada do mal-entendido anterior, recebemos ainda uma
reprimenda da parte dos historiadores (Lepetit, 1995). Eles ficaram chocados
ao nos ver usar no livro referências a obras de filosofia política de épocas
muito distintas, assim como a obras relativas a diferentes períodos. Mas, bem,
A justificação trata empiricamente do senso de justiça apenas na sociedade
contemporânea. Nosso parti pris trazia algo de provocativo, porque procu-
rava romper com a oposição entre o histórico e o a-histórico, mostrando um
presente constituído por uma multiplicidade de depósitos, sob o modelo do
paradigma da língua, e sob a imagem da cidade antiga, como cidade-Estado.
Por meio do direito, das instituições ou do sistema educacional, as diferentes
filosofias políticas de que lançamos mão para modelizar as “cités” marcam
normativamente a linguagem e a vida cotidiana. Contudo, escrevemos que
as grandezas eram históricas sem apresentar elementos internos ao modelo
que iluminassem a aparição ou o desaparecimento de uma cité. Voltaremos
a este ponto na parte 3 deste prefácio.
Ao tratar de um certo sentido da justiça, o modelo comporta uma com-
patibilidade mais marcada com as ordens políticas do tipo democrático. A jus-
tificação foi criticada pela esquerda radical como um trabalho conservador da

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Prefácio à edição brasileira 35

ordem estabelecida. Notadamente, foi criticado por agir como se a realidade


fosse fundada em um dispositivo de comprovações controladas, enquanto a
intenção de nosso trabalho era propor uma analítica da crítica. Fomos con-
denados por não atribuir suficiente importância à inscrição duradoura, nas
pessoas, dos resultados das comprovações, em um determinado mundo, que
fossem encontrados nas circunstâncias próprias a outro mundo, tendo como
resultado uma contaminação das comprovações deste segundo mundo. Isso é
justamente o que chamamos no livro de “transporte da grandeza, transporte
de infortúnio”. Segundo essas críticas, esses transportes são tão importantes
que tornam o modelo irrealista.
Todas essas diferentes reprimendas repousavam sobre uma mesma crí-
tica, que por vezes permanece implícita: ao colocarmos a comprovação no
centro do modelo, aceitamos a ideia de que ela fosse considerada justa; e
como os resultados de uma comprovação são sempre desiguais, não estaría-
mos nós sustentando a ideia de desigualdades justas?
Esses questionamentos impediram aqueles que os levantavam de com-
preender que a crítica estava no centro de nosso trabalho, e segundo a forma
na qual ela está mais presente na sociedade, como crítica a partir do ponto
de vista de uma concepção de bem comum ou de uma grandeza em relação
a outra. Dessa maneira, essas colocações em questão ignoravam os possíveis
usos críticos do modelo, que, com base nas formas comuns e ordinárias de
racionalização sobre a justiça conforme procuramos esclarecê-las, pode ques-
tionar de diversas maneiras as comprovações da vida real, longe de ser sempre
consumadas no formato que reivindicam. Este é o caso, por exemplo, de uma
comprovação (avaliação) eleitoral no mundo cívico. O modelo oferece suporte
substancial para se demonstrar nela a interferência (doméstica e mercantil) de
famílias dotadas de poder local ao mesmo tempo tradicional e econômico. E de
maneira ainda mais evidente, ao dar ênfase às interações críticas fundamentadas
nas argumentações e nos resultados de uma comprovação, ele pode ainda
servir para criticar situações em que as relações de força, quiçá a violência
física, determinam a distribuição de bens e poderes.

1.4. A incongruência radical do senso de justiça

As várias críticas dirigidas a A justificação podem ser reduzidas a uma


mesma ideia, dominante na sociologia: aquela que consiste em tratar a exigên-
cia por justiça como uma ilusão que dissimula os reais fundamentos de uma

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36 A justificação

ordem social, cuja base seriam as relações de poder. O desvelamento dessa


ilusão é visto como constitutivo da posição científica. Pois contrariamente
a essas posições e em conformidade com nosso princípio de promover uma
sociologia que seja um detalhamento das competências dos atores, decidimos
levar a sério a exigência de justiça e tratar como realistas as situações nas
quais ela esteja inscrita, assim como aos equipamentos a permitirem sua
existência. Não obstante, essa posição não anula a consciência do caráter
transgressivo do apelo à justiça que visa intervir no processo de manutenção
de relevos hierárquicos e que os atores também habitualmente levam em
consideração. O fato de a exigência de justiça ser fundada em uma exigência
normativa de questionamento é algo construído de encontro a convenções
tornadas coisas e cuja solidariedade suposta reforça a estabilidade. E, nesse
sentido, o “realismo” consistiria em se tomar o mundo convencional como
um mundo de coisas. A referência a essas convenções tomadas como coisas
é operada na vida cotidiana, ou seja, na linguagem do realismo em diálogo
com a do idealismo, ela é centrada na crença de que as coisas se curvariam
às ideias. A especificidade do senso de justiça é se fundamentar também nas
coisas, mas isso na realização de um julgamento que explicitamente se ocupa
da necessidade da tarefa de duvidar a fim de se assegurar a manutenção da
humanidade comum a despeito das ordens de importância a se estabelecer.
Essa posição da justiça, apontada de um lado para o realismo e de outro para
o idealismo, é o que a torna excepcional e frágil, ao lhe conferir uma margem
de manobra da qual depende seu desenrolar. Explicitar tudo aquilo contra
o que o senso de justiça deve se impor não leva a tratá-lo como um valor
desimportante, e sim, pelo contrário, como tentamos fazer em A justificação,
conduz a mostrar que uma ideia de justiça é indispensável à sobrevivência
das comunidades humanas e que a modalidade que buscamos modelizar
tornou-se preponderante, o que está longe de impedir o retorno de tentativas
de construção de ordens sociais baseadas na oposição entre fortes e fracos.
Alguns de nossos trabalhos subsequentes foram inspirados pela explo-
ração desses dois polos entre os quais se situa a justiça: o das coisas e o das
ideias independentemente das coisas. Com base na clássica oposição entre
amor e justiça, abordamos os momentos nos quais as pessoas põem de lado
equipamentos que lhes permitem estabelecer a equivalência e a julgar, em
favor de um retorno à pura humanidade comum. Esse afastamento dos dispo-
sitivos de equivalência é acompanhado por um recuo em relação às coisas em
seu modo convencional de existência. Ele permite a economia da reconstrução

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Prefácio à edição brasileira 37

das convenções, mas demanda uma colocação em presença, o que dificulta


a institucionalização (Boltanski, 2012[1990]). A análise de engajamentos*
no próximo, não requerendo, portanto, o distanciamento oferecido por um
terceiro de ordem pública, evidenciou as propriedades convenientes das quais
é privada a constituição das convenções comuns (Thévenot, 1990a, 2001,
2002) e que repousam em um tratamento do ambiente, sem a objetividade
necessária para alicerçar o senso de justiça.

2. A m o d e l i z ação c o m o i n s t ru m e n to pa r a r e v e l a r

t e n s õ e s a n t ro p o l ó g i ca s

Designamos como “ascensão em generalidade” o movimento pelo qual os


participantes encerram o desacordo circunstancial em favor de um argumento
de maior amplitude, indo além da situação para produzir um julgamento trans-
portável que ultrapasse seus limites e seja admissível por um terceiro. Promessa
de sucesso considerável em mobilizações mais ou menos precisas, a fórmula

* O termo engagement é central no tratamento de Laurent Thévenot posterior a A justificação,


sendo a palavra-chave do título de sua principal obra, L’action au pluriel: sociologie des
regimes d’engagement. A solução do argentino Horacio Pons, supervisionado pelo colega
sociólogo Gabriel Nardacchione para essa palavra em sua tradução do livro em espanhol
é excelente: involucramiento. Cogitei fortemente traduzir engagement como envolvimento,
pois o original se coloca na continuidade da discussão de Thévenot sobre as coordenações
entre os atores e deles com as formas, isto é, diz respeito a como explicar que os atores
sociais ingressem, se envolvam em (e sejam envolvidos por) comportamentos comuns (no
plural), coordenando-se entre si. Optei, entretanto, por traduzi-lo com um aparentemente
simples engajamento após uma longa reflexão e de debate com o autor. Não se trata
de decisão simples, no entanto. Engajamento, em português, seria problemático por in-
duzir um sentido típico ao mobilizado na discussão de ações políticas e de movimentos
sociais – como quando se fala em “engajamento em uma causa”. Mas esse sentido não
apenas não é estranho ao que o termo original permite, como a palavra ainda se mostra
mais eficiente do que outras. Ora, é mesmo de um comprometimento com o elemento
fundamental do regime em pauta que se trata – isto é, quando Thévenot fala em “regime
de engajamento no justo” é de se aderir à causa da justiça em ações comuns que está
falando. Mas “regime de comprometimento” sugeriria não apenas uma cena decisória
peculiar (o comprometimento entre partes, como um acordo firmado entre dois polos),
como ainda implica uma ambiguidade com o sentido de prejuízo (como quando se fala
em “sua participação ficou comprometida”). Mais que isso, como pode se ver em um
trecho adiante, quando se fala em “engajamentos públicos”, é importante para o autor
capturar a ambiguidade envolvimento/comprometimento/engajamento político. Assim, o
ator efetivamente se engaja com os outros (isto é, ingressa em uma forma coordenada
de ação) sob um regime com o qual ainda se engaja. Assim, o título do livro citado
ficaria, no Brasil, A ação no plural: sociologia dos regimes de engajamento. (N. do T.)

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38 A justificação

abrange duas maneiras distintas de proceder que, na verdade, correspondem


a duas orientações não similares de nossas respectivas pesquisas. E evocar
ambas permite esclarecer o objeto do modelo de A justificação.
A primeira forma é aquela de que trata o livro em si. Ela supõe distan-
ciar-se do movimento de corpos fortemente sensibilizados pela indignação e
prontificados a enfrentá-la. O caminho adotado converte a cólera em “jul-
gamento”. A modelização se refere, assim, a uma operação de julgamento e
não à sociedade, como muitas vezes foi dito sobre nosso trabalho. O julga-
mento requer uma suspensão do movimento, que tem como horizonte uma
questão que se torna ausente uma vez que essa movimentação seja consu-
mada, o da busca de um estado ordenado de humanos ou não humanos
defensável aos olhos de um terceiro e que não promoveria distinção entre
pessoas. A consumação do julgamento confere a esse estado uma consis-
tência interna que o torna capaz de resistir às circunstâncias, conservando
sua forma. O julgamento, então, torna possível substituir as circunstâncias
por um quadro apto a dispor os seres de uma maneira interdependente,
com o estado de cada um concebível apenas por referência aos estados
dos outros. E para serem levados em consideração nesse enquadramento,
os seres devem passar por um processo de “qualificação”, isto é, serem
apreendidos de uma forma que permita separá-los de um ambiente caótico.
A essa operação de comprovação de julgamento que busca transformar a
indignação em uma relação apaziguada e desapegada, por meio de uma
ampliação ordinária do tipo de operação realizada pelo direito, associamos
uma tradição da filosofia política que visa ela própria pacificar a política,
mantendo afastada a violência por fazer valer uma ordem compatível com
uma humanidade comum.
Essa primeira orientação não implica nem nossa ignorância do papel
desempenhado pela violência nas relações humanas nem o desconhecimento
de outra tradição de filosofia política que, de Maquiavel a Nietzsche, busca
suporte nos corpos, em um vitalismo compreendido não apenas como metá-
fora. Essa outra tradição procura explicar os constrangimentos e imperativos,
presentes nas racionalizações mais comuns em termos de justiça, destinados a
canalizar essa violência vital. Veremos no item subsequente como ambos os
autores estão interessados em impulsos, forças, tensões, até mesmo contradi-
ções que o vivente faz pesar sobre a constituição sempre a perigo de um ser
humano, assim como dedicam atenção às respostas oferecidas para humanizar
os seres vivos. Antes disso, enfatizemos que a “ascensão em generalidade”
conforme a modalidade do caso se aparta da modalidade anterior porque a

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Prefácio à edição brasileira 39

acusação, em busca de imputação (de culpa), interliga pessoas a potências


não qualificáveis por grandezas, considerando-se nesse caso a guerra como a
forma final de comprovação dessas potências. O vocabulário da denúncia foi
mobilizado tanto na pesquisa sobre as críticas sistematicamente analisadas
em A justificação quanto naquelas sobre escândalos veiculados na imprensa,
embora os dois modos de “ascensão em generalidade” sigam caminhos dis-
tintos. A primeira orientação, deliberadamente privilegiada neste livro, não
pode ser entendida sem a outra, à qual ela tenta impor limites. Essa primeira
orientação foi especialmente desenvolvida em uma época que especificamente
sucedia a um período de violência, como veremos na quarta parte deste texto.

2.1. A temporalidade contraditória da comprovação

Será o fluxo do que se passa o mesmo para todos os seres determinantes


para isso ocorrer? A resposta só pode ser trazida por um enquadramento
desse fluxo capaz de esclarecer os pontos de referência convencionais a per-
mitirem identificar o que está acontecendo. Essa operação se sobrepõe ao que
está sendo feito, adicionando a isso formas que qualificam e, com isso, even-
tualmente modificam o que está em curso. E isso tende a, ao mesmo tempo,
esclarecer e desacelerar a ação. No modelo comum das cités, atribuímos um
peso bastante grande à exigência de recolocação do processo de comprova-
ção, pois ele corresponde à ideia de que os estados devem ser desatrelados
das pessoas para se atender ao imperativo de humanidade comum. Assim, o
valor eugênico é estranho ao modelo, uma vez que está atrelado aos corpos
das pessoas. Sendo assim, essa renovação da testagem desempenha um papel
importante no acabamento de nosso enquadramento. Ora, uma comprovação
que não valesse senão para o momento e que não tivesse nenhum poder de
previsibilidade teria muito pouca razão para ser colocada em prática. Mas se
não fosse nunca recolocada, isso contradiria a cláusula de não atrelamento.
Essa tensão pode ser pensada em face da coerência do modelo, mas também
se pode ver nisso uma tensão própria ao julgamento em si, capturado entre
o fluxo não comumente identificável e a fixação de estados.
A ênfase depositada na renovação da comprovação levou-nos a dei-
xar de lado a problemática da duração da validade do resultado de uma
avaliação como essa. Se levarmos em conta a continuidade da pessoa e a
memorização das comprovações, dificuldades são levantadas justamente pelo
questionamento da comprovação, contida que está em uma ordem democrá-
tica. A clareza do modelo permite, dessa maneira, apontar para uma tensão

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40 A justificação

interna da democracia, que consiste em garantir uma certa durabilidade na


fixação das comprovações sem que se constituam, apesar disso, coletividades
criadas por comprovações passadas e definidas por um estado permanente
resultante daquelas avaliações. Nesse sentido, as análises empíricas a utili-
zarem o modelo de A justificação podem servir para avaliar o grau em que
uma sociedade pode ser considerada democrática. Criticam-se, em especial,
comprovações que, seja por princípio seja praticamente, chegam a atrelar uma
grandeza às pessoas. Essa crítica, que de nosso ponto de vista integra o senso
de justiça, contradiz propensões frequentes a se direcionar a um julgamento
sobre as pessoas com base em propriedades perenes, como a cor da pele ou
a origem étnica, propensões que podem ser reforçadas pelas ordens sociais.
E mesmo no caso em que se espere que a comprovação seja independente
dessas propriedades inerentes, em muitos casos elas intervêm no resultado
final se a valoração for mal controlada.
Essa cláusula central, a condição de se levar em conta o princípio da
humanidade comum, supõe que a renovação, a recolocação do processo de
comprovação, esteja sempre ao alcance. Mas, ora, como todo julgamento,
o da comprovação deve resultar, em seu final, em um estado, o estado de
grandeza. No direito, o julgamento encerra as atribuições não passíveis de
ser questionadas mais uma vez. O paradoxo da comprovação é que ela fixa
um estado cuja natureza variável é justamente a condição que a torna, como
comprovação, necessária.

2.2. Transporte de grandezas e identidade pessoal

Uma vez que os estados não podem ser atrelados de uma vez por todas
às pessoas, como conciliar a previsibilidade ligada aos estados de grandeza
e a recolocação do processo de comprovação (Boltanski, 2012[1990])? Esse
problema lança luz sobre outra tensão do modelo, relacionada ao fato de
as pessoas deverem contar com uma identidade pessoal compatível com as
sucessivas mudanças de qualificação. Ora, nosso modelo, ao se deter no
julgamento, não comporta uma teoria da identidade pessoal, o que supõe
conceituar modos de continuidade temporal constitutivos das pessoas em
engajamento (Thévenot, 2006, 2013, 2016a).
O resultado da comprovação, quando estabilizado de forma duradoura
e mesmo quando, não sendo mais atualizado, estiver memorizado, tende não
apenas a identificar o estado de grandeza de um ser, mas a lhe conferir o que

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Prefácio à edição brasileira 41

geralmente se denomina uma identidade. Não seria, então, necessário esten-


der o modelo da justificação no sentido de uma teoria da identidade para
conferir o peso adequado a uma figura nele apresentada, a do transporte de
grandeza? Essa figura desempenha um papel muito importante nas operações
críticas questionadoras dos transportes indevidos de grandeza de uma cité
a outra, considerados na lógica de A justificação algo sempre injustificável.
Esse prolongamento na direção da identidade pessoal permitiria estender o
enquadramento no sentido de uma análise do poder. Se nos ativermos à dis-
tinção clássica entre autoridade e poder, o modelo de A justificação oferece
um fundamento possível para uma teoria das formas de autoridade, deixando
de lado uma teoria do poder em sua perpetuidade. A utilização da ideia de
transporte de grandeza ultrapassa limites do conceito quando ela é mobilizada
para designar todos os processos ditos “de poder” ou “domínio”, sugerindo
tratamentos baseados em favorecimentos obtidos sem coerção e sem que seja
colocada a questão de se saber se eles são justos ou não. Uma análise desses
processos supõe abandonar nosso enquadramento para escavar por baixo
dele (ver a parte 3 deste texto).

2.3. O paradoxo da política: o tensionamento da comprovação entre


julgamento e decisão

Um dos interesses do modelo de A justificação era tornar possível viajar


entre situações geralmente tratadas como microssociológicas e outras tratadas
como macrossociológicas, descrevendo-as nos mesmos termos e mostrando
suas semelhanças com base no fato de ambas serem habitadas por um requi-
sito de justificação e comprovação. Consideramos que essa metodologia, que
guiou o conjunto de nossos trabalhos, apresenta a vantagem de colocar no
mesmo plano uma sociologia vista de cima e uma sociologia vista de baixo
e de reconhecer a validade das crescentes demandas da democracia para se
interligar uma com a outra.
Não obstante isso, esse modo de proceder suscitou críticas cuja validade
deve ser reconhecida. Elas dizem respeito à subestimação da importância,
em nosso retrato da comprovação, de suas consequências em uma decisão e
da importância dessa decisão, pelo menos no que diz respeito ao número de
seres por ela concernidos. Esses problemas podem ser traduzidos na linguagem
das responsabilidades. Embora seja verdade que falar nunca é algo isento de
responsabilidade e que nunca se possa dizer que alguém fale de todo ao vento,

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42 A justificação

os efeitos da fala e da comprovação serão muito diferentes a depender de


se há uma decisão ou não e conforme a quantidade de pessoas envolvidas.
Sem pertencer a campos diferentes, as comprovações podem variar de acordo
com essa responsabilidade pelas consequências. Quanto mais pessoas a de-
cisão implicar, mais formalizada e tornada pública ela será. Por outro lado,
a justificativa pode ser feita de forma mais leve. Decisões importantes são
tomadas no sigilo da razão de Estado. Mas os líderes, no sentido amplo, do-
tados de autoridade sobre um grande número de pessoas, são constrangidos
pelas exigências da lei, pelo julgamento dos pares ou pelo julgamento da
história. As tensões suscitadas por esses imperativos são originadas, no caso
de decisões implicando uma responsabilidade muito forte – por exemplo, a
morte de milhões de pessoas –, do fato de não podermos ignorar que essas
decisões sejam tomadas da mesma forma que as de nosso cotidiano pelas
pessoas comuns.
Essas tensões são próprias à democracia. A fim de identificar as con-
dições de sua aparição e os dispositivos destinados a atenuá-las, o trabalho
sobre o senso de justiça deve ser ampliado por uma análise daquilo que esse
senso, em sua colocação em prática, deve aos dispositivos políticos. O mo-
delo proposto em A justificação não pode ser tratado como uma ferramenta
política autossuficiente, porque o senso de justiça nele atuante depende para
sua realização de dispositivos jurídicos, institucionais e materiais cujas im-
plementação e gestão dependem de um governo, geralmente de um Estado,
associando às questões normativas um cercamento territorial e a mobilização
da força. Parece-nos que uma ampliação do empreendimento de A justificação
pode consistir em um estudo mais preciso da relação entre esse modelo de
justiça e os dispositivos políticos sobre o quais se sustenta a ação política,
quer seja a do Estado, quer seja a de organizações não estatais de governo*
(por padrões, especialmente) ou ainda a de movimentos de oposição. A ação
básica da política é a decisão. Mas esta exige que condições de aceitabilida-
de sejam implementadas. Uma decisão é chamada de técnica e não política
quando não está sujeita ao processo de comprovação deliberativo em uma

* O sentido de governo usado aqui e em geral no texto se aproxima daquele adotado por
Foucault, ou seja, é pensado não como instituição, e sim como prática, a de ordenar e
controlar condutas. Nos outros usos, no entanto, são bastante claras as mobilizações
do termo em seu sentido institucional, motivo pelo qual usei a palavra indistintamente.
(N. do T.)

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Prefácio à edição brasileira 43

comunidade pluralista. E é política quando é submetida a uma delibera-


ção cujo telos é o bem da comunidade. A justificação se refere apenas aos
momentos políticos em que seja necessário fazer as pessoas aceitarem uma
decisão ou obter o aval necessário para realizá-la, quando a decisão pode ser
fortemente criticada e, portanto, no decurso de uma comprovação, na qual
a decisão precisa ser justificada.

3. A j u s t i f i cação c o m o m at r i z d e qu e s t i o na m e n to s
­ lt e r i o r e s
u

Os trabalhos por nós empreendidos após a publicação original deste


livro, em 1991, foram motivados pelas reflexões inspiradas pelas críticas,
às quais respondemos separadamente, não sendo sensíveis um e o outro às
mesmas críticas. A justificação, cuja gênese aqui recordamos à luz de nossas
pesquisas anteriores, portanto, serviu como ancoradouro a partir do qual
testamos o modelo e exploramos seus limites, por meio de sua condução a
várias pesquisas de campo ou ainda por buscar ancorá-lo em um contexto
mais amplo.

3.1. Das coletividades à crítica

Nos anos 1960, a sociologia francesa apoiou-se em uma renovação da


esquerda não comunista. Ela operou uma liga entre elementos oriundos do
marxismo (do primeiro Marx) e de uma concepção durkheimiana do social,
entendido como coletividade e tratado ao mesmo tempo como a realização
fundamental da condição humana (“tudo é social”) e como uma exigência
moral confundida com a política. Nessa concepção da década de 1960 do
século XX, o marxismo reforça a pressuposição durkheimiana da primazia
do coletivo, acrescentando a ela uma divisão, manifestada na luta entre
dominantes e dominados. Essa conjunção tende a reificar as coletividades e,
ao mesmo tempo, deixar à sombra todo o trabalho necessário para consti-
tuí-las ou as manter. A explicitação desse trabalho de constituição foi então
facilmente confundida com sua depreciação, como se uma coletividade que
precisasse ser construída não fosse uma coletividade autêntica. Ao mesmo
tempo, essa ortodoxia tendia a solidificar as estruturas das sociedades a ponto
de dificultar a compreensão dos processos de mudança. Quanto à crítica, ela
se encontrava inteiramente absorvida na oposição entre uma classe dominante
e as classes dominadas.

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44 A justificação

Com ambos ancorados em pesquisas empíricas, que nos revelaram as


dinâmicas de formação e metamorfose de coletividades supostas imutáveis,
nos pusemos atentos ao papel desempenhado nessas dinâmicas pelos equi-
pamentos materiais ou técnicos, bem como pelos equipamentos institucio-
nais, como normas legais, padrões convencionais ou formas de qualificação.
Essas pesquisas reforçaram nossa dúvida em relação à solidificação dessas
coletividades e aos conceitos inventados para manter a liga entre marxismo
e durkheimianismo, mesmo este último tendo sido, no final das contas, am-
plamente considerado como uma alternativa ao marxismo. Orientamo-nos
para dois tipos de pesquisa coerentes entre si. O primeiro consistiu na cons-
trução de conceitos e métodos para descrever as ferramentas utilizadas na
identificação das coletividades e das maneiras por meio das quais elas são
construídas e mantidas a partir do investimento de formas comuns . Por outro
lado, sem questionar a contribuição da sociologia para a crítica, o segundo
empreendimento consistiu em adotar como objeto os procedimentos críticos
implementados não pelo sociólogo, mas pelos próprios atores, o que nos
levou a prestar atenção às disputas da vida cotidiana. Assim, colocamos em
ação dispositivos experimentais nos quais as pessoas comuns eram levadas
a promover classificações sociais e a discutir a identidade de coletividades
geralmente tratadas na linguagem das classes sociais, procedimentos que os
levaram a colocar em prática sua racionalização social mais corriqueira (Bol-
tanski; Thévenot, 1983, 2015). O interesse pela crítica nos incitou a analisar
juntamente a justificação, uma vez que as duas operações são geralmente
tratadas separadamente, o que permite a busca de uma crítica destacada da
explicitação dos suportes normativos nos quais ela se baseia. E assim como
no caso das críticas, para a justificação estávamos interessados em suas
operações implementadas pelos atores. Dessa maneira, concentramo-nos em
disputas nas quais as justificativas poderiam ser submetidas a críticas e nas
quais as críticas estavam submetidas a um imperativo de justificação. E para
levar em conta o argumento relevante segundo o qual essas justificativas
podem consistir em meros pretextos, reelaboramos a noção de comprovação.

3.1.1. A indignação “humanitária”

Alguns dos trabalhos pós-A justificação tiveram como ponto de partida


a preocupação em colocar à prova a abordagem desenvolvida neste livro, mo-
vendo-se em novas pesquisas de campo que pudéssemos imaginar oferecessem
resistência ao modelo, a fim de observar disputas e formas de julgamento em

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Prefácio à edição brasileira 45

ação em circunstâncias confrontadas à exigência de justiça. Nossa intenção,


ao fazê-lo, não era questionar a validade mesma do trabalho apresentado
originalmente, mas, muito diferentemente, enriquecê-lo e ampliá-lo, sem to-
mar o caminho mais fácil, mas um tanto preguiçoso, de reforçar o modelo
ilustrando-o com exemplos escolhidos de acordo com suas capacidades de
confirmá-lo.
Um primeiro empreendimento nessa direção (Boltanski, 1999[1993])
consistiu em adotar como objeto as chamadas crises “humanitárias”, ou
seja, mais especificamente, a relação que os atores em condições sociais mais
cômodas são convocados a estabelecer com outros seres humanos imersos
em situações extremas de sofrimento. Situações desse tipo multiplicaram-se
nas últimas décadas devido ao crescimento das ONGs e a uma extensão das
políticas humanitárias desenvolvidas pelas potências atuantes em nível inter-
nacional (soft power) e, por outro lado, devido ainda ao desenvolvimento de
meios técnicos, particularmente a televisão, capazes de fazer com que esses
seres sofredores (por exemplo, crianças passando fome) sejam vistos por um
grande número de espectadores de sociedades que podem ser consideradas
como (temporariamente?) mais protegidas de desastres. A intenção é os en-
volver e os fazer passar da inação para formas de ação a distância, seja em
termos de protesto ou de doações monetárias.
Em comparação com as situações típicas que, baseadas em pesquisas de
campo, serviram de base para o modelo apresentado em A justificação, esse
tipo de caso apresenta duas particularidades. Em um sentido, os envolvidos
estão localizados em espaços tão heterogêneos e tão distantes que a possi-
bilidade de que sejam estabelecidas relações de comunicação (de ação em
comum) entre eles é amplamente excluída. Além disso, a condição daqueles
que sofrem é apresentada como tão desafortunada que exclui um tratamento
em termos de justiça. Uma questão como a de se determinar se os moribundos
merecem ou não sobreviver seria realmente desumana. Em outras palavras,
nos casos exemplares desse tipo, em que a questão é colocada em termos de
vida ou morte, a figura da humanidade comum se coloca em primeiro plano
a tal ponto que exclui a possibilidade de se colocar em prática uma exigên-
cia de hierarquia. E uma vez que uma exigência como esta se apresente, por
exemplo, por conta de meios limitados para ajudar os desafortunados, as
soluções adotadas pelos profissionais da ajuda humanitária são geralmente
baseadas em critérios supostamente centrados no grau de vulnerabilidade ou,
no limite, nas chances de sobrevivência, e não, por exemplo, na questão da
grandeza relativa dos seres, que se supõe terem todos igual direito à vida.

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46 A justificação

Buscamos explorar a arqueologia, desde por volta do século XVIII, de


situações políticas desse tipo, retomando o conceito – emprestado de Hannah
Arendt – de política de piedade (Arendt, 1990) e, por outro lado, submeter
a uma análise estrutural os lugares ou posições disponíveis aos atores para
expressar sua indignação. Essa análise nos permitiu identificar as tensões ou
contradições contidas, nesse caso, na relação entre os sentimentos, nascidos
no foro íntimo, e a ação, voltada para uma mudança do mundo, isto é,
para o exterior. Nosso projeto, portanto, foi estender as pesquisas sobre o
senso de justiça a um estudo mais amplo das formas de indignação e dos
imperativos e constrangimentos dos quais cada uma dessas formas é produto.
Esses imperativos e constrangimentos, muitas vezes apresentando-se como
incompatíveis, geram tensões que essas formas devem administrar de modo
a torná-los, se não invisíveis, pelo menos suportáveis. A ideia norteadora era
que a indignação é o sentimento dominante sobre o qual repousa a relação
política com os outros e com o mundo, pelo menos desde o nascimento das
construções políticas do século XVIII organizadas em torno do que é usual-
mente chamado de o espaço público (Boltanski, 2012[1990])*.

3.1.2. A crítica social

Esse projeto deu origem também a outro livro, De la critique: précis


de sociologie de l’émancipation [Sobre a crítica: detalhamento de uma so-
ciologia da emancipação] (Boltanski, 2011[2009]), que pretende desenvolver
uma teoria da crítica social, suas condições de emergência e de sucesso ou
insucesso. Essa análise das formas contemporâneas da crítica baseou-se
principalmente em dois componentes que propõem conjuntos de conceitos
visando, em uma frente, compreender a possibilidade da crítica em si e o
modo como ela opera e, em outra, a maneira como ela pode ou não encon-

* No livro fundamental oriundo dessa pesquisa, La Souffrance à distance: morale humani-


taire, médias et politique [O sofrimento à distância: moral humanitária, mídia e política],
Boltanski se fundamenta, como dito, em Hannah Arendt para opor duas formas políticas
resultantes das duas grandes revoluções fundadoras do mundo moderno: a política de
piedade é tornada central pela Revolução Francesa e se fundamentaria em uma separação
entre os humanos que sofrem e os que não sofrem, com vistas a não admitir nenhum
sofrimento e buscar corrigi-lo; por sua vez, a política de justiça seria trazida à tona pela
Revolução Americana e se fundamentaria em uma avaliação sobre o caráter justo dos
sofrimentos, servindo de base a uma tradição liberal meritocrática. Assim, é sobretudo
aos países da Europa Ocidental e aos de tradição de Estados de bem-estar social que
trata a descrição apresentada neste trecho. (N. do T.)

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Prefácio à edição brasileira 47

trar pontos de tomada para se enraizar em formações sociais. Um primeiro


dispositivo conceitual introduziu uma distinção entre, de um lado, o mundo
e, de outro, a realidade. Os atores sociais estão imersos em uma realidade
que, tributária de um certo número de formatos preestabelecidos colocados
no ordenamento jurídico ou, mais genericamente, em textos normativos,
tende a limitar os horizontes de expectativa e as aspirações passíveis de ser
consideradas “realistas”, nisso se incluindo aqueles desfavorecidos por esses
formatos e que podem ser chamados, para falar rapidamente, os subalternos.
No entanto, nem todas as experiências destes estão enraizadas nesse plano
de realidade social e legalmente construído. Algumas de suas vivências estão
imersas no que pode ser chamado de mundo, definido, tomando-se empres-
tada a fórmula de Wittgenstein (1961[1918]), como “tudo o que ocorre”* e
mesmo tudo aquilo passível de ocorrer, referindo-se à impossibilidade de se
conhecer e se controlar o mundo em totalidade.
O plano da realidade é, por sua vez, atravessado por contradições que
tendem a ser contornadas ou ocultadas pelas instâncias dominantes quando
a realidade se estabiliza, no sentido de que cada um dos elementos que a
compõem parece dar suporte à efetividade dos outros. Ora, em situações
históricas nas quais essa realidade parece estar desmoronando, como é nota-
damente o caso quando se desenvolvem crises econômicas e/ou movimenta-
ções sociais transformadoras, os atores podem se mobilizar para dar forma
àquilo que, em sua vida cotidiana, enraíza-se em suas experiências do mundo,
traduzi-lo em termos de linguagem e, quando conseguem encontrar a quem se
dirigir, transmutá-lo em demandas políticas, de modo a tentar modificar, por
meio da crítica, os contornos da realidade.
Para compreender as operações desse tipo, é preciso se deter um pou-
co diante dos dispositivos destinados à tarefa de construir a realidade e a
sustentar. É nesse ponto que comparece o segundo conjunto de conceitos
introduzidos em De la critique. Sua finalidade é entender melhor o papel
das instituições, compreendidas como seres sem corpos ou, se se quiser, como
ficções, que, precisamente por serem desincorporadas, diferentemente dos
atores comuns, sempre conscientes do fato de seu engajamento em/por meio
de um corpo, estão investidas da tarefa de dizer o que é aquilo que é, em
princípio para todos e a partir de um ponto de vista superior e totalizante,

* Conforme tradução de José Arthur Giannotti publicada pela Editora da Universidade


de São Paulo. (N. do T.)

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48 A justificação

isto é, a tarefa é defender o conteúdo mesmo de sustentação da realidade.


Nesse dispositivo teórico, a crítica adquire sentido sobretudo em relação às
instituições às quais é dirigida, de modo que o caminho para a emancipação é
entendido como um movimento para dessacralizar as instituições e, entre elas,
o Estado, pelo menos se for considerado como algo absoluto. Esse é o caso,
por exemplo, quando o Estado se propõe a reduzir as coletividades acusadas
de fugir ao seu domínio e sua influência e que são então qualificadas como
“seitas” (Esquerre, 2009), ou ainda quando o Estado se confere a vocação de
gerir não apenas a população de seres vivos no território dependente de sua
autoridade, mas também a dos mortos (Esquerre, 2011). Podemos, dessa ma-
neira, conceber ordens políticas fundamentadas no reconhecimento da incerteza
que habita a realidade e abrir a possibilidade de modificar seus contornos, o
que supõe o reconhecimento da necessidade da crítica.

3.1.3. As coletividades sujeitas à investigação: loucura, política,


literatura, sociologia

Uma etapa seguinte, apresentada em Énigmes et complots: une enquête


à propos d’enquêtes [Enigmas e complôs: uma investigação sobre investiga-
ções] (Boltanski, 2014[2012]), teve como objetivo dar prosseguimento a essas
análises, dessa vez adotando como objeto o Estado-nação como desenvolvido
na Europa desde por volta do final do século XIX, ou seja, para retomar a
formulação de Michel Foucault (2004), o Estado na era da biopolítica. Este
pretende ser o fiador do conteúdo da realidade e, com isso, lançando mão das
ciências naturais, das tecnologias e das ciências sociais, pretende torná-la pre-
visível, reduzindo a incerteza que perenemente ameaça invadir a vida social.
O livro se fundamenta em fenômenos aparentemente muito diferentes, quais
sejam: no domínio da literatura, o aparecimento e desenvolvimento acelerado
e exponencial de romances policiais e de espionagem; no domínio da psiquia-
tria, a invenção de uma nova entidade nosológica, a paranoia; no caso da
vida política, a multiplicação de acusações de conspirações e complôs e de
acusações opostas de as pessoas se entregarem a teorias da conspiração; e,
finalmente, no domínio do conhecimento, o sucesso de público das ciências
sociais, e entre elas, principalmente, da sociologia, na medida em que serve,
por um lado, para conferir solidez à realidade institucional quando ela é
colocada em prática com base em uma lógica de expertise e, por outro lado,
para dar suporte a críticas.
O argumento central desenvolvido em Énigmes et complots é o seguinte:
o projeto verdadeiramente demiúrgico colocado em prática com a formação

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Prefácio à edição brasileira 49

do Estado-nação europeu, de tornar a realidade previsível no interior das


fronteiras nacionais e para uma população selecionada e registada, enfrenta
uma multiplicidade de obstáculos, entre os quais ocupa um lugar central o
desenvolvimento do capitalismo, que escapa às fronteiras nacionais. Disso
decorre uma inquietação, que pode ser descrita como estrutural, quanto à
estabilidade do ambiente social e político e ao próprio conteúdo da realidade.
Ora, de acordo com nosso trabalho, é essa inquietação com a realidade da
realidade que está traduzida para uma vasta audiência pelos gêneros literá-
rios que colocam a incerteza no cerne de sua aparelhagem ficcional, o que
também é expressado pelo sucesso público da referência à paranoia, uma
doença caracterizada pela incapacidade de colocar um fim na investigação
sobre o real, tornando-se uma acusação habitual, ou ainda pela inquietação
diante da ameaça de conspiração, que consiste em um dos propulsores da
mídia moderna. Mas é preciso deixar claro que essa ansiedade difusa em
relação à realidade adquire facilmente um viés reacionário, quando conduz
à idealização de um passado supostamente imóvel e, portanto, seguro, isto é,
quando essa inquietação não se traduz em uma crítica dirigida por um lado
às instituições, especialmente quando elas se omitem em relação às exigências
democráticas, e, de outro lado, ao capitalismo, quando ele faz da incerteza
e da desordem uma fonte de lucro.

3.2. A potência da modelização como instrumento comparativo


No contexto marcado pela história política pós-1968, o modelo da justi-
ficação por nós delineado concentrou-se na questão da justiça. Como veremos
mais precisamente na quarta parte deste prefácio, consagrada a esse contexto,
a questão de uma ordem justa estava no centro da crise de 1968. Ela colocou
em questão as fontes de autoridade hierárquica e seu reconhecimento, fossem
elas tradicionais ou técnicas – o slogan “nem Deus, nem senhor”, direcio-
nado a ambos os tipos, jogando com a máxima anarquista –, especialmente
na modalidade de crítica social que exige o esclarecimento da valoração das
remunerações ou na forma de uma crítica cultural com ênfase nos processos
escolares e questionadoras do caráter justo de suas avaliações e resultados.
Essas são fundamentalmente as tensões surgidas quando estudamos
conflitos entre diferentes ordens de justiça em diversos domínios, e que nos
levaram a confrontar as ordens de justiça. Muitas das disputas que analisa-
mos – especialmente aquelas a respeito das classificações socioprofissionais
(Boltanski; Thévenot, 1983, 2015) – emanavam uma oposição entre um re-
gisto relacionado com a autoridade encarnada e alimentada na antiguidade/

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50 A justificação

senioridade e registos relacionados às competências técnicas e à administração


do coletivo, o que constituirá a tensão entre as ordens doméstica, industrial
e cívica (Thévenot, 1983, 2016b).
O simples fato de se colocar sobre o mesmo plano esses diferentes níveis
de justiça geralmente levados em conta separadamente ou em oposição nas
disputas permitiu que introduzíssemos a questão da justiça, que se tornou
nosso ponto de partida para outro tema, o do pluralismo. Ora, na França,
o tema da justiça foi fortemente municiado por um passado de Estado cen-
tralizado e catolicismo institucional, enquanto a problemática do pluralismo
foi limitada a alguns dispositivos políticos de debate pouco inseridos nos
costumes devido à ausência de uma cultura do liberalismo político.
Colocar no mesmo plano vários registos de justiça e buscar sua estrutura
comum, o que no contexto francês sucumbia à crítica de relativismo, foi a
operação que nos permitiu trabalhar em dois níveis: a análise do senso de
justiça e a reflexão sobre uma sociedade pluralista. Esta última orientação
foi seguida por pesquisas comparativas sobre gramáticas que enquadrem esse
pluralismo em contextos políticos contrastantes. E as extensões do modelo
disso resultantes representaram ainda uma oportunidade para colocar em
evidência transformações maiúsculas nas sociedades contemporâneas.

3.2.1. As gramáticas das comunidades pluralistas

Estarão as justificativas fundamentadas em concepções de bem comum


baseadas em ordens de grandeza histórica e culturalmente limitadas a um
contexto francês? Críticas vieram de colegas de várias origens, que questiona-
ram as possibilidades de se referir ao modelo para iluminar estados de coisas
pertencentes a contextos políticos e culturais muito distintos. Essa interrogação
sobre os limites de validade do modelo conduziu a uma sucessão de programas
colaborativos internacionais, reunindo pesquisadores de pares de países para
pesquisas comparativas, primeiramente com os EUA e depois com a Rússia,
o que foi depois seguido por cooperações na Europa Ocidental, no Brasil e
em outros países da América do Sul.
Os resultados dessas pesquisas comparativas superaram a resposta à
questão original em relação ao domínio de validade de uma racionalização
comum e corriqueira do justo fundamentada em uma ordem de grandeza
especificadora de um bem comum. Ao estudarmos sistematicamente os mo-
mentos de discordância crítica entre uma variedade de modos de avaliação,
as observações foram além da comprovação de justificação baseada em uma
única ordem de grandeza principal. Estendendo-se o quadro à análise de

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Prefácio à edição brasileira 51

sociedades ou comunidades pluralistas que valorizam a diferença nas ava-


liações levadas em conta na determinação do bem comum, a análise se con-
centrou nas gramáticas do comum no plural, capazes de enquadrar as vozes
plurais colocadas em comunhão e as disputas por elas despertadas (Thévenot,
2007b, 2014, 2015a)*. E com isso se colocou a questão – deliberadamente
posta de lado em A justificação – a respeito de um nível mais elevado de inte-
gração e valorização dessa pluralidade. No livro, originalmente privilegiamos
um modelo de uma grandeza e justapusemos essas várias grandezas sem nos
perguntarmos sobre a exigência normativa de se passar de uma a outra de
acordo com as situações e de colocá-las em presença em seu quadro plural
no decurso de uma discussão sobre o futuro da comunidade.

3.2.2. No coração da composição política, as “gramáticas do comum no


plural”: contribuições da comparação França-EUA

Reunir sociólogos de dois países para comparar as observações por eles


coletadas em cada um contribuiu de duas maneiras para o choque com o
estranho que esse tipo de programa adota por método: a partir do objeto das
pesquisas e a partir das interpretações a ele oferecidas pelos sociólogos. As
discordâncias, mas também os “mal-entendidos”, conduzem a esclarecimentos
reflexivos cruzados sobre pontos obscuros ou de miopia nos olhos de pes-
quisadores ou de atores confrontados com outro mundo (Resende; Martins,
2015). Ao se observar e se comparar repertórios de avaliação considerados
legítimos, o programa coletivo-comparativo França-EUA, com a codireção de
Michèle Lamont, baseou-se, em ambos os países, em pesquisas semelhantes
sobre debates públicos provocados por questões candentes como racismo,
assédio sexual, meio ambiente, arte contemporânea em público, a excelência
de um livro ou de um jornalista (Lamont; Thévenot, 2000).
A pergunta inicial sobre o campo de validade das justificativas por
grandezas teve como resposta que todas aquelas mapeadas em A justificação
eram utilizadas nos EUA e que a grandeza doméstica – já em declínio na
França – raramente atingia uma legitimidade pública. Mas seus pesos respec-
tivos, assim como suas combinações em fórmulas de compromisso, variavam

* Como sugerido anteriormente, os termos “comunidade” e “sociedade” são usados aqui


de forma indistinta – e a diferença clássica sendo retomada e esclarecida pela noção
de gramática do comum no plural. Apresentaremos, no entanto, uma preferência por
“comunidade”, que coloca em destaque a operação de colocação em comum.

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52 A justificação

consideravelmente de um país para o outro. Assim, por exemplo, a grandeza


mercantil de um livro, evidenciada por suas vendas, operava comumente nos
EUA – mas não na França – de forma associada com a grandeza cívica, que
valoriza o acesso democrático do público à obra. Uma outra diferença foi,
desde o começo, interpretada como uma forma de variação dessa justificativa,
conforme se enfatize a igualdade de acesso resultante de uma solidariedade
coletiva ou a igual condição da escolha individual entre as opções abertas
a todos. Essa segunda variante levou à identificação de uma maneira de
produzir o comum no plural que não requer a passagem pelas grandezas do
bem comum para se diferenciar, e, em vez disso, se concentra na expressão
pública de diferenças de escolha e preferências individuais para julgar o bem
da comunidade.
A distinção desses dois modos de agir conduziu à definição de “gramáti-
cas do comum no plural”, voltadas para apaziguar as tensões suscitadas pelo
julgamento sobre o bem da comunidade, o que levanta a pergunta: em que
formas comuns devem ser transformadas as preocupações pessoais para serem
comunicadas: em concepções do bem comum ou em escolhas e preferências
individuais? De acordo com que diferenças legítimas as disputas são canali-
zadas, em termos de grandezas ou de interesses? Que fórmula de composição
permite integrar essas diferenças para se decidir o bem da comunidade: como
compromisso entre grandezas ou como negociação entre interesses?
Uma gramática liberal de interesses individuais foi observada mais fre-
quentemente nos EUA do que na França. Ela enquadra um outro modo de
construir um julgamento legítimo sobre o bem da comunidade, baseado nas
diferenças entre indivíduos dotados de interesses, que escolhem, conforme
suas preferências ou opiniões individuais, entre opções identificáveis por
todos. E sublinhemos que a concepção de interesse se desvia aqui de sua
corrente naturalização nas ciências sociais e políticas. Essa noção aparece
nesse caso como um formato público a exigir uma expressão em comum
de preocupações pessoais, o que também comporta o sacrifício dos compro-
metimentos mais recônditos: as expressões íntimas, emocionais, são proibidas,
porque pesariam sobre a autonomia das escolhas de outros indivíduos (Thévenot,
2008, 2015a).
O programa França-EUA representou, dessa maneira, uma oportunidade
para colocar sob análise um liberalismo político que permanece amplamente
estranho à sociologia francesa influenciada por Durkheim e/ou pelo mar-
xismo e que se vê descartado ou odiado pelo pensamento crítico. Em uma

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Prefácio à edição brasileira 53

gramática liberal estendida ao multiculturalismo, que fornece as melhores


sustentações ao direito contra a discriminação (Stavo-Debauge, 2005), os
laços íntimos próprios àquilo designado como cultura – ou à religião –
devem ser convertidos em escolhas individuais, sempre dizendo respeito a
opções acessíveis a todos (Stavo-Debauge, 2012). Disso resulta um formato
estilizado de opções culturais ou “étnicas” capaz de romper com os apegos
pessoais ressentidos. Os sacrifícios desses laços requeridos pela hospitalidade
liberal em relação ao estrangeiro levam a mal-entendidos, a humilhações e
a reações, expressados não apenas nas experiências pessoais dolorosas de
hospitalidade, mas também em relações conflituosas entre países (Thévenot;
Kareva, 2018), com a recepção do estranho à comunidade representando um
forma particularmente esclarecedora para se acessar as várias construções do
comum (Stavo-Debauge, 2019).

3.2.3. A “gramática das afinidades pessoais com os espaços comuns*


plurais”: a contribuição da comparação França-Rússia

Inspirado nos métodos do programa comparativo anterior, o empreen-


dimento lançado em seguida com a Rússia abordou preferencialmente as
tensões capazes de tomar as transformações necessárias para que esses laços
encontrem espaço no comum e nas disputas sobre o bem de uma comunidade
plural e os submeter aos vínculos pessoais ou locais, até mesmo no polo em
que o humano é apenas ser vivo. O mundo russo, escolhido por comportar
uma enorme riqueza em termos de elaboração de tipos de laços de proximi-
dade com o mundo e com os outros, conduziu a um programa de pesquisa
batizado de “Dos laços de proximidade aos espaços do público” (Thévenot,
2007a, 2007b). Os vínculos de dependência interligam a vitalidade humana

* No original, lieux-communs. Os autores fazem um jogo de palavras com lieu commun,


literalmente lugar-comum, com o mesmo significado, em português, de uma ideia trivial
e do conhecimento de todos, ao mesmo tempo que um ponto de apoio fundamental para
as argumentações, como no pensamento aristotélico (ver os trechos sobre as tópicas ao
longo do livro). Mas aqui, usando um hífen, criam um neologismo correspondente a
uma noção propriamente espacial, de modo que aquilo a que estão se referindo é a um
lugar comum, um espaço tornado comum, um espaço para se estar em comunidade, em
comunhão. E muito embora sirva como metáfora, é, na maior parte das vezes, a espa-
ços físicos que o texto se referirá. De modo que preferi essa forma na tradução, para
contornar a ambiguidade que, em português, ultrapassa a eficácia do jogo de palavras.
(N. do T.)

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54 A justificação

ao corpo e a seu meio, seja ela expressada na sexualidade, no poder ma-


nifestado no corpo e na força, no cuidado com um entourage, humano ou
não, na habituação e na habitação de um local, na excitação curiosa, etc.
A pergunta de pesquisa, nesse sentido, era: como tais dependências são con-
formadas em preocupações engajando seres humanos conforme várias formas
de se relacionar consigo, com o mundo e com os outros (Thévenot, 2006,
2007a)? Os engajamentos que nos importam são sociais, não porque sejam
alinhados a coletividades, mas porque, embora sejam eminentemente pessoais,
podem ser reconhecidos por outros seres humanos por conta dos bens a que
se destinam e pela consistência de uma personalidade para cuja sustentação
eles contribuem. Remontar às dependências pessoais mantidas a distância
pelo espaço público e pelas entidades políticas permitiu-nos compreender
a cadeia de transformações necessárias para percorrer essa distância e tor-
nar possível ouvir uma voz, e os obstáculos ou tensões encontrados nessas
transformações. Essas mudanças são pouquíssimo conhecidas pelas ciências
sociais, econômicas ou políticas que preferem trabalhar com agentes já por
demais preparados para interagir com os outros – ainda que entre indivíduos
preparados para a “transação” – e para a ação coletiva.
Além de comparar a mobilização de diferentes grandezas de bem co-
mum – demonstrando-se notadamente o peso significativo da grandeza do-
méstica no senso de justiça na Rússia –, esse segundo programa nos levou
a identificar uma terceira gramática do comum no plural. A gramática das
afinidades pessoais com os espaços comuns plurais mantém uma espécie de
comum no plural sem aprofundar a distância mantida pelo público em rela-
ção às preocupações pessoais e aos vínculos íntimos (Thévenot, 2014, 2019b).
Diferentemente de ser qualificado em termos de grandeza ou da opção ofe-
recida à escolha de indivíduos dotados de interesses, o espaço comum não é
definido convencionalmente. Objeto material investido de maneira pessoal por
aqueles que por meio dele se comunicam, o espaço comum não é destacável
desses investimentos íntimos, salvo em caso de falha de comunicação, o que o
reduz à superfície de um clichê identificável e reprodutível. A linguagem oral
(anedotas ou ditados), a poesia, a literatura, o teatro, o cinema, a canção, mas
também as afinidades a locais intensamente afetuosos oferecem verdadeiras
reservas de espaços comuns. Distantes da concepção distintiva de cultura,
mas também da estilização demandada pelo liberalismo multicultural, essas
figuras oferecem oportunidades para a diferenciação pessoal no investimen-
to, bem como diferenças de agenciamento entre eles a permitirem expressar

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Prefácio à edição brasileira 55

divergências, todos em uma geometria tão mais flexível quanto esses espaços
comuns sejam de escalas muito diferentes.
O programa França-Rússia e outras pesquisas internacionais posteriores
seguindo seus passos (Clement, 2015b; Gabowitsch, 2016; Luhtakallio; Thévenot,
2018; Pattaroni, 2015; Thévenot; Rousselet; Daucé, 2017; Thévenot, 2019b;
Zhuravlev; Savelyeva; Erpyleva, 2019) permitiram uma considerável acumu-
lação de resultados relativos a mudanças nos modos contemporâneos de ação
política e protesto. Com base em preocupações – e, muitas vezes, ocupações –
ligadas a lugares, esses modos de ação correntemente são expressados em
termos apolíticos, e até mesmo de oposição à política. No caso bem conhecido
da praça Maïdan, em Kiev, na Ucrânia, mas também em outros (Clement,
2015a), a ocupação reuniu em um só lugar pessoas investidas ao mesmo tem-
po em uma multiplicidade de espaços comuns diversos dos quais cuidavam e
que eles pretendiam colocar em comunicação (colocar em comum) por meio de
sua presença, suas conversas e suas experiências em conjunto. A gramática dos
espaços comuns que governa essas comunicações mostra-se mais acolhedora
às vinculações pessoais do que a gramática constitutiva de espaços públicos
destacados. No entanto, diante de uma etapa de extensão da ação, coloca-
se a questão da passagem de uma gramática a outra, especialmente quando
entra em jogo a representação eletiva para se tomarem decisões políticas.
Ora, a prevalência de uma composição do comum a partir de espaços co-
muns plurais acarreta o risco de se facilitar a redução desse pluralismo pelo
abarcamento, em um único, de todos esses lugares – à maneira das bonecas
russas –, unificados por uma ideologia e por líderes nacionalistas (Thévenot,
2017a, 2019b). Uma evidência desse perigo é a onda de movimentos e líderes
chamados populistas que mudaram a política em escala global e pegaram de
surpresa as ciências políticas e sociais sem ferramentas analíticas adequadas.
Experiências históricas mostram que uma esquerda popular forte foi capaz de
bloquear essa ameaça por meio de dispositivos combinando espaços comuns
e qualificação cívica.

3.3. A redefinição das ciências sociais como ciências do ser humano

3.3.1. O ser vivo tornado humano

Uma das especificidades de nossa abordagem é colocar entre parênteses


aquilo que, para as filosofias políticas do bem comum levadas em conta na
fundação das ciências sociais, dota os seres humanos de um senso natural de

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56 A justificação

comunidade. A justificação marcou uma ruptura com uma sociologia determi-


nista segundo a qual se espera do sociólogo que ele seja científico por mostrar
que a incerteza é apenas a aparência e que leis subjacentes que os atores se
recusam a ver determinam seu comportamento. Diferentemente, procuramos
levar a sério os distúrbios causados pela confrontação dos atores com a fra-
gilidade dos ambientes e analisar os dispositivos e as artes de fazer que são
colocados em prática pelos atores para diminuir o nível de angústia e para
fundamentar uma realidade cujo caráter comum é desigualmente garantido.
Ao mesmo tempo, disso resultam duas consequências para as ciências
sociais, que procuramos esclarecer. Não podendo fechar os olhos para aquilo
que ameaça a comunidade, essas disciplinas tendem a atribuí-lo a tudo que
cria o comum artificial, seja por equivalências cujo exemplo paradigmático
é o dinheiro, seja por um poder tido como artificial no sentido de que seria
imposto do exterior. Essas disciplinas, então, tomam um ideal comunitário
autêntico não equipado e o opõem a equipamentos que criam um ideal
comunitário falso e perigoso. Essa oposição é encontrada na sociologia da
dominação, seja na forma do dinheiro seja na do poder, mas ela se manifesta
também até em um teórico como Habermas, que opõe comunicação autêntica
de uma socialidade real a sistema.
Essa visão maniqueísta de um mundo composto de seres humanos
naturalmente socializados – mas que seriam pervertidos por dispositivos de
construção de uma mesmidade artificial por meio da equivalência (dinheiro,
poder, medições), sendo estes últimos a causa dos infortúnios com os quais
as comunidades são confrontadas – nos parece insuficiente e perigosa, porque
com ela terceirizamos os perigos. A visão irênica de uma comunidade pura
não se sustenta no tempo e o conjunto do mundo real é rejeitado para o
lado do mal. Isso é perigoso porque direciona a busca do bem contra bodes
expiatórios que personificam a falsa mesmidade contra a autêntica comuni-
dade. Essa oposição entre uma igualdade pré-reflexiva (Éden) e uma situação
de dominação total, sendo a primeira irrealizável e a segunda, destrutiva,
não leva em conta as múltiplas construções de ordem implementadas pelos
atores sociais para tentar realizar esse milagre: comunidades relativamente
distendidas no espaço e no tempo e que se mantêm, não por uma força
comunitária natural, mas em virtude dos equipamentos políticos fabricados
pelos seres humanos ao longo do tempo e constantemente reelaborados em
razão das divergências por eles próprios causadas. A posição que naturaliza a
comunidade e sua humanidade, ambas incorporadas no “senso comum”, não

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Prefácio à edição brasileira 57

permite compreender aquilo que perenemente ameaça essa vida em comum.


Ao mesmo tempo, essa posição não oferece nenhum recurso para se com-
preender essa fragilidade.
Para construir uma analítica desses perigos, é necessário inverter a
posição. Em vez de nos oferecermos, como sociólogos, um ser humano
naturalmente social, adotamos como objeto a tensão entre a ancoragem do
humano no ser vivo, no vivente, e a formação de comunidades não apenas
relativamente estáveis e ordeiras, mas também reflexivas a respeito de uma
definição compartilhada de humanidade. Essa posição invertida nos levou a
passar de um naturalismo tácito a um artificialismo explícito e a oferecer às
ciências sociais como objeto a análise das formas de fazer e dos dispositivos
implementados para construir e manter os artefatos que permitem o viver jun-
to. Esse fundamento de nosso trabalho não foi bem entendido, assumindo-se
de nossa parte o pressuposto de uma comunidade irênica e continuadamente
sujeita a um requisito de justificação.
Nas maneiras dos seres humanos de manterem suas comunidades, ad-
quirem importância não apenas as convenções constitutivas, mas também as
vigas não explícitas que não podem ser deixadas a descoberto sem causar
desordem, podendo se chegar com isso ao receio de um colapso completo do
mundo comum e mesmo da existência humana. Para se evitar essa aflição,
é preciso saber como não colocar por demais as aparências em questão. As-
sim que se começa a buscar, de forma muito severa, desvelar a arquitetura
desses vigamentos entre o constitucional e o vivente, vê-se se dissociar uma
constituição aparente, sustentada apenas graças, por um lado, a essas vigas
frágeis e, por outro lado, de forma subjacente, a um componente de outra
natureza, a dos viventes.
É sobre essas vigas que a crítica estabeleceu seu exercício, denunciando
ontem a escravidão ou hoje a dominação masculina, colocando-as à prova
para serem avaliadas do ponto de vista de uma ordem constitucional que
dá origem à crítica e à explicitação, o que representa a força motriz da ex-
tensão dessa ordem. Não ignoramos que oferecemos involuntariamente um
apoio a mudanças na própria noção de humanidade, mudanças próprias à
ética, na medida em que ampliamos o projeto de uma ciência social para
uma ciência do ser humano, cujo objeto é justamente a maneira como os
viventes ingressam em uma comunidade humana. Pelo menos, para se analisar
outras formas de construir a relação entre as comunidades dos seres vivos e
a humana, é preciso partir de certas concepções de vida construídas a partir
da humanidade comum.

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58 A justificação

3.3.2. As contradições da geração de um ser humano

A relação entre a humanidade comum e a ordem na qual se baseiam


os julgamentos explorados em A justificação torna-se insuficiente quando os
seres humanos deixam de ser considerados como sujeitos dotados de com-
petências e, em particular, da competência de linguagem que lhes permite
intervir nos ciclos de justificação e crítica, podendo comparecer apenas como
seres vivos.
Problemas semelhantes se colocam com uma intensidade ainda maior
quando se adota como objeto as circunstâncias da geração de seres humanos.
Uma das características dos julgamentos nesse tipo de condição é a incerteza
quanto à determinação dos seres relevantes, podendo o embrião ser deslocado
ao longo de um eixo que vai do vivente ao humano. As diferentes maneiras
de pontuar esse eixo, distinguindo seres cuja qualificação está associada a
uma hierarquia de requisitos morais, estão no centro de ontologias e, con-
sequentemente, de visões de mundo opostas, gerando tensões e conflitos,
dos quais o desenvolvimento da ecologia nos últimos cinquenta anos é um
exemplo particularmente forte.
A esse respeito, o embrião pode ser tratado como um desdobramento do
corpo da mulher, no qual está ancorado, ou, muito diferentemente, projetado
para o estado de bebê, que será o seu após o nascimento, se sobreviver até lá,
em função do trabalho de qualificação ao qual dá origem. Em La condition
fœtale [A condição fetal] (Boltanski, 2013[2004]), os imperativos/constran-
gimentos a pesarem sobre os humanos por conta de seu enraizamento na
ordem biológica da vida são tratados por meio de um modelo que enfatiza
as tensões – quiçá as contradições – causadas pela geração de uma vida no
caso dos humanos, diferentemente do que ocorre em outras espécies animais.
Com efeito, para escapar à necessidade biológica, o embrião deve, por
assim dizer, ser adotado pela mãe, sob um modo de escolha deliberada, o
que lhe confere uma distinção propriamente humana. Esse processo supõe,
para ser válido e efetivo em um plano real e não apenas no dos signos, que
o efeito de seleção deixe de lado outros embriões, que dele não se beneficiem
e, portanto, que não atinjam o estatuto de humano. Esse primeiro imperativo
de engendramento dos seres que virão tem lugar na sociedade dos humanos
que já estão aqui, vivos ou mortos, e atribui ao aborto um lugar que, dife-
rentemente dos abortamentos espontâneos, confere ao processo de eliminação
um caráter de necessidade, pelo menos em termos simbólicos. E, no entanto,

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Prefácio à edição brasileira 59

essa prática não dá origem, em nenhuma sociedade conhecida, a nenhuma


forma de institucionalização. Para entendê-lo, é preciso levar em conta um
segundo imperativo, que pode ser resumido da maneira a seguir.
Essa seleção possibilitada pelo aborto deve ser realizada sob um véu
de ignorância, sem se levar em conta elementos que permitam fazer um
julgamento relativo às propriedades do embrião. De fato, se a seleção fosse
feita conforme uma avaliação do embrião, como, por exemplo, na eugenia,
a diferença por ela introduzida se tornaria um tipo de teste de qualidade,
que, com isso, não teria mais o poder de instituir a diferença entre o huma-
no e o não humano. Esse segundo imperativo – que pode ser chamado de
imperativo de não discriminação – introduz uma angústia: “Por que este em
vez de um outro?”. Essa tensão entre imperativo de seleção e imperativo de
não discriminação pode ser vista como uma das razões pelas quais o aborto,
que é universalmente praticado, é, no entanto, na maioria das vezes feito de
maneira oculta ou discreta. O ingresso do aborto no espaço público, desen-
cadeado pelos movimentos direcionados à crítica da dominação masculina e
à emancipação da condição feminina, além de promover a legalização desse
ato, explodiu os arranjos que, de uma maneira mais ou menos tácita, regu-
lavam, ao a dissimular, a relação entre o respeito devido ao vivente quando
este é gerado pelos seres humanos e os processos de seleção envolvidos na
constituição da diferença especificamente humana. A seleção se tornou pa-
tente. Esse efeito foi reforçado pelas tecnologias da vida, que, ao tornarem
o embrião notadamente conhecível, impediram, a partir de certo momento,
que essa seleção operasse sob um véu de ignorância, o que conferiu razão à
eugenia, desde que esta fosse o resultado de uma escolha feita pelas próprias
pessoas (o projeto parental), e não o efeito de um constrangimento externo,
especialmente de ordem estatal.
As tensões políticas suscitadas pelo ingresso do aborto no espaço pú-
blico, opondo por um lado uma demanda de liberação e por outro uma
indignação muitas vezes mobilizadora do sagrado, apresentam algo de pa-
radoxal se sabemos que o aborto, condenado em princípio, mas largamente
imune a investigações judiciais até o último terço do século XIX, nunca foi
tão amplamente praticado clandestinamente durante o século XX quanto
durante períodos (por exemplo, na França de Vichy) nos quais ele foi mais
fortemente penalizado. Ao conquistar um lugar no espaço público, essa prá-
tica ao mesmo tempo tornou visíveis as tensões, até então ocultas, próprias
à geração humana.

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60 A justificação

Pode-se ainda se perguntar em que medida essa analítica do engendra-


mento, pouco explorada pela psicanálise, poderia lançar luz sobre questões
relativas à sexualidade humana. O desejo de desatar o vínculo entre geração
da vida e sexualidade sem dúvida constituiu, e ainda constitui, uma constante
quase universal das aspirações dos humanos. No entanto, apesar das mudan-
ças tecnológicas atualmente em curso, é improvável que ela se desenvolva
plenamente, isto é, não apenas por meio de uma sexualidade não reprodutiva,
hoje amplamente disponível nas sociedades liberais, mas também pela via
de um geração da vida feita sem recurso à sexualidade, algo potencialmente
viável, mas pouco praticável em larga escala.

3.3.3. Os engajamentos humanizadores dos viventes e constitutivos de uma


identidade pessoal

A ampliação do modelo do senso de justiça fundamentado em grandezas


de bem comum, que permitiu abordar as exigências gramaticais de composi-
ção das comunidades pluralistas, levou-nos também a recolocar a questão da
personalidade, de sua consistência e sua manutenção, da qual trata a categoria
identidade. Duas limitações explícitas do modelo de A justificação foram,
então, ultrapassadas por extensões promovidas por nós dois. A primeira se
deve a não se levar em conta uma continuidade da pessoa, com a exigência
do modelo de que a “qualificação” seja recolocada em questão a cada nova
“comprovação” sem persistência de um passado. Na segunda parte deste texto,
indicamos as tensões disso resultantes. Pois mencionaremos aqui um desen-
volvimento do quadro inicial destinado a tratar dessa relativa continuidade
da pessoa e a retomar a questão da identidade pessoal e social. A segunda
limitação se fundamenta no fato de o modelo de A justificação ter sido cons-
truído com base na exigência normativa da humanidade comum. Expansões
trazidas por ambos operaram para transcender essas fronteiras, levando em
consideração a confecção mesma do humano sem ignorar os seres vivos que
operam na infraestrutura dessa humanidade. Embora La condition fœtale
traga à tona as contradições relacionadas com a geração de seres humanos
assim como as construções atuantes para a evitar, a análise dos regimes de
engajamento dá conta da humanização dos elãs vitais metamorfoseados em
dependências benéficas em relação a um ambiente, que constituem o tanto
de modos de persistência de um ser humano capazes de lhe garantir uma
certa continuidade (Thévenot, 2006, 2007a, 2013, 2017c). A construção

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Prefácio à edição brasileira 61

de engajamentos contribui para absorver uma tensão antropológica entre a


vitalidade em movimento e a imobilização em uma garantia propriamente
humana orientada para um certo bem.
Inverter a perspectiva corrente sobre o social, pensado a partir do
público ou das coletividades, para o pensar com referência às preocupações
pessoais resistentes à comunicação – à colocação em comum –, permite
abordar a composição não apenas de uma comunidade plural, mas também
de uma personalidade plural. A consistência e a continuidade da pessoa,
pela qual passamos ao largo em A justificação, retornou ao primeiro plano.
A fim de compensar as falhas de concepções de identidade demasiado rígidas
(identidade coletiva perene ou habitus) ou demasiado fluidas (identidade pós-
moderna ou “portfólio” de opções identitárias), cada regime de engajamento
destaca um modo de continuidade elementar a contribuir para a consistên-
cia da pessoa. Pode-se com isso conceber uma identidade dinâmica e plural
composta a partir de uma sobreposição, ou mesmo de um enovelamento, de
diversos regimes com distintas extensões temporais e espaciais. Sem persistir
na noção de promessa aos outros ou ainda no projeto individual sartriano, o
conceito de engajamento se propõe a compreender uma larga gama de modos,
comumente tomados por benéficos, de coordenação consigo mesmo, de uma
situação para a outra, a partir de engajamentos públicos – a respeito dos
quais o termo engajamento é mais comumente usado – até uma habituação
absolutamente pessoal e até íntima. Em vez de se concentrar apenas no com-
promisso moral de um sujeito, o conceito atribui um papel importante àquilo
que dá garantias a esse engajamento, em apoio a um ambiente material que
evidencia um certo modo de o fazer. A pessoa só está engajada consigo mes-
ma – e, a partir disso, com os outros – se estiver engajada com esse ambiente
que marca uma dependência, dependência essa, então, valorizada. E no que
diz respeito à pessoa, a dependência se deve a um componente corporal vital,
humanizado pelo regime que constrói a ponte entre o vivente e o humano.
Assim, a habituação e a etologia do território são humanizadas em um
“conforto” que representa o bem próprio ao regime de engajamento fami-
liar (Thévenot, 1994), e que Marc Breviglieri (2012) demonstrou conferir
um “seguro íntimo” pelo espaço habitado, manifestando uma “dependência
vital”. Para ser apropriado e capturado nessa forma familiar, o ambiente é
preparado de maneira tão pessoal que muitas vezes é indecifrável para os ou-
tros, exalando apenas desordem. Esse regime, portanto, não se presta facilmente
à colocação em comum e à coordenação com os outros – diferentemente do

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62 A justificação

que supõe a noção de “prática social”. Por sua vez, o regime de engajamento
exploratório, identificado por Nicolas Auray (2011), produz um bem humano,
a excitação da descoberta pessoal, a partir de uma curiosa disposição com-
partilhada com outros seres vivos. A temporalidade é totalmente diferente:
ela não se volta mais para um passado, mas para o curto prazo de um pre-
sente. O ambiente apropriado é, nesse caso, preparado para criar surpresa
e novidade. Já o engajamento em um plano, voltado para o futuro, traz ao
modelo o benefício da capacidade de um indivíduo de projetar-se em um
porvir – o que é suposto frequentemente pela noção de vontade – e depende
de um ambiente preparado para ser capturado funcionalmente. Engajar-se em
um plano não é demonstrar a racionalidade otimizadora do economista –
que requer equivalência convencional – nem a racionalidade instrumental do
sociólogo. É um modo de se conformar como sujeito individual capaz, na
gênese de tal racionalidade, de projetar para si um futuro e a ele se dispor.
Esse engajamento, muitas vezes pressuposto na concepção do individualismo,
ajuda a compreender as exigências da gramática liberal de interesses, porque
as opções entre as quais as escolhas dos indivíduos são exercidas adquirem
o formato de planos, nos quais eles se projetam, com a condição adicional
de que a identidade desses planos é de conhecimento comum e que nesse
sentido eles são públicos. E a gramática das afinidades pessoais com os es-
paços comuns não implica uma projeção do indivíduo em um plano como
esse, mas, por outro lado, requer um investimento íntimo pessoal do espaço
comum frequentemente devido a um compromisso familiar.
Como se pode ver já no caso da promessa, cada regime de engajamento
está cindido entre duas posturas cuja categorização é a própria expressão
da tensão. A primeira delas é a busca por garantia, que imobiliza o engaja-
mento em sua face acordada, a do marco que lhe serve de fiador e que, por
meio de sua configuração, possibilita se repousar na confiança e se fechar
os olhos para o restante. Essa garantia representa a letra da promessa ou
da convenção, ou a forma rotineira de colocar suas marcas pessoais em um
ambiente familiar. A segunda postura é a dúvida suscitada pelo próprio mo-
vimento de engajamento, que abre os olhos para os sacrifícios exigidos pela
forma de garantia (Thévenot, 2006, 2013). Veremos que a diferenciação dos
engajamentos e a distinção entre suas duas faces possibilitam analisar uma
das importantes metamorfoses sofridas pelo capitalismo, aquela devida ao
governo pelos padrões.

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Prefácio à edição brasileira 63

3.3.4. A retomada da questão ambiental: rediscutir os artifícios do comum


para dar lugar ao vivente não humano

A questão ambiental é atualmente um dos maiores desafios para as


ciências humanas. O modelo apresentado em A justificação concedeu a ela
algum espaço ao tratar a natureza em suas qualificações de acordo com a
pluralidade de grandezas que diversamente a integram em uma pluralidade
de mundos (Thévenot; Moody; Lafaye, 2000) e explorando a possível gêne-
se de uma grandeza verde (Lafaye; Thévenot, 2017[1993]). Em cada cité, a
natureza é diferentemente qualificada e, então, integrada a uma comunidade
de humanos, ao preço de uma redução dos viventes não humanos ao estado
de outros objetos qualificados. Contudo, essa questão ambiental não figurava
no cerne de nosso questionamento, diferentemente de no trabalho empreen-
dido por Bruno Latour (2004[1999], 2017[2015]) na continuidade de sua
extensão da política aos não humanos que chegou à formulação de uma
antropologia política fundamentada nas redes e nos vínculos territorializados
(Latour, 2018[2017]).
A pesquisa franco-americana sobre conflitos ecológicos contribuiu
também para esclarecer a variedade de engajamentos humanos com o meio
ambiente (Thévenot, 2002). Em particular, explicitamos a repetida exigência
a nós formulada – bem como aos especialistas mobilizados pelos conflitos –
para irmos in loco experimentar o meio ambiente. A extrema variedade de
escalas nas quais é apreendida a relação com a natureza, da mudança cli-
mática no planeta às precauções em relação a um entorno próximo, obriga
a desenvolver uma análise diferenciada dessas relações valoradas/valorizadas.
O programa franco-russo também representou uma oportunidade para obser-
var e analisar um modo de cuidado de proximidade com espaços da natureza,
posteriormente estendido a ações em comum (Koveneva, 2011) ou por meio
de espaços comuns. A diferenciação dos engajamentos plurais permite colocar
em evidência a incomensurabilidade entre os vínculos de proximidade com o
meio ambiente, comprovados em presença e suscitando um cuidado próximo,
e convenções públicas de equivalência instrumentalizadoras das políticas da
natureza (Centemeri, 2015).
É preciso levar em conta a necessidade de se recorrer a construções
artificialistas para se produzir comunidade se quisermos entender a relação
entre os humanos e outros viventes, em vez de considerar, inversamente, que
uma supressão do artificialismo permitiria a recriação de laços ancestrais,

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64 A justificação

harmoniosos, pacíficos e de afinidade com outros seres e, em primeiro lugar,


com os seres vivos presentes em um território. Assim, perguntamo-nos o que
o artificialismo deve às construções anteriores de sociedades humanas, nas
quais os movimentos próprios à vida animal não humana ocuparam apenas
um lugar reduzido e auxiliar na construção do comum. Ao mesmo tempo,
estamos atentos àquilo que, nessa animação animal, resiste ou se opõe e não
é levado em consideração nas políticas humanas. Somos, portanto, levados a
colocar a seguinte pergunta, afastando-nos do modelo de A justificação: em
que direção pode ser orientado um artificialismo para tratar dessa coexistên-
cia, não necessariamente pacífica?

3.4. As metamorfoses do capitalismo: extensões dos modos de avaliação


e justificação entre economia e política

Em um quadro de prolongamentos do modelo de A justificação, os


desenvolvimentos até aqui apresentados forneceram ferramentas de análise
de metamorfoses transnacionais do capitalismo e de modos de governo. Pa-
ralelamente à genealogia de uma nova ordem de grandeza conexionista de-
preendida do gerenciamento por projetos (Boltanski; Chiapello, 2005[1999]),
uma primeira etapa, desenvolvida no cenário corrente da economia institu-
cional chamada “teoria das convenções”, beneficiou-se do fato de as ordens
de justificação por grandezas constituírem uma vasta galeria de convenções de
coordenação (Thévenot, 1989, 2001b). Essas convenções permitem precisar
os dispositivos organizacionais da empresa segundo os compromissos entre
ordens de grandeza por eles facilitados ou ainda a diversificação de merca-
dos em uma economia de qualidade diferenciada por várias “convenções de
qualidade” (Eymard-Duvernay, 1986, 2002), com cada uma delas descrevendo
um tipo de bem ou serviço mercantil aos olhos de uma ordem de grandeza
distinta.

3.4.1. A gênese de uma nova cité: o novo espírito do capitalismo

Como mencionamos no início deste texto, uma das objeções feitas a


A justificação na época de sua publicação, oriunda principalmente de colegas
historiadores, dizia respeito ao que eles percebiam como um viés a-histórico
do modelo. Certamente mencionamos que as formas de bens comuns descri-
tas sob o conceito de cité eram inegavelmente construções estabelecidas no

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Prefácio à edição brasileira 65

curso da história, de modo que algumas dessas ordens de grandeza poderiam


ser apagadas e, por outro lado, que outras formas de bem comum poderiam ser
determinadas e aceder ao reconhecimento legítimo em determinadas épocas e
em certas configurações políticas. Não obstante, os processos históricos gover-
nando essas elaborações coletivas e seu apagamento não foram explorados
em A justificação. Um dos objetivos a nortearem nossa pesquisa sobre as
transformações do capitalismo no último terço do século XX (Boltanski;
Chiapello, 2005[1999]) foi precisar as circunstâncias no decurso das quais
tais transformações puderam se desenvolver. Dito de outra forma, o intuito
era responder à crítica de que nosso modelo era estático, esboçando uma
dinâmica da transformação normativa, bem como de mudanças políticas nos
níveis das instituições e do Estado com base em movimentos da normativida-
de. Ao nos concentrarmos na questão da justiça e, em particular, nos meca-
nismos que se supõe responsáveis por garantir um nível aceitável de justiça
nas relações de trabalho, apoiamo-nos em um estudo empírico das normas
de gestão e suas transformações, capturadas a partir de uma pesquisa e da
análise de um corpus de obras de administração publicadas entre os anos
1960 e o final do século XX.
A comparação entre o discurso gerencial da década de 1960 e o da
década de 1990 revela transformações tão importantes que não podem ser
descritas como próprias apenas de uma variação do peso relativo das dife-
rentes ordens de grandeza ou de um rearranjo dos principais compromissos
a associá-las. Pareceu-nos que não poderíamos dar conta disso sem postular
o surgimento de uma nova ordem de grandeza, de uma nova cité, que cha-
mamos de cité por projeto. Uma das tarefas da literatura de gestão dizia
respeito a coordenar as várias mudanças ocorridas nas empresas de maneira
dispersa, a partir de meados da década de 1970. A ampla mobilização da
metáfora da rede conferirá sentido e orientação a essas mudanças.
A cité por projeto corresponde a uma nova configuração de mundo co-
mum, composta por uma variedade de projetos associando várias pessoas. Por
analogia, pode-se falar de uma organização geral da sociedade por projetos.
A cité por projetos se apresenta, portanto, como um sistema de imperativos/
constrangimentos atuando sobre um mundo em rede, um mundo conexionis-
ta. Essa cité é fundamentada na atividade de mediador, independentemente
das propriedades substantivas das entidades entre as quais se dá a mediação.
Qualquer ator pode tirar proveito dessa grandeza de mediação quando “entra

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66 A justificação

em relação”, “faz conexões” e contribui, com isso, para “montar redes”. As


normas do justo são recompostas em função dessa nova grandeza, de modo
que se vê emergir uma nova cité, associada a um novo modo de justificação
e de crítica.
A pesquisa se concentrou em especial na história recente da jurisdição
trabalhista, da reorganização corporativa, do sindicalismo, do aumento do de-
semprego e dos meios usados para limitá-lo. Ela permitiu esboçar um modelo
dinâmico capaz de dar conta dessa importante transformação normativa. Esse
modelo atribui um espaço avantajado à crítica e às operações críticas assumi-
das como tarefa pelas coletividades. Ele pode ser resumido da forma a seguir,
tendo por características: a) concentrar-se nas ações das pessoas em situações
de incerteza e muitas vezes de conflito, em vez de fundamentar as mudanças
em forças impessoais a exercerem um efeito inexorável; b) centrar-se na noção
de comprovação, com a alternância de dois regimes desse processo, o primeiro
deles, regime de categorização, caracterizando comprovações reconhecidas
como tal, instituídas e regulamentadas, e sobre as quais as críticas possam
dizer respeito; o segundo, regime de deslocamento, sendo marcado por séries
de desvios em relação a comprovações estabelecidas, possibilitando modificar
percursos de seleção e caminhos proveitosos, economizando um alto nível
de reflexividade e categorização, e sendo a crítica pega de surpresa; e c)
finalmente, não estar finalizado, não repousando sobre uma linha do tempo
orientada para um horizonte messiânico, seja o do desenvolvimento e do
progresso, da revolução ou do fim da história, sustentando-se, em vez disso,
em grande parte, nas circunstâncias da crítica, isto é, no nível da crítica e sob
a forma como o capitalismo procurou responder as críticas a ele colocadas,
muitas vezes tentando internalizá-las, assimilá-las. E acrescentamos, enfim,
que alguns indícios sugerem que essa cité por projetos tende a se estender
para além do campo das relações de trabalho das quais a prospectamos e
a se dotar de uma validade geral, como atesta o papel desempenhado hoje
por ela, notadamente no mundo dos relacionamentos pessoais ou no das
relações de parentesco.

3.4.2. Um novo tipo de riqueza: o enriquecimento e a exploração do passado

O estudo das críticas e justificações associadas às transformações do


capitalismo ganhou, então, continuidade, adotando-se com o objeto não mais
as relações de trabalho no mundo da produção, mas as relações mercantis.

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Prefácio à edição brasileira 67

A pesquisa centrou-se nas maneiras pelas quais os objetos mercantis são va-
lorados/avaliados/valorizados,* de modo a justificar seu preço, ou nas críticas
originadas pela oferta de uma mercadoria a um determinado custo. Com
base em uma análise do que chamamos estruturas da mercadoria, o estudo
das recentes transformações do capitalismo de mercado permitiu lançar luz
sobre o desenvolvimento de um novo tipo de riqueza baseado na exploração
do passado.
Em Enrichissement: une critique de la marchandise [Enriquecimento:
uma crítica da mercadoria] (Boltanski; Esquerre, 2017), desenvolvemos a
ideia de que, nas últimas décadas, assistimos à geração de uma nova maneira
de produzir riqueza que, na Europa Ocidental, não se fundamenta na indús-
tria, largamente deslocalizada, e sim no comércio e na crescente exploração
de recursos que, embora não sejam absolutamente novos, adquiriram uma
importância sem precedentes. Esse processo, muito marcante na Europa e
particularmente na França, tem tendido a se manifestar em outras regiões
do mundo, particularmente em bairros centrais de cidades renomadas como
Nova York, Rio de Janeiro, Quioto, etc.
A amplitude dessa mudança no capitalismo só se revela na condição
de se aproximarem domínios geralmente analisados de forma dispersa, quais
sejam, particularmente a patrimonialização, as artes – especialmente as artes
plásticas –, a cultura, o comércio de antiguidades, a criação e fundação de
museus, a indústria do luxo – seja na moda ou na alta gastronomia – e
o turismo de alto nível. As constantes inter--relações entre esses diferentes
campos possibilitam entender como eles geram lucro: eles têm em comum
tirarem partido não da produção de novos objetos, atividade que continua a
desempenhar um papel importante ao ser deslocalizada nos países e mantida
a baixos salários, e sim do enriquecimento das coisas que já estão lá. Chama-
mos de economia de enriquecimento essa forma econômica cuja substância é
derivada da exploração do passado. Nessa economia, os objetos do passado
são enriquecidos, notadamente ao serem associados a narrativas que destacam

* Embora mise en valeur tenha mais o sentido de valorização, isto é, de ampliação do


valor de algo, em alguns momentos, a expressão é usada no sentido de valoração – isto
é, de enquadramento significativo de algo em um quadro de valor – e de avaliação – a
ponderação comparativa do valor de algo em uma escala e a comparação com outro
algo na mesma escala. Aqui, usarei cada sentido conforme o contexto. (N. do T.)

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68 A justificação

seu caráter tradicional e, na maioria das vezes, suas raízes nacionais. E uma
das especificidades dessa economia é também tirar proveito do comércio de
coisas destinadas, prioritariamente, aos ricos do mundo inteiro.
O desenvolvimento dessa nova fonte de riqueza contribuiu para transfor-
mar profundamente os contornos da formação social em que estamos imersos
e sua estratificação. A economia do enriquecimento contribuiu enormemente
para fortalecer as classes e os grupos detentores da riqueza, em comparação
com aqueles que obtêm a maior parte de seus recursos do trabalho assalaria-
do. Com o declínio da produção industrial, essa nova ordem relegou muitos
membros das classes trabalhadoras ao status de prestadores de serviço. E foi,
finalmente, associada a uma ampliação significativa no número de trabalha-
dores da cultura que, desmunidos de organizações e instrumentos críticos,
contam atualmente com poucos meios para resistir à precarização que se
tornou mais frequentemente seu destino.
Nesse trabalho, propusemos ainda uma matriz para compreender como
essa economia se encaixa em uma trama composta, na qual circulam igual-
mente outros tipos de mercadorias. Essa matriz é baseada na análise daquilo
que chamamos de estruturas da mercadoria. Essas estruturas compreendem
uma variedade de formas de valoração/avaliação cuja composição é articu-
lada à maneira de um grupo de transformação, no sentido em que Claude
Lévi-Strauss (1962) utilizou essa noção. Juntamente com a forma-padrão,
dominante no contexto do capitalismo industrial, identificamos três outras
formas: a forma-coleção, na qual a economia do enriquecimento é largamente
baseada; a forma-tendência, que torna possível valorar/valorizar coisas de
rápida obsolescência, por exemplo, aquelas submetidas à moda, como as ves-
timentas; e, finalmente, a forma-ativo, que valora objetos, incluindo obras de
arte, exclusivamente na perspectiva de sua revenda com esperança de lucro,
tratando-as como se fossem ativos financeiros, cuja troca é principalmente
especulativa.
A França contemporânea constitui um campo privilegiado para estudar
essas novas formas de criação de riqueza, um pouco como foi o caso, se nos
permitirmos a comparação, da Grã-Bretanha para a economia industrial na
primeira metade do século XIX. A França, na qual essas diferentes formas
de avaliação/valorização estão ativadas, é um bom exemplo do que pode
ser chamado de um capitalismo integral, no sentido de que ele tira proveito
da ampliação do processo de mercantilização, impulsionado pela exigência de
lucro, a campos sempre novos.

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Prefácio à edição brasileira 69

3.4.3. A extensão da avaliação quantificada: da política da estatística aos


governos por meio dos números

Entre economia e política, seguimos as mudanças e ampliações do modo


de avaliação por números que, inicialmente concentrados nos Estados-nação
e em suas produções estatísticas destinadas a avaliar suas políticas, adquiriu
no decurso dos últimos cinquenta anos a amplitude de um governo trans-
nacional por meio dos números, que escapa em grande parte dos Estados
(Thévenot, 2019a, 2019c).
Na nascente da construção do modelo de A justificação, as pesquisas
sobre “taxonomias populares e taxonomias acadêmicas” (Boltanski, 1970),
sobre as “codificações sociais” e sobre os “investimentos de forma” (Thévenot,
1983, 1984, 2016b) foram seguidas em sua continuidade por um programa
de pesquisa sobre “a política das estatísticas” (Thévenot, 1990b, 2011c).
Assim, foi possível acompanhar a evolução, ao longo de meio século, de
um maiúsculo levantamento estatístico francês e de seus antepassados, que
alimentou avaliações de políticas sociais, educacionais e do trabalho. Com
isso, foi possível demonstrar que a passagem de um número à posição de
forma de avaliação de uma política em relação à qual ele serve de evidência
pressupõe uma configuração interligando três elementos em uma problemática
congruente: um questionamento político de certas medidas no que diz respeito
a suas justificações; um aparelhamento de categorias, variáveis e técnicas de
exploração estatística; uma urdidura de teorias econômicas, sociais e políticas
invocadas na interpretação dos números e nas explicações dos fenômenos.
A análise qualitativa e quantitativa do conjunto dos usos dessa fonte esta-
tística revelou quatro problemáticas, cujos pesos variaram ao longo de meio
século, conforme mudanças que esclareceram a história recente das relações
entre o capitalismo e as autoridades governamentais. Cada uma dessas qua-
tro problemáticas se fundamenta em uma diferente caracterização da pessoa,
em termos de uma capacidade ou um capital mensurável, que determinaria
duradouramente sua existência social e, mais que isso, econômica, e que, por-
tanto, seria privilegiada em seu governo pelo Estado – e em última instância pela
própria pessoa: origem social e questionamento sobre as desigualdades sociais e a
sociedade aberta; formação escolar e profissional e problematização das necessida-
des da economia nacional em termos de qualificação; capital humano individual
e problematização da rentabilidade desse investimento individualmente no

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70 A justificação

mercado de trabalho; passado migratório e problematização da discriminação


(Monso; Thévenot, 2010; Thévenot, 2016b). As comprovações de grandeza
cívica, industrial e mercantil justificam as três primeiras problematizações,
presentes na origem das avaliações quantificadas; por outro lado, aquela
relativa ao passado migratório encontra sua legitimidade apenas em uma
extensão multiculturalista da gramática liberal, o que suscita vívidas tensões
com algumas das grandezas anteriores, tensões essas que esclarecem as vivas
controvérsias na França sobre as variáveis estatísticas ditas étnicas.
Observadas aos olhos do trabalho pioneiro de Alain Desrosières (1985,
1998[1993]) sobre a história das classificações socioprofissionais e mais am-
plamente das estatísticas em suas relações com o Estado e sob suas sucessivas
orientações, as políticas da estatística distinguidas de acordo com essas configu-
rações de capacidade e governo revelam que a relação entre números e políticas
se afasta cada vez mais do governo pelo Estado-nação – que, ora, se encontra
na raiz do próprio termo estatística. A orientação de políticas (particularmente
em saúde e educação) pela prova – chamada “evidence-based” – é operacio-
nalizada em âmbito transversal ao Estado nacional, reforçada pela construção
de uma unidade europeia (Normand, 2016) e seu método de coordenação por
indicadores. Muitas utilizações dos “big data” têm servido ainda para governar
as condutas a partir de uma nova definição de capacidades das pessoas, agora
oriunda da montagem de perfis de seus comportamentos passados, de tal forma
que se permitiu codificar seus vestígios digitais (Thévenot, 2019a). O caso da
China mostra que a exploração e a integração dessa capacidade – sob o nome
de “crédito social” – pode permanecer nas mãos de um Estado autoritário
centralizado. Mas é claro que a instância de governo a explorar esses números
é, na maioria das vezes, uma corporação não estatal, por vezes com alguma
delegação a um “quantified self” [self quantificado], um indivíduo governando
seu próprio corpo a partir de sensores que o apreendem.

3.4.4. A dinâmica econômica das novas formas de entidades políticas:


o governo por padrões e a criação de normas desterritorializadas

A extensão do modelo de A justificação permitiu analisar ainda uma


outra grande transformação histórica na relação entre economia e política
que reflete as transformações do capitalismo e diz respeito dessa vez ao pa-
pel desempenhado no governo não da quantificação, mas da padronização.
O advento, em escala mundial, de um novo modo de “governo por padrões”

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Prefácio à edição brasileira 71

também atesta o peso de instâncias não estatais de se governar. Diferente-


mente de uma coordenação pela concorrência em um mercado, esse modo
de governo compõe um “liberalismo normalizador” (Thévenot, 1997, 2009,
2015b), a fim de certificar as opções entre as quais são feitas as escolhas de
indivíduos dotados de interesses e integrantes de um público liberal, ou ainda
para certificar bens e serviços mercantis. Um novo tipo de padrão se distin-
gue dos de compatibilidade que uniformizam componentes e produtos para
aperfeiçoar a eficiência industrial de uma produção. E esses novos modelos
se distinguem também das normas regulatórias tradicionalmente promulga-
das pelos Estados para garantir a segurança de seus cidadãos, protegendo-os
contra fraudes. Eles deslocam a regulamentação legal dos Estados-nação para
as mãos de atores econômicos e sociais não estatais, que se comprometem
voluntariamente a respeitá-los. Essas padronizações destinam-se a certificar
que os objetos que constituem as opções disponíveis para as escolhas indivi-
duais contribuem para o bem da comunidade, quer se trate do bem comum
da solidariedade de grandeza cívica quer seja a “sustentabilidade” da gran-
deza verde ou ainda o bem de um pluralismo multicultural supostamente
provido por “cidades garantidas” a esse respeito, ao custo de uma redução
de modos familiares de se viver e de se usar a urbanidade que não se encai-
xem nesse formato certificado (Breviglieri, 2013, 2014). O caso do recente
desenvolvimento da norma halal* mostra que algumas certificações religiosas
de opções (de alimentos a roupas) pode consolidar, pela via do mercado, o
tipo de fechamento comunitário promovidos pelas correntes mais integristas
ou mesmo fundamentalistas (Bergeaud-Blackler, 2017).
A expansão global de certificações da “sustentabilidade” de grandes
setores agroindustriais (dendê, café, soja, cana de açúcar, algodão, flores,
aquicultura, carne, biocombustível) tem sido criticada pela opacidade e pela
ausência de democracia na promulgação de padrões que, ao mesmo tempo
que ignoram deliberadamente os Estados-nação para serem combinados mais
rapidamente entre empresas e ONGs no que diz respeito a seus conteúdos
normativos, contribui para um modo de governo de largo impacto transna-

* Termo que se refere, no islamismo, aos comportamentos autorizados pelo Corão, halal
(do árabe, permitido) passou a designar, ao longo dos anos 1990 na Europa, um con-
junto de normatizações de mercado, especialmente para alimentação, gerando inclusive
um sistema de certificação. (N. do T.)

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72 A justificação

cional. Em resposta a essas críticas, foi colocada em prática uma variação


“multi-stakeholder” da gramática liberal dos interesses individuais.
Na nova economia política de um mundo certificável buscada por esse
modo de governo, os vários bens comuns levados em conta na confrontação de
justificativas baseadas em ordens de grandeza são substituídos por opções cer-
tificadas por meio de padrões voluntários. Supõe-se com isso que as opções
escolhidas pelos indivíduos ou os bens e serviços adquiridos pelos consumi-
dores contam com propriedades intrínsecas capazes de garantir a realização
de um ou outro bem comum ou fundamental. A comparação sistemática das
reivindicações e realizações desse modo de governo por padrões com as do es-
tado de direito permitiu desenvolver uma análise crítica sistemática (Cheyns;
Thévenot, 2019).

4. C o n t e x to da e s c r i ta : a r e to m a da da d e m o c r ac i a
c o m o qu e s tão

Mais ainda do que outros escritos, os da sociologia são tributários de


seu tempo. Certamente, essa disciplina reivindica para si, com razão, ser
uma das ciências cujo objetivo é o estabelecimento de verdades atemporais
e que, portanto, admitem apenas um tipo de dependência temporal, o que
as inscreve em uma história progressiva do conhecimento científico – algo
precisamente recusado pela sociologia da ciência. Não obstante, a sociologia,
em cada estágio de seu desenvolvimento, permanece amplamente dependente
do mundo e da época em que se desdobra. Indubitavelmente, é impossível
aos sociólogos efetuarem uma dissociação completa entre, por um lado, os
procedimentos de problematização constitutivos de sua disciplina e, por ou-
tro, os problemas que habitam a matéria a que estão aplicados, o que ocorre
agora e aqui e oferece uma paisagem em constante mutação que as ciências
sociais se aplicam para descrever. Essa impossibilidade se afirma de forma
particularmente vigorosa quando os sociólogos, tomando como objeto suas
próprias sociedades, o mundo em que habitam, renunciam a se beneficiar não
apenas de um efeito de distância temporal, mas também, como foi o caso para
uma antropologia cultural que a globalização tornou hoje em grande medida
obsoleta, de um efeito de distância espacial e de estranheza do afastamento.
Essa lacuna entre o momento em que um livro nasceu e a época em que
ele ingressa novamente no espaço editorial justifica o prefácio. O autor ou autores,
tendo ganhado, como seu trabalho, mais idade, consideram positivo adicionar

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Prefácio à edição brasileira 73

essas palavras a mais a fim de se fazer entender o que eles disseram ou, para
ser mais preciso, aquilo que quiseram dizer, agora a novos leitores ou, no caso
de traduções, a leitores distantes, com experiências distintas e que enfrentam
problemas diferentes dos seus. O sentido de uma obra, como o de qualquer
enunciado, também depende de uma situação de enunciação, que não está
necessariamente referenciada no momento de se enunciar e que, no entanto,
contribui amplamente para orientá-lo. No caso de um trabalho sociológico,
essa situação de enunciação se encontra na interseção entre duas atmosferas.
Por um lado, aquela que se espalha pelo campo intelectual ou disciplinar e
que confere a preeminência, na compreensão da vida social, a certas abor-
dagens teóricas sobre outras, referidas então ao passado. Por outro lado, há
aquela atmosfera emanada da questão política e que, fundamentando-se na
rejeição de formas de governo das quais a crítica revelou inconsistências ou
falhas, procura redesenhar um horizonte do bem comum.
Uma maneira de tentar conferir sentido à noção de época sem recorrer
a uma pesada maquinaria historiográfica é a ela associar eventos históricos
que, em uma esfera pelo menos, tenham conduzido a uma reconfiguração de
relações e expectativas. De fato, o efeito de um evento histórico é justamente
coordenar várias expectativas.

4.1. O pluralismo democrático do modelo colocado à prova na


realidade: os “eventos do Maio de 68” na França

Pensamos evidentemente em primeiro lugar nos “eventos” do Maio de


68 – como são chamados na França. Embora tenham ocorrido mais de uma
década antes do início da gestação de A justificação, eles tiveram uma ine-
gável influência em sua gênese e em sua época. As múltiplas interpretações
concordam, pelo menos, que esses eventos colocaram em evidência uma a
crise de autoridade. O impressionante desaparecimento do General de Gaulle
por várias horas, em 29 de maio de 1968, manifestou uma vacância enorme-
mente real de poder político. Sem o conhecimento de seu primeiro-ministro,
Georges Pompidou, e de forma enormemente desarrazoada, ele voou para
Baden Baden, na Alemanha, para secretamente consultar o general Massu,
comandante das forças armadas. O colaborador mais próximo de Pompidou,
Edouard Balladur, descreveria dez anos depois o pânico dos mais altos líderes
políticos quando se deram conta de que “os controles não respondiam mais”
e que os próprios prefeitos da República não obedeciam mais.

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74 A justificação

Essa crise de autoridade sem precedentes desde a Liberação vai ao


encontro do questionamento de A justificação em cada um de seus dois
termos: crise, por um lado, constrói um momento excepcional de extensão
generalizada da crítica a todos os campos e pelos mais diversos atores, ge-
rando um momento de aprendizagem, de experiência renovada e ampliada,
de renovação da atividade crítica; autoridade, por outro lado, se torna algo
abalado por toda parte, e a noção de “hierarquia” é duramente colocada em
questão. Essa constatação pode ser esclarecida, ou mesmo detalhada em suas
várias nuanças, distinguindo-se a crítica da autoridade conforme as diferen-
tes ordens de grandeza e, então, também conforme os tipos de hierarquias.
Assim, vemos a grandeza doméstica ser particularmente denunciada devido
às pesadas dependências por ela implicadas e por um insuportável dever de
obediência. Ao mesmo tempo protetora e assujeitadora, carreada no corpo
de um senhor em um domínio configurado em uma casa e na temporalidade
de uma antiguidade, esse tipo de autoridade, cuja versão mais tardia carac-
terizamos neste livro como uma grandeza de bem comum, perdura ainda de
acordo com versões anteriores de autoridades estatutárias a nutrirem o pensa-
mento conservador. Dos pais de família aos pais da nação, essas autoridades
encarnadas na ordem da tradição são contestadas como paternalistas. Ora,
o general, então chefe de Estado, encarnava em pessoa uma autoridade desse
tipo. Na França do pós-guerra por ele presidida, o chamado movimento de
modernização se justifica em nome da competência técnica estendida à con-
dição de bem comum na ordem de grandeza industrial, o que implica outra
relação hierárquica: um compromisso entre essa grandeza industrial e a gran-
deza cívica da solidariedade coletiva está, mesmo na época, no coração do
Estado francês e da justificação de suas elites, constituídas em particular por
“grandes corpos do Estado”, invenção institucional francesa que bem lembra
o Antigo Regime, visando à modernização por meio da “genialidade” técnica
a serviço do interesse geral público. A grandeza cívica não é de modo algum
questionada em si, e os movimentos de 1968 contribuem, em vez disso, para
distribuí-la para fora do Estado e para recolocar o processo de comprovação
de realidade nas manifestações e nas assembleias gerais, mobilizando-a na
crítica social das desigualdades. A colocação à prova da qualificação cívica
dos representantes atua então sobre todos os tipos de eleitos.
Duas outras ordens de grandeza foram, por outro lado, rejeitadas
no Maio de 68, muito embora tenham adquirido posteriormente um peso
crescente, a do mercado e a do renome na opinião. Mesmo que elas não

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Prefácio à edição brasileira 75

apresentem uma hierarquia de subordinação direta, a crítica sessentaeoitista


mostra que, no entanto, elas são assujeitadoras. A grandeza do mercado é alvo
das duras críticas dirigidas à sociedade de consumo. E a crítica à grandeza
do renome na opinião é muitas vezes expressada no vocabulário da espeta-
cularização, marcada pela obra A sociedade do espetáculo, do situacionista*
Guy Debord (1967). Mercado e renome são, ali, associados em um ataque
comum contra a “sociedade espetacular-mercantil”. Algumas formulações de
Debord faziam pensar na ausência da dinâmica de revisão das qualificações
que reconhecemos no cerne da comprovação de realidade conforme uma
grandeza: “[O espetáculo] é o que escapa à atividade dos homens, à recon-
sideração e à correção da sua obra. É o contrário do diálogo”** (Debord,
1967, proposição 18).
Por fim, uma grandeza é maximizada nesses “eventos”, precisamente
aquela que valoriza a ruptura eventual; trata-se da grandeza da inspiração,
com sua comprovação da realidade da ruptura: “Sejam realistas, exijam o
impossível!”. A recolocação dessa testagem em termos de inspiração mira
também nos grandes, em um questionamento dos artistas estabelecidos, em
nome de uma criatividade mais amplamente distribuída na humanidade.
O corpo de cada um se oferece ao engrandecimento inspirado com suas
emoções: “As moções matam as emoções”, lia-se nas paredes naquele mo-
mento. A “imaginação no poder”, igualmente frase da época, não é o slogan
de uma utopia política sem sentido, mas uma fórmula canônica da grandeza da
inspiração. E, antecipando a continuação da história, notemos que, sobre os
vestígios dessa inspiração estendida a todos, serão valorizados os desejos
por bens mercantis, bem como o reconhecimento dos signos objetivando o
renome no universo da opinião. A semiologia, ciência desses signos e de seu

* O sentido do termo aqui se distancia enormemente do de situação, mobilizado neste


livro – e que permite qualificar a abordagem pragmática francesa como “situacionista
metodológica” (nos termos de Cicourel), como aquela cuja unidade de análise, inspi-
rando-se no pragmatismo filosófico e na sociologia de William I. Thomas, é a situação.
Ora, como é bem sabido, Guy Debord liderou, nos anos 1960, o movimento artístico,
político e intelectual chamado Internacional Situacionista, de orientação socialista li-
bertária e pensamento pós-hegeliano, e que desempenhou papel importante nos eventos
de 1968. O sentido de situacionismo no movimento está ligado a uma agência poética
liberada da ditadura da mercadoria, segundo a qual os indivíduos criariam livremente
as situações em que estivessem inseridos.
** Conforme tradução de Francisco Alves e Afonso Monteiro publicada pelas Edições
Antipáticas (Lisboa). (N. do T.)

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76 A justificação

poder, floresce durante esse período. Nesse sentido, e somente nesse sentido,
pode-se dizer que a expansão do mercado e do marketing, na França dos
anos 1980 e 1990, prolonga as experiências do Maio de 68.
Os eventos daquele ano, então, têm um caráter global, mas assumem
um significado diferente conforme a escala em que são analisados. Na larga
escala dos países chamados “desenvolvidos”, e que foram divididos e dila-
cerados pela Guerra Fria entre o poder soviético e o poder americano, uma
interpretação permite aproximar revoltas surgidas sob condições muito dis-
tintas e de objetivos declarados igualmente diferentes, reconhecendo neles as
revoltas contra a própria Guerra Fria. Mas essas revoltas são baseadas em
reivindicações diferentes no Oriente e no Ocidente. No Leste, as democracias
ocidentais servem de modelo. Para o Oeste, a rejeição do stalinismo que gras-
sava os países orientais não permite uma opção simétrica. Essa rejeição desvia
a energia de protesto no sentido de uma fidelidade a uma revolução cuja
vantagem é ser muito pouco conhecida, de modo que pode desempenhar um
papel imaginário ou utópico, representando o ideal revolucionário popular: a
Revolução Cultural Chinesa. Credita-se a ela, certamente de forma errônea,
ter simultaneamente impulsionado a ambição comunista aos seus limites, ao
contar com um caráter hiperdemocrático, isto é, anarquista, e, ainda mais
erroneamente, ter promovido atitudes não violentas ante a violência do Esta-
do. Ao mesmo tempo, em um país como a França, de todo modo dois ideais
se encontram reconciliados: de um lado, o comunista e, de outro, o de uma
democracia efetiva concebida como verdadeiramente “popular”. É, portanto,
muito paradoxalmente, por intermédio de uma adesão amplamente no plano
do imaginário à Revolução Cultural Chinesa que se pode expressar o ideal
democrático da juventude intelectual, que em grande medida caracteriza o
Maio de 68 na França.
Note-se que o epíteto “maoísta”, e de forma mais geral o de esquer-
dista, cobriu orientações políticas que, marcadas pelo marxismo, valorizam
particularmente a prática e o conhecimento nelas contidas, em detrimento
do acadêmico ou do escolar. No mesmo espírito, a sociologia do trabalho,
crítica dos anos 1960 e 1970, toma o conhecimento não reconhecido dos
trabalhadores e o opõe às prescrições formais – e insuficientes para agir – dos
engenheiros e integrantes dos quadros executivos. A inversão, por vezes mais
carnavalesca que revolucionária, expressada pelo slogan de 1969 “Todo pro-
fessor é aluno. Todo aluno é professor”, poderia levar em 1968 a experiências
de inversão – “de ponta cabeça” – de hierarquias no trabalho. Esse espírito

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Prefácio à edição brasileira 77

influenciou também nossas pesquisas sobre classificações na prática, desde


aquelas sobre o know-how dos “codificadores”, que, nas oficinas do Institut
National de la Statistique et des Études Économiques (Insee), atribuíram as
respostas dos questionários às categorias classificatórias (Thévenot, 1983,
2016b), até os jogos experimentais que desenvolvemos (Boltanski; Thévenot,
1983, 2015). Essas pesquisas, presentes na gênese de A justificação, deixaram
sua marca no modelo e no papel nele ocupado pela situação e pela compro-
vação de realidade.
O horizonte democrático, no qual se pode enxergar, retrospectivamente,
a principal contribuição do Maio de 68 para a vida política francesa, tornou
real uma outra revolta, que adquire sentido tanto em um quadro europeu
quanto em um quadro nacional. Trata-se de pôr fim às tendências fascistas
que invadiram o continente após a ascensão do fascismo italiano ao poder no
início da década de 1920 e que, encarnado na França no vichysmo, havia se
mantido em grande parte após o fim da Segunda Guerra Mundial em função
das guerras coloniais. O Maio de 68 realiza de certo modo a revolução que
não havia ocorrido vinte anos antes, no momento da Liberação.

4.2. A reconciliação provisória entre a tradição liberal e o socialismo:


a eleição de François Mitterrand

Indubitavelmente, o principal evento a dominar, na França, a maior parte


dos anos 1980 é a eleição à presidência da República de François Mitterrand,
em maio de 1981, e a subida da esquerda ao poder. Esse evento extrai, não
sem ambiguidades – quiçá contradições –, a relevância de sua relação com o
Maio de 68 e seus anos posteriores. Após dez anos marcados ao mesmo tem-
po por lutas sociais em larga escala, por vezes relegadas à violência, intensos
conflitos ideológicos e inovações intelectuais e artísticas definidas por uma
visão crítica, a energia liberada pelos acontecimentos do Maio de 68 parece
estar, no final dos anos 1970, esgotando seu percurso. Isso se reflete, entre
muitos outros indicadores, na ruptura do programa comum entre socialistas
e comunistas, em 1977, na perda das eleições de 1978 pela esquerda e ain-
da na “reorientação” da Confédération Française Démocratique du Travail
[Confederação Francesa Democrática do Trabalho] (CFDT), isto é, no dire-
cionamento para o reformismo de um sindicato que havia desempenhado um
papel de liderança nas lutas sociais. Mas se refletiu também, de maneira mais
difusa, no esgotamento dos militantes marxistas – especialmente trotskistas e

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78 A justificação

maoístas – engajados em lutas ideológicas e políticas, especialmente os jovens


intelectuais que escolheram, por razões políticas, o trabalho na fábrica (os
“torneiros”).* Nesse contexto de declínio, a eleição de 1981, que leva a
esquerda para o governo, tem algo de surpreendente, especialmente se for
interpretada, como frequentemente fizeram seus contemporâneos, como uma
culminação, certamente imperfeita, mas mesmo assim positiva, do Maio de
68. Muitos militantes de esquerda ou de extrema esquerda, especialmente
intelectuais, puderam a partir dali gravitar em torno dos círculos de poder.
De forma mais geral, o mundo da cultura, a universidade e, em particular,
as ciências sociais passaram a gozar de uma espécie de boa vontade que os
governos anteriores, de direita, estavam longe de lhes conceder.
Paradoxalmente, esse sucesso da esquerda coincide com um declínio do
marxismo, que, na França, sob diferentes formas ocupava um lugar central,
pelo menos desde 1945. Esse declínio é, em primeiro lugar, do Partido Co-
munista, em função da crítica ao stalinismo. Mas é também o declínio das
diferentes formas de marxismo opostas a sua versão ortodoxa e há muito
presentes no cenário intelectual como alternativas ao stalinismo do Partido.
Um ponto central da virada do final dos anos 1970 e início dos anos 1980
é a renúncia à violência (Sommier, 2004) como modo de ação política, o
que acompanha o colapso de expectativas e engajamentos direcionados a um
horizonte revolucionário.
A violência – que na França permaneceu de forma especialmente verbal
e não física, diferentemente de na Itália –, como modo de expressão consi-
derado quase normal da revolta e como o motor da história, foi substituída
por um ideal de debate como instrumento de pacificação rumo ao estabele-
cimento de uma democracia efetiva. Além do fato de a esquerda ter chegado
ao poder, algumas das medidas mais importantes adotadas pelo governo do
primeiro-ministro Pierre Mauroy – entre outras, a abolição da pena de morte,
a derrubada da lei antivândalos,** o Pacote Auroux, que reescreveu as leis do

* No original, os “établis”, apelido dado aos jovens intelectuais militantes, em geral maoís-
tas, que na época ingressavam nas lignes de l’établissement, nas linhas de montagem,
nas bancadas (établis) de operação, das usinas, nas quais em geral se operavam tornos,
embora não apenas. Optei por essa tradução por conta da popularidade do termo em
português. (N. do T.)
** Trata-se da lei no 70.270, de 8 de junho de 1970, que alterou o artigo 314 do Códi-
go Penal francês. Nela, permitia-se responsabilizar todos os integrantes de um grupo
por eventuais danos a bens públicos ou privados em uma ação desse grupo – o que

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Prefácio à edição brasileira 79

trabalho no país com uma inclinação mais favorável aos trabalhadores, as


estatizações, pelo menos até a “virada de austeridade”, em 1983,* a impor-
tância conferida ao setor cultural com a chegada de Jack Lang ao Ministério
da Cultura, etc. – tornaram essa mudança possível. A renúncia ao marxismo,
fosse isso de forma reivindicada ou tácita, e a um horizonte revolucionário,
que poderia oferecer suporte a se tolerar a violência, foi seguida por muitos
intelectuais que haviam passado pela extrema esquerda, sem que essa inflexão
fosse necessariamente equivalente a uma negação.
Os modos de problematização do social que pareciam insuperáveis para
os intelectuais de esquerda quando a direita estava no poder, e especial-
mente quando a expectativa de uma mudança política era preenchida pela
esperança revolucionária, passaram a partir daquele momento a parecer ser
reconhecidos no nível da direção do Estado, o que liberou espaço para
uma reconfiguração da problemática política e social. Na ordem política,
a crítica ao stalinismo é prolongada na forma de uma desconfiança dos
aparatos partidários e de seu autoritarismo. A eles é colocada em oposição
a criatividade da vida associativa e de novas entidades políticas designadas
por expressões vagas como “sociedade civil” ou “novos movimentos sociais”.
Já do ponto de vista do social, assiste-se a um recuo da problematização
em termos de classes e de luta de classes, centrada na análise dos modos
de dominação, que prevaleceram nas décadas anteriores, em quase todos
os domínios. Esses modos de problematização sustentavam uma crítica cuja
energia era apontada, após a rejeição quase unânime do stalinismo soviético,
ao maoísmo. Ora, o fim da Guerra do Vietnã, marcado pela crise dos boat

significava dizer que todos os participantes de uma manifestação política poderiam ser
culpabilizados criminalmente pela destruição, por exemplo, de uma vidraça ou de um
veículo. O ponto fundamental atacado no artigo se concentrava na ideia de criação da
responsabilização coletiva, apontada nos debates na Assembleia Nacional pelos socialistas
como “aberração jurídica”. A lei seria derrubada em 1981. (N. do T.)
* A virada de austeridade consistiu em uma série de medidas adotadas por Mitterrand a
partir de março de 1983 diante da grave crise econômica pela qual passava a França
no começo da década. O pacote consistiu especialmente em um recuo na política de
incentivo ao consumo e de estatizações do começo da gestão em favor de um aperto
nos gastos públicos e uma onda de privatizações. (N. do T.)

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80 A justificação

people* e pela revelação do apocalipse cambojano,** além de pela devastação


promovida pela Revolução Cultural, extraiu toda a plausibilidade da adesão
a essa corrente, pelo menos a curto prazo.
Essa mudança nacional e acima de tudo parisiense prefigurou por quase
uma década a atmosfera intelectual e política que se seguiria à queda do
Muro de Berlim. Nesse contexto, o engajamento de uma parte dos intelectuais
oriundos da esquerda se voltou para questões relacionadas ao funcionamento
e desenvolvimento de uma ordem democrática pluralista e também social,
preservando as conquistas do Estado de bem-estar que naquele momento
Margaret Thatcher, então chegando ao poder na Grã-Bretanha, começou a
desmantelar. Essa temática favorecia uma convergência entre intelectuais de
esquerda e intelectuais liberais, até então considerados pela esquerda como
de direita, por conta de sua contribuição para a crítica do comunismo ou
mesmo do marxismo.
Essa conjuntura política inteiramente nova tem um efeito pacificador.
A história política da França tem sido marcada, com efeito, desde a Revolução
Francesa, por uma série de crises e revoluções, em um clima quase perma-
nente de guerra civil de alta ou baixa intensidade (1793, 1830, 1848, 1870,
a crise boulangista, em 1881-1882, o Caso Dreyfus, a ascensão do fascismo
e das ligas nacionalistas, em 1930, Vichy e a resistência à ocupação nazista,
conflitos da Liberação, as crises relacionadas à Guerra Fria e ao Partido
Comunista na década de 1950, os conflitos em torno das guerras coloniais
até 1962, o Maio de 68 e a década seguinte, etc.).
A primeira metade da década de 1980, portanto, se apresenta como um
momento histórico habitado por um ideal democrático, mais liberal que no
período anterior nos planos político e cultural, capaz de conter uma extrema
direita, que, ao mesmo tempo, prepara um retorno (a “Frente Nacional”) e
se torna uma grande preocupação nos decênios seguintes, e capaz ainda de
erguer uma muralha contra as crescentes desigualdades que acompanham a

* Onda de refugiados saindo do Vietnã após o fim da guerra, em 1975, marcada pela imagem
de embarcações superlotadas que muitas vezes sucumbiam a acidentes, provocando uma
crise humanitária, e que prosseguiu em ondas de intensidades variáveis até a década de
1990. Estima-se que 800 mil pessoas tenham deixado o país nesse movimento. (N. do T.)
** Massacre promovido em Phnom Penh em 1975 pelo ditador Pol Pot, líder do Khmer
Vermelho, contra a população rural que havia migrado para a capital do Kampuchea
Democrático, nome do Camboja sob sua ditadura. (N. do T.)

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Prefácio à edição brasileira 81

expansão do capitalismo em nível global. E seria necessário aguardar até o


início do século XXI para as análises sócio-históricas começarem a evidenciar
as mudanças econômicas e sociais que, durante a década de 1980, tiveram o
efeito de restaurar ao capitalismo um vigor que a crise sofrida entre meados
dos anos 1960 e meados dos anos 1970 o fez perder. Com efeito, foi também
durante os anos em que a esquerda esteve no poder que começaram a se
manifestar ou se desenvolveram: a valorização do princípio da concorrência
mercantil no interior do Estado e dos processos que modificariam profunda-
mente as condições de trabalho e de vida dos trabalhadores e suas capacida-
des de negociação, processos atualmente em curso – um novo modo de gestão
empresarial chamado de “reengenharia”; a ampliação da subcontratação; a
deslocalização (offshoring); o enfraquecimento dos sindicalismo; a redução
do número de trabalhadores; os investimentos diretos no estrangeiro; a con-
centração financeira; etc. (Boltanski; Chiapello, 2005[1999]).
No nível intelectual, esse movimento é acompanhado por traduções
de obras capazes de contribuir para esse debate democrático, da Teoria do
agir comunicativo, de Jürgen Habermas (1987[1981]), para a sociologia, a
Uma teoria da justiça, de John Rawls (1987[1971]), traduzido dezesseis anos
após sua publicação original, aos quais se juntam obras de filosofia moral
anglo-saxônica e até mesmo de filosofia analítica que, até a década de 1980,
raramente eram lidas na França, pelo menos no campo das ciências sociais,
onde eram muitas vezes consideradas apolíticas ou mesmo conservadoras e,
portanto, eram rejeitadas. Notemos, no entanto, que essa conjuntura intelec-
tual carregava, para os intelectuais de esquerda, um risco que estava longe
de ser ilusório: o de uma virada de lado dos intelectuais que haviam militado
pelo liberalismo e haviam sido identificados com a direita em razão de seu
distanciamento da crítica social.
Esse tema pode ser ilustrado pelo episódio seguinte. Enquanto o pri-
meiro-ministro era o socialista Michel Rocard, sob a égide do Commissariat
Général du Plan e de Jean-Baptiste de Foucauld – seu comissário-adjunto
antes de se tornar comissário, em 1992 –, foi organizado um colóquio (em
junho de 1991) por Joëlle Affichard, chefe do Service des Études et de la
Recherche [Serviço de Estudos e Pesquisas] do Comissariado. Ele envergava
o tema “Justiça social e desigualdades” (Affichard; De Foucauld, 1992) e
reunia sociólogos (François Dubet, Robert Castel, Laurent Thévenot, Alain
Touraine), economistas (Robert Boyer, Jean-Pierre Dupuy), filósofos (Étienne
Balibar, Paul Ricœur, Joël Roman) e altos funcionários de esquerda (Jean-Michel

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82 A justificação

Belorgey, Nicole Questiaux) para apresentar trabalhos discutindo Uma teoria


da justiça, de Rawls, e A justificação, que havia aparecido em uma versão
inicial em 1987 (Boltanski; Thévenot, 1987), tendo posteriormente sua ver-
são final em 1991 (Boltanski; Thévenot, 1991). Um segundo colóquio (em
novembro de 1992) seria destinado a tornar mais conhecidos na França, e
promover o diálogo deles com as ciências sociais, trabalhos que, na tradição
anglo-saxônica de questionamento sobre o justo, integravam uma perspectiva
pluralista ou se mostravam sensíveis às condições de realização das exigências
de justiça (notadamente, Mary Douglas, Jon Elster, Albert O. Hirschman,
Jenifer Hochschild, Paul Ricœur, Judith Shklar, Michael Walzer, Margaret
Weir). As contribuições foram publicadas sob o título Pluralisme et équité: la
justice sociale dans les démocraties [Pluralismo e equidade: justiça social nas
democracias] (Affichard; De Foucauld, 1995). Depois da inversão da maioria
política na Assembleia Nacional, reconduzindo a direita ao governo, em 1993,
uma comissão presidida por Alain Minc produziria um relatório – o chamado
“Relatório Minc” (Commissariat Général du Plan, 1994) – encomendado
ao mesmo CGP pelo primeiro-ministro de então, Edouard Balladur, futuro
candidato nas eleições presidenciais. A comissão reunia altos funcionários,
empregadores, economistas, cientistas políticos e sociólogos (entre os quais,
Luc Ferry, Edgar Morin, Alain Touraine e Pierre Rosanvallon) e Jean-Baptiste
de Foucauld, que desempenhou um papel importante em sua redação. Esse
relatório, explicitamente destinado a orientar e justificar políticas econômicas
e sociais, foi considerado em retrospecto como tendo ideologicamente funda-
do uma nova direção, que submeteu a demanda por igualdade ao imperativo da
eficiência econômica, sob o pretexto de se falar em “equidade”.

***

A construção do modelo teórico desenvolvido em A justificação deve


muito à tensão suscitada pelo desejo de se manter uma âncora na esquerda e
ao mesmo tempo se escapar de um dogmatismo marxista. O livro não apenas
se afasta da visão hegemônica em termos de classes sociais, mas o faz ainda em
pontos essenciais. Um dos principais é, ao se interpretar a ação, o abandono
de um esquema disposicional, até então onipresente, em favor de um esquema
situacional. Um segundo consiste em se levar a sério as exigências de justiça e
legitimidade, em vez de se enxergarem apenas máscaras, voltadas para esconder
a dominação de classe, como era frequentemente o caso nos anos 1960-1970.
E se afasta ainda de se pivotar de uma visão política inteiramente centrada

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Prefácio à edição brasileira 83

em destacar o dissenso a uma adesão completa a um ideal de consenso.


A solução que encontramos para esse dilema foi a seguinte: consistiu em
reconhecer a importância e a validade da crítica no funcionamento da vida
social e política, mas sem considerar que o papel principal da sociologia fosse
contribuir para criticar. Em suma, tratou-se de se dar início a uma passagem
de uma sociologia crítica para uma sociologia da crítica.

Luc Boltanski e Laurent Thévenot, 30 de junho de 2019.

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PREFÁCIO

Como e s c r e v e m o s e s t e l i v ro

Os leitores desta obra poderão sentir certo desconforto ao não encon-


trarem nas páginas que se seguem os seres com os quais estão familiarizados.
Nada dos grupos sociais, classes sociais, operários, integrantes de quadros
executivos, jovens, mulheres, eleitores, etc. com os quais fomos acostumados
tanto pelas ciências sociais quanto pelos muitos dados estatísticos que circu-
lam atualmente entre nós a respeito da sociedade. Nada também dessas pes-
soas sem qualidades que a economia chama de indivíduos e que acabam por
servir de mero suporte a conhecimentos e preferências. E ainda nada desses
personagens em tamanho natural que as formas mais literárias da sociologia,
da antropologia ou da história transportam para o espaço do conhecimento
científico, por meio de testemunhos muitas vezes enormemente semelhantes
àqueles coletados por jornalistas ou colocados em cena por romancistas. Es-
vaziado, por um lado, de grupos, indivíduos ou personagens, este trabalho,
por outro, abunda de uma multiplicidade de seres que, por vezes humanos, por
vezes coisas, não se apresentam sem que ao mesmo tempo sejam qualificados
os estados segundo os quais intervêm. O assunto deste livro é, pois, a relação
entre esses estados-pessoa e esses estados-coisa, constitutiva do que adiante
chamaremos de uma situação.
Mas, apesar disso, não esquecemos os seres com os quais as ciências
sociais nos habituaram. Foi ao nos perguntarmos sobre os problemas apre-
sentados por sua confrontação em um mesmo quadro discursivo, e até nos
mesmos enunciados, que fomos levados a colocar no centro de nossa investi-
gação as questões levantadas pelo próprio ato de qualificar – não apenas as
coisas, mas também esses seres particularmente resistentes à qualificação que
são as pessoas. Concentrar nossas pesquisas nas operações de qualificação
mostrou‑se algo de interesse maiúsculo, porque essa posição nos permitiu um
movimento de ida e vinda entre as interrogações habitualmente determinadas
pela epistemologia e as questões mais próprias à sociologia ou à antropologia.

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86 A justificação

De fato, as operações de qualificação podem ser percebidas como movimen-


tos básicos da atividade científica, o que implica uma tomada dos objetos
sobre os quais recairá uma explicação e sua colocação em equivalência, mas
elas também constituem as operações cognitivas fundamentais das atividades
sociais cuja coordenação exige um contínuo trabalho de aproximação, de
designação comum, de identificação.

A g e n e r a l i z ação da s o b s e rvaç õ e s d e ca m p o
e a c o n s t ru ção da e qu i va l ê n c i a e s tat í s t i ca

Nossa forma de trabalhar havia chamado nossa atenção para as di-


ferentes maneiras de qualificar, científicas e de senso comum, mas também
para os problemas postos por sua colocação em relação. Com efeito, nossas
identidades profissionais – um, economista e estatístico; o outro, sociólogo –
constantemente nos levaram a lidar com esses seres coletivos de grandes
dimensões aos quais se faz necessário apelar para dar conta, de maneira
quase cartográfica, daquilo que se tornou usual chamar, a partir da primeira
metade do século XIX, de sociedade. Mas, como produtor ou utilizador de
categorias estatísticas, por um lado, e, por outro, como sociólogo fazendo pes-
quisa de campo, colocando em operação métodos de observação inspirados
pela etnologia, não poderíamos estar cegos para a tensão entre as demandas
de qualificação que precedem qualquer classificação e para a resistência do
material a classificar, composto, independentemente do tratamento a que o
submetamos, de enunciados recolhidos diretamente das pessoas. Ora, em
muitos casos, essas mesmas pessoas se opõem à empreitada taxonômica das
qualificações imprevistas e, assim, inclassificáveis, ou até mesmo se sublevam,
se a oportunidade for oferecida, contra as pretensões de especialistas ou pes-
quisadores de as pretenderem qualificar de modo a aproximá-las de outras
pessoas sob a promiscuidade de uma mesma categoria.
O problema da relação entre categoria e caso específico nas descrições
das ciências sociais se mostrava com toda clareza e de maneira particular-
mente difícil de justificar em termos de exigências epistemológicas quando,
para tornar mais vívido um enunciado sobre macroentidades – por exemplo,
as classes sociais –, se apresentava, junto com ele, um extrato de entrevista,
tratando-se a relação problemática entre essas duas dimensões na chave da
ilustração exemplar ou do exemplo típico. E essa tensão está já presente,
embora de forma mais discreta, desde o momento em que se tomam os dados

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Prefácio 87

quantitativos oriundos de matrizes formadas pelo cruzamento de categorias


e as considerações sobre o comportamento de pessoas e os integram em
um mesmo discurso – como faz recorrentemente a estatística descritiva –,
reduzindo-se a um problema de retórica, de escrita ou de estilo a questão
colocada pelo entrelaçamento dessas duas linguagens de descrição em um
mesmo comentário. Ora, seria possível fazer as mesmas observações sobre o
procedimento, inerente a muitas formas de análise de conteúdo, que consiste
em atribuir a expressão de uma pessoa a uma categoria, com base em sua
natureza típica, autorizando-se a constituí-la como fato de linguagem, passí-
vel de análise científica, sem sequer mencionar o sentimento de desconforto
muitas vezes suscitado pelo simples confronto do pesquisador, questionário na
mão, face a face com o entrevistado, em sua casa, rodeado por seus objetos
familiares, e cuja presença, assim como suas declarações, enfrenta o risco,
a cada momento, de fazer parecer desconcertante, vã, até mesmo abusiva, a
operação de dar conta da verdade da situação por meio da matriz padroni-
zada de um questionário.
Uma interpretação ingênua dessa tensão consiste em pensar que ela
seja impulsionada por uma disparidade agigantada entre a realidade e as
categorias, julgadas ou inadequadas ou por demais gerais para corresponder
aos contornos traçados. Nisso se encontram as críticas habituais contra a
estatística e, de forma mais geral, contra todas as abordagens totalizantes.
Na verdade, nosso primeiro movimento consistiu em mergulhar, mais do
que costumam fazer os pesquisadores, nas operações de aproximação entre
os casos brutos e as categorias estabelecidas. Essas operações primárias de
pesquisa, que precedem qualquer objetivo de explicação ou mesmo de trata-
mento do material coletado, são ao mesmo tempo as mais básicas e menos
exploradas e problematizadas.
Nossa atenção – estimulada pelo esclarecimento lançado pelas pesquisas
antropológicas de Pierre Bourdieu (1972) sobre a relação entre as operações
de classificação e as intervenções práticas – concentrou-se primeiramente nas
operações de codificação e, de forma mais geral, de conformação e padroni-
zação realizadas por estatísticos, sociólogos ou mesmo juristas. Conferimos
particular importância às conexões feitas com outras formas de qualificação
estabelecidas e que contribuíssem para consolidar e estabilizar as categorias
que procuramos construir ou mobilizar.
Procedemos de duas diferentes maneiras, conduzidas paralelamente. De
um lado, dispusemo-nos a fazer, na continuidade do trabalho de Alain Desro-

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88 A justificação

sières (1977) sobre as categorias socioprofissionais, a história da construção


de uma categoria francesa, a dos integrantes de quadros executivos, os ca-
dres,* mostrando como ela havia sido estabelecida com base em aproximações
anteriores já estabilizadas (como os acordos coletivos) (Boltanski, 1982). Para
isso, seria necessário reconstituir o trabalho previamente realizado por seus
porta-vozes políticos ou sindicais a fim de definir o conteúdo e os limites
da categoria. Antes de designar um grupo como algo dado e, poder-se-ia
dizer, oficial, a categoria ainda figurava como algo problemático e teve que
ser construída na forma de uma causa, isto é, com a intenção manifesta de
se reparar uma injustiça ao se fazer reconhecer a existência de um grupo
até então ignorado. Mas o estudo daqueles que, atualmente, se apresentam
como quadros executivos também mostraria que os próprios atores, quando
questionados sobre suas identidades profissionais, são levados a reativar essa
representação e, consequentemente, a se colocarem como representantes.
Além disso, o processamento estatístico realizado, em princípio, por um
cruzamento de variáveis não é suficiente para suprimir completamente a
presença das pessoas, e a evocação destas ressurge em casos problemáticos
nos quais as instruções de utilização das variáveis [pelos pesquisadores]
não se mostram suficientes. O agente encarregado do processamento dos
dados, a fim de decidir pela atribuição a uma categoria, é então levado
a imaginar a pessoa que preencheu o questionário, aproximando-a das
pessoas que ele próprio conhece.

I d e n t i f i cação d e s e n s o c o m u m e qua l i f i cação c i e n t í f i ca

O outro conjunto de pesquisas consistiu em observar e analisar ca-


tegorias de fronteiras imprecisas, como os jovens (Thévenot, 1979), e os

* No sistema trabalhista francês, trata-se de um funcionário de empresa que exerce uma


atividade intelectual, executiva, mais ou menos gerencial, e ocupa os postos de melho-
res salários, embora não os lugares de diretoria do topo. Sua definição é feita basica-
mente por oposição aos funcionários comuns – especialmente aos de trabalho braçal.
Eles contam com um estatuto contratual e de nível de formação, além de um sistema
de previdência, distintos legalmente em relação aos outros. Trata-se de uma categoria
extremamente complexa – que não é definida nem por sua área de formação nem pelo
domínio de uma atividade específica – e cujo processo de constituição rendeu a Luc
Boltanski sua obra Les cadres: La formation d’un groupe social (1982). Aqui, preferi
a forma “integrante do quadro executivo” ou, eventualmente, a versão simplificada
“quadros executivos”. A forma mais simples “executivos” foi evitada para não se fazer
confusão com os cargos de direção mais altos. (N. do T.)

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Prefácio 89

procedimentos realizados pelo pessoal, muitas vezes subalterno, encarregado,


nas principais agências de estatística, do trabalho de codificação, geralmente
tratado como uma atividade de rotina sobre a qual não se levantam pro-
blemas específicos (Thévenot, 1983). A análise se debruçou particularmente
sobre os momentos, que interrompem o curso normal da cadeia estatística,
nos quais os codificadores de dados sentem que as instruções distribuídas
não são mais suficientes para dar suporte a seu trabalho. Esses momentos
de dúvida surgem especialmente quando esses codificadores devem atribuir
a uma ou outra categoria da nomenclatura casos que lhes pareçam incertos
e que despertem suas suspeitas. Quando a codificação se referia à profissão,
a dúvida podia ser dissipada e a atribuição, realizada, ao se buscar, no ques-
tionário, outras propriedades, como nível de estudo ou de renda. Mas essa
associação de elementos muitas vezes levava ao questionamento do título ou
da qualificação profissionais apresentados pela pessoa entrevistada. Diminuída,
ela é atribuída a uma categoria de posição inferior àquela para a qual suas
declarações pareciam inicialmente orientar. A retificação do apontamento
que se poderia, assim, observar, ou, para utilizar um termo de ressonância
estatística, sua imputação – que o operador (codificador de dados ou pesqui-
sador) colocaria em prática com firmeza e, por vezes, com uma reprovação
quase moral, como se ele fosse se envolver em uma disputa imaginária com
o indivíduo que era objeto de sua classificação –, levaria, assim, a deslocar a
pessoa em uma ordem dada, tratando-a como se tivesse usurpado um estado
que não se justificava, para, em suma, diminuir sua grandeza.
Um dos principais aprendizados dessas pesquisas foi lançar luz sobre a
similaridade entre a maneira segundo a qual uma pessoa, para tornar com-
preensível sua conduta, se identifica por aproximação com outras, em uma
relação que lhe pareça pertinente, e a maneira pela qual o pesquisador coloca
sob uma mesma categoria seres diferentes a fim de explicar suas condutas
por uma mesma lei. Essa constatação levaria a atribuir a mesma atenção à
classificação promovida pelos entrevistados em pesquisas e às classificações
categoriais dos pesquisadores. Consequentemente, fomos levados a substituir
uma oposição entre a generalidade da categoria e a singularidade de um caso
pessoal por um conflito entre diferentes maneiras de se qualificar pessoas.
Dever-se-ia, assim, renunciar a uma maneira econômica de apaziguar
esse conflito – o que não é diferente da maneira de senso comum de promover
a crítica em disputas – que consiste em rebaixar a qualificação proposta pelos
atores em favor daquelas atribuídas na fase de análise do levantamento. Com
efeito, embora em princípio intervenha sob os auspícios de um imperativo

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90 A justificação

de neutralidade, o pesquisador ou o estatístico não conseguiriam chegar a


qualificar sem promover um julgamento, como mostram as operações, an-
teriormente evocadas, de atribuição de uma categoria a casos marginais ou
duvidosos.

Da a p rox i m ação ao j u l g a m e n to

As observações sobre as operações de codificação estatística e o estudo


histórico da formação de categorias socioprofissionais foram expandidas
por pesquisas experimentais a fim de aprofundar a análise de operações
cognitivas de aproximação em uma mesma categoria envolvendo a profissão
ou o contexto social, conforme realizadas por não especialistas (Boltanski;
Thévenot, 1983). Essas pesquisas confirmaram, antes de tudo, a relação en-
tre classificação e julgamento. Essa relação se mostraria claramente em um
dos exercícios propostos a grupos de uma dúzia de pessoas, que consiste em
negociar uma nomenclatura única a partir de diferentes aproximações pro-
movidas na fase anterior por cada participante separadamente. No decurso
desse exercício, apresentado como um jogo, os participantes criticavam as
proposições dos outros jogadores não apenas em termos de coerência lógica,
mas sobretudo em termos de justiça. Por exemplo, ao considerar prejudicial à
operária de uma fábrica ser associada indevidamente a uma faxineira, ainda
que elas tivessem o mesmo nível de formação ou o mesmo salário. Em outro
exercício, os participantes foram colocados em competição para identificar a
classe social de uma pessoa desconhecida (mas real), lidando com uma gran-
de variedade de índices, a cujo acesso foi atribuído um preço. Esses índices,
apresentados gradualmente, foram fornecidos a cada membro separadamente
e sem o conhecimento dos outros jogadores. Ora, esse exercício, realizado
com paixão, uma vez que previa um vencedor (aquele que chegasse à melhor
identificação com o menor custo), mostrou que as variações na qualificação
eram acompanhadas de juízos manifestados explicitamente na forma de
reflexões como: “Vou colocá-lo um pouco mais para cima”, ou ainda, por
exemplo, após tomar conhecimento das leituras favoritas da pessoa oculta:
“Essa, eu julguei mal”. A ligação entre uma atividade cognitiva e uma avalia-
ção se mostrou claramente no entusiasmo revelado ao longo do julgamento.
Mas esse exercício trouxe ainda um outro ensinamento. Com efeito,
ele deliberadamente oferecia aos jogadores informações de tipos diversos.
Algumas eram determinadas por uma espécie de critério das variáveis mais

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Prefácio 91

públicas (de alguma forma reconhecidas como de interesse nacional), ins-


critas nas informações de registro civil, nas contas nacionais, nas categorias
coletivas convencionais, como a idade, o nível educacional ou o tamanho da
empresa. Outras se remetiam a uma abordagem mais familiar da pessoa, por
meio de seus gostos ou de suas condutas privadas. Esse exercício continha
em si próprio a tensão entre a categoria e o caso, tensão esta que constitui
o objeto de nossa pesquisa e que não era esclarecida pela determinação dada
aos jogadores – encontrar a profissão ou o meio social da pessoa oculta –,
sendo interpretada, por vezes, em termos de aproximação estatística – “Há
80% de chance de se tratar de um integrante de quadro executivo” – e, por
vezes, como uma investigação, levando a desmascarar a identidade da pessoa
ocultada pelo questionário. Essa experiência permitiu, assim, colocar em evi-
dência uma pluralidade de relações nas quais poderiam ser feitas aproxima-
ções e julgamentos incompatíveis. Foi possível ver, dessa maneira, jogadores
que lembravam estatísticos ou pesquisadores, munidos de leis sociais e que
buscavam determinar uma categoria por especificações sucessivas baseadas na
interseção de variáveis. Eles construíam provas sob a forma de correlações,
próprias, portanto, da natureza da evidência estatística. Por sua vez, outros
jogadores eram capturados pelas intrigas de uma investigação e buscavam
revelar a personalidade utilizando para isso, como no paradigma indiciário de
Carlo Ginzburg (1980), os signos mais indiretos, como os gostos literários, os
esportes favoritos ou a marca e o ano do automóvel da pessoa investigada.
Como esse último exemplo sugere, as operações de aproximação rea-
lizadas pelos jogadores pareciam bastante ligadas a dispositivos compostos
por objetos nos quais eles eram imersos pelas perguntas cujas respostas lhes
propúnhamos. Um número limitado desses objetos, surgidos à medida que a
informação era apresentada, mostrava-se suficiente, se eles fossem organiza-
dos de acordo com dispositivos coerentes, fazendo surgir formas pregnantes
o bastante para induzir a reinterpretação ou a rejeição de novas informações
e, assim, estabilizar o julgamento em um estágio muitas vezes precoce do
experimento.
Finalmente, as pesquisas sobre a identificação revelaram também um
efeito inesperado da colocação em prática dessa tarefa. Uma sensação de
desconforto acompanhava muitas vezes o êxito quando um dos membros con-
seguia “pegar” – como chamavam os participantes, no duplo sentido de uma
revelação e de uma perseguição – o indivíduo oculto. Tratava-se do incômodo
de circunscrever um ser, em sua totalidade, uma vez que os lembrávamos de

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92 A justificação

que, por trás do jogo, havia uma pessoa real, o que não permitia mais que
aquilo fosse considerado apenas um jogo. Os jogadores mais qualificados
para lidar com indicadores indiretos – que poderíamos identificar como pri-
vados ou mesmo singulares – e que obtinham, regra geral, os maiores êxitos,
mostraram-se também os mais frequentemente desconfortáveis e até envergo-
nhados por terem que explicar publicamente seus métodos diante de outros
jogadores que haviam se apoiado em qualidades consideradas mais legítimas.
Mas esse mal-estar não os teria tomado se suas inferências tivessem tido lugar
no interior de uma conversa privada, em que nada os impede de submeter
os outros a uma avaliação com base nesses indicadores, por exemplo, para
se certificar de suas intenções. Em suma, é porque o dispositivo comportava
questionários estatísticos, referência a propriedades oficiais, debates públicos
que demandavam uma justificação em máxima generalidade para as aproxi-
mações realizadas, que parecia inaceitável a avaliação de uma personalidade,
algo ademais bastante comum.
O caráter problemático da contraposição de traços pessoais e categorias
de classificação, tornado visível por esse trabalho, conduziu-nos a uma análise
mais sistemática das classificações socioprofissionais (Desrosières; Thévenot,
1988). Mas a análise de como a singularidade é absorvida nas formas gerais
não se reduz às questões estatísticas nem aos problemas de classificação.
Assim, estendemos o estudo dos imperativos e constrangimentos atuantes
sobre o tratamento da singularidade com duas pesquisas aparentemente
muito distantes entre si, já que uma tratava das condições de validade de
reclamações de injustiça e a outra, das formas de ajustamento entre recursos
díspares em empresas.

A c o n s t ru ção da p rova e a t e n s ão e n t r e
o g e r a l e o pa rt i c u l a r

A evidenciação dos imperativos de coerência atuantes na generalização


de uma situação, que demonstra a necessidade de apagamento das ligações
singulares a fim de garantir um comportamento aceitável, apoiou-se em uma
análise de como simples quidans, os indivíduos os mais comuns, buscam
convencer que seus infortúnios pessoais são, na verdade, injustiças que com-
prometem a coletividade como um todo, e que uma reparação requer um re-
conhecimento público do dano que seus problemas lhes causaram (­Boltanski,
1984). Um dos principais resultados dessa pesquisa foi mostrar que os apelos

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Prefácio 93

à justiça julgados inaceitáveis, e mesmo, em certos casos, delirantes, eram


caracterizados por uma construção deficiente da generalidade da queixa. Essa
falha se manifestou particularmente na ausência de uma instituição capaz de
assumir a responsabilidade e de dessingularizar o infortúnio da vítima a fim
de transformá-lo em caso exemplar de uma causa coletiva. Os documentos,
representados em cartas, ou ainda em volumosos dossiês enviados aos jornais,
mas não publicados, foram rejeitados por um painel de juízes composto por
pessoas comuns devido à natureza extremamente díspar dos objetos mobili-
zados como provas. Alguns eram da ordem do familiar (como uma esposa
infiel), quiçá do absolutamente singular (como um sentimento de angústia),
enquanto outros eram guiados por um grau de generalidade gigantesco, tal
como, por exemplo, as malversações de um grande sindicato, a moral do
país, ou mesmo o equilíbrio internacional.
Ao analisar o trabalho de generalização na forma de seus elementos de
prova e no que diz respeito à consistência de sua associação, necessária para
fazê-los valer de maneira aceitável no decurso de um litígio, pode-se acessar
a ideia de justiça por caminhos não habituais. A aproximação desse objeto
não é feita por intermédio de uma regra transcendental, como é tradicio-
nalmente o caso, mas ao se observarem as exigências de ordem pragmática
relacionadas à pertinência de um dispositivo ou, se se preferir, à sua justeza.
Essa orientação foi confirmada por pesquisas sobre dispositivos técnicos nos
quais os objetos desempenhem um papel importante, como pode ser visto
nas empresas. Percebeu-se, assim, que a necessidade de recorrer a formas
gerais não se impõe apenas para associar os seres humanos a grupos ou em
torno de causas. Ela se aplica igualmente, ainda que de forma despercebida,
à sustentação do mundo da indústria, cujos objetos técnicos devem operar
de forma satisfatória e se ajustar corretamente uns aos outros, apoiar-se em
recursos previamente estabelecidos de uma maneira adequada para inter-­
‑relacionar o local e o global.
Abordar a questão da eficiência do ponto de vista das exigências de
ajustamento nos levou a analisar os investimentos capazes de dotar os objetos
de alguma forma de generalidade. Esses investimentos de forma conferem a
eles capacidades e, assim, garantem a previsibilidade de seu comportamento
(Thévenot, 1986; Eymard-Duvernay, 1986). Eles permitem a esses objetos se
desenvolverem no espaço e no tempo, ao justificarem a comparação e a apro-
ximação entre seus funcionamentos em diferentes situações. A necessidade de
investimentos de forma é especialmente percebida no alvorecer de um grande

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94 A justificação

empreendimento, quando é necessário tomar as organizações produtivas,


estabilizá-las no tempo e avançar no espaço, sustentando-se em ferramentas
como medições, horários, normas, regulamentos, etc. Embora custosas, elas
contribuem, consequentemente, para a economia de questões permanentes
sobre as capacidades das coisas e sobre suas compatibilidades incertas.

A t e n s ão e n t r e d i v e r s a s f o r m a s d e g e n e r a l i da d e

Essas diferentes pesquisas permitiriam capturar, em um mesmo quadro


de questões sobre as operações de qualificação e generalização, tanto os casos
constituídos de causas para a reivindicação de justiça quanto os investimen-
tos capazes de garantir o ajustamento de recursos diversos sob uma forma
comum. Essa abordagem, baseada na comparação das exigências de justiça
entre os homens e dos imperativos de ajustamento entre as coisas, nos ofere-
ceria os meios para tratar, com as mesmas ferramentas conceituais, de objetos
aparentemente muito distintos. Ela nos levou, em um segundo momento, a
explorar a hipótese de uma pluralidade de formas de investimento e, portanto,
de formas de generalidade características desses objetos.
No estudo sobre o funcionamento de organizações e empresas, a atenção
conferida a recursos e dispositivos fundamentados em relações personaliza-
das – em uma proximidade entre as pessoas e entre as coisas, e na garantia
representada por ligações específicas para as relações duradouras – levou-nos
a enxergar de uma nova forma traços muito recorrentemente percebidos de
maneira negativa, como algo arcaico, como barreiras à expansão do mer-
cado ou ao desenvolvimento do progresso técnico. Essa atenção nos levou
a reconhecer o lugar ocupado por uma outra forma de generalidade, que
nomeamos “doméstica”, para distingui-la de uma forma “industrial”, ca-
racterizada pela padronização, pela estabilidade temporal no porvir* e pelo
anonimato dos seres funcionais. Ela, então, não se traduz em eficácia técnica;

* Embora no senso comum – e nas definições dicionarizadas – sejam sinônimos, os ter-


mos avenir (usado neste trecho do original) e futur são distintos dos pontos de vista
etimológico e conceitual, e especialmente nesta abordagem. O último termo, que traduzo
como futuro (e que curiosamente será menos recorrente), diz respeito – neste ambiente
conceitual – ao momento adiante no tempo, e, em certa medida, a um quadro marcado
por um estado de indeterminação; o primeiro termo, que será traduzido sempre como
porvir, aponta mais para um desenrolar consequente em relação à situação atual, um
quadro mais ligado às probabilidades, ao que é virtual, passível de ocorrer diante das
possibilidades imediatamente disponíveis – é aquilo que está por vir. (N. do T.)

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Prefácio 95

é, em vez disso, expressada em termos de confiança e baseada em tradições


e precedentes bem estabelecidos. Os recursos domésticos são mobilizados em
uma forma de gestão de pessoal que valoriza a experiência específica adqui-
rida por antiguidade na casa; nisso se diferencia de uma ordem mercantil, na
qual os seres devem ser móveis, sem amarras e sem passado, o que permite
aos economistas falarem de um mercado interno para designar esses procedi-
mentos de administração. Mas o interesse em uma análise sistemática de uma
forma de generalidade repousa em se apreenderem em um mesmo quadro os
diversos elementos do funcionamento de uma organização e em demonstrar
que uma mesma economia de formas domésticas permite que se extraiam
dela suas regras de administração da mão de obra, seus tipos de relações com
fornecedores ou clientes fidelizados, seus vários modos de savoir-faire, seus
equipamentos específicos e seus modelos de aprendizagem (Thévenot, 1989a).
E a referência a uma forma de generalidade conduziria, por outro lado, a
relacionar uma maneira de lidar com as pessoas em geral e uma maneira de
lidar com as coisas em geral. Ao chamar a atenção para a congruência entre
a qualificação das pessoas e a dos objetos, essa abordagem permitiria vincu-
lar questões muitas vezes abordadas em diferentes perspectivas e disciplinas,
respectivamente especializadas no estudo das relações sociais ou contratos, de
um lado, e dos imperativos e constrangimentos tecnológicos ou da qualidade
dos produtos, de outro (Eymard-Duvernay, 1989a).
Mas essa abertura a formas alternativas de generalidade também fez
se explicitarem as tensões críticas resultantes do confronto entre várias ma-
neiras de estabelecer equivalência entre os seres e, portanto, de promover a
generalização. E uma vez que a crítica aos anacronismos da tradição consti-
tui apenas uma das expressões comuns dessas tensões, tornou-se necessário
tratar simetricamente cada forma de generalidade se quiséssemos dar conta
de todas as tensões críticas, com cada uma dessas formas a servir de base
para uma desvalorização crítica da outra. Essa abordagem simétrica se impõe
particularmente na análise de organizações que se pode chamar de complexas
em virtude de seu funcionamento obedecer a imperativos referidos a diferen-
tes modelos de generalidade, cuja confrontação causa inquietações e suscita
compromissos mais ou menos precários. Essa análise levou especialmente a
se lançar luz sobre as tensões internas no cerne do objeto da economia. Os
dispositivos da ordem mercantil não são propícios à integração de uma pers-
pectiva temporal, enquanto dispositivos industriais suportam a possibilidade
de uma projeção sobre o porvir e um deslocamento espacial, e os dispositivos

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96 A justificação

domésticos permitem estabelecer ligações com o passado e o enraizamento


local de recursos específicos.
Esse objetivo de simetrização envolveu decisões metodológicas que
orientaram tanto as observações de campo quanto a maneira como foram
esboçados os modelos voltados para a revelação da coerência das observações
coletadas. Com efeito, ficou evidente que os imperativos e/ou constrangi-
mentos associados a esses diferentes modos de generalização eram exercidos
não apenas sobre as práticas de justificação dos atores, mas também sobre
diferentes modos de conhecimento do mundo social. Assim, a frequência
estatística não é capaz de produzir provas senão a partir de cálculos a res-
peito de objetos previamente padronizados, determinados por uma forma de
generalidade industrial (Thévenot, 1987, 1991). Por outro lado, a produção
de conhecimento por meio de exemplos, muitas vezes em operação na pes-
quisa monográfica, recolhe na memória experiências passadas cuja validação
repousa no testemunho de pessoas respeitáveis; portanto, baseia-se em uma
forma de generalidade doméstica.
As pesquisas sobre a justiça, por sua vez, lançaram luz sobre uma outra
forma de generalidade, que se pode chamar de cívica, no sentido de que subs-
titui o mundo das relações pessoais por um mundo no qual todas as relações,
para serem legítimas, devem ser mediadas pela referência a seres coletivos
garantidores do interesse geral, como associações, instituições democráticas,
etc. Essas análises dão, ao mesmo tempo, ênfase a uma outra tensão, toman-
do as relações pessoais, nas quais as pessoas se envolvem diretamente, e as
opondo a relações que podemos chamar de dessingularizadas, no sentido de
que os atores devem, para agir de maneira aceitável, estar presentes apenas
na forma das relações que os associem às coletividades. Eles se despojam
de seus nomes e de seus corpos próprios para investir-se dos qualificativos
que marcam sua participação em instituições ou grupos, como o faz, por
exemplo, um porta­‑voz, ao assinar o documento com o título que ganhou
com sua eleição como presidente de uma organização. Ao mesmo tempo,
podemos passar a compreender outros pontos de apoio para críticas. É com
base nessas formas cívicas que as pessoas envolvidas em determinados casos
denunciam os escândalos que lhes provocam indignação. A análise desses
casos considerados escandalosos mostrou que essas críticas sempre podem
ser reduzidas, esquematicamente, a um desvelamento de relações pessoais e,
consequentemente, de interesses que, do ponto de vista cívico, podem ser
apresentados apenas como egoístas e que uniriam nos bastidores pessoas

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Prefácio 97

aparentemente orientadas pela busca do bem público (por exemplo, juízes


e defensores, prefeitos e empreendedores imobiliários, etc.). No entanto, são
essas mesmas relações pessoais a fonte de confiança e lealdade e sobre as
quais, portanto, não há nada a ser apontado de errado, desde que os atores
estejam todos imersos em um mundo doméstico. Mas ficou igualmente evi-
dente que a tensão entre o doméstico e o cívico não dizia respeito apenas
às pessoas. Ela não causava um desconforto menor quando objetos próprios
de uma forma doméstica e os próprios de uma forma cívica se encontravam
envolvidos em um dispositivo compósito, como ocorre quando uma vítima,
decidida a fazer reconhecer publicamente o dano do qual se queixa, mescla,
na narrativa de seu caso, entidades de natureza cívica com objetos familiares
ou detalhes mais intimistas ou mesmo íntimos sobre seu próprio corpo.

A at e n ção à s o p e r aç õ e s c r í t i ca s

Para descrever cada uma dessas ordens de generalidade – doméstica,


industrial ou cívica – e as críticas cruzadas apresentadas pelos atores às ações
orientadas por um ou outro desses dispositivos baseando-se em um dispositi-
vo de outra natureza, tivemos que nos manter especialmente atentos a nossa
linguagem de descrição. Seria necessário evitar a importação de referências a
formas de generalidade estranhas a cada uma, o que teria o efeito de trans-
formar, como ocorre com frequência nas ciências sociais, uma constatação
em uma crítica. E essa exigência não é apenas o resultado de um parti pris
metodológico, ainda menos de um parti pris ético. Ela repousa na constatação
de uma relação entre os princípios de explicação em uso nas ciências sociais
e os princípios de interpretação colocados em prática pelos atores tomados
pelas ciências sociais como objeto, insistindo em uma ruptura que separa ob-
servador e observado. Assim, a fim de ilustrar as dificuldades daí resultantes,
tomemos o exemplo de uma noção bastante utilizada nas ciências sociais para
atribuir motivos aos atores: a busca de visibilidade e acúmulo de poder aos
olhos dos outros, como quando se fala em autoridade científica na sociologia
da ciência. Ora, o recurso a essa noção aparentemente neutra introduz, na
linguagem descritiva, uma forma de construção de generalidade e, com ela,
uma forma de se sustentarem as justificações e as críticas que não é estranha
aos próprios atores, pois eles, em suas disputas, não hesitam em lançar mão
da notoriedade para fundamentar suas pretensões, como se vê, por exemplo,
quando reivindicações são sustentadas em uma petição contendo nomes de

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98 A justificação

personalidades famosas. É essa mesma forma de generalidade que está em


jogo quando os atores estigmatizam a busca por reconhecimento na revelação
crítica de um motivo oculto, como ocorre quando a participação em uma
petição é denunciada como busca egoísta de publicidade ou, mais geralmente,
quando se critica a tirania da opinião pública. Igualmente, a introdução, na
linguagem descritiva, de termos como “interesse” e ainda “oferta” e “pro-
cura”, que se supõe serem encontrados em um mercado, levanta problemas
semelhantes ao trazer para a descrição a ordem de generalidade mercantil.
Essa reflexão sobre a simetria entre, de um lado, as linguagens de
descrição ou os princípios explicativos mobilizados pelas ciências sociais e,
de outro, os modos de justificação ou crítica utilizados pelos atores nos fez
prestar especial atenção às tensões presentes na própria sociologia quando
ela pretende conciliar uma concepção positivista de neutralidade científica e
uma exigência de crítica social. Com isso, a sociologia crítica se depara com
a impossibilidade de captar as dimensões necessariamente normativas que
servem de suporte a sua própria contribuição para a denúncia das injustiças
sociais, o que a leva necessariamente a insistir de forma abusiva na exterio-
ridade da ciência a fim de fundamentar a legitimidade de sua prática.
Assim, a referência aos interesses, que seriam revelados nas argumenta-
ções que lançam mão da ação desinteressada ou do bem comum e são trata-
dos como “racionalizações” – um dos recursos da sociologia quando ela tem
a pretensão de desmascarar as farsas ou as ideologias –, pode ser encontrada
nas operações cotidianas dos atores, quando estes buscam desvalorizar uma
forma de justificação para fazer valer outra. Mas, no caso das ciências sociais,
essa diferença fundamental exposta pelos pontos de apoio normativos nas
críticas feitas pelos atores entre si no decurso de seus litígios constitui-se em
um ponto cego, o que permite a elas se abster das demandas de justificação
que os atores comuns devem enfrentar.
A abordagem adotada nos fez, assim, ficar atentos à relação entre
as qualificações operadas pelo pesquisador e as promovidas pelos atores.
Uma vez que o pesquisador não possa mais sustentar a validade de suas
afirmações com base em uma exterioridade radical, o caráter definitivo da
descrição se torna problemático. É preciso, então, nessa descrição, manter-se
o mais próximo possível da forma como os próprios atores estabelecem a
prova na situação observada, o que levou à atribuição de extrema atenção
à diversidade das formas de justificação. Seguindo os atores, é-se levado a
explicitar uma maior variedade de tipos de justificação que apernas as formas

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Prefácio 99

cívica, doméstica, industrial e de opinião evocadas anteriormente. Conferir


o mesmo grau de atenção à pertinência dos objetos introduzidos em uma
demonstração, especialmente quando desenvolvida no decurso de uma con-
trovérsia, permite reconhecer a generalidade das expressões singulares ou
íntimas muitas vezes descritas em termos de entusiasmo ou inspiração. Esses
modos de expressão, orientados para a autenticidade, pareciam libertos das
exigências de generalidade das quais encontramos vários detalhamentos. No
entanto, uma análise mais cuidadosa nos levou a distinguir uma forma de
grandeza inspirada, permitindo, como as outras, associar os atores em um
acordo válido para todos.
O esforço para tratar simetricamente essas diferentes formas de genera-
lidade conduziria à construção de um quadro comum, no qual as exigências
da justiça entre os homens e as exigências de ajustamento com as coisas
pudessem ser tratadas com as mesmas ferramentas. O estabelecimento de
uma prova passível de ser aceita, quer se tratasse de uma prova no sentido
judicial ou de uma evidência científica ou técnica, pressupõe, com efeito,
ser possível se apoiar em recursos que já tenham sido objeto de generaliza-
ção. E por que não observar em um mesmo quadro a colocação à prova, a
comprovação, de uma demanda de justiça, do teste de eficiência técnica ou
da verificação científica? A prova orientada para o senso do justo e a prova
científica têm em comum se apoiarem não apenas em estados mentais, na
categoria das convicções ou crenças, mas também em dispositivos estáveis e,
assim, em objetos submetidos a uma avaliação geral. Essa perspectiva permite
contornar a partição entre o justo, cuja colocação no centro das atenções
seria orientada apenas por uma argumentação válida em termos de razão, e o
ajustado, cuja evidência gritante dependeria totalmente da adequação natural
ou instrumental entre as coisas.

G e n e r a l i da d e e bem comum: as grandezas


da f i l o s o f i a p o l í t i ca

As grandezas tornam-se particularmente evidentes nas situações de disputa,


como pode ser observado em muitas ocasiões da vida cotidiana. Esses momentos,
caracterizados por uma perturbação a respeito da avaliação das pessoas, são
propícios para a devida alocação dos modos de qualificação. Entretanto, as
disputas não conduzem a uma exposição sistemática que permitisse reconsti-
tuir os princípios de grandeza fundamentais da avaliação. Ora, é precisamente

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100 A justificação

a esses requisitos de sistematização e de reconstituição dos princípios que


devem satisfazer as filosofias políticas convocadas – a fim de se mostrarem
convincentes – para demonstrar o caráter bem fundamentado das definições
de bem comum associadas a essas grandezas. A confrontação de um conjunto
de construções da filosofia política pode, assim, se constituir em um meio de
colocar em perspectiva diferentes princípios para estabelecer um modelo de
como eles podem sustentar reivindicações de justiça.
A deriva pela filosofia política nos serviu, então, para avançar na com-
preensão das capacidades colocadas em operação pelos atores quando estes
têm que justificar suas ações ou suas críticas. Quando se presta atenção ao
desenrolar das disputas, vê-se que elas não estão limitadas nem a uma expres-
são direta de interesses nem a uma confrontação caótica e infinita de visões
de mundo heteróclitas competindo em um diálogo de surdos. O desenrolar
das disputas, uma vez que elas se afastem da violência, faz, em vez disso,
se manifestarem fortes imperativos de busca de argumentos fundamentados,
apoiados em evidências sólidas, manifestando assim esforços de convergên-
cia no coração mesmo da controvérsia. As construções da filosofia política
constituem instrumentos privilegiados para esclarecer esses imperativos e para
explicitar mais completamente fundamentos que normalmente permanecem
implícitos na trilha dos argumentos trocados no calor do momento.
Resulta, então, que as seções destinadas às análises dos textos canônicos
da filosofia política não devem ser lidas por si próprias, independentemente da
construção de seu quadro. Se fosse esse o caso, nosso empreendimento seria
verdadeiramente presunçoso, e uma vida inteira não seria suficiente para traçar
um paralelo entre as obras aqui tomadas como contribuição para o estabe-
lecimento do modelo da cité e para compilar os comentários dos quais ela
é objeto. Como se compreenderá melhor em seguida, nenhum desses textos
foi tratado em ou por si mesmo, nem em termos de uma história da qual
seja oriundo. Em vez disso, eles foram tratados como obras de gramática
dos vínculos políticos. Essa abordagem objetivava submeter esse conjunto
de textos estudados a uma mesma interrogação, como quando se codifica
um corpus de pesquisa.
Essa utilização da filosofia política levou-nos a deixar de lado os siste-
mas que, com um objetivo realista ou crítico, interpretam todas as relações
sociais com base na dominação ou na força, em favor de construções ligadas
ao estabelecimento do equilíbrio sob uma mesma ordem, que guardam em
comum a característica de desenharem um mundo em que os seres humanos

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Prefácio 101

são claramente distinguidos de outros seres, ao mesmo tempo que são apro-
ximados por uma igualdade fundamental. Essas filosofias políticas podem,
assim, ser definidas por sua orientação voltada para a construção de uma
humanidade comum. É isso que permite, antes de tudo, aproximar dife-
rentes conjuntos teóricos, mobilizando os princípios de ordem legítima por
eles delimitados: a inspiração em A Cidade de Deus, de Santo Agostinho; o
princípio doméstico na Política, de Bossuet; os sinais de glória e o crédito
da opinião no Leviatã, de Hobbes; a vontade geral no Contrato social, de
Rousseau; as riquezas segundo Adam Smith em A riqueza das nações; ou a
eficiência industrial em O sistema industrial, de Saint-Simon. Procuramos,
portanto, mostrar que mesmo uma filosofia política que deu corpo ao indi-
vidualismo, desenhando uma ordem assentada em transações mercantis, pode
estar reportada a um modelo de bem comum. Isso é mais bem percebido
na construção de Adam Smith que na ciência econômica a ela subsequente,
especialmente porque Smith explicita, em sua Teoria dos sentimentos morais,
uma antropologia própria às capacidades humanas em um mundo mercantil.
Mas o interesse nessa comparação não repousa apenas em tornar ex-
plícita uma recorrente referência a uma humanidade comum. Ele também
se encontra em demonstrar como cada uma dessas filosofias propõe um
diferente princípio de ordem que permite detalhar do que é feita a grandeza
dos grandes e, assim, fundamentar um ordenamento justificável entre pessoas.
É nesses ordenamentos que as pessoas se apoiam quando precisam justificar
suas ações ou sustentar suas críticas. Evidentemente, isso não significa que os
membros comuns de nossas sociedades tenham lido, textualmente, as obras
em que nos inspiramos para construir modelos da competência colocada em
ação nas disputas. Entretanto, as ordens formalizadas nessas filosofias polí-
ticas estão, elas também, inscritas nos dispositivos de objetos que compõem
as situações da vida cotidiana.

A bu s ca d e u m m o d e l o c o m u m

O vaivém entre construções clássicas da filosofia política e justificações


operadas por atores sociais em situações de disputa permitiu construir um
laço sólido entre a filosofia política e a sociologia. Dessa forma, seria possível
contornar uma oposição muitas vezes polêmica entre essas duas disciplinas,
entre um olhar transcendental orientado para a enunciação de princípios e
a atenção às disparidades frequentemente acusada de relativismo, que vai ao

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102 A justificação

encontro de uma oposição mais geral – também vista a operar nos debates
entre direito e ciências sociais – entre a referência a regras e a referência
a práticas. A atenção às diferenças nas expressões de um senso de justiça
é mantida em nosso trabalho pelo reconhecimento de uma pluralidade de
formas de generalidade, que são, cada uma delas, formas de grandeza dispo-
níveis para justificar a ação. Esse pluralismo aproxima nossa posição daquela
desenvolvida por Michael Walzer (1983)* e, como em Esferas da justiça,
conduziu-nos a um interesse em uma teoria do justo que levasse em conta a
diversidade das formas de especificar o bem comum. Esse caminho nos leva
a travar contato com o sentimento de injustiça provocado pela confusão
entre diferentes ordens de justiça e notadamente pela disseminação de uma
justificativa mercantil para além de seus limites de pertinência.
Mas nosso esforço objetiva superar os problemas do relativismo cultural,
que implica necessariamente uma abertura para a diversidade. Para isso, é
preciso se engajar mais profundamente na análise da sensação de injustiça
que afeta os atores quando determinadas formas de justificação invadem ou
mesmo se apossam de situações nas quais elas não sejam pertinentes. Para
entender a capacidade dos atores de criticar, é preciso dotá-los também da
capacidade de passar de uma forma de justificação para outra, mas manten-
do as mesmas exigências. São essas exigências comuns a todas as ordens de
grandeza identificadas que procuramos explicitar e cuja integração em um
modelo de cité tentamos demonstrar. Esse modelo pode ser enxergado tanto
como uma teoria da justiça compatível com várias construções da filosofia
política quanto como uma capacidade cuja existência é preciso supor para
dar conta da maneira como membros de uma sociedade complexa efetivam
críticas, colocam situações em questão, disputam entre si ou convergem na
direção de um acordo. E uma das maneiras de verificar a validade desse
modelo é demonstrar que ele também diz respeito às dificuldades de se fun-
damentarem argumentos em valores ilegítimos, no sentido de que estes não
sejam compatíveis com esses princípios gerais de justificação, como pode ser
visto no caso da eugenia.
O modelo da cité vai ao encontro de certas exigências enunciadas por
John Rawls (1972) para justificar as desigualdades entre os estados de pessoas,

* Todas as referências a obras – anos e paginações – seguem o original de De la justi-


fication, mesmo quando os títulos forem citados no corpo do texto e estiverem aqui
traduzidos para o português, no caso de contarem com edição brasileira ou lusitana.
(N. do T.)

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Prefácio 103

especialmente os benefícios que devem ser atribuídos aos pequenos e que


aqui correspondem à ideia de bem comum, e a abertura dos estados a todos
os membros, que se igualam no fato de que os status desiguais devem estar
livremente disponíveis a todos. Mas, no modelo aqui apresentado, que tem
entre seus objetivos integrar a filosofia política e a pragmática do julgamento,
a distinção entre os estados das pessoas e as pessoas em si ocupa um lugar
central, assim como a operação pela qual se atribuem esses estados e se faz
um julgamento em situação. É, ao se concentrar no momento de atribuição de
estados a pessoas, que se pode passar de um princípio formal de abertura
democrática à incerteza do momento crítico. A análise desse momento trata
da maneira segundo a qual a incerteza é dissolvida em uma operação de
comprovação que, para ser aceitável, deve ao mesmo tempo dar conta das
circunstâncias da situação e ser justificável em toda generalidade. A interdi-
ção – central para o modelo – de um atrelamento permanente entre estados
de grandeza e pessoas conduz a uma preocupação quanto à atribuição de
estados de grandeza e a um recorrente questionamento de sua distribuição.
Essa preocupação não está explicitada na filosofia política e nos levou
a conferir especial atenção às condições pragmáticas de atribuição de gran-
deza, a deixar o espaço dos fundamentos e princípios próprio da filosofia
política para ingressar no espaço da ação. É nesse ponto que nos deparamos
com a questão dos objetos e das relações entre os seres humanos e as coisas.
A análise do questionamento das grandezas em uma situação a partir das
ações nela em curso faz surgir, com efeito, o lugar dos objetos que devem
ser mobilizados para que o processo de comprovação tenha um caráter de
realidade. A atenção dispensada às ligações entre as razões e os objetos
mobilizados em seu apoio, entre os modelos de justiça e a pragmática,
permite que o ônus da coordenação das condutas não pese exclusivamente
sobre crenças ou representações unificadas nem sobre sistemas ou leis que
coloquem todas as potencialidades de ordem no plano da regularidade das
coisas, conforme uma oposição recorrente nas ciências sociais entre cultura e
sociedade, representação e morfologia ou, conforme a síntese habermasiana,
entre comunicação e sistema.

A r e l ação s o c i a l p o s ta à p rova p e l a s c o i s a s

Essa abordagem nos levou, assim, a nos afastarmos de alguns dos pressu-
postos mais habituais da sociologia, observados especialmente na forma como
ela trata as crenças, os valores e as representações e, de forma secundária,

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104 A justificação

no destino conferido por ela aos objetos. As formas de generalidade e as


grandezas, cuja economia este livro desvenda, não estão, com efeito, ligadas
a coletividades, mas a situações, o que nos leva a romper com um conjunto
de ferramentas científicas solidamente instalado nas noções de cultura e de
grupo social. As pessoas que observamos em seus processos de comprovação
são obrigadas a se mover de um modo de ajuste para outro, de um valor
para outro, em função da situação em que se envolvem. Essa plasticidade faz
parte da definição de normalidade, como evidenciado pelo número de acusa-
ções de patologia e particularmente de paranoia a estigmatizarem a resistência
aos ajustamentos exigidos pela transição entre diferentes situações. Quanto aos
objetos, buscamos reconhecer o lugar que lhes cabe nos imperativos e cons-
trangimentos do julgamento realista, recusando-nos a ver apenas os suportes
arbitrários concedidos aos investimentos simbólicos de pessoas, para as quais
eles não representam nada além de um meio de expressar seu pertencimento
a grupos ou, o que nessa lógica significa o mesmo, para tornar manifesta
sua distinção. Apesar disso, não nos alinhamos a uma forma de realismo que
se encontra particularmente desenvolvida na economia e que enxergaria nos
objetos – definidos seja por sua capacidade de serem trocados e de corres-
ponderem naturalmente a um preço, seja por sua capacidade funcional de
serem eficazes – o único poder ordenador a se impor às pessoas. Preferindo
não optar nem pela fetichização realista nem pela desconstrução simbolista,
buscamos mostrar como as pessoas fazem ante a incerteza ao se apoiarem
em objetos para construir ordens e, por outro lado, ao consolidar os objetos,
associando-os a ordens construídas. Assim sendo, nosso empreendimento ob-
jetiva um realismo dinâmico, no sentido de que tornaria explícito o trabalho
de construção sem, no entanto, reduzir a realidade a um puro acordo sobre
significados, instável e localizado. Essa orientação teórica, que pressupõe
capturar a ação em sua relação com a incerteza, tem como consequência, no
nível do método de observação, a centralização da pesquisa nos momentos
de questionamento e crítica, que constituem as cenas principais abordadas
neste livro. Além disso, a escolha por priorizar esses momentos parece algo
particularmente adequado para o estudo de uma sociedade na qual a crítica
ocupa um lugar central e constitui um dos principais instrumentos de que os
atores dispõem para colocar à prova e comprovar a relação entre o particular
e o geral, entre o local e o global.
Para colocar em operação os mundos de objetos sobre os quais se apoia a
realização das comprovações de grandeza, utilizamos manuais comportamentais

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Prefácio 105

destinados a empresas (a fim de ter em mãos uma amostragem de situações


semelhantes correspondentes às diferentes formas de generalidade) e em-
preendemos a operação altamente desrespeitosa de colocar essas modestas
coleções de dicas, notadamente perecíveis, em paralelo com as obras imortais
da filosofia política. Resultou que a comparação dessas razões práticas não se
limitou à esfera econômica e, como veremos a partir da leitura dos repertórios
delas extraídos, elas dizem respeito enormemente às atividades cotidianas em
áreas de naturezas muito diferentes.
Finalmente, uma vez que não têm a intenção de alimentar o espaço de
debate sobre o justo, como as filosofias políticas que analisamos, e sim de orien-
tar a ação, demonstrando, portanto, uma preocupação realista, esses manuais
devem enfrentar o problema prático de se moverem entre diferentes mundos.
Eles permitem, assim, identificar operações de compromisso projetadas para
acomodar diferentes formas de generalidade, ao apontarem para possíveis
maneiras de ultrapassar suas contradições, o que permite refrear a disputa
sem o risco de intensificação descontrolada das críticas.
Essa abordagem, a partir dos manuais destinados a empresas, pode pa-
recer enviesada e limitada para o objeto de nossa pesquisa, que se estende a
todo o conjunto de justificações e não apenas às relacionadas à vida econômi-
ca. No entanto, esse primeiro mapeamento, destinado antes de tudo a oferecer
as ferramentas para o processamento das informações coletadas, revelou-se
mais robusto que se poderia pensar em um primeiro momento. Se, por um
lado, as numerosas pesquisas de campo que utilizavam o quadro analítico das
economias da grandeza permitiram estender a lista dos seres envolvidos em
ações justificáveis, por outro, não levaram ao questionamento dos núcleos de
cada mundo extraído dos manuais, ou seja, sua forma própria de coerência
e os seres mais adequados a fazê-la valer. A capacidade, demonstrada pelos
quadros dos distintos mundos – como os encontraremos delineados aqui –, de
permanecer sem deformação quando se faz um deslocamento por diferentes
campos de pesquisa é uma evidência empírica do caráter generalizável da
matriz derivada de um corpus limitado e especializado.
A acumulação desses trabalhos de campo abre o caminho para uma
nova e sistemática abordagem das organizações, tratadas, assim, não como
entidades unificadas caracterizadas por esferas de atividade, por sistemas
de atores ou por campos, mas como montagens compósitas, comportando
dispositivos próprios de diferentes mundos (Boltanski; Thévenot, 1989). Essa
abordagem sistemática permite comparar, em um mesmo quadro, e acumular,

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106 A justificação

em um registro, que não utilize exclusivamente a linguagem da concorrência e


da eficiência técnica, observações sobre organizações enormemente distintas –
como empresas dos setores industrial ou de serviços, unidades da federação,
entidades da administração pública ou ainda estabelecimentos educacionais e
dispositivos culturais ou de inovação. E a diversidade não se projeta apenas
sobre as diferenças na atividade ou meio; ela é encontrada no cerne mes-
mo de cada entidade. Nenhuma organização, por mais industrial que seja,
pode sobreviver se não tolerar situações de outra natureza. É precisamente
a pluralidade de dispositivos orientados segundo diferentes mundos que dá
conta das tensões por meio das quais essas organizações são desenvolvidas.
A mesma abordagem nos levou a dar atenção não apenas às críticas, mas
também aos dispositivos de compromisso que permitam manter juntos os
seres cuja justificação pressupõe a ascensão em generalidade em mundos di-
ferentes. Uma das vantagens desse método é tornar possível uma comparação
entre esses diferentes dispositivos de compromisso apresentados por diferentes
organizações e, com isso, respeitar a singularidade de configurações locais ao
mesmo tempo que se enriquece o quadro geral.

A l i n h a m e s t r a d o a r g u m e n to

O argumento é desenvolvido da seguinte forma. O primeiro capítulo é


dedicado à análise de algumas das respostas clássicas das ciências sociais para
a questão do acordo. A partir da controvérsia entre a sociologia durkheimiana
e a economia liberal, demostraremos como, para além de suas diferenças, es-
sas duas concepções opostas fundamentam o acordo na relação entre pessoas
específicas e uma forma de generalidade, que nomeamos princípio superior
comum. Essa construção em dois níveis forma o quadro de uma metafísica po-
lítica. Essa constatação não é crítica, pois uma estrutura como essa permite às
ciências humanas se adequarem a seu objeto – pessoas cujo acordo pressupõe
a referência a um princípio para além delas – e procederem a generalizações
legítimas. O capítulo II é dedicado a uma primeira análise dessa metafísica
política, na filosofia política mercantil.
O capítulo III trata dos imperativos e constrangimentos a pesarem
sobre a constituição de formas de acordo que visem à generalidade. Essas
análises são fundamentadas em obras clássicas da filosofia política, tratadas
como trabalhos de gramática dos laços políticos, e conduzem à construção
de um modelo de ordem legítima na cité. O modelo da cité torna explícitas

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Prefácio 107

as exigências a serem satisfeitas por um princípio superior comum a fim de


sustentar justificações. Ele permite esclarecer a distinção entre formas de bem
comum legítimas, que chamamos de grandezas, e outros valores ilegítimos
(como o valor eugênico). Esse enquadramento é tratado como um modelo de
competência, com o qual poderão ser confrontadas as capacidades práticas
colocadas em uso pelas pessoas, uma vez que elas tenham que justificar seus
julgamentos em resposta a críticas. O capítulo IV, por sua vez, é dedicado
à análise das filosofias políticas escolhidas, porque as expressões do bem
comum em que se baseiam estão presentes atualmente em nossa vida social.
No capítulo V, analisamos a mobilização dos princípios de ordem,
depreendidos anteriormente, nos momentos de comprovação que permitam
assentar um acordo a respeito da distribuição dos estados de grandeza entre
as pessoas. No modelo da cité, os estados de grandeza não podem ser atrela-
dos às pessoas de maneira fixa. O entendimento deve ser feito na prática, nas
comprovações de realidade envolvendo objetos por meio dos quais as pessoas
se avaliam e determinam suas grandezas relativas. Cada um dos conjuntos de
objetos associados às diferentes ordens é um mundo coerente. E a descrição
desses mundos é esboçada no capítulo VI, a partir da análise de manuais e
guias destinados a ensinar como se comportar com discernimento em situa-
ções regidas por cada forma de bem comum que descrevemos.
O capítulo VII trata da relação entre os diferentes mundos, estudada por
meio da observação de situações críticas em que seres de diversas naturezas
são simultaneamente valorados/valorizados. Analisamos o sentimento de in-
justiça decorrente da corrupção do processo de comprovação pelo transporte
de grandeza, e as críticas nas quais a discordância diz respeito não apenas ao
resultado dessa comprovação, mas também ao princípio que deve orientar sua
realização. A controvérsia pode ser desembaraçada pelo recurso a uma nova
comprovação, seja no mundo original, seja, por uma revisão da situação, no
mundo tornado presente por uma revelação. O capítulo VIII é dedicado ao
desenvolvimento das críticas trazidas à tona nos manuais já utilizados para
apresentar os diferentes mundos a serviço da prova.
No capítulo IX, examinamos situações compostas, que comportam seres
próprios de vários mundos, e nas quais as controvérsias são resolvidas por
meio de um compromisso, evitando-se recorrer a um processo de comprova-
ção. Demonstramos como o compromisso deve, para ser aceitável, se basear
em um horizonte de bem comum de um nível superior aos bens comuns
que propõe aproximar. Mas esse bem comum permanece não especificado,

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108 A justificação

até porque não é explicitado e fundamentado em uma cité – o que torna


o compromisso algo frágil: pode-se sempre, em nome de um dos princípios
em composição, denunciar o compromisso como um comprometimento in-
teresseiro. Por outro lado, os compromissos são menos frágeis quando têm
seu caminho pavimentado por seu enraizamento em dispositivos. A análise
de como um compromisso é traçado oferece uma descrição geral de como
se podem desenvolver novas cités. No capítulo X, desenvolvemos, como fei-
to anteriormente para as críticas, as figuras de compromisso levantadas no
mesmo corpus. E, no último capítulo, observamos outras maneiras de levar
uma disputa a uma conclusão, colocando-se em suspenso o imperativo de
justificação. Assim, na relativização, as pessoas podem se abster do processo
de comprovação e escapar à controvérsia sobre o que importa na verdade
ao concordarem que nada importa. Essa figura nos leva a analisar a forma
como as ciências sociais operam a passagem da relativização, que apresenta
um caráter necessariamente instável, ao relativismo, que, recorrendo a ex-
plicações baseadas nas relações de força, trata a força como um equivalente
geral, sem referência ao bem comum. Ao fazê-lo, as ciências sociais privile-
giam uma forma entre muitas outras de representar a relação social. Em vez
disso, estamos preocupados em explorar a pluralidade de maneiras de se estar
com os outros, que tem na justificação um de seus regimes. A colocação em
ação desse regime é o assunto deste livro.

***

Esta publicação não teria êxito sem o envolvimento de muitas pessoas.


A obra de Bruno Latour (1983, 1988, 1989) e o trabalho de Michel
Callon (Callon; Latour, 1981; Callon; Law, 1989) nos oferecem, há muito,
uma contribuição das mais eficazes, na medida em que ela veio associada
a uma afiada leitura de nosso trabalho. De uma audácia estimulante, suas
pesquisas tiveram o grande mérito, por um lado, de demonstrar a associação
entre o tecido das relações sociais e a construção de objetos, e, por outro
lado, de também erguer uma ponte entre as ciências sociais modernas e a
filosofia política. Referimo-nos em particular a sua utilização da política de
Hobbes para ampliar e reelaborar algumas contribuições da etnometodologia.
A leitura de As paixões e os interesses, de Albert Hirschman (1977),
assim como suas observações e críticas sobre nossos primeiros trabalhos
sobre a identificação social, encorajou-nos pessoalmente, ao mesmo tempo
que sua obra constituiu para nós um excelente exemplo de questionamento

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Prefácio 109

erudito sobre a relação entre a filosofia política e moral e as ciências sociais,


em particular a economia.
O contato com os escritos de Louis Dumont (1966, 1977, 1983) tam-
bém marcou profundamente nosso trabalho. Neles encontramos uma reflexão
sobre a subordinação à totalidade que muito nos esclareceu, assim como uma
recolocação em debate da noção de ideologia, para cuja renovação da análise
o trabalho de Paul Ricœur (1969, 1979) também contribuiu enormemente,
aproximando-a da razão prática. Tiramos ainda grande proveito da obra
de François Furet (1978) sobre a Revolução Francesa e sua historiografia e
buscamos aproximar as construções políticas – para as quais ele contribuiu
para trazer de volta a atenção das ciências sociais – das condutas cotidianas
das pessoas que constituem propriamente o objeto da análise sociológica.
A construção do quadro aqui apresentado seguiu paralelamente à im-
plementação de um programa de pesquisa empírica realizado por uma rede
de pesquisadores reunidos em torno de nossos seminários na École des Hau-
tes Études en Sciences Sociales (EHESS) e ligados ao Grupo de Sociologia
Política e Moral (GSPM, EHESS-CNRS) e ao Centre d’Études de l’Emploi
(CEE), que contribuiu para o desenvolvimento de um programa de pesquisa
chamado Protée* (Boltanski; Thévenot, 1989), assim como para uma primei-
ra publicação do quadro das economias da grandeza (Boltanski; Thévenot,
1987), destinada a servir como ferramenta de trabalho para as pesquisas em
processo de construção e desenvolvimento. Essa rede muito deve a François
Eymard-Duvernay, Jean-Louis Derouet e Alain Desrosières. Seus trabalhos,
respectivamente em economia empresarial, sociologia da educação e história
das estatísticas, nos foram muito valiosos, e somos gratos a eles por terem a
paciência de acompanhar passo a passo nossa pesquisa e por nos oferecer sua
confiança em tempos difíceis, nos quais a aparente incongruência de algumas
de nossas pistas de pesquisa poderia desencorajar a alguns. E nossa gratidão
se direciona especialmente a Alain Desrosières, por sua generosidade, sua
bondade, seus comentários sempre relevantes e construtivos e por sua arte
de unir as pessoas. Sem ele, esta obra simplesmente não teria sido possível.

* Acrônimo de Programme de Recherche et d’Opérationalisation sur des Topiques de


l’Équité et de l’Equivalence [Programa de Pesquisa e de Operacionalização sobre os
Temas da Equidade e da Equivalência], coordenado pelos autores ao longo da segunda
metade dos anos 1980 no Centre d’Etudes de l’Emplois em torno dos temas centrais
das economias da grandeza. (N. do T.)

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110 A justificação

A possibilidade de apresentar e submeter à discussão os diferentes


estágios de elaboração do presente livro representou uma vantagem inesti-
mável. Muitos progressos foram obtidos em resposta a objeções feitas por
estudantes e pesquisadores, ou na análise de problemas por eles encontrados
nos trabalhos realizados por eles próprios, em particular no contexto de
sua qualificação* ou de sua tese. E nossa pesquisa pôde ainda se beneficiar
das contribuições de Pierre Boisard; Agnès Camus; Francis Chateauraynaud,
cujas observações afiadas animaram as discussões e estimularam nossa refle-
xão; Philippe Corcuff e sua preocupação com a síntese; Vinoli Delamourd;
Nicolas Dodier, que combinou um interesse competente a uma enorme dis-
ponibilidade; Francis Kramarz; Claudette Lafaye, cujas questões relacionadas
com sua experiência de campo exigiram que esclarecêssemos melhor nossa
construção; Marie-Thérèse Letablier; André Wissler, que procedeu a uma
revisão cuidadosa das hipóteses e de sua testagem empírica. E o trabalho de
secretaria assegurado por Danièle Burre e Annette Dubret permitiu o bom
funcionamento desse esforço de longo prazo.
Agradecemos também, por sua relevante leitura em várias fases de nosso
trabalho e pelos esclarecimentos que nos trouxeram com suas disciplinas, a
Monique Djokic; Olivier Favereau; Pierre Livet; Patrick Fridenson; Steven
Kaplan; Serge Moscovici; Jacques Revel; David Stark; e Heinz Wisman. E,
finalmente, escapamos aos muitas vezes dolorosos momentos que antecedem
a uma publicação graças à compreensão de Éric Vigne, que soube conciliar a
eficiência de um homem de negócios e a paixão de um editor inspirado.
Por fim, nossos pensamentos estão com Joëlle Affichard e Elisabeth
Claverie, que, ao longo da preparação deste livro, nos ofereceram o benefício
de suas observações pertinentes e seu apoio afetuoso, fazendo-nos, assim,
comprovar suas grandezas em diferentes mundos.

* No original, DEA, Diplôme d’Études Approfondies, obtido ao final do primeiro ano do


doutorado. No Brasil, embora haja muitas variações, a qualificação em geral é obtida
no terceiro ano do doutorado (e, em alguns cursos, no segundo do mestrado) e não
confere um diploma, mas o resultado dos dois processos é o mesmo: estabelecer o en-
caminhamento da pesquisa de tese por meio de um processo de avaliação. Assim, optei
por essa tradução, a fim de oferecer um entendimento direto aos leitores. (N. do T.)

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Primeira parte

O imperativo de justificação

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Capítulo 1

As ciências sociais

e a l e g i t i m i da d e d o ac o r d o

Este livro trata da relação entre acordo e discordância. Seu objetivo


principal é construir um quadro que permita analisar, com os mesmos ins-
trumentos teóricos e mobilizando os mesmos métodos, as operações críticas
empreendidas pelos atores quando desejam expressar seu desacordo sem re-
correr à violência e as operações por meio das quais eles chegam a construir,
manifestar e selar acordos mais ou menos duradouros.
A questão do acordo constitui um dos temas fundamentais que as ciên-
cias sociais herdaram da filosofia política e do qual se apropriaram por meio
de diferentes linguagens, como, por exemplo, a da ordem, a do equilíbrio, a da
norma ou a da cultura (Habermas, 1987). Mas seu estudo não deveria estar
dissociado da análise dos momentos de ruptura da ordem, tornados explícitos
pela crise, pelo desequilíbrio, pela crítica, pela disputa ou pelo questionamen-
to. Não é conveniente manter, por exemplo, uma oposição radical entre as
sociologias do consenso e as sociologias do conflito, apesar das divergências
entre as tradições das quais elas são herdeiras. Em vez disso, concentraremo-
nos em tratar o acordo e a crítica como momentos intimamente relacionados
de um mesmo curso de ação.
É prática corrente buscar reduzir a diversidade das construções nas ciên-
cias sociais inscrevendo-as em uma oposição fundamental. Em uma primeira
tradição, o ordenamento é obtido pelo recurso ao conceito de coletividade,
que orienta, por exemplo, a sociologia de inspiração durkheimiana. Em uma
segunda tradição, todo tipo de ordem ou equilíbrio é o resultado não inten-
cional de escolhas individuais, como se vê nas correntes que tomam empres-
tado da economia uma abordagem em termos de escolha racional. Quanto
a nós, proporemos uma perspectiva diferente da oferecida por essa oposição,
procurando mergulhar as diferentes construções em um modelo mais geral e
demonstrando como cada uma delas integra à sua maneira a relação entre
os momentos de acordo e os momentos de questionamento crítico.

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114 O imperativo de justificação

A oposição entre o coletivo e o individual é solidificada pela presença


de críticas cruzadas, numerosas e antigas, que muitas vezes colocam frente
a frente sociólogos e economistas. Assim, por exemplo, o sociólogo Ales-
sandro Pizzorno salienta que os pressupostos utilitaristas não são capazes
de dar conta da confiança dos eleitores, o que implica o acréscimo de um
fator explicativo específico, nesse caso a identificação com um partido, um
conceito desprovido de qualquer relevância conforme aqueles pressupostos
(Pizzorno, 1986, p. 34). A oposição entre as explicações pelo coletivo e as expli-
cações pelo individual, que não abrange apenas a fronteira entre essas disciplinas
e que pode se manifestar no interior mesmo de cada uma delas, soa tão radical
que atualmente a escolha metodológica fundamental do pesquisador não raro se
define por essa dicotomia.
Certamente é possível se contentar com esse antagonismo e conjugar
argumentos baseados na realidade objetiva dos fatos sociais (determinações
coletivas) com uma argumentação fundada em um cálculo considerado in-
dividual (estratégias pessoais), como quando se fala de estratégias coletivas.
As explicações próprias da ciência política, em especial, incitam acomoda-
ções semelhantes: é o caso de análises em termos de “negociação” (relação
interpessoal definida por referência a um modo mercantil) de interesses de
natureza “coletiva” (supondo, assim, a constituição de um interesse geral).
Mas as admoestações feitas à oposição apresentada ameaçam de ruptura
essas montagens explicativas, tornando explícitas suas contradições internas.
Nas ciências sociais, todo desenvolvimento deve necessariamente estar
inscrito nessa dicotomia? Como devemos lidar com o material empírico e com
os resultados obtidos pelas disciplinas que apelam respectivamente a um ou a
outro desses modos de explicação? Como podemos considerar aproximá-los e
resolver as contradições de uma forma diferente da insatisfatória justaposição
de referências comuns ao econômico e ao social, ao interesse individual e à
força do coletivo?

A c r í t i ca à fa lta d e r e a l i s m o da s o c i o l o g i a

Os defensores de uma explicação do comportamento humano com base


na escolha individual interpelam a outra orientação argumentando que seu
“holismo” é insustentável e que ela permanece marcada demais pela metafísi-
ca para satisfazer às exigências da ciência. Para eles, não se pode fundamen-
tar uma explicação na realidade objetiva de fatos pretensamente coletivos,

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As ciências sociais e a legitimidade do acordo 115

quando, muito diferentemente, a questão seria mostrar como esses mesmos


fatos podem resultar do comportamento dos únicos seres relevantes para a
análise, os indivíduos dotados de interesses. Assim, o tratamento conceitual
das pessoas como indivíduos seria mais apropriado que aquele que os torna
agentes, pois apresentaria esses indivíduos despidos de todas as camisas de
força normativas e capazes de se comportar ao sabor de seus apetites in-
dividuais. Essa argumentação, cristalizada na oposição entre disciplinas do
coletivo e disciplinas do individual, sugere que a sociologia não reconheceria
como objetos empíricos senão as pessoas em grupo, enquanto a economia,
mais realista, se dedicaria apenas a pessoas em particular.
A obra Scientism and the study of society [O cientificismo e o estudo
da sociedade], de Friedrich von Hayek, oferece uma formulação particular-
mente incisiva dessas críticas. O autor opõe ao “individualismo metodoló-
gico” uma “ótica cientificista [...], tratando como fatos as coletividades, que
não são nada mais que generalizações dos populares”* ou ainda, ele escreve
mais adiante, “vagas teorias dos populares” (Hayek, 1953, p. 52, 83). Para
desmontar o “prejulgamento totalista (coletivista)”, ele retoma os termos da
crítica direcionada à sociologia por Charles Langlois e Charles Seignobos
(1898, p. 187): “Tanto para a imaginação quanto para a observação direta,
eles (os atos coletivos) sempre se reduzem a uma soma de ações individuais.
O ‘fato social’, da forma como é reconhecido por alguns sociólogos, é uma
construção filosófica, não um fato histórico”.

O i n d i v i d ua l i s m o , u m a o u t r a m e ta f í s i ca s o c i a l

Nossa abordagem pretende explicitar os elementos de semelhança


ocultados na aparente irredutibilidade dessa oposição metodológica (particu-
larmente contrastante, uma vez que seja expressada por meio da antinomia
“individual”/“coletivo”). Para fazê-lo, foi necessário nos concentrar mais que
o habitual sobre as parcelas de ambos os modos de explicação deixadas no
escuro quando o processo de esclarecimento da relação entre eles as projetar
sobre aquela antinomia.

* Traduzido a partir da edição original em inglês (LSE, 1944). Nela, usam-se as expressões
“popular generalizations” e “popular theories”. Preferi traduzir “popular” dessa forma
para evitar um sentido que sugerisse popularidade, quando se trata, na verdade, do
caráter, por um lado, de senso comum e, por outro, de nível individual. (N. do T.)

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116 O imperativo de justificação

Antes de tudo, observemos que a explicação pelo social pode reconhecer


também os entes particulares, e é precisamente esse duplo imperativo/cons-
trangimento que explica o lugar atribuído à interiorização da determinação
coletiva, sob a forma de um quase inconsciente, no interior da pessoa em par-
ticular. Simetricamente, os indivíduos do economista, que entram em relação
em um mercado, não estão em um estado de particularidade, contrariamente
ao que o uso do termo “indivíduo” permite geralmente entender tanto sob
a pena dos economistas que reivindicam esse “individualismo” quanto sob a
dos sociólogos que o criticam, denunciando o caráter anômico das perigosas
relações comerciais das pessoas em competição (Durkheim, 1960a, p. II-VII).
Em vez disso, buscaremos mostrar que a construção de indivíduo da qual
dependem os economistas faz pesar sobre o ator exigências que o tornam
um ser moral. E não entendemos aqui “moral” no sentido limitado de uma
disposição benevolente, que viria a compensar um egoísmo interesseiro, como
em algumas abordagens do liberalismo. Procuramos mostrar que uma capa-
cidade moral está no cerne da construção de uma ordem de trocas mercantis
entre as pessoas, que precisam demonstrar uma capacidade de abstrair suas
particularidades para chegarem a um acordo sobre bens exteriores cujo elenco
e definição são gerais. O fato de os bens serem privados impede muitas vezes
de se perceber a hipótese de conhecimento comum que implica a universa-
lidade de sua definição. Essa convenção permite aos desejos de apropriação
competir e se ajustar, mas, na teoria econômica, ela geralmente permanece
implícita (naturalizada). Aqui será aproximada dos esforços empreendidos
por Adam Smith, a partir das noções de “simpatia” e de “espectador impar-
cial”, desenvolvidas na Teoria dos sentimentos morais, para definir as pessoas,
demonstrando e comprovando essa capacidade moral.
Uma vez que se revelem as pessoas que agem “sob ação” do coletivo
ou da convenção mercantil que pesa “sobre” os indivíduos, a oposição vai se
tornando turva, o que sugere não ser ela apropriada para dar conta das dife-
renças entre esses dois modelos. Eles não podem tratar de seu objeto comum,
as relações entre os homens, sem fazer uma dupla referência, por um lado, a
um estado particular desses homens e, por outro, a uma possibilidade de se
ir além das particularidades das pessoas e de se constituírem os fundamentos
de um acordo no que chamaremos de um princípio superior comum. Esse
princípio apresenta especificações bastante diversas conforme seja expressado
por uma vontade coletiva ou pela universalidade de bens mercantis. A ten-
são entre a mobilização de formas generalizadas e a referência a pessoas em
particular não é, então, a resultante da confrontação entre dois sistemas de

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As ciências sociais e a legitimidade do acordo 117

explicação; ela está no cerne de cada um desses sistemas. A construção em


dois níveis, o das pessoas particulares e o da generalidade superior, compõe
uma estrutura teórica comum a esses sistemas que os constitui como meta-
físicas políticas.

A r e d u ção d e m e ta f í s i ca s p o l í t i ca s a c i ê n c i a s s o c i a i s

Nossa abordagem, assim, objetiva expor os elementos de semelhança


ocultados sob a aparente irredutibilidade da oposição metodológica entre as
explicações de condutas “individuais” e as explicações de comportamentos
“coletivos”. Essa explicitação de elementos comuns em construções científicas
tão habitualmente colocadas em oposição nos ajudará a traçar os contornos
de um novo objeto para as ciências sociais, apropriado à reconciliação entre
as exigências de acordo e as condições de discordância.
Para fazê-lo, é preciso dedicar uma atenção ainda maior que a habitual
à estrutura de cada uma dessas construções metodológicas, cuja antinomia
oferece uma redução sumária e que as críticas de lado a lado mantêm na
obscuridade. No entanto, para simplificar esse exercício e para tornar nossa
abordagem mais compreensível, limitaremo-nos a duas das elaborações teóri-
cas das ciências sociais, sem pretender nem cobrir todas as disciplinas que elas
compreendem, nem mesmo tudo a que atualmente podem se referir os termos
“sociologia” ou “economia”. A escolha da sociologia dos fatos coletivos e da
economia de mercado se justifica pela coerência dos esquemas explicativos
no cerne dessas construções teóricas e pela variedade de combinações nas
quais esses esquemas podem ser integrados.
Antes de estabelecer as leis segundo as quais os seres humanos entram
em relação, quer eles se orquestrem em uma vontade coletiva quer negociem
seus desejos de apropriação sob um mercado, cada uma dessas disciplinas
se fundamenta em uma regra de acordo (a identidade coletiva ou o bem
mercantil), sob a referência a uma forma universal capaz de ultrapassar as
particularidades das pessoas. No entanto, a prospecção de metafísicas polí-
ticas subjacentes é tornada mais difícil em razão da ruptura com a filosofia
por meio da qual a economia e a sociologia são ambas constituídas como
disciplinas científicas. Queremos, no entanto, sugerir que ambas foram gera-
das a partir de filosofias políticas que lhe serviram de matrizes e nas quais
essas metafísicas estão expostas.
A análise desses processos de construção disciplinar e das rupturas que os
acompanham revelou uma idêntica transformação de um princípio superior

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118 O imperativo de justificação

comum normativo em uma lei científica positiva. E é à custa dessa operação


de rebatimento, característica do naturalismo das ciências sociais, que elas se
aproximam das ciências naturais, de uma física política. Mas esse rebatimento
altera profundamente o sentido da regra e da relação das próprias pessoas
com essa regra. Em uma filosofia política, a regra é uma convenção, um ponto
de apoio apropriado para garantir o acordo das vontades de pessoas conhece-
doras dessa mesma convenção. Veremos adiante de que maneira a elaboração
plena de uma filosofia política promove a justificativa dessa convenção. Na
física política, para cuja construção contribuem as ciências sociais, a regra é
uma lei científica que se aplica tanto a pessoas quanto a coisas. O acordo das
vontades sobre uma forma de generalidade não tem mais razão de ser. Ambos
os níveis das metafísicas políticas são projetados em um mesmo plano, no
qual os seres não se distinguem mais que pela maior ou menor conformidade
de seus comportamentos em relação a uma regularidade, conforme eles sigam
mais ou menos rigorosamente a lei científica.
Assim, na sociologia de Durkheim, o ser coletivo não é apenas um
ser moral (a não ser quando se considera Durkheim filósofo político, e não
sociólogo), e sim um objeto tão real quanto uma pessoa em particular e
mesmo mais “objetivo” que esta. O rebatimento desses dois níveis, o dos seres
morais coletivos e o das próprias pessoas, que implica a realidade sociológica de
fatos coletivos, é acompanhado por uma metamorfose de um princípio de acordo
(a vontade geral) em uma lei positiva que se aplica às pessoas. As dificuldades
teóricas resultantes são afastadas por meio de uma explicação que supõe uma
interiorização (mais ou menos consciente) nas pessoas, sob a forma de uma força
ou de uma determinação, daquilo que na filosofia política seria um princípio a
permitir a relação com os outros e o acordo das vontades.
O economista se crê capaz de desvelar a metafísica que sustenta a
construção do sociólogo e de colocar em questão suas pretensões científicas.
Ele duvida da realidade dos fatos coletivos que, para ele, são construções
humanas. E estas deveriam, como todas as instituições, ser explicadas pelos
interesses das pessoas – a única realidade que ele, o pensador da economia,
reconheceria. É esse argumento que se cristaliza na oposição entre disciplina
do coletivo e disciplina do individual, como se a sociologia reconhecesse como
objetos empíricos apenas as pessoas em um grupo, enquanto a economia,
mais realista, não desse atenção senão às pessoas em particular.
Entretanto, o economista fica confortável para denunciar a metafísica
social do sociólogo apenas porque ele ignora o princípio superior comum

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As ciências sociais e a legitimidade do acordo 119

igualmente encerrado nas leis positivas prospectadas por sua disciplina. Esse
princípio poderia ser procurado a partir da propriedade, compartilhada pelos
atores econômicos, de serem movidos por um interesse ou por necessidades.
Veremos ser indubitavelmente mais claro depreendê-lo a partir do bem mer-
cantil, que desempenha, nas leis da economia, um papel exatamente idêntico
ao do ente coletivo de Durkheim. Os indivíduos do economista, que entram
em relação em um mercado, não são indivíduos específicos, e sim seres mo-
rais capazes de ultrapassar suas particularidades e de firmarem um entendi-
mento sobre os bens identificados comumente e pelos quais seus desejos de
apropriação concorrem e chegam a um acordo. O bem mercantil, avaliado
de forma comum por um preço, representa a urdidura mesma da metafísica
política contida na economia.
Sublinhemos uma diferença significativa na forma como a redução de
dois níveis da metafísica é realizada por cada uma das explicações menciona-
das, diferença que pode explicar a perenidade da oposição coletivo/individual
como forma de lidar com sua relação. Como indicamos, o realismo sociológi-
co passa por uma internalização da realidade coletiva que lhe confere caracte-
rísticas de um inconsciente. Na economia, a redução é concretizada por meio
de uma diferenciação entre bens e pessoas. O fato de os bens serem privados
mascara o bem comum representado pela universalidade de sua definição.
Essa universalidade é a condição de um acordo em nome da concorrência e
abre a possibilidade de as pessoas superarem suas diferenças. No entanto, o
rebatimento desse bem comum e sua transformação em lei positiva não tem
lugar sem deixar vestígios no modelo proposto para o entendimento humano
e para a psicologia das próprias pessoas. Se não são clivadas por uma tensão
entre a internalização das representações coletivas e seus motivos pessoais,
elas, contudo, trazem em si os traços do bem comum mercantil, sob a forma
do interesse, ou seja, de uma capacidade de reconhecer seus bens privados
universais para além de qualquer espécie de impulso particular.

A qu e s tão d o ac o r d o

No cerne da argumentação de duas ciências sociais das quais se espera


que se oponham em todos os sentidos, podemos então reconhecer uma mes-
ma estrutura original (plano superior comum/plano particular), um mesmo
naturalismo que, quer se trate de uma explicação pelos fatos sociais quer
consista em uma com base no individualismo mercantil, baseia-se na mesma

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120 O imperativo de justificação

operação de transformação fundamental (de um princípio superior comum


em uma lei positiva). Essa evidenciação motivou o questionamento daquela
oposição e conduziu a duas conclusões sobre e a partir dessa infiltração de
uma construção metafísica em disciplinas concebidas por uma ruptura com uma
abordagem filosófica.
A primeira conclusão é positiva. Ela resulta da constatação de que cada
uma dessas explicações científicas demonstra a realidade de uma forma de
acordo possível entre as pessoas (pelo coletivo, pelo mercado). Certamente,
essas ciências sociais tratam esse acordo como uma lei positiva, científica,
que, independentemente da vontade das pessoas, rege universalmente suas
relações. Mas ocorre que essa forma de acordo corresponde a um princípio
geral já proposto previamente em uma filosofia política a fim de estabelecer
o bem comum e garantir a concórdia, harmonizando as vontades. Assim, os
fatos positivos oferecidos por cada uma dessas disciplinas – e não é o caso
de rejeitá-los – fornecem provas da eficiência desses princípios e sugerem
levá-los a sério uma vez que sejam invocados em justificações.
A segunda conclusão é negativa e vem a complicar o programa sugerido
pela primeira. Os princípios de acordo são pelo menos dois e, portanto, ne-
nhuma das duas disciplinas que os transformam em leis positivas pode tratar
da relação entre essas duas formas de lei. Essa incapacidade é particularmente
problemática no tratamento de objetos limítrofes, como, por exemplo, as
organizações. Esses objetos podem aparecer apenas como concessões de boa
vizinhança acordadas pelos advogados de cada uma das orientações: de um
lado, os atores econômicos em relações de troca em um mercado competiti-
vo; de outro, atores sociais submetidos a normas. Frágeis, essas concessões
podem ser denunciadas, a partir do momento em que um dos protagonistas
quebre o pacto, fazendo valer a universalidade de seu sistema explicativo dos
comportamentos humanos.
Nossa abordagem se inspira nessas conclusões. Como é possível que a
economia e a sociologia traduzam em lei positiva um princípio metafísico ao
mesmo tempo que estão ligadas a uma definição da realidade tão radicalmente
oposta a uma metafísica? Nossa resposta é que elas não podem lidar com
a relação entre os homens na sociedade, como é o seu projeto, sem levar
em conta as formas de acordo promovidas por esses homens. No entanto,
cada uma das disciplinas de que partimos trata esse acordo como uma lei
natural, de modo que seu processo de construção se torna, por isso mesmo,
de difícil apreensão. Essa construção é o objeto cujo estudo aqui propomos,

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As ciências sociais e a legitimidade do acordo 121

um estudo que pressupõe levar a sério as exigências de acordo e de resolu-


ção de controvérsias em geral. Deixamos de lado, então, provisoriamente, as
condutas não submetidas a esses requisitos e para as quais retornaremos no
final do caminho.

A a p rox i m ação e a s f o r m a s d e g e n e r a l i da d e

Nossa abordagem para a coordenação dos comportamentos humanos


nos leva a dar atenção à capacidade cognitiva para promover aproxima-
ções a respeito daquilo que importa, para identificar os seres destacados
das circunstâncias, para entrar em acordo sobre as formas de generalidade.
A aproximação se fundamenta em uma relação – podendo ser explicitada,
mesmo que por uma só palavra – com algo mais geral, comum aos objetos
aproximados. Ela se distingue, assim, da mera contiguidade espacial ou tem-
poral, ainda que o avizinhamento possa sustentar uma forma de similitude
(Foucault, 1966, p. 33). O fato é que as pessoas não estão sempre obrigadas
a explicitar suas aproximações e também não se encontram, a fortiori, obri-
gadas a fundamentar a generalidade de cada uma delas, e, com isso, temos
que lidar com a possibilidade de haver aproximações não fundamentadas.
Não estudaremos por si só a capacidade das pessoas de fazer apro-
ximações e não exploraremos o universo, aliás ilimitado, que compreende
o conjunto de sistemas de classificação, taxonomias, nomenclaturas, etc. já
implementado ou ainda a sê-lo. Entre a infinidade de possíveis aproximações,
daremos atenção somente àquelas que sejam não apenas comuns e, portanto,
comunicáveis, mas às que, além disso, sejam sustentadas por justificações.
A exigência sobre uma pessoa para operar aproximações comuns não se
impõe sempre com a mesma força. Mesmo nas situações orientadas para um
horizonte de justificação, os atores sociais podem contornar esse imperativo,
e – mostraremos – uma maneira de evitá-lo consiste em se voltar para as
circunstâncias – o que chamaremos relativizar. No entanto, uma vez que não
permanecem incessantemente imersas na relativização, as pessoas precisam
dispor de maneiras de entrar em acordo sobre suas aproximações.
Elas podem eventualmente se arranjar, apesar de uma controvérsia sobre
as aproximações, e transigir, ou seja, se entender por concessões de parte a
parte, localmente, momentaneamente, de maneira que a polêmica seja de-
sarmada sem, no entanto, ser resolvida por referência a uma forma comum
de aproximação. De um arranjo desse tipo se diria, por exemplo, que não é
completamente defensável “em termos lógicos”.

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122 O imperativo de justificação

Se as partes não chegam a um entendimento como esse, as aproximações


não podem ser entregues à livre decisão de vontade das pessoas presentes.
O tom se eleva, e passa também a um plano mais abstrato o nível em que se
busca o acordo e em relação ao qual as controvérsias são formuladas. Não se
trata mais de uma diferença entre, por exemplo, castanho e verde, nem mais
de uma concessão, na forma de um castanho esverdeado. Os protagonistas
demandam se entender sobre a classificação, da qual as cores em questão
são apenas classes em particular. Para fundamentar essas aproximações,
torna-se então necessário ser possível dispor de um princípio que determine
relações de equivalência. Essa escalada no nível em que se dá o acordo, que,
na forma classificatória, é uma escalada de níveis lógicos, poderia prosseguir
indefinidamente na busca de um princípio de acordo cada vez e sempre mais
abstrato, superior.
No entanto, em vez de uma regressão interminável como essa, observa-
remos que a disputa se encerra mais recorrentemente na convergência a um
princípio superior comum ou na confrontação de vários desses princípios.
E muito rapidamente, com efeito, surgirá uma pergunta do tipo: “Em nome de
quê é necessário atribuir uma cor?”. Da resposta a essa questão, que manifes-
ta a passagem de uma simples aproximação para um julgamento com vistas
à generalidade, se depreenderá a expressão do princípio capaz de justificar
as aproximações e a natureza da comprovação, a permitir o entendimento
sobre a adequação entre essa aproximação e as coisas particulares às quais
se refere. Para designar essas formas de aproximação, fala-se comumente
de uma definição técnica envolvendo uma medida padrão instrumentalizada
por aparatos científicos, de uma crença subjetiva influenciada pela opinião
comum, de uma utilização que prevalece ao se perpetuar uma tradição enrai-
zada, de um sentimento estético inefável, até mesmo de uma exigência ética
ou política (se se considerar, por exemplo, que a cor a ser avaliada sirva
como um emblema pátrio).
A busca por confrontar princípios de julgamento tão diversos não cessa-
rá de soar incongruente, considerando-se o tanto que eles parecem incomen-
suráveis e incompatíveis, o que torna manifesta a pluralidade de oposições
que os atravessa: material contra simbólico, positivo contra normativo, rea-
lidade contra valores, subjetivo contra objetivo, singular contra coletivo, etc.
Contudo, nosso empreendimento aqui aspira tratar em um mesmo quadro
analítico essas diferentes modalidades de identificação – “constrangimento/
imperativo técnico”, “argumento de ordem estética” ou “ponto de vista

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As ciências sociais e a legitimidade do acordo 123

moral”. Interessados nas aproximações capazes de produzir o acordo e de se


integrar nos julgamentos, argumentaremos que essas modalidades se remetem
a princípios de justiça (ou justeza [justesse], termo menos incongruente, uma
vez que se trata de uma forma técnica de justificação) que demandam a par-
ticipação dos outros. Tomaremos, então, a capacidade da justiça de encerrar
uma disputa (Lévy-Bruhl, 1964) como uma propriedade característica. Nessa
perspectiva, procuraremos relacionar com exigências comuns as aproxima-
ções normalmente distinguidas, quer estejam enraizadas nas peculiaridades
psíquicas da pessoa abordadas pela psicologia, quer mobilizem os interesses
coletivos estudados pela sociologia, quer encontrem sua pertinência em uma
ordem econômica ou política, quer ainda surjam de um julgamento técnico
fundamentado em uma ciência da natureza. Os desacordos observados serão,
assim, tanto discórdias entre pessoas apreendidas em suas relações singulares,
disputas pessoais sob o império das paixões, quanto conflitos coletivos e lutas
políticas ou ainda deficiências econômicas ou disfunções técnicas.
A perspectiva por nós visada é, em muitos aspectos, desconcertante.
É possível que se fique chocado com um atalho que promova o rebatimento de
uma operação cognitiva de aproximação sobre a fundamentação de um princípio
de justiça. Não haveria uma ruptura primordial entre o exercício de identificação
dos objetos a que se dedicam as pessoas e o estabelecimento de leis pesando sobre
elas e regrando seu entendimento mútuo? A renúncia a essa ruptura não traz
consigo uma regressão a um estado pré-científico do conhecimento, no qual
valores e fatos viriam a se confundir no seio de uma justa natureza? E essa
confusão providencial não conduziria necessariamente ao é-evidente de uma
ordem perene que exclui a questão do acordo e contradiz as observações
anteriores sobre a pluralidade de formas de entendimento?
No momento em que nos envolvemos mais profundamente na análise
dessas questões, notamos que, em muitos casos, as aproximações não são
submetidas a um imperativo de justificação, e sim consideradas fortuitas.
Diremos que se trata nesse caso de circunstâncias contingentes a abarcar, em
uma relação de contiguidade, coisas e pessoas que não importam. Imersos
nas circunstâncias, entregamo-nos ao particular sem buscar a equivalência
ou, por conta disso, sem precisar a importância das pessoas e das coisas.
Um transeunte no qual damos um esbarrão pode ser qualquer um, um juiz,
um homem célebre; se o encontro terminar nisso, pouco importará. As cir-
cunstâncias são sem importância porque os seres podem estar em contato
sem que sua verdadeira natureza esteja em questão. Seres passíveis de ser

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124 O imperativo de justificação

qualificados segundo modalidades incompatíveis se cruzam e se esbarram sem


se reconhecerem. Assim, por exemplo, em um parque arborizado, em uma
tarde de outono, pessoas que se desconhecem habitam um mesmo sobosque:
visitantes passeando, apaixonados, caçadores, micologistas, lenhadores, esco-
teiros, etc. Sua presença em uma mesma área é guiada pelas circunstâncias e
não produz qualquer situação com que tenham que lidar em comum. Reunir
seres estranhos entre si dessa maneira no campo de um olhar objetivante,
colocá-los em um mesmo palco, torná-los presentes em um mesmo espaço,
cada um a exercer sua atividade de acordo com sua própria natureza, é um
dos principais recursos da dramaturgia cômica e, especialmente, da comici-
dade do vaudeville. Mas, na vida real, na qual, diferentemente de no teatro,
a caixa cênica não está lá para circunscrever uma cena e a oferecer ao olhar
do espectador, a coexistência não constitui sempre uma situação. Os seres
que passam uns pelos outros não participam de um mesmo engajamento.
Mas se esse encontro se produzir por ocasião, por exemplo, de um acidente,
isso fará surgir a questão da justificação: a floresta pertence às pessoas que
por ela passeiam ou àqueles que trabalham utilitariamente para explorá-la?
Se a análise desse tipo de circunstância não é exatamente própria da nos-
sa pesquisa, na medida em que nenhum imperativo de acordo pesaria sobre
ela, é ainda assim verdade que a tentativa de a ela retornar, ao se suspender
uma controvérsia sobre a pertinência de uma aproximação, pode ser enten-
dida apenas em relação a um imperativo de justificação que essa tentativa
busque suspender. Retornaremos, no final deste trabalho, a essa operação
de relativização por meio da qual se busca permanecer nas circunstâncias,
afastando-se dos seres ou os ignorando; seres esses que, por sua importância,
conformam a situação como natural.

A o r d e m d o g e r a l e d o pa rt i c u l a r

Uma vez admitida a capacidade ou a propensão à aproximação que ser-


ve para as pessoas coordenarem seus comportamentos entre si, a generalidade
das formas de aproximação deixa de ser tomada como um dado evidente.
Para imaginar um mundo no qual essa generalidade seja alcançada, supo-
nhamos situações – que chamaremos de naturais – nas quais o acordo sobre
as aproximações seja estabelecido perfeitamente. Por exemplo, um executivo
de uma empresa promove uma visita de industriais estrangeiros à unidade
mais moderna da fábrica na qual ocupa uma posição de responsabilidade:

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As ciências sociais e a legitimidade do acordo 125

tudo funciona da melhor maneira possível, e cada ser que ele apresenta aos
visitantes se mostra como um exemplar típico de sua categoria em toda
sua generalidade. Os olhares passeiam por sobre objetos sem qualquer irre-
gularidade: nenhuma particularidade chama atenção. Tanto as palavras da
apresentação quanto o gabinete das novas máquinas refletem a série infinita
de coisas semelhantes que se reúnem sob um mesmo termo técnico. Não há
sequer operários e funcionários envolvidos em suas tarefas que não sejam
qualificados de acordo com a mesma forma de generalidade. O entendimento
dos visitantes e de seu anfitrião e guia a respeito da compreensão do que
têm diante dos olhos, isto é, sobre o funcionamento eficaz daquela unidade,
está assegurado. Se, ao final da visita, fossem a eles solicitados relatórios,
estes não necessariamente seriam todos iguais, mas sua confrontação não
resultaria em nenhuma contradição perturbadora: eles se complementariam
harmoniosamente.
Qualquer um reconhece a roupagem sacrossanta de um mundo edênico
no qual cenas como essa teriam lugar. Por exemplo, no decurso de uma longa
cerimônia que seguisse, ao pé da letra, uma etiqueta solidamente estabele-
cida. Mais esperto é aquele capaz de diferenciar entre a letra e a prática,
entre a narrativa e o que ocorreu. Contudo, nas sociedades que estudamos,
as situações naturais, nas quais tudo se encaixa, sem seres excepcionais, não
poderiam persistir a longo prazo. Mas de que maneira será abalado o agen-
ciamento harmonioso dessas coisas e pessoas em estado de generalidade? Em
termos simples, pela pane, pela ruptura. Eis então, em nosso exemplo, que a
atenção de um visitante é atraída por uma máquina parada diante da qual
se acumula uma pilha de peças em espera ou por uma estação de trabalho
vaga ou para ir para o amontoado de produtos rejeitados no fundo de uma
caixa. Intrigado, ele faz perguntas sobre esses objetos incômodos, que colo-
cam em questão o bom funcionamento daquela área da produção. Notemos
desde já a maneira como o visitante nelas se apoia para alicerçar sua dúvida.
A discordância prestes a se estabelecer não poderá ser expressada em um puro
debate de ideias, e deverá apelar para a participação das coisas concretas. E,
para apaziguar o transtorno provocado pelos questionamentos, o integrante
do quadro executivo da empresa deverá “entrar em detalhes” e os rebater
sobre a exigência de generalidade que mantinha abstrata sua apresentação
e conduzia à adesão: a máquina, explica ele, está com um defeito resultante
de certa particularidade de sua fabricação; o operário está ausente por certos
motivos pessoais; as peças estão defeituosas devido a certas impurezas na

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126 O imperativo de justificação

matéria-prima. O burburinho das particularidades que invadem a situação,


com o risco de perturbar sua harmonia, faz se destacarem, a contrario, os
ajustes necessários para arrancar das circunstâncias as coisas e as pessoas
que as aproximações associaram e para as engajar em uma situação estável.
Esse exemplo torna explícito que a operação de aproximação conduz em
sua esteira, com a verdadeira expulsão do Éden ilustrada pela falha apresen-
tada, a constituição de uma ordem que coloca em sequência, do mais para
o menos geral, as classes de seres aproximados e reunidos e aos quais são,
assim, atribuídos valores relativos. Uma máquina funcionando normalmente é
mais geral que uma com defeito, que terá uma capacidade menor que a outra
para estar em equivalência no porvir, garantindo uma produção regular, e
será menos “confiável”, como se diz. Mesmo no caso-limite em que a escala
do mais para o menos geral seja reduzida ao extremo, há pelo menos dois
estados, aquele definido pela aproximação e aquele do particular, que a ela
escapa. Ora, esses estados, em vez de se colocarem entre si em uma relação
como a do conjunto com seus elementos, de modo a estar de acordo com a
lógica da teoria dos conjuntos, estão associados por uma ordem que trata o
geral como superior ao particular. A ordem assim constituída conduz a uma
qualificação das pessoas da mesma forma que determina uma qualificação
dos objetos, a partir de sua aproximação em uma categoria.

A e x i g ê n c i a d e u m ac o r d o g e r a l
e a l e g i t i m i da d e da o r d e m

Em que condições uma forma de equivalência pode ser comum, isto


é, permitir uma qualificação de pessoas e objetos capaz de enquadrar um
acordo ou servir de fundamentação em uma disputa? Para responder a essa
pergunta, propomos levar a sério o imperativo de justificação sobre o qual
repousa a possibilidade de coordenação do comportamento humano e analisar
os imperativos e constrangimentos para o acordo sobre um bem comum. Não
nos satisfazemos, por exemplo, com o uso da noção de “legitimação”, que, na
continuidade da obra de Max Weber, tende a confundir justificação e engano
ou ludíbrio ao rejeitar os constrangimentos e imperativos de coordenação
para recair em um relativismo de valores. Será nos atos justificáveis que nos
concentraremos, extraindo todas as consequências do fato de as pessoas se-
rem confrontadas com a necessidade de justificar suas ações, ou seja, não de
inventar, posteriormente, motivos falsos para disfarçar motivações secretas,

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As ciências sociais e a legitimidade do acordo 127

como ao se encontrar um álibi, e sim de fazê-lo de modo que possam se


submeter a um procedimento de comprovação de justificação.
Como uma ciência da sociedade pode esperar ser bem-sucedida ignoran-
do deliberadamente uma propriedade fundamental de seu objeto, negligen-
ciando que as pessoas são confrontadas com a exigência de responder por
suas condutas, com apoio de provas, diante de outras pessoas, em relação às
quais agem? Basta prestar atenção, o que nos esforçaremos para fazer nas
páginas que se seguem, nas justificações desenvolvidas pelas pessoas, na forma
de palavras e ações, para ver que uma ciência social que feche os olhos dessa
maneira não chegará a lugar nenhum e que o curso regular da vida exige um
trabalho quase incessante a fim de se manter ou se recuperar das situações
que a ele escapam, recolocando-as em ordem. As pessoas, na vida cotidiana,
nunca suprimem completamente suas aflições. Como os acadêmicos, elas não
cessam de suspeitar, de se interrogar, de colocar o mundo à prova.
Situações nas quais essas angústias não conseguem se manifestar e ini-
ciar um processo de crítica e justificação escapam, todavia, ao âmbito deste
estudo. É precisamente a dificuldade de críticas serem ouvidas em situações
assimétricas, a ponto de um dos participantes da interação proceder apenas
por sua vontade, sem se sobrecarregar com dar explicações, que abre as
portas para a violência. Deixaremos, então, essas situações fora do âmbito
de nossa pesquisa, sem, evidentemente, negar sua possibilidade nem o papel
que podem desempenhar nos assuntos humanos.
Algumas das situações de discórdia podem muito bem ficar tempora-
riamente suspensas entre a justificação e a violência: é nessa linha divisória
que elas podem ainda se orientar para a busca de um arranjo baseado em
concessões de parte a parte, ou, inversamente, voltar-se na direção da força.
Mas, no momento em que promovem essa virada, elas nos escapam e as
abandonamos. Por outro lado, recusaremo-nos a dizer que o panfleto dis-
tribuído pelos grevistas para denunciar a injustiça dos baixos salários ou a
declaração do patrão para exigir a retomada do trabalho sejam formas de
violência (qualificada, então, como simbólica) ou que se tratem de falseamen-
tos, dissimulando uma violência subjacente, ou ainda que tenham extraído
toda sua força e sua realidade da violência que os precedeu ou da ameaça
que os sucedeu.
A pergunta que nos colocamos, portanto, é: em que condições um princípio
de acordo é tomado como legítimo? Extrairemos das observações anteriores o

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128 O imperativo de justificação

que nos parecem ser duas grandes dificuldades para a construção da legi-
timidade. A primeira diz respeito à ordem. Sugerimos anteriormente uma
descrição para a maneira como a exigência de acordo conduz à constituição
de uma ordem. A disputa requer uma ordem para se encerrar – por exem-
plo, quando duas pessoas se “medem” e se questionam sobre a importância
desigual de dois fatos colocados em comparação. Mas as desigualdades disso
resultantes não entrariam em conflito com o que poderia parecer um prin-
cípio que rege o conjunto das formas legítimas de justificação que tomamos
como objeto, ao qual daremos o nome de princípio de humanidade comum?
Será que, diante desse princípio, qualquer ordem relativa à humanidade não
poderia ser considerada uma “dominação” injustificável a serviço apenas do
“interesse pessoal” daqueles em vantagem?
Notemos que a teoria da sublimação (à qual Freud não deu forma
sistemática) é um dos mais minuciosos esforços para tratar dessa questão e
propor uma explicitação teórica da concepção de nossa sociedade a respeito
da grandeza e dos argumentos mobilizados, esparsamente, para justificar a
existência dos grandes. Essa teoria dá conta da possibilidade de haver grandes
homens (e, consequentemente, da possibilidade de uma aceitável desigualdade
de tamanhos). Nesse sentido, é uma teoria da legitimidade de uma ordem
social. Ela sugere uma economia interna ao indivíduo (a economia da libido
e do deslocamento de investimentos psicológicos), uma economia da relação
entre os indivíduos na sociedade e das desigualdades na distribuição dessa
grandeza (entre os gêneros, entre as classes, etc.) e uma economia da relação
entre culturas. Por outro lado, Freud também compreende a sublimação como
uma forma de generalização. A libido, essa energia misteriosa que unifica as
maneiras, tão diferentes na aparência, de os indivíduos se atraírem e se as-
sociarem, permite deslocamentos sobre o eixo que vai do particular ao geral.
Assim, mostrar-se sensível aos “interesses gerais da humanidade”, angustiar-se
por eles, falar em seu nome, é transformar um desejo singular associado a
uma conexão física (por um membro da família) em uma relação genérica
desencarnada que não pode ser mais objeto de uma satisfação individual e
corporal. Contudo, a construção analítica e sua aparelhagem metodológica
são atravessadas por tensões bastante vivas. Segundo uma primeira tendên-
cia, trata-se de levar a sério o processo de engrandecimento e demonstrar
seu lugar na fundamentação de uma sociedade. Mas uma outra tendência
é expressada no desvelamento crítico que, sob o discurso de um sujeito que se
exprime em nome dos “interesses gerais da humanidade”, da “ciência” ou da

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As ciências sociais e a legitimidade do acordo 129

“arte”, traz à tona os interesses, as pulsões e as paixões de uma pessoa em parti-


cular. A interpretação da suspeita, como diz Ricœur (1969, p. 101-159), segue,
assim, do geral para o específico e, determinadamente, do interesse geral para
os interesses particulares das pessoas. A pessoa é dotada de uma identidade
biológica e de uma libido que cobra seu preço, nos termos, evidentemente,
de um instinto genérico, mas para o benefício de um corpo próprio. É essa
tensão entre a constituição de uma ordem e a operação crítica de colocação
em questão que é central na nossa análise.
A segunda grande dificuldade refere-se a nossa observação de uma apa-
rente pluralidade de formas de acordo. Como essa pluralidade é possível, uma
vez que uma condição necessária de legitimidade, frequentemente explicitada,
parece ser a universalidade? Como as pessoas podem agir e entrar em acordo,
mesmo que as modalidades de acordo se revelem múltiplas?
Consideramos que as resoluções de cada uma dessas dificuldades não
poderiam ser enfrentadas de maneira independente e que é da análise da
relação entre essas duas questões que se poderia esperar uma compreensão
da noção de legitimidade. A segunda parte deste nosso ensaio é, então, dedi-
cada à análise e ao desenvolvimento de um modelo comum da cité, ao qual
relacionaremos as formas legítimas de acordo, que servem como um recurso
último para o esclarecimento e o desfecho do litígio. Procuraremos mapear a
maneira como essas formas de acordo são construídas por meio da análise do
tratamento dado a elas pela filosofia política. Concebida como um empreendi-
mento gramatical de explicitação e fixação dessas formas, essa segunda parte
servirá para deixar claros os constrangimentos e/ou imperativos a que um
princípio superior comum deverá se submeter para ser considerado aceitável
e, portanto, para ser passível de ser colocado em operação nas justificativas.
Uma primeira análise da filosofia política mercantil nos permitirá le-
vantar os imperativos que serão em seguida sistematizados em um modelo
de gramática política colocado à prova contra outros exemplos de filosofias
políticas. Essa gramática é, obviamente, dependente da definição do conjunto
de elementos a respeito do qual ela é válida. Não pretendemos que ele abranja
a totalidade de ordens sociais que possam ter sido construídas e deixaremos
temporariamente de lado a questão da extensão desse conjunto. Em vista da
gama de filosofias políticas utilizada para ilustrar a aplicação do modelo e
extrair as formas primárias do bem comum, o leitor poderá desde já julgar
a dimensão desse quadro. Essas formas primárias não são, aliás, as únicas
compatíveis com a gramática, e teremos a oportunidade de discutir a maneira
como novas formulações do bem comum podem se constituir.

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130 O imperativo de justificação

Uma vez que o modelo seja colocado como um sistema de imperativos


e/ou constrangimentos ao qual a criação de uma ordem legítima (ou seja,
capaz de enquadrar a discórdia) deve satisfazer, pode-se associar a ele uma
competência, da qual as pessoas devem ser dotadas para serem capazes de
justificar seus julgamentos em resposta às críticas, ou para administrar as
situações de modo a evitar essas mesmas críticas.

A c o m p rovação d e r e a l i da d e e o j u l g a m e n to p ru d e n t e

A possibilidade de se recorrer a vários princípios de acordo sugerida


pelo confronto dos fatos estabelecidos pelas abordagens econômicas e so-
ciológicas das ações humanas abre espaço para dificuldades adicionais além
daquela de os atores sociais se entenderem a respeito de uma aproximação.
É a partir disso que podemos falar em sociedade complexa, e na referência
a uma cultura – o que daria conta da comunidade das aproximações em ter-
mos de simbolismo partilhado – não permitir resolver a questão do acordo.
O reconhecimento de uma pluralidade de culturas ou de sistemas de valores,
partilhados pelas comunidades ou grupos de pessoas, não suspende, contudo,
as dificuldades resultantes de sua problemática confrontação, pois, a despeito
dessas contradições, a ausência de discórdia demanda, para ser explicada,
que se levante a hipótese de um sistemático ludíbrio a ocultar a dominação
de uns sobre os outros.
Em nossa opinião, o engajamento das coisas na realização de comprova-
ções é necessário para gerir os desacordos. E, para realizar essas comprovações,
a mobilização de princípios de equivalência é insuficiente. Sua colocação em
prática supõe que a esses princípios sejam associados objetos por meio dos
quais as pessoas possam se medir, se comparar. É, com efeito, de sua maior
ou menor capacidade de valorizar esses objetos que resulta uma ordem justi-
ficada. Cada um dos conjuntos de objetos associados aos diferentes princípios
superiores comuns forma um mundo coerente e autossuficiente, uma natureza,
sobre a qual a terceira parte deste livro proporá representações.
A comprovação conduz as pessoas a se entenderem sobre a importân-
cia relativa dos seres envolvidos na situação, tanto se se tratar da utilidade
relativa de duas máquinas ou de dois investimentos quanto dos méritos res-
pectivos de dois estudantes, da competência de dois integrantes de quadros
executivos ou ainda das marcas de respeito que se devem mutuamente dois
notáveis locais, etc. Seres enormemente distintos, como pessoas, instituições,
ferramentas, máquinas, regulamentos, meios de pagamento, siglas e nomes,

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As ciências sociais e a legitimidade do acordo 131

etc. se encontram ligados e dispostos relativamente uns aos outros em conjun-


tos suficientemente coerentes para que seu engajamento seja julgado efetivo,
para que os processos deles esperados possam ser consumados e para que as
situações possam se desenrolar de forma correta (por oposição a situações
com perturbações, qualificadas, conforme a disciplina de referência, como
patológicas, disfuncionais, conflituosas, etc.). Para que a situação seja jurisdi-
cionada por um princípio superior comum, é necessário que cada ser (pessoa
ou coisa) seja a ele ajustado. Uma vez que essas condições sejam satisfeitas,
a situação será considerada estável. Sustentando-se de forma consistente,
sem objetos equívocos, essa situação será considerada natural. E a maneira
mais simples de compor uma situação apropriada a uma conduta natural é nela
envolver seres de uma mesma natureza e dela afastar aqueles próprios de uma
natureza diferente. Se alguns dos seres dispostos na situação tiverem um alcance
geral enquanto outros permanecerem contingentes ou revelarem um grau dife-
rente de generalidade, a situação não se estabiliza, não se sustenta.
Uma hipótese que distingue nossa abordagem, inclusive em relação àque-
las que consideram a possibilidade de várias formas de “legitimidade” ou “ra-
cionalidade”, consiste em tratar a justeza científica e técnica da mesma maneira
que outras formas de justificação – normalmente distinguidas dela por conta de
seu caráter ético – sem, contudo, reduzir todas essas formas de generalidade a
um único equivalente (crença ou força, por exemplo). A qualificação de objeto
não é, em nossa construção, reservada à natureza do cientista ou do técnico,
que deteriam o privilégio sobre a realidade e a objetividade. Cada natureza
conta com seus objetos, que se prestam igualmente à comprovação.
Assim, somos levados a atravessar a distinção entre duas definições de
ajustado, orientadas uma para a justiça e outra para a justeza, e a tratar
com as mesmas ferramentas conceituais situações nas quais um desajusta-
mento seja qualificado no registro da injustiça ou ainda, por exemplo, no da
disfunção. O desajustamento pode resultar de uma falha das pessoas, como
quando a disputa diz respeito, como nas crises de honra, à justa distribui-
ção de consideração conferida por elas umas às outras; ou da falha de pessoas
e de objetos, quando o desacordo diz respeito à distribuição de bens entre os
indivíduos, como renda, postos de trabalho, objetos materiais, diplomas, etc.
Mas o desajustamento também pode ter a ver com o agenciamento mesmo de
objetos entre si, quando se faz necessário, por exemplo, associar as características
técnicas de uma máquina, as modalidades de seu financiamento e as disposições
que regulam sua utilização.

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132 O imperativo de justificação

A exigência de comprovação modifica a ótica de nossa análise, que, do


estudo das construções da filosofia política, passa ao da razão prática ou, para
retroceder mais ainda na direção da tradição, ao da prudência. Da mesma
maneira que procuraremos compreender a estrutura do modelo da cité por
meio da compreensão da exigência de redução da pluralidade de princípios
de acordo, analisaremos as tensões entre razão e prática, entre generalidade
e contingência, ou entre justiça e equidade, a partir das exigências (e dos
graus de liberdade) implicadas, para o julgamento, por um universo de vá-
rias naturezas. Assim, a última parte do livro será dedicada ao estudo dos
procedimentos que permitem encerrar as disputas.

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CAPÍTULO 2

A f u n da m e n tação d o ac o r d o na f i l o s o f i a

p o l í t i ca : o e x e m p l o da c i t é m e r ca n t i l

Em razão dos desenvolvimentos posteriores da ciência econômica, que


contribuíram para distinguir a questão do equilíbrio da do bem-estar, por
vezes sutilmente se deixa de se levar em consideração o fato de a economia
política ter se proposto a tratar da questão da paz social. Mas ela adotou
como ponto de partida as pessoas em um estado de desordem original, na me-
dida das paixões que as movem e que as conduzem à confrontação. E também
apresenta uma possibilidade de acordo geral, mostrando como a referência
a um princípio único pode transformar o furioso ardor desses confrontos em
um bem-estar geral fiador da paz. O interesse das pessoas particulares é, assim,
relacionado ao interesse de todos. A resolução das discórdias se inscreve em
uma coordenação com base em dois pilares: uma identificação comum de
bens mercantis, cuja troca define o curso das ações, e uma comum avaliação
desses objetos por meio de preços, o que permite ajustar ações diversas. As
condutas das pessoas podem, assim, ser tomadas como razoáveis, coerentes
e justificáveis segundo um princípio conhecido e aceito por todos, diferente-
mente das motivações inconscientes, dos interesses ocultos ou inomináveis.
Por outro lado, essa possibilidade de acordo está relacionada, assim como
em outras filosofias políticas, a uma natureza humana que a ele se preste
e que ofereça uma fundação sólida para essa construção. Assim, a filosofia
política de Adam Smith compreende uma Teoria dos sentimentos morais,
que – procuraremos demonstrar – descreve as engrenagens de um entendi-
mento humano ajustado às exigências de um princípio de concorrência. Essa
operação de detalhamento da natureza humana é mais desenvolvida na obra
de Smith que nos tratados posteriores de ciência econômica, nos quais ela se
encontra geralmente confundida com a racionalidade otimizadora.
Nosso projeto de compreensão dos princípios segundo os quais as ações
estão sujeitas à exigência de justificação demanda reexaminar a maneira como

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134 O imperativo de justificação

a economia política se conforma às exigências precedentes para resolver a


questão da ordem. Procuramos, então, prospectar da obra de Smith – por
meio da evocação das construções anteriores em que ela se baseia – a de-
finição de um princípio de acordo e uma análise da natureza do homem
destinada a explicar como qualquer pessoa pode se ajustar a esse princípio.
Nosso objetivo, portanto, não é acrescentar uma nova exegese à volumosa
lista de comentários a essa obra, e, por conta disso, nossa análise permanecerá
deliberadamente seletiva. O exame a seguir pretende, assim, mostrar como um
princípio superior comum mercantil pode permitir fundamentar uma ordem
que é, como tal, tão “holista” quanto outras. Ele permitirá revisar as várias
expressões da oposição entre individualismo e holismo, ou entre indivíduo
e coletividade, ou ainda entre privado e público, a fim de os relacionar, di-
ferentemente da maior parte das abordagens atuais, a um modelo comum.
Esse modelo nos leva a discernir claramente a diferença entre uma pessoa
singular e um “indivíduo” em um estado mercantil, ser tão metafísico quanto
os seres coletivos da sociologia e, à sua maneira, igualmente tão “coletivo”
quanto eles, uma vez que toma parte em um bem comum.

Uma r e l ação s o c i a l f u n da m e n ta da e m u m a i n c l i nação


pa r a a t ro ca p o r i n t e r e s s e p ró p r i o

Pode-se prospectar da obra de Adam Smith (1860 [1759]) os elementos


capazes de garantir a fundamentação de uma cité que repousa no estabele-
cimento de uma relação mercantil. Essa relação une as pessoas por intermé-
dio de recursos escassos, de bens raros, sujeitos aos apetites de todos, e a
concorrência das concupiscências subordina aos desejos dos outros o preço
associado à posse de um bem, pois muitos dos elementos dessa gramática – o
próprio Smith usa esse termo, quando afirma que “as regras de justiça podem
ser comparadas às regras de gramática” (p. 201)* – foram concebidos muito
anteriormente. Assim, as elaborações relativas ao valor dos bens repousam
sobre uma longa tradição de tratados que exploram a questão do preço justo.
Nos textos escolásticos, a importância dessa glosa, que se desenvolve desde
os escritos de Aristóteles, reside no fato de ela tomar parte na construção de
sistemas gerais de equidade.

* Todas as citações à Teoria dos sentimentos morais foram extraídas da tradução de Lya
Luft publicada pela editora Martins Fontes. (N. do T.)

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A fundamentação do acordo na filosofia política 135

O tratado De jure natura et gentium [Sobre o direito natural e das


gentes], de Samuel von Pufendorf, do qual Smith possuía uma cópia em sua
biblioteca, oferece uma formulação particularmente rigorosa dessa questão,
segundo a qual o valor das coisas e o valor das pessoas são embasados na
mesma espécie de “ser moral” chamado “quantidade moral” e entendido
como um “modo moral de estimar”. “Essa quantidade moral”, escreve
Pufendorf, “se encontra ou nas coisas, e então a chamaremos de preço ou
valor, ou nas pessoas, e nesse plano a nomeamos estima, consideração, etc.,
ou, finalmente, nas ações, e nesse último sentido elas não têm qualquer nome
em particular”. Jean Barbeyrac salienta que “o autor observaria aqui que o
primeiro e o segundo tipos de quantidade moral são expressados pelo termo
valor” (Pufendorf, 1771, livro 1, cap. 1, § 22, t. 1, p. 21). Pufendorf enfatiza
claramente (mais claramente que Smith, em alguns aspectos) o papel desem-
penhado pela raridade dos bens na grandeza mercantil: “Aquilo que, assim,
mais contribui para elevar o preço das coisas é a sua escassez” (Pufendorf,
1771, livro 5, § 6, v. 2, p. 3). Além disso, ele constrói o preço como uma
forma de expressão do desejo dos outros, o que analisamos como uma ma-
neira de os compreender:

A razão pela qual as coisas raras são colocadas a um preço mais elevado que
outras é que a vaidade dos homens os faz estimar de forma suprema aquilo
que têm que não seja comum salvo a um pequeno número de pessoas, e, ao
contrário, tomar como muito vil aquilo que se vê nas mãos de todos. (Pufendorf,
1771, livro 5, § 6, v. 2, p. 3)

Mas essa construção é acompanhada por um questionamento crítico


sinalizado pelo uso de um “no fundo” bastante característico:

É sem dúvida um efeito da corrupção e da malignidade do espírito humano


que se julgue a solidez de um bem pelo número de pessoas que igualmente o
possuem. Pois, no fundo, a posse de um bem não é mais ou menos estimável
conforme os outros sejam dele privados ou o desfrutem como nós. (Pufendorf,
1771, livro 5, § 6, v. 2, p. 3, grifo nosso)

Por se inscrever explicitamente em uma perspectiva semelhante à dos


jurisconsultos e por propor um fundamento para os princípios de acordo, go-
vernadores das relações entre as pessoas, o propósito de Adam Smith contém
os elementos – agenciados de forma sistemática – de uma gramática política
mercantil. E nisso seu projeto difere dos textos econômicos posteriores, nos

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136 O imperativo de justificação

quais os autores ambicionam separar uma instrumentação específica para a


sua disciplina de um rebotalho de fundação julgado abusivamente moral.
O projeto original de Smith, como ele apresenta no final da Teoria dos
sentimentos morais, é, com efeito, construir uma teoria da justiça e “estabe-
lecer [...] os princípios gerais da lei e do governo”, sem se limitar à enun-
ciação de “leis de ‘polícia’”,* como, segundo ele, o fizeram Cícero e Platão,
mas seguindo o exemplo de Hugo Grócio quando ele se pôs a “formar uma
espécie de sistema de princípios que deva ser encontrado nas leis de todas
as nações e lhes servir de fundamento” (Smith, 1860, p. 404-405). Depois da
publicação de A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas
causas – ou simplesmente A riqueza das nações (Smith, 1982; em francês,
Smith, 1976) –, o autor considerou que essa promessa foi executada “no que
diz respeito à ordem, à fazenda pública e ao exército”. Ele o explicou trinta
anos depois da primeira edição da Teoria dos sentimentos morais, em uma
sexta edição consideravelmente revista e ampliada (Smith, 1860, p. XIX), não
lamentando nada mais que o não desenvolvimento de seu projeto para uma
Teoria da jurisprudência.
A mobilização privilegiada de A riqueza das nações para selar a funda-
ção de uma ciência econômica contribuiu para apartar uma da outra essas
duas obras, originalmente incluídas pelo autor em um mesmo projeto, mas
entre as quais Smith lançaria a um patamar mais elevado a Teoria dos senti-
mentos morais – de acordo com Samuel Romilly (apud Raphael, 1975, p. 85).
Para nossos propósitos, convém, ao contrário, reaproximar os dois textos,
se desejamos levar em consideração o intento de Smith, não em relação à
posteridade dos economistas, mas como um empreendimento na sequência de
outros com o objetivo de fundamentar um novo tipo de relação social capaz
de ligar as pessoas a um bem comum. Essa relação é realizada pelo dispositivo de
um mercado, no qual os indivíduos em condição de simpatia, mas submetidos a
seus interesses pessoais, entram em concorrência pela apropriação de recursos/
bens escassos, de modo que sua riqueza lhes confere uma grandeza, uma vez
que ela é uma expressão dos desejos não saciados dos outros.

* No original, Smith usa o termo police, traduzido na edição brasileira como “ordem”, for-
mato que manterei nas outras ocorrências. Mantive “polícia” neste caso para aludir ao
original e para resgatar esse sentido clássico do termo mobilizado pelo autor, como o
conjunto das leis e organizações que garantem a ordem. (N. do T.)

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A fundamentação do acordo na filosofia política 137

É em razão do caráter deliberadamente sistemático desse projeto* que


essas obras de Smith são apropriadas para descrever os elementos de uma
filosofia política, mesmo que, como iremos recordar, possamos apontar
muitos esboços anteriores de construção de uma ordem fundamentada em
uma relação mercantil, e ainda que os textos de Smith tragam elementos
discordantes relativamente a essa construção, uma vez que ele faça referên-
cia ocasionalmente a outras definições de grandeza, usadas eventualmente
pelo próprio autor para servir à denúncia do tipo de relação social que ele
contribuiu para fundar.
Na perspectiva em que nos colocamos aqui, absolutamente não se trata
de dar conta do conjunto da obra de Smith. De A riqueza..., não evocaremos
centralmente mais que uma pequena parte, a apresentação feita nos primeiros
capítulos sobre o funcionamento do mercado, trecho que pode ser conside-
rado o menos original do ponto de vista da economia, mas que deve ser
relacionado com as considerações sobre a simpatia e o espectador imparcial
desenvolvido na Teoria..., se quisermos entender o processo de edificação
dessa gramática política. As considerações sobre a divisão do trabalho, sobre
o que será determinado por uma teoria do valor-trabalho, ou sobre o inves-
timento, temas que não retomaremos, prestam-se mais a contribuir para uma
elaboração daquilo que designaremos mais adiante, a partir dos escritos de
Saint-Simon, como grandeza industrial. Tenderemos, então, a enfatizar aqui o
dispositivo mercantil e os estados morais a ele associados por Smith, embora
possamos, por outro lado, ainda insistir nas passagens d’A riqueza... que
sugerem um outro princípio de valor, como fazem os economistas ansiosos
por demonstrar o atraso na teoria econômica que poderia ser atribuído ao
papel conferido por Smith ao custo do trabalho, em detrimento de um valor
resultante da concorrência no mercado (Kauder, 1953), ou, em um outro es-
pírito, como fazem os historiadores ansiosos para demonstrar a originalidade
de Smith em relação à tradição aristotélica do preço justo que a ele chegou
por meio de Pufendorf, Gershom Carmichael e seu mestre Francis Hutcheson
(Robertson; Taylor, 1957).
Apesar do papel destinado em sua obra à divisão do trabalho, indubi-
tavelmente devido à influência de Bernard Mandeville (1974, p. 11), Smith

* As notas se encontram ao final do livro, p. 511.

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138 O imperativo de justificação

não o tornou o princípio da “opulência geral”,* diferentemente dos autores


que buscaram fundamentar a grandeza sobre o trabalho e sua utilidade. Essa
divisão do trabalho não está na origem de uma reciprocidade mercantil, como
em Hume (Deleule, 1979, p. 51). “A divisão do trabalho, da qual tantas van-
tagens derivam, não é originalmente o efeito de qualquer sabedoria humana”
(Smith, 1982, p. 117). Ela, assim, não é senão o produto de uma “certa
propensão da natureza humana, que não tem em vista uma utilização tão
extensa: tendência para comerciar, barganhar e trocar uma coisa por outra”
(Smith, 1976, p. 47). Essa propensão pressupõe nas partes envolvidas uma
certa capacidade de chegar ao acordo sobre um mercado, de fazer contratos
de forma convencional:

É comum a todos os homens, não sendo encontrada em nenhuma outra raça de


animais, que parecem não conhecer essa nem nenhuma outra forma de contratos.
Dois galgos, perseguindo a mesma lebre, por vezes têm a aparência de agirem
em alguma espécie de concerto. [...] Isso, no entanto, não é o efeito de contrato,
mas da concorrência acidental de suas paixões pelo mesmo objeto, num dado
momento. Ninguém jamais viu um cão fazer uma troca justa e deliberada de
um osso por outro com outro cão. Ninguém jamais viu um animal, por seus
gestos e gritos naturais, dizer a outro: “isto é meu, aquilo, seu; estou querendo
trocar isto por aquilo”. (Smith, 1976, p. 47)

Como veremos sistematicamente na segunda parte, a elaboração de


um princípio superior comum a partir de uma nova forma de relação social
anda sempre de mãos dadas com a crítica às relações construídas conforme
outros princípios. Smith denuncia, assim, as relações de dependência pessoal,
no mesmo movimento em que expõe os benefícios esperados da relação mer-
cantil, que ele apresenta como um instrumento de libertação das servidões e
da longa cadeia de subordinação a interligar os diferentes seres, e para a qual
observaremos uma grandeza possível na análise da cité doméstica:

*
Em alguns outros momentos, também chamado de opulência universal. Todas as cita-
ções a A riqueza das nações foram extraídas da tradução de Norberto de Paula Lima
publicada pela editora Nova Fronteira. (N. do T.)

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A fundamentação do acordo na filosofia política 139

o comércio e as manufaturas gradualmente introduziram a ordem e o bom


governo, e com eles, entre os habitantes do campo, a liberdade e a segurança
dos indivíduos que antes viviam num estado quase contínuo de guerra com
seus vizinhos e de servil dependência a seus superiores. (Smith, 1982, p. 508)

As trocas mercantis, ao expandirem a rede de pessoas que colocam


em relação, suprimem todo caráter de dependência pessoal desses relaciona-
mentos. Elas levam a denunciar notadamente as relações domésticas entre o
mestre e o trabalhador, que os Éditos de Turgot (Turgot, 1976) terão parti-
cularmente como alvo: “Cada comerciante ou artífice deriva sua subsistência
do emprego não de um, mas de cem ou mil diferentes fregueses. Se bem que
em alguma medida devendo obrigação a todos eles, não é absolutamente
dependente de nenhum deles” (Smith, 1982, p. 513). Sublinharemos que,
na configuração inicial a ela atribuída por Smith, essa cadeia de relações
domésticas rompida pelas relações de mercado se prolonga até os animais
domesticados:

Um perdigueiro procura, por mil recursos, chamar a atenção de seu dono, que
está jantando, quando quer ser alimentado por ele. O homem usa, às vezes, a
mesma arte com seus semelhantes, e quando não tem outro meio de levá-los
a agir de acordo com suas inclinações, procura, por toda servil e bajuladora
atenção, obter sua boa vontade. (Smith, 1982, p. 118)

Quanto às dádivas caritativas, que, como veremos, expressam a grandeza


doméstica, o homem que necessita de ajuda não deve com ela contar. Em vez
de fazer apelos à “benevolência” [benevolence] de uma “pessoa caridosa”, ele
“será mais bem-sucedido se puder direcionar o amor-próprio [self-love] de
seus semelhantes em seu favor e mostrar-lhes que é para sua própria vantagem
fazer para ele aquilo que está lhes exigindo”. Os “bons ofícios mútuos” são
obtidos “por acordo, barganha ou compra” (Smith, 1976, p. 48).
Essa confrontação da relação mercantil com a relação doméstica
acompanha de forma bastante próxima a associação elaborada nos escritos
de Pascal e dos jansenistas Jean Domat e Pierre Nicole entre os benefícios
comparados da “cupidez” (ou da “concupiscência”) e da “caridade”. Assim,
Pascal, nos Pensamentos, faz menção à “grandeza do homem em sua concu-
piscência mesmo, por ter sabido retirar dela um regulamento admirável e por
ter feito em consequência um quadro de caridade” (Pascal, 1954, p. 1.160,

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140 O imperativo de justificação

pensamento n. 402).* Em seus Ensaios morais (“Sobre a grandeza”), Nicole


diz:

Não há, então, quem não tenha grandes obrigações para com a ordem política;
e, para as compreender melhor, é preciso considerar que os homens, estando va-
zios da caridade pelo desregramento do pecado, permanecem, contudo, repletos
de necessidades e são dependentes uns dos outros em uma infinidade de coisas.
A cupidez tomou então o lugar da caridade para satisfazer essas necessidades,
e o faz de uma maneira que não a admiramos o suficiente; e que a caridade
comum não pode alcançar. [...] Que espécie de caridade seria construir uma casa
inteira para outrem, mobiliá-la, atapetá-la e lhe entregar a chave em sua mão?
A cupidez o faria alegremente. (Nicole, 1733, v. 2, p. 170-171)

Pode-se concluir de tudo isso que, para reformar completamente o mundo, isto
é, para banir dele todos os vícios e todas as formas graves de desordem, e para
tornar os homens felizes nesta vida mesma, seria necessário apenas, em vez de
caridade, oferecer a todos eles um amor de si esclarecido, que fosse capaz de dis-
cernir seus verdadeiros interesses, e tender para eles pelas vias que a verdadeira
razão descobrisse. [Ainda que a sociedade estivesse] completamente esvaziada de
caridade, veríamos por todos os lugares apenas a forma e o caráter da caridade.
(Nicole, 1733, v. 3, p. 176-177)

O c o n c e rto d o s i n d i v í d u o s na c o n c u p i s c ê n c i a d o s b e n s

O estabelecimento de uma relação mercantil é sustentado pela identi-


ficação comum de bens exteriores, além de supor que os indivíduos estejam
submetidos, coordenadamente, a um mesmo pendor para as trocas. Objetos
de concupiscência perfeitamente alienáveis em uma transação, esses bens exte-
riores servem de suporte às relações entre as pessoas. O imperativo de escassez,
a raridade do bem, pesando sobre sua partilha, está na origem da concorrência
dos desejos que se realiza no mercado e torna a posse dos bens desejados uma
forma de expressão dos outros.

*
Todas as citações aos Pensamentos foram extraídas da tradução de Mario Laranjeira
publicada pela editora Martins Fontes. (N. do T.)

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A fundamentação do acordo na filosofia política 141

Esse concerto das concupiscências não é de maneira nenhuma uma


invenção de Smith, ainda que ele o torne a peça central de uma filosofia po-
lítica. Para os escolásticos, a justiça comutativa aristotélica regula as trocas
de bens e serviços entre os indivíduos, e as teorias do “justo preço” supõem
ao menos a participação da comunidade para a sua estimativa (“communis
aestimatio”), se não precisamente a concorrência em um mercado, construção
que aparece mais explicitamente com os integrantes tardios dessa linhagem
filosófica (Roover, 1955, 1971). A tradição jansenista já mencionada mostra
o homem colocando no lugar de um “bem único” os “bens aparentes”, cuja
“divisão”, contudo, contribuirá para “unir os homens de mil maneiras” (Do-
mat, 1828, p. 25 apud Faccarello, 1984).
Como demonstrado por Gilbert Faccarello (1984, 1986), Pierre de
Boisguilbert, retomando os elementos da construção jansenista descritos ante-
riormente, completa essa construção, substituindo a sustentação de uma arte
política (Nicole, 1733, v. 2, p. 172) pela referência ao “balanceamento”, ao
“equilíbrio”, à “justiça” da “concorrência”. O “desejo de lucro” é suficiente
como “alma de todos os mercados”, permitindo um “equilíbrio”, uma “pon-
deração”, entre comprador e vendedor, e o “interesse de todo comprador é
que haja muitos mercadores, além de muitas mercadorias, de modo que a
concorrência os faça reciprocamente oferecer seus gêneros com desconto, para
terem a preferência na compra” (Faccarello, 1984, p. 52).
Devemos a Albert Hirschman (1977, 1982) ter reconstituído, por meio
da análise de uma série de elaborações intelectuais das ideias de desejo, glória,
orgulho, vaidade, apetite, virtude, etc., a história do tratamento das noções
de paixão e de interesse que precederam à construção do sistema de Smith e,
mais genericamente, às argumentações desenvolvidas a respeito do liberalis-
mo. Para nos atermos às formulações mais explícitas de uma ponderação das
paixões como princípio para a confecção de uma ordem capaz de ultrapassar
a confusão dos interesses particulares, lembraremos, seguindo Hirschman, as
formulações sugeridas por Vico, Montesquieu e Steuart.
Em seu Ciência nova (Principi di una scienza nuova), publicado em
1725, Vico descreve um equilíbrio baseado não na pura avareza, mas em
três vícios:

[D]a ferocidade, da avareza, da ambição, que são os três vícios que põem à
deriva todo o gênero humano, [fazem-se] as atividades militar, mercantil e de
corte, a força, a sabedoria e a opulência das repúblicas; e desses três grandes

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142 O imperativo de justificação

vícios, que destruiriam certamente a geração humana sobre a terra, deles [faz‑se]
a felicidade civil.*

Graças à Divina Providência, verdadeira “mente divina legisladora”, “as


paixões dos homens – todos apegados a seus proveitos privados, pelos quais
viveriam como animais selvagens metidos nas suas solidões –, [fizeram] as
ordens civis, pelas quais vivem em uma sociedade humana” (Vico, 1963,
livro I, cap. II, § 7, p. 36). E se “os homens fizeram eles próprios o mundo
social”, Vico atribui a essa mente legisladora a possibilidade de ultrapassar
“os fins particulares” em favor de “fins mais nobres, que asseguram o bem
-estar da raça humana sobre a terra” (livro V, cap. IV, p. 369-370).
Montesquieu, em O espírito das leis, coloca igualmente em questão os
poderes da razão para regrar as condutas dos homens, e considera que a
exaltação das paixões contribui mais garantidamente para esse equilíbrio.
“Esta nação, sempre exaltada, poderia mais facilmente ser levada por suas
paixões que pela razão, que nunca produziu grandes efeitos sobre o espírito
dos homens” (Montesquieu, 1979, livro XIX, cap. 27, v. 1, p. 480).** O co-
mércio e a concorrência, que “estabelecem um preço justo” (cap. 9, p. 15)
garantem a paz: “[É] quase uma regra geral que, em todo lugar em que
existem costumes suaves, existe comércio; e que, em todo lugar em que existe
comércio, existem costumes suaves” (livro XX, cap. 1, t. 2, p. 9). A figura
do comércio a refrear as paixões, cujos avatares Hirschman acompanha, é
recolhida na seguinte fórmula: “E é bom para os homens estarem em uma
situação em que, enquanto suas paixões lhes inspiram o pensamento de serem
maus, têm, no entanto, o interesse de não o ser” (livro XXI, cap. 20, p. 65).
Por sua vez, James Steuart propõe, em seu Inquiry into the principles
of political oeconomy [Uma investigação sobre os princípios da economia
política], de 1767, o esquema de uma “oeconomía política” segundo o qual o
poder despótico é refreado pelo complexo jogo de mecanismos do comércio
e da indústria, que ele compara aos de um relógio:

* Todas as citações aos Principi di una scienza nuova foram extraídas da tradução de
Jorge Vaz de Carvalho publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian. (N. do T.)
** Todas as citações a O espírito das leis foram extraídas da tradução de Pedro Vieira
Mota publicada pela Editora Saraiva. (N. do T.)

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A fundamentação do acordo na filosofia política 143

Uma vez que o Estado comece a subsistir por meio dos produtos da indústria,
haverá menos perigo de ser capturado pelo poder do soberano. Os mecanismos
de sua administração se tornam mais complexos e [...] ele se vê tão contido pelas
leis de sua oeconomía política que qualquer transgressão a elas o lançará em
novas dificuldades. (Steuart, 1767, v. I, p. 215-217 apud Hirschman, 1982, p. 83)

Detenhamo-nos por mais tempo sobre a construção de David Hume,


devido a sua influência sobre o desenvolvimento do sistema de Smith. Sa-
bemos que, em seu Tratado da natureza humana, de 1739, Hume se recusa
a fazer da razão o meio para equilibrar as paixões. De acordo com ele, a
razão é propícia aos “juízos a respeito de causas e efeitos”* na aritmética ou
na mecânica, mas “ela não influencia jamais nenhuma de nossas ações” salvo
nesses âmbitos. Observa-se que Hume ilustra essa afirmação com o exemplo
do cálculo mercantil, que ele distingue da paixão que impulsiona a ação:
“O raciocínio abstrato ou demonstrativo, portanto, não influencia jamais
nenhuma de nossas ações, se não conquanto ele direcione nossos juízos a
respeito de causas e efeitos” (Hume, 1983, p. 523). A razão não pode atuar
senão como “escrava das paixões” (p. 524), e “não há dúvida de que nenhum
afeto da mente humana tem a força suficiente ou a orientação adequada para
contrabalançar o amor ao ganho. [...] A benevolência com estranhos é muito
fraca para alcançar esse fim” (p. 609). O equilíbrio necessário para ordenar
a sociedade poderá ser obtido apenas por se fazer atuar essa paixão contra
ela mesma, de modo que “ela se restrinja a si própria”.
Hume (1983), então, destaca o papel desempenhado, no aparelhamento
desse equilíbrio, pelos bens adquiridos “com nosso trabalho e nossa boa
sorte” – e que são desatrelados de nós –, terceira espécie de bens, distinta
da “satisfação interior do espírito”, da qual “podemos usufruir [...] com
plena segurança”, e das “qualidades exteriores de nosso corpo”, que podem
nos ser tomadas, mas que “não beneficiam em nada a quem delas nos pri-
va”. Nessa gradação de propriedades, partindo-se da qualidade da pessoa
e indo até os bens dissociados e apropriáveis, apenas estes últimos “estão
expostos à violência alheia e, ao mesmo tempo, podem ser transferidos sem
sofrer nenhuma perda ou alteração; e, além disso, não existem em quanti-
dade suficiente para suprir os desejos e as necessidades de todas as pessoas”

* Todas as citações ao Treatise of human nature foram extraídas da tradução de Déborah


Danowski publicada pela Editora Unesp. (N. do T.)

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144 O imperativo de justificação

(p. 605). As convenções sobre a propriedade dos bens e as condições da sua


alienação completam esse aparelhamento da relação mercantil e contribuem
para “conferir estabilidade da posse desses bens externos”, e “é desse modo
que mantemos a sociedade” (p. 606, 607). Hume procura dar conta ainda, de
maneira endógena, do estabelecimento de convenções – sejam elas relativas a
propriedade, linguagem ou moeda de troca –, nascidas “gradualmente”, “por
nossa repetida experiência dos inconvenientes de sua transgressão”, “sem
nenhuma promessa” (p. 608).
A ordenação dos diferentes elementos envolvidos na construção de uma
forma de acordo geral com base em relações mercantis é claramente colocada
em evidência na passagem em que Hume desmonta suas engrenagens e analisa
o encontro entre algumas disposições dos espíritos das pessoas e a situação
na qual se apresentam os bens externos, escassos e transmissíveis, que são
os objetos comuns de seus desejos:

[A] justiça nasce das convenções humanas; e [...] estas têm como objetivo reme-
diar alguns inconvenientes procedentes da concorrência de certas qualidades da
mente humana com a situação dos objetos externos. Tais qualidades da mente
são o egoísmo e a generosidade restrita; e a situação dos objetos externos é a
facilidade da sua troca, juntamente com sua escassez em comparação com as
necessidades e os desejos dos homens. (Hume, 1983, p. 612)

O dispositivo de troca pressupõe que todas as pessoas estejam no mesmo


estado de indivíduo, liberto de toda dependência pessoal: “É para restringir
esse egoísmo que os homens se viram obrigados a se separar da comunidade
e a distinguir entre seus próprios bens e os dos outros”. Uma vez colocados
nesse estado que lhes confere acesso ao mercado, os indivíduos direcionam
suas vaidades para os bens, e o imperativo de escassez que pesa sobre a distri-
buição desses recursos serve de princípio para uma nova espécie de grandeza.
A posse dos bens mais valiosos é uma forma de expressão dos desejos dos
outros e, assim, determina uma original fórmula de subordinação.
Em vista disso, antecipando uma análise posterior da crítica aberta pela
pluralidade de princípios superiores comuns, notemos que Hume e o próprio
Smith, ainda que trabalhando nas fundações de uma cité mercantil, relem-
bram ao mesmo tempo as críticas precedentes a essa relação em nome da
vanglória. Essa revisão é parte de uma longa tradição de crítica a esse tipo
de grandeza que remonta à discussão dos estoicos sobre o caráter vão da
posse de riquezas e a apartação do sábio em relação a elas. E diferentemente

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A fundamentação do acordo na filosofia política 145

ao proposto por Hume ou Smith, Sêneca recusou, na separação entre os bens


e as outras qualidades da pessoa, que os primeiros exprimissem os outros
de alguma maneira e servissem desse modo para justificar qualquer tipo de
grandeza. Assim, em Da vida feliz, Sêneca coloca em questão a relação entre
as pessoas e os bens:

[S]e elas [as riquezas] forem afastadas de ti, [...] te parecerá que ficaste aban-
donado por ti mesmo; [...] as riquezas são minhas e tu és das riquezas. [...]
Colocai-me na casa mais opulenta, onde se usa profusamente o ouro e a prata.
Não me admirarei por causa dessas coisas. Embora estejam comigo, estão fora
de mim. (Sêneca, 1962, p. 744, 747)*

O empreendimento de Hume e o de Smith contribuem para a construção


de uma cité coerente com uma natureza humana, supondo certas disposições
afetivas em relação aos outros e às coisas, mas não com base em uma capa-
cidade de cálculo racional. Encontra-se nelas uma diferença fundamental em
relação às formulações posteriores que estabilizarão, com a autonomia de
uma ciência econômica, a oposição entre o “subjetivo” e o “objetivo”, como
a descreve Joseph Schumpeter (1983, p. 183): “A avaliação subjetiva cria o
valor objetivo – sabemos que isso foi ensinado pelos doutores da escolástica,
no caso dos bens de consumo –, e não o inverso: uma coisa é bela porque
agrada; não agrada porque seja objetivamente bela”. Para que a relação mer-
cantil possa ser usada para construir uma forma de acordo, é necessário que
as pessoas estejam submetidas a uma paixão principal que as direcione para
a posse de bens, que elas estejam então coladas a seus interesses particulares,
diferentemente do que caracteriza a forma de generalidade cívica. Mas é ne-
cessário, ao mesmo tempo, que elas estejam devidamente desatreladas de si
próprias e das subordinações domésticas a fim de se entenderem com todos
os outros indivíduos sobre um mercado que atua como princípio superior
comum, e de chegarem ao acordo sobre os bens trocados que expressam
seus desejos. É essa disposição para os bens que Jean Barbeyrac descreve em
seu comentário a Pufendorf, referindo-se à distinção de Christian Thomasius

* Todas as citações a De vita beata foram extraídas da tradução de João Carlos Cabral
Mendonça publicada pela editora Martins Fontes. (N. do T.)

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146 O imperativo de justificação

entre uma “coisa em espécie”* e uma “coisa passível de substituição”, que


pode ser substituída por um “equivalente” (Jurisprudentia divina, livro 2,
cap. 11, § 13).

Pois apenas coisas do primeiro tipo podem ser colocadas a um preço tão alto
quanto desejemos. Para as outras, seja em um empréstimo ou em uma troca,
por exemplo, pretender-se-ia estimar seu grão ou seu vinho pelo maior valor,
muito embora fosse no fundo da mesma natureza e da mesma qualidade que
os do outro contratante; pecaríamos, disse o sr. Thomasius, contra a igualdade
natural dos homens, que não permite pesar o bem dos outros e o nosso próprio
em um equilíbrio desigual, nem julgar de forma diferente a eles ou àquilo que
lhes pertence sem uma justa causa. Acrescentamos que a natureza do comércio,
por meio do qual o preço é estabelecido, exige igualdade. (Pufendorf, 1771,
livro 5, cap. 1, § 8, v. 2, p. 9)

É porque propõe uma descrição desse estado das pessoas adequado à


relação mercantil, por meio “[d]aquela mudança imaginária de situações, [...]
a fim de produzir, com respeito a eles [os homens], a mais perfeita harmonia
de sentimentos e afetos” (Smith, 1860, p. 15), estado construído a partir de
uma disposição “à simpatia” e de um ser moral chamado “espectador im-
parcial”, que a Teoria dos sentimentos morais é um complemento necessário
para se depreender a construção de uma cité mercantil.

A d i s p o s i ção s i m pát i ca e a p o s i ção


d e e s p e c ta d o r i m pa r c i a l

Hume (1983) havia já chamado a atenção para uma comum disposi-


ção à simpatia, segundo a qual se encontram uns em relação aos outros,
disposição que permite fazer a relação social repousar sobre um sentimento
quase fisiológico compartilhado por todos, sem a necessidade de se recorrer
à razão, nem à bondade, que vimos ser considerada por Hume uma paixão
por demais fraca para conter a atração pelo ganho. Os espíritos de todos os
homens são tão semelhantes que “[nenhum deles pode] ser instigado por um
afeto ao qual todos os outros não sejam, em alguma medida, suscetíveis” e

* Isto é, a coisa “cuja natureza mesma [...] é suficiente para conhecê-la distintivamen-
te”, como definiria o próprio Pufendorf (1771, livro 5, cap. 7, § 1, p. 55). (N. do T.)

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A fundamentação do acordo na filosofia política 147

que “quando vejo os efeitos da paixão na voz e nos gestos de alguém, minha
mente passa imediatamente desses efeitos a suas causas e forma uma ideia tão
viva da paixão que essa ideia logo se converte na própria paixão”. “Sempre
que um objeto tenha uma tendência a produzir prazer em quem o possui,
[...] ele seguramente agradará o espectador, por uma sutil simpatia com o
possuinte” (p. 701, 702).
Adam Smith (1860) acompanha esse pensamento e acredita que é se juntan-
do aos gostos e às paixões dos outros, e não diretamente pela ideia de utilidade
das condutas, que se forma o julgamento: “A ideia de utilidade de todas as
qualidades desse tipo é apenas uma reflexão posterior, não aquilo que primeiro
as recomenda a nossa aprovação” (p. 16). Retomando as elaborações anteriores
de Hume – “[A] utilidade de qualquer objeto agrada ao seu dono porque lhe
sugere, constantemente, o prazer ou a comodidade que é capaz de lhe propor-
cionar”, diz Smith (p. 205), aludindo ao antecessor –, ele pretende impulsionar
o argumento ainda mais adiante, observando que o prazer pode mesmo não
estar relacionado à utilidade. Ele apresenta, como ilustração desse ponto, uma
série de exemplos idênticos a críticas, a denunciarem o caráter ilusório de uma
referência às necessidades e à utilidade, colocando em questão, portanto, o que
designaremos adiante como grandeza industrial. O primeiro desses exemplos
mostra um homem mais atormentado pela ideia de organizar meticulosamente
sua casa que por se instalar à vontade:

Para conseguir essa comodidade [colocar as cadeiras em seus lugares com os


encostos contra a parede, retirando-as do centro do aposento], impõe-se volun-
tariamente mais trabalho que a falta dela teria provocado. [...] Portanto, parece
que desejava não tanto a comodidade, como o arranjo que as coisas promovem.
E, no entanto, é essa comodidade o que, em última instância, recomenda o ar-
ranjo e o que lhe confere toda a sua conveniência e beleza. (Smith, 1860, p. 206)

O segundo exemplo coloca em cena uma pessoa atormentada pela ob-


sessão de adquirir, não importa a que custo, um relógio absolutamente exato:

Mas a pessoa que tem tanto zelo por essa máquina [que não se atrase mais que
um minuto a cada quinze dias] nem sempre seria mais escrupulosamente pontual
que outros homens, nem por algum outro motivo teria uma preocupação maior
de saber exatamente a hora do dia. O que a interessa não é tanto a obtenção
desse conhecimento particular, como a perfeição da máquina que serve para
alcançá-lo. (Smith, 1860, p. 206-207)

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148 O imperativo de justificação

Em ambos os casos, Smith revela a loucura, ou pelo menos a irra-


cionalidade, das condutas orientadas para a ordem e a precisão. Cada um
desses comportamentos poderia ser designado hoje como “compulsivo”, na
linguagem da psiquiatria, manifestando sintomas ordenados segundo o enqua-
dramento da neurose obsessiva. A economia libidinal construída por Freud
apresenta justamente forças ou entidades, como o inconsciente, próprias a
dar conta do equilíbrio dessas situações fora dos eixos. O exemplo escolhido
por Smith para questionar a importância de um princípio de eficiência é in-
teressante para introduzir a ideia, desenvolvida mais adiante em nosso livro,
segundo a qual os princípios devem ser ajustados às situações e que, se não
for esse o caso, a fixação em um princípio, sem se atentar para a situação,
será considerada um sinal de anormalidade, quiçá de insanidade. De fato, as
formas de se comportar descritas não teriam nenhum caráter de estranheza
se o cômodo a organizar fosse uma área de trabalho de uma indústria e se
o relógio devesse servir para medir o tempo em atividades técnicas coorde-
nadas. É porque as situações analisadas são notadamente domésticas e não
são facilmente acomodadas em uma ordenação exageradamente exigente
que a justificação dos sacrifícios que se dispõe a aceitar é duvidosa. Assim,
a meticulosidade é ainda mais facilmente revelada pelo psiquiatra como um
comportamento maníaco-obsessivo se for manifestada em atividades não
profissionais.
Os exemplos seguintes foram escolhidos por Smith (1860) para denun-
ciar a vaidade daqueles que buscam bens mais caros que úteis, as “quinqui-
lharias”, as “ninharias”: “riqueza e grandeza são meros enfeites frívolos”
(p. 208). Atacando o “amor à distinção, tão natural no homem” (p. 209),
Smith pondera o que é precioso contra o que é necessário: “Para quem vivesse
sozinho numa ilha deserta, talvez fosse duvidoso que um palácio ou uma
coleção dos pequenos utensílios, que por vezes cabem numa caixa de quin-
quilharias, pudessem contribuir mais para sua felicidade e deleite” (p. 209).
A vaidade e o desejo de aprovação dos outros, o que, como veremos, podem
fundamentar uma outra forma de acordo, por meio da opinião, é expressada
na construção de Smith passando-se pelos bens. A grandeza não é medida mais
pela estima, mas por intermédio da riqueza: “É a vaidade, não o bem-estar ou
o prazer, que nos interessa. Mas a vaidade sempre se funda sobre a crença
de que somos objeto de atenção e aprovação. O homem rico jacta-se de sua
riqueza, porque sente que naturalmente isso dirige sobre si a atenção do
mundo” (p. 54). A vaidade é, assim, “esse grande propósito da vida humana

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A fundamentação do acordo na filosofia política 149

a que chamamos melhorar nossa condição [bettering our condition*]” (p. 54).
Mas muito embora essa equivalência entre grandeza e riqueza seja exposta
como ilusória, ela não constitui menos por isso a fórmula de expressão dos
outros da cité mercantil:

Os prazeres da riqueza e das honras, considerados desse ponto de vista comple-


xo, atingem a imaginação como se se tratasse de algo grandioso, belo e nobre,
cuja obtenção vale bem todo o trabalho e cuidado que tão dispostos estamos a
lhes dedicar. E é bom que a natureza se imponha a nós dessa maneira. É essa
ilusão que dá origem e mantém em contínuo movimento a destreza dos homens.
(Smith, 1860, p. 210-211)

Smith (1860) coloca o sentimento de simpatia no coração de seu dis-


positivo, a fim de sustentar uma relação entre nós e um outro que faz com
que “tomemos o seu lugar [de nosso irmão que é torturado] e de certa forma
nos tornemos a mesma pessoa” (p. 2). Ele o converte no modo de aprovação
que sustenta um acordo cuja fundamentação unicamente no amor de si ou
no interesse pessoal, ou na razão e no cálculo utilitário, ele se recusa a consi-
derar: “A simpatia, no entanto, de maneira alguma pode ser considerada um
princípio egoísta”,2 e “nosso aplauso ou indignação não seriam motivados
pelo pensamento de nosso proveito ou sofrimento” (p. 372). Além disso, é
verdade que “um homem pode solidarizar-se com uma mulher que está por
dar à luz, embora seja impossível que conceba a si mesmo sofrendo as dores
do parto” (p. 373). Essa inclinação simpática é, assim, de alguma forma in-
termediária entre o total abandono das pessoas a seus interesses particulares e
o acesso aos “objetos [aos quais] atribuiremos qualidades de bom gosto e dis-
cernimento”, que “são considerados sem nenhuma relação particular conosco
ou com a pessoa cujos sentimentos estamos julgando” (p. 15):

Todos os assuntos gerais que ocupam a ciência e o bom gosto são o que nós e
nossos companheiros consideramos como desprovidos de uma relação peculiar
com qualquer um de nós. Ambos os vemos segundo o mesmo ponto de vista, e
não temos motivo para simpatia, ou para aquela mudança imaginária de situa-
ções da qual ela brota, a fim de produzir, com respeito a eles, a mais perfeita
harmonia de sentimentos e afetos. (Smith, 1860, p. 15)

* Citado em inglês em De la justification. (N. do T.)

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150 O imperativo de justificação

Smith descreve o resultado dessa “simpatia mútua” em termos da par-


tilha de sofrimentos semelhante à partilha de benefícios que relacionam os
indivíduos pela concorrência:

Como ficam aliviados os infelizes quando encontram uma pessoa a quem podem
comunicar a causa de sua dor! Com essa simpatia parecem livrar-se de parte de
sua aflição; e não sem razão se diz que essa pessoa partilha dela. Não apenas
sente uma dor da mesma espécie que eles sentem, mas é como se houvesse
transposto parte dela para si própria; o que ela experimenta parece aliviar o
peso do que eles sentem. (Smith, 1860, p. 9)

Assim sendo, ao criticar Hutcheson por sua referência a um poder de


percepção específico, a um “senso moral”, Smith (1860) considera ser neces-
sário seguir a natureza, que “opera neste, como em todos os outros casos,
com a mais rigorosa economia” (p. 378), fazendo com que a multiplicidade
de sensos de reflexão seja suportada por uma mesma causa, a simpatia, fa-
culdade pertencente a todos os homens (p. 378). A simpatia é, portanto, um
elemento fundamental da formulação de Smith, uma vez que ela contribui,
assim como a definição do estado de espectador imparcial que discutiremos
mais adiante, para converter as pessoas submissas às paixões em indivíduos,
que possam se identificar uns com os outros e, portanto, se entenderem em
um mercado de bens exteriores.
Aqui devemos mencionar como Pierre-Jean-Georges Cabanis lida com a
simpatia, porque ela permite compreender a passagem entre o uso dessa dis-
posição para construir os indivíduos na filosofia política mercantil e o papel
da determinação fisiológica desse instinto na construção organicista proposta
na cité industrial e retrabalhada por Durkheim. Cabanis, em seu memorial
sobre as Rapports du physique et du moral de l’homme [Relações entre o
físico e o moral do homem], publicado em 1802, pretende inscrever no corpo
a disposição simpática, como instinto fundamental (Cabanis, 1843, p. 469),
em seu esforço para levar as ciências morais para o campo da fisiologia (p. 48)
e constituir uma só e única disciplina, a “ciência humana do homem”, que
os alemães chamariam de antropologia (p. 59). Ele propôs, em oposição à
metafísica, uma teoria fundamentada fisiologicamente que influenciará, como
veremos na segunda parte, o positivismo de Saint-Simon:

A simpatia moral oferece então efeitos enormemente dignos de nota. Pela mera
potência de seus sinais, as impressões podem ser comunicadas de um ser sensível,
ou considerado como tal, a outros seres que, para as partilhar, parecem, assim,
identificar-se com ele. Veem-se indivíduos se atraírem ou se repelirem: suas

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A fundamentação do acordo na filosofia política 151

ideias e seus sentimentos por vezes se comunicam por uma linguagem secreta,
tão acelerada que as próprias impressões se colocam em perfeita harmonia.
(Cabanis, 1843, p. 59)

E Cabanis (1843) relembra que “esses efeitos [da simpatia moral], e


muitos outros a eles relacionados, foram tornados objetos de uma análise
bastante detalhada: a filosofia escocesa os considera o princípio de todas as
relações morais” (p. 59). Para o autor, essa simpatia claramente contribui para
que o homem se engrandeça: “reconhece-se logo que o único lado para o qual
os regozijos podem ser prorrogados indefinidamente é o da relação com os
semelhantes; que a existência se engrandece à medida que ela se associa às
afeições deles e os faz partilhar aquelas de que se esteja animado” (p. 51).
Além disso, os sinais pantomímicos

são os primeiros de todos, os únicos comuns a toda a raça humana: são a


verdadeira linguagem universal; e, anteriormente ao conhecimento de qualquer
língua falada, eles fazem as crianças correrem para outras crianças; eles as fa-
zem sorrir para aquelas que lhes sorriem; [...] outros idiomas se formam; e logo
quase existimos mais nos outros que em nós mesmos. [Essa faculdade] muitos
filósofos acreditaram ser dependente de um sexto sentido. E a designaram com
o nome de simpatia. (Cabanis, 1843, p. 89)

Ainda de acordo com ele, essa simpatia moral repousa sobre as tendên-
cias orgânicas mais profundas: “Em todo sistema orgânico, a semelhança ou
a analogia das matérias os faz tender particularmente uns na direção dos
outros” (Cabanis, 1843, p. 467), como se observa no caso de cicatrizes ou
enxertos (p. 468).
A referência a um estado de “espectador” está já presente em Hutche-
son, de quem Smith diretamente recebeu ensinamentos, e em Hume, que os
influenciou enormemente. Para o primeiro, ele serve, como a mise-en-scène da
reação de “observadores”, apelando ao julgamento dos outros para justificar,
com o reforço da opinião pública, uma conduta inspirada por benevolência
[benevolence], cujas fundações Hutcheson busca estabelecer. “A virtude é
chamada amistosa ou encantadora a partir do momento em que provoca
boa vontade ou amor nos espectadores em relação ao agente” (Hutcheson,
1725/1726 apud Raphael, 1975, p. 86).*

* Citado em inglês no original: “Virtue is then called amiable or lovely, from its raising
goodwill or love in spectators toward the agent”. (N. do T.)

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152 O imperativo de justificação

Hume faz igualmente referência a um estado de espectador segundo o


qual as pessoas acedem a um ponto de vista comum:

Sendo diferentes o prazer e o interesse de cada pessoa em particular, seria


impossível que os homens pudessem algum dia chegar a concordar em seus
sentimentos e julgamentos, a menos que escolhessem algum ponto de vista
comum, a partir do qual pudessem examinar seu objeto, que, assim, pareceria
ser o mesmo para todos. (Hume, 1983, p. 717)

O espectador é por vezes descrito como judicioso (“judicious”) (Hume,


1983, p. 706), por vezes como qualquer um (“every spectator”) (p. 718), para
justificar o acesso a um ponto de vista comum com os outros e se liberar da
influência que os laços domésticos podem exercer sobre a simpatia, favorecen-
do os “próximos” e os “conhecidos” em detrimento dos “estranhos” (p. 706).
Smith faz sua primeira menção a um “espectador imparcial” quando
elogia o autocontrole – virtude de inspiração estoica e cristã – de quem não
se entrega à raiva e à fúria, e sim

governa a reparação das grandes ofensas [...] pela indignação que naturalmente
provocam no espectador imparcial. [...] E assim como amar a nosso próximo do
mesmo modo que amamos a nós mesmos constitui a grande lei do cristianismo,
também é o grande preceito da natureza amarmos a nós mesmos apenas como
amamos a nosso próximo, ou, o que é o mesmo, como nosso próximo é capaz
de nos amar. (Smith, 1860, p. 21)

Esse apelo a um espectador pode ser considerado uma mise-en-scène do


ponto de vista dos outros, e a imagem do espelho, necessário para nos olhar
a nós mesmos, confirma essa impressão. Uma criatura humana, sem qualquer
comunicação com sua espécie,

não poderia pensar em seu próprio caráter, na conveniência ou demérito de


seus próprios sentimentos e conduta, na beleza ou deformidade de seu próprio
espírito, mais que na beleza e deformidade de seu próprio rosto. Todos esses
são objetos que não pode facilmente ver, para os quais naturalmente não olha
e com relação aos quais carece de espelho que sirva para apresentá-los à sua
vista. Tragam-na para a sociedade, e será imediatamente provida do espelho de
que antes carecia. (Smith, 1860, p. 126-127)

No entanto, Smith queria se distanciar de uma medida do acordo ba-


seada na aprovação dos outros, na opinião, como a que analisaremos no

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A fundamentação do acordo na filosofia política 153

próximo capítulo. Em uma segunda edição, ele modificou algumas passagens


do texto e explica em resposta a uma carta de Gilbert Elliot que devia tratar
desse ponto (Raphael, 1975, p. 90-91): as alterações deviam

tanto confirmar minha doutrina segundo a qual os julgamentos que fazemos de


nossa própria conduta têm sempre referência aos sentimentos de algum outro
ser humano, quanto, por outro lado, mostrar que, não obstante, a verdadeira
magnanimidade e a virtude consciente podem sustentar a si mesmas diante da
desaprovação de toda a humanidade. (Raphael, 1975, p. 90-91)

A desconfiança de Smith em relação à opinião pode ser relacionada ao


chamado Caso Calas.* Smith passaria uma temporada em Toulouse entre
1764 e 1765, dois anos após o episódio (Raphael, 1975, p. 92), movido pela
comoção com o pleito de Voltaire, mencionado em A teoria... (Smith, 1860,
p. 139), em favor da inocência do acusado.
O “sentimento dos outros” (sentiment of others) é reformulado no sen-
tido de uma jurisdição interior e de uma divisão interna da pessoa que em
muito se assemelha à construção do soberano em Rousseau:

Quando me esforço para examinar minha própria conduta, quando me esforço


para pronunciar sentença sobre ela, seja para aprová-la, seja para condená-la,
é evidente que, em todos esses casos, tudo se passa como se me dividisse em
duas pessoas; e que eu, examinador e juiz [examiner and judge], represento
um homem distinto perante o outro eu, a pessoa cuja conduta se examina e se
julga. (Smith, 1860, p. 129-130)

Essa elaboração prossegue na sexta edição da obra e conduz a uma


distinção entre o “amor ao louvor” (love of praise), que incita as pessoas a
se submeterem ao “império do julgamento dos outros”, a se entregarem às
lisonjas e mentiras, a olharem “para si mesmas não como devem se mostrar aos
companheiros, mas como realmente acreditam que são vistas” (p. 133), e um
desejo de “merecimento de louvor” (praiseworthiness) (p. 131), fundamentado

* Processo judicial no qual o comerciante Jean Calas, de Toulouse, foi, em 1762, preso,
torturado e executado pelo homicídio do próprio filho. Ele alegava inocência e sua história
é considerada um caso de flagrante perseguição religiosa, já que ele e a mulher eram
protestantes e a França, um país católico. Graças à defesa de Voltaire, o rei anularia a
sentença em 1764 e se reconheceria que o filho do casal se matara em virtude de uma
dívida de jogo. (N. do T.)

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154 O imperativo de justificação

em sua própria aprovação, que, distante da retumbância do aplauso, “não


depende, então, de ser confirmada pelos outros” (p. 135), “de se sustentar
em um sufrágio mais geral” (p. 151). O espectador imparcial, assim, aparece
à pessoa como uma instância de apelação interna (é nisso que ele lembra a
elaboração de Rousseau), que se pode convocar para revogar o sufrágio da
opinião:

Mas, ainda que dessa maneira o homem se torne juiz imediato da humanidade,
isso se deve apenas a uma decisão de primeira instância; dessa sentença cabe
apelação para um tribunal superior, o tribunal de suas próprias consciências, o
tribunal do espectador supostamente imparcial e esclarecido, do homem dentro
do peito – o grande juiz e árbitro de suas condutas. (Smith, 1860, p. 147)

A metáfora espacial da perspectiva ilustra perfeitamente a relação en-


tre o dispositivo do espectador e a medida de uma grandeza real, de suas
“dimensões reais”:

[É] apenas consultando esse juiz interior que poderemos ver o que nos diz
respeito em sua forma e dimensões apropriadas; ou que poderemos estabelecer
uma comparação apropriada entre nossos interesses e os de outras pessoas. No
que se refere ao olho do corpo, os objetos se apresentam grandes ou pequenos,
não tanto conforme suas reais dimensões,* mas conforme a proximidade ou
distância em que se encontram; o mesmo ocorre com o que se pode chamar
o olho natural do espírito; e remediamos os defeitos desses dois órgãos de
modo bastante parecido. [...] Posso estabelecer uma justa comparação entre os
grandes e pequenos objetos ao meu redor tão-somente me transportando, ao
menos na imaginação, a uma posição diferente, de onde posso examinar ambos
a distâncias quase iguais e assim formar algum juízo de sua real proporção.
(Smith, 1860, p. 151-152)

Como teremos ocasião de constatar mais adiante, quando discutirmos


a abertura para a crítica resultante da pluralidade de princípios superiores
comuns, a grandeza mercantil, embora frequentemente colocada em questão
na vida cotidiana, é muitas vezes criticada em favor de outra grandeza. É sob
o modo crítico que Thorstein Veblen (1953) se propõe a traçar uma detalhada

* Nesse ponto, Boltanski e Thévenot usam “grandeur réele” (“real grandeza”). Os grifos
do trecho são deles. (N. do T.)

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A fundamentação do acordo na filosofia política 155

imagem dos mecanismos da grandeza mercantil na sociedade americana, de-


núncia feita em nome da grandeza industrial, que analisaremos mais à frente.
Notemos, no entanto, que essa referência constante à grandeza industrial não
impede Veblen de a colocar em questão em sua própria existência, rejeitando
seus equipamentos, sejam eles técnicos (como um telefone) ou convencionais
(como os sistemas padronizados de classificação de alunos). Ele pinta então
um quadro das situações construídas de acordo com a cité mercantil que
deve, à sua maneira de antropólogo, ser tão preciso na descrição de seres
que seja passível de servir ao cálculo da grandeza mercantil – incluindo até
animais domésticos não “produtivos” (p. 102). E é também levado a separar
as situações consistentes com os princípios da grandeza industrial (que ele
chama de industrial efficiency) e as relações fundamentadas na apropriação
de bens mercantis, que perturbam a aplicação desses princípios. A distinção
assim desenvolvida ao longo de todo seu livro leva-o a denunciar alguns
compromissos entre esses dois princípios de grandeza, como aqueles pelos
quais entram em acordo o engenheiro e o homem de negócios no seio das
novas grandes “corporações”. Como assinala C. Wright Mills em sua intro-
dução, “Veblen consagrou sua vida inteira a esclarecer a diferença” entre
“a eficácia do honesto engenheiro” e “o fanático afã de ganho do homem de
negócios” (p. X-XI). Veblen associa o caráter “ostentatório” da acumulação
de bens a um desengajamento das dependências pessoais (p. 72), insistindo
assim nas características da relação mercantil, entendidas, de forma explícita,
como uma maneira de compreender os outros: “A posse encontra seu valor
não tanto em ser um bem-sucedido ataque e mais em evidenciar uma pre-
cedência adquirida por aqueles que possuem esses bens sobre os indivíduos
da comunidade” (p. 36). A referência, na literatura econômica contemporânea,
ao “consumo conspícuo”, considerado uma forma degradada de expressão dos
desejos dos consumidores que não se dirigem aos bens úteis, é um traço bastante
ocultado da tensão fundamental entre as grandezas mercantil e industrial que
está no cerne da teoria econômica.
Da mesma maneira que encontramos os elementos próprios às grandezas
cívica e industrial na definição proposta por Durkheim para uma sociologia
organicista, e que a grandeza da opinião é utilizada como força motriz crí-
tica em uma sociologia das ciências, assim também a construção da relação
mercantil, e particularmente o desenvolvimento da posição de espectador,
marcam não apenas a sociologia de inspiração diretamente econômica, mas
também, menos explicitamente, a construção de George Herbert Mead e,

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156 O imperativo de justificação

consequentemente, a sociologia que coloca as interações interindividuais no


centro de sua problematização.
Com efeito, Mead, em Mente, self e sociedade, reelabora os conceitos de
simpatia e de espectador, cujos papéis centrais na forma mercantil de acordo
já observamos – o que, aliás, o submete à crítica de “individualismo” por
parte de Georges Gurvitch no prefácio à publicação em francês do livro de
Mead. Em um capítulo intitulado “A natureza da simpatia”, Mead sugere
que esta “nasce, na forma humana, na excitação no self de alguém diante da
atitude do indivíduo que esse self observa, na tomada de atitude do outro
quando esse alguém observa esse outro” (Mead, 1963, p. 253). Por meio do
jogo (e conhecemos a continuidade das análises em termos de papéis, jogos
ou mise-en-scène), seja o “livre jogo” da criança que desempenha todos os
papéis, seja o “jogo regrado”, o indivíduo aprende a ser “um outro para si
mesmo” (p. 128).

O indivíduo experimenta a si mesmo como tal, não diretamente, mas apenas


de forma indireta, a partir de pontos de vista particulares de outros indivíduos
membros do mesmo grupo social ou a partir do ponto de vista generalizado dos
grupos sociais como um todo aos quais pertença [o que Mead denomina “outro
generalizado”]. Ele ingressa em sua própria experiência como self ou indivíduo
não direta ou imediatamente, não se tornando um sujeito para si mesmo, mas
apenas na medida em que se torne primeiramente um objeto para si mesmo
tanto quanto outros indivíduos sejam objetos para ele ou para sua experiência.
[...] A partir do momento em que [o self] tiver surgido, podemos imaginar uma
pessoa em confinamento solitário pelo resto de sua vida, mas que ainda assim
tenha a si mesma, seu self, como companhia. (Mead, 1963, p. 118-119)

A relação entre essa construção do estado das pessoas e as trocas pro-


priamente mercantis é explícita na obra do autor, que, como nos escritos a
que nos referimos anteriormente, salienta a importância de um acordo sobre
a exterioridade e a natureza dos bens negociados:

Se podemos reconhecer que o indivíduo realiza a si mesmo (himself), sua pró-


pria consciência, na identificação de si com o outro, então podemos dizer que o
processo econômico deva ser de forma que o indivíduo identifique a si com os
possíveis clientes com os quais troque coisas [um “representante”, como Mead
acrescentaria adiante], e que esse indivíduo precisa continuamente construir

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A fundamentação do acordo na filosofia política 157

formas de comunicação com esses outros indivíduos para tornar bem-sucedido


esse processo. (Mead, 1963, p. 252)

Ainda segundo ele, “[o representante] coloca a si no lugar do outro para


o enganar”. Mead, assim, dá conta do comércio por meio do caráter dos
bens negociados e pela capacidade dos indivíduos para os colocar a distância.

Mas o que torna [o objeto da troca mercantil] algo universal é o fato de ele não
se prestar ao uso direto do indivíduo. [...] O estabelecimento, assim, do meio de
troca é algo altamente abstrato. Depende da capacidade do indivíduo de colocar
a si [himself] no lugar do outro para ver que o outro necessita daquilo de que
ele próprio não necessita e de ver que aquilo de que ele não necessita é algo
de que o outro necessita. Todo o processo depende da identificação de um self
com o do outro. (Mead, 1963, p. 255)

O pensador é, dessa maneira, levado a traçar a seguinte imagem da


sociedade ideal:

A sociedade humana ideal é aquela que coloca as pessoas tão próximas em suas
inter-relações, que tão profundamente desenvolve o sistema necessário a essa
comunicação, que os indivíduos que exercitam suas próprias funções peculiares
podem tomar as atitudes daqueles que afetam. (Mead, 1963, p. 275)

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SEGUNDA PARTE

As cités

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CAPÍTULO 3

Ordens p o l í t i ca s e u m m o d e l o d e j u s t i ça

No capítulo anterior, buscamos derivar as linhas mestras da construção


de uma ordem mercantil. Nesta segunda parte, gostaríamos de a colocar ao
lado de outras ordens, apresentadas em outras obras clássicas da filosofia
política, sugerindo que elas são todas guiadas por um modelo comum, ao qual
oferecem uma variedade de especificidades, conforme a ordem de grandeza
esteja assentada sobre a riqueza, a estima, a vontade geral, a competência,
etc. Por que essa derivação foi necessária? A partir do momento em que
estamos interessados nos imperativos e/ou constrangimentos atuantes so-
bre as discórdias e sobre os esforços de coordenação, passam a ocupar um
lugar central as modalidades segundo as quais as pessoas se avaliam e se
comparam, estabelecendo equivalências e ordens entre si. É a maneira como
esses ordenamentos se executam efetivamente – segundo a qual, por exem-
plo, as pessoas se apoiam em uma reputação ou, em vez disso, a colocam
em questão – que nos interessa compreender. Este não é, então, um projeto
da filosofia política, delimitado pela interrogação a respeito dos princípios
de acordo. Pretendemos, contudo, explorar as relações entre os esforços de
coordenação colocados em ação nas situações cotidianas e as construções
de um princípio de ordem e de uma forma de bem comum. Queremos com
isso demonstrar que os imperativos atuantes sobre as construções de ordem
entre os seres humanos dizem respeito tanto aos filósofos políticos quanto às
pessoas que buscam se coordenar na prática e que as soluções propostas de
forma abstrata e sistemática pelos primeiros correspondem àquelas colocadas
em prática pelos segundos.
Não se trata, no entanto, de retomar o projeto a partir do qual partem essas
construções e de demonstrar que os homens se coordenam porque sua raciona-
lidade os leva a adotar infalivelmente um ou outro desses princípios. O mero
reconhecimento de sua pluralidade levanta já uma questão para a qual nenhum
deles pode oferecer uma resposta satisfatória. Mas essa dificuldade não é a única

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162 As cités

a nos afastar do projeto do qual esses princípios provêm. Ao passarmos da dis-


cussão dos princípios para a análise das situações de discórdia ou entendimento,
aquilo para que devemos nos preparar não é simplesmente um teste empí-
rico, para uma confrontação entre um modelo e sua aplicação. O momento
incerto da coordenação em situação introduz novos problemas pragmáticos
e apresenta questões ignoradas no projeto da filosofia política. Qual a natu-
reza do processo de comprovação ao qual é submetida a justificação? Como
as coisas mobilizadas na ação servem como provas nesse processo? Como
o julgamento é concluído e qual a dinâmica de sua colocação em questão?
Para responder a essas perguntas, nossa atenção se deslocará, na ter-
ceira parte do livro, da ordem entre as pessoas devidamente qualificadas e
ordenadas de acordo com princípios para as situações circunstanciais e os
momentos de engajamento incerto de pessoas e coisas. Desse modo, nos vol-
taremos para um corpus a priori enormemente distinto daquele em que aqui
nos concentramos. Nossa atenção se direcionará para os manuais práticos
que propõem maneiras justas de agir e descrever os instrumentos apropriados
para essas ações.
Assim, nesta segunda parte, para além das especificidades do princípio
mercantil e de uma natureza humana com ele compatível passíveis de serem
depreendidos da obra de Smith, procuraremos derivar um modelo comum
a filosofias políticas bastante distintas. Tratamos aqui as obras seleciona-
das como empreendimentos gramaticais de explicitação e fixação de regras
de acordo, isto é, indissociavelmente como corpos de regras prescritivas a
permitirem a construção de uma pequena ordem social harmoniosa e como
modelos da competência comum exigida das pessoas para que esse acordo
seja possível. Essas obras nos servirão de apoio para a elaboração de um
modelo de ordem legítima, designado como modelo da cité, que torna explí-
citas as exigências a serem satisfeitas por um princípio superior comum a fim
de fundamentar as justificações. Após revisar a tradição na qual se situam
as obras selecionadas e as razões pelas quais as escolhemos, analisaremos as
diferentes hipóteses que sustentam o modelo formal das cités ao confrontá-lo
com outros modelos de vida comunitária. Em seguida, mostraremos que a cité
mercantil encontra sua legitimidade nesse modelo, do qual representa uma
versão específica. Este capítulo se concluirá com a ilustração de uma cons-
trução política que não satisfaça as hipóteses do modelo da cité: a tentativa
de elaborar um “valor social” eugênico.

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Ordens políticas e um modelo de justiça 163

Filosofias p o l í t i ca s d o b e m c o m u m

Selecionamos obras clássicas da filosofia política que oferecessem expres-


sões sistemáticas de formas de bem comum às quais se faça correntemente
referência hoje em nossas sociedades. Esses sistemas, que podemos, portanto,
tomar como gramáticas da relação política, servem para justificar as aprecia-
ções sobre o caráter justo ou injusto de uma situação quando, uma vez que
as partes não possam mais transigir, a concórdia não esteja mais disponível
para as pessoas envolvidas. O acordo deverá, então, ser estabelecido em
um nível superior, de maneira que a equivalência seja geral. Um argumento
“aceitável”, como diz Ricœur (1979), é aquele que encerra esse movimento
de ascensão “por esgotar a série de ‘porquês’, pelo menos na situação de in-
terrogação e interlocução na qual essas questões são colocadas”. Faz-se sentir,
portanto, a necessidade de se referir a regras gerais que permitam passar da
amorfa justaposição de pessoas incomensuráveis a uma unidade organizada e
estabelecer, para tomar emprestado uma expressão de Louis Dumont (1966),
a “referência das partes ao todo”. Essa referência torna possível a avaliação
das grandezas relativas das pessoas, levando-as a entrar em acordo ou, se se
julgarem lesadas, a protestar, a exigir justiça.
O fundamento mesmo desses princípios não é explicitado senão rara-
mente nas condutas cotidianas. E é por essa razão que nos apoiamos em
construções filosóficas que contribuíram para desdobrar e formalizar cada
um dos sistemas de grandeza que hoje podemos identificar nas controvér-
sias. Extraímos essas construções de textos canônicos que estabeleceram os
lugares-comuns, as ideias mais consolidadas, da teoria política. Procuramos,
assim, identificar as formas de equivalência sobre as quais se fundamenta o
acordo legítimo, utilizando os tratados políticos clássicos, que apresentam,
cada um, no equilíbrio de uma forma de justiça, um princípio universal para
reger a cité.
Se cada um desses textos canônicos constitui a sistematização de uma
forma de acordo comumente colocada em prática nas situações cotidianas,
reciprocamente uma tentativa de esclarecimento do acordo não permitirá a
referência a alguma forma de justiça se essa não for já objeto de uma cons-
trução sistematizada na tradição política. Na falta de uma tal construção,
o esboço de um acordo resulta em algo da ordem da simples aproximação,
que se pode desqualificar, designando-a como fortuita.

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164 As cités

A tradição tópica. Pode-se dizer que nosso empreendimento reativa, de


alguma forma, a tradição do estudo dos “tópicos” – ou lugares-comuns –
integrante de um aprendizado de retórica que constituía em si o essencial das
humanidades clássicas. Assim sendo, também nos deteremos por um momen-
to sobre essa tradição. E para isso se faz necessário retornar ao momento
anterior à crítica cartesiana da retórica, hoje plenamente compreendida no
uso pejorativo do termo e, em particular, expressada pela famosa fórmula do
Discurso do método: “Os que têm o raciocínio mais forte e melhor digerem
seus pensamentos, a fim de torná-los claros e inteligíveis, sempre são os que
melhor podem persuadir do que propõem, ainda que só falem baixo-bretão
e nunca tenham aprendido retórica” (Descartes, 1953, p. 129-130).* É neces-
sário, portanto, recordar a importância conferida pelos antigos à retórica na
fundação da ordem política, papel resumido assim por Cícero, em De oratore
[Sobre o orador]: “Que outra força [além da eloquência] pôde reunir em um
mesmo lugar os homens dispersos, retirá-los de sua vida áspera e selvagem,
para os trazer para nosso estado atual de civilização, fundar as sociedades e
nelas fazer reinar as leis, os tribunais, o direito?” (Cícero, 1922-1928, livro
I, VIII, § 34, p. 18).
A retórica abarca a política ou é uma técnica que a ela pode servir?
A crítica de Platão à retórica, particularmente por meio do personagem do re-
tórico Górgias, diz respeito especificamente a suas relações com o verdadeiro
e o justo. De Tísias e Górgias, Sócrates diz no Fedro que eles “demonstraram
que o provável deve ser mais respeitado que o verdadeiro e que, por magia
da palavra, as coisas aparentemente pequenas se tornam grandes e as gran-
des, pequenas” (Platão, 1950, 267 a-b).** No Górgias, Sócrates se propõe a
mostrar ao mesmo a contradição pesando sobre a relação entre a retórica,
“produtora de persuasão”, que “cria a convicção”(Platão, 1987, 453a),*** e a
justiça. Se o orador for um não sabedor (459b), e se “não há matéria sobre
a qual não fale à multidão mais convincentemente que um profissional, seja
quem for” (456c), ele deve conhecer o justo e é preciso, portanto, que seja um

* Conforme tradução de Maria Ermantina Galvão publicada pela editora Martins Fontes.
(N. do T.)
** Conforme tradução de Pinharanda Gomes publicada pela Guimarães Editores. (N. do
T.)
*** Todas as citações ao diálogo Górgias foram extraídas da tradução de Jaime Bruna
publicada pela editora Difel. (N. do T.)

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Ordens políticas e um modelo de justiça 165

homem justo (460c). Como explicar, então, que ele pudesse usar de sua arte
para fazer o mal (457c, 460d)?
Essa techné, que, para Platão, era para a justiça o que a culinária é para
a medicina, “uma outra parte da política” (465b-d),* em Aristóteles (1967)
liberta-se da tutela em que a moralidade a mantinha, conforme a formula-
ção de Médéric Dufour em sua introdução à edição francesa da Retórica:
“É preciso estar apto a persuadir os outros do contrário de sua tese”, pois,
para o autor, a retórica se aplica igualmente a teses contrárias (Aristóteles,
1355a, p. 7, 13). No entanto, a função dessa arte não é pura e simplesmente
persuadir, como na definição proposta por Platão, e sim “verificar as formas
de persuasão comportadas por cada tema” (1355b). E em outra diferença
em relação a Platão, aqui “o verdadeiro e aquilo que parece verdadeiro” são
considerados próprios da mesma faculdade e são extraídos “daquilo que cada
tema comporta de persuasivo” (1356a). É ao segundo termo, o verossímil,
que a retórica é consagrada, para permitir “as conversações e as disputas
casuais”,** objetivo estabelecido no início dos Tópicos (Aristóteles, 1984, I, 2,
101a). Aristóteles analisa “o ‘lugar’ [topikós, top(o)] a partir do qual vai con-
duzir a argumentação” (VIII, 1, 155b): “Se tivermos presentes a quantidade
e o tipo de coisas sobre que versam os debates dialéticos, de que elementos
eles são constituídos, e quando é que nos podemos considerar aptos a usar
todos os recursos, então teremos alcançado o nosso objetivo” (I, 4, 101b).
Cícero retoma profusamente a metáfora dos “lugares”, nos quais o
orador “escavará” (Cícero, 1922-1928, v. 2, § 146) e dos quais extrairá seus
argumentos, após tê-los colocado metodicamente “em reserva”, em uma
localização devidamente indicada, como um “tesouro enterrado” (§ 174).
Ele chega mesmo a mostrar os argumentos a fluírem dessas “fontes de pro-
vas”, apresentando-se “a si próprios para a questão a tratar como as letras
para a palavra a ser escrita” (§ 130):

* Na íntegra: “uma parte da política corresponde à ginástica; é o legislar; outra correspon-


de à medicina; é o judiciar”. E como diz a nota do tradutor de Górgias: “[A] política
entende com a saúde das almas, em cujo benefício se criam e aplicam as leis”. (N. do
T.)
** Todas as citações aos Tópicos de Aristóteles foram extraídas da tradução de J. A. Segu-
rado e Campos publicada pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda de Portugal. (N. do
T.)

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166 As cités

Um objeto bem escondido, quando o lugar em que está ocultado esteja indicado
e identificado, é fácil de encontrar. Da mesma maneira, quando queremos ras-
trear argumentos, devemos conhecer os lugares onde são encontrados; é assim,
com efeito, que Aristóteles chama, por assim dizer, os locais [quasi sedes] nos
quais se buscam os argumentos. (Cícero, Tópicos, § 7)

Cícero, assim, questiona aqueles que, inclinados a julgar a verdade por


meio da dialética, negligenciam a invenção oratória que se fundamenta nesses
lugares e se concentra na verossimilhança, na aparência de verdade: “A arte
de encontrar [os argumentos] chamada tópica, preferível na prática e, na
ordem natural, garantidamente à primeira, foi por eles completamente dei-
xada de lado” (Cícero, Tópicos, § 6). Essa oposição é formulada de maneira
semelhante em De oratore, no qual o pensador romano apresenta sua crítica
a Diógenes, que “pretendia ensinar a arte de bem raciocinar e distinguir o
verdadeiro do falso, o que ele nomeou com a palavra grega ‘dialética’. Essa
arte, se o for, não oferece preceitos para descobrir a verdade, mas apenas
regras para julgá-la” (Cícero, 1922-1928, v. 2, § 157). Na Logique, de Antoine
Arnauld e Pierre Nicole (1981, livro III, XVII, p. 233), o capítulo intitulado
“Dos lugares ou do método de encontrar argumentos: como esse método é
de pouca utilidade” cita essa crítica para a retomar em conformidade com
a crítica cartesiana: “É, portanto, bastante desnecessário se preocupar com
em que ordem devem ser tratados os lugares [os tópicos da tradição tópica],
uma vez que isso é algo quase indiferente. Mas poderá talvez ser mais útil
analisar se não seria o caso de simplesmente não os tratar de todo”.
O De nostri temporis studiorum ratione [Sobre o método de estudos do
nosso tempo], de Giambattista Vico, é amplamente dedicado a essa mesma
oposição, aqui novamente invertida, com Vico recomendando a ars topica em
detrimento da posição crítica de Descartes, ou da de Arnauld e Nicole, orien-
tada exclusivamente pela distinção entre o verdadeiro e o falso (Vico, 1981,
p. 228). Ao mesmo tempo, ele retoma uma formulação bastante próxima à
de Cícero, mas com Descartes como alvo em vez de Diógenes: “O ensino da
tópica deve preceder o da crítica, da mesma maneira que a descoberta dos
argumentos precede por natureza o julgamento de seu caráter de verdade”
(Vico, 1981, p. 226-227, 1963, p. 160). “A tópica”, ele escreve, “é uma arte de
bem regular a primeira operação de nossa mente, ensinando todos os lugares
[topoi] que se devem percorrer para conhecer tudo quanto existe na coisa que
se quer bem, ou seja, totalmente conhecer” (Vico, 1963, p. 160). Vico, dessa

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Ordens políticas e um modelo de justiça 167

maneira, celebra a classe dos “espíritos inventivos [ingegnosi] e profundos


que tiram proveito desses lugares para inventar: sua engenhosidade [ingegno]
lhes permite apreender as sutilezas [acutezze] na velocidade da luz”.*
A descrição dessa “inventividade” tópica sustentada nos “lugares” coin-
cide bastante com a forte coerência e as múltiplas redundâncias que percebe-
mos na leitura das obras que utilizamos para prospectar as cités, assim como
daquelas analisadas na seção seguinte e das quais foram extraídas amostras
de mundos a elas correspondentes. Em Ciência nova, Vico escreve que

a mente humana é naturalmente levada a deleitar-se com o uniforme. Essa dig-


nidade, a propósito das fábulas, é confirmada pelo costume que tem o vulgo
que, sobre os homens numa ou noutra parte famosos, postos nestas ou naque-
las circunstâncias, de acordo com o que em certo estado lhes convém, finge as
fábulas apropriadas. As quais são verdades de ideia em conformidade com o
mérito daqueles sobre os quais as finge o vulgo; e, no entanto, por vezes são de
fato falsas, na medida em que não seja dado àqueles o mérito naquilo de que
eles são dignos. (Vico, 1963, livro I, II, § 47, p. 50)

Outra oposição que atravessa a Ciência nova e que podemos aproximar


da anterior nos interessa porque incide sobre a relação entre a lei e a jurispru-
dência (ou a razão), ou, em outros termos, usados por Vico (1963, § 111), entre
o “certo” e o “verdadeiro”. O “certo das leis” é sustentado pela autoridade para
dar suporte a uma aplicação dura feita por ela. A verdade, em contraste, é
iluminada pela “razão natural”. A “equidade natural da razão [jurisprudên-
cia] humana” é “uma prática da sabedoria nos assuntos da utilidade, pois
que ‘sabedoria’, no seu amplo sentido, não é senão a ciência de fazer uso das
coisas segundo a natureza que possuem” (§ 114, p. 77). Essa relação entre
o “certo” – termo cuja variedade de utilizações por Vico é, no entanto, sub-
linhada por Croce (1913, p. 99) – e o “verdadeiro” deve ademais ser obser-
vada à luz da influência de Grotius, que Vico iça ao posto de “jurisconsulto
da humanidade” (embora critique notadamente sua a-historicidade). Guido
Fassò enxergou nessa distinção certo/verdadeiro a marca de Grotius (Fassò,
1972, p. 47). Dario Faucci, por sua vez, destaca que “Grotius não conseguiu

* Vico, Giambattista. Vie et mort des nations: lecture de la science nouvelle de Giambattista
Vico, p. 49. Sobre as relações entre ingenium, ingenio, acumen e agudeza, consultar a
nota de Alain Pons (p. 131 da mesma obra).

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168 As cités

demonstrar a relação entre razão e autoridade, que é um dos aspectos da


relação entre certeza e verdade” (Faucci, 1969, p. 67).
Para concluir essa deriva por uma tradição oferecedora de um rico
inventário de categorias conceituais adaptadas à questão que nos ocupa,
notemos que o delicado equilíbrio buscado por Vico não é sempre mantido
entre seus comentadores. Embora Schumpeter considere esse autor um dos
três maiores sociólogos de todos os tempos, ao lado de Galton e Marx
(Schumpeter, 1983, v. 3, p. 64), pôde ser feita sobre ele, na direção aberta
por Croce (1913), uma leitura bastante idealista (Grassi, 1969, p. 50).
Nossa abordagem, no entanto, se aparta dessa tradição pelo cuidado
em tratar a justificação sob um único enquadramento, quer esteja em jogo
uma ação técnica de produção ou uma conduta moral. Essa escolha encontra
apoio certo na possibilidade de construir uma cité industrial com o mesmo
modelo que as outras cités. Observemos que a retórica, como techné relativa à
produção, é, por outro lado, claramente distinta da prudência em Aristóteles,
sabedoria prática relativa à conduta.
Dessa maneira, pesquisamos as expressões do bem comum tanto em
controvérsias ou desacordos surgidos no decurso das interações pessoais
(e cotidianamente qualificadas na linguagem da polidez, da civilidade ou do
caráter) quanto nas tensões entre o que comumente denominamos o público
e o privado (tratadas na relação com o Estado), em conflitos no mundo
do trabalho (desde as altercações pontuais até os conflitos geridos coletiva-
mente), ou mais generalizadamente em situações de disfunção das relações
econômicas (que podem se expressar em uma troca mercantil ou acerca de
um investimento técnico).
Assim, fomos capazes de observar a colocação em prática de seis princí-
pios superiores comuns dos quais os indivíduos mais recorrentemente lançam
mão, atualmente na França, para estabelecer um acordo ou conferir funda-
mentação a um litígio. Podemos dizer que esses princípios são, nesse sentido,
um equipamento político fundamental para confeccionar uma relação social.
A lista desses princípios, entretanto, não é fechada, e se pode divisar o esbo-
ço de construção de outras cités em conformidade com o modelo proposto.

***

Os críterios de seleção dos textos canônicos. Examinaremos agora as


regras que nos guiaram na escolha dos textos políticos utilizados para trazer
à tona as bases desses princípios superiores comuns.

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Ordens políticas e um modelo de justiça 169

a) Em primeiro lugar, procuramos utilizar o primeiro ou um dos primei-


ros textos nos quais a cité é apresentada de forma sistemática. Esses textos,
como já dissemos, podem ser comparados a obras de gramática: eles propõem
uma formulação geral, pertinente para todas e em todas as situações, vali-
dando os jogos de uso, os procedimentos, os arranjos ou as regras operacio-
nalizadas localmente. Assim, bem antes de Adam Smith, existiam mercados,
mercadores e argumentos baseados no lucro. Mas é em Smith que as relações
mercantis permitem, pela primeira vez, estabelecer um princípio universal de
justificação e construir uma cité fundamentada nesse princípio. Portanto, não
buscamos distinguir um princípio teórico de mercado de sua realização efetiva,
que daquele se aparte e a ele poderia preexistir, nem um indivíduo isolado de
um ser social, como na oposição formal/substantivo proposta por Polanyi.
Tratamos a obra de Smith como a de um filósofo político. A construção dessa
gramática política oferece um alcance geral, uma legitimidade (no preciso
sentido que conferimos a esse termo) a seres e relações envolvidas em laços
mercantis.
Para nossos propósitos, a questão da gênese histórica dos textos utiliza-
dos não é determinante e não a abordaremos sistematicamente, o que exigiria
um trabalho e análises impossíveis de se promover no âmbito deste livro. Mas
isso não torna menos real o fato de que as cités são constituídas do decurso
da história. Seu número não pode ser definido a priori. As grandezas mobi-
lizadas para administrar atualmente as situações justas foram estabilizadas
em épocas muito diferentes. Por outro lado, elas estão, de forma bastante
desigual, compostas no que é chamado “o Estado”. Assim, o que nomeare-
mos grandeza cívica apresenta hoje um caráter constitucional que a associa
à própria definição de Estado, ao mesmo tempo que a tópica doméstica, na
qual a generalidade é construída com base em relações de dependência entre
as pessoas, já não está hoje em dia diretamente relacionada com a definição
do Estado francês, como era o caso na época da monarquia absolutista.
Essa composição, com referência a diferentes grandezas, de um Esta-
do que não se confunde jamais com uma única cité, supõe especialmente
dispositivos de compromisso entre diferentes grandezas. É das modulações
possíveis na composição de várias grandezas que resulta a evidente dispa-
ridade entre diferentes Estados. Em contrapartida, propomos a hipótese de
que a constituição das cités conta com um escopo muito mais geral e que é
valida não para todas as sociedades, mas para todas aquelas marcadas pela
filosofia política moderna.

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170 As cités

b) O texto deve conter o princípio superior comum em uma construção


da grandeza que mostre um equilíbrio entre uma forma de sacrifício e uma
forma de bem comum com validade universal. Não são adequados, então,
textos nos quais os argumentos próprios de uma cité apareçam em uma or-
dem dispersa, de maneira meramente alusiva, incidental ou não sistemática
(muitas vezes trata-se de textos que precederam à fundação de uma cité).
Da mesma forma, descartamos textos nos quais se encontrassem profunda-
mente mescladas várias grandezas.1 Também não são adequadas as apresen-
tações críticas de uma grandeza. Assim, por exemplo, vê-se que a grandeza
construída sobre o princípio do reconhecimento da opinião dos outros está
presente nos textos dos moralistas franceses do século XVII, mas de uma
forma denunciatória, o que não é o caso no texto de Hobbes usado para
prospectar a cité da opinião. É necessário que o texto não se limite à crítica
e, mais que isso, que diga como o mundo é e como deve ser, como devem
ser organizados os seres de acordo com a ordem natural. Diferentemente dos
discursos críticos, que visam desconstruir uma ordem política denunciando
as falsas grandezas sobre as quais esta se sustenta, as construções tópicas
(Ansart, 1969) sobre as quais nos apoiaremos para estabelecer as gramáticas
políticas em uso na vida cotidiana fundamentam as grandezas estabelecidas
em um princípio de economia que coloca em ponderação o acesso ao estado
de grande e o sacrifício em favor do bem comum.
c) Expondo uma ordem harmoniosa e a economia da grandeza sobre
a qual esta se assenta, esses textos se apresentam explicitamente como pro-
jetos políticos: eles enunciam os princípios de justiça que regem a cité. É,
por exemplo, uma das razões pelas quais, no que diz respeito a construir
a grandeza da inspiração, nos apoiamos em Santo Agostinho. Teórico da
graça, sobre a qual construiu uma concepção intrinsecamente política e mís-
tica da cidade – como ordem social – e da história, ele se distingue com isso
de São João da Cruz ou Santa Teresa de Ávila, com os quais a experiência de
inspiração é expressada de uma forma mais impressionante e pura, mas não
relacionada à construção de uma ordem (embora ambos os autores tenham
sido construtores de instituições religiosas). O caso mais exemplar seria o de
um místico que pouco ou nada escreveu, mas cuja experiência de inspiração
foi a mais completa.
Da mesma forma, a grandeza doméstica, estabelecida com base na de-
pendência pessoal e na hierarquia, deverá ser derivada de tratados políticos
que veem na casa um princípio superior comum de validade universal, e

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Ordens políticas e um modelo de justiça 171

não, por exemplo, um princípio válido apenas nas relações familiares. Essas
obras que fazem da comunidade doméstica o princípio mesmo do Estado se
distinguem daquelas que, como Aristóteles, tomam-na como uma parte da
cidade-Estado, uma vez que esta é “por natureza, anterior à família e captura
a cada um tomado individualmente: o todo, com efeito, é necessariamente
anterior à parte” (Aristóteles, 1962, I, 2, p. 30).*
d) Na medida em que têm como objetivo fundar uma ordem natural a
fim de instaurar situações estáveis sob os auspícios de um princípio superior
comum, os textos utilizados devem ter uma mirada prática. Eles não devem
desenhar uma utopia, uma “república como ideia”, como diz Jean Bodin,
referindo-se às formulações de Platão e Thomas More (Bodin, 1987). Trata-
-se de guias para a ação, escritos para serem utilizados por aqueles que a
conduzem.
Uma origem comum dessas obras pode ser buscada na tradição retórica,
cujas fundações brevemente revisamos. Quentin Skinner, em sua análise dos
fundamentos do pensamento político moderno, colocou em evidência o en-
contro de duas diferentes abordagens da retórica, à medida que avançou o Re-
nascimento. Ele demonstrou, por um lado, a continuidade, nas cidades-Estado
italianas dos séculos XII e XIII, entre os tratados de retórica meramente téc-
nicos, cujo objetivo era exclusivamente prático, as ars dictaminis designadas
para auxiliar na elaboração de documentos oficiais, e as obras que reuniam
recomendações para uma boa gestão dos assuntos jurídicos ou políticos, ou
ainda coleções de conselhos diretamente direcionados à podestade, gênero no
qual pode ser ainda incluído O príncipe (Skinner, 1978, v. 1, p. 28-35). Por
outro lado, a partir da segunda metade do século XIII, a influência de um
ensino francês de retórica baseado sobretudo nos autores clássicos, especial-
mente em Cícero, levou a conferir mais importância às questões abordadas
por esses autores. Skinner cita o exemplo do livro de Brunetto Latini, do meio
do século XIII, ao mesmo tempo um guia prático, por conta dos modelos de
cartas e discursos nele incluídos, e um tratado de retórica e filosofia política
e moral, devido às abundantes referências dedicadas a Aristóteles e Cícero,
com a insistência do autor na ideia de que a principal ciência do governo
das cidades-Estado é justamente a retórica (p. 40). Essas obras comportam,

* Todas as citações à Política de Aristóteles foram extraídas da tradução de Roberto Leal


Ferreira publicada pela editora Martins Fontes. (N. do T.)

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172 As cités

assim, um questionamento sistemático da constituição do bem comum e


da superação dos interesses particulares que ameaçam a sobrevivência das
repúblicas, questionamento característico dos textos canônicos nos quais
buscamos as especificidades das cités; mas, por outro lado, eles também se
relacionam com os guias que analisaremos na seção posterior.
e) Finalmente, demos preferência a obras que tenham conhecido grande
difusão e, mais especificamente, aos textos que foram chamados a dar sua
contribuição para a confecção de tecnologias políticas, isto é, para construir
instrumentos de estabelecimento de equivalência de validade bastante geral,
ou para os justificar – como é o caso, por exemplo, de Do contrato social,
que, desde a Revolução Francesa, é usado para justificar as construções jurí-
dicas. Esse imperativo é necessário para tornar inteligível a relação entre os
textos canônicos, nos quais a grandeza é estabelecida em toda generalidade,
e os dispositivos ou argumentos nos quais as pessoas são engajadas quando
se situam em relação a uma ou outra grandeza.

O m o d e l o da c i t é

Nesta seção, buscaremos explicitar progressivamente o conjunto de hi-


póteses que permite definir o modelo comum da cité. Construído sobre uma
ordem de grandeza, ele suporta diversas construções de filosofia política e
orienta o senso comum, os usos práticos e correntes do justo. Esse percurso
progressivo nos permitirá evocar de passagem modelos mais fracos de co-
munidades políticas.
O primeiro axioma (a1) é o princípio de comum humanidade dos
membros da cité. Com efeito, o modelo pressupõe uma identificação do
conjunto de pessoas suscetíveis de entrar em acordo, os membros da cité,
e apresenta uma forma fundamental de equivalência entre esses membros,
que pertencem todos igualmente à humanidade. Além disso, as metafísicas
políticas que estudaremos têm em comum admitirem uma mesma definição
de humanidade, de modo que elas todas concordam no que diz respeito à
delimitação do conjunto dos seres humanos e ao princípio segundo o qual,
no interior desse conjunto, todos os seres humanos são tão humanos quanto
os outros. Esse princípio de humanidade comum exclui as construções polí-
ticas que admitem escravos ou subumanos. Não é, então, satisfeito por toda
e qualquer metafísica política e limita o âmbito das construções de que nos
propusemos a dar conta.
Essa restrição, a ausência de qualquer diferenciação, por si só, determina
uma metafísica política grosseira, de um único nível lógico, que denominaremos

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Ordens políticas e um modelo de justiça 173

pelo termo Éden (H1). Seus membros podem ser, todos, confundidos em uma
mesma classe de equivalência, e a humanidade comum não conhece senão
um único modelo de homem, um Adão. Essas construções definem mundos
perenes nos quais reina um acordo perpétuo de todos com todos (como em
algumas utopias). Mas embora seja pouco elaborado, esse modelo é útil para
se ter em mente como limite da cité.
As construções aqui analisadas, no entanto, pressupõem imperativos/
constrangimentos adicionais. O segundo axioma do modelo, designado como
princípio de dessemelhança (a2), destina-se justamente a excluir os Édens, ao
supor pelo menos dois estados possíveis para os membros da cité. Supondo‑se
que os comportamentos possam ser ajustados a esses estados – segundo
modalidades que deixaremos de lado por ora –, sua diferenciação permitirá
a partir disso formas de justificação das ações e situações de comprovação
para se atribuírem os estados.
Mas se for tomado isoladamente, esse segundo princípio permite en-
gendrar uma outra construção política simplista, na qual as singularidades
pessoais sejam tão preservadas que se chegue ao ponto de existirem tantos
estados quanto pessoas. Sob essa hipótese, o princípio de humanidade comum
não pode mais ser respeitado, o que interdita toda possibilidade de aproxima-
ção dos seres humanos nos estados. Entretanto, embora seja também grossei-
ra, essa construção é igualmente interessante, pois marca mais um limite para
o modelo da cité, na direção do qual recai o questionamento de qualquer
qualificação, de qualquer representação, em nome das singularidades pessoais.
A construção do modelo da cité impõe uma determinação das condi-
ções de acesso dos membros desse ordenamento aos estados, e o primeiro
imperativo, o de humanidade comum, pesa sobre essa determinação. Assim,
o caso em que os estados são atribuídos de maneira permanente às pessoas
é excluído pelo primeiro princípio. Uma metafísica política que podemos
denominar como de castas (ou baseada, por exemplo, em diferenciações
sexuais) é incompatível, portanto, com a humanidade comum.2 Para per-
manecer, então, coerente com os modelos de humanidade e permitir a com-
patibilidade dos dois imperativos anteriores, o modelo deve pressupor, para
todos os seus membros, um idêntico potencial de acesso a todos os estados,
que denotamos como sua dignidade comum (a3). O modelo de humanidade
de vários estados assim definido (H2) cria, dessa forma, a possibilidade de
acordos não simplistas, bem como de desacordos limitados a litígios sobre a
atribuição de um estado a uma pessoa, sem conduzir imediatamente a uma
controvérsia mais profunda sobre a definição desses estados. Acordos como

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174 As cités

esses são produzidos experimentalmente em situações de observação levadas a


cabo por psicólogos sociais, que buscam demonstrar as condições mínimas de
formação de uma identidade de grupo, permitindo especialmente aos atores
explicarem seus comportamentos. Mas diremos que essas justificativas são
fracas na medida em que sejam baseadas apenas em um modelo de humani-
dade de vários estados. Elas se opõem às justificativas fortes que tomamos
como objeto de pesquisa e que se mostram coerentes com o modelo completo
da cité, que comporta hipóteses suplementares.
Muitos acordos pressupõem não apenas a explicação das condutas, ou
sua previsão (o que é permitido pelo modelo H2), mas também sua orde-
nação, como a cada vez que se trate de ordenar ou distribuir. As disputas
poderão ser encerradas apenas quando estados forem ordenados (a4). Essa
ordem entre os estados, necessária para coordenar as ações e justificar as
distribuições, é expressada por uma escala de valor dos bens ou benefícios
inerentes a esses estados, criando uma tensão com o axioma da humanidade
comum (a1). Assim, se o potencial de acesso a todos os estados (a3) não for
assegurado, a ordem adquire o risco de se degenerar em um fracionamento
de humanidades, sem possibilidade de relação entre elas.
Os modelos de filosofia política que examinaremos propõem construções
contendo toda a tensão resultante desse duplo imperativo (entre a1 e a4) e
compreendem pessoas que têm em comum serem humanas apesar de estarem
ordenadas conforme um princípio de grandeza. Esses modelos dão conta de
uma humanidade confrontada pelas grandezas não iguais, mas que evita, não
obstante, a guerra civil.
Sabendo que, por conta de sua comum humanidade (a1) que os identifica
como seres humanos, todos os homens têm igual potencial de acesso (a3) aos
estados superiores (aos quais estão associadas as maiores satisfações), não se
entende, sem se recorrer a outras hipóteses, por que nem todos os membros
da cité se encontram no estado supremo (formando, assim, um Éden). Para
explicar por que não é esse o caso, é necessário referir-se a uma fórmula de
investimento (a5), que relacione o bem-estar de um estado superior a um
custo ou sacrifício exigido para a ele aceder. Essa fórmula de sacrifício ou de
economia* é o regulador que suprime a tensão entre a humanidade comum
e a ordem dos estados.

* No sentido de se fazer economia, poupança, contenção, moderação de gastos. (N. do T.)

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Ordens políticas e um modelo de justiça 175

O modelo de humanidade ordenada (H3) permite justificar uma gama


mais ampla de acordos do que a vista até aqui. No entanto, a possibilidade
de acordo largamente admissível ainda é incerta porque as pessoas no esta-
do inferior, necessariamente desejosas de usufruir dos benefícios associados
ao estado superior (estamos pensando aqui em um modelo de dois estados
simples, mas essa propriedade absolutamente não é necessária), se mostrarão
inclinadas, em vez de arcar com os custos envolvidos no acesso ao estado
mais elevado (a5), a colocar justamente esse custo em questão. Essa fórmula,
que faz as vezes de pedra angular na construção e que deve suportar todo o
peso do duplo imperativo da cité, por isso, corre o risco de não ter a solidez
necessária se não for apoiada pelo reforço de uma hipótese adicional.
Esse axioma adicional (H4) desempenha um papel central no modelo
da cité, ao relacionar os estados entre si por meio de uma hipótese sobre
os bens ou benefícios associados aos diferentes estados. Ele propõe que os
benefícios, tão maiores quanto se aproximem dos estados superiores, tocam
a toda a cité, sendo, assim, um bem comum (a6). Será apenas sob essa con-
dição suplementar, adicionada à ordem dos estados (a4), que falaremos de
uma ordem de grandeza. O bem comum se opõe à satisfação egoísta, que
deve ser sacrificada para se atingir um estado de grandeza superior.
Nesse axioma, reencontramos o sentido mais comum do termo cité,
cidade-Estado, ordem política, que implica uma referência a um bem comum
em uma sociedade em ordem. A dignidade comum (a3) torna-se, no modelo
completo da cité, uma igual capacidade de agir em conformidade com o bem
comum. As ordens da filosofia política são, assim, metafísicas, na medida
em que definem humanidades ligadas por um bem comum que ultrapassa os
benefícios particulares de cada pessoa.
As ordens assim fundadas são muito fortemente marcadas por esse últi-
mo axioma. O estado de grande não difere do estado de pequeno apenas na
medida do que oferece de mais bem-estar para quem a ele aceder, mas ainda
no que repercute justamente sobre o bem-estar dos pequenos. À sua satisfação
egoísta vêm se juntar os benefícios da grandeza dos grandes. Compreende‑se
melhor a estrutura dessa construção se, em vez de mergulhá-la imediatamente
nas especificações morais (o que seria, aliás, a tarefa dos filósofos políticos),
nos posicionarmos mais próximos da axiomática ao relacionarmos bem
comum e forma de generalidade. Como sugerido pela imagem da visita à
fábrica apresentada anteriormente, o acordo legítimo, se não for edênico,
repousa na constituição de uma ordem de generalidade. O que mais importa

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176 As cités

é aquilo que for mais geral, e o grau de generalidade dos grandes contribui
não apenas para seu bem-estar (que se caracteriza, portanto, por uma forma
de expansão de seu estar), mas também para o bem-estar dos pequenos. Essa
contribuição é expressada em cada forma específica de cité, pela modalidade
segundo a qual os grandes abarcam os pequenos: o estado de grande apresen-
ta a medida da cité, e não se pode atribuir uma grandeza, ou seja, constituir
classes de estados e os ordenar, senão a partir do conhecimento desse estado
superior. A cité é identificada por seu estado de maior grandeza, e aceder a
ele significa estar identificado com a cité. Em um tal modelo da cité (H4),
sobrepõem-se as noções de grandeza (a4) e de bem comum (a6), reunidas
no princípio superior comum. E este permite conter as divergências no nível
do admissível, evitando que elas se degenerem ao ponto de colocarem em
questão o princípio de acordo, isto é, a definição dos estados de grandeza e,
assim, os fundamentos mesmos da cité. As divergências sobre a atribuição de
um estado a uma pessoa são de um nível lógico inferior à convenção sobre
esses estados e os benefícios a eles inerentes.
Após explicar os elementos constitutivos do modelo da cité – o princípio
de humanidade comum (a1), o princípio de dessemelhança (a2), a dignidade
comum (a3), a ordem de grandeza (a4), a fórmula de investimento (a5) e
o bem comum (a6) –, esclareçamos sua estrutura formal, nos questionando
sobre os problemas que ela deverá resolver. Esse esclarecimento implica um
passo atrás a partir das obras de filósofos políticos analisadas, a fim de com-
preender sua empreitada como tentativa de integrar dois requisitos cuja com-
patibilidade é problemática. A estrutura do modelo suporta duas exigências
fundamentais fortemente antagônicas: l) um requisito de humanidade comum
que implica uma forma de identidade partilhada por todas as pessoas; e 2)
um requisito de ordenamento dessa humanidade. A definição do bem comum
é a pedra angular da construção que deve garantir a compatibilidade entre
essas duas exigências.
Uma segunda perspectiva requer um recuo ainda mais significativo, uma
vez que supõe levar em consideração a pluralidade dos princípios de acordo,
em vez de se permanecer no âmbito de um deles, cuja unicidade seria preciso
fundamentar. Antecipando futuros desenvolvimentos, dedicados à coexistência
de várias cités, sugeriremos que nosso modelo é uma resposta ao problema
colocado pela pluralidade de princípios de acordo disponíveis, o que exclui
imediatamente a utopia de um Éden. O modelo da cité deve permitir, por meio
da construção de uma ordem em torno de um bem comum, a redução dos

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Ordens políticas e um modelo de justiça 177

outros princípios. E embora ele faça referência apenas a um único princípio de


justificação, torna-se uma resposta à multiplicidade de princípios sem a qual
o mundo seria um Éden, e deixa aberta a possibilidade dessa multiplicidade,
muito embora assegure o primado de um único. A redução da pluralidade de
bens comuns é realizada por meio da construção de um ordenamento entre
eles, com o inferior sendo tratado como bem particularizado. O princípio de
dessemelhança (a2) e a ordem de grandeza (a4) sustentam uma ordem social,
segundo a qual uma das formas de generalidade é dotada da legitimidade
de bem comum da cité (característico dela), enquanto todas as outras são
reduzidas à condição de bem particularizado ao qual são associadas apenas
satisfações egoístas. E os outros bens comuns não são completamente ex-
purgados, sendo encontrados seus vestígios na descrição do bem-estar dos
pequenos, dos de menor grandeza. São reduzidos a satisfações singulares, a
autossatisfações. Essa redução de bem comum a bem particular, que rege as
relações entre as cités, será analisada detalhadamente na quarta parte do
livro, dedicada à crítica. A potência redutora do modelo da cité e a figura
crítica que a exprime estão ausentes de um Éden, no qual o bem particular
não encontra razão de ser, muito embora seja tratado de forma generalizada,
como no gênero retórico “epidíctico”: “A amplificação é a [técnica] mais
adequada ao gênero epidíctico; pois tem por matéria ações sobre as quais
todos estão de acordo; resta, então, apenas atribuir-lhes importância e beleza”
(Aristóteles, 1967, 1368a, p. 26).* A redução da pluralidade de formas de ge-
neralidade operada pelo modelo da cité igualmente esclarece a ideia de fórmula
de investimento: o sacrifício exigido para se atingir um estado de grandeza
aparece ligado, assim, ao afastamento das outras cités. Os benefícios parti-
culares dos pequenos, sacrificados no estado de maior grandeza, são, dessa
maneira, o traço dos outros bens comuns que não podem ser reconhecidos
como tais na cité.

***

O caso da cité mercantil. Ao retomar os elementos provenientes da aná-


lise da filosofia política mercantil proposta no capítulo anterior, buscaremos
testar a aplicação do modelo da cité. A proposta de se utilizar da economia

* Todas as citações à Retórica, de Aristóteles, foram extraídas da tradução de Manuel


Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena publicada por
Imprensa Nacional e Casa da Moeda de Portugal. (N. do T.)

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178 As cités

política para ilustrar o modelo apresentado pode parecer arriscado por várias
razões. De fato, o mercado serviu constantemente para colocar em questão
a possibilidade de um acordo geral intencional. Além disso, a sociologia se
constituiu [em parte] a partir de uma análise dos efeitos destrutivos dos laços
mercantis na construção de uma sociedade. A própria noção de individualis-
mo atrelada a esse modo de relação opõe-se a tal ponto às noções de cultura,
comunidade, coletividade ou sociedade que é atualmente difícil compreender
que uma cité pudesse ser construída com base em uma forma mercantil de
relação da mesma maneira como o seria por referência a um interesse geral
coletivo. No entanto, a explicitação dessa similaridade, difícil de estabelecer
na leitura de textos contemporâneos de economistas ou sociólogos, é possível
com a ajuda do modelo apresentado, seja retornando, como acabamos de
fazer, ao trabalho de filosofia política de Adam Smith, seja analisando – como
no capítulo VI – textos contemporâneos que apresentam a grandeza própria
do mercado.
A primeira exigência do modelo, a de humanidade comum (a1), que
permite identificar os seres humanos, é fundamental na economia política,
uma vez que serve para distinguir as pessoas dos bens exteriores, por cuja
apropriação elas concorrem: na cité mercantil, as pessoas não podem ser ne-
gociadas, como ocorre com os bens. As distinções de estado (a2) são definidas
por diferenças de riqueza, e esses estados estão claramente ordenados (a4).
A hipótese segundo a qual a possibilidade de enriquecer está aberta a todos
os homens (a3) é frequentemente apresentada para sustentar que o princí-
pio mercantil pode fundamentar uma forma de justiça. O custo associado a
essa forma de grandeza (a5) é o custo do senso de oportunidade que supõe
estar o tempo todo nos negócios, à procura de uma ocasião favorável, sem
jamais se acomodar sobre tradições, ligações pessoais, regras, projetos, etc.
E a última exigência, a do bem comum (a6), é aquela cujo estabelecimento
é mais delicado e cuja formulação mais elaborada na obra de Smith justifica
que nela busquemos a expressão da filosofia política mercantil. Propor que
a riqueza dos ricos beneficie a todos passa por uma explicitação da harmo-
nia de uma distribuição ainda desigual dos estados de grandeza, resultante
da concorrência entre os apetites regulada pelo acesso aos recursos escassos
(a mão invisível). Como em todas as formas específicas de cité, são os gran-
des, por sua grandeza, que sustentam a possibilidade de uma referência a um
plano superior comum. São os ricos que, pelos negócios que realizam, mantêm
a concorrência em um mercado. É nesse sentido que o luxo beneficia a todos, e

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Ordens políticas e um modelo de justiça 179

não por meio da indústria que ele fará viver. Diferentemente dos patrimônios,
a riqueza que alimenta as trocas mercantis beneficia a cité.
A economia política fundamenta, assim, uma cité, ao demonstrar como
as pessoas, para evitar uma discórdia perpétua, podem fazer apelo a um
princípio de coerência em suas condutas e nas argumentações que as justifi-
quem. Na cité mercantil, toda divergência pode se tornar litígio e se resolver
por meio de uma comprovação mercantil à qual as pessoas concordam em
se submeter. O choque violento dos apetites antagonistas é, assim, pacificado
sob os auspícios de um mercado ao qual as pessoas podem fazer referência,
como princípio superior comum, na busca de um acordo.

Uma ordem ilegítima: a eugenia

Mencionamos, na apresentação do modelo, a possível construção de


escalas de valor que permitam assentar uma ordem que não satisfaça à to-
talidade dos imperativos e/ou constrangimentos de constituição de uma cité
e, portanto, não permitam fundamentar justificações legítimas. Há modos
de avaliação, de qualificação de pessoas em uma hierarquia de estados, que,
diferentemente do enquadramento em termos de grandezas, não são com-
patíveis com a exigência de dignidade comum. E uma das principais conse-
quências da ausência de dignidade comum é o questionamento da distinção
entre seres humanos e seres não humanos. Uma ordem apoiada por um valor
ilegítimo não se fundamenta em uma total generalidade, na medida em que
sua compatibilidade com o princípio de humanidade comum não tenha sido
estabelecida. É precisamente a essa tarefa que se dedicou a filosofia política,
uma vez que se propôs a distinguir, entre o conjunto de valores reconhecidos
e relativos às pessoas e seus gostos, as grandezas justificadas sobre as quais
podem convergir os julgamentos na cité.
Como exemplo de valor ilegítimo, deteremo-nos por um momento sobre
as hierarquias baseadas nas desigualdades raciais e, mais generalizadamente,
biológicas. O desenvolvimento da eugenia deu vazão ao desenvolvimento de
um certo “valor social” (civic worth, nos termos de Francis Galton), destina-
do a avaliar o estado de “cidadão capaz” (serviceable citizen). O axioma de
humanidade comum não é nesse caso verificado, uma vez que as dotações das
pessoas são irremediavelmente desiguais no momento do nascimento. O valor
eugênico deve ser diferenciado das grandezas, que, em um aspecto ou outro,
podem ser consideradas adjacentes (Thévenot, 1990b). Como entre os filósofos

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180 As cités

que contribuíram para fundamentar uma grandeza, encontramos, também entre


os eugenistas, a colocação em questão de outras qualificações possíveis de
pessoas. Galton, na segunda edição de Hereditary Genious (­Galton, 1972,
p. 25-26), adverte o leitor sobre a possível confusão entre o valor que ele
se propõe a constituir e o gênio, no “sentido técnico” de Lombroso. Este,
aproximando em uma mesma categoria loucos e homens geniais, é levado
a colocar em equivalência pessoas cujo valor eugênico é o mais alto com
outras que seriam classificadas em um nível muito baixo nessa escala, se nos
basearmos na projeção de Galton (MacKenzie, 1981, p. 18) para os níveis
de “valor social” sobre as categorias sociais da pesquisa de Booth (1886).
O autor de Gênio hereditário, embora reconheça que “não faltam testes e
provas para evidenciar uma relação terrivelmente próxima [painfully close]
entre os dois [genialidade e loucura]”, lança-se a um questionamento bastante
claro do que analisaremos adiante sob o título de grandeza da inspiração e
que justificaria tal equivalência por alusão ao espírito que habita a pessoa
inspirada: “Se o gênio significa um sentimento de inspiração, ou um fluxo
de ideias com origem aparentemente sobrenatural, ou um desejo imoderado
e irresistível de cumprir um desígnio particular qualquer, trata-se de algo
perigosamente próximo das vozes ouvidas pelo insano” (Galton, 1972, p. 27).
Essa colocação em questão repousa sobre a referência a um “homem são”
encontrado em todas as tentativas de se construir um valor biológico.
O valor eugênico, apesar de se aproximar das formas de equivalência
baseadas na geração, não se confunde também com o que chamamos de grandeza
doméstica e que se baseia em uma aproximação por “engendramento”. A heredi-
tariedade dos homens eminentes não é a prosperidade de uma grande “casa”, e
Karl Pearson questiona diretamente a transmissão da qualidade de lorde, que
ele considera eugenicamente inadequada e própria para alimentar “plutocra-
tas vulgares”, “homens que não se preocuparam em criar e manter um bom
‘tronco’”. Note-se que a referência a “tronco” para fundamentar uma apro-
ximação é, contudo, propícia para se deslizar entre a grandeza doméstica, os
valores biológicos e ainda a grandeza industrial, com seu capital produtivo
(Sahlins, 1980, p. 179-180). A ordem eugênica pode, com efeito, ser consi-
derada uma ordem industrial degenerada, na medida em que a produção de
homens e a produtividade a eles associada são julgadas nos mesmos termos
que a dos objetos manufaturados.3
Encontram-se nos vários avatares do valor eugênico tentativas de constituição
de uma espécie de bem comum, assim como de uma forma de sacrifício. Alexis

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Ordens políticas e um modelo de justiça 181

Carrel fala da construção de uma “nova cidade” e destaca as “necessidades


públicas”, que se opõem ao “interesse pessoal” (Carrel, 1935, p. 353-354). Ele
escreve: “Não há benefícios financeiros e sociais grandes o bastante, honras
suficientemente elevadas, para recompensar adequadamente aqueles que, gra-
ças à sabedoria de seu casamento, gerarem gênios” (p. 367). No entanto, esse
sacrifício, que é julgado por meio da maneira como uma pessoa dá ou não
origem a uma progenitura, supõe um cálculo sobre um universo de muitas
gerações.4 Essa aproximação de várias gerações impede, por conta da assime-
tria temporal nisso implicada, de se manter a reciprocidade nas relações entre
as pessoas. Em sua teoria da justiça, Rawls exclui essa forma de bem comum
que beneficiaria as gerações futuras, enfatizando a assimetria temporal dela
resultante: “Não há possibilidade de gerações futuras melhorarem a situação
de uma menos afortunada primeira geração” (Rawls, 1973, § 44, p. 291).
Mas, acima de tudo, o fato de a própria delimitação dessa humanidade tor-
nar-se uma variável endógena, com o sacrifício sendo então, por assim dizer,
o de pessoas que não conseguiriam existir, é totalmente incompatível com os
imperativos fundamentais de uma cité.
Destacamos, para concluir o argumento sobre esse valor ilegítimo, que
os nazistas, que foram mais longe na suspensão do imperativo de humanidade
comum, com a exclusão especialmente de judeus ou ciganos, não puderam,
todavia, sustentar essa suspensão em toda e qualquer situação, o que teria
significado constituir duas classes de humanos, uma classe de pessoas e uma
classe de não pessoas. A hierarquização daqueles que eles consideravam não
pessoas só poderia contribuir para questionar a própria divisão: como se
poderia querer que algumas não pessoas tocassem violino se se admitisse que
tocar violino é uma prerrogativa das pessoas?
As aproximações implicadas nos julgamentos de valor ilegítimo são
ainda menos aceitáveis quando se aponta para uma situação na qual uma
controvérsia deve ser apurada por referência a uma forma de justiça, uma vez
que a exigência de generalidade de princípios invocados é, ela própria, tão
mais elevada quanto mais grave seja a questão. Os tribunais, ao julgarem
um grande caso e, particularmente, crimes violentos, são, assim, situações
nas quais a distinção entre argumentos justificados e aproximações injusti-
ficáveis é particularmente evidente. Os primeiros podem ser utilizados para
se fazerem valer as “circunstâncias atenuantes”, o que não é o caso com as
outras. Ao longo do processo de comprovação que constitui um processo
judicial, os argumentos mobilizados para apresentar uma justificação não

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182 As cités

podem consistir em aproximações simples. Para serem convincentes, eles


precisam ser elaborados, explicitando claramente o princípio de grandeza, o
tipo de sacrifício e a forma de dignidade próprios da cité a que pertencem.
A comprovação é, portanto, a oportunidade de lançar a grandeza à ação e
de tornar manifesta sua estrutura e seu equilíbrio.

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Capítulo 4

As f o r m a s p o l í t i ca s da g r a n d e z a

A c i t é i n s p i r a da

Em A Cidade de Deus, Santo Agostinho evoca a possibilidade de uma ci-


dade cujos membros fundamentariam sua concórdia em uma total aceitação
*

da graça, à qual não oporiam qualquer resistência. Pode-se argumentar que o


termo “cidade” é usado pelo autor em um sentido metafórico. Não apenas a
Cidade de Deus não é deste mundo, como ela é radicalmente oposta a uma
ordem política do mundo. Assim, ela pode ser associada à literatura escato-
lógica, que anuncia a vinda do Reino como o cumprimento da história da
salvação. Nesse sentido, a construção de Santo Agostinho seria mais própria
de uma teologia, e não de uma filosofia política. Mas a história da salvação
é também uma história política, porque, tanto no Novo Testamento quanto
no Antigo, a história da relação dos homens com Deus é lida no interior da
história da relação dos homens uns com os outros. Mais que isso, no Novo
Testamento, o Reino não designa mais apenas esse horizonte que marca o
estado final da história da salvação. Se é verdade que ela não será totalmente
instaurada senão com o Segundo Advento, ao mesmo tempo, no entanto, está

* Neste capítulo, quatro termos são adotados para tradução do original francês cité: ci-
dade, usado para ser fiel ao título consagrado da obra de Santo Agostinho A Cidade de
Deus [em francês, La Cité de Dieu], e seguindo os usos mobilizados nesse livro, como
quando se fala na “Cidade Terrena” (embora, como veremos, o sentido seja o de uma
ordem social nos moldes da cidade-Estado), além de outros usos clássicos do mesmo
formato, como os empregados por Rousseau; cidade-Estado, tradução mais literal que
indicará justamente o tipo de organização político-geográfica antiga a que se referem
tanto essa obra quanto a própria construção utópica de Boltanski e Thévenot; ordem
política, forma mais genérica, referindo-se à associação territorial e de cidadania traduzida
por todas essas formas; e, evidentemente, cité, nos termos já explicitados em “Sobre a
Tradução”, indicando o conceito do modelo das economias da grandeza. Assim, o ponto
fundamental deste capítulo, no que diz respeito à terminologia, é o caminho segundo o
qual os termos cidade, como usado por Santo Agostinho, e cité, como usado no modelo
das economias da grandeza, se sobrepõem. (N. do T.)

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184 As cités

já presente nos corações daqueles que, tocados pela graça, têm fé, ou seja,
aceitam, sem se opor, a graça a operar neles. Nesse sentido, o Reino está já
no mundo dos homens, mesmo não sendo, longe disso, a totalidade desse
mundo. A Cidade de Deus, obra histórica como a maioria dos livros do An-
tigo Testamento e da qual poderíamos dizer, com razão, que se trata de uma
das primeiras grandes construções de uma filosofia da história, é dedicada a
traçar a história da luta que se desenrola, depois da vinda do Messias, entre
dois mundos possíveis: um, habitado pela graça; outro, dela privado. Isso
significa que essas duas “cidades” – como os chama Santo Agostinho – são,
para ele, claramente modelos, nenhum deles plenamente realizado na vida
secular. Deste mundo, a graça de Deus não está totalmente ausente, porque
nem todos a rejeitam com a mesma força. Mas, ao mesmo tempo, a graça de
Deus não habita completamente este mundo, porque a maioria dos homens
a recusa. As “nações”, as “repúblicas” ou os “povos” deste “mundo” apre-
sentam “mesclas temporárias”, nas quais uma ou outra dessas duas cidades,
que o juízo final separará, estão, conforme o caso, mais ou menos presentes.
É para explicitar essa tensão entre dois mundos e para a colocar em ação em
uma história que, em Santo Agostinho, se prestam o uso do termo cidade – e
a nós o termo cité – e a metáfora das duas cidades. A colocação em paralelo
do Reino e do mundo, que permite sua redução a duas cidades comparáveis,
pelo menos em alguns aspectos, permite ligar a história da salvação e a história
política em uma filosofia da história. Transposto para o registro teológico, o
conceito de cidade, como empregado pelo autor, conserva, com efeito, algu-
mas de suas propriedades no registro político. A oposição das duas cidades
não é, assim, totalmente redutível a uma oposição nítida entre o Reino e o
mundo, o bem e o mal.
Essas duas ordens são classificadas conforme o grau em que realizam
o “bem comum” e asseguram a felicidade e a concórdia entre os seres. E o
conjunto desses seres não se limita aos homens; cada uma dessas duas con-
figurações é “comum aos anjos e aos homens”, uma vez que os anjos, tanto
quanto os homens, podem ser “bons ou maus” (CD, 35, 149).* O povo sobre

* Santo Agostinho, La Cité de Dieu. OEuvres de saint Augustin, Bibliothèque Augusti-


nienne. Paris: Desclée de Brouwer, 1959. v. 33 a 37. Publicado sob direção dos Études
Augustiniennes. Outras obras de Santo Agostinho às quais nos referimos neste capítulo
serão citadas da mesma coleção. Utilizamos as seguintes abreviaturas: CD para A Ci-
dade de Deus; CLG para Comentário ao Gênesis [como foi lançado em português, pela

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As formas políticas da grandeza 185

o qual a Cidade Terrena reina é “uma multidão de seres racionais associados


pela participação concorde nos bens que amam” (CD, 37, 163).* Com efeito,
“a Cidade Terrena, [...] mesmo ela, aspira à paz terrena e a harmonia bem­
‑ordenada do mando e da obediência de seus cidadãos fá-la assentar em um
certo equilíbrio das vontades humanas a respeito das questões relacionadas
com a vida mortal” (CD, 37, 129). Mas o grau de perfeição dessa concór-
dia depende do valor do que é amado e é “tão melhor” quanto as pessoas
concordem sobre as coisas “melhores” (CD, 37, 129). A ordem entre essas
cidades – e entre as cités – depende da ordem entre os bens comuns por
elas reconhecidos. A Cidade Terrena, que encontra cá na Terra “o seu bem,
tomando parte na alegria que estas coisas podem proporcionar”, é, “a maior
parte das vezes, dividida contra si própria com litígios, guerras, lutas, em
busca de vitórias mortíferas ou mesmo mortais” (CD, 36, 45). As “coisas
ínfimas” que ela procura

são bens e, não há dúvida, dádivas de Deus. Mas se, com desprezo dos bens
melhores que pertencem à cidade do alto em que a vitória se firmará em uma
paz eterna, soberana e segura, se desejam esses bens até se considerarem como
os únicos bens verdadeiros e se preferem aos bens considerados melhores – ne-
cessariamente que se seguirá a miséria agravando a que já havia. (CD, 36, 45)

Apenas a Cidade de Deus merece o nome de cité no sentido que en-


tendemos aqui, pois ela é a única capaz de levar os seres a transcender
suas individualidades em busca de um bem comum. Essa cité, “universal”
por vocação, “isto é, concedida a todos os povos” (CD, 34, 551), baseia-se,
como escreve Santo Agostinho em uma passagem do Comentário ao Gêne-
sis que precede e anuncia A Cidade de Deus, na “caridade”,1 no amor que
“não procura seu próprio interesse, ou seja, alegra-se pela excelência, não a
própria”, em oposição ao “orgulho”:

Editora Paulos, o Comentário literal ao Gênesis, De Genesi ad litteram, edição aqui


usada como fonte para os trechos, com tradução do frei Agustino Belmonte]; CP para
a Controvérsia pelagiana; CO para Confissões [para cujas citações foi usada a edição
da coleção Os Pensadores, com tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina].
Nas citações (por exemplo, CD, 35, 149), indicamos as iniciais do trabalho, o volume
na Bibliothèque Augustinienne e a página.
* Todas as citações a A Cidade de Deus foram extraídas da tradução de J. Dias Pereira
publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian. (N. do T.)

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186 As cités

[U]m que olha para o bem da utilidade comum em ordem à companhia celestial,
o outro, que submete o comum a seu poder por causa da dominação arrogante,
um, sujeito a Deus, o outro, rival de Deus; [...] um que quer para o próximo o
que quer para si, o outro, que quer submeter o próximo a si, um que governa
o próximo para a utilidade do próximo, o outro, para a sua utilidade. (CLG,
49, 261)

Essas duas cidades reconhecem, então, formas inversas de grandeza e in-


fortúnio. Enquanto a Cidade Terrena é habitada pelo “orgulho” – responsável
pela Queda (a expulsão do homem do Éden) e pelo pecado –, a Cidade de
Deus é fundada na “humildade”, que é a verdadeira grandeza. Com efeito,
são “orgulhosos” aqueles habitados por um “amor de si” e que “se compra-
zem em si mesmos”. Eles são pequenos porque seus desejos são direcionados
para a autossatisfação, que os reduz à solidão. Por sua vez, inversamente,
os “humildes” são “submissos a quem está acima de nós”, o que os abre
para a grandeza. Assim, “é próprio da humildade levantar ‘o coração ao alto’
de forma maravilhosa e é próprio da soberba baixá-lo. [...] [A] altivez rebaixa
e a humildade eleva” (CD, 35, 413). E enquanto a Cidade Terrena, nascida de
Caim, repousa sobre um crime fratricida, “arquetípico”, diz Santo Agostinho,
citando o poeta romano Lucano – “As primeiras paredes caiadas com sangue
fraterno” –, delito que preside a fundação de todas as nações deste mundo,
e particularmente, de Roma (CD, 36, 47), a Cidade de Deus é baseada no
sacrifício e na abnegação.
A possibilidade de a Cidade de Deus ser “peregrina neste mundo”, no
qual está “no exílio” (CD, 36, 135), depende inteiramente da graça (CD,
37, 269). Os homens se entregam completamente à Cidade Terrena sem a
redenção oferecida pela graça e é, então, do benefício da graça que depende
toda a grandeza real neste mundo. É, por exemplo, de uma “graça supe-
rabundante” que depende a “visão interior” dos “profetas” (CD, 37, 693).
Ora, essa graça “não é devida” (CD, 36, 137), ela é pura generosidade: de
seu concedente não se pode “comprar o favor” (CD, 36, 57). O acesso ao
estado de graça não é o resultado de manifestações de virtude apresentadas
pelos homens, pois a “graça misericordiosa”, que em seu princípio “pertence
a todos” (CD, 36, 277), mas apenas a “alguns” beneficia, é “imerecida” (CD,
37, 435). “Nesta vida não é por virtude nossa, mas por misericórdia de Deus,
[...] que se opera em nós a purificação dos pecados” (CD, 34, 503). A graça é,
assim, o verdadeiro fundamento da Cidade de Deus, única capaz de subtrair os

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As formas políticas da grandeza 187

homens da “miséria eterna” da Cidade Terrena. E ela é concedida geralmente


aos humildes. Assim, até mesmo o coração dos sábios na Cidade Terrena foi
obscurecido porque “[g]abaram-se de serem sábios (isto é, exaltando-se na sua
sabedoria sob o império do orgulho) e tornaram-se loucos” (CD, 35, 467).
A referência à loucura deve ser tomada aqui no sentido literal. Em cada um
dos mundos que analisamos, a crença na própria grandeza é tratada como
loucura quando se baseia em um princípio diferente daquele que funda a
grandeza da cité, como veremos adiante a respeito da cité doméstica, na
qual a loucura consiste em “não saber seu lugar”, ou na cité da opinião, que
reconhece a loucura no fato de “crer-se inspirado”.
A concepção agostiniana de graça é tornada mais precisa nos escritos
dedicados à controvérsia com Pelágio. Este, um nativo da Britânia (atual
Grã-Bretanha), exerce, nos anos 410-420, uma grande influência sobre o
novo movimento asceta que se desenvolve especialmente entre os leigos
cristãos mais letrados de Roma. Ele ensinava ser possível chegar à perfeição
e acreditava que a natureza humana foi criada precisamente para atingi-la:

Quando tenho para falar sobre o estabelecimento das regras para o compor-
tamento e a conduta de uma vida santa, sempre saliento, em primeiro lugar, o
poder e a funcionalidade da natureza humana, e mostro o que ela é capaz de
fazer... Isso, temendo que eu pareça estar perdendo meu tempo, ao conclamar
as pessoas a se lançarem em um percurso que elas consideram impossível de
concluir. (Brown, 1971, p. 406)

A fim de refutar Pelágio, que dota os homens de uma natureza inerente e


sempre suficiente, Agostinho salienta a diferença, no que diz respeito à graça,
entre a humanidade antes e depois da Queda. Após essa ruptura, o livre-ar-
bítrio é insuficiente para a salvação, ainda que a vontade não seja alienada
pela graça, já que aquele que implora a graça a Deus manifesta sua livre
vontade (CP, 21, 49). Mas essa súplica é ainda assim insuficiente e a graça
é dotada da “gratuidade” da dádiva (CP, 21, 251). Atribuir à virtude, como
faz Pelágio, o que é um feito da graça é equivalente a perpetuar o pecado
do orgulho justamente responsável pela Queda.
O princípio da graça é aquilo que permite diferenciar a grandeza ins-
pirada de outras formas de grandeza, denunciadas como interesses terrenos,
cuja busca conduz à loucura e à discórdia, e permite, assim, hierarquizar os
diferentes tipos de bens capazes de despertar o amor dos humanos e, por

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188 As cités

meio dele, interligar os homens. O bem mais frequentemente denunciado


e cujo infortúnio é mais afirmado, porque está mais diretamente ligado ao
orgulho, é a “vanglória”. A excelência é “indiferente à glória humana”, e
a virtude é ela própria sem grandeza quando é “levad[a] pelo prazer dos
louvores humanos” (CD, 33, 283). E a graça, ao se voltar para os humildes,
também desacredita a “avareza”, que tem a mesma natureza do orgulho,
e o “amor às riquezas”, porque “ninguém terá essa posse se se recusar a
possuí-la em comum” (CD, 36, 39). Por fim, é ainda a intervenção da graça
que realiza o novo nascimento, na Cidade de Deus, com a “regeneração” em
oposição à “geração” como princípio de engendramento doméstico. Assim,
Isaac, “o filho da promessa”, “simboliza a graça e não a natureza, porque
é o filho prometido a um velho e a uma velha mulher estéril”. Nesse nasci-
mento milagroso, “mais evidentemente se patenteia a graça”, uma vez que
há “falha da natureza”, e ela deveria agir “não por geração, mas por rege-
neração. [...] Também os nomes dos pais são mudados, tudo soa novidade e,
na Velha Aliança, como em uma sombra, se esconde a Nova” (CD, 36, 277).
A entrega à graça conduz ao desapego das grandezas domésticas: de modo
que Abraão, um caldeu, recebeu a ordem de “abandonar a sua terra, os seus
parentes e a casa e seu pai” para seguir “o caminho universal da libertação
da alma”2 (CD, 34, 551).
O modelo de grandeza inspirada prometido aos humildes indiferentes
aos bens da Cidade Terrena é colocado em prática pelos santos da Antigui-
dade Tardia estudados por Peter Brown (1983, p. 33-40) e que, por meio
do desapego e do ascetismo, buscavam estabelecer uma “relação pessoal com
o sobrenatural”. Essa “relação tangível entre o Céu e a terra” é alcançada
por meio de uma “tensão cuidadosamente mantida entre distância e proxi-
midade”, que garante “a praesentia, a presença física do sagrado” (Brown,
1984, p. 115). Essa experiência de grandeza, incompatível com o estado dos
“dispositivos [que medem] o que se espera dos homens nesta vida” e com
a “sensação de estar à parte” que os acompanha, leva a se dissociar de ou-
tras relações sociais, como no anacoretismo, por conta do qual “os ascetas
romperam com os suportes normais da identidade” (Brown, 1983, p. 46, 93,
173). É precisamente por meio do desengajamento das relações domésticas
baseadas no parentesco, na vizinhança ou na comunidade linguística que se
manifesta o chamado da graça: essa presença angélica

me alimenta, me molda, me conduz pela mão. E sobretudo, para além de tudo


mais, ela o faz de modo a me ligar a um certo homem – e eis o mais importante

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As formas políticas da grandeza 189

de tudo –, a um homem que não guardava comigo nenhuma relação de sangue


ou de raça, cuja casa não era próxima da minha, que não estava entre os meus
vizinhos, que absolutamente não pertencia ao mesmo povo que eu. (Gregório
Taumaturgo apud Brown, 1983, p. 141)

A carne deve ser vencida porque ela é o motivo pelo qual as grandezas
próprias de outras cités, tratadas aqui como infortúnios, estabelecem-se da
maneira mais irrevogável ao se fixarem nos hábitos e nos corpos das pessoas.
Diz Artemidoro de Daldis: “A mulher representaria, na vida do homem, o
que mais o envolveria e aquilo com mais estabilidade”. E ainda segundo ele,
quando um homem sonha com sua mulher, ele normalmente está pensando
em seu trabalho: “A mulher representa a profissão do sonhador ou suas
obrigações profissionais” (Artemidoro apud Brown, 1983, p. 171).* A espo-
sa, sublinha Michel Foucault (1984, p. 31) em seu comentário ao mesmo
texto, está “em uma relação natural com a ocupação e a profissão”. Assim,
a renúncia aos “assuntos mundanos”, à vaidade das “honras e responsabi-
lidades”, à “conversação”, à tentação de “chamar a atenção das principais
figuras colocadas neste mundo” (CO, 14, 35), tem como condição a renúncia
de tudo de carnal porque o “desejo de união da carne” é a “corrente” que
nos submete à “escravidão pelos assuntos mundanos” (CO, 14, 35).
Romper com essas relações corporais, que, pela concupiscência carnal,
aferram-se ao mundo, é também pré-requisito à utilização do corpo como
ferramenta de acesso às verdades mais elevadas e, portanto, como um instru-
mento fundamental da grandeza. A grandeza inspirada é, com efeito, indisso-
ciável da pessoa, ligada a seu próprio corpo, cujas manifestações inspiradas
são o modo privilegiado de expressão e cujo sacrifício constitui a forma de
realização mais completa.3 A inspiração se perde quando se depara com o
que pode torná-la objetiva e a dissociar do corpo em si, com a inscrição que
fixa e transporta ou mesmo com a palavra interior que supõe já a referência
a um terceiro: “Primeiramente invocamos o próprio Deus, não em palavras
faladas, mas daquela forma de oração sempre a nosso alcance: voltando a
alma em direção a Ele por aspiração, um sozinho em direção a um sozinho”
(Plotino apud Brown, 1971, p. 194).**

* Conforme tradução de Eliana Aguiar publicada pela editora Zahar. (N. do T.)
** Conforme tradução de Américo Sommerman publicada pela editora Polar. (N. do T.)

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190 As cités

E embora a santidade talvez não seja hoje uma maneira típica de se


realizar e, portanto, não seja especialmente buscada por muitas pessoas, a
referência a essa cité permanece essencial a cada vez que as pessoas acedem
à grandeza dispensando o reconhecimento dos outros e independentemente
das opiniões das pessoas. De fato, essa é uma das principais características da
grandeza inspirada: valorizar a renúncia de si em favor dos outros – os
eremitas “oram e fazem penitência por todos” (Chiavaro, 1987), sem, con-
tudo, conferir qualquer crédito ao reconhecimento dos outros. “Nenhum
profeta”, escreve Max Weber (1971, p. 249), “jamais considerou que sua
qualidade dependesse das atitudes das massas em relação a ele”. É o caso, por
exemplo, dos artistas, que, sem necessariamente recusar a estima do público
ou o dinheiro (aceitos por meio de um compromisso sempre difícil de alcan-
çar entre a grandeza do renome e a grandeza mercantil), não os consideram
o princípio fundamental de valor de sua obra e de sua grandeza; ou, em
outros aspectos, daqueles que, no interior das chamadas “vanguardas políti-
cas”, empreendem, frequentemente até o ponto do martírio, uma ação que,
para se justificar, não necessita ser apoiada por uma organização ou mesmo
ser entendida por aqueles por cujo bem é realizada; ou ainda daqueles cujas
ações inspiradas os fazem passar por inovadores, originais, desesperados ou
vândalos (Boltanski, 1984).
Vimos que a busca por inspiração é expressada indiretamente pela
crítica a outras formas de produzir grandeza, seja pela dependência pessoal
da consideração dos grandes deste mundo ou ainda pela busca de renome
e glória. Mas essa posição contém uma ambiguidade fundamental que, de
Santo Agostinho às Confissões de Rousseau (ver a seguir), foi muitas vezes
apontada e comentada. Com efeito, se um projeto orientado para a glória,
ou simplesmente para os outros, na medida em que seu reconhecimento seja
o fundador da grandeza da pessoa, é suficiente para abolir a graça (que
não surge pela convicção de a possuir ou, menos ainda, pela manifestação
ostensiva da crença em sua posse), por que abandonar a contemplação em
favor da expressão, a “fala do silêncio” (CO, 14, 117) em favor da fala, a
passividade do espírito na experiência da verdade em favor da “teorização”
dessa experiência?
Santo Agostinho não se expõe nem a Deus, “a cujos olhos está patente
o abismo da consciência humana” (CO, 14, 143), nem aos homens, “gente
curiosa para conhecer a vida alheia e que indolente para corrigir a sua!”; ele

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As formas políticas da grandeza 191

busca a Deus na profundidade de seu “espaço interior” e o louva “aos ou-


vidos dos crentes” para reunir a suas próprias as ações de graça deles; não
para se dar como exemplo, enfrentar seu julgamento, procurar sua culpa
ou buscar seus elogios. A confissão pública de pecados é suspeita porque
a denúncia da “vanglória” pode ser uma forma indireta de atrair para si a
consideração dos outros:

As nossas palavras, saídas da boca, e as nossas ações, conhecidas dos homens,


escondem uma tentação muito perigosa, originada da estima do louvor, a qual
recolhe e mendiga votos e pareceres alheios. A vanglória tenta-me até mesmo
quando a critico em mim. Mas eu repreendo-a desse mesmo desejo de louvor.
O homem muitas vezes gloria-se vãmente no desprezo da vanglória. Mas, de
fato, já não se pode gloriar nesse desprezo de glória, porque quando se gloria,
já não despreza a glória. (CO, 14, 257)

A cité inspirada, cujo estabelecimento exige, como já vimos em Santo


Agostinho, a renúncia da glória, é lugar de uma tensão permanente com a
grandeza da opinião. Com efeito, a ruptura com o mundo, necessária para
dar chances à inspiração, passa pelo uso de procedimentos de ascetismo, cuja
colocação em prática pode ser mais ou menos radical. Mas, uma vez que o
asceta realize feitos extraordinários, ele atrai para si as multidões e deve fugir
para escapar de sua fama. Assim, os Pais do Deserto, a quem devemos reco-
nhecer alguns dos processos de ruptura mais rigorosos, que aspiravam somen-
te a Deus e que, como o pai Arsênio e o pai Teodoro de Pherme,* “odiavam
acima de tudo a estima dos homens” (Guy, 1976, p. 28), fugiam sem cessar
da fama despertada diante dos outros por suas façanhas ascéticas – eles são
comparados por seus contemporâneos aos “atletas” (Paládio de Antioquia,
1981, p. 30) – e ainda mais pelo excesso que investiam para ignorá-las. Pai
Arsênio manda retornar a Roma a “virgem de posto senatorial” que foi até
o deserto para o ver – “Como se atreve a fazer tal viagem? [...] É para, de
volta a Roma, dizer a outras mulheres: ‘Eu vi Arsênio’ e para, em seguida,
elas virem fazer do mar uma estrada de mulheres vindo até mim?” (p. 27).

* Monastério ermitão fixado nos primeiros séculos do cristianismo na região mais periférica
do Delta do Nilo, no meio do deserto da Nítria, próximo à comunidade de Kellia, que
também conta com um mosteiro do tipo. (N. do T.)

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192 As cités

O pai Teodoro recusa o cargo de diácono e foge (p. 67). O pai Poimém es-
capa aos olhos de sua mãe e a deixa chorando a sua porta (p. 133). O pai
Longin esconde sua identidade para a mulher que, atraída por sua fama,
demanda vê-lo para ser curada: “Ao encontrá-lo, ela diz, ignorando se tratar
dele: ‘Abba, onde habita o abba Longin, o servo de Deus?’ E ele lhe diz: ‘Por
que buscais esse impostor?’” (p. 91). O pai Moisés foge para o pântano ao
saber que o chefe da região, que ouviu falar dele, virá vê-lo; lá, ele encontra
aqueles que o buscam e que lhe perguntam: “Diga-nos, velho, onde é a cela
do abba Moisés?” E ele responde: “O que desejais vós dele? Trata-se de um
homem simples de espírito”. Ao saber mais tarde ter conhecido o pai Moisés,
“bastante edificado, o chefe da região se retira” (p. 106).4

A c i t é d o m é s t i ca

Nas construções clássicas da cité doméstica, a grandeza das pessoas depende


de sua posição hierárquica em uma cadeia de dependências pessoais no interior
“de um universo ordenado e hierarquizado pelo pensamento de Deus, com
posições e graus” (Mousnier, 1974, v. 1, p. 15). A pessoa individual não pode,
nesse modelo, ser separada de seu pertencimento a um corpo, concebido, ele
próprio, como uma pessoa caracterizada por sua posição. Ela é igualmente
definida por seu pertencimento a uma linhagem, dotada de uma identidade
própria, superior à dos indivíduos que a realizam no tempo, de modo que o
autor de um testamento e seu herdeiro podem ser legalmente considerados
componentes de uma só pessoa (Kantorowicz, 1957, p. 330). O indivíduo é
um elo na “grande cadeia dos seres”, e cada um se encontra entre um supe-
rior, do qual recebe, por meio de um relacionamento pessoal, uma potência
de acesso à grandeza, e inferiores, os quais abarca e encarna. Nessa cité
doméstica, a relação entre os seres é concebida como uma geração da rela-
ção familiar: cada um representa um pai para seus subordinados e mantém
relações filiais com aquele que representa a autoridade. Mas a analogia com
a família se refere aqui menos aos laços de sangue que ao pertencimento a
uma mesma casa, como um território no qual se inscreve a relação de depen-
dência doméstica. Assim, nas descrições da sociedade camponesa tradicional,
em conformidade com esse modelo (aqui, na região francesa de Margeride,
nos séculos XVIII e XIX),

cada um se move com um halo em torno de si, que é a história de sua categoria,
sua família, sua linhagem patrimonial, o espaço, o tempo e a memória ocupados

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As formas políticas da grandeza 193

na aldeia por sua ousta* – sua casa, em sentido semelhante ao das casas reais.
[Pois essa] casa se cola a sua pele, e mesmo se lhe for dada a oportunidade
de se provar sua força individual, o que permanece em última instância é sua
linhagem ou situação familiar. Sem sua família não se é nada. (Claverie; La-
maison, 1982, p. 84)

Os seres são distribuídos de acordo com a relação que nutrem com


uma casa (como é mostrado, por exemplo, na distinção, muito relevante
nessa cité, entre animais domésticos e animais selvagens) e, no interior des-
ta, conforme o papel que desempenham na reprodução da linhagem. Esse
modo de distribuição neutraliza a divisão entre idades, com a distinção entre
crianças e adultos tornada menos relevante (ignorando-se a particularidade
infantil) que a diferenciação entre os vários filhos no interior de uma mes-
ma unidade doméstica, conforme estejam em posição de mais velho (seja
essa definição biológica ou designada pelo pai, como na expressão “apontar
um sucessor”**) ou de mais novo, condenado a buscar sua fortuna longe de
casa (Claverie; Lamaison, 1982, p. 60). Como sugere esse exemplo, em uma
fórmula de subordinação estabelecida em um modelo doméstico, a grandeza
é um estado que, para ser avaliado na justa medida, deve ser relacionado às
relações de dependência das quais as pessoas extraem a autoridade que podem,
por sua vez, exercer sobre os outros. Conhecer sua categoria é conhecer sua
grandeza e se conhecer: Assim, “o homem honesto”, diz Auerbach (1968,
p. 366-376), é valorizado por sua capacidade de não deixar de “saber seu
lugar” – e, recordemos, não “saber seu lugar”, na lógica desta cité, é a marca
da insanidade –, isto é, ele é medido pela precisão com que saiba avaliar sua
própria grandeza, relacionando-a a sua posição na cadeia de dependências
pessoais. E mesmo os servos, no estado desafortunado a eles característico,
tomam parte na grandeza de seu senhor e de seus bens.
Esse tema é amplamente desenvolvido por La Bruyère:

* A palavra, em occitano, remete a um sentido de casa como uma unidade de vida comum
complexa que, ainda segundo Elisabeth Claverie e Pierre Lamaison, “antes de ser definida
como uma edificação de habitação-exploração econômica [como se poderia entender, por
exemplo, uma casa de fazenda], poderia ser definida como um ‘quem-vive’. Com efeito,
é em grande medida a atmosfera de espera por um combate que evoca a ousta por seu
conjunto de práticas sociais. [...] E ainda que a ousta seja uma unidade econômica –
uma casa, uma família, terras, gado – ela é também fruto de uma política”. (N. do T.)
** Literalmente, “apontar um filho mais velho”. (N. do T.)

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194 As cités

O guarda suíço, o valet de chambre, o lacaio de libré, se não contam com mais
espírito que o conferido por sua condição, também não se julgam a si mesmos
por sua baixeza fundamental, mas pela elevação e a fortuna das pessoas a que
servem, e colocam a todos que passam por sua porta, e que sobem suas escadas,
indistintamente abaixo deles e de seus senhores: e tanto isso é verdade que todos
estão destinados a ser afetados pelos grandes e por aqueles a eles subordinados.
(La Bruyère, 1965, n. 33, p. 233)

A mesma ideia é retomada, um século e meio mais tarde, por Toc-


queville, no capítulo de A democracia na América consagrado às relações
de domesticidade (Tocqueville, 1981, v. 2, p. 221-230). Mas nesse caso ela
é exposta a partir de uma nova posição que, com base no comparatismo,
torna possível a colocação à distância do relativismo tão moderno do “olhar
antropológico” de Tocqueville para a modernidade (Furet, 1981, p. 41):

Entre os povos aristocráticos, o amo acaba, portanto, encarando seus servidores


como uma parte inferior e secundária de si mesmo, e muitas vezes se interessa pela
sorte deles, num derradeiro esforço de egoísmo. Por sua vez, os servidores não
estão longe de se considerar do mesmo ponto de vista e se identificam às vezes
à pessoa do amo, de tal modo que acabam se tornando um acessório deste,
aos seus próprios olhos como aos do amo. [...] Nessa extremidade, o servidor
acaba se desinteressando de si mesmo, aparta-se de si, deserta-se de certa forma,
ou antes, transporta-se por inteiro em seu amo, e aí cria uma personalidade
imaginária para si. Atavia-se complacentemente com as riquezas daqueles que
mandam nele; glorifica-se com a glória deles, realça-se com a nobreza deles e
alimenta-se sem cessar com uma grandeza tomada de empréstimo, dando a ela
muitas vezes mais valor que davam aqueles a quem pertence plena e verdadei-
ramente. (Tocqueville, 1981, p. 224)*

Uma das manifestações possíveis do modelo da cité doméstica é desen-


volvida por Jacques-Bénigne Bossuet para benefício do delfim (Bossuet, 1967).
A Politique tirée des propres paroles de l’écriture sainte [Política extraída das
próprias palavras das Sagradas Escrituras] visa, como A Cidade de Deus,
derivar de uma exegese dos textos sagrados as formas de relação legítima
entre os seres. Mas enquanto Santo Agostinho desenvolve sua interpretação
a fim de destacar o que pode fundamentar o caráter inspirado da Cidade de

* Conforme tradução de Eduardo Brandão publicada pela editora Martins Fontes. (N. do T.)

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As formas políticas da grandeza 195

Deus, em detrimento das grandezas domésticas, em geral ignoradas, quando


não denunciadas, Bossuet se empenha para assentar a legitimidade do reina-
do da França sobre as formas de relação doméstica das quais as Escrituras
(e especialmente o Antigo Testamento) oferecem muitos exemplos. Ele retoma
a ideia ancestral de que o rei ocupa no reino a mesma posição que Deus no
universo, expressando-a na linguagem moderna do absolutismo e tomando
de empréstimo às traduções de Do cidadão, de Hobbes, a fórmula segundo
a qual “todo o Estado está concentrado na pessoa do rei” (Keohane, 1980,
p. 252). Bossuet não é o primeiro a ter generalizado em uma política o prin-
cípio de parentesco, e podemos vê-lo na literatura histórica – por exemplo, no
livro de Andrew Lewis Le sang royal [Royal succession in Capetian France:
studies on familial order and the State], que analisa, na evolução das formas
dinásticas do século X ao século XIV (Lewis, 1986), inúmeros exemplos
de construções que contribuem para fundar o Estado como uma extensão da
família real. Mas é precisamente o caráter tardio de seu ingresso no tema (ele
praticamente não apresenta continuadores) que confere ao trabalho de Bos-
suet interesse excepcional. Conformado pelas construções da filosofia política
de seu tempo (que implicitamente refuta), ele se apresenta como uma axio-
mática, extraindo as consequências de uma série de teoremas para deduzir
uma prudência para uso do delfim, e conta com um caráter sistemático que
o torna particularmente adequado para servir a nossa demonstração. Com
efeito, o modelo doméstico é, na Política de Bossuet, aplicado à construção
de uma cité nitidamente dissociada da família no sentido restrito, o que não
é o caso, por exemplo, nos textos anteriores com o objetivo de fundamentar
a legitimidade da dinastia capetiana. Assim, o princípio de herança de san-
gue, que sustenta a particularidade da persona real e que é aqui subjacente
à demonstração, não desempenha, contudo, um papel importante nos argu-
mentos dirigidos pela intenção de basear a autoridade real em uma economia
da relação entre o príncipe, o Estado e seus súditos. É notadamente por isso
que esse elogio do soberano absoluto, que servirá a Rousseau como um re-
poussoir, um elemento para destacar o restante de seu quadro,*,** apresenta

* Trata-se de uma técnica de pintura, segundo a qual se coloca um objeto em um plano


do quadro a fim atrair o olhar, na verdade, para o restante da imagem. No sentido
coloquial, se diz de algo que se usa para destacar outra coisa, por comparação direta.
(N. do T.)
** Ver o capítulo II do livro I de Do contrato social, dedicado à crítica das teorias genea-
lógicas da autoridade dos príncipes.

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196 As cités

bem o modelo de uma cité no sentido em que a entendemos aqui. E tentamos


demonstrar adiante como a originalidade da cité que pode ser construída
com base em Do contrato social, a cité dos homens cívicos, destaca-se da
variante absolutista do modelo de cité como encontrado em Bossuet pela
intenção desta de construir com os mesmos seres humanos as três instâncias
do soberano, do Estado e dos indivíduos, produzindo assim a economia da
delegação da autoridade divina na pessoa do príncipe e da encarnação do
Estado no corpo do rei. Mas isso significa também que a demonstração feita
por Bossuet contribui para pavimentar o caminho rumo à desencarnação do
soberano na cité cívica, permitindo assim escapar das dificuldades do tra-
balho de “transubstanciação de um indivíduo em monarca” (Marin, 1981),
ao preço, é verdade, da construção de uma metafísica não menos paradoxal
necessária para dar conta da transubstanciação do povo em soberano. Com
efeito, em Bossuet, o rei não é apenas “santo” ou mesmo “virtuoso”, como
nas concepções genealógicas da antiga França (Lewis, 1986, p. 165-175).
Ele é, antes de tudo, solitário e responsável, e existe somente para o Estado,
com o qual se funde. Sua grandeza está na medida de seu sacrifício. Nessa
concepção sacrificial da grandeza do príncipe, a celebração de suas virtudes
consiste em fazer ver, em todas as suas dimensões, a amplitude do sacrifício
que ele admite em nome da felicidade comum, à qual ele subordina toda a
sua satisfação pessoal.
Os tópicos da cité doméstica e, particularmente, o tema da solidão e
do fardo da realeza são amplamente desenvolvidos por La Bruyère, cujo Ca-
ractères [Personagens] é interessante para a sociologia por reunir e organizar
em torno de uma tipologia social os principais lugares-comuns de seu tempo.
Assim, lemos, no capítulo intitulado “Du souverain ou de la République”
[“Sobre o soberano ou sobre a República”], que “chamar um rei de pai do
povo é fazer menos seu elogio que seria o chamar pelo nome ou por sua
definição” (La Bruyère, 1965, n. 27, p. 253). E o autor enfatiza o sacrifício
do príncipe e a economia de sua relação com seus súditos:

Há uma troca ou uma devolução de deveres do soberano a seus súditos e destes


ao soberano: quais os que mais produzem submissão e quais os mais penosos,
não decidirei. Trata-se de julgar, de um lado, entre os estritos compromissos de
respeito, assistência, serviço, obediência, dependência; e, de outro, as obrigações
indispensáveis de bondade, justiça, cuidado, defesa, proteção. (La Bruyère, 1965,
n. 28, p. 253)

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As formas políticas da grandeza 197

E o pensador acrescenta ainda: “Que condição vos parece a mais deli-


ciosa e a mais livre, a de pastor ou a de ovelha? O rebanho é feito para o
pastor ou o pastor para o rebanho? Eis uma imagem ingênua das pessoas e
do príncipe que as governa, se ele é bom príncipe” (La Bruyère, 1965, n. 29,
p. 253). E retorna com insistência ao ônus da realeza: “Se é muito ser respon-
sável por só uma família, se é o suficiente ter que responder por si mesmo,
que peso, que desânimo, aquele de [cuidar de] todo um reino” (n. 34, p. 255).
Em um corpo político cuja coesão se baseie na observância das leis
divinas, a “sacralidade do juramento” é a base da relação entre os seres. Os
homens não podem se subtrair à discórdia senão por meio de um compro-
metimento de uns com os outros. Mas essa promessa será cumprida apenas
se esse compromisso for assumido diante de um ser superior que garanta
que ela seja respeitada. Portanto, não há “nenhum outro meio de consoli-
dar as coisas” senão jurar “por algo maior que a si mesmo”, de modo que
“os povos nos quais não há nenhuma religião são, ao mesmo tempo, sem
ordem, sem verdadeira subordinação e completamente selvagens”, pois “os
homens que não estejam em nada vinculados pela consciência não podem se
garantir uns aos outros” (Bossuet, 1967, p. 216). Se os homens não podem
chegar a uma forma de concórdia, ainda que inferior, sem passar por uma
deriva pela referência a um princípio transcendente, qualquer submissão a
uma divindade, mesmo ilusória, tem ao menos a virtude de “reforçar as
leis”: “Absolutamente não é necessário que se jure por um Deus verdadeiro:
é suficiente que cada um jure pelo Deus que reconhece” (p. 215). No entan-
to, somente a “verdadeira religião”, “fundada em princípios exatos”, pode
tornar a “composição fundamental dos Estados mais estável e mais sólida”
(p. 217). Com efeito, para Bossuet, apenas as Sagradas Escrituras, que contêm
a verdadeira genealogia da humanidade, permitem assentar a relação políti-
ca e solidificar sua legitimidade, fundando-a no princípio da geração: “Em
qualquer dado momento que se puder estar, remontando-se passo a passo,
chegaremos a Adão e ao início do universo por um encadeamento manifesto”
(p. 220). A ruptura da relação política consiste, assim, em se interromper a
cadeia de gerações que reúne e ordena os seres segundo a tradição, de sorte
que a “inovação” é inerentemente fonte de discórdia: ela carrega a “mancha
indelével” do “cisma” e da “heresia”, da revolta que “separa” as famílias e
“rompe” com os atrelamentos comunitários (p. 224-225).
Nessa concepção hierárquica e política do cosmos, o soberano é o “minis-
tro” de Deus, que é designado pela expressão “Rei dos reis” no texto endereçado

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198 As cités

ao delfim. Ele é, como tal, o depositário do “juramento” e garantidor da


“subordinação”, que, nesta cité, estabelece a relação entre todos os seres
ordenados no Estado da mesma maneira como, na linhagem, os descendentes
são subordinados aos ascendentes, as crianças ao pai, os filhos mais novos
aos mais velhos. Sua preeminência é a de pai, e o nome “Pai de todos”, aqui,
significa, conforme o contexto, por vezes “Deus”, por vezes “o rei”. A esse
respeito, o julgamento lhe cabe: “Quando o príncipe julga, não há nenhum
outro julgamento” (Bossuet, 1967, p. 93). O amor do Pai promove a união
entre os súditos, que, na subordinação, se reconhecem como irmãos: “Deve-
mos, portanto, amar uns aos outros, porque devemos amar todos juntos o
mesmo Deus, que é o pai de nós todos, e sua unidade é o nosso laço” (p. 6).
O rei está unido ao solo da nação, como o pai o é à mãe, e o amor pela
“terra onde vivemos juntos” que, juntamente com a comunidade da língua,
promove “a unidade das nações”, é semelhante ao amor de uma “mãe” ou
de uma “ama de todos”. Igualmente, os “povos” podem ser considerados
“compostos por muitas famílias particulares, cada uma com suas leis”, cons-
tituindo [um tipo de sociedade que pode ser chamada de] a “sociedade civil”
ou o “Estado” (p. 43).* A autoridade do Estado é, com efeito, uma extensão
da autoridade paterna. “Os reis são talhados com base no modelo dos pais”
e “o nome de rei é um nome de pai” (p. 71). Como seu “poder vem do
alto” (p. 70), é-lhe “aplicado a partir de fora” (p. 180). São os “ministros”
de Deus que “colocam nos príncipes algo de divino” (p. 68). Os príncipes,
fiadores da cidade, ocupam, assim, “o lugar de Deus, que é o verdadeiro pai
do gênero humano” (p. 71). Da mesma forma, “todos os homens nascem
súditos” e “o império paternal, que os acostuma a obedecer, habitua-os ao
mesmo tempo a ter apenas um líder” (p. 53). O exercício de tal autoridade
natural não reivindicaria um dispositivo particular sem a intervenção das
paixões, que dividem os homens e exigem a transformação do amor paternal
em uma arte política. Tornados “intratáveis pela violência de suas paixões e
incompatíveis por seus humores diferentes, eles [os homens] não podem ser
unidos a menos que se submetam, todos juntos, a um mesmo governo que os
regule a todos” (p. 17). A submissão ao príncipe faz da “multidão” “um só
homem” quando “cada um, renunciando a sua vontade, a transporte e a una

* Aqui, por oposição ao tipo de sociedade que abarca toda a humanidade e que seria uma
só e grande família. (N. do T.)

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com a do príncipe e a do magistrado” (p. 18-19). Ela constitui o fundamento


da justiça e dos laços sociais, porque a “subordinação das potências” coloca
um freio na expressão sem limites dos desejos egoístas. Essa é a razão pela
qual “se deve sempre respeitar, sempre servir” aos reis, “sejam eles bons ou
malignos” (p. 196). Nessa fórmula, a “subordinação” é repartida por graus
de acordo com a proximidade hierárquica com Deus e com o príncipe, seu
ministro: “A obediência é devida a cada um segundo o seu grau, e não se
deve absolutamente obedecer ao governador em prejuízo das ordens do
príncipe” (p. 194).
Apesar disso, os de maior grandeza encontram uma justificação para
sua existência apenas em sua vontade de “proteger os pequenos” (Bossuet,
1967, p. 72). Por meio do “governo”, cada súdito se torna mais forte porque
encontra “na pessoa do príncipe”, que tem “em suas mãos todas as forças
da nação”, um “defensor invencível”. Bossuet reitera repetidamente a relação
entre grandeza e proteção dos fracos:

Toda força é transmitida para o magistrado soberano, todos a reforçam em


detrimento de sua própria. [...] Ganha-se com isso, pois se encontra na pessoa
desse supremo magistrado mais força que se mobilizou para conferir a ele sua
autoridade, uma vez que nele se encontra toda a força da nação reunida para
nos socorrer. (Bossuet, 1967, p. 20)

O príncipe, pai, é o protetor dos fracos: “Todas as Escrituras o encar-


regam de fazer justiça aos pobres, aos fracos, às viúvas, aos órfãos e aos
tutelados” (Bossuet, 1967, p. 21). Nessa cité, na qual os intercâmbios assu-
mem a forma de uma “ampla circulação de generosidades necessárias” (Duby,
1973, p. 63), a divisão de tarefas é concebida no modo de mútua colaboração
no seio da unidade doméstica. Ele, “herói provedor” (Kaplan, 1986, p. 22)
e princípio de ordenamento das relações, deve “suprir as necessidades das
pessoas”, e “a obrigação de cuidar do povo é o fundamento de todos os
direitos dos soberanos sobre seus súditos” (Bossuet, 1967, p. 74-75.): “Os
povos famintos demandam pão a seu rei como a seu pastor, ou melhor, como
a seu pai” (Bossuet, 1967, p. 75).
Mas o príncipe não sustenta sua legitimidade apenas na proteção ofere-
cida àqueles sob sua dependência. Ele a faz repousar também, indissociavel-
mente, sobre a abnegação e a renúncia às satisfações egoístas. Sua dignidade
se manifesta no domínio que exerce sobre si mesmo e na “firmeza” com a
qual comanda suas “paixões” e se torna senhor de seus “desejos” (­Bossuet,

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200 As cités

1967, p. 111). Ele não sucumbirá à incomparável “tentação” do “poder”


(p. 435). Compensa seus privilégios com o sacrifício de sua pessoa pelos ou-
tros: “Ele não nasceu para si mesmo” e “esquece de si” (p. 73). É um “bem
público” oferecido “igualmente a todos” (p. 89). E é precisamente assim
que ele difere do “tirano”, cuja “verdadeira marca [...] é pensar apenas em
si mesmo” (p. 77). Em resposta, todos devem a ele “gratidão” (p. 79), e o
amor é que “torna agradável a obediência” (p. 88). E uma vez que consiste
em um bem público capaz de reunir os outros em sua pessoa, ele pensa no
que há de mais generalizado: “Calai-vos, pensamentos vulgares; cedei aos
pensamentos reais. Os pensamentos reais são aqueles que olham para o bem
geral” (p. 181). O príncipe “deve pensar em grandes coisas” (p. 180). Ele
está, “por sua grandeza, acima dos pequenos interesses” (p. 96), “das visões
estreitas e dos pensamentos particulares” (p. 181), acima do particular, dos
propósitos mesquinhos, da “maledicência” (p. 91), “acima dos ressentimentos
e das injúrias!” (p. 182), das “intrigas” e das “chicanices” (p. 315), e não se
rebaixa, salvo quando a justiça exige que ele “desça” para “ver o que está
acontecendo” no meio do povo: “É preciso que eles [os príncipes] desçam do
alto de seus feitos de grandeza, dos quais ninguém se aproxima sem tremer; e
que eles se misturem de alguma maneira entre as pessoas, a fim de observar
as coisas de perto e recolher lá e cá vestígios dispersos da verdade” (p. 307).
A “magnificência”, que poderia ser interpretada como uma demonstração
de apego egoísta aos bens materiais e ao poder, mostra-se mais própria, no
entanto, do sacrifício e da doação de si. O príncipe, com efeito, articula “gran-
des dispêndios com grandes desígnios” (p. 183). Ele expressa sua grandeza
por “dádivas maravilhosas” (p. 184). Aos “gastos de necessidade” se somam
as despesas “de esplendor e dignidade” que “não são menos necessários para
a sustentação da majestade” (p. 379).
Encarnando o bem geral, o príncipe é o “primeiro juiz” (Bossuet, 1967,
p. 299). Ele ouve os apelos dos indivíduos particulares dirigidos a ele, e todos
podem levar a ele “com o devido respeito suas justas reclamações pelas vias
permitidas” (p. 201). Ele combina a “clemência” com a “firmeza” (p. 303),
e os súditos podem “opor [...] admoestações respeitosas” à “violência dos
príncipes” (p. 201). E entre essas súplicas, as acusações relativas à devassidão
privada não se distinguem da denúncia de escândalos públicos. Em uma cité
doméstica, a “personalização da relação entre o rei e seu povo” não permite
distinguir os “assuntos de família” dos “assuntos de Estado”, o “conflito

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As formas políticas da grandeza 201

conjugal” e a “coisa pública” (Farge; Foucault, 1982). Em uma fórmula


de subordinação na qual o corpo político está incorporado na “pessoa do
príncipe” e em que a “desigualdade é radicalmente pessoal por natureza”
(Walzer, 1974, p. 27), a “atividade política” pode ser exercida apenas na
“proximidade física do príncipe”, que, em tempos normais, “não mobiliza
seus membros” para além da corte, porque a mobilização exige a presença
pessoal do rei (p. 28). Dissociados em teoria, os dois corpos do rei (Kanto-
rowicz, 1957) tendem sempre a se contaminar, porque o “corpo do Estado”
está no “corpo natural”. Como a “pessoa real” é também “um homem em
particular”, a vida “privada” do rei e a vida “pública” do reino não podem
ser distinguidas sem dificuldades (Walzer, 1974, p. 21-25). Da mesma forma,
no caso do rei e, de forma mais geral, dos de maior grandeza, o “murmúrio
privado” não se distingue da “palavra pública”, a fala singular do discurso
geral, a narrativa “anedótica” da “análise política”, a “fofoca” do “relató-
rio”. “Murmurar”, escreve Walzer, “é nas cortes reais o que o discurso público
é nas assembleias democráticas”. E, acrescenta, é esse estado de permanente
confusão entre pessoal e político, entre “privado” e “público”, que será in-
terpretado na linguagem “conspiratória” no período da Revolução, isto é,
precisamente quando essas categorias se tornaram claramente distintas: a
corte será, então, considerada o monstruoso lugar das “intrigas privadas com
efeitos públicos” (p. 26-28).
A cité doméstica, cujas propriedades relevantes para nossa discussão
relembramos brevemente, será objeto de um novo empreendimento de
fundamentação pelos legitimistas da primeira metade do século XIX e, par-
ticularmente, por De Bonald. Mas o caráter reacionário desse movimento
lhe confere um lugar à parte na filosofia política. Para esses legitimistas,
trata-se, com efeito, de restaurar uma cité cuja legitimidade a Revolução
Francesa e o desenvolvimento do liberalismo podaram e que tende, com a
extensão alcançada pela oposição entre “público” e “privado”, a ser rejeita-
da do domínio da vida pública para ser confinada ao domínio das relações
pessoais. E a fim de lutar contra a exclusão da cité doméstica do campo dos
modelos políticos, De Bonald se esforça para demonstrar, com rigor científico
(ele se equipara a um geômetra), a possibilidade lógica de reconstrução da
sociedade e do Estado sob o princípio do poder paterno. Ele fundamenta a
ordem política na distinção entre três seres: o pai, a mãe e o filho. E toma
o cuidado de sublinhar que essas três pessoas são “semelhantes, uma vez

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202 As cités

que todos eles pertencem à humanidade, mas não iguais, uma vez que têm
funções diferentes” (De Bonald, 1985, p. 449). A tensão por ele explicitada,
assim, entre um princípio de humanidade comum e um princípio de ordem
inscreve, sem ambiguidades, sua problemática no âmbito da axiomática da
cité, da qual se ergue o conjunto de metafísicas políticas analisado em nosso
livro. O pensador pretende dissociar essas três pessoas do quadro da família
nuclear, fundada com base em laços de sangue, para construí-las de forma
o mais geral possível, isto é, como seres morais a figurarem como atores em
um drama político:

Às denominações físicas e específicas “pai”, “mãe”, “filho”, comuns às famílias,


mesmo as de animais, substituamos as expressões morais e gerais “poder”, “mi-
nistro”, “súdito”, que designam os seres inteligentes, que se adequam à socieda-
de, de fato a qualquer sociedade, e podem se adequar apenas a ela. [...] Podemos,
então, presentemente, operar com essas expressões gerais, que representam todas
as pessoas em todas as sociedades, e resolver todos os problemas por elas apre-
sentados. (De Bonald, 1985, p. 450-451)

A literatura antropológica poderia sem dúvida ser igualmente aproveita-


da para fornecer outras variantes desse trabalho de generalização da relação
doméstica que parece acompanhar, nos poucos exemplos de que dispomos,
a busca por um princípio de coesão capaz de sustentar conjuntos políticos
por demais vastos e heterogêneos em termos culturais para estarem fundados
diretamente em uma genealogia mítica comum. Pensamos em particular na obra
de Maurice Bloch (1986) dedicada à história do ritual de circuncisão no reino de
Merina, em Madagascar, que, no reinado da rainha Andrianampoinimerina,
no final do século XVIII, passa do estatuto de ritual estritamente familiar,
realizado de forma irregular, de acordo com o ritmo de nascimentos em
cada família, ao de ritual de Estado, realizado por todos durante o mesmo
período, uma vez a cada sete anos, de modo que a circuncisão de todos os
súditos seja coordenada com as cerimônias de circuncisão na família real.
O conjunto do reino se torna, no período de festividades que acompanha a
circuncisão real, uma extensão do espaço doméstico da soberana. A análise
de Maurice Bloch para esses ritos, que são uma oportunidade para mani-
festar a unidade de todos, “superiores e inferiores” (p. 169), reunidos pela
participação na totalidade de mundo ordenado, sugere que o ritual poderia
desempenhar aqui o papel atribuído à filosofia política nos exemplos em que
se baseiam nossas análises.

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As formas políticas da grandeza 203

A c i t é da o p i n i ão

Enquanto na cité doméstica a grandeza se inscreve em uma cadeia hie-


rárquica e é definida como a capacidade de “conter” em “sua pessoa” a “von-
tade” dos subordinados, em uma fórmula de subordinação fundamentada no
renome a grandeza não depende de mais que apenas a opinião dos outros.
Para fazer uma primeira aproximação dessa cité, utilizaremos as passagens
da obra de Hobbes dedicadas à definição de honra. A concepção hobbesiana de
honra pode parecer periférica em relação ao cerne de seu modelo político. No
entanto, ela procede dos mesmos conceitos e repousa principalmente sobre uma
mesma teoria dos sinais convencionais sobre a qual repousa esse núcleo. Na
cité da opinião, a construção de grandeza está relacionada com a constituição
de signos de convenção que, condensando e manifestando a força gerada pela
estima que as pessoas se atribuem, permitem fazer a equivalência entre as
pessoas e calcular seu valor:

Os sinais pelos quais conhecemos o nosso próprio poder são as ações que dele
procedem; e os sinais pelos quais outros homens o conhecem são as ações, os
gestos, o semblante e a linguagem, produzidos usualmente por tais poderes: o
reconhecimento do poder é chamado de honra; e honrar um homem é conceber
ou reconhecer mentalmente que esse homem está em vantagem, ou que excede
em poder aquele que rivaliza ou que se compara com ele; [...] e é de acordo
com os sinais de honra e desonra que calculamos e estimamos o valor [preço]
ou o mérito de um homem. (Hobbes, 1977, p. 164)*

A definição nominalista do caráter arbitrário dos sinais, desenvolvida


em Os elementos da lei natural e política, é indissociável do modo de cons-
tituição do soberano, já esboçado nessa obra a partir da “união” de “muitas
vontades” (de “pessoas naturais”) ou do “envolvimento de muitas vontades
em uma só ou mais de uma” (Hobbes, 1977, p. 193), mas é elaborada so-
bretudo no Leviatã, com as formulações em termos de personificação, de
pessoa artificial e de autor, enfatizando-se a natureza arbitrária do ator, que
só mantém sua força com a autorização dos contratantes.

* Todas as citações a Os elementos da lei natural e política foram extraídas da tradução


de Bruno Simões publicada pela editora Martins Fontes. Grifos no original inglês. (N.
do T.)

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204 As cités

Hobbes recorre muito frequentemente a um vocabulário tomado empres-


tado do comércio de mercadorias para tratar do valor civil das pessoas. Como
muitas vezes sob sua pena, o trabalho com a linguagem tende a deslocar os
significados dos termos empregados em relação a seu uso comum (ver infra:
a noção de personificação). Alguns autores, apoiando-se notadamente na re-
petida menção ao “preço” das pessoas, veem em Hobbes um dos fundadores
da filosofia política mercantil (Macpherson, 1964). Mas, ao analisarmos a cité
mercantil e a cité da opinião seguidamente, buscamos, em vez disso, destacar
as diferenças entre as duas formas de grandeza em que se baseiam. Na cité da
opinião, não há bens externos às pessoas que, submetidos a um imperativo
de escassez, regulem a competição dos desejos. O reconhecimento da repu-
tação atua diretamente sobre os indivíduos, e seus atributos, arbitrários em
sua definição, são os sinais de seu renome.5
A teoria da pessoa estabelece a ligação entre a construção da grandeza
das “pessoas naturais” – na medida em que ela procede da atribuição de sinais de
honra – e a construção da “pessoa fictícia” do soberano. A construção da pessoa
em Hobbes supõe um dispositivo no qual os “sinais” (palavras ou ações) inter-
pretados por um “ator” são “relacionados” ou “atribuídos” a um “autor”, da
mesma forma que se relacionam os efeitos a uma causa. Esse dispositivo, que
na teoria da honra permitirá construir a grandeza relativa das pessoas umas
em relação às outras (com as de maior grandeza sendo aquelas cujos sinais
de honra foram atribuídos pelo maior número), é central também na cons-
trução da “pessoa fictícia” do soberano. De fato, na teoria da pessoa fictícia,
a representação do povo feita pelo soberano, ou do autor feita pelo ator, é
também intrinsecamente uma projeção do autor no ator. O soberano, “pessoa
fictícia”, é o “ator” que “personifica” (persona, do sentido etimológico de
máscara teatral) e “representa” a multidão de súditos, por sua vez a autora
de sua ação dramática. Pode-se considerar que essa representação da pessoa
fictícia supõe um terceiro, que julga e atribui os sinais. E esse terceiro não
se distingue do autor, que, por esse mecanismo de atribuição, identifica-se,
ele mesmo, com o soberano (Jaume, 1983).
Na cité da opinião, a grandeza, dependendo apenas do número de
pessoas a lhe conferir crédito, é, em virtude dessa fórmula de equivalência,
abstraída de toda dependência pessoal. Com efeito, beneficiar-se da estima
dos grandes vale mais que receber a estima dos pequenos; isso ocorre apenas
na medida em que os de maior grandeza concentram já em suas pessoas

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As formas políticas da grandeza 205

o reconhecimento dos outros: ser “honorável” é ser “honrado, amado ou


temido por muitos” (Hobbes, 1971, p. 87). Hobbes reduz assim “todos os
fundamentos da honra ou da estima de distinção a um único termo, poder”
(Goldschmidt, 1974, p. 723), cujo nível depende do quão numeroso é o
contingente de pessoas pelo qual se é reconhecido e que, pelo reconhecimen-
to que oferece, concede o poder: “O maior dos poderes humanos é aquele
composto pelos poderes de vários homens, unidos por consentimento em
uma só pessoa, natural ou civil. [...] [T]er servidores é poder; e ter amigos
é poder: porque são forças unidas” (Hobbes, 1971, p. 81-82).* A “natureza
do poder” é “ idêntica” ao renome [“fama”], visto que “cresce à medida que
progride” (p. 81). É do renome, da opinião de outros, que depende o valor
ou a grandeza de uma pessoa: assim, “[a] reputação do poder é poder” e
“o sucesso é poder, porque traz reputação” (p. 82).
Como algo estabelecido pela opinião dos outros, a grandeza de uma
pessoa é independente de sua opinião sobre si mesma: “[M]esmo que um
homem (como muitos fazem) atribua a si mesmo o mais alto valor possível,
apesar disso seu verdadeiro valor não será superior ao que lhe for atribuído
pelos outros” (Hobbes, 1971, p. 83). A grandeza de uma pessoa ou, como
diz Hobbes, sua “importância” depende unicamente da opinião dos outros:
“O valor, ou a importância, de um homem, tal como o de todas as outras
coisas, é seu preço; isto é, tanto quanto seria dado pelo uso de seu poder.
Portanto, não absoluto, mas algo que depende da necessidade e julgamento
de outrem” (p. 83). Assim, “[u]m hábil condutor de soldados é de alto preço
em tempo de guerra presente ou iminente, mas não o é em tempo de paz. Um
juiz douto e incorruptível é de grande valor em tempo de paz, mas não o é
tanto em tempo de guerra” (p. 83). Da mesma forma, a grandeza dos homens
cuja eminência é reconhecida apenas por um pequeno número de pessoas,
como é o caso dos acadêmicos, é fraca, e eles detêm pouco poder: “As ciên-
cias são um pequeno poder, porque não são eminentes e consequentemente
não são reconhecidas por todos. E só são algum poder em muito poucos,
e mesmo nestes apenas em poucas coisas. Porque é da natureza da ciência
que só podem compreendê-la aqueles que em boa medida já a alcançaram”

* Todas as citações ao Leviatã foram extraídas da tradução de João Paulo Monteiro e


Maria Beatriz Nizza da Silva publicada pela editora Nova Cultural (Coleção Os Pensa-
dores). (N. do T.)

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206 As cités

(p. 83). Produto do reconhecimento, a grandeza é medida no grau em que


se está exposto ao olhar dos outros, à visibilidade: “Ser ilustre, ou seja, ser
conhecido pela riqueza, cargos, grandes ações ou qualquer bem eminente,
é honroso, como sinal do poder que faz alguém ser ilustre. Pelo contrário,
a obscuridade é desonrosa” (p. 88). A honra, assim, é redutível ao renome.
O que Hobbes chamou de “honra civil” (p. 86) depende da consideração do
soberano, mas apenas quando este recebe o reconhecimento da maioria, o
que lhe confere o poder de incarnar e constituir a opinião: “A manifestação
do valor que mutuamente nos atribuímos é o que vulgarmente se chama
honra e desonra. Atribuir a um homem um alto valor é honrá-lo, e um bai-
xo valor é desonrá-lo” (p. 83-84). Então, manifestar por alguém “amor” ou
“temor” é, em ambos os casos, “honrar”, “porque tanto amar como temer
implicam apreço” (p. 85). É, portanto, vão tentar distinguir entre uma honra
verdadeira e um “sinal de honra”, já que “[f]azer ao outro as coisas que ele
considera sinais de honra, ou que assim o sejam pela lei ou pelo costume,
é honrar, porque ao aprovar a honra feita por outros se reconhece o poder
que os outros também reconhecem” (p. 85). Da mesma forma, as qualidades
que manifestam a grandeza, como a “magnanimidade”, a “liberalidade” ou a
“coragem”, são honrosas apenas quando “derivam da consciência do poder”
(p. 87). Finalmente, a opinião medíocre que têm de si mesmos, desencadeada
pelo pouco caso dos outros para com eles, é a fonte da baixa posição dos
pequenos, da “pusilanimidade, da parcimônia, do medo e da desconfiança”
(p. 87).
A construção de Hobbes, que aproxima a honra à credibilidade, explicita
um componente dos fenômenos tomados pela história e pela antropologia
nos termos da honra. Assim, a honra nas sociedades mediterrâneas aparece
no trabalho de antropólogos como um compromisso instável entre a gran-
deza doméstica (assegurar as posições mais vantajosas a uma linhagem)
(Favret-Saada, 1968), a grandeza do renome (o tribunal da opinião públi-
ca) (Bourdieu, 1972), a grandeza inspirada (manifestada, por exemplo, no
contraste entre a honra irresponsável e impetuosa da juventude e a honra
sábia e prudente dos anciãos) (Jamous, 1977) e os valores mercantis: embora
não haja nas sociedades mediterrâneas tradicionais uma grandeza mercantil
fundada com plena legitimidade, a maioria das outras enfatiza a presença
de “interesses” subjacentes – esse aspecto está explicitamente desenvolvido,
em uma teoria do “capital simbólico”, apenas em O senso prático, de Pierre
Bourdieu (1980, p. 200-206). Pode-se encontrar em outros trabalhos uma

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As formas políticas da grandeza 207

definição de honra como a qualidade que, garantindo “a fidelidade à palavra


dada, se revela o fundamento mesmo da promessa sob juramento, ou seja, do
contrato” (Farès apud Di Bella, 1981). Hobbes define, ele próprio, a injustiça
como rompimento absurdo de um contrato:

[A] injúria ou injustiça, nas controvérsias do mundo, é de certo modo semelhante


àquilo que nas disputas das Escolas se chama absurdo. Porque tal como nestas
últimas se considera absurdo contradizer aquilo que inicialmente se sustentou,
assim também no mundo se chama injustiça e injúria desfazer voluntariamente
aquilo que inicialmente se tinha voluntariamente feito. (Hobbes, 1971, p. 131)

No entanto, na construção hobbesiana, a honra é indiferente à “justiça”


no sentido definido anteriormente: “Não altera o caso da honra que uma
ação (por maior e mais difícil que seja, e consequentemente sinal de muito
poder) seja justa ou injusta, porque a honra consiste apenas na opinião de
poder” (Hobbes, 1971, p. 89). Assim, o balanço próprio à cité do renome se
distancia do comprometimento na forma do contrato. Para fundamentar essa
cité, é preciso que nada no dispositivo de comprovação ofereça obstáculo
a modificações na grandeza de acordo com variações no estado da opinião.
Essa fluidez não é garantida se a grandeza das pessoas depender de contratos
ou da fidelidade a compromissos assumidos no passado.
Na cité da opinião, os litígios surgem quando se escava um fosso en-
tre a estima do indivíduo por si mesmo e a estima dos outros por ele, que é
a realidade. Assim, pode-se bem se honrar alguém ou se atentar contra sua
honra, elevá-lo ou diminuí-lo, mas essas marcas de estima ou desprezo são
sempre relativas, já que “alto e baixo devem ser entendidos em comparação
com o valor [a taxa, o preço] que cada homem atribui a si próprio” (Hobbes,
1971, p. 84). Como o “valor real” da pessoa depende apenas da estima dos
outros, os protestos de uma pessoa ultrajada, desejosa de obter uma repa-
ração, repousam necessariamente em um erro de apreciação, superestimação
de si mesmo ou pretensão. Dessa maneira, os litígios não são a ocasião de
um conflito entre a opinião e a consciência, definida, como na condenação
inspirada das glórias terrenas, pelo conhecimento infundido, no “foro ínti-
mo”, de uma grandeza superior, porque nesse modelo de subordinação, no
qual as “consciências privadas” são tornadas semelhantes à “opinião privada”
(p. 345), “a consciência não é nada mais que uma crença subjetiva, a opinião
de um indivíduo” (Koselleck, 1979, p. 23).

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208 As cités

Hobbes escreveu:

[T]em sido frequentemente ensinado que a fé e a santidade não podem ser


atingidas pelo estudo e pela razão, mas sim por inspiração sobrenatural, ou
infusão, o que, uma vez aceito, não vejo por que razão alguém deveria justificar
a sua fé, ou por que razão todos os cristãos não seriam também profetas, ou
por que razão alguém deveria seguir, como regra de ação, a lei de seu país em
vez de sua própria inspiração. (Hobbes, 1971, p. 345)

É a manifestação pública de uma conduta ditada pelo foro íntimo e pela


crença, cega às opiniões dos outros, em uma verdade inspirada, contida ape-
nas em si próprio, que é a marca da insanidade, comparável a um distúrbio
da grandeza cujas fronteiras não são mais conhecidas:

Um outro e principal defeito da mente é aquilo que os homens chamam de


loucura, que parece ser apenas uma imaginação de tal modo predominante sobre
todo o resto, que passamos a não ter nenhuma outra paixão senão a que dela
provém. E a concepção da loucura nada mais é que excessiva vanglória ou vão
abatimento. [...] Primeiramente, há o exemplo de um homem que pregava em
Cheapside de uma carroça no lugar de um púlpito, dizendo ser ele próprio o
Cristo, o que era um caso de orgulho espiritual ou loucura. [...] [A]ssim também
há muitos exemplos de gradações que bem poderiam ser consideradas demên-
cias. E como uma primeira gradação, um homem que, sem nenhuma evidência,
se julga inspirado ou julga ter em si algum efeito do divino espírito santo que
outros homens devotos não têm. (Hobbes, 1977, p. 181-182)

A loucura, que se dissimula sob o pretexto da inspiração, revela-se


gritantemente no meio da turba:

[E]mbora os efeitos da loucura em quem está possuído pela convicção de que


é inspirado nem sempre sejam visíveis por qualquer ação extravagante deriva-
da dessa paixão, quando muitos deles se conjugam, a raiva de uma multidão
inteira é bastante visível. Que melhor prova de loucura pode haver que increpar,
bater e lapidar nossos melhores amigos? [...] E mesmo que nada mais denunciasse
sua loucura, o próprio fato de se arrogarem essa inspiração constitui prova
suficiente. (Hobbes, 1971, p. 71)

É precisamente a recusa em reconhecer a dimensão política da inspira-


ção, relegada à arbitrariedade do que é considerado subjetivo, e a intenção

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As formas políticas da grandeza 209

de desvelar, sob a invocação das certezas de foro íntimo, o poder das paixões
e dos apetites partidários o que permite estabelecer a equivalência entre
grandeza e renome sem que a revelação dos poderes da opinião assuma uma
forma crítica, como é o caso entre os moralistas franceses do século XVII e,
mais tarde, com Rousseau (a “consideração”).6 Os moralistas de inspiração
jansenista (La Rochefoucauld, Nicole, Pascal) desenvolvem análises da honra
nas quais a grandeza das pessoas e, mais particularmente, a grandeza dos
grandes é apresentada como o produto apenas da opinião dos outros, mas
essa redução adquire sempre a forma de uma revelação crítica: “O homem
não é grande. Seu desejo de se engrandecer não o engrandece” (Bénichou,
1948, p. 172). Assim, em oposição à honra da corte, isto é, às falsas grande-
zas, coloca-se a “honra de foro íntimo” [“in foro interno”], como diz ainda
Koselleck (1979). Essa distinção, que retoma a denúncia das glórias terrenas,
tal como praticada na tradição estoica e no cristianismo, e a radicaliza, revela
a verdade oculta da grandeza mundana, dependente dos olhares dos outros,
para melhor destacar as características por conta das quais se reconhece a
verdadeira grandeza: aquela que não se incomoda com a opinião do mundo e
leva em consideração apenas os sinais da eleição divina. Essa temática, desen-
volvida por Santo Agostinho nas Confissões e também em partes d’A Cidade
de Deus dedicadas a refutar as concepções clássicas da glória praticadas com
a finalidade terrena de aumentar a grandeza da cidade (Lida de Malkiel, 1968,
p. 89-92), é utilizada pelos juristas nas lutas que opõem a Igreja às sociedades
políticas para repelir as pretensões, e especialmente as pretensões espirituais,
dos poderes laicos (De Lagarde, 1956). E é igualmente contra a concepção
cristã da miséria humana que o Renascimento italiano desenvolve a ideia
ciceroniana de “virtus”. A vir virtutis, pertencente ao ideal do gentil-homem
renascentista, pressupõe a possibilidade de acesso neste mundo a uma forma
de excelência dramática e heroica oposta à representação da “miséria huma-
na” e à condenação da glória e dos grandes feitos em nome da providência
e da graça (Skinner, 1978, v. 1, p. 90-101). Entre os moralistas franceses do
século XVII, assim como em Hobbes, as ações heroicas que mobilizam a
força estão ligadas ao interesse e ao amor de si (Hirschman, 1977, p. 11).
Mas essas ações não se tornam objeto de um mesmo tratamento moral nos
dois casos. Hobbes se curva à realidade daquelas grandezas quando elas são
reconhecidas pelos outros como grandes sem buscar rebaixá-las em nome
de outro princípio de justiça. A estratégia dos moralistas é diferente. Eles
não atacam de frente as grandezas estabelecidas, que são reconhecidas na

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210 As cités

corte. Em vez disso, as relativizam, mergulhando-as em um mundo capaz de


comportar uma pluralidade de grandezas hierarquizadas ou mesmo tratadas
como incomensuráveis, a exemplo do proposto no texto de Pascal dedicado
à tirania:

A tirania consiste no desejo de domínio universal e fora da sua ordem. Diversos


compartimentos de fortes, de belos, de bons espíritos, de piedosos, em que cada
um reina na sua parte, não noutra parte. E às vezes se encontram, e o forte se
bate com o belo como tolos disputando quem terá o domínio do outro, porque
o seu domínio é de gênero diverso. Não se entendem. E o erro deles está em
querer reinar por toda parte. Nada o pode, nem mesmo a força: ela nada faz no
reino dos sábios, ela só tem o domínio das ações exteriores. Assim, estes discur-
sos são falsos e tirânicos: “Sou belo, logo devem temer-me; sou forte, portanto
devem amar-me. Sou...”. A tirania está em querer ter por um caminho o que só
se pode ter por outro. Prestam-se diferentes deveres a diferentes méritos, dever de
amor ao encanto, dever de temor à força, dever de crédito à ciência. Devem-se
prestar esses deveres, é injusto quem os recusa, e injusto quem exige outros. E é
igualmente falso e tirânico dizer: ele não é forte, portanto não o estimarei; ele
não é hábil, portanto não o temerei. (Pascal, 1912, n. 332, p. 483)*,7

Na literatura de inspiração jansenista, podem ser encontradas outras


maneiras de se levar em consideração a pluralidade de grandezas, tratadas
dessa vez não como associadas a diferentes pessoas a ocuparem diferentes
lugares (“câmaras”), mas como reunidas em uma mesma pessoa, que pode,
com isso, ser classificada de forma diferente de acordo com o relacionamen-
to a constituí-la na relação. Tomemos, por exemplo, o paradigma do rei
contra a própria vontade, destinado à instrução de um “infante de posição
elevada”, que Pierre Nicole, nos Essais de morale [Ensaios sobre a moral],
atribui a Pascal:

Um homem é lançado pela tempestade em uma ilha desconhecida, cujos habitan-


tes estavam em dificuldade para encontrar seu rei, que se havia perdido; e, tendo
muita semelhança de corpo e de rosto com esse rei, o homem é tomado por ele
e reconhecido nessa qualidade por todo o povo. Primeiramente, ele não sabia

* Todas as citações aos Pensamentos foram extraídas da tradução de Mario Laranjeira


publicada pela editora Martins Fontes. (N. do T.)

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As formas políticas da grandeza 211

que partido tomar; mas resolveu enfim prestar-se à sua boa fortuna. Recebeu
todas as homenagens que quiseram prestar-lhe e deixou-se ser tratado como rei.
Contudo, como não podia esquecer sua condição natural, pensava, ao mesmo
tempo que recebia essas homenagens, que não era o rei que esse povo buscava
e que esse reino não lhe pertencia. Assim, tinha um pensamento duplo: um pelo
qual agia como rei, outro pelo qual reconhecia seu verdadeiro estado e que era
apenas o acaso que o havia colocado no lugar em que estava. Ele escondia esse
último pensamento e revelava o outro. Era com o primeiro que lidava com o
povo e com o último que lidava consigo mesmo. (Pascal, 1912, p. 233-238)*

Assim, lemos em seguida nesse mesmo discurso que há “no mundo


dois tipos de grandeza”: as “grandezas de estabelecimento” e as “grandezas
naturais”. As primeiras dependem “da vontade dos homens”; elas demandam
“respeitos de estabelecimento” e “cerimônias externas”, não estima. Por
outro lado, “as grandezas naturais são aquelas independentes da fantasia
dos homens, porque consistem em qualidades reais e efetivas da alma ou do
corpo”: elas exigem “uma preferência de estima”. A criança de nobre estirpe
é, assim, comparável ao náufrago tornado rei:

Contudo, o que possuís inteiramente em comum com ele é que esse direito que
tendes aos bens não está fundado, não mais que o dele, sobre alguma qualida-
de e sobre algum mérito que esteja em vós e que vos torne digno deles. Vossa
alma e vosso corpo são, por si mesmos, indiferentes ao estado de barqueiro
ou àquele de duque; e não há qualquer vínculo natural que os associe a uma
condição mais que à outra.

Uma vez distribuídas as quantidades em diferentes espécies, desigual-


mente naturais (ou reais), o indivíduo pode, pelo “duplo pensamento”, des-
prender-se de si e analisar a si mesmo:

O que se segue daí? Que deveis ter, como esse homem do qual falamos, um
pensamento duplo; e que, se agis exteriormente com os homens conforme vossa
posição, deveis reconhecer, por um pensamento mais escondido, mas mais verda-
deiro, que nada tendes naturalmente acima deles. Se o pensamento público vos

* Todas as citações aos “Três discursos sobre a condição dos grandes” foram extraídas
da tradução de Flavio Fontenelle Loque publicada pela editora Autêntica (Do espírito
geométrico e Da arte de persuadir e outros escritos de ciência, política e fé). (N. do T.)

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212 As cités

eleva acima do comum dos homens, que o outro vos rebaixe e vos mantenha
numa perfeita igualdade com todos os homens, pois esse é vosso estado natural.

Esse indivíduo pode, então, entrar em si mesmo ou de si sair, e essa


oportunidade oferece a ele o acesso à crítica, como quando ele denuncia a
vaidade do mundo em nome das verdades do foro íntimo ou, abrindo seu
coração, revela publicamente o que nele permanece subserviente às opiniões
dos outros.
A construção de um mercado da estima e de uma grandeza da opinião
não acompanhados por uma renúncia à esperança cristã de uma grandeza
em si mesma abre, assim, um espaço no qual podem, como em Rousseau,
ganhar caminho livre os jogos a respeito dos diferentes sentidos da ideia de
consideração: de si para si, dos outros em relação a alguém, de alguém em
relação aos outros enquanto se observa o olhar dos outros sobre si. Pode
ser estabelecida uma tradição (da qual encontramos vestígios atualmente em
algumas correntes da psicologia social) na qual a relação política é essencial-
mente uma questão de olhar. Ao mesmo tempo, assiste-se à elaboração de
uma retórica panfletária e de uma casuística da suspeita para identificar, sob
os artifícios do duplo pensamento, o estado de grandeza no qual estejam os
outros e para desmascarar as pretensões de se possuir uma grandeza natural
daqueles cuja estatura seja baseada em uma grandeza de estabelecimento ou
ainda (como atualmente, no caso de um detentor de título acadêmico preo-
cupado com que se reconheça seu valor) para fundamentar na interioridade
da pessoa a realidade de uma grandeza que os outros não querem ver senão
como resultado de uma intervenção externa. A suspeita, que vigia a cada um
em busca do que ele esconde de mesquinho a fim de revelar as pequenezas
da alma sob a falsa aparência de uma grandeza superficial, desenvolve-se,
como pode ser bem visto nos textos de La Bruyère sobre as grandezas das
pessoas, na tensão entre a grandeza do soberano e a baixeza da corte. Do
soberano, La Bruyère fala como Bossuet. Mas à responsabilidade do rei ele
contrasta a mesquinharia do cortesão, pequeno porque liberado das relações
constitutivas da grandeza doméstica: “O favorito* [do soberano] não tem

* No sentido de protegido, que goza das boas graças de um monarca ou nobre. O favo-
rito é um dos personagens fundamentais da sociedade de corte, pois uma economia dos
protegidos contribuía no reconhecimento da grandeza dos nobres. (N. do T.)

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As formas políticas da grandeza 213

nenhum seguidor; ele não tem compromissos ou laços; pode estar rodeado
por parentes e criaturas, mas ele não os possui; ele está dissociado de tudo, e
como que isolado” (Pascal, 1912, p. 250). Esse distanciamento é a condição
de acesso a uma grandeza da opinião (como será para uma grandeza mer-
cantil), e o homem da corte, na qual “a opinião dos outros funda a existên-
cia”, como diz Norbert Elias (1974, p. 85), existe apenas por meio do olhar
lançado sobre ele. “Afastar-se da corte por um só momento que seja é a ela
renunciar: o cortesão que a viu de manhã a vê à noite para reconhecê-la no
dia seguinte, ou a fim de que ele próprio seja conhecido” (La Bruyère, 1965,
p. 202). Mas ele pode ser apenas diminuído por ela, porque a grandeza da
opinião é denunciada como ilusória: “É-se pequeno na corte e não importa
a vaidade que se tenha, é pequeno que se é percebido nela; mas o dano é
comum, e mesmo os grandes nela são pequenos” (p. 202). A posição dos
grandes se encontra, assim, repleta de ambiguidade e incerteza. Não se pode
ignorar aquilo por meio do que eles se associam ao universo das grandezas
domésticas, e sua estatura preenche todo o espaço em que se lança a crítica.
Mas, como cortesãos, objetos de favores e desfavores, são colocados em
equivalência com aqueles que os servem. Então, sua grandeza não é mais
tomada como dada: “Há entre eles os que, se pudessem conhecer a seus
subordinados e se conhecerem a si mesmos, teriam vergonha de estar acima
daqueles” (p. 230). A tensão entre a grandeza doméstica e a grandeza da
opinião, não reconhecida como tal, habita a denúncia moral da corte, mina
a ordem das pessoas e libera um espaço em que outras grandezas, a cívica e a
industrial, podem ser implantadas:

Enquanto os grandes não se importam de nada saber [...] e se louvam a si


mesmos por essa ignorância, [...] os cidadãos se instruem sobre o interior e o
exterior de um reino, estudam o governo, tornam-se sofisticados e politizados,
conhecem a força e a fraqueza de todo um Estado, pensam em como melhor
se colocarem, posicionam-se, sobem, tornam-se poderosos, aliviam o príncipe
de parte dos cuidados públicos. (La Bruyère, 1965, p. 231)

Assim, dissociando a grandeza dos grandes da grandeza do soberano, a


sociedade de corte cria incerteza e levanta uma questão que pode encontrar
seu desfecho no retorno à autenticidade inspirada do foro íntimo ou, como
em Hobbes, na construção de uma grandeza baseada no caráter arbitrário
dos sinais.

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214 As cités

A c i t é c í v i ca

Para delinear a fórmula de subordinação da qual Do contrato social faz


a demonstração, e na qual o acesso à grandeza não depende de uma inspi-
ração concebida no modo da graça, da posição ocupada em uma cadeia de
dependências hierárquicas ou, finalmente, das opiniões dos outros, utilizare-
mos o pleonasmo cité cívica. Como a cité doméstica encontrada em Bossuet,
a cité cívica faz a paz civil e o bem comum repousarem sobre a autoridade
de um soberano majestoso e imparcial colocado acima dos interesses particu-
lares. Mas, nesse caso, esse soberano estará desencarnado. Seu corpo político
pode vir a ser, constituir-se, sem passar pela encarnação no corpo físico de
um príncipe de sangue, legitimado por seu pertencimento a uma linhagem.
O soberano da cité cívica é tornado real pela convergência das vontades hu-
manas quando os cidadãos renunciam a suas individualidades e se dissociam
de seus interesses particulares para se voltarem apenas para o bem comum.
Assim, essa fórmula de subordinação exposta em Do contrato social
fundamenta a soberania ultrapassando os problemas postos na cité doméstica
pela encarnação do bem comum em uma pessoa. Ao desencarnar a soberania,
que é transferida do corpo do rei para a vontade geral, e ao tornar o rei um
cidadão como os outros homens, capazes como eles de vícios e virtudes, de
grandeza e pequenez, essa fórmula alivia as tensões geradas pela encarnação
do corpo político em um corpo natural. Isso é visto, por exemplo, no caso,
analisado por Michael Walzer (1974), do “regicídio público” (em oposição
ao assassinato em segredo por um pretendente ao trono), que manifesta de
maneira particularmente problemática a tensão entre o doméstico e o cívi-
co no corpo do rei. Este, na condição de órgão político, é inviolável e não
pode ser julgado, uma vez que não existe em uma sociedade civil um ser a
ele superior. Não obstante, os crimes que o rei comete em particular, como
pessoa, têm o poder de destruir o Estado. Assim, durante seu julgamento,
Mary Stuart é citada, diante de seus juízes, “não por questões relacionadas ao
governo, [...] e sim apenas como parricida” (George Buchanan apud Walzer,
1974, p. 50), como se, acrescenta Walzer, o parricídio não fosse, em uma
monarquia hereditária, o “crime político por excelência”. As propriedades
políticas da soberania real explicam a dificuldade do regicídio e o justificam.
É porque o corpo do rei e o corpo político se confundem que se pode matar
o Antigo Regime, “na pessoa do rei”. Mas, pelas mesmas razões, o julgamento
público e a execução do rei, como rei, constituem atos sem precedentes que

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As formas políticas da grandeza 215

não podem repousar sobre nenhuma norma legal ou moral vigente. “O rei é
levado a julgamento em uma violação das leis do Ancien Régime, as únicas
leis que ele reconhece; ele é julgado em nome de princípios políticos e legais
com os quais nunca consentiu e por um tribunal cuja autoridade não reco-
nhece” (Walzer, 1974, p. 70).
O estabelecimento de uma grandeza cívica passível de se constituir como
um princípio de ordem legítima na cité pode, assim, ser apresentado como
uma alternativa razoável, por um lado, ao reconhecimento da autoridade
carismática de um líder inspirado; por outro, à fidelidade às dependências
pessoais inscritas em hierarquias tratadas como naturais; por um outro ainda,
à submissão aos veredictos de um mercado das estimas. Com efeito, para
Rousseau, não é suficiente liberar os homens das relações de dependência que
os escravizam à pessoa de um superior para que seja revelada sua verdadeira
grandeza e, em consequência, para garantir as condições de um julgamento
autêntico. Pois, dissociados das relações hierárquicas, os homens podem
ainda sucumbir sob o poder da opinião. A busca pela “consideração” e pelo
“amor­--próprio”, um de seus pendores, os insere em uma forma de depen-
dência que, sem representar um obstáculo direto ao corpo, como é o caso
das formas de dependência pessoal experimentadas no Antigo Regime, não é
menos tirânica, uma vez que sujeita todos à opinião dos outros e estabelece,
então, um “preço” para a “estima pública” (Rousseau, 1964, SD, p. 170).*
O amor-próprio não tem em Rousseau as virtudes paradoxais da “falsa hon-
ra” de que fala Montesquieu (1979, v. 1, p. 149-150), uma paixão que, por
mais egoísta e ilusória que possa ser, desvia para o benefício do “bem público”
(Pappas, 1982) ações voltadas originariamente para a satisfação de um interesse

* Os trabalhos políticos de Rousseau são citados, no original, a partir do terceiro volu-


me da coleção da editora La Pléiade: Du contrat social. Écrits politiques. Usamos as
seguintes abreviaturas: CS para Do contrato social ou Princípios do direito político
[citado em português conforme tradução de Eduardo Brandão publicada pela editora
Penguin/Companhia das Letras]; PD para Discurso sobre as ciências e as artes (“Pri-
meiro discurso”, citado em português a partir da edição da Nova Cultural, coleção Os
Pensadores); SD para Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre
os homens (“Segundo discurso”, citado em português conforme tradução de Paulo Neves
publicada pela editora LP&M); CO para As confissões (citadas no primeiro volume da
coleção da La Pléiade; em português, a partir da tradução de Fernando Lopes Graça,
na edição da Portugália Editora); EM para Emílio ou Da educação [conforme tradução
de Roberto Leal Ferreira publicada pela editora Martins Fontes]; e NH para Júlia ou
A nova Heloísa [conforme tradução de Fúlvia M. L. Moretto publicada pela editora
Hucitec]. (N. do T.)

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216 As cités

particular, segundo um mecanismo cuja importância para o pensamento político


e moral do século XVIII foi demonstrada por Albert Hirschman (1977).8 Para
Rousseau, diferentemente, a vanglória não serve jamais ao “bem comum”, e
a “honra do mundo” se opõe, como entre os moralistas franceses do século
XVII, à “verdadeira honra”, como a exterioridade inautêntica da aparência se
opõe à autenticidade interior da consciência – por exemplo, Rousseau, 1967a,
NH, p. 50: “Abandonemos a multidão e olhemos para nós mesmos”. Assim,
mesmo libertos da dependência pessoal, os homens, apesar disso, não são
livres, porque permanecem escravos da opinião, que não tem como referência
a realidade, e sim as relações de força entre as facções – as camarilhas – e
os conflitos de interesses que opõem os homens temporariamente associados
em torno de objetivos egoístas.
Em Do contrato social, as relações políticas legítimas não podem ser
estabelecidas diretamente com base em interações concretas entre pessoas
qualificadas pelas afiliações e pelos interesses. Com efeito, nenhuma nego-
ciação, nenhuma arbitragem é possível nesse nível, inteiramente sujeito ao
reinado da força. Para que as relações justas possam ser estabelecidas entre as
pessoas, é preciso que suas interações sejam mediadas pela relação com uma
totalidade em um segundo nível. Esse desvio e os sacrifícios por ele exigidos
são as únicas condições que tornam possível uma paz civil sem a dominação
de uma parte sobre a outra, isto é, uma paz civil justa. O principal objetivo de
Do contrato social é fundamentar na razão essa totalidade de segundo nível.
Ela não pode se sustentar em uma transcendência sobrenatural, da maneira
como Bossuet se vale facilmente de uma vontade divina para fundamentar,
em última instância, o poder paternal ou, o que acaba por ser o mesmo, a
autoridade real. Mas não pode também se identificar completamente com o
somatório estatístico dos sujeitos empíricos qualificados pelo conjunto de suas
afiliações e interesses, ou ainda, de forma dinâmica, com a composição do
conjunto de suas interações. Sabe-se que a solução, que servirá como modelo
para a maioria das descrições da sociedade estabelecidas no século XIX, e
particularmente na descrição durkheimiana – de modo que se torna também
um dos fundamentos da sociologia como disciplina científica –, consiste em
estabelecer a possibilidade de uma transcendência natural, definindo dois
estados possíveis de pessoas e, portanto, duas formas possíveis de conceber
o conjunto formado por sua reunião. A reunião das pessoas qualificadas
segundo uma primeira condição é um somatório de indivíduos definidos por
afiliações e interesses múltiplos, e imersos em relações antagônicas.

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As formas políticas da grandeza 217

Mas as pessoas são dotadas da capacidade de escapar a essa condição


egoísta e desafortunada para aceder a um segundo estado, no qual não olham
para seus próprios interesses, e sim para os de todos, e é da colocação em
prática dessa capacidade – que elas são livres para cultivar ou deixar ador-
mecida – que depende a possibilidade de se instalar uma paz civil justa. Com
efeito, é no conjunto formado por esse segundo nível que se forma a vontade
geral. Ele compreende os mesmos seres humanos que a instância de primeiro
nível, mas naquele outro estado no qual cada homem, deixando de lado as
preocupações e os interesses propriamente seus como indivíduo, volta-se para
o bem comum. Esse modo de construção da totalidade é, em grande medida,
derivado, como mostrado por Patrick Riley (1986, p. 184-189), da teologia
jansenista,9 a respeito da qual Rousseau, descartando totalmente a teoria da
predestinação – tratada como uma forma de “favoritismo” inaceitável – reto-
ma a referência ao “geral” para aludir não ao conjunto de todos os homens,
ou pelo menos dos cidadãos, mas ao estado ao qual acede cada um, uma
vez que, ao se privar de sua singularidade e sacrificar seu interesse particu-
lar, acaba por conhecer o que é o bem em geral e a desejar o bem comum.
A ideia de vontade geral não se opõe, nessa acepção, ao individualismo: cada
indivíduo pode aceder ao estado geral e reconhecer a vontade geral, que se
manifesta primeiramente em seu foro íntimo, quando renuncia a ouvir sua
vontade particular (Riley, 1986, p. 249). É nesse sentido que Rousseau pode
opor radicalmente a “vontade geral” e a “vontade de todos”: esta última
é opressiva porque expressa a opinião dos outros quando apreendidos no
estado de “particulares”. “Ela diz respeito ao interesse privado, não sendo
mais que uma soma de vontades particulares” (Rousseau, 1964, CS, p. 371).
A vontade geral, que “só diz respeito ao interesse comum”, é, em vez disso,
a vontade dos mesmos indivíduos, mas no estado geral, ou seja, na condição
de cidadãos.10
Sendo assim, em Do contrato social, a vontade geral não é redutível a
um somatório de vontades individuais. Os indivíduos em particular não se
engajam em um pacto de submissão àquele que escolhem como chefe nem
em uma série de pactos mútuos, como em Hobbes, e sim no “compromisso
recíproco do público com os particulares”. Os “mesmos homens” constituem
assim, como sublinha Robert Derathé (1970, p. 222-226), “as duas partes contra-
tantes, mas consideradas a partir de diferentes relações: como partes integrantes
do soberano e como indivíduos particulares”, de modo que “é como se cada
um fizesse um contrato consigo mesmo”. É a compreensão dessa constru-

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218 As cités

ção em dois níveis que permite a Halbwachs reinterpretar a construção de


Rousseau em termos durkheimianos sem a trair. Eis o que ele escreve no
comentário a sua edição de Do contrato social, publicada em 1943, pouco
antes de sua morte: “[A] vontade geral [...] não é uma soma de vontades in-
dividuais”, mas “uma realidade de outra ordem sem qualquer medida comum
com elas”; o corpo político “é maior que a soma de suas partes. Ele tem
outra natureza” (Halbwachs, 1943, p. 95). E a lei é a expressão da vontade
daquele soberano desencarnado. Ela fica liberta da influência dos interesses
particulares quando é estabelecida por homens capazes de se dissociar dos
casos específicos e se elevar acima de suas existências singulares para abraçar
as coisas em geral. Rousseau escreveu:

A lei considera os sujeitos coletivamente e as ações como abstratas, nunca um


homem como indivíduo nem uma ação particular. Assim, a lei pode muito
bem estatuir que haverá privilégios, mas não pode dá-los a ninguém; a lei
pode estabelecer várias classes de cidadãos, inclusive atribuir as qualidades que
darão direito a essas classes, mas não pode nomear quem seja admitido nelas.
(Rousseau, 1964, CS, p. 379)

Como sublinha Derathé em sua edição de Do contrato social, essa base


natural oferecida às leis políticas garante a liberdade individual concebida
como uma libertação da dependência pessoal em relação à consideração dos
outros (Rousseau, 1966, p. 1.449).
O corpo político estabelecido pelo Contrato deve sua estabilidade ao
princípio de economia que equilibra as perdas e os ganhos da associação.
Com efeito, o pacto fundamental exerce sobre os indivíduos duas ações, apre-
sentadas não apenas como opostas, mas ainda ligadas uma à outra de forma
inversa, por meio do que Rousseau designa pelos nomes de “balanço” ou
de “compensações” (Rousseau, 1964, CS, p. 364), ou seja, por um sacrifício
que, favorável a todos, fundamenta e justifica a grandeza. A “alma toda se
eleva”, mas ao preço de uma renúncia à satisfação imediata dos interesses
singulares, do abandono dos desejos e dos movimentos primários do corpo:
“A voz do dever sucedendo ao impulso físico, e o direito, ao apetite, o ho-
mem, que até então só havia considerado a si mesmo, se vê obrigado a agir
com base em outros princípios e a consultar sua razão antes de ouvir suas
propensões” (p. 364). A virtude constitui, assim, o princípio de equilíbrio do
corpo político, na medida em que permite assegurar sozinha a reciprocidade
das práticas ou, na linguagem do Contrato, a “mutualidade”. Os cidadãos

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As formas políticas da grandeza 219

não são grandes pela “distinção dos talentos” (Rousseau, 1964, PD, p. 26),
mas, de forma diferente, pela virtude, isto é, pelo zelo com o qual fazem o
sacrifício daquilo que os distingue do ponto de vista de outras grandezas,
qualificadas como pessoais. Diferentemente das distinções relacionadas à
posição e marcadas por títulos ou benefícios de distinção perseguidos pelo
renome conferido pelo reconhecimento dos outros, as distinções adquiridas
pelo mérito cívico atrelam-se às pessoas na medida em que servem às causas
maiores que estas. As relações entre as pessoas são meritórias quando elas
se dão no âmbito dos dispositivos capazes de as dessingularizar.
Caracterizada, por meio de uma analogia matemática, como o resultado
do “somatório” de “um grande número de pequenas diferenças” (Rousseau,
1964, PD, p. 371), a vontade geral, que pode ser expressada no exercício do
sufrágio, exige ainda, para ser ouvida, condições de consulta bastante espe-
cíficas: as pessoas devem, para que sua vontade geral possa se manifestar no
ato do voto, estar liberadas das cadeias hierárquicas e das dependências que
as assujeitam, ou seja, estar dissociadas umas das outras, estar constituídas
como indivíduos (Dumont, 1983) sem “nenhuma comunicação entre si”
(Rousseau, 1964, CS, p. 371), de modo que “cada cidadão opine somente de
acordo com seu entendimento” (p. 372). Sabe-se, por exemplo, que durante a
Revolução, esse princípio de independência será concretamente aplicado para
excluir os trabalhadores domésticos das votações: dependentes de seu senhor,
eles não contavam com a autonomia necessária para aceder ao estado em
que poderiam visar o bem geral. E o mesmo princípio dá conta, pelo menos
em parte, da relutância em incluir no corpo eleitoral as mulheres, que, como
filhas, esposas e mães, são por um longo tempo consideradas, por uma espé-
cie de destino natural, com base na cité doméstica, por demais parciais para
alcançarem a independência de julgamento. A lógica dessa construção leva,
por uma necessidade interna, a fazer pesar a suspeita de conspiração sobre
o mundo das relações pessoais como um todo. Qualquer relação de pessoa a
pessoa não mediada pela relação com a totalidade do corpo político torna-se
um obstáculo à expressão da vontade geral, degrada-a, atira-a na direção do
particular e constitui, nesse sentido, um complô a ser denunciado:

[Q]uando há conluios, associações parciais em detrimento da grande associa-


ção, a vontade de cada uma dessas associações se torna geral em relação a
seus membros e particular em relação ao Estado. Pode-se dizer então que não
há mais tantos votantes quantos são os homens, mas somente quantas são

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220 As cités

as associações. As diferenças se tornam menos numerosas e dão um resultado


menos geral. (Rousseau, 1964, CS, p. 371-372)

Cada indivíduo é, portanto, no que diz respeito a sua participação no


corpo político, um ser múltiplo, uma pessoa composta, capaz de existir em
diferentes estados. Os homens concretos, com quem cruzamos no mundo
cotidiano, no qual são identificados pela unicidade e pela permanência de seu
invólucro carnal, são, em primeiro lugar, como vimos, suscetíveis de por vezes
agir como indivíduos, por vezes como cidadãos: “Cada indivíduo pode, como
um homem, ter uma vontade particular contrária ou diferente da vontade
geral que tem como cidadão” (Rousseau, 1964, CS, p. 396). Mas os homens,
como seres políticos, membros de uma ordem social justa, podem existir tam-
bém em um terceiro estado, o de magistrado, pois a cidade-Estado deve ser
governada. E a esse estado, o de magistrado ou governante, que, na ordem
política de Rousseau, está aberto a todos os cidadãos, corresponde a uma
forma diferente de vontade. O “corpo do governo” tem, com efeito, como
pessoa moral, uma identidade específica, “um eu particular”, e seus membros
se encontram unidos por uma “sensibilidade comum” necessária para que eles
“possam agir harmoniosamente”:

[P]ara que o corpo do governo tenha uma existência, uma vida real que distinga
do corpo do Estado, para que todos os seus membros possam agir harmoniosa-
mente e corresponder à finalidade para a qual foi instituído, ele necessita de um
eu* particular, de uma sensibilidade comum a seus membros, de uma força, de
uma vontade própria que tenda a sua conservação. (Rousseau, 1964, CS, p. 399)

Mas essa “sensibilidade comum”, fundada nas afinidades, é também a


potência maléfica que pode desviar os magistrados da vontade geral, a do
“corpo do Estado”, e os levar a conspirar contra o bem comum. Cada habi-
tante da cidade tem, assim, “três vontades essencialmente diferentes”: “a von-
tade própria do indivíduo, que tende somente a sua vantagem particular; a
vontade comum dos magistrados, que está relacionada unicamente à van-
tagem do príncipe”, e, finalmente, a “vontade soberana” (Rousseau, 1964,
CS, p. 400). E, diferentemente desta, “geral, tanto em relação ao Estado,

* Grifo do tradutor de Do contrato social. (N. do T.)

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As formas políticas da grandeza 221

considerado como o todo, quanto em relação ao governo, considerado como


parte do todo” (p. 401), a “vontade comum dos magistrados” é “geral em
relação ao governo e particular em relação ao Estado, de que o governo faz
parte” (p. 401). Ela constitui, assim, uma “vontade de corpo”, bastante simi-
lar, por sua estrutura, aos “conluios”, definidos como “associações parciais
em detrimento da grande associação”, de modo que “a vontade de cada uma
dessas associações se torn[e] geral em relação a seus membros e particular
em relação ao Estado” (p. 371). O governo encerra, então, em essência,
uma lei do bronze, por vezes descrita em termos de lei histórica, por vezes à
moda de uma lei biológica, que o conduz à degeneração: nele, “cada membro
é primeiramente ele próprio, depois magistrado, depois cidadão. Gradação
diretamente oposta à que a ordem social exige” (p. 401). E se segue que, “as-
sim como a vontade particular age sem cessar contra a vontade geral, assim
também o governo faz um esforço contínuo contra a soberania. [...] É esse
o vício inerente e inevitável que desde o nascimento do corpo político tende
sem cessar a destruí-lo, do mesmo modo como a velhice e a morte destroem
o corpo do homem” (p. 421). Essa “inclinação a degenerar-se” (p. 421) pode
ser retardada, mas é impossível suprimir completamente seus efeitos, porque
as diferentes espécies de vontade serão afetadas por diferentes forças. A força
da vontade é, em cada corpo, seja individual ou coletivo, quanto menos geral,
maior. Ao dar-se conta dessa lei lamentável, Rousseau condenou “a ideia de
representação” (Furet, 1978, p. 253).
A faculdade conferida a cada pessoa para assumir três estados diferen-
tes constitui o problema fundamental posto pela conclusão das situações de
comprovação de grandeza ao longo das quais elas se avaliam. Com efeito,
nesta cité, as pessoas são pequenas ou grandes conforme sejam vistas como
indivíduos particulares ou como cidadãos membros da unidade soberana, isto
é, conforme a vontade que os faz agir seja singular ou seja, diferentemente,
voltada para o interesse geral. Disso resulta que, da mesma forma, se não
com a mesma intensidade, como na cité inspirada, a grandeza se apresenta
aqui primeiramente como uma qualidade da consciência, como uma demons-
tração de autenticidade de foro íntimo, fracamente objetivada e que, não se
submetendo imediatamente aos julgamentos dos outros por meio de sinais
exteriores facilmente identificáveis, pode consistir em um engano. Como
saber, especialmente quando se faz necessário avaliar decisões que envolvem
o porvir e, portanto, estão sujeitas a um teste de validade direcionado ao

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222 As cités

horizonte do futuro – como é frequentemente o caso na política –, se aque-


les que dizem dar ouvidos apenas às vontades gerais não são, na verdade,
serviçais de seus desejos particulares, escravos de suas paixões, em vez de
serem movidos pela virtude? Se as pessoas têm a possibilidade de dissimular,
aos olhos dos outros e por vezes até mesmo aos seus próprios olhos, seus
verdadeiros desígnios e os estados, particular ou geral, em que se encontram
no momento da ação, a associação poderá não ser mais que um conto do
vigário, um estratagema por meio do qual os enganadores asseguram para si
a cooperação dos homens virtuosos e ingênuos. As relações entre as pessoas
se encontram, dessa forma, facilmente manchadas pela suspeita. Pois, antes de
conceder seu consentimento para o que os outros demandam de você e, par-
ticularmente, para aquilo que os governantes exigem dos cidadãos honestos, é
preciso colocar à prova não tanto suas ações – em sua factualidade aparente,
pois eles podem contar com uma orientação estratégica e ter a intenção de
enganar – quanto suas intenções, isto é, precisamente o que eles ocultam na
interioridade de sua consciência, quiçá nos recônditos sombrios de sua falsa
consciência. A busca pela verdade pode, nessas condições, encontrar apoio
apenas em indícios tortuosos, suficientemente tênues e involuntários para
terem escapado ao controle dos estrategistas. Essa vigilância, em contraste
com a espontaneidade e o tom caloroso que deve reger as relações entre os
homens, é necessária para desmascarar, por trás dos belos discursos altruístas,
a onipotência dos interesses egoístas. Ela é justificada pelos riscos impostos
ao Estado pela inclinação dos indivíduos para nutrir diretamente ligações
pessoais a fim de conquistar interesses partidários, em vez de concordar com
a passagem pela participação no corpo político em sua totalidade. A ação
política, então, exige de quem a exerce não apenas a virtude, mas também
o discernimento. Deve-se contar com as capacidades cognitivas necessárias –
isto é, mais precisamente, as capacidades críticas – para interpretar os sinais
de egoísmo ou corrupção e revelar os apetites particulares dissimulados sob
a aparência de virtude, uma vez que

o laço social é rompido em todos os corações, e que o interesse mais vil se


adorna descaradamente do nome sagrado de bem público, então a vontade geral
torna-se muda; todos aqueles guiados por motivos secretos não opinam mais
como cidadãos, como se o Estado nunca tivesse existido, e se passam falsamente
como leis decretos iníquos que não têm por objetivo senão o interesse particular.
(Furet, 1978, p. 438)

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As formas políticas da grandeza 223

Os “novos princípios” oriundos do Contrato social, pouco lidos quando


Rousseau ainda vivia, mas que conhecerão o sucesso diante de um vasto
público na Revolução, permitirão retraduzir na lógica da conspiração essas
“intrigas privadas com efeitos públicos”, como disse Michael Walzer (1974,
p. 28) e conforme já citamos, e que caracterizavam a política da corte. Mas
eles também terão o efeito de generalizar para a totalidade das pessoas que
compõem o corpo político a duplicidade que constituía o privilégio e o fardo
dos príncipes, tratados por vezes como homens, por vezes como o Estado
encarnado. A partir de então, com cada um dotando-se da capacidade de
tomar parte na soberania ou sendo apenas a si mesmo, pode-se ter que jus-
tificar publicamente a natureza individual ou geral, egoísta ou altruísta, de
suas intenções e ações.
Isso significa também que Do contrato social contém uma antropo-
logia, ou mesmo uma psicologia, tanto quanto uma política. As duas são
indissociáveis, e, sem dúvida, deve ser atribuída à especialização, inerente à
separação entre as disciplinas acadêmicas, a divisão do trabalho que tendeu
a operar com os rousseaunianos entre os comentadores do trabalho político
e os dos escritos pessoais. Porque, nesses escritos íntimos e, particularmente,
nas Confissões, o problema da dependência pessoal ocupa o mesmo posto
que no Contrato, embora seja submetido a um tratamento diferente. À expo-
sição dos sofrimentos íntimos provocados pela impossibilidade de acesso às
relações humanas genuínas sob o regime da dependência pessoal ou sob o da
tirania da opinião responde a solução construída em toda generalidade, isto
é, sob a forma de filosofia política, trazida pelo Contrato. Assim, os conflitos
entre grandezas e, em particular, as tensões inerentes à preeminência de uma
grandeza doméstica, tratados, em Do contrato social, por meio dos recursos
da filosofia política, ocupam muitas passagens das Confissões, em que são
desenvolvidos na linguagem dos sentimentos e das emoções. É na relação do
pensador com os de maior grandeza que o distúrbio nascido da incerteza
quanto às grandezas em presença é mais evidente; por exemplo, no livro
X, a relação com o marechal e com a Madame de Luxembourg (Berman,
1970, p. 89-102), que oferece diferentes variantes de uma sequência típica:
humildade, desafio, sedução, familiaridade, abolição das distâncias, suspeita,
revelação, denúncia. O elogio preciosista e obscuro trai a complexidade de
uma emoção que deve sua ambivalência ao conflito de grandezas no qual ela
se inscreve: “Ah, senhor marechal, eu odiava os grandes antes de vos conhe-
cer, e ainda mais os odeio desde que vós me fizestes tão bem compreender

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224 As cités

como lhes seria fácil levarem as pessoas a adorá-los” (Rousseau, 1959, CO,
p. 527). A tensão entre a grandeza inspirada do gênio, a grandeza do renome,
da qual pode se valer o escritor célebre (que, como gênio, não ignora por-
tanto seu caráter artificial), e a grandeza relacionada à categoria hierárquica
é provisoriamente desarmada por meio do estabelecimento de um dispositivo
próprio para fazer surgir no primeiro plano a autenticidade das relações
inspiradas: a comunhão no amor ao belo e a singularização de uma relação
sem equivalente (no modo da relação amorosa) suspende a controvérsia so-
bre as grandezas relativas do célebre escritor e do nobre e rico mecenas. Na
relação inspirada, como a descrita nas Confissões, cada um se eleva acima de
atributos que lhe são próprios neste mundo e são devolvidos à contingência.
Permanecem, então, cara a cara, dois seres humanos em geral, no sentido,
definido anteriormente, segundo o qual a graça divina se direciona para os
homens destacados de suas particularidades terrenas, que se avaliam indis-
sociavelmente nos termos do que tenham de mais singular e mais universal.
Tomemos, por exemplo, a visita do príncipe de Conti a Montmorency: “Ali,
só eu o tratava como homem, e tenho todas as razões para crer que verda-
deiramente me ficou agradecido” (Rousseau, 1959, CO, p. 543). O nobre, um
príncipe, presta homenagem ao talento de Rousseau, um homem sem título
e sem fortuna, e a seu renome, visitando-o em seu lar, em seu “apartamento
tão pequeno”. Não obstante, é essa figura de primeira grandeza que se des-
loca até Rousseau, e o escritor, como é seu costume, introduz um jogo no
estabelecimento de equivalências, concedendo àquele que o dignifica com sua
presença a honra de tratá-lo como se ele não demandasse qualquer honraria:
ele recusa a grandeza de estabelecimento para mais valorizar sua grandeza na-
tural. Assim, eles se medem no xadrez. Rousseau ganha a partida e, seguindo
o mesmo esquema, rende as honras devidas ao príncipe, que designa por seu
título, escondendo-se atrás da verdade do processo de comprovação ao qual
ambos se submetem e que é indiferente à hierarquia: “Prezo por demais vossa
alteza sereníssima para não o vencer sempre no xadrez” (p. 543). Mas, na
ausência de uma grandeza cívica firmemente estabelecida nas instituições do
Estado, a boa vontade das pessoas, sua virtude, a confiança que se atribuem
e o amor que se dedicam não permitem superar as relações de subserviência
inerentes às formas de dependência pessoal, que sempre terminam por rea-
parecer e por prevalecer sobre elas. Para Rousseau, a cité cívica está presente
em seu tempo apenas como possibilidade teórica, e não como realização
concreta, já que a República das Letras, essa cidade ideal baseada na razão,

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na realidade não é, ela mesma, senão uma conspiração pérfida. E fora dessa
cité, a dependência é incontornável. Ela submerge qualquer outra forma de
equivalência e de medição, ainda que seja obtida por esse dispositivo de jus-
tiça indiferente à posição hierárquica que é o jogo de xadrez. Aquele que em
particular for seu benfeitor é seu inimigo uma vez que seja inimigo da raça
humana (Berman, 1970, p. 96). A sequência é praticamente idêntica todas
as vezes: o de maior grandeza (a grande dama) incentiva, por suas marcas
de afeto, a familiaridade e, acima de tudo, a confiança. Mas a efusividade
tem como contraponto a polidez. Uma se libera e a outra se contém; uma
se entrega, a outra se resguarda. A injustiça se apresenta primeiramente sob
a forma de uma entrega de si traída pela contenção de um parceiro, que,
incentivando ao mesmo tempo a intimidade de uma relação que parece igual,
marca uma distância. A dependência hierárquica é, com isso, redobrada por
uma dependência emocional não correspondida:

Nunca soube, nas minhas afeições, conservar o justo meio, cumprindo sim-
plesmente os deveres de sociedade. Sempre quis ou tudo ou nada; em breve
quis tudo, e, vendo-me festejado, amimado por pessoas de tal consideração,
ultrapassei o limite, e ganhei-lhes uma amizade que só aos da sua igualha é
permitido ter. Pus nas minhas maneiras toda a familiaridade, ao passo que eles
nunca abandonaram nas suas toda a civilidade a que me haviam habituado.
(Rousseau, 1959, CO, p. 522)

Sob a aparência turva de uma igualdade cívica ou de uma comunhão


inspirada, ainda não claramente dissociadas uma da outra, dissimula-se a
verdade de uma relação doméstica. A relação com o grande é sempre aquela
de um servidor em relação a seus senhores. Assim, um exemplo entre mui-
tos, a relação com a Madame de Vercellis – analisada por Marshall Berman
(1970, p. 102-104) – não é autêntica, porque é baseada em uma injustiça
comunicacional que representa um dos traços emocionalmente dolorosos da
subordinação doméstica:

Recordo-me muito bem, contudo, haver ela mostrado certa curiosidade em


conhecer-me. Interrogava-me por vezes: estava bastante satisfeita de que eu
lhe mostrasse as cartas que escrevia a Madame de Warens, que a inteirasse de
meus sentimentos. Ela, porém, não se mostrava seguramente muito hábil em
conhecê-los, não me revelando nunca os seus. Meu coração gostava de se abrir,
contanto que sentisse que o fazia noutro coração. [...] Enfim, é sempre um mau

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226 As cités

expediente querer ler no coração dos outros envaidecendo-se de esconder o


nosso. (Rousseau, 1959, CO, p. 81-82)

A consumação da cité cívica, cuja possibilidade teórica é demonstrada


em Do contrato social, deve proporcionar às pessoas um recurso para in-
terromper suas desafortunadas idas e vindas entre a grandeza inspirada, a
grandeza doméstica e a grandeza do renome e lhes oferecer um terreno sólido
para superar a inquietante incerteza concernente à grandeza e à identidade
que impregna tantas páginas das Confissões. Ela deve fazer pelos homens
tomados em sua totalidade, no corpo político, aquilo que o amor nunca ou
raramente permite realizar na ordem das relações singulares.

A cité industrial

Na grandeza cívica, a relação de grandeza entre o estado de soberano


e o estado de indivíduo particular, entre a vontade geral e a fragmentação
do corpo político na multiplicidade de vontades individuais, está presente
em cada indivíduo, uma vez que cada um pode estar em particular ou em
geral. Se Rousseau inaugura a era da suspeita (ou, pelo menos, de uma forma
secularizada e política da suspeita), o espaço de revelação permanece interior
ao próprio indivíduo, que pode ser autêntico ou inautêntico e pode dissimu-
lar, por trás do discurso do interesse geral, motivos egoístas. No dispositivo
apresentado por Rousseau, é a localização nos mesmos indivíduos do parti-
cular e do geral o que limita o escopo da representação organicista do corpo
político. Na grandeza mercantil, a identificação de bens exteriores demanda
um desprendimento vis-à-vis às pessoas e a si mesmo para que esses objetos
possam servir de base às transações. A simpatia em relação aos outros e a
posição de espectador imparcial tomam igualmente parte nessa tensão entre
uma paixão íntima e uma distância necessária à coordenação.
Em Saint-Simon, o espaço de desvelamento está plenamente destacado
do indivíduo: já não se examinam os corações; penetra-se a realidade e se
questiona a sociedade. É ele que estabelece, como mostra Pierre Ansart (1969,
p. 2), a oposição entre “o real e o irreal, o fundamental e o aparente, [...]
um nível do real, lugar dos determinantes, e um nível do secundário ou do
não essencial”, oposição por meio da qual são tornadas possíveis as políticas
de revelação fundadas na “observação empírica e na ciência positiva”, como
desenvolverá Marx,11 mas, também, em outros aspectos, Durkheim.

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As formas políticas da grandeza 227

A construção da cité industrial é elaborada em Saint-Simon por intermé-


dio de uma crítica permanente – embora muitas vezes implícita – a Rousseau,
que toma a forma de um questionamento dos “metafísicos e juristas”, por
vezes tratados como “intelectuais” e constantemente colocados em oposição
aos “industriais e estudiosos” (Saint-Simon, 1869, Syst., tomo I, p. 189). Em
Du système industriel [Sobre o sistema industrial], o autor castiga os “fazedo-
res de frases” que certamente foram os primeiros a colocar em evidência os
“vícios do feudalismo” e formar “contra a nobreza e o clero uma muralha, em
cujo abrigo os industriais, assim como os estudiosos dedicados às ciências da
observação, puderam trabalhar em segurança”, mas que desenvolveram, eles
próprios, apenas uma “protociência”, uma “doutrina bastarda e obscura”: a
“teoria dos direitos humanos” não é outra coisa senão “uma aplicação da
alta metafísica à alta jurisprudência” (tomo I, p. 37, 62, 83; tomo II, p. 92).
A verdadeira ciência social, cujos resultados não dependem “de nenhuma
forma de nossa vontade, nem de nossos hábitos ou de nossas crenças”, opõe‑se,
assim, a essas protociências que são a metafísica e o direito, como é o caso da
“transição do especulativo ao positivo, da metafísica à física” (Saint­‑Simon,
1869, Syst., tomo I, p. 6, 137). Como lembra Henri Gouhier (1970), essa opo-
sição, elaborada posteriormente na forma da lei dos três estados na filosofia
da história de Comte, havia já recebido uma expressão sistemática nos escritos
de Turgot. Assim, em seu Plan du second discours sur le progrès de l’esprit
humain [Plano do segundo discurso sobre o progresso do espírito humano],
ele sintetiza as linhas gerais da evolução desse espírito, desde o estado no qual
“tudo que ocorreu” teve “seu deus”, àquele em que a explicação é baseada
na “ação mecânica dos corpos”, passando pelo estado que precede às “ver-
dadeiras luzes sobre a história natural”, no qual os filósofos multiplicaram as
“faculdades para conferir razões a todos os efeitos” (p. 13). No entanto, Saint-
Simon (1965) oferece uma elaboração da ideia de positivo que se beneficia
das obras de anatomia (de Vicq-d’Azir) e fisiologia (de Cabanis e Bichat) para
fundar uma “fisiologia social” dos “corpos organizados” e remediar as falhas
dos filósofos do século XVIII. Na Introduction aux travaux scientifiques du
XIXe siècle [Introdução aos trabalhos científicos do século XIX], ele lamenta
que “Condillac e Condorcet [não tenham estudado] anatomia ou fisiologia.
Sua ignorância dessas partes essenciais da física dos corpos organizados foi a
causa dos erros capitais cometidos por um e pelo outro” (p. 49). Seu primeiro
projeto de sociedade, de 1803, se justifica nestes termos, retirados de Lettres
d’un habitant de Genève à ses contemporains [Cartas de um habitante de

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228 As cités

Genebra a seus contemporâneos]: “Meus amigos, somos corpos organizados;


e é considerando como fenômenos fisiológicos nossas relações sociais que
concebi o projeto que vos apresento” (p. 45).
Uma dezena de anos depois, em De la physiologie sociale [Sobre a fisio-
logia social], ele propõe uma descrição da sociedade com as características de
uma “máquina organizada”, cujas partes são “órgãos” cumprindo diferentes
“funções”. Órgãos e funções se opõem à definição de uma sociedade com
base na “arbitrariedade das vontades individuais” e participam da constitui-
ção de um “ser real cuja existência é mais ou menos vigorosa ou instável,
conforme seus órgãos realizem mais ou menos regularmente as funções que
lhes foram confiadas” (Saint-Simon, 1965, p. 57). À semelhança de outros
organismos vivos, a sociedade seria passível de ser tratada das patologias,
e a nova ciência da sociedade seria também terapêutica: “A economia política,
a legislação, a moralidade pública e tudo o que constitui a administração dos
interesses gerais da sociedade são apenas uma coleção de regras higiênicas”
(p. 57). O fiador de uma “constituição sólida e durável”, entendida como a
boa constituição de um ser vivo, encontra-se “no curso natural das coisas”
(Saint-Simon, 1869, Syst., tomo I, p. 68). A cité industrial é, assim, fundada
na objetividade das coisas que se formam naturalmente: “Absolutamente não
criamos um sistema de organização social; damo-nos conta do novo fluxo de
ideias e de interesses que se formou e o mostramos, isso é tudo. Um sistema
social é um fato ou não é nada” (p. 179-180).
É essa posição que rendeu a Saint-Simon ser considerado por Durkheim
o precursor de Comte na história da sociologia, por sua invenção da “fisiolo-
gia social”. Em seu artigo “A sociologia”, de 1915, parte da obra intitulada
(e sobre a) Science française, Durkheim diz de Saint-Simon que

[sendo] o primeiro, ele declarou que as sociedades humanas são realidades,


certamente originais e diferentes daquelas encontradas no restante da natureza,
mas sujeitas ao determinismo. Os organismos sociais devem, então, ser objeto de
uma ciência comparável àquela que lida com os organismos individuais e, por
essa razão, ele propôs chamar fisiologia social. [...] Em certo sentido, todas as
ideias fundamentais da sociologia comtiana já estavam em Saint-Simon e Comte
as pegou emprestadas de seu mestre. (Durkheim, 1975, p. 110)

Em L’industrie ou Discussions politiques, morales et philosophiques


[A indústria ou Discussões políticas, morais e filosóficas] (1869, Ind., v. 2-4),

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As formas políticas da grandeza 229

Saint-Simon imiscui a origem da moralidade com a da sociedade e ordena a


passagem da moralidade celestial para a moral terrena (Ind., tomo I, p. 32,
37). A moral é concebida como um sistema de regras funcionais que garantam
relações harmoniosas entre dois tipos de seres, o indivíduo e a sociedade, “de
modo que ambos sejam tão felizes quanto possível” (p. 30). As leis políticas se
opõem às forças reais da sociedade assim como a forma se opõe ao conteúdo,
e “os juristas e metafísicos são propensos a tomar a forma pelo conteúdo,
e as palavras pelas coisas” (Syst., tomo I, p. 13). A questão da propriedade,
por exemplo, refere-se diretamente ao sistema de produção, e a proprieda-
de deve ser “constituída de forma tal que o proprietário seja encorajado a
torná-la o mais produtiva possível” (Ind., tomo I, p. 43). É o “conteúdo”
que é dissimulado pelos “jogos de palavras” sobre “a divisão de poderes”
e “a forma de governo”: “Certamente, a forma de governo parlamentar é
preferível a todas as outras; mas é apenas uma forma, e a constituição da
propriedade é o conteúdo; assim, é essa constituição que realmente serve
como base do edifício social” (Ind., tomo II, p. 83). Ademais, doravante não
será mais necessário “buscar o objetivo na direção do qual a sociedade deve
se dirigir”; os juristas deverão se ocupar “pura e simplesmente de produzir
as leis que possam melhor garantir a prosperidade da cultura, do comércio e
da fabricação” (Syst., tomo I, p. 145). Estendendo a moral, a política gera as
forças da sociedade: “o governo” é “o encarregado de negócios da socieda-
de”, protegendo “os trabalhadores das ações improdutivas dos preguiçosos”
(Ind., tomo II, p. 36). “Os assuntos de Estado” devem ser tratados “abso-
lutamente da mesma maneira como aqueles do interesse de um indivíduo
particular” e devemos

considerar uma associação nacional como um empreendimento industrial com


o objetivo de buscar para cada membro da sociedade, na proporção de sua
aposta, o máximo de conforto e bem-estar possível. Não se pode não admirar
a sagacidade que os estudiosos economistas mobilizaram nessa tarefa. (Ind.,
tomo II, p. 153)

“O assunto do governo é a ociosidade”, a luta contra os “parasitas”, os


“preguiçosos” e os “ladrões” (Ind., tomo I; 1965, p. 72), isto é, ele deve estar
estritamente limitado à gestão do trabalho e da produção, pois “uma vez que
sua ação se exerça fora desse domínio, torna-se arbitrária, usurpadora e, por
consequência, tirânica e inimiga da indústria” (Ind., tomo I; 1965, p. 72).

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230 As cités

Embora o termo “utilidade” represente para Rousseau a conformidade


com os interesses do Estado e seja, portanto, para ele, sinônimo de virtude,
sem referência privilegiada ao trabalho ou à produção de bens materiais,
na cité industrial, ele é associado à satisfação das necessidades e, portanto,
constitui, nesse sentido, o princípio superior comum. Enquanto Rousseau, no
Discurso sobre as ciências e as artes (1964, p. 26), deplora “a preferência
por talentos agradáveis sobre talentos úteis” e culpa uma sociedade na qual
“temos físicos, geômetras, químicos, astrônomos, poetas, músicos, pintores
[mas em que] não temos mais cidadãos”, Saint-Simon, em Du système in-
dustriel (1869, Syst., tomos I, p. 63, 46), proclama que “os únicos órgãos
reais da razão comum ou do interesse comum são os industriais”, “os físi-
cos, os químicos e os fisiologistas que com eles se integram”. Ele se insurge
contra o fato de eles serem “subalternizados pelos príncipes e pelos outros
governantes” (Saint-Simon, 1869, L’Organisateur, p. 24) e suplantados por
“juristas e metafísicos”, [...] “fazedores de frases” mais preocupados “com
os princípios que com os fatos” (Syst., tomo I, p. 35-37). Não são esses
princípios, mas “a força das coisas” que obriga “produtores, comerciantes
e fabricantes a conciliar a combinação de interesse geral com o cálculo de
seus interesses particulares” (p. 63). Esses sujeitos “superiores do ponto vista
da inteligência adquirida”, que “fizeram os melhores estudos de administra-
ção”, não podem “se organizar por seus interesses” sem servir “aos interesses
da maioria”, porque “no estado atual da civilização, a primeira capacidade
política é a capacidade administrativa” (p. 46-48).
A grandeza das pessoas nessa cité, como nas outras, corresponde à ge-
neralidade de seu estado. O homem de pequena grandeza é aquele “menos
provido de inteligência, um homem cujas ideias não se estendem para além
dos assuntos domésticos [...]” (Saint-Simon, 1869, Ind., tomo I; 1965, p. 73).
Os grandes “trabalham para descobrir e coordenar os fatos gerais próprios
para servir de base para todas as combinações de cultura, de comércio e de
fabricação” (Syst., tomo I, p. 46). “Os trabalhos a que se dedicam os indus-
triais contam com diferentes graus de generalidade, e resulta dessa disposição
fundamental uma espécie de hierarquia entre as diferentes classes que com-
põem essa enorme massa de cidadãos ativos para a produção”. Os agriculto-
res e artesãos estão “ligados entre eles pela classe dos comerciantes”, tendo
os banqueiros como “agentes comuns”, de modo que estes últimos devem
ser considerados “os agentes gerais da indústria” (p. 36-47).

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As formas políticas da grandeza 231

O governo, como toda gestão de bens, pode ser objeto de cálculo de cus-
tos e, “no estado atual de iluminação, aquilo de que o país precisa não é ser
governado, é ter administrado o melhor mercado possível; ora, não é senão na
indústria que podemos aprender a administrar a baixo custo” (Saint-Simon,
1869, Syst., tomo I, p. 151). E o pensador avalia ainda o custo dos “300 ou
400 mil juristas, aprendizes forenses ou auxiliares jurídicos na França, [que]
são o tanto de homens que nada produzem e que representam, portanto, um
encargo para a indústria, que os alimenta, os aloja, os veste gratuitamente”
(Ind., tomo II, p. 115-116).
A lei fundamental do Estado é, na cité industrial, a regra contabilística
do orçamento, “pois o dinheiro é no corpo político o que o sangue é para
o corpo humano. [...] Assim, a lei das finanças é a lei geral, aquela da qual
todas as outras derivam ou devem derivar” (Saint-Simon, 1869, Ind., tomo
II, p. 93). No ensaio Considérations sur les mesures à prendre pour terminer
la Révolution [Considerações sobre as medidas a adotar para encerrar a
Revolução], o autor propõe, a fim de se votar o orçamento, a criação de um

conselho de industriais, com o título de câmara da indústria, composta primei-


ramente pelos quatro agricultores cujas culturas sejam as mais importantes; os
dois comerciantes que façam mais negócios; os dois fabricantes que empreguem
mais trabalhadores; e pelos quatro banqueiros que desfrutem do maior crédito.
(Syst., tomo I, p. 107)

Em L’Organisateur (1869, v. 4), Saint-Simon propõe a convocação de


uma “câmara de invenção”, com a seguinte composição: “A primeira seção
será composta de duas centenas de engenheiros civis; a segunda, de cinquenta
poetas e outros inventores em literatura; e a terceira, de 25 pintores, quinze
escultores ou arquitetos e dez músicos” (p. 51). Essa câmara apresentará
“um projeto de obras públicas a serem realizadas para ampliar as riquezas
da França e para melhorar o destino de seus habitantes, sob todas as formas de
utilidades e agrados; ela oferecerá, em seguida, a cada ano, seu diagnóstico
sobre acréscimos a seu plano original e as melhorias que lhe parecerem sus-
cetíveis” (p. 51). E são os industriais “os únicos capazes de distribuir entre
os membros da sociedade a consideração e as recompensas nacionais, da
maneira conveniente, de modo que a justiça seja feita a cada um segundo
seu mérito” (Syst., tomo I, p. 133), pois “a França tornou-se uma grande
manufatura, e a nação francesa uma grande unidade fabril. Essa manufatura

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232 As cités

geral deve ser dirigida da mesma maneira que as fábricas particulares” (Syst.,
tomo III, p. 91).
Saint-Simon prevê, também expressamente, nas atribuições dessas câma-
ras, cuidar da expressão do princípio superior comum, por meio da criação
de museus e da realização de festas públicas. Os locais seriam

escolhidos entre os sítios mais pitorescos [para abrigar] um museu de produtos


naturais, assim como de produtos industriais derivados das regiões vizinhas;
eles conterão também habitações para artistas que quiserem parar por ali, e
haverá sempre um certo número de músicos, destinado a inflamar os habitantes
daquele cantão com a paixão cujas circunstâncias requererão o desenvolvimento
para benefício da nação. A totalidade do solo francês deverá tornar-se um so-
berbo parque à inglesa, embelezado por tudo aquilo que as belas-artes podem
acrescentar às belezas da natureza. (Saint-Simon, 1869, L’Organisateur, p. 52)

As “festas da esperança” seriam cerimônias em honra aos projetos de in-


vestimento previstos: “Os oradores apresentarão ao povo os projetos de obras
que tenham sido aprovados pelo Parlamento e estimularão os cidadãos a
trabalhar com ardor, fazendo-os sentir como seu destino será melhor quando
tiverem executado esses projetos” (Saint-Simon, 1869, L’Organisateur, p. 53).
Os juízes da grandeza industrial são os especialistas; a política é
“a ciência da produção” e deverá romper com as “ideias dominantes” e a
“opinião” (Lettre à un américain [Carta a um americano], 1965, p. 78-79).
A assembleia representativa dos industriais estabelece os padrões de grande-
za em um sistema no qual a justiça repousa inteiramente na distribuição de
recompensa entre “produtores” e “consumidores”. Essa jurisdição se funda-
menta na “capacidade científica positiva”, que é o apanágio dos estudiosos.
Saint-Simon (1869, Syst., tomo I, p. 17), insurgindo-se contra a tese de uma
“ciência política inata” (isto é, implicitamente, contra a influência de Rous-
seau), observa que “uma vez que a política seja elevada ao nível das ciências
de observação, o que não será em nossos dias muito adiado, as condições de
capacidade se tornarão claras e determinadas, e a cultura da política será
exclusivamente confiada a uma classe especial de estudiosos que imporão
silêncio ao palavrório”.
Pode-se tomar o sarcasmo dirigido por Saint-Simon à crença no caráter
inato da ciência política e na universalidade da capacidade de governar e
aproximá-lo da crítica direcionada por Sieyès à “democracia bruta, assim
nomeada por analogia às matérias que a natureza oferece em todos os lugares

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As formas políticas da grandeza 233

ao homem, mas que o homem em todos os lugares coloca sua indústria a


modificar”. De fato, Sieyès opõe a ele uma representação política que não está
alheia a uma divisão do trabalho, considerando que “o próprio dos homens
no estado social é se exprimir reciprocamente, assim como algumas grandezas
matemáticas expressam outras grandezas, em virtude de uma espécie de plano
geral que rege a vida coletiva” (Bastid, 1970, p. 369-370).
A ordem das capacidades políticas desenha uma hierarquia de estados de
grandeza, definidos por graus desiguais de utilidade social, permitindo, assim,
opor “os nobres, os tonsurados [clérigos], os juristas e os proprietários ocio-
sos” aos “fabricantes, agricultores, comerciantes, estudiosos” e “ intelectuais
positivos” (Saint-Simon, 1869, Syst., tomo I, p. 140-141, 190).

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TERCEIRA PARTE

Os mundos comuns

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Capítulo 5

O j u l g a m e n to s u b m e t i d o à c o m p rovação

O j u l g a m e n to e m s i t uação

Anteriormente, isolamos, entre as partes constitutivas de nosso tema,


tudo de relativo à avaliação dos envolvidos, pois o imperativo de justificação
exige uma qualificação legítima das pessoas. Em nosso percurso, deparamo-­
‑nos, então, com a preocupação clássica da filosofia política em estabelecer
classes de equivalência e uma ordem atuante sobre os membros de uma
sociedade. Analisamos uma categoria de construções políticas de ordens le-
gítimas que servem para as pessoas se compararem e se avaliarem em ações
cotidianas. A possibilidade de recurso a uma pluralidade dessas formas de
equivalência introduz a problemática – abordada diretamente apenas nas
próximas partes – da relação entre elas e das possibilidades de se lidar com
essa complexidade. No entanto, já sugerimos que a ordem de cada cité per-
mitiria reduzir a complexidade, ao reduzir ao particular as outras formas de
generalidade.
A opção por nos concentrarmos primeiramente na avaliação das pes-
soas e na possibilidade de uma ordem de estados em que elas se distribuem
corresponde à tradição na qual nos situamos. Da filosofia política às ciên-
cias sociais, essa linhagem carrega o traço de uma ruptura com cosmologias
anteriores que compreendiam ainda uma física e um mundo de objetos or-
denados. Ela contribui, no entanto, para deformar nosso objeto como hoje
gostaríamos de construí-lo, ao sugerir que uma ordem geral, uma ordem
teológica mais ou menos secularizada, impõe-se a todos e governa as ações,
que se encontrariam, assim, harmoniosamente coordenadas. Com esta terceira
parte, portanto, modificaremos significativamente essa trajetória. Aqui nos
concentraremos na colocação de julgamentos e justificações à prova, processo
de comprovação que fará entrarem em cena os objetos envolvidos com as
pessoas nas situações julgadas.

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238 Os mundos comuns

As filosofias políticas permanecem no nível dos princípios e nada nos


dizem das condições de realização prática de um acordo efetivo. E, como
vimos anteriormente, o modelo da cité se sustenta em uma diferenciação de
estados de grandeza cuja legitimidade ele explicita. Ele não fornece informa-
ções sobre os modos de atribuição desses estados a indivíduos específicos.
Portanto, será o tema da medição dos estados de grandeza que nos ocupará
agora, levando-nos a analisar as condições de aplicação dos princípios de
justiça após termos estudado os imperativos e constrangimentos associados a
seu estabelecimento. Assim sendo, como passar das argumentações legítimas
às ações efetivamente coordenadas constatadas pelas ciências da sociedade?
Como dar conta da aplicação prática desses princípios a circunstâncias espe-
cíficas? Essa passagem implica uma extensão do objeto das prudências – os
manuais clássicos de sabedoria prática –, que compreenderá a colocação em
prática tanto de princípios comumente qualificados como morais quanto de
princípios considerados técnicos ou estéticos. Mas será essa passagem fadada
ao insucesso, como sugere uma tradição de pensamento que toma a justifi-
cação, no sentido de uma argumentação dissociada dos imperativos formais
da ação (uma racionalização a posteriori da ação), e a opõe à irredutibilidade
das circunstâncias dessa ação?
Dessa maneira, Durkheim opõe à “abstração metafísica e idealista” da
teoria econômica as circunstâncias, a realidade, a natureza, a partir das quais
é preciso estabelecer as leis sociológicas: “Esse homem em geral, esse egoísta
sistemático de que ela nos fala não é mais que um ser de razão. O homem que
nós conhecemos, o homem real, é muito mais complexo: ele pertence a uma
época e a um país, ele vive em algum lugar” (Durkheim, 1970, p. 29).* No
caso dele, é claro que as “circunstâncias” são utilizadas para estabelecer leis
reais e denunciar a construção abstracionista da economia, em um movimento
que analisamos no capítulo I e do qual podemos encontrar uma expressão
simétrica nos escritos dos economistas. Mas o fato é que o surgimento da
“prática”, na explicação das ciências sociais, reorganiza o lugar anteriormente
ocupado pela prudência e muitas vezes contribui apenas para se renunciar
à análise a fim de se privilegiarem as circunstâncias. Para responder a essas
objeções, buscaremos desfazer a oposição anterior e desenvolver uma teoria

* Conforme a edição de A ciência social e a ação publicada pela editora Difel, com tra-
dução de Inês D. Ferreira. (N. do T.)

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O julgamento submetido à comprovação 239

do acordo e do desacordo que não seja apenas uma teoria dos argumentos
confrontados com princípios, mas que dê conta da confrontação com as
circunstâncias, com uma realidade, isto é, que dê conta do engajamento dos
seres humanos e dos objetos em uma ação.
Deixaremos, então, de lado os momentos nos quais a acumulação de
desacordos se mantém nas fronteiras do caos, bem como aqueles que dão
lugar a um arranjo. A concessão feita em um arranjo consiste precisamente
em não se remontar a um princípio de justiça. As pessoas fazem um arranjo
entre si (ou seja, localizadamente) para encerrar a controvérsia sem a esgo-
tar, sem esvaziar a discussão. Por isso, nos ocuparemos dos casos em que
a busca de acordo leva as pessoas a ultrapassarem as contingências, mas
levando em conta as circunstâncias, e a explicitarem a relevância dos seres
presentes em relação a um mesmo princípio geral de equivalência. A questão
do justo, da justiça ou da justeza da situação pode com isso ser colocada.
Algumas aproximações poderão ser justificadas, enquanto outras serão jul-
gadas injustificáveis.
Assim, tomemos o exemplo de alguns jovens que fazem uma algazarra
em um café, lançando pedaços de pão uns nos outros. Os elementos circuns-
tanciais da situação estão imersos na brincadeira, e nada importa. Mas eis que
um homem de idade intervém para lembrar que o pão não é um brinquedo
e que naquela cidade francesa, durante a guerra, as pessoas passaram fome.
O idoso, que se mantinha até aquele momento à parte, sem se manifestar,
atrás de seu jornal, engaja-se em sua intervenção em uma situação passível
de ser julgada em termos de ser ou não equitativa. Ele diz o que importa.
O movimento pelo qual as pessoas se elevam para além das circunstân-
cias, reconhecendo o que é importante e quem deverá ser engajado na ação
pode ser ilustrado pelo projeto de Carl von Clausewitz. A partir da tensão
entre a “guerra absoluta” e a “guerra real”, entre o princípio filosófico da
guerra e o caos do campo de batalha, lugar da contingência e da incerteza,
ele pretende tratar do método de comprovação pelas armas, o engajamento,
que é o modo de realização da guerra (Clausewitz, 1955, p. 672).* Ele quer
explicitar a “lógica interior” subjacente à “arte” de “mirar com precisão” no
calor da batalha, “a faculdade de utilizar o discernimento para detectar os

* Conforme a edição de Da guerra publicada pela editora Martins Fontes, com tradução
de Luiz Carlos Nascimento e Silva do Valle. (N. do T.)

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240 Os mundos comuns

elementos mais importantes e decisivos na vasta série de fatos e de situações”


(p. 44, 678-679). A exposição dessa prudência para o campo de batalha
demanda uma análise de circunstâncias amplamente desenvolvida no livro.
O princípio “da vitória ou da derrota” estabelece para além das circunstân-
cias uma equivalência que permite a medição e que reduz “a incerteza com
relação à própria balança a ser utilizada” (p. 679). Esse exame não consiste,
portanto, em pesar todas as circunstâncias possíveis em suas singularidades
contingentes, o que seria uma tarefa interminável, mas em as especificar,
integrando-as em um processo de comprovação de engajamento que as ab-
sorva e determine. Assim, a relevância de um rochedo é conferida por sua
capacidade de servir de abrigo ou ponto de apoio, assim como o rochedo
de Sartre “aparece à luz de uma escalada projetada” (Sartre, 1980, p. 545).*
Mas Sartre, diferentemente de Clausewitz, recusa a referência a quaisquer
princípios de justificação que permitam qualificar os seres. A naturalidade
de uma situação é, em sua totalidade, produto de um olhar que um outro
olhar aboliria em benefício de outra natureza. Assim, ele define a situação
pela relação entre “meu projeto”, que constitui o rochedo como algo que
deve ser escalado, e a maneira como esse “existente em bruto” se presta à
escalada, enquanto que, para um outro olhar e um outro projeto, o rochedo
seria totalmente julgável do ponto de vista de, por exemplo, se saber se ele
é bonito ou não.

A e x t e n s ão da c i t é a u m m u n d o c o m u m

O recurso à realidade encontra seu lugar no prolongamento do quadro


que começamos a desenvolver. Com efeito, a qualificação das pessoas de acor-
do com uma grandeza não é algo evidente em si, uma vez que um estado de
grandeza não pode ser atribuído de forma durável a partir de características
pessoais, em razão da exigência de dignidade comum (a3) que interdita a as-
sociação permanente de um estado a uma pessoa. A propriedade fundamental
do modelo da cité – de garantir a todos os membros desse ordenamento um
idêntico poder de acesso a todos os estados – faz pesar uma carga de incerteza
na medição das grandezas, que se torna, desse modo, o ponto litigioso, uma
vez que uma disputa se instaure em uma cité. A outorga de um estado pode

* Conforme a edição de O ser e o nada publicada pela editora Vozes, com tradução de
Paulo Perdigão. (N. do T.)

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O julgamento submetido à comprovação 241

sempre ser colocada em questão, e a consumação de uma cité se fundamenta


nas comprovações de grandeza que permitam atribuir esses estados.
Essa atribuição de um estado a uma pessoa em particular – o que
pressupõe uma equivalência geral – é uma operação sujeita ao paradoxo da
codificação. Uma vez que o código ou a categoria é uma forma de equiva-
lência que ultrapassa, por definição, as particularidades de um ser, como é
possível relacionar essa forma a essas particularidades (o que justamente se
supõe nessa operação de codificação)? Mesmo que uma codificação seja feita
declaradamente com base em um ou mais critérios, como as apresentações
formais de codificação convidam a fazer, a questão não está, no entanto,
resolvida; ela é, em vez disso, remetida para adiante, para a maneira como
os critérios resultam, eles mesmos, de uma codificação preestabelecida. Assim,
a prova da grandeza de uma pessoa não pode se fundamentar simplesmente
em uma propriedade intrínseca, o que suporia já haver originariamente uma
forma de equivalência consequente a essa propriedade. Diferentemente, ela
deverá se apoiar em objetos externos às pessoas e que servirão de alguma
maneira como instrumentos ou aparelhos da grandeza. Como na administra-
ção judicial da prova, é a coerência de um dispositivo composto por seres
estáveis que é probatória, e a comprovação exige que as coisas a servirem
de suporte [para esse dispositivo] sejam pertinentes, qualificadas para serem
apresentadas como evidências no estabelecimento da prova conclusiva. A re-
ferência a coisas qualificadas conduz, portanto, a uma extensão do quadro
de coerência por meio do qual as cités são operacionalizadas, na direção de
uma galeria de mundos comuns. O acordo das pessoas, cuja sustentação mos-
tramos ser feita por uma qualificação das pessoas conforme os estados de
grandeza, pressupõe, para se realizar, uma determinação da qualidade das
coisas consistente com esses princípios de grandeza. As metafísicas de gran-
deza nos levam agora a uma interrogação sobre as condições de coerência
de conjuntos que incluem pessoas e coisas. Da justiça, a questão do acordo
se conduz para o ajustamento.
A coerência sobre a qual repousa o julgamento não reside apenas na
linguagem. A pertinência não pode ser reduzida a uma questão de figuras de
estilo, como o desejaria uma compreensão reducionista da retórica. Assim,
duas pessoas podem se confrontar, com a mesma determinação, opondo
uma à outra dois argumentos contraditórios como estes: “Deve ser assim
porque tenho sobre isso uma íntima convicção” e “Parece-me que isso não se
faz”. Nem a análise da argumentação nem seu contexto imediato permitem

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242 Os mundos comuns

compreender uma oposição de julgamento tão completa como essa, que gera
o risco de se constatar um caráter arbitrário, uma absoluta subjetividade de
pontos de vista. Essas determinações são inabaláveis, porque cada afirmação
pode ser sustentada em um mundo diferente para se comprovar: a primeira
no mundo da inspiração, no qual a convicção surge no foro íntimo, e a
segunda no mundo doméstico, no qual o julgamento pessoal se apaga em
favor das boas maneiras.
Para resolver a disputa, suspender a incerteza sobre os estados de gran-
deza e os tornar comprováveis, é necessário, então, que o modelo da cité
possa ser estendido a seres que não sejam pessoas. As pessoas e as coisas ofe-
recem suporte umas às outras. Ao se comporem conjuntamente, elas provam
a existência de uma justiça dos acordos entre os homens em conformidade
com uma justeza dos acordos com as coisas. Com a participação dos objetos,
que definimos por seu pertencimento a uma natureza, as pessoas podem es-
tabelecer estados de grandeza. A comprovação de grandeza não se reduz ao
debate de ideias. Ela engaja pessoas, com sua corporeidade, em um mundo
de coisas que servem a lhes dar suporte e sem as quais a disputa não encon-
trará motivos materiais para ser encerrada em uma situação de comprovação.
Os princípios comuns não se prestam simplesmente a orientar ações
ou argumentações, à maneira de “sistemas de valores” – no sentido, por
exemplo, em que Raymond Aron (1967, p. 567), comentando Max Weber,
fala de orientação “em relação a valores”. Em um nível mais fundamental,
eles encontram sua fundamentação na diferença entre mundos comuns.
Aquilo que, próprio de um mundo, é nele considerado existente é, em outro,
desconhecido: o mundo da inspiração reconhece, por exemplo, demônios e
monstros, enquanto o doméstico comporta animais de estimação ou criação,
seres desconhecidos no mundo cívico, no qual as crianças e os idosos também
são ignorados, etc. Objetos que, em uma natureza, constituem instrumentos
para tornar evidente a grandeza das pessoas, em um mundo diferente, não
são levados em conta.
O envolvimento de objetos obriga os seres humanos a se colocarem à
altura da situação, a objetivarem a si mesmos lançando mão desses objetos,
valorando-os. Ao se mobilizarem esses objetos, a situação singular em que eles
se encontram pode ser aproximada de outras, e, com isso, o recurso ao prin-
cípio superior comum pode ser aparelhado. O objeto alicerça a grandeza, mas,
ao mesmo tempo, restringe a comprovação ao demandar valoração. Na falta
desta, dir-se-á: “Ele detém a coisa, mas não sabe o que fazer com ela”. Não

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O julgamento submetido à comprovação 243

se trata de um processo de comprovação baseado no ponto de vista ou de um


ritual ou cerimônia que poderíamos chamar, com razão, de simbólicos, porque
se fundamentariam em objetos ou relações desviadas, artificiais. É o suporte
oferecido pelos seres uns aos outros quando em presença que consolida uma
realidade e oferece uma prova. Essa consumação é particularmente evidente
nos momentos em que a natureza se desdobra em sua maior pureza, graças
ao afastamento dos seres sobre os quais poderia se sustentar a referência a
outros mundos. Assim, podem-se agenciar situações evidentes em si mesmas,
cuja plenitude se deve ao fato de cada ser estar em seu devido lugar.
Dessa forma, a objetividade pressupõe a definição de ligações atestáveis
e de formas aceitáveis de evidência relativas a um mundo e aos equipamentos
de grandeza a ele associados. Às diferentes maneiras de se estabelecerem as
grandezas correspondem diferentes maneiras de construir as comprovações
de realidade. Pode-se, de acordo com o mundo considerado, promover uma
comprovação invocando-se o testemunho de um grande cujo julgamento
tenha um valor incontestável, demonstrando-se a credibilidade de que se
goza diante da maioria, invocando-se a vontade geral, pagando-se o preço
ou ainda se apoiando na competência de uma especialidade. As formas de
conhecimento são adaptadas às avaliações de grandeza. Enquanto a grande-
za industrial é atestada pela medição, a doméstica demanda um raciocínio
baseado em anedotas, narrativas, nas quais a generalidade esteja sempre
encarnada, assim como ocorre com a pessoa do rei: ao mesmo tempo que
é presente concretamente é, para além de sua corporeidade, geral (Turner,
1967). Para avaliar uma grandeza doméstica, não nos referimos, como no
mundo industrial, aos códigos e aos critérios, mas aos grandes feitos dos de
maior grandeza, à vida dos homens ilustres. Assimilam-se bocado a bocado as
proximidades que expressam as relações pessoais e se realizam em um espaço
doméstico feito de casas, domínios, vizinhanças. Essas formas de associação
criam relações sem fronteiras, organizadas em torno de um cerne, um núcleo,
como nas formas de caracterização arquetípicas observadas na psicologia das
categorizações (Rosch; Lloyd, 1978).
A grandeza é a maneira como se expressa o outro, como ele é encar-
nado, como ele é compreendido ou ainda como é representado (de acordo
com modalidades dependentes do mundo considerado). Ela está, portanto,
associada com uma capacidade para a expressão em termos gerais. A relação
entre a grandeza das pessoas e seu domínio de formas generalizadas é colo-
cada em cada mundo, especialmente sua capacidade de formular enunciados

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244 Os mundos comuns

tratáveis como gerais, autênticos, verdadeiros, etc. Como formulado por Bos-
suet, “os grandes têm grandes pensamentos” e são os únicos a manifestarem
plenamente essa capacidade cognitiva de generalização. A transgressão dessas
regras induz condutas consideradas anormais, como, por exemplo, quando
um simples moleiro pretende manter discussões teológicas (Ginzburg, 1980).
Sublinhamos que, para além de uma orientação para a justificação, a
questão da existência das coisas no universo não nos diz respeito. O proble-
ma ontológico da existência de seres e das modalidades de suas presenças
no mundo nos ocupará tão somente na medida em que esses seres possam
se encontrar engajados por atos justificáveis nos quais as pessoas estejam
implicadas. É sob esse ponto de vista que analisaremos sua coerência, em
mundos que determinam tanto os seres naturais quanto os engajamentos
naturais entre eles e que servem de referência nos julgamentos de grandeza.
A descrição desses mundos não pode ser feita sem a referência aos relatos
sobre eles. Isso não significa, no entanto, que eles sejam inapreensíveis, emba-
ralhados em uma cacofonia que teria a ver com a variedade de subjetividades.
Nosso objetivo é evidenciar os constrangimentos que limitam esse relativismo
ao atuarem sobre as descrições inscritas no âmbito de um mesmo mundo,
e os associar aos imperativos atuantes sobre a qualificação das pessoas no
âmbito de uma mesma cité.

A c o m p rovação

A não associação dos estados de grandeza a pessoas é, então, propícia


àquilo que chamamos de um litígio, isto é, um desacordo sobre as grandezas
das pessoas e, portanto, sobre o caráter mais ou menos justo de sua distribui-
ção em situação. A contestação dessa distribuição é instruída em um processo
que discute o caráter factual dos elementos que tenham sido mobilizados para
estabelecer as grandezas. Uma situação estável, na qual se encontram agen-
ciados seres de um mesmo mundo, em relações naturais, compatíveis com seus
estados de grandeza, demonstra naturalmente sua justeza. A grandeza relativa
dos seres nela colocada em ação conta com um caráter de evidência. Assim,
seria preferível, se nosso idioma pusesse essa palavra a nossa disposição, falar
em mostração para explicitar o caráter ativo da situação estável, e reservar
o termo de-monstração para indicar a reação que leva ao debate e implica a
referência a um interlocutor a ser convencido. Um litígio consistirá, portanto,
em se contestar que a situação esteja bem-ordenada e em se demandar um

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O julgamento submetido à comprovação 245

reajustamento de grandezas. Assim, uma situação não harmoniosa é aquela


na qual, por exemplo, os procedimentos de um operador especializado não
estejam adaptados ao potencial de sua máquina. Ela demanda um reajusta-
mento do dispositivo.
Notemos que esse litígio sobre as grandezas se distingue de um de-
sacordo mais fundamental sobre a natureza dos seres que importam, uma
controvérsia que estudaremos nas seções seguintes. O fato de os seres im-
portarem não deve, com efeito, ser confundido com sua grandeza. Em uma
grandeza cujos estados são hierarquizados precisamente, vê-se bem como é
possível ser relevante sem ser grande. Assim, em uma situação doméstica,
os pequenos importam da mesma maneira que os de maior grandeza – por
exemplo, os valets de chambre e os senhores na subordinação doméstica
(Tocqueville, 1981) –, enquanto uma coletividade pública (própria do mundo
cívico) ou um técnico (próprio do mundo industrial) não são reconhecidos.
Mas, apesar disso, a grandeza dos seres e sua importância não podem ser
completamente dissociadas, e veremos que o envolvimento desses seres na
situação é tão menos garantido quanto menores eles forem. Os pequenos,
mais distantes do bem comum, são menos identificados que os grandes com
a natureza da situação, da qual podem mais facilmente se dissociar e deslizar
para outra natureza. Com efeito, é da importância do sacrifício que depende,
como já vimos, a fixação em uma natureza, na qual os seres estão instalados
muito mais certamente à medida que estejam mais precisamente justificados
pelo sacrifício de sua satisfação.
Um primeiro movimento de contestação consistirá em se evidenciarem
as desarmonias entre as grandezas das pessoas e as dos objetos mobilizados,
traduzidas em termos de falhas ou defeitos. A cena do litígio se urde, então,
em torno da evidenciação de uma insuficiência de grandeza e, portanto, de
uma injustiça ou uma falta de justeza em um agenciamento. Dessa falta
resulta uma discordância, que pode tomar a forma de uma pane ou de um
descarte no mundo industrial, uma briga no mundo doméstico ou um conflito
social no mundo cívico. Os objetos podem falhar e não ocupar o lugar que
lhes cabe na situação. A falha das pessoas se manifesta uma vez que elas não
correspondam à situação, que elas não valorem os objetos adequadamente
conforme suas grandezas e que não tenham, portanto, feito o sacrifício supos-
to por seu estado de grandeza aparente: a mãe que não pode mais dar conta
das demandas de seus filhos e que inicia uma crise de choro quando tenta lhes
dar comida, o trabalhador que perde o ritmo, o professor que, no meio de

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246 Os mundos comuns

uma aula, não encontrar as palavras, etc. No exemplo citado anteriormente,


a falha, uma vez atribuída ao operador, coloca em questão sua grandeza – no
caso, sua qualificação industrial –, que se encontrará modificada, e ele deverá
ser reciclado ou substituído por um operador mais competente.
Mas a falha pode também ser atribuída à máquina, que parece não
corresponder a todos os detalhes do documento de especificações ou do
manual de instruções e deverá ser aperfeiçoada ou substituída. Com efeito,
a constatação de um distúrbio ou uma inconsistência na disposição de seres
envolvidos ocasionará, geralmente, no decorrer do processo, um questiona-
mento das coisas, das quais se poderá contestar não apenas a grandeza, mas
também a objetividade que podem perder ao serem mergulhadas na confusão
ruidosa do caos. O processo contará, então, com um segundo movimento de
argumentação, assemelhado a uma controvérsia científica, com a diferença
de que pode ter lugar em todos os mundos analisados e de que neles se reveste
de formas muito diferentes. A controvérsia diz respeito à discrepância entre
os fatos legitimamente passíveis de ser mobilizados no processo de compro-
vação e as circunstâncias contingentes, que são, por sua vez, desprovidas de
pertinência. No exemplo anterior, a questão recairá sobre as contingências
que poderiam circunstancialmente ter perturbado a comprovação e interferido
na eficiência do operador (doença) ou do equipamento (intempéries). Assim, a
controvérsia surge para decidir se os seres falhos devem emergir diminuídos
da constatação de falha ou, considerando essa percepção não conclusiva, se
uma nova oportunidade deve ser a eles oferecida para a comprovação de
sua grandeza.
Um terceiro movimento de argumentação pode levar à contestação do
caráter acidental dessas contingências e a tentativas de reduzi-las, extraindo-se
novos objetos das circunstâncias. Isso conduz a uma comprovação que ab-
sorve a contingência e a integra na natureza. A desordem das circunstâncias
é apaziguada por um processo de comprovação mais puro que a situação
defeituosa. O acidente passa a ser lido como uma falha. A distribuição dos
seres pelos estados de grandeza pode se modificar de um engajamento natu-
ral a outro, mas sempre em conformidade com o mesmo princípio, com os
traços de outras naturezas reduzidos à condição de ruído das circunstâncias
contingentes.
Sublinhamos que nenhuma situação, por mais pura que seja, pode eli-
minar totalmente a diversidade de contingências, cujo ruído se mantém nos
limites do que está em ordem. A permanência desse zum-zum-zum impõe a

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O julgamento submetido à comprovação 247

incerteza sobre as grandezas. A situação sempre corre o risco de escapar ao


controle e de levar a uma reabertura do processo de comprovação, da mes-
ma maneira como a rolagem dos dados ou o sacar de uma carta reativam
o jogo. Na ausência de um ruído exterior, um julgamento final prevaleceria,
justificando uma distribuição harmoniosa dos estados que nenhum novo
elemento recolocasse em questão. Assim, os ruídos do mundo, que a com-
provação provisoriamente silencia, são aquilo que o faz andar. E por conta
dessa ruidosa agitação, cada um dos mundos nos quais seja consumado o
modelo de uma cité e que, tomado por si só, encerre um caráter de plenitude
e de autossuficiência pode abrir essa possibilidade para outros mundos. Um
universo reduzido a um mundo comum seria um universo de grandezas es-
pecíficas tais que a comprovação, sempre conclusiva (o que a tornaria inútil),
teria a capacidade de absorver esse burburinho e o silenciar. As condições para
a manutenção desse universo edênico, no qual “nada nunca acontece por aca-
so”, são colocadas em operação pela bruxaria, que esgota as contingências.
É um universo assim determinado que os paranoicos, contra todos os ventos
e marés, buscam reconstituir, multiplicando e remodelando as aproximações
independentemente de suas naturezas. Essas abordagens tornaram explícita, a
contrario, a relação entre as contingências e a pluralidade de mundos comuns.
A brecha no Éden pela qual penetra o zum-zum-zum é a tentação do parti-
cular e a queda que abre a possibilidade de um universo com vários mundos
comuns. Veremos, aliás, na próxima seção, como a operação de denúncia,
ao se apoiar nos seres desafortunados próximos da contingência, conduz a
se valorizar uma grandeza de um outro mundo.
Nosso retrato da extensão de uma cité a um mundo não é, então, o
resultado de uma escolha convencional na ordem da exposição de nosso
quadro de análise. Ele segue o movimento de criação, por meio do qual o
repertório de objetos de um mundo é estendido progressivamente, à medida
que ocorrem as comprovações. E essa criação contínua não se limita apenas
a um efeito do olhar. Mesmo no mundo inspirado, no qual os objetos são
particularmente pouco objetivos, no sentido usual da palavra, a criação se
prolonga, seguindo o fio das comprovações baseadas na graça, convidando
a enxergar, por exemplo, a mão de Deus nas formas de uma pedrinha. No
mundo industrial, essa criação é representada pelo processo de produção,
no sentido comum do termo. Nosso movimento, então, é o oposto ao dos
filósofos políticos, que encontram na natureza o princípio da cité. Difere
também da operação crítica segundo a qual, ao se situar a si mesmo em

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248 Os mundos comuns

outro mundo, têm-se os olhos descerrados e se passa a ver o primeiro como


artificial e como produto de uma ilusão, de uma “naturalização”, de uma
“reificação”. Nossa forma de descrever, a partir do interior de cada mundo,
exige do leitor que ele suspenda a crítica que deriva, como veremos, do
conhecimento de vários mundos, para mergulhar em cada um deles como o
faria se estivesse em uma situação na qual a sinceridade de sua adesão aos
princípios fosse uma condição para justificar sua ação.
O litígio e o processo que o exprime conduzem, dessa maneira, a uma
comprovação da qual é esperado encerrar o desacordo por meio do esta-
belecimento de uma nova disposição justa de pessoas e objetos valorados/
valorizados. O processo de comprovação, algo de resultado sempre incerto,
difere da demonstração, que ocorre quando as grandezas são colocadas em
ação em uma situação estável. Suas cenas soam justas, são boas, e delas nada
se pode dizer; como se nada tivesse acontecido, nelas o acordo reina entre
todos. A plenitude de uma situação estável não deve, portanto, ser confundida
com o dado-como-certo tácito, prevalente nas circunstâncias. Com efeito, uma
situação estável está preparada para o julgamento; enquanto, inversamente,
nas circunstâncias, o dado-como-certo se sustenta apenas sob a condição de
se suspender a questão da justificação. Uma situação estável é, então, talhada
para a comprovação. Nela estão afastados, ou simplesmente desativados, os
seres estranhos, cuja presença representa uma ameaça, a fim de se evitar o
litígio, no horizonte de uma comprovação que ninguém tenha reivindicado e
que ninguém conteste. É uma situação pronta para a prova, que oferece os
recursos para se processarem os desajustamentos ou as injustiças.
Assim, dar uma aula é, para o professor, uma demonstração de seu co-
nhecimento. E como este pode falhar, esse momento é, então, sempre, nesse
sentido, uma situação de comprovação. Mas o objetivo dessa situação não
é comprovar o conhecimento do professor; é transmiti-lo. Diferentemente, a
prova didática [de um processo seletivo] é um tipo de aula cujo dispositivo é,
explicitamente, organizado de modo a pôr à prova os conhecimentos do futuro
professor e avaliar sua grandeza relativa na comparação com a de outros
candidatos. É muito rigoroso o controle da pureza da avaliação, isto é, de
sua não contaminação por outros mundos, assim como são rigorosos os
procedimentos de recurso. Em uma comprovação cívica – por exemplo, uma
formalidade administrativa ou um exame universitário –, os seres mercantis
ou os sinais exteriores de riqueza são desativados. Eles não são adequados
à situação e se, por conta de sua abundância, chamarem a atenção para sua

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O julgamento submetido à comprovação 249

presença de forma insistente, será a situação que correrá o risco de, como
veremos na próxima seção, ser revertida. Essas situações, particularmente os
exames educacionais, acadêmicos ou profissionais, exigem uma apresentação
sóbria por razões de justiça. Não se devem introduzir grandezas outras, que
poderiam vir a perturbá-las, como seria o caso se uma candidata usasse joias
muito caras ou se um jovem estivesse vestido com trapos, explicitando sua
pobreza. Essas circunstâncias ameaçam um dispositivo que se destina a esta-
belecer o acordo sobre princípios de justiça sem “acepção de pessoas”, como
diz São Tomás de Aquino (1947), porque elas podem induzir no avaliador
a tentação de medir o avaliado e de se medir em comparação com ele, de
acordo com grandezas estranhas ao dispositivo cerimonial.
São frequentemente as situações perturbadas, problemáticas, que incitam
a dúvida sobre a grandeza e exigem, para serem resolvidas, o estabelecimento
da comprovação. Com ela, a situação é depurada, isto é, para se resolver o
litígio, apela-se somente para recursos de um mesmo mundo: o testemunho de
um servo fiel contribui para desmascarar o usurpador, o filho mais novo que
tomou o lugar do mais velho, legítimo herdeiro, graças à confusão causada
por um naufrágio (mundo doméstico); um especialista rigoroso pode testar
a eficácia de um procedimento (mundo industrial) cuja adoção sem testagem
se deveu apenas ao crédito do qual se beneficia seu inventor (mundo da
opinião); a reunião de todo o Congresso ou a convocação da Câmara põe
fim aos rumores circulantes e às ameaças de divisão levantadas por facções
(mundo cívico). Na verdadeira comprovação, o engano é revelado: a ervilha
debaixo do colchão revela a verdadeira princesa.* As máscaras caem, cada
um encontra seu lugar. Por meio da colocação em ordem que supõe, o grande
momento distribui os seres envolvidos e cada um deles comprova sua verda-
deira grandeza. O bem-estar dos de maior grandeza se confunde com o bem
comum, e eles, nesses momentos, são especialmente representativos de sua
condição. Sua grandeza se mostra ali, portanto, confirmada.
Uma vez que um litígio convoque um processo de comprovação, a si-
tuação é, portanto, organizada de modo a suspender uma incerteza e resolver
um desacordo, fazendo apelo ao princípio superior comum a fim de estabe-

* Alusão ao conto de Hans Christian Andersen A princesa e a ervilha, no qual a fragili-


dade da pele de uma jovem comprova que ela falava a verdade sobre ser da realeza, o
que é descoberto após uma noite de sono incômoda provocada por algo tão pequeno
quanto uma ervilha em seu leito. (N. do T.)

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250 Os mundos comuns

lecer as grandezas relativas das pessoas. Esses momentos da verdade supõem


situações esclarecidas em relação a todas as ambiguidades que permitiriam
nela se introduzirem grandezas alternativas. A situação alcança a pureza apenas
se as disposições tiverem sido adotadas e os dispositivos, implantados para
estabelecê-la sob os auspícios de um mundo comum. Os seres e os objetos
coerentes são encaminhados, ativados, dispostos; as pessoas são preparadas
para ingressar no estado conveniente. Para explicitar os seres que importam e
afastar os sem importância, é preciso elevar-se acima das circunstâncias parti-
culares e apontar para um princípio de caráter geral que permita justificar as
aproximações e lançar os seres sem importância na ordem da contingência.
É o que se faz, por exemplo, quando se esclarece uma situação para evitar
mal-entendidos e prevenir um desentendimento. A generalidade do princípio
de aproximação oferece a certeza de que um acordo pode ser alcançado.
A comprovação exige que se saiba permanecer na natureza definidora do
mundo, ser natural, evitar a todo custo o que possa distrair, e, ao mesmo
tempo, exige que não se preste atenção ao que desvia dessa natureza. Os
riscos de distração são bastante reduzidos pela limitação do espaço e do
tempo determinados no âmbito da comprovação.

O r e l ato s o b r e a s i t uação

O cotejamento entre a comprovação, no sentido que aqui definimos, e


a prova esportiva (como uma partida, uma corrida ou uma luta) ou a apre-
sentação judicial de provas pode ajudar a compreender como um princípio
superior comum deve, para ser colocado em prática, adquirir a forma de seres
que não são apenas pessoas em seu estado de grandeza, mas que também
incluem objetos.
O esporte nos oferece uma espécie de versão reduzida de cité, que difere
de uma cité plenamente consumada apenas e puramente pelos limites aos
quais o exercício do desporto é circunscrito. O esporte só pode ser tratado
como cité na condição de suspender as restrições impostas, no seu exercício,
a situações e a pessoas envolvidas. Assim, aproximaremo-nos de um esboço,
muitas vezes reiniciado, mas nunca concluído, de uma cité higiênica. Tal
como é, circunscrito a uma esfera de atividades e a certas pessoas, o esporte
permite, contudo, construir um valor que pode ser considerado verificador
dos axiomas do modelo de cité: a humanidade comum (a1) (em uma prova,
os homens são iguais e não correm contra cães); a distinção de estados (a2)

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O julgamento submetido à comprovação 251

de grandeza ordenados (a4) e potencialmente acessíveis a todos (a3). A ter-


ceira hipótese, no entanto, não se impõe como evidência no caso do valor
esportivo, cujo acesso não parece claramente aberto a todos no que se refere
às desigualdades corporais constituintes. De qualquer forma, o resultado da
prova esportiva se assemelha a um mundo ordenado por um princípio supe-
rior comum do qual teria sido afastada qualquer contingência. O exemplo
do esporte claramente destaca a maneira como a situação é preparada para
a comprovação, de modo a torná-la bem-sucedida. Ao se colocarem de lado
as circunstâncias – das quais prontamente se dirá serem “externas” para
marcar claramente que não são próprias do princípio de ajustamento em uso
(por exemplo, o vento em favor de um concorrente) –, garante-se a homo-
logação dos resultados da prova. Se tudo correr de acordo com as regras,
as circunstâncias não são sequer mencionadas, seja por seus efeitos serem
considerados insignificantes, seja por terem sido integrados à própria prova.
Criar um novo esporte de competição é precisamente codificar a forma de
comprovação – definir a prova, o que deve ser provado, posto à prova – e
definir o equipamento, os objetos relevantes, de modo a reduzir as circuns-
tâncias, a absorvê-las na prova ou as tornar contingentes.
No exemplo da administração judicial das evidências, a gama de objetos
relevantes é muito mais ampla. Apesar disso, o estabelecimento dos fatos
ilustra também os constrangimentos a pesarem sobre as formas das coisas
para que elas possam ser levadas em conta, para que sejam qualificadas e
consideradas apresentáveis como provas conclusivas. Embora a comparação
com o sistema judiciário possa ajudar a captar a passagem do acordo sobre as
grandezas das pessoas para o acordo sobre as coisas e sobre sua aproximação,
da mesma maneira como a ideia de justiça ajuda a apresentar a de justifica-
ção, ela também limita a compreensão de nossa abordagem. De fato, a partir
de diversos princípios superiores comuns, apreendemos formas de grandeza
fortemente distantes do registro legal (mesmo que elas possam demonstrar
traços dele ao recorrerem a circunstâncias atenuantes), que chamaríamos de
econômicas, técnicas, quiçá estéticas. Da mesma forma, o acordo sobre as
coisas nos afasta da cena judiciária para nos levar por vezes na direção da
objetividade tecnicista e por vezes rumo à evidência sobrenatural, conforme
os mundos de referência. No entanto, a fim de manter no horizonte as ex-
tensões que propusemos para os sentidos dos termos justiça e julgamento,
é possível tirar proveito dessas comparações, especialmente uma vez que se
considerem as relações entre a disponibilidade dos seres passíveis de serem

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252 Os mundos comuns

engajados em uma ação justa e sua forma, que os dota de uma capacidade
de apresentar provas.
A comparação com a prova judicial evidencia especialmente a relação entre
a capacidade de estabelecer fatos envolvendo as pessoas e sua inclusão em um
relato coerente. Como as comprovações de julgamento no decurso do exer-
cício da Justiça, as comprovações de grandeza serão sempre consignadas na
forma de um relato, no qual serão qualificados os seres e estabelecidas suas
relações relativas. O julgamento da Justiça mostra, assim, a dupla face dos
objetos e fatos que contribuem para o arrolamento de provas, ao mesmo
tempo objetivas e relatáveis, que podem ser apresentadas em uma argumen-
tação. As coisas realmente têm peso sobre o julgamento, podem ser arroladas
e manipuladas no processo, e seu engajamento efetivo pode ser comprovado
na ocasião de uma reconstituição dos fatos; mas o agenciamento dos seres
não é definido sem um relato, um relatório, que os registre, sem autos que
deem conta de sua presença e de suas relações. Não se pode imaginar – nes-
se plano – “situações puras”, dissociadas de todo e qualquer relato. Assim,
embora a objetividade do bom funcionamento de uma máquina pareça algo
o mais distante do imperativo de justificação, essa máquina não funciona “so-
zinha”, mesmo no momento em que não necessite de ninguém para operá-la
ou em que não haja ninguém a observá-la, já que sua operação deve estar
em conformidade com um manual. Da mesma forma, a justificação inspirada
pressupõe um relato, e constatamos na descrição dessa cité o papel de uma
transcrição inspirada, registrada na forma da confissão.

A m at r i z d e a ná l i s e d o s m u n d o s c o m u n s

A comprovação está, portanto, submetida a imperativos e constrangi-


mentos que estendem, na ordem objetiva, aqueles que regram a boa funda-
mentação dos argumentos e que já relacionamos aqui à determinação do
bem comum. Das observações anteriores sobre os autos segue-se que um
agenciamento capaz de se estabilizar e de constituir provas está submetido a
exigências semelhantes às de uma gramática. Na medida em que seja apreen-
dida nos relatos, a ordem natural pode ser descrita com apoio de categorias
que definam sujeitos (o repertório de sujeitos), objetos (o repertório de objetos
e de dispositivos), as qualificações (estado de grande) e relações designadas
por verbos (as relações naturais entre os seres). A qualificação dessas relações
permite a partição entre ações circunstanciais – que não podem engajar efe-
tivamente os seres, já que estes estão justapostos por acidente – e as ações

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O julgamento submetido à comprovação 253

congruentes com um princípio superior comum. Essas categorias permitem


estabelecer a matriz de análise apresentada a seguir, que nos servirá, no
próximo capítulo, para apresentar os diferentes mundos da comprovação.
Princípio superior comum. Esse princípio de coordenação, que caracte-
riza a cité, é uma convenção que constitui a equivalência entre os seres. Ele
estabiliza e generaliza uma forma de aproximação, além de garantir uma
qualificação dos seres, condição para se fazer a avaliação tanto de objetos
quanto de sujeitos e determinar objetivamente o modo segundo o qual eles
importam e o quanto valem, para além das contingências. Pode-se dizer que
“‘a’ é equivalente a ‘b’ em termos de (princípio superior comum)”, como em
uma frase do tipo: “Em termos de repercussão de suas opiniões, tal pessoa
importa mais que outra”.
E, apenas em último recurso, as pessoas são levadas a esclarecer esse
princípio. Mais habitualmente, basta fazer referência à qualificação dos estados
de grandeza ou aos sujeitos e objetos presentes. O princípio não se resume
sempre a simplesmente um único termo.
Estado de grande. A definição dos diferentes estados de grandeza re-
pousa principalmente sobre uma caracterização do estado de grande – ou de
maior grandeza. Por sua vez, o estado de pequeno pode ser definido tanto
negativamente, pela falta da qualidade que define o grande, quanto, menos
diretamente, pela indicação de que os pequenos são reduzidos a desfrutar
apenas de seu bem-estar particular e, assim, pela estigmatização das expres-
sões irrisórias dessa autossatisfação.
Devido ao caráter de ordem estabelecida entre os estados de grandeza, de
sua associação a uma forma de bem comum, cada ordem de grandeza correspon-
de a uma escala do geral ao particular (diferentemente de uma medida escalar,
por exemplo).* Nesse quadro, os seres de maior grandeza são os fiadores do
princípio superior comum. Eles tornam disponível, por sua presença, a régua
por meio da qual se medem as importâncias. Por conta de sua generalidade,
eles servem como pontos de referência e contribuem na coordenação das

* Na física, uma grandeza é dita escalar quando sua definição é feita apenas por seu valor,
independentemente da direção em que atue – o que caracteriza as grandezas vetoriais.
São exemplos de grandezas escalares a massa ou o comprimento; a força, por sua vez,
é uma típica grandeza vetorial, já que depende do ângulo de sua aplicação. Uma ordem
de grandeza, assim, é uma escala que depende da direção, que tem um lado positivo e
um negativo. (N. do T.)

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254 Os mundos comuns

ações dos outros. Assim, ficam limitadas as tentativas dos pequenos de os


diminuir (por meio de uma atenção fascinada à mesquinhez e às pequenezes
dos grandes) e de colocar em dúvida sua superioridade. E pesa sobre esses de
menor grandeza a angústia de verem colapsar o princípio do qual extraem a
parcela de grandeza de que podem se beneficiar – por mais estreita que esta
seja – e de pôr abaixo a ordem mesma das coisas.
A coerência entre as qualidades dos grandes objetos e as dos grandes
sujeitos é manifestada pelo fato de os qualificativos utilizados em ambos os
casos serem frequentemente os mesmos.
Dignidade das pessoas. No modelo de ordens legítimas que identifica-
mos, as pessoas compartilham uma mesma humanidade, expressada em uma
capacidade comum de ascender ao bem comum. Por conta da fundamentação
dessa dignidade comum na natureza, tende-se a se falar de uma “verdadeira
natureza”, “inocente”. Essa inocência fica exposta na forma como as pessoas
se entregam ao Éden de uma situação natural, fechando os olhos para as
insinuações dos seres duvidosos.
As especificidades da dignidade em cada cité deverão se inscrever em
uma natureza humana e ancorar a ordem de grandeza em uma aptidão dos
seres humanos. Pode-se, assim, reconhecer, em cada um desses ordenamentos,
a elaboração de uma faculdade corporal (emoção, memória, hábito, desejo,
etc.) e sua transformação em uma capacidade de permitir o acordo com os
outros.
Repertório dos sujeitos. Para cada mundo, pode-se estabelecer uma
lista, um repertório de sujeitos, mais frequentemente qualificados por seus
estados de grandeza (pequenos seres ou grandes seres). Assim, para oferecer
um exemplo apenas, na aristocracia medieval os juventus não são caracteri-
zados por referência a uma categorização etária, mas pela incapacidade de
incorporarem uma linhagem e de serem depositários de um domínio, por
conta do celibato, da falta de filhos, etc. (Duby, 1964).
Repertório de objetos e dispositivos. Em cada mundo, os repertórios
de objetos e dispositivos são desigualmente desenvolvidos. Uma vez que os
objetos, ou sua combinação em dispositivos mais complexos, são agenciados
em coordenação com os sujeitos, em situações estáveis, podemos dizer que
eles contribuem para objetivar as grandezas das pessoas. Os objetos podem ser
todos tratados como equipamentos ou aparelhos da grandeza, sejam eles regu-
lamentos, diplomas, códigos, ferramentas, prédios, máquinas, etc. No mundo

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O julgamento submetido à comprovação 255

da inspiração, esses dispositivos são dificilmente separáveis das pessoas, para


as quais o próprio corpo é praticamente o único equipamento disponível.
A distinção entre o caráter material ou imaterial do dispositivo, muitas vezes
subjacente à oposição entre o simbólico e o não simbólico, não é aqui uma
propriedade fundamental. Aparelhamentos de relevos enormemente diferentes
podem igualmente servir para produzir as equivalências que permitem esta-
belecer grandezas calculáveis. Acrescentamos que a desigual possibilidade,
variável conforme o mundo em questão, de se implementarem os aparatos
da grandeza leva a tornar mais ou menos fácil a avaliação da grandeza das
pessoas (a própria e a dos outros).
Fórmula de investimento. A fórmula de investimento é, como vimos na
apresentação do modelo, uma das principais condições de equilíbrio da cité,
pois, uma vez que o acesso ao estado de grande seja associado a um sacrifício,
ela constitui uma economia da grandeza, no interior da qual os benefícios
se encontram “contrabalançados” por fardos – para retomar os termos de
Rousseau em Do contrato social (Rousseau, 1964, p. 364).
A grandeza proporciona benefícios às pessoas que acedem a esse estado
de grande, mas também aos de menor grandeza que sejam, assim, abarcados
por esses grandes e que neles encontrem a oportunidade de crescer de acordo
com sua dignidade. Mas a grandeza exige também o sacrifício dos prazeres
individuais associados ao estado de pequeno.
Relação de grandeza. A relação de grandeza especifica a relação de ordem
entre os estados de grandeza ao detalhar a maneira como o estado de grande,
por conta de sua contribuição ao bem comum, abarca o estado de pequeno.
As apresentações canônicas da cité explicitam bastante claramente a maneira
como os grandes exprimem os pequenos por termos que não se confundem
com a qualificação de grandeza (Sieyes apud Bastid, 1970).
Relações naturais entre os seres. Essas relações, exprimidas nos relatos
por meio de verbos, devem estar de acordo com as grandezas dos sujeitos e
dos objetos por elas unidos conforme as relações de equivalência e ordem que
fundamentam a cité (o que não implica que todos os seres estejam no mesmo
estado). Algumas dessas relações supõem grandezas de mesma importância,
outras expressam um gradiente.
Embora essas relações qualificadas presumam um imperativo humano
de justificação, elas podem unir vários objetos. Assim, por exemplo, o mundo
industrial é enormemente objetivo, com os objetos se organizando entre si

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naturalmente, sem a participação de pessoas. Da mesma forma, o mundo


mercantil mantém seu realismo por meio do lugar ocupado pelos bens, ob-
jetos cuja lista está, evidentemente, em constante crescimento.
A problemática sociológica da “construção social da realidade” supõe,
inversamente, concentrar-se nos pontos de vista e nas crenças das pessoas,
corroendo-se a objetividade dos objetos. Ela é muito desigualmente adaptada
aos diferentes mundos e coloca em questão o mundo industrial por conta
de uma passagem ao mundo da opinião que conduz a encontrar, nos seres
mais objetivos, o caráter simbólico e convencional dos signos, dos sinais.
A oscilação da sociologia entre o positivismo e a fenomenologia tem a ver,
assim, com o deslizar de um mundo a outro.
Imagem harmoniosa da ordem natural. A relação de equivalência é co-
nhecida apenas quando revelada por uma distribuição harmoniosa dos esta-
dos de grandeza, ou seja, de acordo com a fórmula de investimento própria de
cada mundo. As imagens harmoniosas da ordem natural são invocadas como
realidades em conformidade com o princípio de equidade. Em cada mundo,
pode-se verificar a seguinte proposição: “O (imagem do que seja o princípio
superior comum) é a realidade”. Assim, no mundo da opinião, “uma opinião
não é também a realidade?” e, na natureza mercantil, “discernir os fatos [é]
deduzir o que as pessoas desejam” (McCormack, 1985, p. 61).
Comprovação-modelo. A forma modelo de comprovação, ou grande
momento, é uma situação estável, preparada para a comprovação, cujo re-
sultado é incerto e na qual um dispositivo puro, particularmente consistente,
seja convocado a atuar.
Modo de expressão do julgamento. Em cada mundo, o julgamento,
que marca a sanção da comprovação, é expressado de forma diferente. Esse
modo de expressão caracteriza a forma de manifestação do princípio superior
comum.
Forma da evidência. O formato da evidência é o modo de conhecimento
próprio do mundo considerado.
Estado de pequeno e decadência da cité. As qualificações do estado de
pequeno, caracterizado pela autossatisfação, são muitas vezes menos claras
que as do estado de grande (quando não são a simples negação), seja por-
que a identificação cessa de ser possível à beira do caos, quando os seres
estão prestes a se desnaturalizar, seja porque as designações da pequenez
permitam transparecer grandezas de outras naturezas rebaixadas em figuras
de denúncia.

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O julgamento submetido à comprovação 257

O s e n s o d o c o m u m : s e n s o m o r a l e s e n s o d o nat u r a l

A realização de um acordo justificável supõe não apenas que seja pos-


sível construir um sistema de imperativos e/ou constrangimentos capaz de
reger o acordo, mas também que as pessoas sejam dotadas das capacida-
des adequadas para se submeterem a esses imperativos. Com efeito, nossa
abordagem leva em conta aquilo que as pessoas sabem de seus próprios
comportamentos e o que elas podem invocar para os justificar. Ela respeita,
desse modo, uma característica dos seres humanos, a saber, a capacidade de
ser razoável, de demonstrar capacidade de julgamento. A fim de se julgar
justamente, é preciso ser capaz de reconhecer a natureza da situação e a ela
se ajustar. A identificação das situações pressupõe uma competência, porque
ela não pode ser reduzida à projeção fora de si de uma intencionalidade. Ela
não depende da pura subjetividade do sujeito, que não constitui o sentido
da cena por meio de seu olhar sobre ela. Cabe, então, questionar: como as
pessoas poderiam se colocar na disposição necessária e orientar seu olhar
no sentido desejado, como poderiam elas sequer divisar uma ordem no meio
da multiplicidade caótica de aproximações possíveis, sem serem guiadas por
princípios de coerência, presentes não apenas nelas mesmas, sob a forma de
esquemas mentais, mas também no arranjo dos seres à disposição – objetos,
pessoas, dispositivos pré-arranjados, etc.? Um tanto de recursos, velados no
decurso das circunstâncias pelo ruído ambiente, são, no processo de justifi-
cação, destacados para neles assentar a prova.
Saber agir com naturalidade é ser capaz de lidar com a situação e, para
se estar em condições de corresponder ao imperativo de justificação, não se
deve ser omisso em uma situação que, à maneira de uma tarefa ou um dever,
exige ser realizada e concluída. Assim como no caso da aptidão de se reco-
nhecer o que esteja bem fundamentado, consideramos que todas as pessoas
devam contar com o aparelhamento necessário para se adaptar às situações
em cada um dos mundos. Como os princípios de justiça e os mundos nos
quais estes se realizam não estão vinculados a indivíduos ou grupos, e sim
imbricados nas situações, cada um se depara, no decurso de sua vida coti-
diana, com situações próprias de diferentes formas de justiça, devendo ser
capaz, para se comportar naturalmente, de as reconhecer e com elas se ajus-
tar. As pessoas nas quais essa capacidade esteja ausente ou perturbada são
consideradas psiquicamente anormais.

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258 Os mundos comuns

Da mesma forma como as construções dos filósofos políticos, uma vez que
estejam completas, detalham o entendimento humano e a psicologia das pessoas
de uma maneira coerente com a definição do bem comum, assim também o
desenvolvimento do modelo da cité segue paralelamente uma hipótese sobre a
instrumentação mental de que dispõem as pessoas para se entenderem em uma
ordem de grandeza. Essa capacidade deverá poder estar presente em todos, o
que exclui a possibilidade de conhecimento do modelo a partir do contato
com uma filosofia política. Aqui, nos limitaremos a uma construção hipotética
dessa capacidade, adaptada aos requisitos mínimos do acordo em uma cité.
Se nos mantivermos restritos à ordem da cité, essa capacidade, que
chamaremos, então, de senso moral, implica a integração de dois impera-
tivos fundamentais que servem de sustentação para esse ordenamento: um
imperativo de humanidade comum, supondo o reconhecimento e a identi-
ficação comum dos seres humanos com os quais o acordo deve ser feito; e
um imperativo de ordem, pressupondo a generalidade de um princípio de
grandeza a regrar as aproximações possíveis. Para chegarem ao acordo sobre
o que é justo, os humanos devem, então, ter conhecimento de um bem comum
e atuarem metafisicamente. Essa capacidade não é exigida das teorias redu-
cionistas (fundadas em um biologismo ou mesmo em um economicismo) ou
das behavioristas, nas quais as condutas são determinadas por forças externas
ou representam respostas mecânicas a estímulos. E ela também é ignorada no
culturalismo, uma vez que faz as pessoas agirem harmonicamente sem neces-
sidade de se estabelecer a harmonia, ao as dotar de um programa idêntico, o
que permite salvaguardar o postulado de não consciência, cuja importância
na maioria das tradições da sociologia e da antropologia relembramos no
início do livro. O acordo não pode resultar simplesmente de uma espécie de
negociação permanente entre os seres que não possuam a faculdade de agir
para além de si mesmos, que sejam incapazes de estabelecer equivalências
generalizáveis, como nas sociedades de babuínos, nas quais a ordem das
grandezas deve ser incessantemente reparada, o que faz Bruno Latour dizer
que as coletividades de símios realizam na prática a concepção de sociedade
humana proposta pela etnometodologia.
No entanto, a extensão de uma cité a um mundo tem como consequên-
cia o fato de a competência nisso exigida não se limitar a esse senso moral.
Para fazer um julgamento de maneira justa, é também necessário ser capaz de
reconhecer a natureza da situação e de colocar em prática o princípio de justiça
a ela correspondente. Para se comportar em situações naturais, reconhecer os

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O julgamento submetido à comprovação 259

objetos e os envolver na situação conforme sua natureza, as pessoas devem,


então, contar com um senso do natural. É preciso, portanto, dotar as pessoas
com a faculdade de fazer aproximações sensatas por meio das quais possam
identificar os seres destacados de circunstâncias passageiras e promover co-
munhões entre eles. Uma aproximação sensata implica uma relação passível
de ser explicitada com algo mais geral, algo comum aos objetos associados.
Ela se distingue, dessa maneira, da mera associação (por exemplo, pela
contiguidade espacial ou temporal). Mas o fato é que, se as pessoas podem
ser levadas a explicitar os motivos de suas aproximações, elas não são ne-
cessariamente obrigadas a fazê-lo nem, a fortiori, a fundamentar cada uma
de suas aproximações em um princípio, e, com isso, devemos considerar a
possibilidade de aproximações sem fundamento, como, por exemplo: “Essa
paisagem é plena de doçura”. Qualquer um tem o direito de parar a frase
nesse ponto. Assim, não estudaremos por si mesma a capacidade de fazer
aproximações, mas buscaremos esclarecer a maneira como opera a diferen-
ciação entre as aproximações justificáveis e as injustificadas.
A faculdade de se dissociar do ambiente imediato, de se abster da con-
fusão do que está presente para integrar os seres à disposição em uma ordem
de importância, constitui a capacidade mínima necessária para se envolver
nas situações sem nelas se perder. Essa capacidade deve ser adquirida e pode
ser gravemente perturbada, como sugerem, por exemplo, as observações rea-
lizadas por J.-P. Barret em uma instituição para crianças com esquizofrenia.
Elas mostram que essas crianças, ao que parece, têm as maiores dificuldades
para se colocar acima das circunstâncias caóticas, cuja pregnância transforma
cada dia em uma sucessão de momentos incomparáveis e imprevisíveis.
As pessoas, ao se comportarem naturalmente, ingressam em uma situa-
ção identificável com um mundo e adotam uma disposição consistente com
a natureza dessa conjunção. Colocar-se à disposição da situação é ajustar
seu olhar para não levar em conta a presença de seres que não importam,
seres contingentes, e para concentrar a atenção nos que importam. Adotar
a disposição demandada pela situação é se tornar um ser do mundo que a
determina (tornar-se um cidadão quando se está na zona eleitoral). Isso faz
com que os de maior grandeza tenham algo de inumano quando se con-
duzem com objetividade. Por outro lado, é porque as pessoas existem em
todos os mundos que se torna necessário as identificar no mundo que con-
vém – como, por exemplo, em um simpósio científico, no qual um cientista
faça uma conferência para um público que inclui seu pai e no qual o pai

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260 Os mundos comuns

faz uma intervenção, mostrando que identifica o falante como conferencista


e não como filho.
Mostrar-se próprio a uma situação natural é fazer todo o possível para
não se deixar distrair por seres pertencentes a outros mundos. E as pessoas
são sempre potencialmente distraídas, porque estão sempre em todos os mun-
dos, sempre agindo como Proteu. A disposição das pessoas e a direção de seu
olhar atuam para ofuscar os seres sem importância, que devem ser desativa-
dos, escapar a esse olhar, estar presentes sem se fazer notar – no momento de
comprovação, podemos chegar a afastá-los e a impedir que sejam visíveis. Se
forem apontados, isso não terá consequências: pode-se, por exemplo, anunciar
que há manchas na parede da sala de aula, mas isso não terá efeito sobre
a justeza da situação e não resultará em um registro no relato da situação.
As situações naturais se apresentam para todos de modo semelhante. É nisso
que têm algo de obrigatório: ninguém pode escapar à obrigação de levar em
conta sua natureza, seja para aceitá-la, seja para denunciá-la, seja ainda para
tentar um compromisso com um outro mundo. O engajamento exige ser
consumado. Ainda assim, é necessário que a situação tenha sido preparada:
se a pessoa limitasse seu comprometimento a um olhar, não veríamos como
ela poderia identificar a situação e se portar conforme a disposição exigida,
isto é, colocando-se à disposição da situação. Não é simplesmente porque
as pessoas veem uma fábrica como uma fábrica que ela é uma fábrica. Isso
ocorre porque um agenciamento preparado no mundo industrial exige das
pessoas uma certa disposição segundo a qual elas a verão como fábrica e
levarão em conta nela o que é relevante.
Nossa análise da comprovação indica a maneira como a apreensão de
um mundo comum – isto é, de quais seres importam – pode ser realizada
gradualmente. É por meio da experiência nas comprovações que as pessoas
aprendem a se comportar naturalmente. Esse processo lança luz sobre o
princípio de equivalência que ordena cada um segundo sua grandeza e que
aí se desdobra em sua forma mais pura. Assim, fala-se de um “grande mo-
mento do esporte” quando nenhuma circunstância externa perturba a prova e
os dois contendores se superam. Nessas comprovações, as pessoas estão sob
o domínio da situação. Absorvidas, indefesas, desprovidas de espírito crítico,
elas estão disponíveis para perceber o princípio de grandeza em jogo e para
adquirir a capacidade de colocá-lo em prática. À luz do princípio posto em
ação em toda a sua pureza, a grandeza dos seres que importam se revela
como algo evidente, assim como, por exemplo, no mundo da opinião, a

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O julgamento submetido à comprovação 261

cena transmitida pela mídia da entrega de um prêmio a uma celebridade. Da


mesma forma, um comprador, ao adquirir seu primeiro automóvel, anima-
díssimo, comprova a plenitude do mundo mercantil com um sentimento que
retornará a sua memória na ocasião de uma promoção, de uma semana do
consumidor ou de uma queima de estoque em uma loja de departamentos.
Assim, indo à concessionária ou ao supermercado, e não à biblioteca para
ler Adam Smith, é que ele adquirirá a capacidade de se engajar em situações
com base no princípio de justificação de natureza mercantil.

A a rt e d e v i v e r e m d i f e r e n t e s m u n d o s

Após ter caracterizado as várias formas do bem comum a partir de


textos canônicos da tradição política, passaremos agora a apreendê-las nas
situações nas quais são colocadas em ação prática. Isso resultará em um
primeiro registro de seres e dispositivos próprios de cada um desses mundos.
A combinação dessas percepções em repertórios mais extensivos é a primeira
etapa da construção de ferramentas de codificação sistemática. Esses instru-
mentos são necessários para realizar a análise de relatos e situações e para
identificar as grandezas. Fomos capazes de depreender os princípios e as for-
mas primárias do bem comum a partir de textos de filósofos políticos, porque
seus autores objetivavam precisamente estabelecer uma pedra fundamental
para esses princípios. Mas de onde podemos extrair os mundos, uma vez que
eles derivam sua existência apenas do engajamento coerente de objetos em
atos? Quais são os espaços de estudo da relação entre os princípios de ação
e sua colocação em prática?
Para estabelecer essas percepções iniciais, partimos de obras voltadas
para ajudar as pessoas a se comportar normalmente e a adotar, em situações
específicas, um posicionamento aceitável. Destinadas à aquisição da habilidade
de reconhecer e agenciar devidamente as situações, essas obras se situam na
linhagem a que a tradição retórica dá o nome de prudência – a phronesis,
a sabedoria prática –, como Le livre du courtisan [O livro do cortesão], de
Castiglione, ou L’homme de cour [O homem de corte], de Gracian.1 A proje-
ção dos textos filosóficos analisados nos capítulos anteriores sobre os manuais
práticos aqui abordados, cujos autores não objetivam um trabalho filosófico,
colabora, aliás, para inseri-los nessa tradição, da qual recordaremos agora
alguns aspectos que tornaram mais clara nossa abordagem.

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262 Os mundos comuns

A phronesis, tal como desenvolvida por Aristóteles – como prudência,


retomando, para além da concepção platônica de phronesis contemplativa, a
noção tradicional de uma sabedoria de segunda categoria centrada no cálculo
(Aubenque, 1976, p. 25) –, não é nem uma “perícia”, uma vez que o tipo
de ação é diferente daquela da produção, nem um “conhecimento científico”
(Aristóteles, 1965, VI, 5, 1.140b),* pois, como resume Jean Tricot, ela “deli-
bera sobre o contingente e se opõe, assim, à ciência demonstrativa” (p. 285):
“A prudência não se abre apenas para coisas gerais, mas deve reconhecer
as situações particulares e singulares em que cada vez nos encontramos,
porque ela se insere na dimensão da ação humana, e a ação humana diz
respeito a situações particulares” (VI, 8, 1.141b). Aubenque (1976, p. 43)
sublinha que, enquanto Platão não parece ter duvidado que “um conhecimen-
to suficientemente transcendente poderia dar conta da totalidade dos casos
particulares, Aristóteles tem a desesperança de jamais deduzir o particular
do geral”. A prudência trata desse hiato e, portanto, pode ser aproximada à
equidade, opondo-se à lei, que “é sempre algo universal” (Aristóteles, 1965,
V, 10, 1.137b), assim como o ângulo reto, o esquadro, valorizado pelo car-
pinteiro em seu aspecto útil, distingue-se daquele do geômetra (I, 7, 1.098a),
ou como “a régua de chumbo utilizada pelos construtores de Lesbos, [que] se
altera consoante à forma da pedra”, opõe-se à régua rígida (V, 14, 1.137b).
Quando Cícero descreve a colocação em prática da prudentia (termo
pelo qual traduz a phronesis de Aristóteles), da capacidade de se ajustar às
circunstâncias e do “cálculo dos deveres”, os exemplos por ele oferecidos
fazem parecer que essas circunstâncias podem ser identificadas em diferentes
registros:

[O]s graus de necessidade não serão os mesmos em todas as circunstâncias. Há


obrigações devidas mais a alguns que a outros: por exemplo, na colheita dos
frutos, ajudarás teu vizinho de preferência a um irmão ou a um amigo. Mas, em
caso de conflito judicial, defenderás um parente ou amigo de preferência ao um

* As citações à Ética a Nicômaco foram extraídas da tradução de António de Castro


Caeiro, publicada pela editora Forense. Preferi, no entanto, usar para phronesis o termo
prudência, mais próximo à solução francesa – e ao termo latino prudentia, que serve
a ela de base –, e em diálogo com outras construções do capítulo, a usar o vocábulo
sensatez, opção do tradutor português. Mas quero, ao mesmo tempo, registrar que o
sentido original tem mesmo mais a ver com uma habilidade (sabedoria prática) que com
um cuidado, como podem sugerir alguns usos ordinários do termo escolhido. (N. do T.)

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O julgamento submetido à comprovação 263

vizinho. Tais coisas e outras semelhantes devem então ser avaliadas sempre que
se trata de cumprir uma obrigação, e delas convém adquirir o hábito e a prática
para que sejamos bons calculadores de deveres e, adicionando e subtraindo,
obtenhamos o montante do resto, com base no qual decidiremos quanto deve
tocar a cada um. (Cícero, 1962, I, XVIII, 59, p. 515)*

Finalmente, notemos que São Tomás de Aquino, tomando por base a


definição de Aristóteles para a prudência, especialmente em sua relação com
as realidades contingentes e com a ação em oposição à produção (São Tomás
de Aquino, 1947, q. 47, art. 5, p. 35), dele se afasta ao ancorar a sabedoria
prática mais na imutabilidade das regras universais, e colocando em seu
controle a consciência mais elevada, a sindérese:

O fim concerne às virtudes morais, não por o estabelecerem elas, mas por
tenderem elas para o fim preestabelecido pela razão natural. E para isso são
auxiliadas pela prudência, que lhes prepara o caminho, dispondo os meios.
Donde se conclui que a prudência é mais nobre que as virtudes morais e as
move. Ao passo que a sindérese move a prudência, assim como o intelecto dos
princípios, a ciência. (São Tomás de Aquino, 1947, q. 47, art. 6, p. 40; ver ainda
o Apêndice II, de T.-H. Denan)**

Tratar em um mesmo enquadramento a relação geral/particular e a


questão da equidade é precisamente o objetivo que nos determinamos em
nossa pesquisa. Foi com esse fim que procuramos desenvolver um quadro
apropriado para dar conta da confrontação entre vários princípios de justiça.
Uma vez este trabalho concluído, dispomos de uma construção que permite
enxergar a distinção entre o geral e o particular, estrutura comum a todas
as cités, como a redução de um universo formado por vários mundos. São as
tensões inerentes a essa pluralidade de princípios de acordo que o julgamen-
to equitativo busca apaziguar, por meio das acomodações e pelo recurso a
circunstâncias atenuantes. A capacidade de deliberar, característica de um
homem sensato (Aristóteles, 1965, VI, 5, 1.140a), pode, assim, encontrar sua
expressão moderna no imperativo de justificação, na medida em que ele se
manifesta em um universo de vários mundos comuns.

* Conforme tradução de Angélica Chiapeta publicada pela editora Martins Fontes. (N. do T.)
** Conforme tradução de Alexandre Correia publicada pela editora Permanência. (N. do T.)

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264 Os mundos comuns

Estudamos, portanto, a colocação em prática de princípios superiores


comuns e sua mobilização nos mundos com base em guias para a ação. Desti-
nados a iniciantes e voltados a um uso pedagógico e cotidiano, esses manuais
descrevem situações típicas ou cenas modelares e constituem importantes
fontes de enunciados característicos desses diferentes mundos. Eles oferecem
soluções elegantes – isto é, simples e engenhosas, além de adequadas – para
as tensões que habitam os casos paradigmáticos e enunciam, muitas vezes
sob a forma lapidar do preceito, as regras a servirem de premissas para a
imaginação de situações comuns, sem se submeter às necessidades de abstra-
ção e sistematização próprias das filosofias políticas. As artes da prudência,
ou da civilidade, oferecem, assim, compilações de recomendações práticas,
ensinando maneiras normais de conduta, coleções propícias a nosso estudo
porque, diferentemente de manuais quaisquer, de instrução em uma técnica
ou uma arte, elas objetivam a justificação dessas condutas, por meio de um
direcionamento para o bem comum. Assim são os preceitos de Ferdinand
Lhote para a criação artística, as imitações ou os exercícios espirituais, os
guias de boas maneiras, os manuais de instrução cívica, etc.
No entanto, a análise minuciosa de obras como essas traz consigo o
risco de favorecer a ideia, da qual discordamos, de haver esferas separadas
de relevância, concepção que supõe que as pessoas sejam, elas próprias,
especializadas ou, no caso de se tratar das mesmas pessoas, que deixa sem
resposta a questão da passagem de uma esfera a outra. Dessa maneira, a
fim de evitar esse caminho mais fácil e de enfrentar a questão das relações
entre os mundos, tal como ela se manifesta para as pessoas que se deslocam
de um a outro, não quisemos nos debruçar, por exemplo, sobre um manual
doméstico concentrado exclusivamente em como manter convenientemente
a casa, no qual encontraríamos expostas as composições naturais, mas não
a pressão e a ameaça de controvérsias ligadas à possível presença de seres
de outro mundo.
Assim, impusemo-nos dois imperativos na escolha desses guias. O pri-
meiro é que cada uma das obras analisadas corresponda a uma das cités
mencionadas no capítulo anterior e que a mobilize da forma mais exemplar
e mais pura possível. A segunda é que os seis guias tenham como ponto de
aplicação um mesmo espaço, um mesmo contexto. Com isso, levantamos a
hipótese de que as mesmas pessoas poderiam referir-se a todas as grande-
zas, diferentemente da hipótese que atrela sistemas de valores ou culturas a
membros de um mesmo grupo social ou de uma mesma instituição, valores

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O julgamento submetido à comprovação 265

internalizados como preceitos éticos ou disposições a que uma pessoa em


particular poderia obedecer em todas as circunstâncias da vida. Se nossa
hipótese não for falsa, deve ser possível, para o mesmo tipo de universo ou
instituição e, consequentemente, para as mesmas pessoas, encontrar guias cor-
respondentes a cada uma das cités identificadas. Então, buscamos manuais de
prudência que digam respeito a um espaço no qual as pessoas sempre tenham
à disposição recursos naturais diversos, permitindo sustentar uma justificação
segundo um grande número de princípios superiores comuns. A manutenção
da coerência de um engajamento demanda, como vimos, o afastamento dos
seres que desviariam a situação, ao apelar a outras formas de justiça, e a
conduziriam a uma controvérsia, como discutiremos na próxima seção.
Uma empresa é atualmente um desses lugares: seu caráter de problemá-
tica advém da presença simultânea de recursos heterogêneos, por conta de
seu modo de coerência e dos princípios de justiça subjacentes. As situações
contíguas no espaço e no tempo são justificadas de acordo com princípios
diversos, o que é propício para colocar em evidência as diferentes maneiras
como os mundos se objetivam. Além disso, no universo dos negócios há um
número gigantesco de obras voltadas para ensinar as pessoas a bem se con-
duzirem e para mostrar a elas os métodos que devem seguir para compor as
mais diversas situações. Assim, optamos por manuais que, ao oferecerem um
mesmo teatro de operações, a empresa, e dirigindo-se às mesmas pessoas, ex-
perimentassem engajamentos de diferentes naturezas e ensinassem prudências
próprias de diferentes princípios de justiça.
Essas obras contemporâneas, que fazem as vezes de manuais ou guias,
destinam-se aos quadros executivos das empresas. Elas foram escolhidas
porque cada uma privilegia um dos mundos comuns analisados e prescrevem
como agenciar as situações mais naturais e menos carregadas de tensões
subjacentes, por exemplo: como incentivar a criatividade das pessoas; como
estabelecer relações domésticas apropriadas e demonstrar uma boa disposi-
ção para com o chefe, os subordinados, os colegas, os visitantes ou clientes;
como garantir o renome de uma empresa, de uma pessoa, de um produto e
fazer valer a opinião nas atividades de relações públicas; como construir, na
empresa, situações nas quais pessoas diferentes estejam umas com as outras
em uma relação cívica (por exemplo, pela eleição e pela designação de re-
presentantes); como gerenciar uma situação definida apenas por referência
ao mercado que deve ser conquistado (a eficiência comercial); como, enfim,
estabelecer situações construídas inteiramente por referência à utilidade do

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266 Os mundos comuns

trabalho (a produtividade). Esses livros propõem conselhos práticos, de sabe-


doria prática, e não sistemas de filosofia política, como os textos canônicos
dos quais prospectamos as cités e que são, por sua vez, em sua maioria,
desconhecidos dos autores desses manuais.
Sublinhemos, no entanto, que esses diferentes manuais são todos em
parte relacionados, ainda que apenas por sua forma metodológica comum,
ao mundo industrial. A difusão, nas empresas, de um mundo fundado na
eficiência utilitária tende a fundir as diferentes formas do geral no modo de
expressão no qual se formula a tecnologia e incita a transmitir as formas
de sabedoria prática, de prudência, por mais diversas que sejam, associadas,
nos mundos diferentes, por meio de procedimentos pedagógicos normalmente
utilizados no mundo industrial para transmitir uma tecnologia e que são
enunciados, eles próprios, em uma linguagem técnica: as técnicas pedagógicas.
Assim, apenas para dar um exemplo, as premissas sustentadoras da
grandeza inspirada e que, nas apresentações canônicas, serão expressadas na
forma de narrativas ou enigmas, ou seja, de modo singularizador, muitas vezes
tomam, nas obras aqui analisadas, a forma de dispositivos reproduzíveis. Isso
significa também que os guias utilizados para colocar em ação os mundos
correspondentes às diferentes cités apresentarão muitas vezes formas impuras,
ao menos no que diz respeito à referência aos modelos canônicos. Pode mes-
mo ocorrer, como veremos mais detalhadamente adiante, que os enunciados
relativos ao cerne da cité apareçam tingidos de ironia ou distanciamento, isto
é, de uma maneira crítica, e não na forma de um preceito ou regra, como
se o autor não tivesse podido escapar completamente do mundo industrial
atuante sobre seus ensinamentos. Mas essa característica será aproveitada
para promover, após o primeiro inventário dos diferentes mundos a que se
consagra o final do capítulo, um repertório das formas mais frequentemente
garantidas de críticas e compromissos entre mundos.
Queremos, então, experimentar o seguinte exercício: prospectar, re-
colhendo exclusivamente os termos e formulações presentes em cada um
desses guias, seis amostras representativas dos mundos, nas quais seja pos-
sível reencontrar as cités anteriormente descritas, aqui colocadas em ação e
consumadas em conformidade com seus princípios de grandeza. Em seguida,
reorganizaremos essas amostras de mundos sobre um mesmo modelo, de
acordo com a matriz analítica já apresentada. Esta determina as categorias
a serem utilizadas (princípio superior comum, dignidade das pessoas, estado

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O julgamento submetido à comprovação 267

de grande, etc.) e permite a comparação entre mundos, a transição confor-


tável de um a outro seguindo uma mesma categoria e percorrendo o quadro
“linearmente”, de alguma forma.
Em cada uma dessas rubricas, dessas colunas, o tema da tabela é esbo-
çado de perto, sem distanciamento crítico. De fato, uma distância seria ba-
seada na suspeita de uma verdade ocultada sob as aparências, perspectiva de
profundidade comumente alimentada na literatura das ciências sociais. Mas
uma redução como essa se apoia, como será mostrado mais especificamente
no próximo capítulo, nas mesmas figuras de denúncia de uma grandeza por
outra que nos propusemos a estudar nas tomadas de posição políticas, no
decurso dos assuntos econômicos ou no trato das relações pessoais. Distan-
ciamentos críticos como esses impedem de se enxergar a realidade de um
mundo, embora ela seja bem conhecida tanto de seus gramáticos quanto
de qualquer pessoa que se encontre em algum momento envolvida em uma
situação conforme esse mundo e da qual não se precise supor que se preste a
um “jogo” ou que ocupe “papéis” a fim de explicar sua conduta. Portanto,
a suspeita coloca necessariamente em perigo nosso exercício, pela introdução
parasita de uma grandeza estranha que serve de alavanca para o afastamento
crítico. Então, a leitura de cada uma das descrições de mundo “coluna a
coluna” convida a um abandono do senso crítico, a uma imersão capaz de
produzir uma sensação de extrema obviedade, de banalidade, de naturalidade
simplesmente, naturalidade essa que se imponha justamente a qualquer pes-
soa envolvida em uma situação estável, e que estabelecemos como objeto de
pesquisa. E, como qualquer pessoa envolvida, o leitor só pode se desprender
dessa aderência tópica, dessa adesão, apoiando-se em outro mundo, saltando
de uma coluna a outra.
As amostras de mundos que apresentamos demonstram, portanto, a
possibilidade de colocar em ação hoje esses diferentes mundos e suas cités
de referência em situações consumadas no interior de um mesmo contexto
(o da empresa) e com as mesmas pessoas (seus funcionários). E, além dessa
demonstração, elas poderão servir como uma ferramenta para os leitores que,
referindo-se a essas reduções compostas por variadas imagens, disporão de
um meio prático de se localizar rapidamente em um dos mundos ou de re-
conhecer sua presença no emaranhamento de uma situação complexa. Como
mostrado a partir do trabalho com base em outro corpus, especialmente um
conjunto de observações e de entrevistas com funcionários de um banco

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268 Os mundos comuns

questionados sobre as boas maneiras de se agir e de se avaliar para se conceder


crédito (Wissler, 1987), a escolha dos livros não produz grande repercussão no
repertório produzido: todas as obras voltadas para orientar o agenciamento
das situações definidas por referência a uma mesma cité contêm muito proxi-
mamente os mesmos termos e fazem referência aos mesmos objetos.
O guia do mundo inspirado. Para representar o mundo inspirado, esco-
lhemos o livro de Bernard Demory La créativité en pratique [A criatividade
na prática] (1974). Trata-se de um guia prático para utilização pelas empresas
escrito por um consultor de criatividade. Entre as diferentes obras utilizadas
para promover a identificação dos dispositivos e das pessoas relevantes nos
diferentes mundos, esse guia pode parecer, à primeira vista, o menos apro-
priado. De fato, como a cité da inspiração é aparelhada em um grau mínimo
(uma vez que implica a instauração de uma relação direta do indivíduo com o
plano superior comum), um texto em forma de guia não poderia senão traí-la.
Os consultores de criatividade devem ensinar algo que não pode ser ensinado
e manter aberto a todos o acesso aos estados inspirados, que, conforme a
descrição proposta pelos textos canônicos da cité, não pode ser alcançado
por demanda. Então, o guia de criatividade utilizado aqui deve, como todas
as obras do mesmo tipo, manter-se em uma posição instável. Situando-se no
mundo inspirado, ele separa claramente as situações criativas das situações
construídas em outros mundos, notadamente as denunciando – como é visto,
por exemplo, em todas as vezes que opõe a criatividade às rotinas da edu-
cação escolar, identificada com o mundo industrial. Mas ele deve ao mesmo
tempo se afastar da cité ou até mesmo denunciar suas expressões canônicas
a fim de abrir a possibilidade de uma aprendizagem da criatividade, por meio
de exercícios metódicos de natureza industrial que justificam a existência do
guia e, de forma mais geral, a profissão daquele que é seu autor. Isso significa
que os compromissos com o mundo industrial, presentes em todos os guias
identificados com outros mundos aqui analisados, serão particularmente ex-
plícitos no caso da grandeza da inspiração.
O guia do mundo doméstico. O livro de Pierre Camusat Savoir-vivre
et promotion [Boas maneiras e promoção] (1970) servirá para representar
o mundo doméstico. Trata-se de uma obra explicitamente escrita, como fica
claro em sua introdução, para transmitir a arte das relações pessoais har-
moniosas aos autodidatas que tenham sido promovidos nas empresas. Esse
livro é, portanto, particularmente adequado para a análise de como um mundo
doméstico pode ser colocado em ação em um ambiente de trabalho. Com efeito,

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O julgamento submetido à comprovação 269

um grande número de elementos mais associados ao mundo industrial – in-


cluindo o que é conhecido na ciência da gestão como “relações humanas”
ou “relações interpessoais” – é retraduzido aqui para o mundo doméstico.
Trata-se, assim, de um livro concentrado na empresa e nas relações de
trabalho. Mas uma parte dele é dedicada à família e às relações familiares,
e o autor justifica isso ao enfatizar a relação entre o sucesso profissional e
a vida familiar:

Alguns poderão, no entanto, se surpreender com o fato de que, ao lado da


vida profissional ou da vida pública, parte dessas boas maneiras seja dedicada
à vida privada. Isso não diz respeito a ninguém, dirão. Evidentemente, não é
nossa intenção interferir na vida privada de quem quer que seja; mas, antes,
queremos tratar da questão familiar, que é de suma importância no contexto
do sucesso social. (Camusat, 1970, p. 49)

O guia do mundo da opinião. O livro Principes et techniques des rela-


tions publiques [Princípios e técnicas das relações públicas], de Christian
Schneider, datado de 1970, nos apresentará ao mundo da opinião. Ele é de-
dicado à arte das relações públicas, que, contudo, não está totalmente circuns-
crita a esse mundo. Como indicado pelo termo “relação”, as relações públicas
estão sempre na fronteira do mundo doméstico, o que se pode ver bastante
bem no caso, apresentado no livro, do relacionamento entre os assessores de
imprensa e os jornalistas. Elas são, entretanto, destinadas à construção de uma
grandeza de reputação.
Além disso, as relações públicas podem deslizar para o mundo mer-
cantil. O guia insiste que o objetivo dessa atividade é ampliar o renome, e
não vender. Muitos dos exemplos usados são voltados para mostrar que se
podem fazer relações públicas para impulsionar a imagem de algo que não
esteja à venda (por exemplo, uma cidade, um político, etc.). Mas, em mui-
tos casos, e especialmente quando se trata de aumentar a reputação de um
produto, a venda é apresentada tanto como um indicador quanto como um
dos objetivos para se aumentar a reputação. Essa tensão aparece de forma
clara na distinção, nitidamente demarcada em várias repetições, entre as
relações públicas e a publicidade ou o marketing. Estes dois últimos estão
interessados nas pessoas na condição de consumidores e são sancionados por
um ato de compra. Já as relações públicas estão interessadas nas pessoas na
medida em que tenham uma opinião sobre um produto, sejam elas favorá-
veis ou desfavoráveis a ele. É nesse sentido que essas pessoas compõem um

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270 Os mundos comuns

público (uma opinião pública). Aplicadas às empresas, as relações públicas


implicarão necessariamente um compromisso entre o mundo da opinião e o
mundo mercantil.
Finalmente, as relações públicas introduzem uma relação industrial com
o mundo do renome, o mesmo tipo de compromisso promovido nas pesquisas
de opinião. Isso fica explícito, por exemplo, na oposição, a respeito da qual o
guia é recorrente, entre as campanhas de relações públicas e os rumores: elas
devem controlar os rumores, que surgem espontaneamente e se proliferam
no momento de uma falha ou de falta de informação. Assim, a aparelhagem
dessa área é de caráter industrial: pode-se tentar medir sua produtividade,
ela pode obedecer a um critério de utilidade, etc.
O guia do mundo cívico. Para analisar a maneira como as situações
do mundo cívico são agenciadas nas empresas, e para fazer uma primeira
identificação dos dispositivos e dos seres cuja presença é revelada às pes-
soas nas situações cívicas, utilizaremos dois guias sindicais publicados pela
Confédération Française de Travailleurs (CFDT) [Confederação Francesa
de Trabalhadores], que se complementam para formar um conjunto único.
Trata-se dos seguintes folhetos da coleção CFDT/Pratique Syndicale, editada
e distribuída pela Montholon Services: a) Pour élire ou désigner les délégués
[Como eleger ou designar os representantes], de 1983; e b) La section syn-
dicale [A seção sindical], de 1981.
Regido pelas leis (pelo direito trabalhista e previdenciário), as formas de
organização do pessoal da empresa e, mais especificamente, de organização
sindical, são diretamente inspiradas por instrumentos estabelecidos, espe-
cialmente depois da Revolução Francesa e ao longo do século XIX, para se
colocar em ação um princípio superior comum cívico. Esse princípio, como
vimos na formulação tópica extraída de Do contrato social, absolutamente
não é propício a uma instrumentação muito densa, e, de fato, nem a dele-
gação nem a representação escapam, elas próprias, a críticas. Além disso, os
objetos e os dispositivos relacionados nos manuais analisados muitas vezes
tomarão emprestado seu aparelhamento de outros mundos, notadamente do
mundo industrial.
O primeiro folheto (Pour élire ou désigner les délégués) é o mais puro.
De fato, sabe-se que as eleições, às quais essa obra é dedicada, são as si-
tuações de comprovação [mais próprias] do mundo cívico. Aqui, trata-se de
eleições profissionais (o que supõe um compromisso com a indústria), mas
os instrumentos operados e a linguagem utilizada pertencem claramente ao

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O julgamento submetido à comprovação 271

mundo cívico. A dramaturgia e as disposições cívicas, as numerosas referên-


cias à lei e ao direito nessa obra estão associadas a uma denúncia, explícita
ou tácita, de situações que, na empresa, são ordenadas conforme um outro
mundo, especialmente quando se encontram regidas por uma lógica mercantil
ou, sobretudo, neste caso, quando fundadas em uma relação de ordem do-
méstica. Assim, é frequentemente lembrado que a possibilidade de estabelecer,
na empresa, situações nas quais sejam colocados em prática procedimentos
cívicos supõe uma deriva pelo interesse geral e o recurso a uma soberania
desencarnada. Essa deriva implica, por outro lado, a ruptura de uma outra
forma de relação social realizada pelas relações de natureza doméstica, fun-
dadas nas dependências pessoais, isto é, relações arbitrárias e injustas de um
ponto de vista cívico.
O guia do mundo mercantil. Para representar o mundo mercantil, tive-
mos que recorrer a um livro estrangeiro, o trabalho de Mark H. McCormack
intitulado O que não se ensina em Harvard Business School* – em inglês,
What they don’t teach you at Harvard Business School: notes from a street­
‑smart executive (edição original, de 1984) –, porque não encontramos, no
momento da pesquisa, obra francesa contemporânea que apresentasse, na
forma de guia, a arte do sucesso nos negócios. Os livros em que se trata de
comércio ou vendas expõem poucas configurações de elementos puramente
mercantis, sendo o mundo industrial enormemente presente nas técnicas de
vendas, nos métodos (merchandising), nos planejamentos, nos cálculos, nos
gráficos. Essa falta tornou explícito o fato de que, embora os princípios
mercantis sejam frequentemente instrumentalizados por uma disciplina aca-
dêmica, e muito embora o mundo mercantil esteja frequentemente implicado
em situações cotidianas nas quais as pessoas fazem valer suas riquezas, a
grandeza mercantil está longe de ter, na França, a dimensão política que ex-
perimenta nos EUA. Essa relativa fraqueza deve ser, naturalmente, associada
à consumação das cités cívica e industrial nas quais se baseiam as críticas à
grandeza mercantil. E é importante acrescentar que o autor da obra utilizada
demarca claramente a incomensurabilidade das grandezas mercantil e indus-
trial por meio de muitas denúncias a esta última. Ele observa, aliás, a respeito
do título de seu próprio livro: “Este produto, por exemplo, este livro, se

* Título da edição brasileira, da editora Harbra, com tradução de Jean Jacques Salim. (N.
do T.)

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272 Os mundos comuns

fosse intitulado Princípios práticos de gestão, atrairia certamente um público


diferente, provavelmente mais limitado”.
A obra americana, que escolhemos entre outras publicadas em inglês,
pois havia sido traduzida e, portanto, tornada acessível ao público francês,
responde bem a nossos requisitos: tem a vantagem de reunir conselhos práti-
cos sobre a arte dos negócios com base na experiência de seu próprio autor
(o subtítulo diz: “Notas de um executivo com sabedoria das ruas”), tratando
de bens mercantis particularmente dissociados do dispositivo de produção
industrial. Promovendo quer o nome de determinadas pessoas (no caso, no
mundo esportivo) quer instituições conhecidas (Fundação Nobel, Vaticano),
o peso dos imperativos e/ou constrangimentos técnicos da fabricação do pro-
duto se encontra reduzido, enquanto, em consequência, é muito mais denso
nos preceitos de marketing de produtos manufaturados convencionais. Os
compromissos mais elaborados nesse manual são, assim, construídos com o
mundo da opinião.
O pequeno mundo do esporte, que o autor conhece bem, com suas gran-
dezas, suas provas e suas regras, pode servir, como indicamos anteriormente,
de modelo reduzido da cité. A figura do campeão ou do “craque” – “Por mui-
to tempo tenho estado fascinado, tanto profissional quanto psicologicamente,
por aquilo que produz um campeão” (McCormack, 1985, p. 235) – permite
deslizar de um valor esportivo a uma grandeza do renome ou mercantil: “Não
fosse pelas afiliações de Arnold [Palmer, campeão de golfe] à ‘nata do jogo’,*
ele nunca teria sido tão perfeito” (p. 120). Essa evocação da esfera do esporte
é reforçada pelo fato de o princípio superior comum da cité mercantil, a
concorrência, compreender uma rivalidade entre as pessoas que não é sem
semelhança com as competições dos esportistas. No entanto, o autor marca
fortemente a diferença, sublinhando que, na cité mercantil, não tem lugar a
intransponível primazia que se concede aos campeões:

Há uma diferença fundamental entre competir nos negócios e competir nos espor-
tes. Em ambos os casos, a ideia é vencer, superar outra pessoa. Mas, nos negócios,
o jogo não se encerra; não há lideranças insuperáveis. Um concorrente sempre
está em tempo de alcançar o outro. (McCormack, 1985, p. 190)

* Aqui, o termo “jogo” é usado no duplo sentido do esporte e dos negócios. (N. do T.)

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O julgamento submetido à comprovação 273

O guia do mundo industrial. O trabalho de Maurice Pierrot Productivité


et conditions de travail: un guide diagnostic pour entrer dans l’action [Pro-
dutividade e condições de trabalho: um guia de diagnóstico para entrar em
ação], publicado em 1980, nos serviu como fonte de dados sobre o mundo
industrial. Seu título já indica que esse manual pretende ir além do âmbito
desse mundo, diferentemente dos incontáveis resumos técnicos que descrevem
o funcionamento e as rotinas de operação normal de uma empresa. O objetivo
desse guia é fazer a composição entre o imperativo da produtividade, que
expressa perfeitamente o princípio superior comum do mundo industrial, e
um discurso de melhoramento das condições de trabalho que, como todos os
preceitos que se proponham a levar em conta os aspectos sociais da empresa,
supõe um compromisso com o mundo cívico, visando valorizar a dignidade
humana do homem nesse ambiente. Pode-se, então, encontrar nessa obra não
só um aparelhamento de base da grandeza industrial, que não pode deixar
de ser parcial aos olhos da extensão da aparelhagem objetiva desenvolvida
nesse mundo, mas também uma variedade de compromissos com o mundo
cívico, que será discutida no próximo capítulo.
Cada uma das seis obras foi tratada analiticamente da mesma forma.
Estabelecemos como meta isolar, prospectar e reunir de uma forma facilmente
acessível os principais elementos dos quais se deve dispor para se reconstituir
o texto original da forma mais precisa possível, se por acaso a versão original
fosse destruída ou perdida, ou ainda para se imaginarem novas afirmações
que pudessem ser inseridas sem romper sua harmonia interna. Para isso,
construímos um primeiro inventário, reunindo os seres específicos do mundo
considerado, com cada registro acompanhado por um ou mais exemplos. Em
seguida, tratamos esse inventário com a ajuda da matriz que, estendendo as
categorias elementares do bem comum, foi projetada anteriormente para dar
conta da ordem natural, dos agenciamentos pertinentes e dos relatos que po-
dem ser dados. A lista de seres (sujeitos, objetos, relações, etc.) prospectada do
inventário é indicada no início de cada categoria na matriz, seguida por um
texto elaborado sob o imperativo de mobilizar o maior número possível des-
ses seres naturais. Esse texto, destinado a fazer o leitor ingressar de pés descalços,
sem distanciamento, em um mundo e em seu processo de feitura, desprovido de
qualquer exterioridade crítica, pode criar apenas uma impressão de evidência
e redundância semelhante à vivida nos grandes momentos de adesão a uma
situação natural. Trata-se, então, de gerar uma realidade nua, um mundo sem

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274 Os mundos comuns

espessura ou além e, por consequência, sem um lugar a partir do qual uma


denúncia sobre o que ele é possa ser colocada.
Dessa maneira, uma amostra de cada um dos mundos é, como se diz na
linguagem da música, composta, tomando-se os objetos em acordes. Trata-se,
como veremos no próximo capítulo, do confronto entre os acordes/acordos
incompatíveis que permitem desvelar o artifício dos mundos opostos, um
pouco como, segundo Adorno, Alban Berg utiliza “o acorde perfeito do dó
maior” em passagens que, de outra forma, estariam desgarradas da tonali-
dade, “a cada vez que se trata de dinheiro”, com as “harmonias perfeitas”
sendo comparáveis “às expressões de circunstâncias da linguagem e, ainda
mais, ao dinheiro na economia” e servindo para denunciar a “banalidade”
e a artificialidade das relações mercantis: “A pequenina moeda do dó maior
é denunciada como falsa” (Adorno, 1962, p. 68, grifos nossos). Tudo que
permite construir a grandeza de uma cité pode muito bem ser utilizado
para desconstruir as grandezas estabelecidas, fazendo-se referência a outros
princípios superiores comuns, de modo que os mesmos aparatos servem,
alternadamente, à composição tópica e ao desvelamento crítico.

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Capítulo 6

A a p r e s e n tação d o s m u n d o s

O m u n d o da i n s p i r ação

Este mundo, no qual os seres devem se manter prontos


para acolher mudanças de estado, conforme a vontade da
inspiração, é pouco estabilizado e fracamente equipado. Dele
é afastado tudo aquilo que, em outros mundos, sustenta e
aparelha a equivalência, como as medidas, as regras, o dinhei-
ro, a hierarquia, as leis, etc. Dado esse baixo grau de apa-
relhamento, esse mundo tolera a presença de comprovações
interiores pouco ou nada objetiváveis, o que deixa a grandeza
inspirada protegida das opiniões dos outros – e indiferente
a marcas de desprezo –, mas que implica, no entanto, sua
fragilidade. O mundo inspirado deverá, com efeito, enfrentar
o paradoxo de uma grandeza que se furta à medição e de
uma forma de equivalência que privilegia a singularidade.
Assim, nesse mundo, as pessoas podem ser mais ou A efusão da
inspiração  (plano
menos grandes na medida em que são todas suscetíveis de superior comum)
experimentar a efusão da inspiração e de, assim, aceder à Inspiração.
perfeição e ao bem-estar.
Aqui, dessa maneira, o estado de grande tem os atributos Indescritível e etéreo
(estado de grande)
próprios à inspiração,* como a iluminação, a gratuidade do fa-
Estranho, Insólito,
vorecimento [da parte de quem concede a graça], tanto externa Maravilhoso, Indescritível,
Inquietante,
quanto comprovada na experiência de um movimento interior
Apaixonante, Espontâneo,
que o ocupa e transforma: o estado de grande é um estado es- Emocional.
pontâneo, isto é, indissociavelmente sincero e involuntário, pois

* As palavras em itálico nos capítulos 6, 8 e 9 são extraídas do corpus


dos livros examinados.

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276 Os mundos comuns

é uma condição interior que os seres recebem a partir do


exterior. Ele se manifesta por meio de emoções e paixões,
e é vivido como devorador, arrepiante, enriquecedor, entu-
siasmante, exaltante, fascinante, inquietante, etc. É de maior
grandeza aquele que evita o controle e, principalmente, aquele
que escapa à medição, especialmente em suas formas indus-
triais. A grandeza é muitas vezes qualificada de forma negativa,
para se enfatizar aquilo que falta, a fim de se captar, avaliar
e fixar. O inspirado não teme se definir com termos que, em
uma lógica diferente, o depreciariam, como quando se quali-
fica a si mesmo de irracional. No estado de grande, os seres
escapam das medições industriais, da razão, da determinação,
das certezas da técnica e se desviam do comum das coisas
para “adotar maneiras estranhas”. E eles igualmente escapam
aos dispositivos domésticos, abandonam o bom senso em
favor da extravagância e “tornam insólito o familiar”. Sabem
reconhecer e acolher o que é misterioso, imaginativo, original,
indescritível, inefável, etéreo ou invisível e ficam confortáveis
em situações informais.
A inquietação da A paixão que os impulsiona provoca, indissociavelmente:
criação (dignidade)
o desejo de criar, despertado pela inspiração; a inquietação
Amor, Paixão,
Criar. ou a dúvida; o amor ao objetivo perseguido; e o sofrimento.
Os iluminados (sujeitos) Os de mais elevado estado de grande no tocante à
Espírito, Sombra,
inspiração são frequentemente desprezados pelo mundo; são
Monstro, Fada, Eu,
Criança, Mulher, Louco, pobres, dependentes, inúteis. Mas seu estado desafortunado
Artista.
favorece justamente o acesso ao conhecimento das figuras
verdadeiramente harmoniosas (céu, imaginário, inconsciente,
etc.). É o caso da criança (“curiosa, inventiva”, apaixonada),
das mulheres, dos ingênuos, dos loucos e também dos poetas,
dos artistas (da mesma “natureza da mulher”), dos monstros
(“criaturas imaginárias inspiradoras de arrepios”), dos fenô-
menos.* Neste mundo, onde os seres são valorizados por sua

* Fenômeno, aqui, no sentido comum de uma ocorrência singular, sur-


preendente e rara, e não no sentido do termo para a ciência. Assim,
denota tanto a aberração quanto o gênio, ambos contempláveis pela
inspiração. (N. do T.)

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A apresentação dos mundos 277

singularidade e no qual o de mais alto grau de generalidade


é o mais original, os grandes são, ao mesmo tempo, únicos e
universais. Passa-se sem transição da singularidade do eu à
generalidade de o homem, o ser humano. Assim, os artistas,
que hoje frequentemente personificam a grandeza inspirada,
são grandes porque abarcam os outros na singularidade de
um nome próprio: Baudelaire, Cocteau, Einstein, Galileu,
Mozart, Shakespeare, etc. Mas existem, nessa lógica, seres
ainda de maior grandeza que os artistas, aqueles dos mundos
mágicos (sombras, fadas, magos). Sua evocação, no entanto, é
sempre realizada, no livro utilizado aqui, de modo profano.
A pobreza leva à grandeza por meio do desnudamento, O sonho acordado
(objetos)
que deixa o corpo totalmente à mostra. Com efeito, no mun- Espírito/­mente,
do inspirado, os objetos e dispositivos que aparelham a gran- Corpo, Sonho,
Inconsciente,  Drogas.
deza não estão destacados da pessoa. Eles são indistintamente
próprios do espírito e do corpo (o dom, a dádiva da graça,
pode se manifestar tanto por meio de gestos quanto por meio
de palavras), que estão preparados para acolher a inspiração,
isto é, podados do que os relaciona a dispositivos de outras
naturezas e postos em um estado de disponibilidade. A fim
de se superar, é necessário mergulhar até onde a grandeza
possa se manifestar – isto é, em si mesmo, “fazer uma espé-
cie de viagem mental”, “uma viagem sem drogas, por assim
dizer”, ao inconsciente, para despertá-lo por meio do sonho
e pela imaginação posta em prática pelas “capacidades ador-
mecidas”, “saber aproveitar o sono”, entregar-se ao sonhar
acordado, “não pensar incessantemente em ser útil, eficiente,
lógico, racional”, os mesmos resultados que se podem obter
utilizando-se “métodos emprestados das religiões do Extremo
Oriente, do zen e das abordagens psicanalíticas”.
O acesso à grandeza inspirada demanda, assim, o sacri- Evadir-se para longe dos
hábitos
fício das formas de estabilização e dos dispositivos que, em (investimento)
outros mundos, garantem as identidades das pessoas. É ne- Colocar em questão,
Risco, Desvio.
cessário “evadir-se para longe do hábito e da rotina”, “aceitar
correr riscos”, “rejeitar os hábitos, as normas, os princípios
sacrossantos” e tudo questionar, libertando-se da “inércia do
saber”. As operações que designam a abstenção dos mundos

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278 Os mundos comuns

alternativos (denunciados como ilusórios) adquire aqui um


relevo particular: colocar-se à disposição da grandeza sig-
nifica “deixar de lado sua atitude mental racional”, é tudo
abandonar para se consagrar a sua vocação, mudar de pele,
livrar-se do velho homem. No entanto, não é essa renúncia em
si que confere acesso à grandeza, cuja vinda não é previsível,
e sim um “conjunto de acasos singulares”: “Nenhum pintor,
nenhum músico, nenhum escritor, nenhum pesquisador cientí-
fico pode pretender ser bem-sucedido todas as vezes. [...] Ele
sabe, pelo contrário, que deverá suportar os insucessos, andar
a passos lentos por longos períodos, recomeçar e recomeçar
novamente antes de conseguir”. As “áleas da criação”, seus
riscos – “com tudo que comporta de descontrolado e miste-
rioso, felizmente...” –, seus desvios, exigem a humildade que
permite “superar a vaidosa certeza do especialista”.
O valor universal Os grandes inspirados abarcam os outros seres, englo-
da  singularidade
bam-nos e os realizam, mas não ao representar o que tenham
(­relação de grandeza)
Genialidade, todos em comum (como, por exemplo, os porta-vozes no
Independência.
mundo cívico), e sim, pelo contrário, ao afirmar sua singu-
laridade. É por meio do que têm de mais original e mais
singular, ou seja, por sua genialidade própria, que se dão aos
outros e servem ao bem comum. Eles têm, portanto, o dever
de se insurgir contra o jugo, de se destacar do rebanho, de
buscar a libertação individual, não para fins egoístas, mas
para consumar a dignidade humana, restaurando entre os
seres relações autênticas.
A alquimia dos No mundo inspirado, as relações naturais são relações
encontros imprevistos
de criação. Cada ser cria e se deixa criar pelos outros. De-
(relações)
Criar, Descobrir, ve‑se, portanto, adotar um estado de abertura, uma atitude
Procurar, Imaginar,
de acolhimento para deixar livre para agir “a misteriosa
Sonhar, Explodir
(fazer). alquimia da criação, a alquimia das coisas e a alquimia da
palavra”, que compõem o tempo todo um mundo vago e
em movimento: “Falamos por nebulosas, de uma riqueza
inaudita, de uma infinita variedade de significados e, por isso
mesmo, de grande imprecisão”. O inspirado está disposto a se
colocar em estado de busca, a “ingressar em relações de afeti-
vidade [nas quais possa se afetar], as únicas que engendram o

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A apresentação dos mundos 279

calor, a originalidade e a criatividade entre os indivíduos”; ele


se dispõe a sonhar, a “imaginar”, isto é, a “conceber o que
não é”, a criar (arte, cinema, literatura, pintura, teatro), a fa-
vorecer os encontros, a “induzir o nascimento de questões”, a
fazer jogos de palavras e de espírito que conduzam “a outros
universos”, a realizar transmutações.
É, com efeito, apenas nos universos dissociados da rea- A realidade do
­imaginário (figuras)
lidade, da “desmoralizante realidade” – isto é, daquilo que
Imaginário,
se pretende como tal em outros mundos, particularmente Inconsciente.
no industrial –, que as verdadeiras grandezas podem se ma-
nifestar: é necessário, então, “explodir o que chamamos de
realidade”. E, para escapar a ela, deve-se “se lançar à fantasia
mais louca”, “transformar os indivíduos em exploradores
do imaginário” para levá-los a realizar um “mergulho no
inconsciente”, pois “toda criação recorre ao inconsciente”.
A aventura é uma aventura interior e a verdadeira via- O vagar do
espírito (comprovação)
gem, uma viagem em espírito, uma caminhada, uma busca.
Aventura, Busca,
Esse modo de translação se opõe a tudo aquilo que, em Viagem mental,
Caminhada,
outros mundos, mais uma vez particularmente no mundo
Experiência vivida.
industrial, captura o movimento no cumprimento de uma
determinação, em uma trajetória, previsível e, portanto, “en-
fadonha”. O caminho para a inspiração é “um caminho mal
definido, cheio de desvios, formado de encontros e mudanças
de direção”, um caminho cerrado, um caminho de invenção,
no qual se deve vagar “fora dos limites traçados”, entre-
gue à aventura, “às promessas entusiasmantes”. Seguir esse
caminho é “encontrar suas vias próprias”. Ele conduz a
experimentar estados particulares, “nos quais as barreiras
estão levantadas”, estados do corpo e festas do espírito que
representam os momentos de plenitude da inspiração.
Nesses grandes momentos, por exemplo na criação da O lampejo de gênio
(julgamento)
obra-prima, a inspiração se manifesta de maneira espontânea,
Iluminação, Intuição,
súbita, desordenada, capturando o criador e o forçando a Jorrar, Aparecer,
Acaso,
“superar a si mesmo”. Sua forma de aparecer consiste em
Ebulição,
lançar um sopro que anima, que extrai “a imaginação de sua Revolução, Vertigem,
dormência” e provoca nela a decolagem. Está na natureza da Superar(-se), Obra-prima,
Planar, Aura.
inspiração irromper, surgir, manifestar-se por um “lampejo

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280 Os mundos comuns

de gênio”, uma “faísca”, que provocará o aparecimento da


ideia, uma iluminação ou uma intuição insólita que desor-
dena, introduzindo em seguida uma “ebulição confusa”, um
“estranho turbilhão”. Nesse estado, o mundo é tomado pelas
impressões e sentimentos, pela aura de felicidade, pela verti-
gem, pelo arrepio e tremor.
A certeza da O mundo real não é diretamente acessível aos sentidos.
intuição  (evidência)
Ele se dá a conhecer por meio de sinais, que revelam sua
Fantasia, Símbolo,
Sinais, Analogia, existência e dele oferecem alguma ideia sem o tornar presen-
Imagens, Mitos.
te. Esses signos, transmitidos pela palavra ou pela imagem,
tomam a forma da coincidência, da analogia ou da metáfora.
Todas as coincidências são relevantes porque “há entre todos
os elementos do nosso universo uma relação, [ainda que]
frequentemente tênue ou puramente intelectual”. Consequen-
temente, a manifestação do provável requer um dispositivo
no qual as correspondências possam ser postas em ação e
os deslocamentos de sentido operem livremente, de modo
a dar origem a ideias insólitas. É necessário adotar uma
“linguagem diferente”, aquela das “imagens, de fantasias,
símbolos, mitos, lendas”, atravessada de associações, aberta
ao fantástico, ao sonho, e “alimentada por essa maravilhosa
aglomeração de imagens, de memórias, de mitos, acumulados
sem que sequer tenhamos tido consciência em nosso período
de vigília”. A evidência adquire a forma de um estado afetivo,
de um sentimento interior e espontâneo, involuntário e fugaz,
cuja validade não requer nem a aprovação dos outros (como
no mundo da opinião) nem, como no mundo industrial, a
construção de uma rotina estabilizadora das relações entre
objetos.
A tentação do retorno O recuo em relação ao sonho conduz à queda. Os seres
ao chão (degradação)
no estado de pequeno são definidos por referência ao mun-
Congelado, Hábito,
Sinais exteriores, do da opinião, na medida em que buscam a consideração
Reprodutor.
e atrelam uma “importância” à “posição social” e a “sinais
exteriores de sucesso”. Além disso, eles são qualificados por
propriedades que expressem tanto a determinação quanto a
reprodução do idêntico (em oposição ao original) e também
pela fixidez e estabilidade daquilo que, sem ímpeto, não pode

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A apresentação dos mundos 281

crescer, ou do que, contido, é refreado: eles permanecem


congelados na repetição da rotina (industrial) ou do hábito
(doméstico), sem poderem disso escapar, e ficam imobilizados
na reprodução do já conhecido. Os conhecimentos adquiridos
pela educação, pela rotina escolar ou pelos hábitos familia-
res são, assim, um obstáculo àquilo que leva à grandeza, ao
maravilhamento ou ao entusiasmo. A cité é desfeita uma vez
que a tentação de retorno ao solo se impõe sobre a possibi-
lidade de alçar voo.

O mundo doméstico

O mundo doméstico não é lançado à ação apenas no


círculo das relações familiares, sobretudo na concepção res-
trita e desatrelada de qualquer referência à ordem política
hoje admitida em nossas sociedades. Ele se manifesta cada
vez que a busca daquilo que é justo se concentra nas relações
pessoais entre os envolvidos. A grandeza que, nesse mundo,
é uma função da posição ocupada nas cadeias de dependên-
cia pessoal, não pode ser compreendida senão no sentido
relacional traduzido em de maior grandeza que... ou em de
menor grandeza que...* Pela mesma razão, o exercício da
grandeza está submetido aqui a imperativos de lugar e tempo
relacionados à necessidade de, a fim de demonstrar sua im-
portância, apresentar-se pessoalmente na presença de outros.
Daí a relevância conferida a tudo relacionado ao fausto do
corpo, ao vestuário, à apresentação. Os dispositivos de natu-

* Como dito – e explicado mais detalhadamente – em “Sobre a tra-


dução”, embora tenha mantido na maior parte das vezes a forma
grande x pequeno do original, aqui mais uma vez recorri ao formato
que diferencia o “tamanho” das grandezas e não dos atores. No caso
específico dessa frase, referente ao mundo doméstico, uma tradução
mais direta seria maior que... ou menor que..., explicitadora do traço
relacional descrito, mas preferi, ainda assim, manter o formato al-
ternativo para mais uma vez sublinhar o caráter situado dos estados
(como é o objetivo do modelo) e que em português por vezes fica
menos evidente com a contraposição direta das categorias simples de
taille. (N. do T.)

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282 Os mundos comuns

reza doméstica são fracamente aparelhados por instrumentos


de ação a distância, especialmente desenvolvidos, por outro
lado, no mundo cívico, que enfatiza a objetividade das regras
dissociadas das pessoas e os mecanismos de representação. Os
objetos não são apreendidos nessa natureza em sua grandeza
própria, como é o caso no mundo industrial, mas essencial-
mente porque contribuem para o estabelecimento de relações
hierárquicas entre os humanos (como visto, por exemplo,
com os objetos que servem às ocasiões sociais) e, também,
indissociavelmente, porque permitem a inscrição da grandeza
das pessoas e, assim, facilitam sua identificação nas intera-
ções. No mundo doméstico, no qual os seres são qualificados
segundo suas grandezas de forma imediata, de modo que sua
manifestação necessariamente comporta a determinação de
sua posição hierárquica, a inscrição de sinais de grandeza,
sob a forma de títulos, brasões, vestimentas, marcas corpo-
rais, etc., é buscada para limitar a incerteza das situações de
encontros pessoais e reduzir os custos de identificação. Mas
a importância atribuída a esse processo de marcação tende a
associar as grandezas às pessoas, como se observa de maneira
exemplar no caso de títulos irremovíveis e especialmente nos
títulos hereditários, o que tem o efeito de tornar a crítica
impotente, uma vez que ela não pode conduzir, em muitos
casos, ao objetivo buscado, isto é, ao reinício do processo de
comprovação. As comprovações, portanto, assumem muitas
vezes uma forma de natureza alterada das testagens de confir-
mação, como pode ser visto claramente na expressão arcaica
do mundo doméstico que é o conto de fadas, saturado de
narrativas nas quais um grande, escondido sob o ouropel de
pequeno, é submetido a uma comprovação que revela sua
grandeza inerente (por exemplo, no citado conto A princesa
e a ervilha, de Hans Christian Andersen).
O engendramento segundo É pela referência à geração, à tradição e à hierarquia
a tradição (plano superior
que se pode estabelecer uma ordem entre os seres de natu-
comum)
Geração, reza doméstica. Esses três termos estão, eles próprios, em
Hierarquia, Tradição.
equivalência porque a relação de dependência pessoal que
os associa ao superior, sempre feito à imagem do pai – cujo

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A apresentação dos mundos 283

estado de grandeza é o mais alto por ser a encarnação da


tradição –, pode ser concebida indiferentemente: como aquele
dotado de grandeza maior está na origem, pode-se ler esse
estado tanto como uma cadeia de gerações quanto como uma
cadeia de comando.
No mundo doméstico, os seres no estado superior con-
sumam a superioridade em seus três componentes: inseridos A superioridade
hierárquica (estado de
em uma hierarquia, eles são grandes por conta da relação
grande)
que os liga aos de ainda maior grandeza, pelos quais são Benevolente, Bem­
‑educado, Ponderado,
apreciados, considerados, e a cuja pessoa são associados.
Distinto, Discreto,
É nisso que eles são distinguidos. Mas essa qualidade não Reservado, Confiança
supõe, aqui, como no mundo da opinião, a competição de (digno de), Franco,
Fiel.
todos com todos em um mercado da estima, e sim um julga-
mento exclusivo de um superior ou de um chefe e a escolha
eletiva que faz alguém se destacar do restante da categoria.
Esses seres são grandes igualmente porque estão fincados na
tradição, isto é, são direitos (diferentemente, por exemplo, de
lícitos no mundo cívico ou exatos nos dispositivos de natu-
reza industrial). Eles existem na continuidade (propriedade
dos pequenos no mundo inspirado) e contam com todas as
qualidades que manifestam a permanência, como a firmeza, a
fidelidade, a pontualidade – “A pontualidade é a cortesia dos
reis”. Essas virtudes se manifestam em condutas diferentes
conforme a ênfase seja depositada, por um lado, na relação
com os íntimos ou com os estranhos e, por outro, na relação com
superiores ou inferiores. Atencioso com os íntimos (por exemplo,
o cônjuge), ao qual deve atenção, solicitude e correção, o
grande é afável com os visitantes: “São geralmente os visitan-
tes que fazem a reputação das casas, de modo que sempre se
ganha por ser bem afável para com eles – independentemente
da sua importância”. Diante dos superiores, os seres dignos
de estima são deferentes, o que “não implica, apesar disso,
a atitude servil, o oportunismo ou a bajulação”. Eles são
francos, apresentam “seus pontos de vista [...] com franque-
za”, mas “sem fazerem oposições sistemáticas”, e mantêm
com seu superior relações de confiança. Essa atitude “tenderá
a criar um clima de entendimento” fundado na discrição e

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284 Os mundos comuns

na reserva, “as melhores maneiras de se parecer bem-educa-


do”. No entanto, eles “evitam a familiaridade com o superior
hierárquico, mesmo que o conheçam pessoalmente, sobretudo
diante de terceiros, e uma igual reserva se impõe se o supe-
rior pertencer à parentela”. Inspiradores de confiança nos
outros, os superiores são informados e prudentes. No mundo
doméstico, no qual a grandeza supõe a fidelidade pessoal a
um grande e o pertencimento ao universo fechado da casa,
os objetos contam com um caráter tão mais confidencial (por
exemplo, uma carta) quão mais proximamente afetem os
grandes, e a discrição consiste em “se recusar a dar ouvidos
a fofocas e, especialmente, em não as transmitir”. Em relação
aos de menor grandeza, pelos quais é responsável, o superior
tem o dever de compartilhar com eles, conforme sua posição,
aquilo que estabelecer sua grandeza. Se ele for benevolente e
prestativo com todos, “todos lhe serão gratos”. A verdadeira
grandeza pressupõe, com efeito, a simplicidade (agir “com
toda a simplicidade”), a delicadeza (de sentimentos) e o ser
atencioso:

Não há nada mais odioso que aquele que, ao ascender


socialmente, se comporta de forma desagradável com seus
subordinados, com o pretexto de ser o chefe. É nisso que
a educação encontra todo o seu valor. [...] Assim, é absolu-
tamente contraproducente ser distante, áspero, humilhante.
Muito pelo contrário. Ainda que por vezes a gentileza possa
passar por fraqueza, ela sempre acaba por ser reconhecida
como uma forma de educação e é, em consequência disso,
muito mais apreciada.

No entanto, “a delicadeza não exclui a firmeza”. A edu-


cação, que produz um “homem bem-educado”, no qual a
reserva se une à desenvoltura, é, por fim, precisamente o
que combina o estado de grande com a geração, relação
estabelecida aqui (como é frequentemente o caso quando
um enunciado expõe aquilo que figura no coração da ordem
natural) na forma do que designaremos mais adiante pelo
termo profanação: “Aqueles que detêm ou acreditam deter

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A apresentação dos mundos 285

os segredos da boa educação afirmam serem necessárias três


gerações, pelo menos, para se chegar a formar um homem
bem-educado”.
Os grandes agem naturalmente porque são movidos A desenvoltura do
­hábito (dignidade)
pelos hábitos. Esse dispositivo, atrelado ao corpo, assegura Bom senso, Inclinação,
a estabilidade das condutas sem exigir a obediência a uma Natural, Caráter.

instrução, como querem as rotinas de natureza industrial. As-


sim, é “necessário” dar a uma “criança” uma boa inclinação
desde a primeira infância: os hábitos adotados precocemente
não são jamais um constrangimento e rapidamente se tornam
um comportamento natural. “Apenas o hábito confere desen-
voltura” porque torna as conveniências algo natural – “Uma
cortesia natural”. Essas disposições são também naturais
quando, com base no bom senso – “Princípios fundados no
bom senso” – ou em predisposição – “Obter imediatamente
uma predisposição favorável” –, se encontram naturalmente
em harmonia com a maneira como o mundo se coloca em
ação. O termo natural – “Expulsa a natureza com um for-
cado; ainda assim ela voltará” – designa também, em última
instância, o caráter que se revela nos modos de se comportar
em relação ao outro e se “reflete” na apresentação pessoal
e na postura. Nesse mundo, a postura é inerente às pessoas
porque ela manifesta o caráter, que é o hábito tornado pes-
soa – “A postura pessoal reflete o indivíduo”.
Em um mundo doméstico, os seres são imediatamente Os superiores e os
inferiores (sujeitos)
qualificados por sua relação com seus pares. Essa relação Seres de maior
corresponde a uma ordem uma vez que os seres pertencem à ­grandeza: Pai,
Rei, Ascendentes,
mesma casa. O termo pelo qual eles são designados expressa Pais, Família,
nesse caso sua importância e os define como grandes ou pe- Grande pessoa,
Chefe, Patrão.
quenos, no sentido, neste mundo, de maior grandeza que... ou Seres de pequena
de menor grandeza que... Com isso, faz-se referência aos seres grandeza: Eu mesmo,
Solteiro, Estranho,
que os abarcam ou que eles próprios abarcam, isto é, àqueles
Mulher, Criança, Cão
dos quais provém sua origem ou àqueles que eles próprios e Gato.
Outros: Visitante,
tenham originado. Uma vez que o princípio de subordinação
Seu círculo, Vizinhos,
seja o engendramento e a relação com a origem seja estabe- Terceiro (um).
lecida pela reprodução, os seres de maior grandeza precedem
e os de menor grandeza sucedem na cadeia das gerações:

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286 Os mundos comuns

são, assim, de maior grandeza [em uma morada tradicional,


patriarcal] os ancestrais, os ascendentes, o avô e a avó, o pa-
drasto e a madrasta, tios e tias e os pais; e de menor grandeza
as crianças ou as moças. Mas o princípio do engendramento
não se limita à procriação e, em uma mesma casa, os seres
de grandeza grande são a causa primária dos de pequena,
independentemente dos laços de sangue: assim, o marido (de
grandeza maior) faz, pelo casamento, sua esposa (de grandeza
menor); o (senhor) ou a dona da casa abarcam, e são, os seres
que ela comporta: solteiros, crianças, empregados domésticos
(designados aqui pela expressão pessoal da casa, em compro-
misso com o mundo industrial), animais domésticos – “cães
e gatos malcomportados”. Nesse mundo, então, no qual os
seres podem ser qualificados em uma extensa gama de dife-
rentes estados de grandeza, os de-menor-grandeza-que estão
sempre presentes e designados como tal porque constituem
o material mesmo com o qual se confecciona a magnitude
dos de-maior-grandeza-que que os abarcam. Logo, as pessoas
que, por menor que seja sua grandeza, obtenham dignidade
na subordinação, estarão realmente desafortunadas apenas
quando se virem dissociadas das unidades que as abarcam,
seja pelo afastamento (estrangeiro, estranho) seja ainda por
seu egoísmo: “Como regra geral, deve-se sempre buscar
substituir os ruidosos apartes e os imperativos ‘eu isso, eu
aquilo’ por conversas de interesse geral dirigidas pelo pai,
sendo as refeições, na verdade, os únicos momentos em que
a família se encontra reunida”. Princípio de coesão familiar
que estabelece o vínculo com as origens, o pai é, como o pa-
trão, ou, anteriormente, o rei, aquele capaz de elevar os seres
pela dependência em que os mantém e que, portanto, os faz
alcançar toda a grandeza que eles podem esperar segundo
o grau que alcancem. E uma vez que os seres são sempre
definidos por uma relação de subordinação e que todas as
relações desse tipo são equivalentes à relação das crianças
com o pai, as grandes pessoas, as pessoas mais velhas e as
pessoas importantes são homólogas. Da mesma forma, os se-
res pequenos se equivalem, sem que haja uma particularidade
infantil própria destinada a distinguir as crianças pequenas de

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A apresentação dos mundos 287

outros seres subordinados (solteiros, trabalhadores domésti-


cos, etc.) pelos quais os de maior grandeza são responsáveis.
Finalmente, quando os seres não são diretamente qualificados
pelo pertencimento a uma unidade hierarquizada (casa, corpo
profissional, etc.), a relação que os define não especifica sua
grandeza, que depende daquela da pessoa com a qual eles
estão relacionados; assim, um amigo, um confidente, um
conhecido, um par, o círculo, alguém íntimo, um convidado,
um relacionamento de amizade, etc. podem ser grandes ou
pequenos, dependendo da grandeza da outra parte, e, à fre-
quentação dos de maior grandeza, que elevam, opõem-se as
más frequentações, que rebaixam.
Sustentar e tornar manifesta a relação hierárquica entre As regras de etiqueta
(objetos)
as pessoas constitui, no mundo doméstico, a principal de-
Boas maneiras,
terminação dos objetos. Assim, os “presentinhos alimentam Polidez, Categoria,
a amizade” e estabelecem relações porque demandam um Título, Residência,
Apresentação,
retorno: “Deve-se agradecer por tudo que seja enviado: flores, Assinatura, Mensagem
presentes, doces, livros, etc.” – “princípio sacrossanto: toda de nascimento,
Presentes, Flores.
mensagem exige uma resposta”. As “mensagens de feliz ano
novo” criam “uma relação de familiaridade e hábitos de
cortesia que são a marca da criança bem-educada”. E não é
diferente nos grandes momentos, como as felicitações, as con-
dolências e os votos ou ainda o dispositivo de recomendação,
que é a oportunidade de trocar marcas de confiança entre
pessoas: “Quando se confia uma carta a uma pessoa para a
entregar, de nossa parte a outra (carta de apresentação ou
de recomendação, etc.), deve-se apresentá-la sem lacre. Isso
prova que se tem confiança no mensageiro. Mas a correção
exige que este último a lacre, ele mesmo, diante do reme-
tente”. E, do mesmo modo, as “regras de etiqueta”, como
as regras de polidez e as boas maneiras, que, neste mundo,
aparelham a grandeza, relacionam e separam, ao abrirem e
fecharem portas: “As boas maneiras, caras a nossos ante-
passados, já abriram muitas portas”. Por outro lado, “uma
falha com as regras de polidez pode fechar portas, e a menor
falta de jeito pode ter consequências no nível da situação”
(termo que aqui designa um estado profissional, na medida,
especificamente, em que ele dependa da posição ocupada nas

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288 Os mundos comuns

cadeias de dependência pessoal e dos favores dos superiores).


Os objetos que circulam, de flores ou presentes até a “menor
das cortesias para com os outros”, indicam, por sua direção,
a grandeza relativa das pessoas entre as quais isso tudo é
trocado. Assim, nas apresentações, “é sempre à pessoa a quem
devemos mais respeito que apresentamos a outra”, do mesmo
modo que, “na prática, diz-se primeiramente o nome da pes-
soa menos importante”. Igualmente, as fórmulas de civilidade
variam segundo sejam dirigidas “a subordinados”; “a prati-
camente todos com quem não se tenha nenhuma obrigação
especial”; “a relações ocasionais entre pessoas do mesmo
nível; a relações frequentes entre pessoas do mesmo nível;
a relações entre pessoas do mesmo nível com um tom de
respeito; a um superior hierárquico; a um cliente; a uma
pessoa mais velha; a uma pessoa importante; a uma senhora;
a relações de amizade ou íntimas”, isto é, variam em função
da posição respectiva das pessoas em copresença conforme a
hierarquia, o sexo, a idade ou o nível de intimidade. O aperto
de mão é também um instrumento da grandeza, uma ferra-
menta feita com o corpo e que, segundo a ordem dos gestos,
pode tornar a grandeza maior ou menor: “É prerrogativa
dele (o chefe) – e não sua – estender a mão primeiro”. Os
objetos e dispositivos são, dessa maneira, aquilo por meio do
que os seres se reconhecem (por oposição a se ignorarem),
ou seja, reconhecem suas grandezas, aquilo por meio do que
eles reconhecem e colocam em ação a grandeza relativa das
pessoas envolvidas e também por meio do que eles se fazem
reconhecidos. A disposição de níveis e categorias (“ascender
socialmente”, “mudar de categoria”) permite a cada um se
encontrar nas hierarquias e distribuir deferência e respeito
de modo a “estar correto em todas as circunstâncias”: “Em
princípio, se há uma hierarquia, há níveis e, normalmente, o
chefe tem razões de ser superior; [...] por conseguinte, certa
deferência lhe é devida”. Os dispositivos indicam as identi-
dades das pessoas e as anunciam: “É preferível chegar adian-
tado e se anunciar”. O cartão de visita – “em papel Bristol
branco de formato e estilo clássicos”; o cabeçalho, no qual
“se coloca o título”; a assinatura, que rompe o anonimato,

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A apresentação dos mundos 289

propriedade dos seres sem ligações e desafortunados – “A mui


desagradável faceta anônima das assinaturas ilegíveis”; a
carta manuscrita, que identifica, pois traz a marca de uma
grafia singular (em oposição à marca da digitação, de nature-
za industrial, o que não é adequado a “uma correspondência
pessoal”); os cartões de nascimento, pelo quais “se anuncia a
chegada de um filho”: todos são “maneiras de se apresentar
[...] que evitam ao interlocutor perguntar quem você é”. Essa
pergunta é desagradável, pois contém a censura a ter se per-
mitido ignorar o que deveria ser conhecido. Esses dispositivos
identificadores revelam a pessoa, ao relacioná-la a uma casa,
uma família, um meio social ou classe, uma sociedade (no
sentido de alta sociedade). Com efeito, “a apresentação de
pessoas reflete o temperamento e o caráter do indivíduo”
da mesma maneira como a “habitação” (no sentido literal de
morada como materialização em um equipamento da grandeza
da unidade doméstica e da família) “é um reflexo de seus
ocupantes”.
Os de maior grandeza têm, nesse mundo comum, deve- A rejeição do egoísmo
(investimento)
res (“ainda mais que direitos”) em relação a seu círculo e,
Prestimosidade, Dever
em particular, em relação àqueles que abarcam e pelos quais (e dívida), Harmonia.
são, consequentemente, responsáveis. Esses deveres exigem
“a rejeição de todo egoísmo”: “Aquilo que cria mal-estar
na vida em sociedade é enxergá-la apenas em função de si
mesmo, e não dos outros”. Eles se manifestam, por exemplo,
na “gentileza e na prestimosidade”, que “facilitam as relações
humanas”; na consideração para com os outros, que “torna a
vida social mais agradável”; ou ainda na conduta prestativa
e despida de mesquinhez daquele que não abusa dos fracos.
O cumprimento desses deveres é o que proporciona a aprova-
ção da “vida em comum”, o que “torna a vida agradável”, o
que permite às relações individuais serem harmoniosas.
Com efeito, no mundo doméstico, os de maior grandeza Respeito e
responsabilidade (relação
abarcam os de menor como se os tivessem criado. Aqueles
de grandeza)
são anteriores a estes na ordem das gerações e, indissociavel- Autoridade,
mente, nas hierarquias. Essa primazia é fonte de autoridade. Subordinação,
Respeitabilidade,
Assim, “a geração intermediária tem um papel particularmen- Honra,  Vergonha.
te ingrato, pois tem que dar provas tanto de sua autoridade

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290 Os mundos comuns

diante das crianças quanto de atenção e respeito para com


os avós daquelas”. Os de maior grandeza são “o ser” dos
de menor: os superiores hierárquicos estabelecem a grandeza
dos inferiores e definem sua identidade. Os chefes determi-
nam, assim, a honra dos subordinados. Reciprocamente, os
pequenos, que tomam parte – por conta da dependência
pessoal – na grandeza daqueles a que estão subordinados,
funcionam como uma parcela dos grandes, que os abarcam
e que por eles assumem responsabilidade. Os pequenos não
estão dissociados dos de maior grandeza e são como a carne
de sua carne. E esse modo de abarcamento dos seres é ex-
pressado no orgulho, no respeito, na vergonha. Os de menor
grandeza são orgulhosos dos de maior, que os realizam, e
os subordinados têm devido respeito aos superiores, que os
consideram: “Um subordinado é sempre muito sensível à
consideração e à confiança nele depositadas. Ele fará de tudo
para as justificar, e esse clima de confiança torna as relações
mais agradáveis”. Da mesma forma, os de maior grandeza
são orgulhosos dos de menor, que atuam como parte deles:
“Jamais [se deve] deixar uma criança sair de casa sem se
certificar por uma rápida inspeção de que tudo esteja bem e
de que dela possamos nos orgulhar”. Cada um compreende
o outro conforme a respeitabilidade a ele conferida pelo
grau de subordinação em que se encontra. Assim, nunca se
deve, por exemplo, “passar por cima de um subordinado,
dando uma instrução ao pessoal sob suas ordens”. Por outro
lado, aqueles realmente respeitáveis sabem se fazer respeitar.
Ademais, os pais ultrajados são, eles próprios, falhos: “Eles
criaram seus filhos mal, pois não souberam se fazer respei-
tar”. Com efeito, os inferiores têm a capacidade de diminuir
seus superiores, que comprometem com seus atos. Eles podem
fazê-lo rebaixando sua honra, o que supõe um compromisso
com o mundo da opinião: “O que dizer [em uma sociedade
tradicional] da esposa que, por sua falta, compromete a honra
ou a reputação de seu marido?”. Mas podem fazê-lo também
dilapidando sua herança (o que envolve uma grandeza mer-
cantil), como “o filho [...] que dilapida alegremente os frutos

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A apresentação dos mundos 291

do trabalho devidos ao pai”. E é a capacidade de induzir o


respeito que produz a verdadeira superioridade:

Há apenas uma superioridade. Não é aquela conferida pelas


boas maneiras e sua aplicação a fins utilitários e arrivistas
ou simplesmente convencionais, mas a superioridade do
“cavalheiro” que confere sentido à vida, na rejeição de todo
egoísmo e no respeito pelos outros. Não se trata, portanto, de
se parecer “como se deve”, mas de ser o homem de valor que
agrega a essas qualidades profundas algo que o ajuda a viver
melhor e a melhor se comunicar com aqueles que o rodeiam.

Assim, “a verdadeira superioridade se impõe por si pró-


pria. Além disso, ela será real enquanto não for questionada
por ninguém”.
O acesso à superioridade passa pela boa educação. Em As relações entre as
pessoas
um mundo doméstico, no qual os seres devem assegurar a
bem-educadas (relações)
permanência e a continuidade de uma tradição, as relações di- Reproduzir, Dar à  luz,
zem respeito primeiramente à educação. Com efeito, “julga‑se Educar, Convidar,
Oferecer, Receber,
sua educação pela de seus filhos”. É por meio da educação Visitar,
que se transmite o que é natural. Para se manter e se com- Recomendar,
Agradecer,  Respeitar.
portar corretamente com naturalidade, deve-se ter sido bem­
‑educado: “Expulsa a natureza com um forcado; ainda assim
ela voltará* [...] pois todos os esforços são feitos para que
a naturalidade seja o resultado de uma boa educação”. Um
mundo bem-ordenado é, antes de tudo, um mundo no qual
as crianças foram bem-criadas e instruídas nas boas maneiras.
É dever dos pais inculcar-lhes a polidez, a etiqueta, de forma
contínua, duradoura e profunda, de modo que elas se tor-

* No original, os autores usam “Chassez le naturel, il revient au galop”


(literalmente, “Cassai a natureza e ela responderá a galope”), versão
do dramaturgo francês Philippe Detouche (em sua peça Le Glorieux,
de 1732) para o verso do poeta latino Horácio, “Naturam expelles
furca, tamen usque recurrent”, cuja tradução literal preferi usar aqui.
Há ainda um provérbio, pouco usado, em português, que segue o
mesmo sentido de ambas as frases: “Ele tentou saltar a onda, mas a
onda o afogou”. Todas as frases significam não ser possível ocultar
ou conter para sempre aquilo que é natural, que acabará por aflorar.
(N. do T.)

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292 Os mundos comuns

nem, por sua vez, pessoas bem-educadas. “Ser bem-educado


é saber se portar corretamente em todas as circunstâncias.
Ser bem­‑educado é saber se comportar naturalmente, tran-
quilamente, sem chocar, irritar ou constranger os outros. Na
verdade, a boa postura, a boa condução de si, é antes de
tudo um hábito”. E essa educação do hábito, essa “segunda
natureza” que conduz à facilidade natural da desenvoltura
(em oposição à intencionalidade e à desajeitada artificiali-
dade do esforço), é formada pela imitação e pelo exemplo:
“O clima do qual as crianças serão impregnadas desde sua
mais tenra idade [...] terá uma influência decisiva”, porque
“o infante gosta de imitar”. “Brincar de gente grande” é um
de seus “passatempos favoritos”. “Ele reproduzirá, então, es-
crupulosamente tudo o que vir ou ouvir em torno de si”. Em
um mundo doméstico, a criança, sem particularidades, não é
senão uma gente grande em miniatura que – com toda hie-
rarquia reconduzindo ao pai, ou outro homólogo de grandeza
grande – não está claramente destacada de outros seres de
pequena grandeza também habitantes da área comum da casa
(solteiros, cães e gatos, trabalhadores domésticos, etc.) e, mais
geralmente, não difere claramente dos inferiores, cujo estado
de subordinação em que se encontram sempre lhes atribui algo
de infantil. A educação é, assim, “antes de tudo assunto de
família”, pois é nela que se imprime a inclinação da pessoa,
resultado de uma permanente e contínua pressão produto-
ra do caráter. Nesse mundo, as relações entre os seres são
relações pessoais. Recebe-se e se é recebido. Elas só podem
ser postas em ação em contiguidade ou na presença de um
outro, e cada um é reconhecido em pessoa. Desse modo, por
exemplo, a palavra, que no mundo da opinião ou no mundo
cívico é tomada diante de um público ou de uma assembleia,
aqui pode ser endereçada apenas a um ser identificado, que
seja conhecido ou ao qual se tenha sido apresentado: “Em
primeiríssimo lugar, um princípio básico: não se fala com
pessoas que não se conhece”. Pois é no contato individual
que se forma a opinião – no sentido de “ter uma boa opi-
nião sobre alguém”, que se distingue aqui, por seu caráter
pessoal, da opinião no sentido do renome ou da opinião

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A apresentação dos mundos 293

pública no sentido cívico. É ainda na frequentação que se


faz o julgamento sobre uma pessoa, cuja apresentação passa
uma boa ou uma má impressão a respeito da possibilidade
de ela saber ou não se mostrar própria para uma “relação
agradável”. A arte de compor um mundo harmonioso é,
aqui, por consequência, em primeiro lugar a arte de colocar
as pessoas em presença, de as reunir, como nesses grandes
momentos que são as refeições, e as distribuir harmonica-
mente de acordo com seu estado de grandeza, ou seja, trata-se
da arte de saber quem admitir e quem excluir: “Ou bem se
respeitam as regras e se é admitido ou bem se trapaceia e se é
excluído”. Composto por cadeias de dependências pessoais
(casas, meios e classes sociais, etc.), esse mundo é ordenado
pela oposição entre o interior e o exterior, entre os quais
as passagens são administradas ou fechadas: em relação ao
interior, se acolhe, se chama à colaboração e, em “respeito
às leis da hospitalidade”, se convida. Em relação aos outros,
se fazem confidências – algo “sempre inconveniente” –, se
empresta, se devolve – “Um empréstimo vale uma devolu-
ção” –, se fazem recomendações, se dão presentes que criam
obrigações. “Oferecer um presente caro é algo delicado. Ou,
melhor, constrange o destinatário se este souber que os meios
do presenteador são modestos, ou ainda impõe o risco de se
criar para ele uma obrigação ou o comprometer”. Da mes-
ma forma, distribuem-se agradecimentos, fazem-se convites,
respeita-se: “É preciso respeitar aqueles com que se vive” e
ter consideração em relação a eles. E se deve também passar
pelas pessoas para se reconstituírem as cadeias hierárquicas
ou se fazerem visitas para consumar de forma correta uma
sucessão: “No contexto do trabalho, é comum que o prede-
cessor apresente, ele próprio, seu sucessor. Essa aproximação
é, ao mesmo tempo, uma visita de despedida”.
Dada a importância primordial conferida à hierarquia, a A alma da casa (figuras)
Casa, Família,
harmonia natural do mundo – expressada pelas regras de ci- Meio social, Princípios,
vilidade, os costumes, os princípios – manifesta-se particular- Costumes, Regras de
civilidade.
mente nas configurações que apresentam uma série ordenada
de seres na diversidade de seus estados de grandeza. Esse é
o caso da sucessão de gerações – “Os filhos são um reflexo

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294 Os mundos comuns

de seus pais” –, da sociedade, no sentido em que se fala da


vida em sociedade – por exemplo, “o reconhecimento dessa
pequena sociedade que é o mundo do trabalho” – ou de um
meio social ou classe – “Ser admitido em um determinado meio
social”. Mas são os dispositivos associados à família e ordena-
dos sob a fórmula da casa que melhor se prestam à manifes-
tação da harmonia. E a vida profissional também não pode
ser separada da vida familiar: “Há uma interdependência tão
grande entre a vida profissional e a vida familiar que os pro-
blemas decorrentes da profissão têm sua repercussão na sala
de estar e vice-versa”. A empresa é comparável a uma casa
(“casa de comércio”), que conta com um “espírito”, assim
como a casa tem, ela própria, uma “alma”: “Não se esqueça
de que é praticamente do chefe que depende o espírito de
um negócio ou um serviço, e, portanto, será ele que tornará
agradável ou não trabalhar sob suas ordens”. Por outro lado,
a desagregação da família, corrompida pela introdução, em
seu seio, de formas (“associações”) próprias do mundo cívi-
co – “Estas associações de estranhos de uma mesma família
que nos preparam” –, é, no espaço doméstico, a epítome da
decadência. “Se for tentado a falar mal dela [sua empresa],
pense neste provérbio chinês: ‘Se não cantardes louvores a
sua casa, ela vos cairá sobre a cabeça’”.
A cerimônia É também na família que tem lugar a maioria das
de família (comprovação)
Efeméride, Nascimento,
situações modelo de comprovação, que são aqui sobretudo
Falecimento, Casamento, situações mundanas, como as recepções, “por ocasião de
Mundanismo,
Conversação,
efemérides, aniversários, batizados, comunhões, Natal, Ano
Distinção, Novo” ou “por ocasião de casamento, nascimento, distinção,
Nomeação.
nomeação”. Essas celebrações podem ser marcadas por uma
nova distribuição dos estados de grandeza, frequentemente
modificada por um evento de alguma maneira relacionado à
geração, à aliança ou à morte: falecimentos, nascimentos ou
casamentos. Indissociavelmente, esses eventos são uma opor-
tunidade de reunir, por meio da conversação, os pequenos
e os grandes, cujas relações de grandeza podem, assim, ser
confirmadas: “Em uma conversa com várias pessoas, jamais

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A apresentação dos mundos 295

se direcione apenas a uma delas. Isso faria parecer que se


pretende ignorar os outros”.
O princípio superior comum é explicitado nas manifes- Saber outorgar sua
confiança (julgamento)
tações de um superior que, face a face e em pessoa, outorga Apreciar, Felicitar,
sua confiança, aprecia, considera, felicita, julga, marca com Admoestações,
Reportar.
desprezo, faz admoestações, observações ou, como se diz,
passa um sabão. Em uma ordem hierárquica, o julgamento
pertence ao de maior grandeza, a quem não se deve, por-
tanto, deixar ignorar nada, para que ele possa arbitrar com
conhecimento de causa: “Não permita a ele [o chefe] ignorar
os problemas dos quais é normal que esteja informado. [...]
Solicite a ele uma reunião, respeitando as normas (regramen-
tos internos, ordem hierárquica)”.
As formas de evidência que sustentam o julgamento A narrativa exemplar
(evidência)
enfatizam o exemplo, o caso e, em particular, a narrativa, na Exemplo (dar um),
qual as condutas de pessoas em apreciação são destacadas e Prejulgado (o).

valorizadas. É na mobilização da singularidade que a ordem


do mundo pode ser apreendida em toda a generalidade.
Nesse mundo, as formas por meio das quais a natureza é
inventariada são os acúmulos de relatos, histórias curiosas
e instrutivas, apólogos, ou ainda, por exemplo, coleções de
objetos pessoais e relíquias, dignos de serem preservados, por
terem sido utilizados por alguém de grandeza maior. Assim,
as formas do geral são, aqui, idênticas às formas do particular
no mundo industrial ou no cívico.
A instabilidade e a precariedade caracterizam os seres O desleixo do sem
compostura (decadência)
mais desafortunados. No estado de pequena grandeza, os Rude, Gafes,
seres não se mantêm no lugar. Seu caráter os incita a agir Apartes,  Gritador,
Mexeriqueiro,
com ostentação, chamando a atenção, a falar alto, quer dizer, Histórias (a), Indiscreto,
mais alto que permitiria sua grandeza, para se fazer notar, a Atrapalhado, Vulgar,
Invejoso, Lisonjeiro,
apresentar-se sem compostura, de forma rude, familiar, exces- Traidor.
siva: “As jovens e adultas devem evitar a maquiagem excessiva,
as joias chamativas, as cores berrantes”. Sem viverem de acordo
com sua posição, os de pequena grandeza não encontram
seu lugar. Eles não têm ligações. Em consequência disso, o
menor incidente pode distraí-los. Têm “o hábito detestável”

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296 Os mundos comuns

de contradizer e responder e criam caso sem cessar: o chefe


“será sempre grato a quem facilitar sua tarefa e não a com-
plicar com reivindicações intempestivas, conflitos com seus
colegas ou subordinados ou criação de caso por qualquer
coisa”. Ignorando quem são (quem você pensa que é?), os
seres desafortunados do mundo doméstico não podem se
entregar ao que fazem e, sempre propensos a se distrair, à
maneira das crianças, das quais em nada aqui eles se dis-
tinguem, perturbam a ordem das situações por que passam:
atrapalhados, eles “deixam correr solto”. São desleixados,
desordenados, desajeitados e falastrões. Praticam grosserias,
gafes, fazem comentários de pé de ouvido, o que os indispõe
e os torna odiosos aos olhos dos de maior grandeza. E a
mesma disposição de não ficar em seu lugar os leva à in-
veja, o que os conduz a se tornarem más línguas: “Quem,
então, sem relutância contrataria um falastrão inconsciente
ou uma má-língua?”. Em um mundo doméstico, a confiança
é imediatamente orientada no sentido da hierarquia: “Des-
confie das intimidades e das confidências. Pense que aqueles
a quem as faz podem, amanhã, ser seus subordinados ou
seus superiores. Você se arrependerá então amargamente de
as deixar correr solto”. A inclinação dos de pequena gran-
deza para a indiscrição e a maledicência – “as indiscrições
que favorecem a maledicência” – procede, como a inveja, da
relação que alimentam com aqueles dos quais suportam ser
dependentes e, consequentemente, com aquilo que qualifica o
estado de grandeza pelo qual eles próprios são atravessados:
os superiores permanecem, sem interrupção, presentes em
seus pensamentos e são fonte de perene ansiedade, pois estes
são, indissociavelmente, aquilo que rebaixa e o que eleva, o
próprio princípio de dignidade e indignidade. De fato, é por
meio dos de maior grandeza que as pessoas são diminuídas,
uma vez que, mais bem posicionados na cadeia que liga às
origens, eles se interpõem a elas, tornando supérfluos os se-
res que abarcam e dos quais representam a realização. Mas
eles são também, e pelas mesmas razões, a única fonte da
qual podem ser extraídas a dignidade e a grandeza, pois é
apenas por contato com eles que a participação naquilo que

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A apresentação dos mundos 297

estabelece a superioridade pode ser alcançada. Portanto, em


um mundo doméstico, a indiscrição, essa atração apaixonada
pelo que esteja escondido, está sempre orientada dos de me-
nor grandeza para os de maior. Ela procura, com uma aten-
ção infatigável, as pequenezes dos grandes (por exemplo, suas
más companhias e associações). Nesse fascínio, mesclam-se,
por um lado, a satisfação de pegar os de maior grandeza em
uma falha e, diminuindo-os, deles se aproximar, e, por outro,
a decepção de ver se afastar, no mesmo movimento, a ver-
dadeira grandeza, que, não mais residindo, autenticamente,
com aqueles que seriam seus legatários naturais, não é mais
acessível pela mediação da dependência. Mas as maledicên-
cias, transmitidas no falatório de pessoa para pessoa, de boca
em boca (as más línguas), diminuem apenas os de pequena
grandeza que a elas se prestam e que, por fazerem circular
as fofocas, aquilo a que se recusam os de grande, os traem:
“Se não estiver de acordo com seu superior e com que ele
mantenha sua posição, não o critique de fora [...]. Isso seria
trair sua confiança”. A traição é o cúmulo da baixeza, porque
desagrega e afasta: ela consegue colocar à parte e dissociar
aquele que, ao expor para o exterior sua independência, mina
a unidade da casa, tornando-a, portanto, vulnerável. Ela, ao
excluir essa pessoa, a reduz a nada.

O m u n d o da o p i n i ão

Diferentemente do mundo doméstico, o mundo da opi-


nião atribui pouco valor à memória. Nisso, ele se aproxima
do mundo mercantil. No entanto, não chega a sequer reco-
nhecer a forma de memória de comprovações passadas que,
na lógica de mercado, constitui a permanência do dinheiro
para além da situação de comprovação em que tenha sido
transferido. Assim, as celebridades podem ser esquecidas
da noite para o dia. É a essa particularidade que se refere
a famosa frase de Andy Warhol anunciando a chegada de
um mundo no qual “todos serão famosos por quinze minu-
tos”. Da mesma forma, encontram-se nesse mundo poucas
coisas propensas a consolidar e estabilizar a relação entre a

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298 Os mundos comuns

grandeza, que advém unicamente das opiniões dos outros, e


o portador da grandeza, que não necessita ser qualificado por
propriedades duravelmente inscritas em seu ser. É sem dúvida
precisamente o caráter não essencialista e puramente relacio-
nal da grandeza de renome que favoreceu sua adoção como
um critério de medida universal pelas correntes das ciências
sociais associadas para valorizar as propriedades estruturais
e relativistas do mundo social. Mas essa peculiaridade é ao
mesmo tempo o que torna essa grandeza frágil e facilmente
criticável. É digno de nota que ela tenha sido esboçada em
enunciados destinados a criticá-la antes de ser baseada em
uma forma positiva, e bem parece que ela seja, mesmo agora,
pouco municiada para resistir às muitas denúncias de que é
objeto.
A realidade da opinião No mundo da opinião, as pessoas podem atribuir um
(nível superior comum)
Outros (os), Público
ordenamento entre os seres e chegar ao acordo em uma or-
(grandeza grande). dem justa levando em conta apenas as opiniões dos outros.
É a opinião que estabelece a equivalência, e a grandeza de
cada um depende dessa opinião: as reações “da opinião pú-
blica condicionam, em grande medida, o sucesso”. As pessoas
são relevantes na medida em que compõem um público cuja
“opinião prevaleça”, “que forme opinião” e, por conta disso,
constitua a única “verdadeira” realidade: “Uma opinião não
é, ela também, uma realidade?”
A celebridade (estado de A celebridade produz a grandeza. Os seres do mundo da
grande)
Dotado de reputação,
opinião ocupam o estado de grande no que se distinguem, no
Reconhecido, que são visíveis, célebres, reconhecidos, dotados de reputação
Visível, Sucesso (ter),
Distinguir (-se),
(“desbanalizados”). Essa visibilidade depende de seu caráter
Persuasivo, Cativante. mais ou menos cativante, persuasivo, informativo. Notemos
que, neste mundo, os qualificativos da grandeza se aplicam
indistintamente a pessoas e a outros seres, mesmo que, como
em outros mundos, apenas as pessoas possam aceder ao
estado superior.
O desejo de ser Todas as pessoas são passíveis de atingir esse estado
reconhecido (dignidade)
Orgulho,
porque têm em comum serem movidas pelo orgulho. É esse
Consideração amor de si que produz sua dignidade de seres humanos. Elas
(desejo de).
têm um mesmo desejo de serem reconhecidas, a paixão de

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A apresentação dos mundos 299

serem consideradas. Assim, por exemplo, é “por razões de


orgulho” que “os funcionários [...] gostam de se dar conta
do papel que desempenham”. Da mesma forma, “questionado
por alguém de fora sobre sua empresa, [...] o empregado quer
poder explicar qual é o seu papel e, em qualquer lugar, ser
considerado, ter uma parcela da notoriedade da empresa onde
ele trabalha espraiando-se sobre ele”.
E como a grandeza se baseia puramente na opinião, As estrelas e seus
fãs (sujeitos)
outras qualidades, e especialmente a profissão, não são le- Personalidade (uma),
vadas em conta na colocação em equivalência que permite Formador de opinião,
Porta-voz, Mediador,
identificar personalidades ou estrelas. O cirurgião e o explo- Jornalista, Assessor de
rador podem se equivaler, uma vez que sejam observados imprensa.

relativamente ao renome: “Receba uma empresa a visita de


astronautas, de um cirurgião famoso por transplantes de co-
ração bem-sucedidos ou de um célebre explorador, e ela terá
certeza de ser capaz de atrair a atenção do público”. E os
dispositivos de grandeza podem ainda comportar pessoas que
não sejam nem personalidades nem seus fãs, mas que desem-
penhem a função de juízes, encarregados de atribuir valor à
grandeza do renome. É o caso, por exemplo, dos formadores
de opinião, que têm a deles “prevalecendo e que moldam as”
de jornalistas, que por sua vez julgam se a opinião pública
está ou não “receptiva”; e é o caso também dos assessores
de imprensa, dos promotores de eventos, dos porta-vozes ou
dos publicitários.
O acesso ao renome, possível virtualmente da noite para Nomes na
mídia (objetos)
o dia para qualquer um, por mais desprovido que seja, pode Marca, Mensagem,
igualmente ser fundamentado em um dispositivo formado por Emissor, Receptor,
Campanha, Relações
objetos. Para se fazer conhecido, recomenda-se ter um nome públicas, Imprensa,
ou, para os produtos, uma marca, registrada sobre um supor- Entrevista,
Comunicado, Suporte,
te, uma etiqueta, uma insígnia ou distintivo. A comunicação
Folheto, Mala direta,
ao maior número possível de pessoas da opinião de alguém Emblema, Audiovisual,
Ambiência, Decoração.
permite, por contágio, a extensão do renome, e é efetuada
em um dispositivo que comporta um “emissor, um receptor
e um meio intermediário [mídia], encarregado de veicular a
mensagem para um público-alvo”. Posicionada no mundo da
opinião (e não no mundo industrial ou mercantil), a empresa

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300 Os mundos comuns

pode, assim, ser definida como um transmissor dirigindo-se a


um receptor: “O emissor, que é a empresa, e o receptor, que
é o público”. Um dispositivo eficaz, uma boa campanha que
permita semear, implantar uma imagem, supõe, então, “um
suporte perfeitamente adaptado e capaz de melhor valorizar
uma determinada mensagem”. Entre as ferramentas a ser-
viço da grandeza de renome figuram o folheto, o folder, os
impressos, a publicação customizada, a publicação interna,
o livreto, o audiovisual, os convites, as cartas oficiais e as
mensagens, as malas diretas, a imprensa, os chamados press
releases ou comunicados de imprensa, as entrevistas. Assim,
é necessário “conseguir que os executivos [da empresa] sejam
entrevistados se forem conhecidos; o que torna então claro
que, por meio da declaração ou do posicionamento do sr. X,
personalidade famosa, é a empresa da qual ele é o presidente
que aparece”. E para aparelhar a grandeza do renome, co-
locam-se igualmente em ação objetos de compromisso com
os mundos industrial e cívico, como a pesquisa de opinião,
que fornece, por meio de um aparato industrial, a “medição
de um renome” ou da penetração de uma mensagem, isto
é, “a proporção expressada percentualmente da população
atingida por um suporte”. Mas, na lógica da opinião, essa
medida não é buscada apenas em si, mas também por sua
contribuição à própria divulgação da mensagem: “A mobili-
zação cada vez mais frequente de pesquisas de opinião con-
tribuiu para jogar luz sobre o seguinte fato: a publicação de
resultados destacando que a maioria das pessoas tem certa
opinião reforça a opinião dessas pessoas, a endossa de algu-
ma maneira e influencia as opiniões dos outros”. A publica-
ção regular dessas sondagens contribui, assim, para garantir
a transparência do estado de grandeza dos seres de renome
que não podem ocultar as flutuações de sua cota.
A renúncia ao A renúncia ao segredo é, de forma mais geral, nesse
segredo (investimento)
Revelar.
mundo, o preço a se pagar para se aceder ao estado de maior
grandeza. Para ser conhecido, é preciso aceitar revelar tudo
a seu público e dele nada esconder: “Há uma verdadeira

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A apresentação dos mundos 301

alergia ao segredo entre os públicos”. As estrelas renunciam,


assim, não apenas a sua privacidade, mas também às atitudes
singulares ou fechadas, depreciadas aqui como extravagâncias
ou caprichos passíveis de desagradar ao grande público. De-
ve-se igualmente se abster de todo “hermetismo” (forma de
expressão altamente valorizada no mundo inspirado), tratado
pela maioria como uma manifestação de ostracismo.

Se uma mensagem, uma informação, é hermética demais,


apenas a fração mais sofisticada do público em geral será
por ela tocada, enquanto o restante, isto é, a grande maioria,
não terá nem visto nem a fortiori entendido e memorizado o
que quer que seja. Consequentemente, qualquer ação sobre a
opinião pública deve ser planejada em função da fração menos
refinada, o que implica que a mesma informação será também
apresentada para a fração mais avançada.

No mundo da opinião, a relação de grandeza é uma Ser reconhecido e se


identificar (relação de
relação de identificação. Os de maior grandeza abarcam os grandeza)
outros porque estes se identificam com aqueles, como, por Identificação, Força.
exemplo, o fã, que se identifica com a estrela. Mas as pessoas
podem igualmente se identificar com os objetos bem-sucedi-
dos e, por meio deles, com as celebridades que os adotaram e
os exibem. Assim, “cada automobilista satisfeito se identifica
com o seu carro e o ‘defende’ de julgamentos feitos pelos ou-
tros”. Abarcar os seres é ser reconhecido pelos outros, é atrair
sua atenção, convencê-los, obter sua consideração, conduzir,
estimular sua adesão. O ser de grande renome cria o público,
o constitui como tal, ao mesmo tempo que é por ele criado.
Aquele que consegue romper a barreira, capturar a atenção
do público, abarca e realiza o ser daqueles que, por meio do
reconhecimento que a ele dedicam, garantem sua celebridade.
Ele “soma o potencial de força de cada um do seu público ao
seu” e manifesta sua força, concentrando-a em si. O termo
força, embora ambíguo, está presente no manual de referência
aqui utilizado, assim como nos textos canônicos de Hobbes,
especialmente na evocação a como o ser renomado abarca
seu público e se engrandece na proporção dessa adesão.

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302 Os mundos comuns

A persuasão A relação de abarcamento entre os grandes e seu público


(relações)
Influenciar, Convencer,
por meio do renome é expressada em termos de influência.
Sensibilizar, Atrair, Estabelecer uma relação de influência consiste em capturar,
Seduzir, Prender a a­ tenção,
Penetrar na c­ arapaça,
atrair, alertar, estimular a adesão [de seguidores ou fãs] ou
Captar, uma tendência, persuadir, tocar, sensibilizar, mobilizar o
Lançar, Emitir,
Circular (fazer),
interesse, informar, seduzir. Sujeita a essas influências, a opi-
Propagar, Promover, nião cria a moda, circula como um rumor em um aparato
Orientar, Amplificar,
Falar de, Citar.
de comunicação e com isso valoriza os seres dessa nature-
za, cuja notoriedade se espraia de um sobre o(s) outro(s):
“É suficiente, por exemplo, que uma empresa consiga trazer
personalidades, [...] estrelas, para que toda a notoriedade
dessas personalidades transborde sobre a companhia”. E co-
nhecer equivale a ouvir falar de: “Por força de se ouvir falar
[de algo] nas mais variadas formas, o público tem a impres-
são, mesmo se não é consumidor, de o conhecer”. Falar de,
mencionar, citar um nome, “publicar um livreto ou folheto”
são igualmente formas de “entregar uma mensagem”, de a
emitir, de difundir uma informação. Nesse mundo, no qual
tudo o que tem valor é imediatamente conhecido e visível,
as pessoas não cessam de fazer comparações. Assim, por
exemplo, “a imprensa, em todas as suas formas, permite aos
funcionários de uma empresa compararem sua companhia, as
condições em que trabalham, seu salário, com o que ocorre
em outras empresas do mesmo setor, ou até mesmo de outros
setores”. E essas comparações cruzadas tecem uma rede. As
pessoas receptivas, receptores da mensagem, tornam-se por
sua vez os emissores. As relações públicas se empenham em
estimular esse processo, criando uma “rede de propagandistas
voluntários”. Com efeito, aqueles que já ouviram falar de
algo lhe fazem eco, transmitem-no, assegurando-lhe o im-
pacto, veiculam a informação, “alimentam a imagem”, por
multiplicar e amplificar a mensagem como uma “caixa de
ressonância”. Assim, “sensibilizar profissionais do ensino é
extremamente interessante, por conta do poder de amplifica-
ção [...] que eles representam”. Da mesma forma, “uma boa
política de relações públicas pode, por exemplo, graças aos
bons contatos com a imprensa, permitir amplificar as ‘infor-

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A apresentação dos mundos 303

mações positivas’, as ‘boas notícias’”. Nisso, “um público”


desempenha um “papel duplo: espectador e ator. É espec-
tador quando recebe uma informação, a qual o leva a uma
reação de adesão, oposição ou indiferença. E é em sequência
ator porque, na maioria dos casos, falará dessa informação
para outros públicos aos quais ele possa comunicar sua opi-
nião”. É possível atuar sobre esse aparato de comunicação,
manuseá-lo para implantar uma imagem, lançar um produto
ou o promover: as “informações oriundas da imprensa, das
personalidades, dos formadores de opinião”, “destacam-se
aos olhos do público” e, ao orientarem, ao conformarem a
imagem a ele transmitida, posicionam o produto.
A ordem natural distribui a gama de imagens posi- A imagem no
público (figuras)
cionando-as de acordo com seus públicos, segmentados em Audiência, Público-alvo,
públicos-alvo ou audiências. Posicionamento.

Nesse mundo, os grandes momentos são aqueles no A apresentação de um


evento (figuras)
decorrer dos quais essas imagens se tornam explícitas, por Manifestação,
exemplo, durante uma apresentação que as coloque sob Coletiva
de imprensa,
holofotes aos olhos dos outros. Os seres acedem à grandeza Inauguração,
apenas se esta for tornada visível, em um espaço transparente Portas abertas
(manifestação).
no qual possa ser observada e comparada. A apresentação
“aos olhos do público”, destinada a dar visibilidade a um ser,
por exemplo, por meio de um “dia de portas abertas”, um
evento-teste, lança mão de uma mise-en-scène, permitindo
preparar a ambiência, o clima, a atmosfera, o cenário, que, em
um evento, “não apenas deve ser concebido para decorar uma
sala, um ateliê ou outro ambiente de trabalho, mas para aju-
dar a criar uma atmosfera sintonizada com a mensagem que
a empresa deseja transmitir”. Em uma formulação profana, o
autor do manual fala em provocar, em “criar um evento do
nada”. Este pode assumir a forma de uma coletiva de impren-
sa, “na qual uma informação importante é transmitida aos
jornalistas”, ou de uma abertura, inauguração, lançamento ou
estreia, “que reúne personalidades, audiências selecionadas e
importantes, jornalistas”, e que permitirá obter “o máximo
impacto [...] de alertar os visitantes e os incitar a ir”.

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304 Os mundos comuns

Um evento serve como suporte, como veículo para a mensa-


gem, evidente ou induzida, que permitirá alcançar o objetivo
buscado. Consequentemente, a mensagem pode assumir a
forma de uma real mensagem, da comunicação de uma in-
formação, ou pode não ser mais que apenas uma ambiência,
um clima produzido, atuando quase inconscientemente sobre
o público presente.

O julgamento da A marca contribui para cristalizar – por meio do chama-


opinião (julgamento)
do branding, a atividade de desenvolvimento e consolidação
Boato, Rumor, Moda,
Escala, Impacto, da imagem de uma marca – uma tendência de opinião. E a
Repercussão, Justas adoção da imprensa como instrumento garante também que
proporções (reduzir a),
Medir essa manifestação se objetive pelas repercussões, os impactos
(a audiência). nela perceptíveis: “A imprensa não costuma tardar a fazer eco
aos boatos e rumores que colhe”. No mundo da opinião, o
julgamento se manifesta, com efeito, pela convergência de
opiniões que criam um boato, um rumor. O evento se torna
evidente uma vez que essa convergência seja visível graças à
afluência do mundo e possa ainda se amplificar por si própria
como uma moda: “É bem sabido que o mundo atrai o mundo
e que o clima de circo (no bom sentido do termo) é um in-
vestimento seguro”. A ausência de julgamento, neste mundo,
consiste em se iludir sobre sua própria grandeza. E a manifes-
tação do julgamento da opinião permite apenas reduzir essa
tensão entre a grandeza autoatribuída (ideal) e a grandeza
atribuída pelos outros (efetiva): “Antes de empreender uma
ação de branding, seja qual for, é importante conhecer a
imagem efetiva (ou sua ausência), definir de maneira precisa
a imagem ideal que seria desejável promover”. Para reduzir a
justas proporções um rumor ou uma informação, é preciso
recorrer às “reações da opinião pública”. O julgamento pode
ser sustentado, como vimos anteriormente, por técnicas de
pesquisa de opinião que permitam estabelecer uma medida,
uma escala que, com isso, contribua para garantir às celebri-
dades a inegável grandeza que lhes valeu o reconhecimento
do qual são objeto.
A evidência do sucesso Com efeito, no mundo da opinião, é evidente o que é
(evidência)
conhecido e, inversamente, contestável o que é tanto ignorado
Conhecido.
pela maioria (esotérico) quanto indistinguível e irrelevante.

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A apresentação dos mundos 305

Ser pequeno, na lógica da opinião, é ser banal (não ter A indiferença e a


banalidade (decadência).
sido “desbanalizado”), “não ter nenhuma imagem, o que
Desconhecido, Oculto,
geralmente significa o total não reconhecimento do produ- Indiferença
to”, ou ter uma imagem borrada, deteriorada, esmaecida, (encontrar a), Banal,
Esquecido, Imagem
perdida; estar esquecido, oculto, “se deparar com a indiferen- borrada,
ça ou a oposição; em uma palavra: desaparecer”: “Algumas Deteriorado, Esmaecido,
Perdido.
empresas lutam [...] para não a perder [sua imagem], para
não desaparecer”.

Basta olhar cuidadosamente a imprensa por um mês para ser


disso convencido: os acontecimentos que mobilizam a opinião
pública de um país durante um bom tempo são, da noite para
o dia, completamente esquecidos, porque desapareceram dos
jornais. Ora, se o jornalista não volta a tratar de um assunto
é porque ele acredita que a opinião pública não está mais
receptiva a ele, que ela já não se interessa mais por ele e que
outras informações são mais importantes.

O mundo cívico

O mundo cívico tem a particularidade de atribuir impor-


tância primordial a seres que não são pessoas. Assim, nesse
mundo, não são os seres humanos que acedem aos estados
de grandeza mais elevados, mas os entes coletivos por elas
compostos com sua reunião. É na medida em que elas per-
tencem a essas coletividades ou as representam que o valor
dos seres humanos pode ser levado em consideração. Mas a
existência mesma desses seres coletivos, que não contam com
um corpo próprio, pode ser facilmente colocada em questão:
“Só indivíduos existem realmente”. Além disso, as coisas e os
dispositivos que compõem esse mundo são destinados princi-
palmente a estabilizar e aparelhar as pessoas coletivas, a ob-
jetivá-las, de modo a lhes dar corpo, permanência e presença.
Pode-se, com efeito, estabelecer uma relação de equi- A preeminência dos
coletivos (plano superior
valência entre os seres, visto que pertencem todos a uma
comum)
coletividade, que os abarca e ultrapassa. Os seres coletivos Coletividade, Tudo,
são, eles mesmos, englobados em outros agrupamentos de Vontade (geral).

dimensão superior, encerrados em conjuntos, dos quais o mais


inclusivo é a humanidade. As pessoas são todas guiadas por

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306 Os mundos comuns

uma mesma justiça porque contam com uma consciência feita


à imagem da consciência coletiva e porque são suscetíveis, ao
ouvirem sua voz, a subordinar sua vontade à vontade geral.
Essa tomada de consciência lhes confere “a vontade de se
organizar”, isto é, de superar as singularidades que promo-
vem a divisão para, em vez disso, promoverem a união de
todos. Assim, uma “organização coletiva dos trabalhadores”
é “aberta a todos os trabalhadores, sejam quais forem suas
opiniões políticas ou filosóficas, suas nacionalidades, idades
ou sexos”. As ações das pessoas são pertinentes uma vez que,
participando de um movimento social, tomem parte de uma
ação coletiva que confira sentido às condutas dos indivíduos
e as justifique: “A ação [...] não é uma simples soma de
posições ou iniciativas individuais, mas uma ação coletiva”.
Regulamentares e No mundo cívico, os seres grandes são as massas * e
representantes as coletividades que as organizam e reúnem. Sua grandeza
(estado de grande)
Unitário, Legal, é qualificada primeiramente por seu tamanho – federativo
Regulamentar, (“congresso da federação de federações regionais”), nacional,
Oficial, Representante,
Autorizado, Titular,
“internacional”** – e por seu pertencimento ao espaço público,
Livre. em oposição ao mundo “privado”, como quando se fala de
“instituições públicas”. Ademais, as pessoas ou os coletivos
ganham em grandeza quando promovem a reunião, quando
se empenham “em unificar, em romper o isolamento” das
pessoas, em concentrar “a força coletiva dos trabalhadores
agrupados em torno de objetivos comuns” e conseguem

* Aqui, o termo aparece no sentido amplo e genérico da grande quantidade


de atores, mas não necessariamente no sentido estrito de multidões
contíguas espacialmente. Desse modo, ele dá conta tanto da ideia
de massas mais classicamente associada ao tratamento marxista da
classe trabalhadora, quanto da ideia de públicos de uma sociologia
dos públicos, como agregados formados pela adesão a um mesmo
problema público (e, portanto, distintamente do público do mundo
da opinião, dos espetáculos ou das celebridades) – problemática cara
à própria abordagem pragmática. (N. do T.)
** O modelo usado pelos autores para o primeiro item dessa tipologia
segue o das entidades trabalhistas, como a Confederação Geral dos
Trabalhadores (CGT) francesa, que conta com federações regionais
e com um fórum a elas associado, diferindo-se de um modelo linear-
mente nacional – como o de determinados partidos políticos – ou de
uma associação internacional de trabalhadores. (N. do T.)

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A apresentação dos mundos 307

expressar, em uma “concepção unitária”, os “problemas co-


muns a todos”. Essa atividade é libertadora porque emancipa
os homens da opressão dos interesses egoístas. O “movimento
sindical”, que garante “a unidade dos trabalhadores”, pode,
dessa forma, ser qualificado por sua “missão libertadora”. As-
sim, um ser pode ainda receber a qualificação de grande se
for reconhecido como representante, termo que no mundo
cívico designa ao mesmo tempo a forma de abarcar os outros
e a relação de grandeza entre os seres. Ser um representante
confere autoridade na organização e a capacidade de exercer
um poder. E esse representante é qualificado para “cumprir
a missão” para a qual tem vocação. Dessa maneira, os
“sindicatos [...] têm qualificação única para negociar com a
direção”. Os representantes são devidamente tornados man-
datários. A lei confere, por exemplo, um “caráter legal aos
representantes dos funcionários”. E a legalidade define uma
forma de grandeza particularmente apreciada nesse mundo.
Ela é própria dos textos, quando estes são regulamentares
ou legislativos; aos representantes, quando são oficiais; aos
membros, quando são registrados; aos delegados, quando
são válidos: deve-se “subordinar a validade da designação
do representante à constituição estabelecida da seção sindi-
cal”. Igualmente, é necessário assegurar-se do estatuto legal
dos candidatos, que, para serem elegíveis, precisam ser livres,
isto é, não estarem submetidos a relações de dependência
pessoal, instauradoras da grandeza das pessoas no mundo
doméstico: “Para ser elegível, é preciso [...] não ser parente
próximo ou cônjuge do empregador”. É esse distanciamento
que garante sua independência e sua “liberdade de discur-
so”: é preciso “respeitar [...] a independência de julgamento,
necessária em semelhantes circunstâncias”; ora, “a falta de
independência perante os empregadores por si só é suficiente
para um sindicato ser declarado não representativo”. A liber-
dade é a condição da dignidade, pois respeita a aspiração dos
cidadãos à unidade.
Os seres podem, assim, escapar ao caos, o que aqui A aspiração aos
direitos civis
quer dizer, escapar à divisão, e consequentemente aceder à (dignidade)
grandeza, porque são naturalmente políticos. Eles trazem em Direitos civis,
Aspirações políticas,
si uma aspiração que os direciona para o que é comum, para
Participação.

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308 Os mundos comuns

o que une e os encoraja a romper seu isolamento. É isso que


lhes confere a qualidade de cidadãos investidos de direitos
civis: “É presumível que os assalariados da empresa devem
gozar de seus direitos civis”.
As pessoas A aspiração comum à unidade define a dignidade das
coletivas e seus
pessoas. No mundo cívico, os seres são as pessoas uma vez
representantes (sujeitos)
Coletividades públicas, que elas sejam passíveis de ter direitos e obrigações, isto é,
Partido, Federação,
quando são criadas ou autorizadas por um ato no qual se
Seção sindical,
Escritório, Comitê, expresse a vontade de todos. As pessoas, então, têm grandeza
Funcionário eleito,
pequena ou grande conforme se encontrem, por um lado, em
Representante, Delegado,
Secretário, Membro estado particular, que as reduza a serem apenas elas mesmas,
(associado).
“indivíduos isolados”, escravos de seus interesses particula-
res e condenados à impotência, ou, por outro, acedendo ao
estado de generalidade, conforme se tornem a expressão de
uma vontade geral e a personificação de um interesse geral.
Assim, a seção sindical é uma pessoa coletiva, pois reúne
vários indivíduos sob uma forma reconhecida e legalmente
constituída, o que lhe confere direitos: “O estabelecimento de
uma seção sindical [...] não pode ser feito com base em ape-
nas um [membro]”. Sua grandeza depende de sua capacidade
de fazer seus membros acederem ao estado de generalidade,
mobilizando-os em torno de um interesse comum: “A seção
deve aproveitar o momento em que os trabalhadores tomam
consciência de sua exploração e da necessidade de lutar para
transformá-los em associados, em militantes”. Ela pode, en-
tão, cumprir sua vocação, que é “assumir a responsabilidade
pelo conjunto dos interesses dos trabalhadores”. Nesse esta-
do, no qual são grandes por serem solidários, os indivíduos
são membros, militantes, representantes, ocupantes de cargos
eletivos, coletores, tesoureiros, secretários, delegados. Mas a
seção sindical, como as outras pessoas coletivas do mundo
cívico (escritórios, comitês, federações, confederações, parti-
dos, comissões) ou como os seres morais que representam
o interesse coletivo (ocupantes de cargos eletivos, represen-
tantes, delegados), pode perder sua grandeza se, recaindo no
particular como resultado de um desvio, parar de “funcionar
democraticamente”: “A seção sindical não está imune a um

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A apresentação dos mundos 309

desvio” e é conveniente “controlar os delegados”, manter-se


vigilante. Se esses “princípios fundamentais” forem esque-
cidos, o ser coletivo se decompõe e se dilui para se tornar
nada mais que uma soma de indivíduos motivados por seus
interesses individuais:

Quando as intervenções (em assembleia) são numerosas e se


contradizem, a decisão final é baseada apenas em um ou mais
delegados. É por isso que a seção sindical deve desempenhar
todo o seu papel nas situações, propondo iniciativas. [...] Com
efeito, é inconcebível que ela recuse essas responsabilidades, se
dilua, desapareça nos momentos fortes de sua atuação.

Para resistir à inclinação que os atrai para o particular, As formas legais


(objetos)
os seres morais do mundo cívico devem ser estabilizados Direitos, Legislação,
por meio de equipamentos. A vontade coletiva da qual são Decreto, Decisões,
Medida, Tribunal,
oriundos, tão maior quão mais geral eles sejam, deverá, ela Formalidade, Processo,
própria, ser aparelhada para ser capaz de se expressar. Ela exige, Ata,
Protocolo de a­ cordo,
para se fazer ouvir, os “postos a serem ocupados”, as zonas Derrogação, Capacidade
eleitorais, as cabines de votação, as cédulas, as “disposições e (eleitoral), Código,
Critério,
dispositivos legais para garantir um desenrolar normal da Circunscrição, Lista
campanha eleitoral”, como as listas eleitorais, por exemplo. eleitoral, Programa,
Orientação,
As pessoas coletivas devem, em seguida, a fim de sustentar Declaração, Cartaz,
sua existência, afirmar sua presença e conquistar a perma- Folheto, Boletim,
Panfleto, Slogan, Assento,
nência (na forma de uma sede), dotar-se de uma materiali- Sede (uma),
dade que as concretize, manifestar-se em objetos. Convém, Local (um), Sigla,
Cartão.
com efeito, sustentar a afirmação segundo a qual a pessoa
coletiva, que “goza de personalidade civil”, conta com uma
personalidade própria, é de fato uma pessoa. Ora, isso é
contestado a partir de outros mundos, que negam a realidade
das pessoas coletivas, concentrando-se apenas na diversidade
das pessoas individuais das quais são formadas. Para, então,
se “concretizar [...] a presença e o papel ativo” das pessoas
coletivas, são utilizados meios materiais que permitam ex-
plicitar sua presença de uma forma acessível aos sentidos.
Assim, a seção sindical deverá se beneficiar da “atribuição
de um local [um espaço físico] no interior das empresas

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importantes”. Dispor de uma sede constitui, assim, um dos


principais métodos por meio dos quais uma pessoa coletiva
pode objetivar sua existência (Boltanski, 1982, p. 236). Além
disso, a seção, como qualquer outra pessoa coletiva, deve,
para obter visibilidade, dispor de “material para fazer um
panfleto, computador, impressora e/ou copiadora”* e se dotar
de “úteis e insubstituíveis meios de expressão e de defesa
dos interesses dos trabalhadores”, como cartazes “bastante
visíveis”, painéis informativos, boletins, folhetos. Assim, o
folheto de referência utilizado em nossa análise “deve ser [é
dito em sua introdução] uma ferramenta básica para militan-
tes que participam da vida de uma seção”. E para que sua
forma se mostre de maneira explícita, as pessoas coletivas
devem igualmente estar circunscritas por fronteiras, que lhes
atribuem um setor ou uma circunscrição (“circunscrição elei-
toral”). Por outro lado, sua vocação deverá ser especificada
por uma definição, que estabeleça os objetivos da associação
e lhe confira, assim, uma existência legal – “A lei em si não
apresenta nenhuma definição de...”. Essa definição fornece
critérios, por exemplo, os “critérios de representatividade”, e
códigos, permitindo identificar as diferentes pessoas coletivas
e distribuir entre elas indivíduos, cuja identidade pode por
sua vez ser definida por seu pertencimento aos coletivos.
Ela lhes confere um direito de cidadania; uma capacidade
eleitoral; prerrogativas, que são atestadas, de maneira com-
probatória, por um cartão; uma taxa; um extrato de con-
tribuições: “o borderô das contribuições mensais, no qual o
coletor registra os valores recebidos”. Para manterem-se em
sua posição, as pessoas coletivas têm ainda de ser associadas
a símbolos e emblemas, a siglas que façam reconhecê-las:
“A sigla [...] deverá estar sempre bastante aparente”. Não
tendo nem corpo nem órgãos sensoriais, sua vontade deve-
rá, para se expressar claramente, ser revertida em fórmulas

* No original, fala-se em máquina de escrever e em copiadora apenas


(sem referência a impressora). Considerei melhor atualizar a descrição.
(N. do T.)

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A apresentação dos mundos 311

prontas, permitindo a repetição por múltiplas vozes sem


alterações ou desvios, como os slogans – que “devem ser
retomados frequentemente”; as resoluções – “a resolução
sobre o processo democrático adotado no 28 o Congres-
so”; os objetivos – “os trabalhadores agrupados em torno
de objetivos comuns”; as posições – “divulgar as posições de
seu sindicato”; os programas – “o programa elaborado pelo
Conselho Nacional de Resistência”; as orientações – “basear
nossa prática em um conjunto de orientações comuns”; ou
ainda as linhas – “linhas de orientação”. A vontade dessas
pessoas coletivas está menos sujeita a desconfiança conforme
seja declarada em formas oficiais como: resoluções – “or-
ganização criada por uma resolução”; decretos – “decreto
de aplicação”; decisões – “o texto base da decisão de 22 de
fevereiro de 1945”; disposições – “disposições específicas a
certas profissões”; julgamentos – “julgamentos feitos pelos
tribunais”; proclamações – “a proclamação dos eleitos”; pro-
jetos – “projeto de lei”; e protocolos – “o protocolo do acor-
do”. Mesmo a exceção, que nesse mundo não tem grandeza,
pois é da ordem do singular, pode ser percebida na forma
jurídica da derrogação, da suspensão momentânea ou da
exceção – “a derrogação das condições de senioridade”. Uma
vez que as ações sejam implementadas na forma legal, dão
lugar a procedimentos, como os depoimentos e atas – “a ata
da eleição” – e as medidas – “a execução de medidas” – ou
formalidades. Assim, a notificação à empresa da eleição de
um representante, “por carta registrada com aviso de rece-
bimento”, é uma “formalidade importante”, porque “a data
de recepção dessa carta marca o ponto inicial da proteção
legal do delegado”.
No mundo cívico, acede-se à grandeza sacrificando-se os A renúncia ao
particular
interesses pessoais e imediatos, superando-se a si mesmo, não (investimento)
se colocando “interesses individuais na frente dos interesses Solidariedade, Superar
(as divisões),
coletivos”. Os militantes renunciam, assim, às “formas de ação Renunciar (ao interesse
nas quais seriam levados em conta apenas os interesses ime- imediato), Luta.

diatos, por vezes particulares, dos trabalhadores”. A renúncia


ao particular permite superar as divisões que promovem a

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312 Os mundos comuns

separação, em favor de se agir coletivamente. Ela é a condi-


ção da solidariedade. Mas o atrelamento dos homens a seus
interesses particulares, seu egoísmo e seu individualismo são
inclinações tão fortes que a construção e a manutenção das
coletividades exigem uma luta sem descanso: “Uma seção
sindical não é criada da noite para o dia. A construção desse
instrumento requer uma luta incessante: uma luta contra os
patrões, que veem sua existência com maus olhos; uma luta,
por vezes, contra si mesmo”. Com efeito, as pessoas coletivas
se deparam com uma dificuldade que lhes é própria: para
existir, elas precisam se exprimir – “o direito da organização
sindical de agir e de se expressar diretamente” – por meio de
declarações. Mas elas não podem tomar a palavra senão to-
mando emprestado a voz de um representante ou responsável,
que, uma vez que é um indivíduo, tem a tendência a monopoli-
zar as intervenções, que a todos pertencem. É, portanto, neces-
sário “controlar os eleitos”. Assim, pode-se procurar impedir a
dissolução das pessoas coletivas codificando-as, submetendo-as
a uma obrigação jurídica, consagrando-as por referência a
um enquadramento legal. Por exemplo, um delegado deve ser
habilitado, “investido de funções específicas”, codificadas em
textos (como as convenções coletivas), que definam seu esta-
tuto, os atos próprios de sua competência e as incompatibili-
dades que o afetam. “O mandato de delegado é incompatível
com o mandato de administrador”. E se a obrigação não for
cumprida, a submissão a um enquadramento legal autoriza,
finalmente, a se “adotarem todas as medidas adequadas”, a
apelar em uma instância de recurso – “apelar ao juiz de se-
gunda instância” – ou a excluir o delegado, fazendo-o decair
ao estado de pequena grandeza.
As relações de A grandeza cívica depende, assim, em primeiro lugar da
representação (relação
de grandeza)
adesão. Aquele que adere ganha em dimensões porque rompe
Adesão, seu isolamento. É a “adesão maciça dos trabalhadores” o que
Representação,
Delegação, Traduzir
produz sua grandeza. Mas é o mecanismo da representação
(as  aspirações). que expressa de maneira específica a relação de grandeza
nesse mundo. O poder de representação outorgado a uma

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A apresentação dos mundos 313

pessoa beneficiada por um mandato é o que a autoriza a


abarcar os outros, a falar em seu nome, a ser seu porta-voz.
Os representantes e os delegados contam com maior grandeza
porque têm a missão de traduzir as aspirações das massas.
Eles contam com a capacidade de representar os interesses,
isto é, de transformar os interesses de cada um em um inte-
resse coletivo: “O que é espontâneo é o descontentamento,
o fato de se sentir que há algo errado. É preciso, consequen-
temente, descobrir o que esteja errado, o que precisa mudar,
e o traduzir em forma de reivindicação”. Enfim, no mundo
cívico, a relação de grandeza deverá, para ser legítima, ser
exercida, ela também, em formas legais que definam e limitem
a representatividade de acordo com o domínio (político, sin-
dical, etc.), no espaço (setor, circunscrição, etc.) e no tempo
(duração do mandato). O representante legítimo deve prestar
contas à base, ou seja, às pessoas cuja associação constitui a
coletividade em questão.
Assim, o principal modo de relação neste mundo é a A reunião
para uma ação
associação, que permite fazer de uma infinidade de indivíduos coletiva (relações)
uma só pessoa. Para produzir uma coletividade, é preciso Unificar, Mobilizar,
Coletar, Excluir,
arregimentar, agrupar, reunir, unificar. A capacidade de ação Aderir, Reagrupar(-se),
coletiva se manifesta no ato de se recrutarem, se estenderem, Apelo (lançar um),
Debater
se implantarem ou se impulsionarem iniciativas: “Pode se (democraticamente),
tratar de uma iniciativa de alguns trabalhadores que, ainda Palavra (tomar a),
Informar, Codificar,
que minoritários, visem impulsionar uma ação”. Mas este Legalizar, Habilitar,
mundo, sempre inclinado a se desfazer nas particularidades, Apelar (aos tribunais).

demanda, para se sustentar, uma mobilização consciente e


ativa. As pessoas devem se manter constantemente em alerta
para escapar à fragmentação e para conservar um caráter
coletivo. Os representantes devem estar “em estreita ligação
com os trabalhadores”, os membros devem “manter-se em
contato permanente com as organizações [...] e com suas
orientações”. Eles têm de “se coordenar e se organizar”, lan-
çar convocações, debater democraticamente, desenvolver a
discussão, difundir as orientações, informar e, a fim de serem
ouvidos, “multiplicar ao máximo as explicações”.

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314 Os mundos comuns

A República O mundo cívico, que não pode ser colocado em ação


democrática (figuras)
fora de um Estado, encontra sua forma mais desenvolvida
República, Estado,
Democracia, Base, na república e na democracia, que garantem a representação
Eleitorado, Instituições
dos cidadãos reunidos em um corpo eleitoral (eleitorado,
representativas,
Parlamento. colégio eleitoral, instituições representativas, democracia par-
lamentar). Graças a essas instituições, a vontade geral pode
emanar da base:

No quadro de suas atividades, os sindicalistas conhecem a


pulsação dos trabalhadores. Tomam conhecimento das [...]
aspirações que emergem no local de trabalho. Eles podem,
se a seção demonstrar uma tendência a adormecer, acordá-la,
inspirar o debate, etc. Os membros estão realmente na base
da seção sindical.

A manifestação por A democracia é a forma política mais apropriada para a


uma causa justa
manifestação da vontade geral, que constitui a forma padrão
(comprovação)
Assembleia, Congresso, de comprovação nesse mundo. Nele, os grandes momentos
Conselho, Revisão,
são os de unidade, de reunião e de adesão – “reunir os as-
Sessão, Movimento,
Presença sociados” –, nos quais a realidade das pessoas coletivas é
(manifestar a), Litígio,
confirmada pela presença física dos membros: manifestações,
Recurso, Justiça
(demandar). movimentos, assembleias, reuniões de conselho, sessões, con-
gressos. Esses encontros são particularmente propícios para
a colocação em prática da grandeza coletiva uma vez que
pretendam demandar justiça por meio do recurso à lei para
resolver um litígio ou, melhor ainda, uma vez que sejam a
circunstância de uma colocação em questão que apele para o
julgamento de todos contra as instituições e contra os magis-
trados acusados de monopolizar e desviar a lei em benefício
de interesses particulares de alguns.
O veredicto do escrutínio O julgamento é a expressão da vontade geral que pode
(julgamento)
se manifestar no foro íntimo de cada um por meio da tomada
Votação, Eleição,
Consulta, de consciência – “É na empresa que os trabalhadores come-
Mobilização, Causa
çam a tomar consciência de que têm interesses comuns” –,
(juntar-se a uma),
Consciência (tomada de). revelar-se por uma reflexão coletiva ou sob a forma de uma
mobilização em torno de uma causa, ou ainda tomar empres-
tado os instrumentos democráticos: voto, eleições, apontamento
de representantes.

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A apresentação dos mundos 315

A forma das evidências aqui é a lei, na qual a expressão O texto legal (evidência)
Lei (a), Normas
da vontade geral se encontra depositada. A realidade é clara
legais, Estatutos.
uma vez que esteja conciliada com textos que possam ser
invocados e com normas legais suscetíveis de serem aplicadas:
“Os novos delegados [...] encontrarão aqui as informações
úteis sobre as normas legais aplicáveis em circunstâncias
semelhantes”.
A cité se esfacela quando se entrega ao particular.
É pequeno tudo aquilo que dilui, fragmenta ou restringe: A divisão
(decadência)
“O que seria da seção sindical se ela se limitasse a um nú-
Dividido, Minoritário,
mero restrito de associados?”. Assim, os laços domésticos Particular, Isolado,
Desligado (da base),
do corporativismo são constantemente denunciados porque
Individualismo,
dividem os trabalhadores: “As reivindicações corporativistas Desvio, Categorial,
Irregular, Arbitrário,
[...] não fazem senão contribuir para dividir ainda mais os
Anulado, Derrubado.
trabalhadores de diferentes categorias”. Para dar fim a esse
estado de divisão, é preciso “despedaçar a estrutura de ocu-
pações que fatiaria a classe trabalhadora”. Os seres, quando
não estão fortemente ligados uns aos outros por relações de
solidariedade, desencaminham-se e se deixam conduzir pelos
desvios. Eles se dissolvem na categoria ou, pior, no individua-
lismo: “A democracia não pode ser improvisada neste mundo
moldado pelo individualismo”. As pessoas, deixadas por si
sós, habitadas pelo apetite de poder pessoal, monopolizam
a palavra e, “experientes em orientar os participantes das
assembleias”, “encaminham as decisões por uma via pouco
conforme com o interesse de todos os outros”. Minoritários,
eles formam um núcleo limitado: “O risco é grande de se ver
formar uma hierarquia entre os militantes e se testemunhar
a criação de um núcleo limitado e que não poderá realmente
lançar mão das possibilidades disponíveis”. Eles estão, enfim,
isolados e desligados da base, e esse vácuo de fundamenta-
ção no geral lhes confere um caráter arbitrário e contrário
à regra (irregularidades) capaz de os conduzir à decadência
e à anulação (qualidades que caracterizam neste mundo o
maior infortúnio concebível): “Os assalariados que foram
derrubados das suas funções sindicais”; “as irregularidades
capazes de conduzir à anulação das eleições”.

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316 Os mundos comuns

O m u n d o m e r ca n t i l

O mundo mercantil está longe de se confundir com


uma esfera de relações econômicas. Procuramos mostrar que,
diferentemente, as atividades da economia repousariam sobre
pelo menos duas formas principais de coordenação: uma pelo
mercado, outra por uma ordem industrial, cada uma permitin-
do estabelecer uma diferente comprovação de realidade. Essa
distinção analítica, consolidada pelas observações empíricas
sobre situações inclinadas para a realização de uma ou outra
dessas comprovações, esclarece alguns problemas encontra-
dos na teoria econômica próprios do confronto dessas duas
ordens, e que se manifestam notadamente quando o tempo é
introduzido nas relações mercantis, naturalmente atemporais.
Um quadro comparativo desses dois mundos, mercantil e
industrial, prepara a análise, desenvolvida no próximo ca-
pítulo, das relações críticas entre as vantagens associadas a
uma coordenação por meio de bens mercantis e os benefícios
devidos à implementação de técnicas eficazes. O desvão entre
esses dois mundos não poderia ser preenchido pela adição
formal de uma nova dimensão (temporal), nem, portanto, ser
interpretado como a distância entre um equilíbrio estático
e um equilíbrio dinâmico. Do argumento de São Tomás de
Aquino, que soma às críticas ao empréstimo a juros a obser-
vação de que o tempo, bem público, não pode ser vendido,
até as observações de Keynes sobre a contradição inerente aos
ativos financeiros, aprisionados entre uma avaliação ao sabor
das flutuações nos lucros e um julgamento da solidez dos in-
vestimentos, a taxa de juros não cessa de aparecer como um
objeto ambivalente que sustenta a tensão crítica entre essas
duas ordens de grandeza, apesar das tentativas de se chegar
a um acordo como em qualquer outro caso.
A abordagem simetrizada dos dois mundos, mercantil
e industrial, evita uma outra redução de suas relações, que
consiste em relacionar um aos desejos subjetivos, que se
expressariam nas demandas dos consumidores, e o outro
aos imperativos objetivos, que se inscreveriam na função de

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A apresentação dos mundos 317

produção. Apesar de seu impressionante arsenal de objetos


técnicos, o mundo industrial da eficiência não é menos polí-
tico que outros e sua comprovação é igualmente dependente
de um julgamento comum. Quanto ao mundo mercantil,
ele não é impulsionado apenas por relações comerciais en-
tre compradores e vendedores em negócios. Esse mundo é
também povoado por objetos onipresentes, de cujo papel
na coordenação das ações o economista pode se esquecer
apenas quando os tratar como uma natureza independente
das intervenções dos outros. Nisso, ele se junta à atitude de
uma pessoa que age normalmente nesse mundo e que, a fim
de chegar a um acordo em um mercado, deverá se apoiar na
objetividade do bem e em sua independência em relação às
diferentes pessoas envolvidas.
Basta, então, colocar esses mundos a atuar um diante
do outro, lançar ao mercado aquela bengala de castão de
bola de seu tio André, deixando surgir no horizonte, por
meio do distúrbio que a isso se segue, tudo o que distingue o
objeto mercantil dos objetos valorizados em outros mundos.
Iluminando-se a qualidade dos artigos de natureza mercantil
e seu papel na coordenação, prepara-se para se lidar com
situações complexas nas quais coisas duvidosas perturbam
essa coordenação, como um desenho de Picasso a grafite em
um canto de mesa, um barril deformado que não está mais
em conformidade com os padrões, um carro usado, etc.
Ao distinguir uma ordem mercantil, abrimo-nos a críti-
cas que enfatizam a irrealidade da construção de um equilí-
brio de mercado concorrencial. Nosso objetivo não é tentar
reabilitá-la novamente como um modelo de sociedade, mas
mostrar que essa ordem serve efetivamente, entre outras, para
coordenar as transações localizadas com vistas a certa forma
de generalidade. Apesar disso, a efetivação de um equilíbrio
em generalidade consistente com a teoria não está de forma
alguma assegurada. Em primeiro lugar, as sociedades comple-
xas que estudamos não se deixam encapsular por nenhum dos
mundos que identificamos. Além disso, no próprio interior
do mundo mercantil, as comprovações levam a reajustar os

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318 Os mundos comuns

estados de grandeza gradualmente, e não por recurso a uma


instituição centralizada – como aquela do pregoeiro de Léon
Walras – necessária para a apuração completa de um mer-
cado em um dado instante. Quanto às críticas teóricas que
revelam, sob a aparência das relações de mercado, o papel
verdadeiramente desempenhado pela confiança, pelas crenças,
etc., elas concordam em mais de um ponto com as críticas
comuns que buscaremos identificar de forma sistemática no
capítulo VIII.
Uma outra dificuldade impõe um obstáculo à explora-
ção do mundo mercantil: ainda que se concorde em se distin-
guir objetos que o sustentam, poder-se-ia continuar relutante
em relação à perspectiva de tratar o mercado com o mesmo
modelo das construções de bem comum, uma vez que aquelas
fazem referência à vontade geral. Pode-se aceitar esse desafio
e ir de encontro às mais solidamente estabelecidas distinções
entre o individual e o coletivo, entre o egoísmo e o altruísmo
ou entre a atuação das livres preferências e o peso das nor-
mas sociais? Será possível reconhecer em um indivíduo sem
pátria e sem futuro (Nietzsche, 1950, § 23, p. 68-69) um ser
qualificado a tomar parte em uma forma de bem comum?
Nestes próximos parágrafos, prosseguiremos a demonstração
empreendida na análise da cité mercantil, indicando como
o mundo mercantil pode ser relacionado ao mesmo modelo
de grandeza, e que especificidades tomam dele os seres e as
relações relevantes.
A concorrência No mundo mercantil, as ações são impulsionadas pelos
(elemento superior
desejos dos indivíduos, que os impelem aos mesmos objetos,
comum)
Rivalidade, Competição. a fim de deles se apossar, bens raros, recursos escassos cuja
propriedade seja alienável. A caracterização deste mundo
pela dignidade das pessoas, todas igualmente impulsionadas
pelos desejos, e pelo aparelhamento de objetos adequados
encerra já seu princípio de coordenação, a concorrência, que
pode ser explicitada nas justificações, às quais as situações
de comprovação dão espaço.
Analisada de fora, a convenção constitutiva que é a con-
corrência assume o mesmo papel que aquilo que desempenha
a função de elemento superior comum em outros mundos.

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A apresentação dos mundos 319

A construção chamada mercado é tanto uma metafísica


quanto a edificação de ordens referidas à confiança e à tra-
dição ou à vontade geral. Cada uma pressupõe pelo menos
dois níveis, o dos particulares, de todo prontos a escapar das
convenções, e o das pessoas de qualidade, que tomam parte
do bem comum.
A competição entre os seres colocados em rivalidade Desejável (estado de
grande)
regula seus litígios por uma avaliação da grandeza mercantil,
Valor (de), Vendável,
o preço, que expressa a importância dos desejos convergen- Milionário, Vencedor.
tes. Os objetos de maior grandeza são os bens vendáveis,
com uma posição de força em um mercado. As pessoas de
grandeza maior são os ricos, os milionários e os que levam
uma vida abastada. Sua riqueza lhes permite possuir o que
os outros desejam, objetos de valor, de luxo, a nata. Ela está
na medida de seu próprio valor, que eles sabem vender e que
expressa seu sucesso, designado especialmente no vocabulário
da competição: destacar-se da multidão, lançar-se aos desa-
fios, marcar pontos, ser um vencedor, um craque.
A colocação em prática da grandeza mercantil se inscre-
ve em um espaço sem limites ou distância, no qual a circu-
lação de bens e pessoas é livre. Os homens de negócios têm
grandes perspectivas, vigiando os mercados mundiais, fazendo
negócios internacionais, em todo o mundo.
A grandeza mercantil não toma parte em uma constru-
ção do tempo. O estado de grande não comporta nenhuma
memória do passado, nenhum projeto de porvir. No mundo
dos negócios, eleva-se, de um salto, até o topo, da mesma
maneira como se vai à falência inesperadamente. Mas essa
instabilidade não implica falha, defeito ou deficiência, como
no mundo industrial. O acaso pode significar má sorte, mas se
pode tirar proveito da insegurança. O destino é normalmente
tornado favorável, transformado em sorte, se as pessoas ex-
ploram as ocasiões surgidas, tiram delas vantagem, por meio
de seu senso de oportunidade.
O estado de pequeno é aquele no qual as pessoas, no Não desejado (estado de
pequeno)
fracasso, estagnam-se e perdem, e no qual os bens são rejei-
Detestado.
tados, desdenhados, detestados, em vez de serem desejados.

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320 Os mundos comuns

Desprovido de qualquer meio para comprar ou vender, o


pobre não está longe de escapar à convenção de bem comum
e de ser privado da dignidade dos homens nesse mundo.
O interesse (dignidade) A natureza humana que floresce no mundo mercantil
Amor (às coisas),
é, então, caracterizada por um desejo, que é inocente como
Desejo, Egoísmo.
toda dignidade: “Buscai o lucro. Samuel Johnson disse: ‘Há
poucas coisas para as quais um homem pode ser mais ino-
centemente empregado que em ganhar dinheiro’”. Cada um é
dotado dessa capacidade inata: “Acredito que a maioria dos
seres humanos são vendedores de nascimento”. E ela precede
mesmo a consciência: “A arte de vender é a prática consciente
de um amontoado de coisas que já sabemos inconscientemen-
te... e provavelmente praticamos durante a imensa maioria
de nossas vidas”.
É expressando sua dignidade que as pessoas estão mais
próximas da verdade. O interesse é, assim, sua verdadeira
motivação, aquilo que é próprio de seu ego e que as faz serem
elas mesmas ao desejarem obter satisfação. É-se bem-sucedido
pela força desse desejo, porque o amamos. A vida real: isso
é o que as pessoas querem obter.
No manual de referência usado na análise, o autor re-
lata uma cena na qual as pessoas jogam com os limites da
humanidade e se divertem emprestando a seres não humanos
essa dignidade do desejo, essa capacidade de amar ou odiar.
O presidente de uma empresa de alimentos para cães faz o
seguinte balanço:

Depois de vários dias, ouvimos nossos chefes de departamento


apresentarem seus maravilhosos projetos para o próximo ano.
Eu tinha apenas uma pergunta a fazer: “Se temos a melhor
publicidade, o melhor marketing e a melhor equipe de vendas,
como é possível que nós não vendamos essa santa ração para
cães?”. Um completo silêncio pesou sobre a sala. Então, depois
de um momento que pareceu durar para sempre, uma pequena
voz elevou-se ao fundo: “É porque os cães a detestam”.

Uma vez que a dignidade designa uma capacidade de


tomar parte em um bem comum, o fato de ela adquirir nesse
mundo a forma de um desejo egoísta resvala no paradoxo.

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A apresentação dos mundos 321

Ao reconhecer a dignidade de uma pessoa ocupada com


a satisfação de seus desejos egoístas, a filosofia utilitarista
contribuiu para fincar no solo a figura moderna do indivíduo
destacado das cadeias de pertencimento e aliviado do peso
das hierarquias. No entanto, o sucesso da figura do indiví-
duo foi amplamente ligado à demonstração de que ele podia
encontrar lugar em uma ordem na qual suas ações se coorde-
nam com as dos outros. Os filósofos políticos demonstraram
os benefícios da concorrência apenas ao se estabelecer essa
possibilidade de coordenação que permite se referir hoje a
uma cité mercantil.
É apenas se perdendo de vista a convenção que relaciona
uma pessoa às outras, na condição de indivíduos, e que passa
pela intermediação de seus desejos pelos mesmos objetos, e
se esquecendo como essa convenção de concorrência regula
sua livre operação, que os termos indivíduo e liberdade po-
dem se prestar a sutis deslocamentos semânticos destinados
a apresentar o mundo mercantil como o único garantidor da
autonomia e da liberdade das pessoas.
O mundo mercantil é, então, povoado por indivíduos Os concorrentes
(sujeitos)
em busca de satisfazer seus desejos – alternadamente clientes, Homem (de n ­ egócios),
concorrentes, compradores ou vendedores –, estabelecendo Vendedor, Cliente,
Comprador, Independente
relações entre si como homens de negócios. (trabalhador).
Que a mobilização de objetos é necessária para a coor- Riqueza (objetos)
Objeto (de luxo).
denação mercantil, vê-se claramente, a contrario, quando
a identidade dos objetos mercantis é falha. O objeto de
natureza mercantil é uma coisa para a qual apontam os
desejos concorrentes de apropriação, algo desejável, vendá-
vel, comercializável. Sua qualidade não é a dos objetos do
mundo industrial, que valem por sua eficiência, seu caráter
funcional. Afastando-se da normalização do produto de in-
dústria, condição de sua eficácia, a identificação comum do
bem mercantil se inscreve como propriedade alienável, objeto
comum de desejos diversos.
Note-se que, entre as ciências sociais, a economia é
a que confere a maior ênfase aos objetos, sem que, no en-
tanto, o estatuto desses objetos tenha sido esclarecido na

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322 Os mundos comuns

teoria. As ferramentas industriais permanecem largamente


exteriores, desenvolvendo-se ao sabor do progresso técnico,
contribuindo ativamente para a produção de mercadorias. Os
bens de mercado são naturais demais para que seu papel seja
abordado, à parte as considerações sobre os bens públicos
ou coletivos. Os desenvolvimentos teóricos recentes sobre a
qualidade dos bens tocam na hipótese crucial de uma iden-
tificação comum dos objetos, mas as questões levantadas são
reduzidas a problemas de informação assimétrica. O valor do
bem é determinado na situação de comprovação mercantil,
e problemas tratados como trapaças sobre a verdadeira qua-
lidade são levantados pela referência implícita a uma outra
forma de valor, muitas vezes um valor industrial (Eymard-Du-
vernay, 1989b, p. 127). Da mesma forma, as implicações do
deslocamento teórico de um mercado de bens a um mercado
de futuros não são claramente distinguidas, por não se levar
em conta o papel da hipótese sobre a objetividade de um
suporte para as concupiscências concorrentes.
Senso de oportunidade A identificação comum dos objetos de natureza mercan-
(investimento)
til está intimamente ligada às exigências do engrandecimento,
Liberdade, Abertura,
Cuidado com os outros, à fórmula de investimento que garante, por meio de um sa-
Simpatia,
crifício, o acesso ao bem comum. O egoísmo dos sujeitos do
Dissociação,  Distância
(emocional), mundo mercantil deverá, para que uma ordem possa resultar
Distanciamento (adotar).
de sua participação, fazer par com uma lucidez a respeito dos
limites dos egos, outra face da identificação comum de bens
exteriores. É essa exigência, muitas vezes esquecida nas abor-
dagens metodológicas ou políticas do individualismo, que
define o indivíduo como um ser social, socializado por meio
dos desejos convergentes direcionados àqueles bens externos.
Assim, no mundo mercantil, as pessoas estão disso-
ciadas umas das outras (especialmente de qualquer relação
doméstica), liberadas, de uma maneira em que se prestam
de bom grado a qualquer oportunidade de transação. Em
suma, os sujeitos estão tão disponíveis quanto os produtos
no mercado. Aqui também a adoção dessa perspectiva sobre
o mundo mercantil permite suspender as ambiguidades sobre
a liberdade e o liberalismo. Em vez de considerar, como diz o

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A apresentação dos mundos 323

ditado, que a liberdade de cada um termina onde começa a li-


berdade dos outros e, portanto, sugerir uma imagem topográfica
da questão, melhor seria, talvez, reconhecer que a liberdade do
liberalismo encontra seu significado apenas como expressão
da escolha por bens exteriores, e que essa exterioridade é
adquirida somente a partir de um desprendimento que supõe
enxergar os outros como nos vemos a nós mesmos.
O distanciamento, a adoção de uma distância emocional
entre si e a situação, o controle sobre as próprias emoções
(emoções que, como vimos, expressam o estado de grande
do mundo inspirado) são a carga que essa grandeza faz
pesar. O senso de oportunidade característico dos de maior
grandeza no mundo mercantil, aqueles que sabem tirar o
melhor partido de tudo, caminha juntamente, sem paradoxo,
com certa atenção para com os outros, que implica “escutar,
realmente ouvir o que os outros dizem” – como indivíduos,
eles próprios, desprendidos, e não na medida em que formam
uma opinião da qual se deveria se proteger, como com “os
outros” no mundo da opinião. Essa atenção não vem atenuar
o egoísmo; é consubstancial com ele na ordem mercantil.
Assim como a obra de Smith, da qual extraímos a
apresentação canônica da grandeza mercantil, propõe tomar
uma teoria da riqueza das nações que destaca o princípio da
concorrência e a aproximar de uma teoria dos sentimentos
morais fundada na posição de espectador imparcial e na
simpatia, assim também o manual aqui estudado explicita a
relação entre o bom andamento dos negócios e um estado
das pessoas caracterizado pelo desprendimento de si mes-
mo (uma distância que evoca a “mesma e curta distância
em relação a grandes e pequenos objetos” na qual Smith
posiciona o espectador) e pela atenção aos outros (a sim-
patia, igualmente em Smith). O autor do manual destaca a
complementaridade entre o valor do instrumento monetário
do mercado e o de sentimento alimentado em relação aos
outros, atribuindo-os respectivamente a sua mãe e a seu pai
nas dedicatórias, na qual os homenageia: “A minha mãe,
Grace Wolfe McCormack, que incutiu em mim, sempre com

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324 Os mundos comuns

uma centelha nos olhos, a consciência de que dinheiro era


algo com que de fato valia a pena se preocupar”; e “a meu
pai, Ned Hume ­McCormack, que, mais que ninguém que
conheci, me mostrou a importância de ser altamente sensível
aos sentimentos das pessoas, não importa quão difíceis sejam
as circunstâncias”.
Possuir (relação de Mas mesmo que não se reduza o mundo mercantil
grandeza)
a uma coleção de átomos privados com relações entre si,
será fácil opor as relações mercantis, que se propagam em
rede, às relações hierárquicas, que se encaixam umas nas
outras. Ainda assim, a ordem mercantil une ela também a
ordem do geral e a do particular que implica esse encaixe.
A grandeza mercantil não é tão diferente das grandezas que
servem de exemplo à noção de hierarquia, ordem doméstica
da autoridade, ou ordem industrial da competência. Como
os objetos mercantis carregam em si os desejos dos outros,
sua posse implica uma relação hierárquica no sentido habi-
tual do termo: o estado de grande abarca o de pequeno em
uma relação de posse. O preço é a prova de atrelamento
aos outros do bem que alguém detenha. E uma vez que nem
todos possam igualmente satisfazer seus apetites acessando os
mesmos recursos escassos, os mais ricos realizam os outros
se apossando do desejo daqueles de menor grandeza e que
resultam privados desses bens. Os milionários são definidos
por sua posse daquilo que todo mundo quer.
Interessar-se (relações) E uma vez envolvidos, os seres do mundo mercantil
Comprar, Buscar,
estão em negócio. Um negócio é composto por pelo menos
Vender,  Negócio
(entrar em), dois indivíduos e um objeto, do qual se negocia a compra e
Partido (tirar), Monetizar, a venda. O objeto, bem ou serviço, contribui para configurar
Pagar, Rivalizar.
uma relação entre as pessoas por atrair, interessar. A transa-
ção pressupõe que as pessoas contam com suficiente distan-
ciamento e que o objeto seja suficientemente desatrelado para
permitir o jogo da concorrência com os outros. A transação
local ultrapassa, então, o arranjo situado para se tornar um
mercado, que leva em conta o conjunto dos desejos dos ou-
tros por meio dos preços, que serão monetizados, pagos, em
dinheiro. Essa distância deverá tornar indiferente aos olhos de
todos as qualidades das pessoas com quem se trata estranhas

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A apresentação dos mundos 325

às condições de comprador ou vendedor, qualidades que


expressariam grandezas em outros mundos – “Eu acabei [...]
por perceber a relativa insignificância dos adereços externos,
sejam eles a celebridade, a posição social ou a aparência”.
Essas configurações de elementos são coerentes uma
vez que os seres mercantis sejam de mesma grandeza, que o
produto esteja bem posicionado tanto em relação ao compra-
dor quanto em relação ao vendedor. Essa operação leva em
conta o quão real é o desejo do comprador pelo objeto. Ao
final dessa composição harmoniosa, as pessoas em negócio
encontram naturalmente suas grandezas em referência ao
objeto negociado. Participar de um negócio estável, que se
sustente, exige que as pessoas se encontrem, muitas vezes face
a face, para negociar tête-à-tête, longe da influência dos ou-
tros, medindo-se mútua e corretamente e “não subestimando
jamais os concorrentes” com os quais estão em competição.
A harmonia da ordem natural se deve à maneira pela Mercado (figuras)
qual os bens adquirem seus preços em um mercado que
determina a distribuição dos estados de grandeza. A com-
provação é o momento, de resultado incerto, no qual se
reavaliam as grandezas mercantis, em que um negócio é fe-
chado, concluído, vai para a conta. A conclusão do processo
de comprovação é expressada pela firmação de um contrato.
E a comprovação é também uma oportunidade para se ex-
tirparem do caos novos objetos, descobrir novas coisas que
possam interessar a um cliente e resultar em uma transação,
de se estender o mundo mercantil.
A identificação comum dos bens e a generalidade da Negócio (comprovação)
Negócio fechado, na con-
grandeza chamada preço tomam o face a face de um ne- ta, Mercado consumado.
gócio e o aproximam de outras transações a ocorrerem em
outros lugares, com outros indivíduos, que podem, assim, ser
colocados em equivalência. O preço praticado na transação, Preço (julgamento)
Valor (justificado,
que sanciona a comprovação ao modificar a distribuição
razoável, real).
das grandezas, leva em conta a negociação dos dois sujeitos
envolvidos, mas ele é estabelecido no horizonte de um preço
geral, exigência expressada pelo fato de que ele deva ser
razoável e “corresponder ao real valor”.

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326 Os mundos comuns

O dinheiro (evidência) A generalidade do preço é garantida pelo padrão mo-


Ganho, Resultado,
netário. O dinheiro é a medida de todas as coisas e cons-
Pagamento.
titui, portanto, a forma da evidência. O lucro, o ganho, os
pagamentos, o resultado da transação, são expressados em
liquidez, em comissão, em cachê, em honorários. Esse lugar
atribuído à moeda na situação de comprovação própria do
mundo mercantil evidentemente não permite encerrar os de-
bates da teoria monetária, mas sugere que a moeda, em sua
função de reserva associada a uma projeção do porvir e do
futuro, é um ser de caráter ambíguo, permitindo a passagem
para outros mundos.
A servidão ao O limite desumano do mundo mercantil é traçado em
dinheiro (decadência)
uma longa tradição de crítica ao caráter vão da posse de
riquezas e de valorização de um sábio desapego em rela-
ção a elas. Em uma direção inversa ao que empreenderiam
posteriormente Hume ou Smith, Sêneca recusava, ao fazer a
distinção entre os bens e as outras qualidades da pessoa, que
os bens de alguma maneira expressassem os outros e que,
com isso, servissem para justificar qualquer tipo de grandeza:
“As riquezas são minhas e tu és das riquezas. [...] Não me
admirarei por causa dessas coisas. Embora estejam comigo,
estão fora de mim” (Sêneca, 1962, p. 742, 747). Da mesma
maneira que a autoridade doméstica pode conduzir, no limi-
te, a uma servidão que inscreve o servidor no domínio do
mestre, como um patrimônio entre outros quaisquer, assim
também a riqueza pode conduzir, em uma confusão entre as
pessoas e os bens, a se possuir diretamente a pessoa de outrem,
e não os bens desejados. Entre os filósofos escoceses, é a cons-
trução de uma esfera de relações interesseiras que torna possível
a existência de relações desinteressadas, como, por exemplo, a
amizade (Silver, 1989).

O mundo industrial

O mundo industrial é aquele no qual encontram lugar


os objetos técnicos e os métodos científicos. A terminologia
utilizada não deve, portanto, levar a pensar que esse mundo
se inscreva inteiramente nos limites da empresa. E, da mesma

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A apresentação dos mundos 327

maneira, o funcionamento de uma empresa não poderá ser


compreendido apenas com base em recursos próprios desse
mundo, ainda que a meta de uma produção eficiente fundada
no investimento funcional derive sua justificação da ordem
industrial.
Se, como se verá, o julgamento canônico sobre a quali-
ficação de um fato científico permite ilustrar a comprovação
de realidade no mundo industrial, isso não impede que o de-
senvolvimento e a difusão de uma descoberta sejam simples-
mente inadequados à comprovação aqui examinada e trans-
bordem enormemente o quadro do mundo industrial. Com
efeito, os trabalhos de história ou sociologia da ciência e da
tecnologia tornam explícita a heterogeneidade dos recursos e
das ações adotadas no processo de inovação e são ainda hoje
acompanhados nesse ponto pelas abordagens econômicas das
mudanças técnicas. Quando se trata de estabelecer uma prova
científica, algumas das ações se inscrevem em uma forma in-
dustrial de comprovação. Outras estão envolvidas no grande
momento da eclosão do fato singular, com a inovação anun-
ciando a ruptura com a tradição segundo uma justificação
inspirada. Outras ainda se apoiam na grandeza do renome,
que implicará a concentração de um crédito em termos de
opinião com base em sinais distintivos e marcas; ou repousam
sobre a ancestralidade de laços domésticos a garantirem uma
reputação sólida; ou, finalmente, sobre a valoração mercantil,
em uma resposta imediata aos desejos dos clientes.
Da mesma maneira como o reconhecimento da ordem
mercantil é obscurecido pelo desconhecimento das conven-
ções que acompanham a afirmação do indivíduo, assim
também a compreensão da ordem industrial é impedida por
um tratamento dos objetos técnicos capaz de os encerrar
em uma relação instrumental com a natureza e que lança à
obscuridade as convenções que servem de suporte ao acordo
a respeito do fato científico. A observação das condições
nas quais são colocados em operação os objetos industriais
mostra que eles se prestam ao mesmo tipo de comprovação
que aquela encontrada em outros universos. Submeter esses
seres ao processo de comprovação e estabelecer sua objetividade

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328 Os mundos comuns

pressupõe a passagem por uma forma do coletivo, um princípio


superior comum que governa a maneira por meio da qual
eles são julgados. Ao destacar essa forma industrial de com-
provação, afastamo-nos tanto de uma concepção na qual as
ciências e técnicas representam aberturas para um mundo
exterior quanto de um relativismo radical que veja os fatos
como crenças arbitrárias atreladas às comunidades.
A eficiência (princípio O ordenamento do mundo industrial se assenta na
superior comum)
eficiência dos seres, em seu desempenho, sua produtividade,
Desempenho, Porvir.
sua capacidade de garantir o funcionamento normal e de
responder proveitosamente às necessidades.
Essa funcionalidade é expressada em uma organização
e implica ao mesmo tempo uma articulação sincrônica com
outros seres e uma ligação temporal. Com efeito, a eficiên-
cia se inscreve em uma relação regular entre causa e efeito.
O bom funcionamento dos seres estende o presente a um
futuro, abrindo assim a possibilidade de uma previsão. A for-
ma de coordenação industrial sustenta, dessa maneira, uma
equivalência entre as situações presentes e as situações por
vir, no porvir, constituindo uma temporalidade. Amanhã é o
que importa: as “máquinas do amanhã”, o “trabalhador do
amanhã”, a “organização do amanhã”.
Eficiente (estado de A qualidade dos seres de maior grandeza, seres funcio-
grande)
nais, operacionais ou profissionais (quando se trata de seres
Funcional, Confiável,
Operacional. humanos), exprime, assim, sua capacidade de se integrar ao
mecanismo ou às engrenagens de uma organização, ao mesmo
tempo que sua previsibilidade, sua confiabilidade garantem
projetos realistas para os tempos adiante.
Ineficaz (estado de As pessoas estão em estado de pequenez quando não
pequeno)
Improdutivo, Não demonstram sua utilidade, quando são improdutivas, quando
otimizado, Inativo, oferecem pouco ao trabalho, devido a seu absentismo, a seu
Inadaptado, Pane (em),
Aleatório. turnover (seu grau de rotatividade), ou porque estão inativas,
desempregadas, são deficientes, ou ainda porque apresentam
um trabalho de má qualidade, são ineficientes, desmotivadas,
não qualificadas, inadequadas. As coisas estão no estado de
pequenas quando se mostram subjetivas. Os seres também
serão pequenos quando, em vez de se abrirem para o porvir,

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A apresentação dos mundos 329

mantiverem a marca do passado, permanecendo pouco desen-


volvidos, estáticos, rígidos, inadaptados.
Os desperdícios (notadamente o das “capacidades hu-
manas” resultante dos “trabalhos desqualificados que [...]
não correspondam a suas reais capacidades”), as perdas, os
refugos, os danos, as deteriorações são todos signos negati-
vos da grandeza. Manifestam uma falta de domínio, o mau
funcionamento de um sistema vitimado por perturbações –
“A qualidade das matérias-primas é variável e perturba a
produção” – e têm suas origens nos imprevistos, nos inci-
dentes, nos riscos.
A forma de questionamento própria da ordem industrial
é expressada em uma situação não ótima, não otimizada,
como quando se “constata que a programação da produção
não otimiza os custos”. Essa situação litigiosa é uma disfun-
ção, um problema, uma pane, um acidente: “A redução dos
refugos, dos incidentes e dos períodos de inatividade permite
muitas vezes também reduzir a carga física e o desperdício
de energia humana”.
A forma de dignidade das pessoas, a característica da O trabalho (dignidade)
Energia.
natureza humana sobre a qual repousa essa ordem industrial,
é o potencial de atividade. Essa capacidade é revelada em um
trabalho, que representa a colocação em prática da energia do
homem de ação, do homem ativo: “Investir nas capacidades e
energias humanas é adotar o melhor meio de eficiência eco-
nômica”. Consequentemente, a não utilização dos potenciais
humanos disponíveis é uma grave afronta àquela dignidade.
As pessoas têm, no mundo industrial, uma qualificação Os profissionais
(sujeitos)
profissional (o termo profissional é, aliás, utilizado como um Expert, Especialista,
substantivo para designá-las), ligada a sua capacidade e a sua Responsável,
Operador.
atividade. Nessa escala de qualificação repousa uma hierar-
quia de estados de grandeza, marcada pelas competências e
pelas responsabilidades (administração, dirigentes, tomadores
de decisão, gestores, técnicos, operadores, etc.).
Nas relações de trabalho e nos sistemas de remuneração,
as qualificações formais que expressam essa grandeza indus-

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330 Os mundos comuns

trial também se opõem tanto a uma avaliação mercantil ime-


diatamente resultante de um serviço prestado quanto a um
julgamento doméstico que avalia a autoridade de uma pessoa.
Os meios (objetos) Os objetos do mundo industrial são os instrumentos,
Ferramenta, Recurso,
Método, Tarefa,
os meios mobilizados para uma ação que se apresente como
Espaço, tarefa de produção. Essa construção instrumental da ação,
Ambiente, Eixo,
Direção, Dimensão,
envolvendo uma passagem ao mesmo tempo espacial e tem-
Critério, Definição, poral pelos objetos que servem de intermediários, é, então,
Lista, Gráfico,
Esquema, Calendário, considerada aqui como uma característica específica do mun-
Plano, Objetivo, do industrial, e não como uma propriedade de uma ordem de
Quantidade,  Variável,
Série, Meio, maior generalidade, caracterizando as ações em geral dos seres
Probabilidade, Norma, humanos dotados de razão.
Fator, Causa.
Diferentemente do que é sugerido pela redução da fun-
ção de produção operada na teoria econômica do equilíbrio
geral, as atividades produtivas não são ordenadas no mesmo
mundo que as ações de natureza mercantil analisadas ante-
riormente. A produção é realizada pela mobilização de uma
gama de objetos de natureza industrial que se estende das
ferramentas aos procedimentos. A fabricação de produtos põe
em operação matérias-primas e energia, máquinas e métodos:
“Uma panóplia de ferramentas, organizações, métodos, meto-
dologias deverá estar disponível a fim de que se possa tomar
a cada instante o melhor ferramental possível para aquele
momento e o abandonar quando já não for apropriado”.
Em um esforço, o corpo é a ferramenta primeira a
operar, e os objetos de natureza industrial são apenas ins-
trumentos que prolongam a eficácia desse trabalho. A teoria
econômica do capital se junta à sociologia das ciências e
da técnica quando usa metáforas militares para descrever o
“recrutamento de forças poderosas como aliadas na tarefa
de produção”, “com cada ‘desvio’ indicando a mobilização
(‘conscrição’) de uma potência auxiliar mais poderosa e mais
hábil que a mão do homem” (Bohm-Bawek, 1959, p. 13-14).
É a reunião coerente desses objetos que sustenta uma causa-
lidade inscrita em uma certa temporalidade: uma vez que o
dispositivo esteja no lugar, ele não necessita de mais que um

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A apresentação dos mundos 331

gesto de pequena envergadura para deslanchar uma cadeia


de efeitos consideráveis (Bohm-Bawek, 1959).
Os objetos de natureza industrial contribuem para mol-
dar um espaço no qual os efeitos se transportam em função
de mecanismos. Esse espaço é, assim, organizado de tal modo
que as áreas remotas ou estranhas à ação, conforme uma
topografia doméstica, serão tratadas como um ambiente,
a partir do momento em que as ligações funcionais sejam
estabelecidas. As ações as mais diversas são integradas em
um mapa homogêneo, definido por eixos, linhas diretoras,
dimensões, graus, níveis. Os objetos são colocados em rela-
ção nesse espaço com a colaboração de listas e inventários
tratáveis em lote. O espaço mensurável pode ser projetado
em uma folha de papel, na qual se processa uma parcela
da comprovação, graças à confecção de tabelas, inventários,
gráficos, esquemas, organogramas, diagramas de enquadra-
mento, ferramentas de contabilidade, painéis de gestão à
vista. A articulação espacial dos objetos supõe uma capaci-
dade de definição munida de um medidor. Os instrumentos
de medição de que se lança mão são propriamente máquinas
a se alocar no espaço. A partir de uma definição e de uma
pesquisa, eles padronizam a produção de objetos em boa e
devida forma, cuja função pode ser apreendida por critérios
ou características. E até o próprio corpo é tomado por essas
medidas e inscrito na ergonomia da tarefa a ser cumprida:
“A ergonomia pode nos ajudar a determinar a carga física
de uma estação de trabalho e a expressá-la em kcal/dia. [...]
Esses postos foram modificados (altura, posição, assento) em
função das dimensões médias dos segmentos do pessoal”.
A função é uma noção a ser compreendida em uma arti-
culação espacial e uma ligação temporal, como bem mostram
os chamados mecanismos – dispositivos formados por peças
interligadas que funcionam uma em conexão com outra.
A equivalência de tempo instaurada pela grandeza industrial
é particularmente visível nos objetos apreendidos de acordo
com sua capacidade de gerir o porvir, como os programas,

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332 Os mundos comuns

os planos, os orçamentos: “Ao se ajustar ao cronograma de


planejamento, integra-se o programa ao plano, os orçamentos
de operação e de investimento”. As ferramentas de medição
do tempo tiram vantagem da regularidade de funcionamento
dos objetos técnicos e dotam o mundo industrial de uma
representação do tempo que não é diferente da topografia
desse mundo, no qual se pode mover sem atrito, ir adiante
ou promover um retorno retrospectivo. Calendários e qua-
dros de horário ou agendas permitem estabelecer estados
periódicos de progresso, traçar etapas, fases, términos. Esse
enquadramento do tempo modela como resposta os pontos
de referência da ação, que são os objetivos e as missões.
A análise dos objetos do mundo industrial permite
compreender a possibilidade de um cálculo, invertendo a
perspectiva adotada quando se reduz esse cálculo ao exercí-
cio de uma faculdade mental dos seres dotados de razão. Os
instrumentos para definir e medir constituem a situação na
qual tem lugar, como um problema, uma ação que demanda
uma solução e conduz à formulação de hipóteses. A articula-
ção de elementos ou de segmentos obtidos pela decomposição
da complexidade do universo pode ser efetuada por relações
matemáticas, com o cálculo apoiado em variáveis quantifica-
das: “O inventário dos problemas e de suas alternativas de
solução está sujeito a um método de avaliação econômica,
que permite traduzir em números as várias hipóteses de
melhoria”.
Progresso O progresso é a fórmula de investimento no mundo in-
(investimento)
Investimento,
dustrial. Ele é associado à operação de investimento (no senti-
Dinâmica. do clássico do termo) que pondera o “preço dos esforços”, “pe-
sado em termos de tempo e dinheiro”, e “a rentabilidade a
médio prazo”, que eles garantem: “Os investimentos pavimen-
tarão o caminho para um novo desenvolvimento”. A grandeza
industrial exige essa dinâmica para evitar a obsolescência, a
“inadequação futura da organização atual”. A orientação
temporal é construída a partir do porvir (como se vê nas de-
cisões de investimento ou nas racionalizações de otimização

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A apresentação dos mundos 333

por “backward induction [indução reversa]”), diferentemente


da orientação temporal vigente na ordem doméstica, gerada
pelo passado.
Note-se que o cálculo de rentabilidade do investimento,
uma vez que leva em conta uma taxa de juros, integra os
imperativos de um mercado financeiro, que não se inscreve
na ordem industrial.
É em uma relação de domínio ou maestria [de uma Domínio (Relação de
grandeza)
competência técnica] que o estado de grande abarca o de
pequeno. A palavra responsabilidade pode ser de utilização
ambígua, porque é igualmente adequada para a designação
da relação de grandeza doméstica. No entanto, a responsa-
bilidade industrial do de maior grandeza não implica que ele
coloque sob suas asas o de menor, que a ele deveria respeito
em troca. O domínio exercido se deve apenas à possibili-
dade de prever as ações menos complexas, integrando-as
em um plano mais amplo. O grande está em relação com o
pequeno especialmente pela “responsabilidade que assume”
pela produção, pelo controle sobre o futuro: “Determinar
corretamente o futuro para bem o controlar é uma tarefa Funcionar (relações)
Colocar em p ­ rática,
indispensável da direção da fábrica”. Engrenagem (­ligação),
As relações naturais são aquelas demandadas pelo fun- Função (ser uma  ­função
de), Interagir,
cionamento regular dos seres de natureza industrial. Eles, Necessidade (ter),
portanto, apoiam-se nas qualidades dos objetos já identifi- Condicionar,
Necessária (relação),
cados. Integrar, Organizar,
Controlar, Estabilizar,
Antes de tudo, eles colocam em operação alguns fatores
Ordenar, Prever,
de produção, organizados em estruturas ou sistemas, compos- Implantar, Adaptar,
Detectar, Analisar,
tos de mecanismos ajustados, de engrenagens adaptadas, de Conta (levar em),
interações. As ligações funcionais são estabelecidas no modo Determinar, Evidência
(colocar em), Medir,
do necessário, do requisito. Essas exigências inexoráveis, Formalizar,
indispensáveis, assumem a forma de imperativos que condi- Padronizar,
Otimizar, Resolver,
cionam a ação, devendo-se, portanto, levá-las em conta e por Tratar.

elas se responsabilizar. As próprias pessoas são integradas


em função das competências mais ou menos complexas por
elas exercidas: “Cada nível hierárquico realiza, ele próprio,

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334 Os mundos comuns

o que é impossível delegar ao nível inferior; mas dispõe, em


contrapartida, de ferramentas de controle eficazes”.
As relações funcionais do mundo industrial contribuem
para uma estabilidade temporal propícia à previsão: “A uni-
dade de produção se mostra globalmente como um universo
bastante estabilizado e muito bem controlado”. O ordena-
mento dos seres agenciados em um dispositivo industrial
anda de mãos dadas com uma organização de seu funciona-
mento, com procedimentos de estabilização que, na produção,
passam em particular por operações de armazenamento.
A implantação de um dispositivo industrial supõe uma
administração do ambiente, supõe adaptações, redefinições:
“O programa geral é adaptado para cada campo, cada espaço
particular, e todas as suas fases são redefinidas em função
das características próprias desse campo, com a trama geral
sendo mantida”. A ação industrial demanda uma visão cor-
reta desse espaço no qual se inscreve o problema, de modo
a detectar, descobrir, identificar, colocar em evidência, medir,
analisar, decompor os elementos relevantes. Da mesma forma,
os resultados da ação são apreendidos por seus traços nesse
espaço. Do espaço à classe, o código pavimenta um caminho.
As operações de padronização, de formalização, permitem ver
o mundo por meio de dados expressados em números, em
cifras, prontos para serem tratados, integrados, acumulados.
A descrição dos elementos constitutivos do tempo e
do espaço próprios do mundo industrial torna claro que a
operação de otimização só é possível em um ambiente de
seres dessa natureza. A otimização racional não se encontra
em continuidade com a satisfação imediata de um desejo,
na extensão de uma coordenação mercantil. Na verdade, a
extensão temporal do critério de otimização, que, na teoria
econômica, passa por uma otimização da esperança em rela-
ção à utilidade pretendida, enfrenta as dificuldades próprias
da introdução de irreversibilidades inerentes à decisão de
investimento (Favereau, 1989a).

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A apresentação dos mundos 335

A harmonia da ordem industrial é expressada na or- Organização (figuras)


Sistema.
ganização de um sistema, de uma estrutura na qual cada
ser tem sua função, síntese de um “universo tecnicamente
previsível”: “Não se percebem disfunções pontuais gritantes,
todas as peças da organização se engrenam sem solavan-
cos”. O equilíbrio, contudo, não é estático (o que rapida-
mente conduziria a ordem a uma condição de ultrapassada),
e sim dinâmico; trata-se de um crescimento, uma expansão.
A submissão dessa organização à testagem supõe ve- Teste (comprovação)
Lançamento, Colocação
rificar se as coisas funcionam como esperado, se a solução em funcionamento,
do problema é realista. A decisão tomada, o dispositivo im- Colocação em operação,
Realização.
plementado, o projeto lançado, o mecanismo deslanchado,
julgar-se-á seu bom funcionamento avaliando-se os desempe-
nhos a partir de efeitos induzidos. Será verificado se o funcio-
namento está correto, se tudo está em ordem para começar
a funcionar, se “tudo funciona bem”. Desse funcionamento
pode resultar uma reorganização da hierarquia das funções:
“A qualificação das tarefas evolui no sentido contrário ao da
hierarquia das funções originais. A preparação se desqualifica
progressivamente devido à automação”.
A comprovação é também uma oportunidade para Efetivo (julgamento).
Correto, Em ordem para
revelar novos objetos. Os aparelhos de medição já mencio- começar a funcionar,
nados contribuem para essa evidenciação ao estabelecerem Funcionando.

equivalências espaciais e temporais, operando a colocação


das coisas em séries. Eles permitem o estabelecimento de leis
a partir de frequências e o afastamento da aleatoriedade a
partir de médias. A prova fica assentada em uma regularida- Medida (evidência)

de temporal, sobre a repetição metodologicamente controlada


da medição. Assim, novas causas, novos fatores susceptíveis de
desencadear efeitos são identificados no decurso das situações
de comprovação.
No mundo industrial, a dignidade distintiva da huma- A ação instrumental
(decadência)
nidade está, portanto, ameaçada pelo tratamento das pes- Tratar as pessoas
soas como coisas. A grandeza dos objetos e dos dispositivos como coisas.

criados pode ser confundida com essa dignidade, a ponto de


tornarem confusos, borrados, os limites do que se considera

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336 Os mundos comuns

humano. Privada da comprovação, protegida contra o risco das contingên-


cias que pode colocar em questão a ordem das competências e permitir a
emergência de novos objetos, a grandeza industrial pode se tornar rígida
nessa ordem monumental que costuma ser retratada na crítica à tecnologia.

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QUARTA PARTE

A crítica

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Capítulo 7

O c o n f l i to e n t r e o s m u n d o s

e a c o l o cação d o j u l g a m e n to e m qu e s tão

A r e v e l ação

Ao observarmos a disposição de objetos em um mundo coerente, que


não pode ser pensado, a partir das construções formais da filosofia política,
senão como cité, vimos como os julgamentos poderiam, nas situações de
comprovação, convergir e, com isso, atuar sobre a realidade. Mas, nas com-
provações que analisamos até agora, foram envolvidos apenas seres próprios
de um mesmo mundo. O que ocorre quando pessoas e coisas guiadas por
mundos diferentes se apresentam reunidos diante de uma comprovação? E,
de maneira mais geral, como se estabelece a relação entre diferentes mundos?
A busca de uma resposta satisfatória para essas perguntas nos levará a deixar
para trás o acordo natural para vislumbrar novas figuras. Analisaremos, pri-
meiramente, nas situações de desacordo, as figuras da crítica, e depois disso,
na seção seguinte, a forma particular de chegada ao acordo que chamaremos
de compromisso.
Os problemas colocados pela relação entre os mundos não podem ser
abandonados por meio da associação dos diferentes mundos e das grandezas
a eles relacionadas a diferentes pessoas, culturas ou ambientes, da maneira
como a sociologia clássica trata a relação entre os valores e os grupos. Atrelar
as pessoas aos mundos acabaria por fixá-las em uma forma de grandeza, o
que estaria em contradição com os princípios de justiça sobre os quais se
fundamenta o modelo da cité. Em vez disso, uma das orientações principais de
nossa abordagem consiste em considerar que os seres humanos, diferentemen-
te dos objetos, podem se realizar em diferentes mundos. Trata-se, então, de
estudar a possibilidade de se chegar a acordos justificáveis sob os imperativos
e constrangimentos de uma pluralidade de princípios de concórdia disponí-
veis, sem escapar à dificuldade reconhecendo um relativismo dos valores e

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340 A crítica

atribuindo esses princípios a pessoas ou grupos de pessoas preenchidos por


eles exclusivamente. De fato, essa última possibilidade deixa a questão do
acordo em aberto: se as diferentes pessoas pertencessem a diferentes mun-
dos ou se esses diferentes mundos correspondessem a diferentes grupos, as
pessoas seriam indiferentes umas às outras (como no estado de natureza na
versão de Rousseau) e, com isso, não formariam uma cité, ou, mais que isso,
jamais chegariam a um acordo sobre o princípio superior comum próprio
da situação, e cada comprovação assumiria rapidamente o aspecto de uma
disputa sem fim.
É preciso, portanto, renunciar à associação de mundos a grupos e re-
lacionar a eles apenas dispositivos formados por objetos que qualifiquem as
diferentes situações nas quais se operacionalizam as atividades das pessoas
uma vez que elas valorizem esses objetos. Ora, em uma sociedade com dife-
renciações, toda pessoa tem de enfrentar diariamente situações determinadas
por distintos mundos, saber reconhecê-las e se mostrar capaz de a elas se
ajustar. Pode-se qualificar essas sociedades de “complexas”, no sentido de que
seus membros devam contar com a competência necessária para identificar
a natureza das situações e para atravessar situações próprias de diferentes
mundos. Se os princípios de justiça não forem imediatamente compatíveis, sua
presença em um mesmo espaço induz tensões que devem ser dissolvidas para
que o curso de ação prossiga normalmente. Mesmo o artista mais inspirado
não pode se conduzir em toda e qualquer situação pela inspiração do mo-
mento, devendo, por exemplo, para não ser acusado de louco, comportar-se
na agência do correio como um usuário comum. Da mesma forma, aqueles
cujo universo profissional esteja profundamente imerso em um mundo indus-
trial – com suas oficinas e/ou ateliês, suas salas de estudos ou canteiros de
obras – não estão, apesar disso, fixados de uma vez por todas na natureza
da indústria. Eles devem, mesmo no trabalho, ser capazes de alternar sua
referência de comportamento em situações nas quais são colocados em ação
objetos e grandezas de outro mundo – que poderá ser o da inspiração, para
se tomar um exemplo que parece particularmente incompatível com a ordem
industrial. Algumas formas de resistência da classe trabalhadora (Sabel, 1982;
Lütdke, 1984), que parecem irredutíveis à reivindicação de uma grandeza
propriamente industrial e que se expressam em grandes feitos populares
ou na violência física, constituem, da mesma forma que os exercícios de
mortificação no ascetismo clássico, maneiras de se engrandecer em termos
inerentes à inspiração.

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O conflito entre os mundos e a colocação do julgamento em questão 341

Nosso quadro de análise se distingue, assim, dos paradigmas assentados


sobre a hipótese de uma determinação interior, por meio de um programa
previamente inscrito nas pessoas. Qualquer que fosse a origem desse pro-
grama e seu modo de internalização ou incorporação, ele teria como função
manter a identidade do sujeito, garantindo, por meio de uma espécie de
automatismo, a repetição das condutas que estivessem em harmonia umas
com as outras, independentemente da situação visada. Nosso enquadramen-
to, diferentemente, objetiva preservar certa incerteza a respeito das maneiras
de agir das pessoas, o que nos parece ter necessariamente seu lugar em um
modelo com a intenção de dar conta do comportamento humano. Ainda que
o jogo esteja estritamente limitado pelo dispositivo da situação, um modelo
com vários mundos oferece aos atores a possibilidade de evitar um momen-
to de comprovação e, apoiando-se em um princípio externo, de contestar a
validade ou mesmo de revirar a situação, iniciando uma comprovação válida
em um mundo diferente. Assim, o quadro inclui a possibilidade da crítica, da
qual as construções deterministas não conseguem dar conta.
A fim de esboçar a análise da competência em uma sociedade que
comporta uma pluralidade de princípios de acordo, partiremos de situações
nas quais são valorizados seres pertinentes a mundos diferentes. Por entre
essas situações compostas, examinaremos primeiramente as disputas em que,
diferentemente do ocorrido nos litígios mencionados no capítulo anterior, as
pessoas, recusando o resultado de um processo de comprovação, não se con-
tentam em invocar o efeito das circunstâncias desfavoráveis para demandar
que ele seja cancelado e revisto. A fim de sustentar suas reclamações, elas
chamam atenção para a presença, na situação que lhes foi prejudicial, de seres
não pertencentes ao mundo no qual a comprovação deva ser agenciada para
ser válida. Elas, portanto, procuram destacar os seres de outra natureza, cuja
ingerência na situação introduziria grandezas estranhas à comprovação, que
se encontra, com isso, acometida de nulidade. Essa operação de desvelamento,
de revelação, amplia as possibilidades de desacordo, que, em um modelo de
um mundo único, seriam limitadas pela impossibilidade de produzir argu-
mentos determinados por princípios diferentes daqueles que regem a situação.
Para realizar essa operação de desvelamento, é preciso extrair das cir-
cunstâncias em torno da comprovação os seres não próprios da natureza
presente. Enquanto a validade da comprovação não é contestada, esses seres
permanecem mergulhados na contingência. Eles estão lá, mas sob fraca luz,
sem se tornarem objeto de identificação precisa, como simples “coisinhas”

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342 A crítica

irrelevantes, cuja presença é puramente circunstancial. Portanto, não têm


qualquer efeito na ordem das grandezas entre os seres em presença. Assim, a
foto de família colocada no escritório do chefe é irrelevante na cena em que
ele está diante do empregado que vai demitir. Ela pode permanecer imersa na
contingência e não intervir na negociação em curso – por exemplo sobre a ve-
racidade da falha profissional [que motivará a demissão]. Mas pode também
ser trazida à tona, de modo a fazer surgir um outro mundo e um princípio
de justiça doméstico, cuja consideração pode atenuar o rigor do veredicto:
“Eu também, como o senhor, tenho filhos”. Esse apelo à equidade seria mais
incongruente, mais difícil de fazer passar, se nenhum objeto passível de servir
como operador não estivesse ao alcance. A revelação consiste, portanto, em
extrair as “coisinhas” das circunstâncias e as resgatar da contingência – “Não
é por acaso que...” –, argumentando que elas estão envolvidas na compro-
vação. Elas importam, então, na medida em que são de natureza diferente
e expõem um mundo distinto: a situação tem, assim, a natureza alterada.
As pessoas podem escapar ao domínio da situação e questionar a vali-
dade daquela testagem porque, potencialmente guiáveis por todos os mundos
possíveis, elas são passíveis de se deixar distrair. Associadas a um mundo,
da mesma maneira que os objetos, elas não seriam capazes de identificar de
outra forma as coisas banais e as arrebatar do zum-zum-zum ambiente. Aliás,
esses seres estranhos podem, em maior ou menor grau, representar distrações
e será tão mais fácil capturá-los para os envolver no processo de comprova-
ção quanto mais eles perturbarem, com sua cacofonia, a situação presente.
E mesmo que nenhum objeto de outra natureza esteja ao alcance da
mão, a comprovação pode ainda ser desviada pelas pessoas – isto é, elas
podem dela se distrair – se aplicarem sobre si mesmas as operações neces-
sárias para serem determinadas em conformidade com as exigências de um
mundo exterior. O prefeito, vestindo o paramento que o identifica (pessoa
cívica), o empresário falando de negócios com investidores (pessoa industrial)
e o filho mais velho de uma boa família de raízes na região almoçando com
amigos ou com os pais (pessoa doméstica) compartilham o mesmo corpo e,
igualmente, identificadores que permitem associá-los. Pode-se adotar uma dis-
tância em relação à cerimônia cívica presidida pelo alcaide e revelar o caráter
fraudulento de sua eleição, “arranjada por seus amigos notáveis” para servir
a “interesses privados”, chamando a atenção para o fato de ser “um deles”
aquele que está ali sob a faixa de governante. Mas essa capacidade de ver
as coisas claramente pressupõe que o denunciante tenha ele mesmo mudado

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O conflito entre os mundos e a colocação do julgamento em questão 343

de estado: se ele se manifestar apenas em seu modo cívico (por exemplo,


na condição de integrante do Conselho Municipal), não apontará os sinais
de conivência do prefeito em favor dos poderosos da cidade. Para capturar
a pertinência desses signos e apontar seu valor, ele deverá se dissociar da
comprovação cívica de que toma parte para se reconhecer na natureza do-
méstica, na medida em que é subordinado à pessoa do prefeito por laços de
dependência pessoal, e ouviu falar, por conta de sua condição, de algumas
histórias próprias do domínio privado (definidas, por conta disso, por refe-
rência a um mundo cívico, como mesquinhas, pequenas e inadequadas, ou
até como ilegais e escandalosas). Assim, é tomando como base seu próprio
corpo, valorado em uma outra natureza e em conformidade com um mundo
ausente, que é possível escapar, sem a ajuda de nada ou ninguém, ao processo
de comprovação em andamento, para o analisar e o julgar a partir do exterior.
Analisaremos agora diferentes casos hipotéticos, nos quais o conheci-
mento de outros mundos permite fazer o desacordo se estender até a com-
provação ela mesma. Primeiramente, observaremos casos em que a referência
a outros mundos não objetiva contestar a pertinência da verificação nem o
princípio sobre o qual esta repousa, e sim, em vez disso, procura reforçar
sua validade, purificando as condições para sua realização, que são os únicos
elementos questionados.
Apresentaremos em seguida situações mais radicais, nas quais a presença
de seres de uma natureza diferente é aproveitada para contestar o próprio
princípio da comprovação e para tentar converter a situação, substituindo
a testagem em curso por uma atinente a outro mundo. É apenas nesse úl-
timo caso que o processo de desvelamento é levado a termo. Com efeito,
essa configuração faz com que seja possível combinar dois movimentos: um
primeiro consiste em chamar a atenção para os seres de outra natureza, cuja
presença ocultada degeneraria a comprovação, e consequentemente consiste
em se dissolver o bem comum, denunciando-o como um bem particulariza-
do (o termo revelar, aqui, aparece no sentido de se desmascararem as falsas
aparências); a esse movimento sucede um segundo, que se constitui em fazer
valer o bem comum de outra cité (revelar, desta vez, no sentido de se valo-
rizar uma verdadeira grandeza). Essa inversão é assinalada pelo uso de um
conjunto de locuções capaz de unir o desvelamento da realidade à atualização
de um princípio de determinação mantido até então oculto: “na verdade”, “na
realidade”, “para falar a verdade”, “o que é chamado de”, “aquilo a que

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344 A crítica

damos o nome de” (“aquilo a que damos o nome de realidade”), “não é


senão”, “subjaz”, “subentende-se por”, “sob a forma de”, etc.

As cau s a s d e d i s c ó r d i a e o t r a n s p o rt e d e g r a n d e z a s

Conhecendo vários mundos, as pessoas têm a possibilidade de con-


testar a validade das comprovações às quais estão sujeitas, sem se limitar
a questionar a distribuição das grandezas. O conhecimento desses mundos
permite contestar a validade da comprovação ao se demonstrar que ela é
afetada pela presença de seres de outra natureza ou porque os objetos do
mundo dela próprios estão ausentes. A realização de uma testagem válida
demanda, então, o agenciamento de uma nova situação, depurada, da qual
os seres estranhos tenham sido afastados a fim de ela ser operacionalizada
sem obstáculos. A depuração requer o envolvimento de seres mais claramen-
te identificados com o mundo sobre qual versa a comprovação e que são,
consequentemente, de maior grandeza, como é o caso, por exemplo, quando,
no decurso de uma avaliação cívica, se apela a um magistrado. Assim, por
exemplo, dois viajantes disputam em um trem um lugar que afirmam ambos
terem reservado; a situação está altamente aparelhada: assentos numerados,
bilhetes, regulamentos expostos. Para não chegarem às vias de fato e, com
isso, renunciarem à justiça em favor da força, eles se engajam ainda mais na
natureza cívica, convocando o condutor, apresentando suas passagens, suas
reservas de bilhete, cartões com a indicação de prioridade, etc.
O questionamento da validade da comprovação sempre se baseia no
desvelamento de uma discrepância entre o estado no qual se encontram as
pessoas envolvidas na situação e a natureza dos objetos que devam ser va-
lorizados. Esse questionamento assume duas formas. Pode-se, por um lado,
mostrar que a comprovação é injusta porque os objetos necessários para sua
realização estão ausentes. Nesse caso, ela é considerada válida em princípio,
mas sua aplicação é falaciosa: dir-se-á que se trata de um simulacro de com-
provação. Falaremos nesse caso de invalidação por falta do objeto. Mas é
ainda possível, por outro lado, demonstrar que a comprovação é injusta por
levar em conta objetos determinados por uma natureza diferente. Mais uma
vez, a comprovação é considerada válida em princípio, mas sua realização
deve ser controlada de forma mais estreita para afastar os seres estranhos
capazes de a perturbar. Nesse último caso, duas novas possibilidades se
apresentam. Pode-se, em primeiro lugar, criticar a forma como é estimada

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O conflito entre os mundos e a colocação do julgamento em questão 345

a grandeza das pessoas, ao mostrar que essa avaliação leva em conta sua
capacidade de valorar objetos estranhos ao mundo sobre o qual versa a com-
provação, seja porque elas tenham transportado esses objetos com elas seja
porque eles tenham sido destacados por elas nas circunstâncias – acusação
de transporte de grandeza. Diz-se que as pessoas cujas grandezas foram in-
justamente sobrevalorizadas foram beneficiadas por um “privilégio”. Em uma
segunda possibilidade, inversamente, pode-se demonstrar que o infortúnio
de uma pessoa em outro mundo a seguiu para a situação de comprovação
contra sua vontade e afetou seu desempenho. Diz-se, nesse caso, que a pessoa
não enfrentou a avaliação em condições de justiça satisfatórias, porque ela
sofre de uma “desvantagem” – e se denunciará, desta vez, um transporte de
infortúnio.
Analisemos mais de perto a primeira figura de acusação. Contesta-se a
validade da comprovação porque os objetos a serem valorizados para com-
provar as grandezas são falhos ou estão ausentes. Como o mundo a respeito
do qual se dá a comprovação não está plenamente colocado em prática na
situação, as pessoas não dispõem dos meios de realmente apresentar suas
provas em conformidade com ele e de demonstrar aquilo de que são capa-
zes, na realidade. Essa comprovação enganosa diminui suas grandezas na
comparação com outras pessoas submetidas a um processo de comprovação
agenciado em condições satisfatórias. Consequentemente, é injusto torná-las
responsáveis por seu fracasso, e a comprovação, para que seja conclusiva,
deve ser renovada em condições válidas, isto é, na presença de objetos ade-
quados. Esse é o argumento apresentado quando se julga, por exemplo, que
uma alta taxa de abstenção não deva ser atribuída a uma falta de espírito
democrático dos cidadãos, e sim a uma falha na colocação em prática da
natureza cívica, o que não teria permitido a expressão democrática da so-
berania popular – por exemplo, se o acesso às zonas eleitorais for impedido
ou envolva um risco físico, se o segredo de voto não for respeitado, etc. Ou
ainda quando se demonstra que os maus resultados obtidos pelos quadros
executivos e os engenheiros de um país pobre não resultam de uma incapaci-
dade de agir racionalmente (da qual são acusados), mas do fato de eles serem
lançados em situações de comprovação industrial nas quais, por falha dos
objetos (material de baixa qualidade, falta de informação, etc.), a capacidade
de valorizar o mundo industrial não é realmente oferecida a eles.
Procuremos agora dar conta das acusações do segundo tipo. Para isso,
é necessário que detalhemos um pouco melhor as capacidades atribuídas

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346 A crítica

às pessoas em um modelo de vários mundos. Devemos nos lembrar de que


as pessoas podem estar alternadamente em todos os mundos e também que
são capazes de, a partir de um mundo, experimentar outros (o que oferece a
possibilidade de revelação). Essa propriedade não é uma consequência direta
da primeira e é possível imaginar um universo no qual as pessoas seriam
imersas sucessivamente em situações próprias de diferentes mundos sem ne-
nhum meio de conhecer ao mesmo tempo vários deles e, consequentemente,
sem tomar consciência dessa pluralidade (o que é o caso na histeria). Mas um
universo desse tipo, além de não corresponder à experiência mais regular das
pessoas normais, não oferece nenhum espaço para a descrição. Uma vez que
a validade da comprovação seja questionada, acusam-se as pessoas de terem
se engajado na comprovação em curso sem terem antes disso se desligado
de uma outra, de outra natureza. Essa comprovação não seria justa, porque
as pessoas todas não estão nela envolvidas em estado apropriado, algumas
delas permanecendo habitadas por outra grandeza adquirida. Segue-se que
a distribuição de grandezas entre as pessoas não reflete a importância do
sacrifício que aceitaram fazer. Diz-se, então, que elas se beneficiaram de um
privilégio de aceitação das pessoas. A revelação tem como objetivo expor a
presença desse mundo estrangeiro, não para contestar a pertinência da verifi-
cação, mas para mostrar suas irregularidades e para demandar que a situação
seja esclarecida a fim de assegurar sua renovação em condições de validade
satisfatórias. Para descrever essa forma acusatorial, falaremos de preocupa-
ção: as pessoas são acusadas de se preocuparem com objetos valorizados
em um outro mundo, em vez de estarem engajadas no que estão fazendo no
mundo corrente. E, mantendo-se ocupadas pelas preocupações com outras
grandezas, não estão no estado conveniente à comprovação: elas importam
os seres que as preocupam e que podem ser valorizados por outras pessoas
motivadas pelas mesmas preocupações. Assim, essa figura é a expressão mais
geral do transporte de um mundo para o outro. O transporte de grandeza
e o transporte de infortúnio são denunciados como injustos porque se ba-
seiam na capacidade de anexar a grandeza à pessoa como se ela lhe fosse
consubstancial.
Sublinhemos que essa configuração é sempre controversa. De fato, ela
se baseia em uma interpretação do estado das pessoas que pode dar margem
a contestações. No decurso de uma disputa, a pessoa considerada preocu-
pada com outras coisas pode rejeitar essa acusação, recusando-lhe qualquer
fundamento: por exemplo, o estudante que vem para a prova é rico, mas,

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O conflito entre os mundos e a colocação do julgamento em questão 347

para ter a certeza de sua avaliação, ele não mencionou sua riqueza e o
avaliador não a levou em conta de nenhuma forma. Apenas seus conheci-
mentos teriam sido avaliados. A acusação deverá, para se manter, detectar a
presença de objetos de natureza mercantil, de sinais de riqueza (“coisinhas”
sem importância na lógica de uma avaliação escolar), e demonstrar que eles
foram valorizados pelo estudante para se fazer apreciado. E deverá também
mostrar que o avaliador não se manteve cego a esse transporte de grandeza
(sem o qual não teria seu julgamento afetado) e que ele se deixou distrair
pelos sinais de riqueza aos quais permaneceu atento, sugerindo-se que ele
não estava menos preocupado que o candidato com a presença de objetos
capazes de engrandecer a pessoa em um mundo mercantil. Se ele se ativesse
a seu trabalho na prova escolar, teria permanecido indiferente às vestimentas
caras (grandeza mercantil) e às maneiras elegantes (grandeza doméstica) do
candidato e as teria deixado de fora da avaliação como simples “coisinhas”
irrelevantes. Teria apreciado o valor do aluno com justeza, isto é, levando
em conta apenas suas qualidades no mundo industrial, do trabalho, da re-
gularidade, da competência, etc. A possibilidade de contestar a validade de
uma avaliação, de uma comprovação, tem, assim, a consequência de tornar
a justificação mais exigente e promover uma explicitação do sacrifício con-
sentido que, sem o aguilhão da crítica, poderia ser pressuposto tacitamente.
A crítica, assim, contribui para que os grandes fiquem sabendo que, a respeito
de sua própria grandeza, devem justificá-la para fazer face a acusações cujo
objetivo é desqualificar as comprovações nas quais se destacam.
Mas também é possível se opor ao validamento de uma comprovação
mostrando-se não os benefícios trazidos pelo transporte de grandeza para
os de maior grandeza (privilégios), mas as desvantagens para os de menor.
Estabelece-se, assim, que a comprovação não é pura naquilo em que é afe-
tada pelo infortúnio dos de pequena grandeza em outro mundo, e que esse
transporte de infortúnio tem como resultante a diminuição destes no mundo
corrente (deficiência). É essa figura que está em operação quando são invo-
cadas circunstâncias atenuantes e é declarado equitativo um julgamento que
leve em consideração uma desvantagem: por exemplo, uma funcionária chega
atrasada ao trabalho; a sanção que a atingiria é suspensa quando se toma
conhecimento de que ela cria sozinha uma criança doente. Dir-se-á que seu
superior hierárquico foi justo ou que ele se mostrou “humano” ao levar em
conta essas circunstâncias atenuantes. Mas, no decurso da disputa, essa ava-
liação pode, obviamente, ser contestada, e a indulgência do chefe justo pode

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348 A crítica

ser descrita como “complacência culpada”, “fraqueza” e “covardia”; pode ser


chamada de “favoritismo”, isto é, ser denunciada como a manifestação injusta
(uma vez que afeta os resultados da comprovação) de um interesse particular
do chefe pela funcionária e que deverá, para ser aceita, expor a presença de
objetos de natureza doméstica, como um laço de parentesco ou vizinhança.
No transporte de infortúnio, as coisas de outra natureza que dificultam a va-
loração dos objetos do mundo em voga são tratadas como um fardo pesando
sobre as pessoas. O julgamento equitativo leva em conta esse peso das coisas
na avaliação do sacrifício aceito. Busca-se, então, neutralizar seus efeitos por
uma compensação capaz de levar em conta a desvantagem. Para reparar a
injustiça e “dar uma oportunidade” ao desfavorecido, propõe-se, assim, aliviar
o peso das coisas por um dispositivo de correção (redistribuição, educação
compensatória, etc.). Nesse caso, como no caso do transporte de grandeza,
a disputa pode ser suspensa e a concórdia, restaurada pelo agenciamento de
uma comprovação mais depurada, que será, por conta disso, considerada
mais justa. A firmeza em relação aos grandes e a indulgência para com os
pequenos esmaga, dessa maneira, a escala de grandeza e deixa sobreviver
apenas a menor distância possível entre os de maior e os de menor grandeza.
A convergência dos julgamentos a respeito dessa mínima diferença, tratada
como natural, é própria à equidade.

A c o n t rov é r s i a e a d e n ú n c i a

Nos casos analisados até agora, a disputa dizia respeito à questão de


se saber se a comprovação era pura e, portanto, sobre a necessidade ou não
de a esclarecer. O mundo colocado em prática na situação, no entanto, não
era questionado. Mas pode ser. A impossibilidade de se chegar a um acordo
sobre a forma de agenciar um processo válido de comprovação conduz à con-
frontação entre dois mundos, o que abre a possibilidade de esclarecer a testagem
em algum deles. Considerando que a chegada a uma condição de acordo se
baseia na realização de uma nova verificação reconhecida como válida, tudo
aquilo que se opõe a sua renovação (por exemplo, quando o validamento da
comprovação está atrelado à pessoa) ou a sua depuração alimenta a persistên-
cia da discórdia. A parte que se considera desfavorecida ganha legitimidade
para promover uma contestação se puder demonstrar que a reparação da
injustiça, por meio de um novo processo de comprovação, não pode ocorrer.
Essa persistência da discórdia conduz, então, a uma nova etapa, na qual a

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O conflito entre os mundos e a colocação do julgamento em questão 349

contestação mira a própria realidade do bem comum sobre a qual repousa


a legitimidade da comprovação. O desacordo, então, diz respeito não apenas
ao resultado da verificação e à distribuição dos estados de grandeza, mas
também ao princípio que deve reger sua realização e ao mundo no qual a
comprovação deve ser agenciada para ser conclusiva.
Na controvérsia assim instaurada, a disputa não terá como objeto ape-
nas a relação entre a importância do sacrifício e a distribuição de grandezas.
A contestação da relação entre o sacrifício aceito pela pessoa e o estado de
grandeza ao qual ela acede – os de maior grandeza não merecem o lugar que
ocupam porque se beneficiaram de um privilégio e não fizeram verdadeira-
mente o sacrifício que invocam para justificar sua posição – é acompanhada
por um questionamento da afirmação de que o bem instaurado seja comum,
condição denunciada como mera autossatisfação, por oposição a outros
princípios de justificação: os grandes não produzem o bem comum, e sim
seu próprio benefício; sua riqueza não é condição do bem-estar de todos,
serve apenas a seu próprio bem; o trabalho que realizam não é útil para
o bem coletivo, está a serviço de sua vaidade ou ambição pessoal, etc. Na
controvérsia, o desacordo dirá respeito, então, não apenas à grandeza dos seres
envolvidos, mas à própria identificação dos seres que importam e dos seres sem
importância e, com isso, à verdadeira natureza da situação, à realidade e ao
bem comum a que se pode fazer referência para realizar um acordo. Assim,
o objetivo não será mais refazer o processo de comprovação de modo que
ele se torne mais puro e justo, eliminando os privilégios e neutralizando as
desvantagens, e sim desmistificar a comprovação como tal, a fim de se si-
tuarem as coisas em seus verdadeiros lugares e de se estabelecer uma outra
comprovação, válida em um mundo diferente.
Esse desenvolvimento da disputa para a forma de uma controvérsia
sobre a natureza mesma do bem comum pode ser promovido com base nas
operações que visam questionar a pureza da comprovação. Com efeito, vimos
que, para contestar a validade desse processo e mostrar que ele é afetado pela
presença de seres estranhos a sua verdadeira natureza, é preciso revelar a pre-
sença desses seres, simples “coisinhas” para cuja importância se chama a atenção
a fim de as denunciar, e que são trazidos à tona e identificados para se exigir
seu afastamento. Mas a partir do momento em que uma das partes envolvidas
as levantou, ao colocá-las diante de uma outra forma de bem comum, essas
coisas desimportantes não podem mais ser deixadas de lado. É preciso, dessa
maneira, ou as reverter ao mundo atual – no qual são de pequena grandeza,

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350 A crítica

qualificando-as por meio dos termos utilizados para designar os seres mais
desafortunados – ou levar em conta sua grandeza, de modo que a situação,
dessa forma, seja revertida. É essa operação – segundo a qual se demonstra
que os autoapontados grandes não são senão pequenos do mundo em curso –,
correspondente à primeira etapa da revelação (a falsa grandeza oculta um
infortúnio), que chamaremos crítica. Ela é articulada por operadores como:
“Na verdade”, “na realidade”, “são apenas”, etc. A controvérsia, na qual
vários princípios de justiça incompatíveis podem concorrer entre si, comporta,
assim, a possibilidade de várias comprovações. Por exemplo, a disputa sobre
a “competitividade dos serviços públicos” pode ser apontada para dois tipos
de verificação, um de natureza cívica, outro de natureza mercantil. As partes
presentes discordam sobre o mundo no qual essa avaliação deve ser realiza-
da para ser legítima. Portanto, esse tipo de situação é necessariamente um
momento instável da disputa. Diante do caixa do supermercado, a referência
a um direito, para todos, de igual acesso aos bens pode apenas perverter
uma comprovação mercantil como roubo; na fila do guichê da agência dos
correios, a justiça do atendimento do serviço público não pode senão ser
corrompida se houver alguma referência ao poder de compra do usuário a
sugerir alguma prioridade. Com efeito, para resolver a situação controversa, é
preciso revertê-la na direção de uma comprovação única, seja revendo a situa-
ção para fazer com que ela se converta a outra natureza, o que é objetivado
pela crítica – por exemplo, o suposto “público” não é senão a justaposição
de clientes dotados de interesses, ou, simetricamente, o suposto “cliente” é,
na verdade, um cidadão com direito a um serviço público aberto a todos –,
seja afastando as coisas insignificantes sobre as quais a revelação se apoiaria,
a fim de assentar novamente a comprovação em seu mundo original. Assim,
esse desvelamento pode também servir para descartar os perturbadores ob-
jetos de natureza estranha e para restaurar as condições de um processo de
comprovação sobre o qual os julgamentos possam convergir.
O caráter mais ou menos explícito da crítica depende do nível da
disputa. Enquanto ela permanecer limitada, as denúncias podem não ser
completamente esclarecidas por referência a um princípio e se manifestarem.
Por exemplo, as manobras de desengajamento, como a ironia, a hipérbole
ou o eufemismo, que, por meio da inversão, do aumento ou da diminuição
exagerados das grandezas, lançam descrédito sobre o princípio de avaliação
operante no momento, abrem a possibilidade de uma referência a grande-
zas alternativas. Isso se aplica mesmo às “manifestações de humildade”

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O conflito entre os mundos e a colocação do julgamento em questão 351

(compromisso aberrante entre inspiração e opinião que é notado apenas de


modo crítico, como quando se fala de “humildade ostentatória”) ou ainda
à depreciação de si próprio. Essas figuras são esboços de crítica. Com efeito,
a autodepreciação consiste em se carregar de atributos que, por referência a
outras formas de estabelecer a grandeza, qualificam o que é pequeno, aquilo
que permite criticar as grandezas das quais as pessoas se declaram desprovi-
das; aqui, essencialmente, o renome e a riqueza.1 De fato, em uma situação
natural, ninguém se vangloria de ser pequeno. Ninguém pode, sem perder sua
dignidade, reivindicar precedência com base em defeitos que o diminuam no
mundo em que se encontra envolvido. Glorificar o próprio erro pressupõe,
então, necessariamente o suporte de um ponto de apoio externo. E, uma
vez que essa “inversão do olhar que estabelece valores” (Nietzsche, 1971,
p. 234)* permaneça implícita, está-se na presença do que Friedrich Nietzsche
denunciou como “ressentimento”. Mas o simples fato de não se adequar à
situação, de não se entregar a ela naturalmente, de a avaliar do lado de fora,
recusando-se a nela se engajar com os outros, mantendo-se lá, como estranho,
é uma crítica em ato (categoria à qual pertencem os gestos inspirados), que,
revelando o caráter falacioso da situação, lança sobre ela a perturbação e
o desconforto. Por exemplo, uma festa entre colegas, um drinque por oca-
sião de uma despedida, demanda dos participantes uma mudança de estado
para abandonar as grandezas industriais e endossar grandezas domésticas,
mudança por vezes difícil de realizar se for agenciada no ambiente, no local
de trabalho: alguns se recusarão a beber, a fazer brincadeiras ou a dançar e
preferirão se retirar para um canto, falar de trabalho ou avaliar toda a cena
com um olhar ausente de idiota inspirado.

A m o n s t ru o s i da d e d o ag e n c i a m e n to c o m p o s to

Uma vez que a crítica seja sustentada pela presença de seres de um outro
mundo, a possibilidade de dela se lançar mão depende da maneira como a
situação foi agenciada. São particularmente adequadas as situações de dis-
túrbio, cujo agenciamento composto coloca à disposição das pessoas coisas
próprias de diferentes mundos suscetíveis de serem envolvidas na comprovação.
A ambiguidade dos conjuntos compostos suscita entre os participantes um

* Conforme tradução de Paulo César de Souza publicada pela editora Companhia das
Letras. (N. do T.)

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352 A crítica

sentimento de embaraço e preocupação quando estão implicados em uma


verificação. Eles devem selecionar objetos entre recursos variados oferecidos
pela situação e os associar, a fim de tentar obter alguma coerência e impedir
a situação de se desfazer. Mas a coexistência de objetos de naturezas distintas
produz vários conjuntos igualmente possíveis e cria uma incerteza sobre a
natureza da comprovação em curso e, particularmente, sobre o estado em
que se encontram as pessoas. Cada participante apresenta um caráter turvo:
há nele algo de confuso, e seu compromisso com várias naturezas pode ser
denunciado a qualquer momento. Tomemos, por exemplo, o caso de uma
comissão oficial encarregada de julgar projetos. Apenas um pequeno con-
tingente deles será selecionado. O dispositivo compreende elementos cívicos
(a cena tem lugar em um ministério) e instrumentos de medição próprios
da natureza industrial (viabilidade e utilidade do trabalho proposto) e da
natureza mercantil (custo do projeto). Mas as grandezas da opinião (os en-
volvidos são pessoas conhecidas?) e da inspiração (são projetos oriundos de
mentes talentosas, são imaginativos?) intervêm incessantemente nas reuniões
da comissão, cujos membros se conhecem pessoalmente, tratam-se informal-
mente e falam dos mais variados assuntos, o que direciona a situação para
uma comprovação doméstica.
Para explicitar os incongruentes conjuntos formados por seres de vários
mundos, pode-se observá-los diretamente ou os extrair de relatos das pessoas
sobre situações incômodas, nas quais se sentiram desconfortáveis. Essas ce-
nas, armazenadas sob a forma de histórias típicas que as tornam facilmente
acessíveis, são boas para serem contadas. Sua pregnância e o interesse por
elas suscitado se devem não apenas às emoções que provocam, mas também a
sua capacidade de lidar, de forma estilizada, com as tensões entre os mundos
que, em diferentes versões, podem ser abordados por diferentes pessoas, cuja
experiência, assim, é partilhada. Mas é também possível se buscar reconsti-
tuir artificialmente essas cenas, por meio da combinação de pessoas, objetos
e relações próprias de diferentes mundos. Essas construções artificiais têm,
de forma ainda mais intensa que as marcantes anedotas da vida cotidiana,
o poder de interpelar e revelar o sentido cotidiano da justeza. Assim, por
exemplo, a mera permutação entre formas de relação e objetos próprios de
dois mundos diferentes é suficiente para gerar monstros, criaturas híbridas:
oferecer (doméstico) um folheto (cívico) aos trabalhadores; distribuir (cívico)
buquês (doméstico) a seus avós (doméstico). A permutação introduz uma
discordância entre as grandezas: o militante que oferece folhetos como se

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O conflito entre os mundos e a colocação do julgamento em questão 353

fossem objetos pessoais não representa mais o interesse geral; a criança que
distribui buquês como objetos anônimos falta com respeito a seus avós. Para
construir essas quimeras – como dizem os biólogos para designar os seres
sintéticos criados em laboratório –, utilizaremos os inventários estabelecidos
para descrever cada mundo. Podemos, assim, reconstruir os relatos de cenas
compostas e medir a que ponto esses enunciados desconcertantes nos afastam
da evidente plenitude sentida diante da leitura dos quadros que nos condu-
ziram ao coração de cada um dos mundos.
Tomemos, por exemplo, as situações seguintes, a respeito das quais
concordaremos, intuitivamente, em haver algo de incongruente ou incômodo:
– O pai, para atrair a atenção dos filhos, faz, em casa, uma apresenta-
ção típica de branding, expondo positivamente sua capacidade de gerenciar
um objetivo;
– O secretário administrativo da seção sindical faz abruptamente uma
aparição na tribuna do congresso da entidade, onde toma a palavra pas-
sionalmente e liberta sua imaginação, fazendo jogos de palavras insólitos e,
finalmente, questionando a si mesmo;
– O operador de um equipamento oferece um presente ao perito que
veio a seu setor medir a capacidade de produção da máquina da qual é
responsável e lhe pede uma recomendação para seu filho, um profissional de
tecnologia da informação muito bem formado, mas desempregado.
Essas três pequenas cenas, compostas pela colagem de elementos extraí-
dos da descrição dos mundos, oferecem cada uma a imagem de uma situação
perturbadora, desconfortável para os atores, que nela não podem estar à
vontade. A primeira combina elementos emprestados ao mundo doméstico
(um pai e seus filhos), ao mundo da opinião (atrair a atenção, apresentar uma
boa imagem) e, finalmente, ao mundo industrial (capacidade para gerir um
objetivo). Por que ela é incômoda? Atrair a atenção ou garantir uma ação de
branding sobre si próprio não são o tipo de relação que um pai deva man-
ter com suas crianças. Em relação a seus filhos, ele deve preferencialmente
apresentar provas de autoridade e consideração (mundo doméstico), e não
se apresentar a eles como um ator diante de seu público. Atrair a atenção é
uma conduta que, no mundo doméstico, qualifica os de menor grandeza: as
crianças, quando são mal-educadas, chamam a atenção. Além disso, um pai
não fala em casa, em família, de seu trabalho e de suas habilidades profis-
sionais nos termos próprios também do mundo industrial, com a finalidade
de se engrandecer aos olhos de seus entes próximos (o que sugeriria que ele

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354 A crítica

deve estar muito diminuído do ponto de vista da grandeza doméstica para


buscar se elevar por meio de um transporte de grandeza tão incongruente).
A comprovação ambígua não é ajustada a nenhum dos mundos dos quais
são próprios os seres presentes na cena.
O segundo momento, não menos incômodo, mas mais próximo daqueles
apresentados em obras de ficção, reúne elementos próprios do mundo cívico
(secretário, escritório, seção sindical, tribuna, congresso de categoria, o ato
de tomar a palavra) e ao mundo inspirado (aparição, paixão, imaginação,
jogos de palavras, anormalidade, questionar-se a si mesmo). O representante
da pessoa coletiva se expõe em público no que tem de singular. Essa conduta,
que seria classificada como indecente na natureza doméstica é, nesse caso,
propriamente escandalosa. Como é frequentemente o caso quando o agencia-
mento composto compreende muitos elementos de natureza inspirada, essa
cena evoca o que se poderia chamar de “um momento de loucura”.
Na terceira cena, elementos do mundo doméstico (oferecer um presen-
te, solicitar uma recomendação, filho, boa formação) são inseridos em uma
situação industrial (operador, setor, perito, capacidade de produção, máqui-
na, profissional de TI, desemprego), e a responsabilidade poderá se mostrar
própria igualmente dos dois mundos.
Em cada uma dessas cenas, que se abrem para vários tipos de compro-
vação, podem-se imaginar diferentes desfechos visando ao esclarecimento em
um mundo apenas. Os filhos, na primeira história, procuram, por seu turno,
chamar a atenção de seu pai, falando mais alto que ele e se vangloriando de
conhecer as estrelas da música pop (esclarecimento no mundo da opinião),
ou, em vez disso, envergonhados pela atitude inoportuna e constrangedora do
progenitor, respeitosamente manifestam sua desaprovação e sua tristeza por
meio do silêncio (esclarecimento doméstico). O estranho secretário da seção
sindical pode ser removido da tribuna, afastado de seu cargo e expulso da
organização por sua conduta particularista e irregular. Com isso, o congresso
da categoria retomará seu curso normal (esclarecimento cívico). Mas isso
também poderia conduzir à adesão da assembleia a um grande movimen-
to de inflamação e espontaneidade, levando cada um a liberar em público
sua experiência vivida (esclarecimento inspirado). Finalmente, o especialista
pode recusar o presente e se mostrar interessado apenas nas capacidades do
equipamento (esclarecimento industrial). Mas ele pode, da mesma forma,
abandonar suas atividades de medição para corresponder às preocupações
de seu amigo e oferecer ao filho deste, cuja excelente formação ele conhece,

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O conflito entre os mundos e a colocação do julgamento em questão 355

toda a atenção, e a cena se encerrar, com isso, em um café ou em casa (es-


clarecimento doméstico).

O ag e n c i a m e n to da s s i t uaç õ e s e s táv e i s

Podemos tentar prevenir o aparecimento de controvérsias agenciando


situações estáveis, situações que se sustentem: a cena preparada com vistas a
um processo de comprovação deverá poder ser coerente em um único mundo.
Para garantir a boa condução das situações, não podemos confiar inteiramen-
te nas pessoas, uma vez que elas têm a capacidade de mudar de natureza e
de se manifestarem em distintos mundos. Deve-se, portanto, estabelecer um
arranjo, um dispositivo composto de objetos naturais a permitir estabilizar
as pessoas, relacionando-as ao mundo posto em prática na situação. Esse
trabalho de preparação com o fim de controlar as circunstâncias, afastando­
‑se os seres suscetíveis de perturbar a situação, é particularmente claro em
situações explicitamente orientadas para o julgamento: exames, processos,
audiências, etc. Mas ele se manifesta também, em diferentes graus, em todos
os engajamentos cujas consequências sejam consideradas particularmente
importantes e cuja legitimidade deva ser impecável.
No entanto, mesmo nas situações mais bem preparadas, os seres estra-
nhos não podem ser todos postos de lado, de modo que sua boa condução
requer sempre uma intervenção ativa das pessoas para permanecer no estado
de espírito conveniente. A coerência da comprovação depende também das
disposições de espírito ativadas nas pessoas pelos recursos da situação. Elas
são necessárias para a identificação correta dos seres potencialmente próprios
de vários mundos (como a “reputação”, que, em diferentes acepções, pode
ingressar em agenciamentos domésticos ou assumir a natureza da opinião) e
para os fazer pivotar para aquele que melhor convier à situação. Uma forma
de absorver os seres orientados para outro mundo, não passíveis de serem
afastados e nos quais pode se basear uma revelação consiste em os reconduzir
ao mundo ajustado à situação ao custo de uma tradução que os identifique
como pequenos: os professores que promovem uma manifestação no dia da
visita dos avaliadores do Ministério ou da Secretaria de Educação não passam
de preguiçosos e incompetentes. O agenciamento de uma situação em um
mundo é frequentemente acompanhado da crítica aos seres suscetíveis de se-
rem grandes em outros mundos. Assim, por exemplo, nos manuais utilizados
no capítulo anterior para assentar o quadro das diferentes ordens de grandeza

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356 A crítica

praticamente fundadas, e que estão ligadas não apenas a ensinar como se


comportar em cada uma delas, mas ainda a como as sustentar e as defender
contra o exterior, a crítica tem como função estabelecer equivalências entre
os grandes de outros mundos e os pequenos do mundo valorizado: aquele
ser considerado “efervescente” no mundo inspirado é, no mundo doméstico,
interpretado como “fervente, a ponto de explodir”.2
Porém, nem mesmo as situações mais puras estão completamente pro-
tegidas contra a denúncia. Muitas vezes, há ainda uma verdadeira babel de
objetos estranhos, um universo de pernas para o ar produzido por ruídos
impertinentes, dos quais se pode tirar proveito para se dissociar do presente.
Na ausência de objetos próprios de outra natureza, alguém pode sempre se
arrancar do momento atual por suas próprias forças: como os seres humanos
participam de todos os mundos, eles podem alterar a natureza de uma situa-
ção sem se basear em objetos externos, com a condição de nela se engajar
na medida em que se mostrem pertencentes a uma diferente natureza. Essas
denúncias concentradas na pessoa e que, na ausência daqueles recursos ex-
ternos, se consumam muitas vezes por uma torção para um estado próprio
da natureza inspirada são tão mais explícitas quanto mais disparatadas – isto
é, quanto o procedimento por elas colocado em prática seja estranho à na-
tureza da comprovação em curso: por exemplo, ao se interromper o trabalho
de uma comissão para se lançarem ideias inusitadas para tirar o país da crise,
ou ainda ao se escrever para o presidente da República para se queixar das
malversações de um vizinho. Entretanto, elas são também particularmente
perigosas para aqueles que as executam e que, impelidos a nelas se engaja-
rem plenamente e sem possibilidade de retorno, arriscam-se a ser acusados
de loucura e a se perder, ao mesmo tempo que se decompõe a situação co-
locada em questão por seus atos. Assim, na falta de objetos sobre os quais
se apoiar, é necessário que aquele que pretenda reverter a situação por si
próprio recolha em sua pessoa a natureza na direção da qual deseja pivotar
a comprovação e, por um ato próprio, torne presente o princípio superior
comum. Ele, com isso, atira-se de cabeça em um empreendimento de denún-
cia, cujo risco corporal contribui para fundamentar a autenticidade, como se
viu no caso do martírio. A grandeza de referência, então, confunde‑se com
a grandeza de pessoa, que se apresenta como a medida de todas as coisas,
com essa “loucura das grandezas” podendo constituir a derradeira forma de
abalar o que se mantém estável.

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O conflito entre os mundos e a colocação do julgamento em questão 357

Assim, por exemplo, um espectador de um concerto apresentado em


Paris por um maestro vindo de um local no qual os direitos humanos não
sejam respeitados interrompe a execução de uma obra para, saltando no
palco, exigir a libertação de um prisioneiro político. Ele se lança em pes-
soa, como cidadão defensor de uma causa coletiva, em uma operação de
esclarecimento (“Na verdade...”), com o objetivo de revelar o que realmente
importa – o sofrimento do prisioneiro – e de lançar a música no plano da
contingência: aquele concerto não deve ser determinado pelo julgamento ar-
tístico; sob o abrigo da manifestação da arte, os espectadores encobrem, “na
verdade”, uma manobra de propaganda política. A denúncia pretende fazer
o público tomar consciência sobre o “real” significado de sua participação
no espetáculo, a convertê-lo, isto é, tomar aquilo que era uma audiência,
existente na natureza da opinião (e lançada a esse lugar pelo renome do
maestro), e a transformar em uma opinião pública, algo próprio da natureza
cívica e capaz de se manifestar, nessa condição, sob a forma de uma coletividade
solidária. Mas quem empreende essa conversão por si só, tendo como único
recurso suas palavras, sua voz, seu corpo, sua convicção, não tem nenhuma
garantia contra o fracasso de sua empreitada, passível de ser desqualificada
como incongruente, até mesmo como insana. E poderá ser de outra forma
se a situação comportar seres passíveis de ser identificados em uma natureza
cívica; no exemplo citado, a presença de personalidades oficiais ou a menção,
no programa, à celebração de uma efeméride, de um acordo cultural, etc.
O ato de esclarecimento consumado solitariamente implica um compromisso
de toda a pessoa, com sua convicção e sua paixão pela verdade. Ele conta
sempre, então, com um componente inspirado. E será um movimento fada-
do ao fracasso se não for imediatamente apoiado por outros com a mesma
intenção e, especialmente, por um aparelhamento suficientemente penetrante
para despertar no público perplexo uma mudança de estado: espectadores
(opinião), que se revelam militantes (cívico), brandem faixas, repetem, a partir
do balcão, as mesmas palavras de ordem, etc. No entanto, a possibilidade
de conseguir distrair os presentes e converter a situação para submetê-la a
uma exigência de solidariedade coletiva depende também do estado em que
as pessoas se encontram. Ela será tanto maior quanto mais as pessoas sigam
habitadas pela permanência de uma situação anterior, determinada por uma
outra natureza, da qual não possam se dissociar e que as preocupe. As pes-
soas preocupadas, que no momento não estejam fazendo algo que as interesse
especialmente e que permaneçam atreladas à ideia de trazer à tona uma

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358 A crítica

diferente natureza, podem ser facilmente distraídas, se se altera a natureza da


situação, direcionando-a para suas preocupações.3 Assim, ainda na história
do concerto, os agitadores poderão mais facilmente converter a situação se
os presentes não estiverem totalmente entregues ao prazer da música, se estes
não estiverem concentrados no que fazem e permanecerem mobilizados com
a presença entre eles de um estado correspondente a um outro engajamento,
como seria o caso, por exemplo, se, em um momento de agitação política, a
rua estivesse ocupada por manifestantes.

A h u m a n i da d e d e u m j u l g a m e n to e qu i tat i vo

A possibilidade de se libertar do domínio da situação pode conduzir


tanto à iniquidade (por intermédio do transporte de grandeza) quanto a um
julgamento equitativo que denuncie a intervenção de grandezas estranhas à
natureza da comprovação. Um julgamento é considerado equitativo, justo,
uma vez que leve em conta a existência de mundos exteriores à essa nature-
za utilizada na verificação. Apenas um julgamento que vise a pessoas pode
ser descrito como equitativo. Os julgamentos “humanos”, inspirados pela
prudência, opõem-se aos veredictos “não humanos”, derivados da aplicação
estrita de uma regra de justiça. Eles levam em conta propriedades que, no
modelo da cité, caracterizam os seres humanos, isto é, sua igual possibilidade,
diante da situação de comprovação, de estar no poder em todos os estados de
grandeza, e sua igual possibilidade de participar de todos os mundos. É por
colocar em ação essa possibilidade que as pessoas manifestam sua dignida-
de. Isso é visto, por exemplo, no caso dos de pequena grandeza que, uma
vez que a comprovação lhes é sempre desfavorável – o que se aproxima de
um modelo no qual os estados de grandeza estariam atrelados às pessoas –,
podem escapar ao desespero ao contestarem a pertinência da comprovação,
evitando a tomada da situação pela distração, pela ironia, pela zombaria ou
pela balbúrdia que ridicularizam e relativizam a importância dos de maior
grandeza. No entanto, essa possibilidade não pode ser tomada como dada.
Mesmo que seu engajamento seja mais incerto que o dos grandes, os pequenos
não podem se abstrair sem o custo dos momentos privilegiados nos quais se
beneficiam do pertencimento à cité e da parcela do bem comum que sobre
eles se espraia. Engajados em uma situação natural, eles não podem, por ou-
tro lado, ponderar por meio de um cálculo de interesse entre seu infortúnio

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O conflito entre os mundos e a colocação do julgamento em questão 359

presente e os benefícios que poderia lhes conferir uma conversão da situação.


De fato, não existe uma posição de proeminência, exterior e superior a cada
mundo, a partir da qual a pluralidade de justiças possa ser analisada do alto,
como um inventário de escolhas possíveis.
A capacidade de escapar à ditadura da situação não é menos necessária
aos de maior grandeza, que, para se tornarem humanos, devem também se
provar capazes de abertura, de se desfazer da verdadeira ganga que os pren-
de por os associar às situações de comprovação nas quais se manifesta sua
grandeza. Um grande deve se dedicar ao que faz sem se deixar distrair pelas
circunstâncias. Ele persegue o que deve realizar, uma tarefa, um discurso, etc.
e é o último a ouvir o ruído vindo de fora, a erguer a cabeça na direção das
janelas para se inquietar com o tumulto exterior. Daquele que, por exemplo,
sob os efeitos do luto, se entrega completamente à tarefa do momento, sem
preocupação ou distúrbio, diz-se que é senhor de si mesmo. Mas pode ser
também que esse controle tenha algo de inumano. Como um mecanismo que
se recoloca em operação, ele é reativado, ficando imediatamente confortável
no mundo que convém à situação. Assim, à eterna fuga à externalidade dos
mundos alternativos que ameaça a tentativa de aliviar, por meio de uma
crítica contínua, o peso de um infortúnio repetido, correspondem a petrifi-
cação em uma grandeza que se fixa e a identificação com a série de objetos
do mundo atual.

O livre-arbítrio: saber fechar e abrir os olhos

É preciso levar em conta a faculdade de se dissociar da situação e se


furtar à comprovação para completar o modelo de competências já esboçado
e construir aquilo que, em um modelo de vários mundos, pode ser descrito
como uma prudência, uma sabedoria prática. É por meio da atenção à plu-
ralidade que essa prudência se distingue das formas de justiça que figuram
nas filosofias políticas a partir das quais fizemos uma primeira análise dos
diferentes princípios de equivalência. Com efeito, em um mundo único, no
qual, na ausência de um ponto de apoio externo, as pessoas adeririam àquilo
com que se encontram comprometidas, sem possibilidade de dissociação, a
prudência seria inútil. Como diz Santo Agostinho, citando Cícero, nas “ilhas
dos venturosos, como contam as fábulas, para que serviria [...] a prudên-
cia? Seríamos, portanto, felizes apenas com o conhecimento da natureza,
pela ciência, o único que torna louvável a vida dos próprios deuses” (Santo

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360 A crítica

Agostinho, 1955, XIV, IX, 12, v. 16, p. 379 apud Aubenque, 1963, p. 73).*
Uma justiça de vários mundos pressupõe, então, o livre-arbítrio de pessoas,
capazes, sucessivamente, de fechar os olhos (para se dedicar ao que estão
fazendo nas situações nas quais estão imersas, resistir à distração e se engajar
nos processos de comprovação que essas situações lhes configuram) e de abrir
os olhos (para contestar a validade da comprovação e, escapando da ditadura
da situação, distinguir os seres próprios de outros mundos).
As pessoas incapazes de mergulhar na plenitude das situações não po-
dem nem permanecer paradas nem se engajar. As “coisinhas” sem importância
se tornam explícitas por si próprias sem que sejam destacados os objetos que
a comprovação deve valorar. Elas não podem deixá-las de lado. Sua vigilância
está sempre alerta e elas ignoram a maneira de lá estar sem denunciar o que
as rodeia. Estão impedidas de se realizar por meio da identificação com aque-
les momentos privilegiados nos quais cada um dos mundos, colocando em
ação a grandeza que lhe seja própria, se permite ser escrutinado por aqueles
que sabem mergulhar na cena e afastar de si qualquer outra preocupação
para estarem totalmente presentes no que fazem. Esse estado de vigilância
se manifesta especialmente quando as pessoas se encontram associadas a
um mundo no qual se sintam confortáveis mas que, por uma dada situação,
possa lhes trazer problemas. Esses “personagens”, considerados “completos
demais”, para os quais nada ocorre por acaso, ignoram as circunstâncias e
revelam, em qualquer situação, o resultado oculto das mesmas causas sub-
jacentes. Sua preocupação fixada em uma mesma natureza os absorve e os
torna consistentes com a imagem muitas vezes conferida aos seres humanos
pelas teorias da personalidade.
No entanto, a capacidade de saber o que é importante por meio da
comprovação da autenticidade das situações puras não é tudo. Para contestar
a validade da testagem e denunciar sua injustiça, as pessoas devem também
ser capazes de escapar à ditadura da situação para obter conhecimento por
meio de um juízo crítico, isto é, abrindo os olhos para outros mundos e para
os seres que garantam sua presença. Por meio desse descerramento, que traz
à luz o que não tinha até então sido objeto de atenção, as pessoas prudentes
podem se instaurar como juízes do que realmente importa e dizerem do que
é feita a realidade das coisas. Ao colocarem em operação sua capacidade de

* Conforme tradução de frei Agustino Belmonte publicada pela editora Paulus. (N. do T.)

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O conflito entre os mundos e a colocação do julgamento em questão 361

abrir e de fechar os olhos, as pessoas efetivam seu livre-arbítrio. Esse co-


nhecimento é posto à prova nos grandes momentos nos quais cada mundo
é colocado em ação de maneira especialmente pura, como, por exemplo, em
cerimônias, na forma de uma vertigem, de uma atração irresistível por uma ruptura
que extraia a pessoa da plenitude do momento, como um lapso, uma gafe, uma
risada descontrolada.
Mas a capacidade de abrir e fechar os olhos, de se deixar ser tomado
pela natureza da situação ou de dela se furtar, não é manifestada apenas na
crítica. Ela está igualmente em operação sempre que as pessoas precisam
realizar a transição entre situações próprias de diferentes mundos, o que,
em uma sociedade complexa a comportar variados agenciamentos, a torna
indispensável para a condução normal da vida cotidiana. Por outro lado, a
passagem de um estado natural a outro não pode ser concebida como um
mero efeito mecânico da situação. Ela não é inteiramente determinada por
esta e exige das pessoas um trabalho para apagar os traços, na memória e
no corpo, nos pensamentos e nas emoções, do que foi colocado à prova na
situação precedente. Então, diz-se, para se desculpar alguém que não conse-
guiu negociar essa passagem, por exemplo, em seguida a um difícil processo
de comprovação, que ele não retornou a seu estado normal, que permane-
ceu agitado, que é preciso lhe dar tempo para se recuperar, etc. A arte de
administrar uma passagem entre duas situações se manifesta, por exemplo,
nos comportamentos antecipadores, que vão da sensibilidade aos sinais que
prenunciam uma modificação dos recursos em uso a manobras destinadas a
preparar uma mudança no humor dos presentes por meio da introdução de
outros recursos, passando pela premonição de manobras previsíveis da parte
dos outros. Assim, podem-se ativar os subsídios do mundo doméstico no de-
curso de uma reunião agenciada em um mundo cívico, por exemplo, indo-se
apertar a mão do presidente, renovando-se as relações pessoais com outros
participantes por meio de gestos de cumplicidade, sorrisos, acenos ou gestos
indutores de familiaridade, etc. Mas, executadas de forma inadequada, essas
marcas de amigável simpatia também podem ser interpretadas como sintomas
de excentricidade, e até mesmo de desequilíbrio, por parte das outras pessoas
presentes, que podem, então, se recusar a se prestar a essas manobras e a
elas responder. O trabalho requerido pela passagem de um mundo a outro
fica particularmente bem ilustrado quando situações de comprovação em dife-
rentes mundos estão muito próximas no tempo, de modo que as pessoas que
mantêm na nova comprovação a persistência da situação anterior, já que não

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362 A crítica

puderam apagá-la de sua memória, devem assumir sua relação com realidades
diferentes e sua sucessiva adesão a verdades cujo caráter incompatível não
podem ignorar. A coerência entre condutas em mundos diferentes, que não se
impõe com o mesmo grau de exigência se as situações estiverem nitidamente
separadas, deverá ser gerida pela pessoa. Esta pode ser levada a denunciar ou
a relativizar, ela própria, seus comportamentos anteriores, que descreverá, en-
tão, no registro do artifício e do teatro, da comédia, do jogo – “Era necessário
jogar o jogo” –, daquilo que se faz para os outros, desempenhando um papel,
por oposição à autenticidade do momento presente. Os comportamentos pas-
sados, nos quais se estaria, apesar disso, engajado sem reservas, tornam-se,
com a passagem para outro mundo, estranhos a si mesmos e são mantidos
a distância no registro do cinismo. Isso é visto uma vez que se tenha que
passar, por exemplo, de uma situação cívica a uma situação doméstica, cuja
tensão é retraduzida em termos de uma oposição entre o artifício do “oficial”
e a realidade do “oficioso”, ou, em termos pascalianos, entre “grandezas de
estabelecimento” e “grandezas reais”. Essas revisões de realidade são parti-
cularmente desconfortáveis quando vários participantes tiverem que deslizar
ao mesmo tempo entre situações em mundos diferentes, com cada um deles
permanecendo, no período de transição, em dúvida sobre o estado de natu-
reza em que se encontram os outros. Esse é o caso, por exemplo, quando os
integrantes do quadro executivo de uma empresa têm que passar em conjunto
da reunião de gestão, na qual atuam entre si em nome da empresa, para a
reunião do sindicato, da qual tomam parte como assalariados explorados.
Os comportamentos extremamente ritualizados que podem ser observados
nesses momentos delicados destinam-se a produzir uma mudança de estado
que, para ser realizada simultaneamente por todos, requer uma coordenação
particularmente difícil de assegurar (como pode ser visto naquelas reuniões
que não avançam porque alguns dos participantes não estão concentrados
no que fazem, ficam brincando e se mantendo sempre na situação anterior).
De fato, é suficiente que um único membro esteja em outro lugar, que se
mostre ausente ou se manifeste de forma expressiva a ponto de escapar da
ditadura da situação, para que esta perca sua estabilidade.
Levar em conta vários mundos permite detalhar o imperativo de justifi-
cação. As pessoas não estariam a ele sujeitas se não fossem defrontadas com
a crítica. A possibilidade de se retirar da situação presente e de a denunciar
com base em um princípio externo e, consequentemente, na pluralidade de
mundos, constitui, assim, a condição de uma ação justificada. Mas, pelas

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O conflito entre os mundos e a colocação do julgamento em questão 363

mesmas razões, o imperativo de justificação pode pesar de forma bastante


desigual sobre as ações das pessoas conforme o grau em que o acesso a di-
ferentes mundos esteja disponível a todos. Em um universo no qual escravos
fossem mantidos em um estado que suprimisse ou restringisse ao extremo
suas possibilidades de crítica e no qual fossem atribuídos, pela violência, a
um mundo em que se tornassem objetos, os senhores poderiam se tomar por
deuses e afirmar sua vontade sem serem obrigados a se justificar. Mas, se
destruíssem a cité por deslocar as fronteiras da humanidade e introduzissem
uma descontinuidade radical entre os dominados e os dominadores, eles
aboliriam o quadro no qual se afirmaria sua superioridade e perderiam o
sentido de sua própria grandeza.4 A construção de um universo submetido
a um imperativo de justificação, o que quer dizer também um universo no
qual a racionalidade das condutas pode ser colocada à prova pela crítica,
pressupõe, então, a colocação em prática de diferentes mundos, cujos objetos
acessíveis a todos permitem a atribuição de valor e, assim, o domínio prático
das formas de justiça fundadas em princípios.

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CAPÍTULO 8

O qua d ro da s c r í t i ca s

C r í t i ca s a pa rt i r d o m u n d o da i n s p i r ação *

Direcionadas ao mundo doméstico. No mundo inspi-


rado, as pessoas não têm domínio sobre os poderes capazes
de, vindos a elas, as elevar à grandeza ou, ao abandoná-las,
fazê-las decair. Mas podem, em certa medida, recusar a ação
desses poderes ou se entregar a ela. A grandeza, portanto,
tem como precondição nesse caso a decisão sobre se preparar
para acolher essas potências se elas se manifestarem. Para
traduzir essa resolução em ato, é necessário sacrificar, imerso
em incerteza (uma vez que o respeito a essas precondições
absolutamente não obriga a ação dos poderes indispensáveis
à grandeza e não é, então, por si só, fonte dessa grandeza),
tudo aquilo que poderia ser obstáculo à inspiração, que pode-
ria impedir de reconhecê-la e de a acolher se ela se declarasse.
Essa é a razão pela qual as críticas feitas a partir do mundo O freio do hábito
inspirado se direcionam primeiramente a tudo aquilo que,
nos outros mundos, instala as pessoas na permanência. O que
é estável e congelado é desvalorizado, como, por exemplo,
os princípios sacrossantosd ou as normasu, todos freios que
servem de obstáculos à criatividadei. Esses constrangimentos

* As palavras em itálico são extraídas do corpus de pesquisa e associa-


das a um mundo comum. As letras em sobrescrito indicam o mundo
de referência: i para o inspirado, d para o doméstico, o para o da
opinião, c para o cívico, m para o mercantil e u para o industrial. As
indicações compostas seguem a seguinte lógica: o/d aponta uma crítica
direcionada ao mundo da opinião a partir do mundo doméstico; já a
indicação d-u representa um compromisso traçado a partir do mundo
doméstico na direção do mundo industrial.

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366 A crítica

depositam sobre as ações das pessoas o peso dos compro-


missos assumidos pelas outras no passado, como é o caso da
tradiçãod, ou de compromissos assumidos por elas próprias,
como as promessasd, ou, em um mundo industrial, as previ-
sõesu e os projetosu, como um traço de obrigação. Com efeito,
essas restrições limitam a disponibilidade para se reconhecer
e se acolher a inspiração no momento, imprevisível, em que
ela surgir, abertura que deveria ser permanente. Da mesma
maneira, critica-se tudo que alicerça os estados de grandeza
nos outros mundos, como as hierarquiasd, os títulosd-c-u, os
hábitos domésticosd ou as rotinas industriaisu. Ao incitar à
constância, esses instrumentos reduzem a capacidade das
pessoas de se deixarem habitar pela súbita apariçãoi da inspi-
ração: “Para ele [o criativo] a noção de situação hierárquicad,
de ordem estabelecida, de respeito devido ao postod ou à
posição sociald-m são letra morta”. Da mesma forma, os pro-
nomes e outras formas de tratamento, as marcas de respeito,
as fórmulas de cortesiad, as “precauções verbais” de natureza
doméstica são criticadas como formalismos, onerosos e falsos,
por oposição às trocas “informais” e às relações autentica-
mente humanas: “Por trás das inúmeras fachadas sociaiso, ele
[o criador] vê apenas o homemi”. A valorização dos estados
emocionais instáveis associados ao surgimento da inspiração
tem igualmente por corolário a crítica ao controle, à medição
e ao caráter estabelecido de uma grandeza. O hábitod, as
regrasu herdadasd da cultura universitáriad-u opõem-se, assim,
à originalidadei, ao verdadeiro pensamento, isto é, o pensa-
mento inspirado, ao entusiasmoi que acompanha a criação.
A cultura universitária d-u é criticada como tradicionalista.
Os conhecimentos, cuja pertinência é própria sobretudo do
mundo industrial, são constantemente depreciados por sua
estabilidade e sua objetividade. Os grandes personagens do
mundo industrial, o especialistau ou expertu, a autoridade, o
mandarimd-u, o grande mestred-u ou grande professord-u, são,
neste mundo, “personagens perigosos”: “Com todo o peso
que seu título lhes confere, eles impõem direções e lançam um
anátema sobre aqueles que seguem pelos caminhos cerradosi.

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O quadro das críticas 367

[...] E não há espaço para colocar em dúvidai seu discurso:


eles se apoiam em muitas referênciasd, em muitos dados u, em
muitos números u”.
A exigência inspirada de “tudo abandonar” para trilhar Tudo abandonar

sua via própriai, para se dedicar inteiramente, conduz tam-


bém a criticar a gravidade dos laços pessoais e das grandezas
domésticas. Para aceder à independência, para se livrar “da
pele morta” que os “tornaria pesados”, os criadores devem
da mesma forma ser capazes de colocar em questãoi os mes-
tresd, cuja existência o mundo inspirado muitas vezes ainda
admite em um compromisso doméstico. A exigência de tudo
abandonar encerra igualmente a crítica ao mundo industrial
uma vez que o caminho tortuosoi da inspiração se opõe à
trajetóriau, forma previsível e calculável de trajeto.
Direcionadas ao mundo da opinião. Aquele que re-
conhece o mistério da inspiração é humildei. O orgulho, a
busca por consideração, a vanglória, os “sinais exterioreso de
sucesso” são constantemente criticados conforme o modelo
clássico da cité inspirada. Atribuir importância à opiniãod-o O caráter vão das
aparências
(tomada neste mundo na acepção de um compromisso entre
o mundo doméstico e o do renome) conduz à discórdia e
a rivalidades pessoaisd-o que silenciam a imaginaçãoi. Entre
as vidas de santos escritas por Théodoret, um caso parti-
cularmente exemplar desse questionamento do caráter vão
do renome nos é apresentado na pessoa de São Marciano
de Chalcis. Não contente em esconder, como outros Pais do
Deserto, os milagres que lhe foram permitidos realizar, ele
chegará a se recusar a ajudar um pedinte, a fim de afastar
os “pensamentos de vaidade” que poderiam vir a ele nessa
ocasião. O milagre, que, no entanto, acabará por ser consu-
mado, terá lugar, nesse caso, sem seu conhecimento e contra
sua vontade (Arnauld d’Andilly, 1736, tomo 2, p. 369-372). A inautenticidade do
teatro do mundo
A crítica inspirada às grandezas mundanas postula, assim
(como vimos no retrato do cortesão feito pelos moralistas),
a existência de uma realidade autêntica a partir da qual o
teatro do mundo pode ser desvelado: o mundo, na medida em
que impele as relações com outros a um comérciod mundanoo,
é apenas um cenárioo, no qual as pessoas não autênticas in-

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368 A crítica

terpretam papéiso. Essa crítica encontra correspondência, nas


ciências sociais, no movimento que leva a psicologia social –
forma de conhecimento científico em harmonia com a natureza
da opinião – a ultrapassari a mediçãou das influênciaso para
lançar sobre a vida dos homens um olhar crítico e revelar a
dramaturgia desempenhada pelos atores, o que leva à busca,
para desvelar a realidade subjacente, dos princípios de inter-
pretação próprios do mundo cívico, como as coletividadesc
ou as estruturas sociaisc-u.
O estado não humano Direcionadas ao mundo cívico. A grandeza cívica, que,
na revoluçãoi-c, pode firmar um compromisso com a inspi-
ração, é criticada quando observada em suas formas mais
instituídas, instrumentalizadas e destacadas das pessoas, isto
é, sob um aspecto que organiza uma passagem para o ques-
tionamento do mundo industrial. Assim, criticam-se “aquelas
frias relações jurídico-econômicasc-u que nos constrangem e
nos sufocam” e que se opõem ao “tom caloroso das relações
de afetividadei há muito esquecidas”.
As pessoas com Direcionadas ao mundo mercantil. O dinheiro represen-
interesses
ta uma das subserviências (a das pessoas venais) das quais
se deve se libertar para se ser capaz de receber a inspiração:
ele, com isso, é declarado como de “pouca importância”, da
mesma maneira que a consideração, que expressa a opinião
ou a estima dos outros. A servidão ao dinheiro é criticada
por vezes por conta da dependência que ela supõe da pessoa
em relação aos próprios desejos, orientados para a satisfação
dos prazeres individuais, por vezes por conta da sujeição em
relação aos outros a que o gosto pelo lucro submete o homem
que ingressa em um negócio. Para que o mundo da inspiração
possa ser colocado em prática, é preciso afastar o mundo mer-
cantil, cujos seres são, então, criticados. Os compromissos
que envolvem esses dois mundos serão, portanto, denun-
ciados, digam eles respeito quer a ações religiosas, quer a
gestos de um artista envolvido em um mercado de arte, quer
a atividades de um inventor interessado na comercialização
de uma ideia para torná-la um “conceito” ou uma “inova-
ção”. A criatividade em si “não é um produto comercial”, e

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O quadro das críticas 369

os mercadoresm da criatividadei fazem qualquer coisa para


seduzir [os ingênuos]”. Fazer qualquer coisa é uma expres-
são que nesse mundo estigmatiza as manobras do homem
de negócios oportunista que busca um compromisso com a
grandeza inspirada.
Direcionadas ao mundo industrial. A incongruência das A rigidez das
rotinas
formas estáveis no mundo inspirado, cujas consequências
críticas já observamos quando a questão era o hábitod domés-
tico, exprime-se ainda mais claramente no questionamento
da rotinau industrial. O hábitod e a rotinai se distinguem
pela forma como a repetição é instrumentalizada. No hábi-
to, a reiteração é diretamente operacionaliza pelo corpo, um
corpo não agitado pela emoção, como o corpo inspirado, e
sim habitado pela memória dos gestos anteriores. Na rotina,
por outro lado, a repetição se sustenta nos prolongamentos
permanentes e impessoais daquele corpo. A estabilidade dela
resultante protege contra as perturbações que poderiam
induzir o retorno de um hábito sem propósito ou a irrup-
ção descontrolada de manifestações inspiradas. As medidas
de segurança, por exemplo, adquirem muitas vezes a forma
de rotinas, implicando a explicitação de “instruções”, como
quando o comandante do avião dá, a cada decolagem, a or-
dem às comissárias para efetuar o procedimento de portas
em vez de contar com seu hábito [de fechá-las]. Mas, apesar
dessa diferença, as críticas frequentemente visam tanto o
hábitod quanto a rotinau, que, por sua inscrição temporal,
igualmente sufocam a erupção inspirada. Assim, dir-se-á dos
métodos e dos savoir-faires bem estabelecidos que eles são
um obstáculo à espontaneidade criativa, e se criticará a escola
por suas rotinas tradicionais: “A educação [...] tudo fez para
matar em nós essa folle du logis [louca da casa]i da qual
fala Pascali”; o aluno criativo [...] é percebido pelo mestred
como um agitador”.
E não é apenas a estabilidade temporal que é alvo da A opressão do
razoável
crítica inspirada, mas também a opressão de uma hierarquia
da autoridaded ou da competênciau que tenta colocar arreios

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370 A crítica

na grandeza da inspiração. A crítica lançada em nome dessa


grandeza abre a possibilidade de uma inversão radical dessas
hierarquias, com a autoridaded dos anciãosd sendo reduzida a
pó pelo olhar naïf lançado sobre ela pelo novo ou pelo jovem.
A crítica aos objetos funcionaisu do mundo industrial
bem permite tomar a inspiração, no que ela é desmedida,
e a posicionar firmemente contra as medidas estritas das
atividades produtivas: “Espero ainda tê-lo feito compreen-
der [ao leitor] que a criatividadei não seria apenas um meio
aperfeiçoadou para desenvolver novos produtos e melhorar
a rentabilidadeu das empresas”. Ela se atrela à “profunda
antinomia entre a razão e a lógicau e tudo aquilo que diz
respeito ao sonhoi, à imaginaçãoi, ao não expressadoi” e ao
“fascinante mundo do irracional”. A crítica à técnicau ou
ao métodou levanta suspeitas quanto aos fatos nos quais a
ciência se apoia, assim como expressa as palavras de ordem:
“Que se exploda o que chamamos de realidade”.

C r í t i ca s a pa rt i r d o m u n d o d o m é s t i c o

Direcionadas ao mundo inspirado. A relação domés-


tica se opõe à inspiração que, por seu caráter instável e
seu não reconhecimento dos estados graduados em termos
de grandeza, vem abalar completamente os agenciamentos
hierárquicos e de costume, que ela submerge na desordem.
A displicência Na obra utilizada para analisar o mundo doméstico, não
se encontram referências explícitas à inspiração. Mas um
grande número de propriedades associadas aos pequenos são,
por outro lado, atributos da grandeza no mundo inspirado.
Assim, a inspiração é mais frequentemente criticada no re-
gistro doméstico por defeitos que apontam para as formas
de grandeza inspirada, designando-as de uma maneira depre-
ciativa. É o caso, por exemplo, da efusividade, que deprecia
condutas nas quais o mundo inspirado reconhece a expressão
daquilo que contribui para produzir a dignidade das pessoas,
como a afetividadei ou a emoçãoi. Pode-se fazer as mesmas

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O quadro das críticas 371

observações a respeito dos atributos depreciativos, muito nu-


merosos no mundo doméstico, fundados na oposição entre a
estabilidade e a instabilidade, a espontaneidade e o controle,
a previsibilidade e a imprevisibilidade do comportamento.
São, assim, criticadas todas as condutas que demonstrem uma
falta de controle de si – ou, para citar Elias sobre a sociedade
de corte, “uma falta de controle dos afetos” (Elias, 1974,
p. 107-114) –, como, por exemplo, o fato de se surgir (surgir
“do nada”, “à queima-roupa”, em um escritório ou em uma
reunião), de se interpelar as pessoas, de se falar alto e sem
destinatário específico por meio de indiretas ou mandando
recados ou de se pôr a “contar sua vida”, de se fazer um
julgamento baseando-se apenas em suas próprias convicções
e se vangloriar de ser “franco”; ou, no caso das crianças,
de, por exemplo, “subir no colo”, “se agarrar na barra da
saia”, “olhar dentro da bolsa”, “tratar todo mundo informal-
mente ou sem respeito”, “interromper quem está falando”
ou simplesmente contradizer. E é ainda a falta de controle
e, principalmente, a falta de controle emocional e corporal,
associada ao caráter espontâneo dos estados inspirados, que
é visada pela crítica a todo comportamento ruidoso e deslei-
xado que traia a displicência ou a falta de sangue-frio.
Direcionadas ao mundo da opinião. A etiquetad deve As boas maneiras
do cortesão
valer por si mesma, sem ser objeto de um uso interesseiroo
para alguém se tornar bem-visto ou estabelecer relações.
Da mesma forma, a verdadeira superioridade se opõe à
aparênciao dos simulacros mundanoso, ao arrivismo. Além
disso, o mundo doméstico, que privilegia a discrição – em
conformidade com o provérbio “Quem fala mais baixo pensa
mais alto” –,* deixa também à parte as condutas diretamente
orientadas para a vida pública.

* No original, “Le bruit ne fait pas de bien; le bien ne fait pas de


bruit”, algo como “O barulho não traz nenhum bem, o bem não faz
nenhum barulho”. Busquei um provérbio em português com o mesmo
sentido. (N. do T.)

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372 A crítica

Não fazer uma cena. Mas, dada a ambiguidade da oposição entre “público”
e “privado”, é por vezes difícil distinguir, nos agenciamentos
domésticos, as críticas direcionadas ao mundo cívico e aque-
las destinadas ao mundo da opinião. Assim, por exemplo,
o preceito doméstico segundo o qual “as controvérsias não
devem ser evocadas em público” pode apontar tanto para um
quanto para outro desses mundos sem que fique demarcada
a distinção entre essas duas formas de romper a oposição
doméstica entre interior e exterior, do espaço dividido em
territórios separados, em “domínios”, em casasd (“casas de
comércio”), e de extensão homogênea. No primeiro caso, a
designação de públicoc comportará a referência ao Estado –
como quando se resolve uma controvérsia definida como
“familiar”, “privada” ou “interna” recorrendo-se ao Sistema
Judiciário e a um processo, no qual o desacordo é tornado
público. No segundo caso, públicoo apontará centralmente
para os espectadores, e se criticará o fato de se fazer notar
(“É suficiente evitar ser notado”) – marca do abandono do
controle – ou, evocando-se de forma ainda mais clara a ana-
logia com o teatro, como é frequente nas denúncias contra a
opinião, de se fazer uma cena – como quando os cônjugesd
discutem em público e dão um show de seu desacordo. Em
A discrição das um espaço dividido em casas, territórios, domínios, e orga-
pessoas de confiança
nizado pela oposição entre interior e exterior, aquele que se
expõe fazendo uma cena corre, consequentemente, o risco de
ainda prejudicar os seus, traindo seus segredosd. A prudência
das pessoas importantes as incita a desconfiard. Por sua vez,
os de pequena grandeza (em uma configuração tradicional,
patriarcal, com mulheres, crianças, subordinados), menos
responsáveis, são inclinados a se fazer notar, a falar alto,
de forma ostentatória, para atrair a atenção, sem desconfiar
dos vizinhosd, o que os leva a trair segredos (especialmente
em jantares de negóciosd-u). A discrição e a reservad, atribu-
tos da grandeza doméstica que se opõem ao caráter osten-
tatoriamente pretensioso do arrivistao-d, são, elas próprias,
criticadas, a partir do mundo da opinião, como marcas de
falta de ambição. Caracterizam aquilo que, apagado, objetiva
permanecer nas sombras.

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O quadro das críticas 373

Direcionadas ao mundo cívico. O mundo doméstico,


que admite apenas a grandeza das associações pessoais,
ataca o anonimato, mas essa crítica se dirige por vezes ao
“alguém” do mundo da opinião, por vezes à “coletividade”
do mundo cívico. Essas duas formas de impessoalidade são A impossibilidade de
imputação de
confundidas, por exemplo, nas referências ao anonimato dos responsabilidade ao
lugares públicos: seu Todo Mundo

Uma das hipocrisias características de nosso tempo [...] consis-


te em se furtar a todo constrangimento usando a coberta do
anonimato. [...] Ao volante de seu automóvel, não se é mais
seu Fulanod, e sim seu Todo Mundoo-c. [...] Tem-se a impressão
de que todos inconscientemente se dizem: “Em um lugar, sou
conhecidod, logo, conduzirei [o automóvel] e me conduzirei
bemd. Em outro, ninguém me conhece, então posso tudo me
permitir”.

A mesma ambiguidade permite passar sem dificuldades


da crítica aos instrumentos midiáticos do renome para a críti-
ca às relações jurídicas de natureza cívica, como no exemplo
a seguir, no qual a crítica à televisão, objeto técnicou e midiá-
ticoo, padronizadou, impessoalo e de comunicação direcionada
ao públicoc, e à qual é oposta a responsabilidade pessoal do
paid, conduz à denúncia da transformação dos laços familia-
resd em um vínculo associativoc, ou seja, de natureza cívica:

A televisãoo é contrária ao espírito de famíliad. Seu pivô central


não é mais o pai, com sua autoridade, sua experiência, seu de-
sejo de educar, mas um mero móvel com imagensu (as mesmas
para todos, aliáso-c) sem calor ou almad. Essas associações de
estranhosc de uma mesma famíliad que nos preparam para o
futuro não têm nada de muito envolvente.

Direcionadas ao mundo mercantil. Os dispositivos e


os seres de natureza mercantil são praticamente ignorados
no livro utilizado para analisar o mundo doméstico, o que
é ainda mais digno de nota, recordemos mais uma vez, em
se tratando de um guia destinado às empresas. Quando se
manifesta, a referência a esse mundo não é puramente crítica:

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374 A crítica

como as coisas são como são, o dinheiro é uma necessidade;


necessita-se dele. Mas essa sutil transição no sentido de um
compromisso com o mundo mercantil é desmentida pela crí-
tica à expansão do mercado, que corromperia as relações e
Nem tudo pode ser grandezas domésticas. Assim, o autor se dedica a relembrar
comprado
as limitações das relações mercantis. O dinheirom, então, deve
estar subordinado ao méritod, em um mundo no qual nem
tudo pode ser comprado:

Elas [as crianças]d precisam de dinheiro trocadod-u, para pe-


quenas despesas, mas, apesar disso, não se deve acostumá-lasd
à facilidadem. Fazer isso de modo que elas o mereçamd ou de
forma que o ganhemd-u permite a elas melhor se dar conta
do valor e da dificuldade de obtê-lo por si próprias [...]. No
entanto, não devemos dar a elas a ideia de que tudo pode ser
compradom.

Da mesma forma, o dinheiro ameaça, abala, as relações


entre próximos. Não se fala de dinheiro em família, e a colo-
cação à vendam de bens do patrimônio (casas, joias, animais
domésticosd, etc.), cuja natureza é de circular por meio da
sucessão ou por doação porque estão ligados ao domínio
doméstico (Mauss, 1960, p. 269), é facilmente considerada
inconveniented.
A propriedade doméstica, inscrita em uma cadeia de
pertencimentos enraizada em um passado, opõe-se a uma
apropriação mercantil perfeitamente alienável. Essa oposição
gera uma profusão de críticas, denunciando o desvio das re-
lações de confiança, pervertidas pelo interesse, e o distúrbio
que invade as relações familiares e de amizade ou o bom
ambiented das relações de trabalho.
Na crematística, Aristóteles distingue nitidamente duas
maneiras de se adquirirem coisas. A “arte natural de adqui-
rir” se manifesta pela apropriação de bens no quadro da
“administração da casa”, de modo a garantir a subsistência
da unidade doméstica, e sob a forma de “provisões”, com a
“natureza [a] fornecer o alimento aos seres que gera”. Por
outro lado, a arte dos negócios “não é natural” e ameaça

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O quadro das críticas 375

a cidade de desordem (Aristóteles, 1962, I, 8-9).* As pro-


priedades da primeira espécie não podem ser estendidas
sem limites e se inscrevem nas fronteiras do “domínio”, da
“casa”, diferentemente de outras, cuja busca é alimentada
por um “desejo ilimitado” (Aristóteles, 1962, 1.256b, 30-38,
1.258a, 1). Se o filósofo critica os empréstimos a juros como
“contrários à natureza”, é porque eles supõem tratar a relação
entre a moeda – “inventada para a troca” e, portanto, própria
a essa segunda arte da aquisição – e os juros da mesma for-
ma como aquela entre os pais e as criaturas que estes geram
à sua imagem (toxos significará nesse caso tanto criança
quanto pequeno e usura). Bentham zombará dessa posição,
apontando que o pensador grego não conseguiu, apesar de
seus consideráveis esforços, descobrir em nenhuma moeda
órgãos para gerar outra.
O dispositivo contemporâneo do empréstimo, apesar da
ampla difusão das operações de crédito, continua a sustentar
essa tensão entre uma propriedade doméstica e uma proprie-
dade mercantil, como se vê claramente nas maneiras de ele
se justificar. A primeira é orientada para a manutenção e a
frutificação de um patrimônio que permanece limitado por
seu tamanho original e é sustentado pela garantia oferecida
por entes próximos, que se apresentam como fiadores. A se-
gunda permite, por outro lado, uma insuflação do consumo
para além dos limites do orçamento graças a ofertas bastante
suaves de crédito no momento da compra (Wissler, 1989b).
Direcionadas ao mundo industrial. No mundo domésti-
co, os grandes sujeitos e os grandes objetos geram benefícios.
As críticas que restringem o escopo dos dispositivos indus-
triais se sustentam na oposição entre a geração, na qual se en-
raíza a confiança, e a eficiência funcional. Um ser doméstico A má qualidade
dos produtos padronizados

* Todas as citações à Política, de Aristóteles, foram extraídas da tradução


de Nestor Silveira Chaves publicada pela editora Escala. Respeitou-se
nesse caso a tradução de cité como cidade usada na obra, valendo aqui
as mesmas considerações sobre a pólis ou a cidade-Estado clássica já
citadas em “Sobre a tradução”. (N. do T.)

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376 A crítica

“dá na medida em que a ele se dá”, na medida do domíniod


que o contém. Os objetos de natureza doméstica são bens
patrimoniais que encerram “provisões” destinadas àquilo que
será engendrado. Na Política, Aristóteles dá o exemplo dos
animais domésticos e do leite: “Cabe à natureza fornecer o
alimento aos seres que gera, uma vez que toda criatura tem
por alimento aquilo que permanece da substância da qual
provém” (Aristóteles, 1962, p. 53, 65). Assim, no modelo
patrimonial da gestão da natureza, esta é herdada como um
legado do passado, que deve ser preservado contra as maqui-
nações oportunistas de orientação mercantil (Godard, 1989).
A aplicação de técnicas produtivistas a fim de controlar
essa geração no interior de uma função de produçãou não
deixará de perturbar o engendramento doméstico fiador da
qualidade (Darré, 1986). “Produzir em volume”, “produzir
com rendimento” (Dodier, 1989, p. 291) impedem que as
relações domésticas garantam a qualidade do que provém
dos recursos dessa natureza.
Não se encontra, no livro que utilizamos para a análise,
A falta de competência críticas sobre a incompetência de diplomados em oposição à
dos diplomados
experiência daqueles que foram treinados no próprio traba-
lho, e o elogio ao técnico aparece apenas por meio da figura
do bom trabalhador. Mas pesquisas anteriores (Boltanski,
1982) mostraram a virulência dessas críticas em empresas
nas quais são valorizados recursos de natureza doméstica,
ancorados nos hábitosd.
O fato de a medição da competência profissional se
basear em critérios formalizados e em procedimentos padro-
nizados, entre os quais figuram em posição de destaque os
diplomas, é de pouco peso no que diz respeito a uma autori-
dade que se manifestará na lida de um métier. As formas de
julgamento diferem muitíssimo, como pode ser visto tanto no
momento do recrutamento (Delamourd, 1988) quanto no da
avaliação: “Se todos aqueles que procuram emprego suspei-
tassem a que ponto os julgamos, desde o primeiro contato,
por conta de sua forma de se apresentar, prestariam mais
atenção a suas aparências e em como se apresentam”.

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O quadro das críticas 377

O técnico, prisioneiro de seus métodos formais; o es- O formalismo


inadaptado
pecialista, cujo olho fica imobilizado sobre as tabelas de
números; o integrante do quadro executivo, obcecado com
as instruções escritas. São todos colocados em questão nesse
contexto por sua maneira de ser que distorce a grandeza
doméstica. As informações registradas nos formulários e que
constituem, pela acumulação estatística, as provas de natu-
reza industrial, não são adequadas para dar suporte a um
julgamento doméstico, que é baseado em uma experiência
armazenada em exemplos ou casos. Aos números sem im-
portância opor-se-á o testemunho validado pela memória de
casos exemplares, mesmo que, na crítica simétrica, se denun-
cie a falta de confiabilidade de uma informação doméstica
para se fazer valer que “os números falam por si próprios”
(Wissler, 1989b, p. 100). Essa tensão é muitas vezes reduzida
à aplicação de uma regra, com a distância que a separa das
circunstâncias sendo preenchida por ligações consideradas ad
hoc pelos etnometodólogos, assumindo a forma de resultado
da confrontação de dois modos diferentes de generalização
(Dodier, 1989, p. 298, 304). A diferença radical entre manei-
ras de coleta, registro e armazenamento de informações, con-
forme se busque um julgamento doméstico ou um julgamento
industrial, corresponde ao dualismo presente na história das
probabilidades entre probabilidade por autoridade e probabi-
lidade por frequência (Hacking, 1975). Ela permite esclarecer
os debates recorrentes nas ciências sociais, a partir de Le
Play e Cheysson, sobre os méritos respectivos dos métodos
chamados “qualitativos” e dos métodos “quantitativos”, en-
tre, por exemplo, a monografia e a estatística (Desrosières,
1986, 1989).

C r í t i ca s a pa rt i r d o m u n d o da o p i n i ão

Direcionadas ao mundo inspirado. A grandeza do re-


nome, que depende da opinião dos outros, não é compatível
com a grandeza inspirada, cuja confirmação depende da

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378 A crítica

certeza da convicção pessoal. No mundo da inspiração, a


tentação do renome constitui um dos motivos principais para
a decadência. Por outro lado, no mundo da opinião, a ins-
piração é criticada como loucura, por ser equiparada, como
vimos em Hobbes, a uma opinião singular que seria cega às
A falsa profundidade opiniões dos outros. Assim, encontramos, no guia destinado
a transmitir a arte das relações públicas que usamos para
analisar o mundo da opinião, uma crítica ao esoterismoi, na
medida em que este consiste em não se levar em conta os gos-
tos do públicoo, em não se destinar uma mensagem à maior
audiência possívelo: “Se uma mensagemo, uma informaçãoo,
for demasiado esotéricai, apenas a fração mais sofisticada do
grande públicoo será por ela tocada, enquanto o restante, isto
é, a grande maioriao, nem perceberá, nem a fortiori enten-
derá e memorizará seja o que for”. E é ainda a inspiração
a criticada nas advertências destinadas a expor os limites
do que se pode esperar dos especialistas (qualificativo que
supõe um compromisso com o mundo industrial) de relações
públicas, ao lembrar a preeminência da opinião (o princípio
superior comum) representada pela realidade: “Não se deve
acreditar [...] que um especialistau em relações públicaso seja
um mágicoi, capaz de ‘fazer passaro’ pela opinião pública
qualquer mensagemo. Ele poderá ser bem-sucedido nisso na
medida em que a mensagemo e seu veículou sejam deduzidos
pelo públicoo, e não o contrário”. A crítica à inspiração,
que independe da aquiescência dos outros, é a oportunidade
de reafirmar o princípio de economia sobre o qual repousa
o mundo da opinião, segundo o qual a renúncia, na vida
privada, ao segredo, à singularidade, à solidão, como mui-
tas vezes se ouve das celebridades ou estrelas, é o sacrifício
que o de maior grandeza deve admitir para ser reconhecido
pelos outros. É isso que toma a mensagem no mundo da
opinião, no qual se fala de se “entregar uma mensagem”, e
a distingue da mensagem inspirada (por exemplo, a pro-
fética), cuja expressão obedece a necessidades próprias e
As estrelas destituídas não se esgota com a mira em um destinatário. O sacrifício
de sua vida privada
do sigilo dos pensamentos, da singularidade da fala ou da

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O quadro das críticas 379

escrita, da particularidade da mensagem, é o preço a ser


pago pelo sucesso: “A vida privada de uma estrela deve ser
pública” (Morin, 1972, p. 55). A estrela não pertence a si
mesma: deve se entregar aos outros para que eles possam se
identificaro com ela. A revelação midiática do porão da vida
das estrelas (os rumoreso, os “babados”, tipos de fofocas que
não circulam mais de pessoa para pessoa, mas repercutemo
na mídia pelos jornalistaso) é excitante porque projeta no
mundo da opinião objetos pessoais ou familiares (isqueiros,
roupas, residências, animais de estimação, etc.), pertencentes
ao ambiente doméstico. Ela permite penetrar a intimidaded
das pessoas célebreso, conhecidas, em seu raio de ação midiá-
tico, como as conheceríamos se as encontrássemosd pessoal-
mente. Mas o efeito inverso não é menos perturbador, e a
estrela que se apresenta em pessoa em um mundo doméstico
(encontrada em uma loja, como vizinha, etc.) e da qual se
diz muitas vezes estar “ao natural”, faz coincidir na mesma
situação duas naturezas que se excluem mutuamente. É como
celebridadeo que ela é reconhecida, isto é, quando se mostra
própria do mundo da opinião. Mas, enquanto no renome ela
é inacessível e intocável, o que contribui para sua influência,
como a inacessibilidade das obras de arte à mostra diante dos
olhos por trás das áreas de exposição de um museu contribui
para sua aura (Benjamin, 1971, p. 179-180), sua presença
em um ambiente familiar torna-a acessível, sem no entanto a
submeter à ordem natural do mundo doméstico, para o qual
ela transporta a grandeza de sua fama, de modo que parece
ao mesmo tempo alcançável e distante.
Essa perturbação adquire uma forma paroxística e sis-
temática na loucura das grandezas que confunde diferentes
maneiras de “conhecer” em mundos diferentes. Assim, Aimée,
cuja observação clínica é relatada por Jacques Lacan (1980,
p. 153-245), não faz a distinção entre suas responsabilida-
des para com seus filhosd e as responsabilidades de chefe de
Estadoc diante do risco de guerra de que falam os jornaiso,
e envia cartas íntimasd e poemas de amord para pessoas
famosaso cuja vida conhece pela imprensao, agindo como se

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380 A crítica

as conhecesse pessoalmented (ela se dirige, por exemplo, ao


príncipe de Gales como um servo a seu mestre). Ela parece
acreditar que, uma vez que os conhece, da mesma maneira
necessariamente é por eles conhecida, transportando para o
mundo da opinião a reciprocidade das relações domésticas.
Direcionadas ao mundo doméstico. A crítica à reputação,
na acepção adotada no mundo doméstico, é necessária para
valorizar a celebridade, no sentido utilizado no mundo da
opinião. E é precisamente porque esses dois dispositivos con-
tam com propriedades parcialmente comuns que eles deverão
ser separados de forma nítida. Assim, os enunciados trocados
no face a face de uma relaçãod (fofocas, felicitações, confidên-
cias, comentários, admoestações, exemplos ou anedotasd) são
distinguidos da informaçãoo, que, em sua natureza de renome,
Renunciar aos hábitos se propaga pelo registro da opiniãoo e cuja emissãoo não mira
guardados em segredo
um destinatário em particular, e sim o públicoo como um
todo, o maior número possível. Opõem‑se, dessa maneira, a
transparência das informações postas a circular pelas relações
públicas e a opacidade das relações pessoais, criticadas pelo
recurso ao argumento do paternalismo, como é feito a partir
do mundo cívico: “O principal objetivo buscado com a re-
cepção [ao público] é isento de qualquer paternalismo (noção
totalmente estranha para as relações públicaso)”. O segredo
doméstico, o que está oculto, é criticado nos mesmos termos
do esoterismo inspirado. Diz-se, então, que “o pessoal que
não está informadoo tem sempre a impressão de que aquilo
que lhe é ocultadod lhe diz respeito diretamente e de que é
vítima desse ocultamento”. Além disso, critica-se, no mesmo
espírito, aquilo que, chegando “pela via hierárquicad”, segue
a cadeia de dependências e, assim, perde a natureza impessoal
que atesta a realidade da informaçãoo transmitida: “Há, em
relação a toda informaçãoo chegada por meio da hierarquiad,
uma desconfiança e um medo de que se trate de demagogia”.
Direcionadas ao mundo mercantil. Apesar do com-
promisso fortemente aparelhado com a grandeza mercantil
(ver infra: branding), esta última é, no mundo em questão,

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O quadro das críticas 381

criticada pelos riscos de comprometimento aos quais a pu- A publicidade com


interesse
blicidadem expõe a formação da opinião. Além disso, nas
relações públicaso, deve-se “interditar os argumentos mais ou
menos publicitários ou de ritmo comercialm” e evitar, em uma
apresentação de relações públicas, “passar aos convidados a
impressão de que eles estão sendo submetidos a uma ação
publicitáriam”. O autor do guia esclarece a comprovação
no mundo da opinião opondo “o objetivo da publicidade e
da promoção, [que é] essencialmente venderm”, à meta das
relações públicas, que “é informaro” o consumidor, atrair sua
atençãoo. Distorcida pela interferência de seres de natureza
mercantil, a comprovação de opinião “não conseguirá por
muito tempo enganar a imprensao, que recusará instantanea-
mente e talvez por um longo tempo qualquer informação o
oriunda da empresa”. As relações públicas são também clara-
mente distinguidas do marketing: “Em termos de marketingm,
enfatiza-se a adaptação do produto ao mercadom, isto é, aos
desejos e às necessidades, conscientes ou inconscientes, dos
consumidores.m Em matéria de relações públicas,o concen-
tra‑se em se tecer uma rede de boas relaçõeso”.
Direcionadas ao mundo industrial. No manual de re- O esoterismo do
especialista
lações públicas analisado, datado dos anos 1970, não se
encontra ainda amplamente colocada, como é atualmente, a
crítica ao técnico ou ao especialista como alguém apartado
da massa das pessoas que pretendem se informar. De fato, o
tema do estudioso prisioneiro de sua torre de marfim encon-
tra-se reforçado pelo desenvolvimento de dispositivos capa-
zes de aparelhar a grandeza da opinião (indústria editorial,
jornalística e audiovisual, por exemplo) e de permitir que se
objetive a avaliação desta. Assim, não são apenas os esforços
de divulgação de uma pesquisa científica que são valorizados:
o próprio processo de comprovação de sua avaliação pode
adquirir a forma de uma coletiva de imprensa, colocando
em questão o isolamento e o esoterismo do especialista, que
não sabe assegurar a repercussão de seu trabalho na opinião
pública.

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382 A crítica

C r í t i ca s a pa rt i r d o m u n d o c í v i c o

Direcionadas ao mundo inspirado. No mundo cívico,


a inspiração é criticada como impulsividadei/c – “uma ati-
tude irresponsável e impulsiva” – e como individualismo:
“A produção desse boletim para os membrosc não pode ser o
resultado da inspiração súbitai de um militante ou de alguns
A efeverscência associados”. A impulsividade leva à improvisação, e “a ação
impulsiva das
vanguardas esclarecidas
sindical não corresponde à improvisaçãoi/c”. O individualismo
caracteriza as vanguardas minoritáriasc e apartadas das ba-
ses.c Ele serve de ameaça àqueles que querem “bancar a van-
guarda esclarecida”. A inspiração é, então, fonte de desvios,c
pois desarma a grandeza das pessoas coletivas, dissolvendo-a
nas particularidades. Da mesma forma, a efervescência,i atri-
buto da grandeza no mundo inspirado que se torna objeto
de um compromisso cívico quando associado à revolução, é
criticada ao se chamar atenção para a unidade ([o esforço de]
coordenação) das pessoas coletivas: “Uma efervescênciai geral
não é suficiente. É preciso uma condução das informações a
todos os planos, uma reflexão coletiva,c uma coordenaçãoc”.
Vencer o Direcionadas ao mundo doméstico. No mundo cívico,
paternalismo
a referência às relações domésticas é na maioria das vezes
criticada, o que não deve surpreender, uma vez que a relação
cívica é definida especificamente como uma emancipação das
relações de dependência pessoal. As relações domésticas na
empresa são criticadas porque contribuem para “isolar os
militantes sindicais” e “os apartar dos funcionários”. Elas
são qualificadas de “dissimuladas” e “mesquinhas”. Esse é
o caso do “apelo ao espírito da casad”, que é uma forma
“dissimulada” de “obstruir” a ação dos representantes. Mas
isso também se aplica a outras manifestações do paternalis-
mod/c, como veremos no exemplo a seguir, no qual a crítica é
dirigida a uma cena de admoestaçãod, que constitui, sabe-se
bem, um modo de expressão do julgamento no mundo do-
méstico: “Trata-se por vezes [para impressionar um ou vários
delegados] do sermão paternalista no escritório do diretor:
[...] ‘Você acha que seus paisd ficariam felizes se soubessem

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O quadro das críticas 383

disso? E eu te contratei para agradar a elesd’”. O paternalismo


será frequentemente criticado quando a controvérsia disser
respeito à definição do caráter de um conflito como coletivo
ou pessoal. Essa questão é importante porque o “conflito
coletivo” se insere na competência dos sindicatos e pode ser
tratado com os instrumentos de natureza cívica, enquanto
o “conflito entre pessoas” deve ser resolvido “amigavelmen-
te”, no registro do mundo doméstico. A importância da
qualificação – “pessoal” ou “coletiva” – da causa não escapa
às pessoas envolvidas em um caso, e a natureza do conflito
constitui uma das questões fundamentais pelas quais essas
pessoas se digladiam, as quais podem, de acordo com sua
posição nesse conflito, se esforçar para valorizar a natureza
coletiva de seu pleito ou, contrariamente, buscar conduzi-lo
ao universo das relações pessoais. Costuma-se dizer, na pri-
meira opção, que se “revela a verdadeira dimensão” de um
caso; e, na segunda, que ele “é colocado em suas devidas
proporções”. Por outro lado, pode-se argumentar que essa
“generalização” é “abusiva” e que se trata de um “caso es-
pecífico”, “singular”, de um “caso fabricado” ou, no outro
polo, que a “personalização” é “enganosa” e que o caso
apresenta um caráter “exemplar” e tem “uma dimensão ge-
ral” que queremos “sufocar”. Segundo essa argumentação, as
relações de natureza doméstica são tratadas como ligações
singulares, incapazes de aceder à generalidade. Com efeito,
os seres do mundo doméstico são apresentados hoje como
particulares quando contemplados a partir do mundo cívico
em harmonia com as formas atuais do Estado, não mais de
natureza doméstica como era o caso sob o Antigo Regime
ou outra monarquia pré-moderna. Assim, nas relações de
trabalho, os representantes sindicais muitas vezes acusam os
patrões de “pessoalizar” os conflitos, a fim de dissimular sua
dimensão coletiva, isso com o propósito de desmobilizar, isto
é, de separar aqueles que a busca pelo bem comum coloca
naturalmente em união. Mas, em outras ocasiões, as pessoas
podem desejar se apresentar como simples indivíduos, sem
laços especiais com outras, por exemplo para se defender da

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384 A crítica

acusação de conspiração ou conluio. É o que ocorre quando


os empregadores buscam restaurar as verdadeiras relações hu-
manasc/d por meio da crítica aos antagonismos absolutamente
inventados e aos abusosd do sindicalismo, que artificialmente
disseminariam a discórdia entre os funcionários da empresa.
E é também o observado no interior do próprio sindicato,
no qual as relações hierárquicas de natureza doméstica são
igualmente criticadas porque colocam em risco a coesão das
pessoas coletivas:

Desde o início, é preciso evitar um desequilíbrio entre os mi-


litantesc em termos do nível de informaçãoc e de consciênciai-c
de cada um. Caso contrário, é grande o risco de se ver formar
uma hierarquiad entre esses militantes e de se testemunhar a
criação de um núcleo limitadod/c e que não será realmente
capaz de lançar mão das possibilidades disponíveis.

Libertar-se do Da mesma maneira, a autoridaded doméstica, denun-


autoritarismo
ciada como autoritarismod/c, é rejeitada, porque subordina
o destino de todos às decisões de um: “Não se poderia, por
exemplo, ser partidário de uma sociedade democráticac para
amanhã e hoje alimentar relações autoritárias”.
A tensão entre o mundo cívico e o mundo doméstico se
manifesta particularmente no que diz respeito aos processos
eleitorais, pois eles supõem, de forma bastante genérica, uma
perfeita independência das pessoas, que devem ser livres da
Prevenir a corrupção submissão a outremd e imunes a influênciaso. Para produzir um
ser coletivo a partir de um eleitorado, deve-se “respeitar [...]
a independência de julgamentoc necessária em tais circunstân-
cias” e os princípios de direito que garantam a imparcialidade
das figuras eleitas: “Para ser elegívelc, não se pode [...] ser
parente próximod ou cônjuged do empregadorc-u”; “a falta de
independência diante do patronatoc-u por si só é suficiente para
que um sindicatoc-u seja declarado não representativoc”, etc.
É esse princípio que os patrões ultrapassam ao participarem
da “repressão, [...] tentando incluir na lista eleitoralc o dire-
toru, sua famíliad e algum empregado doméstico de sua famí-
liad-u”, etc. Trata-se, assim, da aplicação à empresa de uma

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O quadro das críticas 385

regra mais geral, válida também, por exemplo, para as eleições


municipais francesas, e cujo objetivo é dissociar a relação cí-
vica da relação doméstica e, secundariamente, da relação mer-
cantil. Dessa maneira, sabe-se que, de acordo com o Código
Eleitoral da França, “nos municípios  de mais de quinhentos
habitantes, ascendentes e descendentes, irmãos e irmãs não
podem ser ao mesmo tempo membros do Conselho Munici-
pal”. Da mesma forma, a lei que lista as incompatibilidades
prevê que não sejam elegíveis para o Conselho Municipal os
empresários prestadores de serviços ao município e os agentes
assalariados deste que possam estar ligados às autoridades em
exercício por uma relação pessoal de dependência ou em um Combater os
hábitos de compadrio
relacionamento mercantil. Com efeito, conhecer pessoalmente
é já se envolver em uma coalizão particular passível de ser
considerada fonte de desvios. Isso pode ser visto no caso da
“procura por candidatos” mencionada no folheto da Con-
fédération Française de Travailleurs (CFDT) [Confederação
Francesa de Trabalhadores] que usamos para fazer um retrato
do mundo cívico:

A solução do tipo “tomar as mesmas pessoas e recomeçar”


é muitas vezes uma alternativa mais fácil. É “fácil falar” que
não haja novos candidatos que aceitem se apresentarc. Por
vezes, é também mais “tranquilizador” encontrar o mesmo
grupinho de delegadosc, que se conhecemd, que têm o hábitod
de trabalhar juntos. Essas tendências devem ser combatidas.
Todac a seção sindicalc deve ser informada da chamada para
candidaturasc, seja durante as assembleias geraisc, seja ainda
pelos boletins de associadosc.

A tensão entre os princípios que garantem a pureza dos


seres de massa, baseados em uma causa, e as relações singu-
lares, alimentadas de pessoa para pessoa, é particularmente
aguda nas organizações, sindicatos ou partidos políticos, que
combinam dispositivos de natureza cívica (votação, mandato,
representação, etc.) com um enraizamento local e uma for-
ma de recrutamento e de coesão fundamentados, em grande
parte, nas relações de proximidade, como o pertencimento a

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386 A crítica

um mesmo setor da companhia, os laços de vizinhança, as


ligações domésticas, etc. Assim, por exemplo, a maioria dos
casos surgidos no Partido Comunista comporta a revelação
de relações de dependência pessoal (as chamadas panelinhas),
que secretamente se associam por um interesse capaz de divi-
dir os militantes que se cria estarem inteiramente dedicados
à causa comum. Mas essas são as mesmas situações de dis-
túrbio (por exemplo, as “festas de renovação da carteirinha
de membro”), suspensas entre o respeito às formas jurídicas
e a permissividade mais familiar, passíveis de serem descritas,
de dentro, como confiáveis, fraternais e acolhedorasd e, pelos
excluídosd-c, como claras conspirações contra o bem comum.
As mesmas observações são aplicáveis, de forma mais
geral, à denúncia do escândalo, que consiste sempre em re-
velar um laço doméstico por trás de uma relação cívica, em
perceber e tornar manifesta a presença de uma associação
secreta baseada em relações particulares, sejam elas familia-
res, de amizade, afetivas ou ainda sexuais, entre pessoas que
deveriam estar unidas apenas pela adesão a uma causa e pelo
Denunciar os escândalos respeito à leic. Um caso é escandaloso quando revela publi-
camente ligações entre pessoas, quando “tira a tampa” da
“roupa suja” das famílias e a lança na “praça pública”. A for-
ma caso (Boltanski, 1984) se desenvolve nessa tensão entre
o mundo doméstico e o mundo cívico. Ela está vinculada,
assim, pela separação, estabelecida na Revolução Francesa,
entre a cité doméstica e o Estado, separação que distribui
em dois mundos incompatíveis as “pequenas” histórias entre
as pessoas, seus “segredos de alcova”, as peripécias de suas
intrigas, e, por outro lado, a “grande história”, a história
“política” ou “econômica” do país. É essa separação que
confere um caráter escandaloso à revelação de laços particu-
lares entre pessoas que apenas o bem público deveria unir, e
um caráter perturbador, inapropriado, indecente, à utilização
de dispositivos cívicos para tratar conflitos domésticos – dos
quais se diz que se poderiam resolver de forma amigável, sem
que ninguém estabelecesse um caso, os tornasse um assunto de
Estado. Nessas situações de distúrbio, critica-se alternadamente

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O quadro das críticas 387

o fato de se fazer uma revelação em público e de se guardar


segredo. Enquanto o mundo cívico entra em ação em um es-
paço uniforme e transparente, o espaço doméstico, centrado
na casa, é organizado pela oposição entre interior e exterior,
com a traição consistindo precisamente em tornar público
para o lado de fora aquilo que deveria ser conhecido apenas
nos limites internos.
Assim, a uma crítica cívica da discrição doméstica como
uma “conspiração do silêncio”, que mantém interno um
segredo de família, responde uma crítica doméstica do teste-
munho público como uma traição que enfraquece e desonra
do “clã” diante de estranhos. A denúncia do escândalo con-
siste em mostrar a verdadeira natureza das relações entre as
pessoas, que, apresentando-se como públicas e voltadas para
o bem comum, na verdade servem a interesses privados: sob
o agenciamento cívico, que é apenas aparência (por exemplo,
um Conselho Municipal ou um tribunal), revelam-se os laços
domésticos reais que unem as pessoas. Para fazê-lo, é preciso
fundamentar-se em recursos não presentes em situações cí-
vicas, como ligações de parentesco ou compadrio (laços que
se descobrem com estupor), discretos sinais de conluio que é
preciso interpretar, apelos a um “pistolão”, etc. Esses recursos
permitem reconstruir a situação em um outro mundo, e o
objeto do escândalo é justamente a tensão entre o dispositivo
aparente e o mundo subjacente: por trás das aparências de
civismo, a situação dissimula outra realidade, de natureza do-
méstica. Mas essa realidade é condenável e deve, a seu turno,
ser denunciada, para que a situação possa ser restaurada a
toda sua pureza: por exemplo, um julgamento é uma farsa
porque o réu mantém relações pessoais com os jurados, que,
antes mesmo da audiência, combinaram o veredito no hotel
(Claverie, 1984), ou porque o juiz mantém relações pessoais
com o réu e foi visto jantando em sua companhia em um
restaurante. O jantar incrementa o escândalo porque intro-
duz a referência aos apetites corporais. Ora, não há interesse
mais particular que aquele que, destinado em si a garantir
o gozo do corpo individual, não pode, por sua constituição,
ser partilhado.

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388 A crítica

Os apetites corporais são particularmente incompatíveis


com a grandeza cívica, que, dependente da natureza coletiva
das pessoas, as ignora como seres famintos ou sexuados. Uma
autoridade não tem corpo. É por isso que a denúncia do
escândalo é mais confortável no estilo panfletário (Angenot,
1983), que conta entre suas características a associação do
alto nível com a baixeza, a ênfase na sujeira e na expressão
da indignação virtuosa em termos escatológicos e pornográ-
ficos. Essas discrepâncias de estilo servem ao desvelamento,
que deve trazer à luz o interesse particular escondido por
sob as declarações de interesse geral, e que não é jamais tão
demonstrativo quanto nos momentos em que se pode opor
a busca do prazer ao respeito integral à regra, quando se
pode opor à solidariedade do grupo as ligações corporais,
que subordinam os laços sociais ao gozo extraído por cada
indivíduo de suas trocas com os outros.
As relações locais, que engajam as pessoas em interações
face a face, direcionam-se para a gramática doméstica e são,
a esse respeito, sempre suspeitas de opor a opacidade de um
círculod e o favoritismo de uma forma particular de associa-
ção à transparência e ao igualitarismo das relações cívicas.
Posicionar-se acima das A localidade, aglomeração enraizada em uma terra regional d,*
disputas locais
carregada de singularidades, costumes, hábitosd, etc., opõe-se,
assim, ao sentido de local do mundo cívico (local político,
local sindical, local que serve de sede a uma associação, local
administrativo, prefeitura, etc.), que não se relaciona direta-
mente com as peculiaridades de seu ambiente. O local de
natureza cívica – político, sindical, associativo – garante, em
um ponto no espaço, concebido como uma extensão homo-
gênea, a presença da pessoa coletiva (garantir a presença do

* No original, terroir, termo em geral reconhecido em português por


sua associação com a cultura enológica e que indica a região e suas
características que atestam a procedência de um vinho – incluindo
seu solo e seus traços químicos, mas também suas tradições e outros
elementos abstratos. Aqui, ele aparece em sentido mais amplo, como
a ideia de um território regionalizado e culturalmente orientado. (N.
do T.)

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O quadro das críticas 389

Estado, do partido, do sindicato, etc.). Ele a marca por meio


de emblemas, insígnias, crachás ou bótons, objetos contendo
a logomarca, cartazesc, etc., idênticos em qualquer lugar e que
renegam a distância – por exemplo, um cartaz, na década de
1980 ou na de 1990, com uma mensagem contra o apartheid
na África do Sul afixado em um espaço político nos subúrbios
de Paris. O local, que não guarda também relação próxima
com as singularidades das pessoas que o ocupam, a título
temporário e de acordo com seu mandato, pode também ser
criticado, a partir do mundo doméstico, como nada caloroso
e como anônimoc/d.
Na França, a tensão entre as grandezas ligadas ao
enraizamento em uma localidade (os “notáveis locais”) e
a grandeza do país está inscrita nas formas constitucionais
que aparelham o mundo cívico: sabe-se, por exemplo, que o
deputado eleito não é o “mandatário natural” de um corpo
político, nem representante dos interesses dos habitantes de
uma localidade ou de uma região d correspondente à cir-
cunscrição na qual foi eleitoc e à qual estaria ligado por um
“mandato imperativo”. Ele encarna a “vontade do povo”
como um todo e o interesse geral do país (Furet, 1978,
p. 232). Observada a partir do mundo cívico, a localidade
é, assim, o espaço do particular, do idiomático e do sotaque
(o “sotaque da região”), do patoá, caracterizado por uma
relação de “proximidade” ou “distância” em relação à “lín-
gua nacional” (De Certeau; Julia; Revel, 1975, p. 53-60), e
também dos preconceitosd que o ensino se dá a tarefa de
extirpar (Bourdieu, 1982).
A escola, nos muitos projetos discutidos durante a Re-
volução Francesa com o objetivo de “colocar o conjunto dos
cidadãos” “em uníssono com as luzes do país deliberativo”
(Julia, 1981, p. 195), é “inseparavelmente o instrumento
de erradicação do preconceito e o lugar de aprendizado
da liberdade” (Furet; Ozouf, 1977, p. 114) como dissocia-
ção das relações de dependência pessoal, familiar e local.
A criança – que no mundo doméstico não conta com uma
particularidade e não é senão um adulto em miniatura e

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390 A crítica

em potencial, pequeno ou grande, dependendo da posição


que ocupa, da mesma maneira que os adultos em um corpo
político, ele próprio concebido à imagem da família – é,
para o mundo cívico, um ser híbrido, ainda dependente de
uma linhagem e de uma casa, e que deve, para se tornar
um cidadão, desligar‑se das afiliações e fortunas herdadasd
e aceder, por meio do aprendizado de conhecimentos úteis,
“ao estado de homem, que tão poucos homens sabem como
ocupar” (Rousseau, 1966, p. 252). É por meio da prática
de um ofício artesanal que Émile* deve manter, sejam quais
forem as circunstâncias, sua independência em relação aos
outros e sua qualidade de cidadão.
Pode-se aproximar também esse tipo de crítica, que
apela à oposição entre o local e o nacional, o privado e o
público, dos casos que levam as pessoas ligadas por laços
familiares a colocá-los em questão por meio da utilização de
seres cívicos para transformar o dispositivo doméstico. É o
que ocorre, por exemplo, nas histórias de divórcio nas quais
a instrumentação cívica pode ultrapassar os procedimentos
legais tradicionais pela mobilização de causas de horizonte
universal, como a da guarda dos filhos por pais separados
(Chateauraynaud, 1986, p. 201-240). Da mesma forma, final-
mente, o particularismo das ocupações é denunciado porque
dividec os trabalhadores como as disputas locais dividem os
Superar as cidadãos. Eles são assemelhados ao corporativismod, que,
divisões corporativistas
evocando as instituições do Antigo Regime e, mais recente-
mente, as instituições de Estados fascistas, destaca seu caráter
tradicionald, em harmonia com os agenciamentos domésticos
e com o paternalismo. Critica-se, por exemplo, o “corpora-
tivismod estreito” daqueles que praticam um “sindicalismo
de ofício”, “a estrutura das profissões, que fatiouc a classe
trabalhadora em segmentos autônomos” e as “reivindicaçõesc

* Apesar de as traduções brasileiras consagradas da obra de Rousseau


terem aportuguesado o nome do personagem – ficando o título Emí-
lio ou Da educação –, preferi manter a forma original de seu nome,
igualmente popularizada. (N. do T.)

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O quadro das críticas 391

corporativistasd, que contribuem apenas para dividirc ainda


mais os trabalhadores de diferentes categorias”.
Direcionadas ao mundo da opinião. A opinião é dife-
rente no mundo do renome e no mundo cívico: o sufrágio,
que no mundo cívico se utiliza da opinião dos indivíduos
independentes para oferecer uma expressão da vontade ge-
ral associada ao coletivo em si, opõe-se à opinião pública
constituída como a convergência das adesões das pessoas
submetidas à influência dos outros. É essa ambiguidade que Interditar as pesquisas
em período eleitoral
é mirada, em período eleitoral, pela crítica às pesquisas de
opinião e, especialmente, a sua divulgação: as sondagens, que
integram opiniões pessoais dependentes de interesses parti-
culares, perturbariam o sufrágio coletivo. Em um contexto
cívico, a referência à ideia de somatório constitui, muitas
vezes, pela mesma lógica, uma crítica ao mundo da opinião:
“A ação sindical [...] não é uma simples soma de posições
ou iniciativas individuaiso, e sim uma ação coletivac”. Da
mesma forma, a crítica, quase profanatória em um contexto
cívico, à propaganda política e a manobras com o objetivo
de obter a adesão dos outros – “Alguns, muito politizados,
têm a experiência para direcionaro as assembleiasc” – permite
melhor destacar os objetos de natureza cívica dos dispositivos
a serviço do renome.
Direcionadas ao mundo mercantil. No guia que coloca O egoísmo dos
proprietários
a ordem cívica em situação, o mundo mercantil só é reco-
nhecido para ser criticado. Essa recusa à negociação (o que
se deve talvez aqui, pelo menos em parte, à origem sindical
do material utilizado) não deve surpreender se forem co-
nhecidas as dificuldades encontradas, na sociedade francesa,
pelos esforços para se alcançar um compromisso entre essas
duas formas de coordenação, apoiadas, respectivamente, pela
vontade geral e pelo mercado e posicionadas uma contra a
outra na expressão de uma oposição irredutível entre o bem
público e os interesses privados. Basta que nos lembremos,
por exemplo, dos debates sobre a relação entre os direitos
de cidadania e a posse de bens, e da posição de Condorcet

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392 A crítica

sobre esse assunto em particular (Baker, 1975, p. 253). Em


seu Essai sur la constitution et les fonctions des assemblées
provinciales [Ensaio sobre a constituição e as funções das
assembleias provinciais], de 1788, ele se junta a Turgot no
que diz respeito à divisão entre os “cidadãos fracionários”
e os “cidadãos integrais”, estes últimos com “uma renda em
propriedade fundiária suficiente para seu sustento” (Con-
dorcet, 1986, p. 284), mas se distancia dele para “refutar a
opinião daqueles que desejam conferir um número de votos
proporcional ao valor da propriedade” (p. 288).
A crítica cívica à grandeza mercantil, que tem sido obje-
to de trabalhos importantes, pode atualmente ser expressada
sob a forma lapidar de palavras de ordemc, como nas refe-
rências ao capitalismo, ou ainda na oposição entre os pro-
prietáriosm (o egoísmo dos proprietários) e os trabalhadores.
O individualismo A oposição ao mundo mercantil também pode ser
mercantil
manifestada pela crítica ao individualismo: “A democracia
não pode ser improvisada neste mundo moldado pelo indi-
vidualismo”. Ela pode também ser incluída nos enunciados
sobre os desvios que ameaçam as pessoas coletivas quando o
interesse particular prevalece sobre a busca do bem comum,
como se vê na discussão sobre a contribuição sindical. “Não
se trata de uma contribuição a um ‘segurom’ ou a um plano
de previdênciam, e sim de uma maneira de tomar partec em
um engajamento coletivoc. [...] O sindicato não é um tipo
de seguro ou de seguridade, é mais uma ofensiva coletivac”.
A definição dos serviços públicos é construída com
base na oposição crítica em relação à definição de um servi-
ço mercantil. O compromisso que envolve a estatização de
empresas como as de fornecimento de energia elétrica está
sujeito a uma tensão vívida entre a referência aos cidadãosc,
que contam com os mesmos direitos de gozo dos serviços, e a
referência a clientesm, como se vê nas controvérsias a respeito
das tarifas de instalação (Akrich, 1989, p. 184).
Evitar a Direcionadas ao mundo industrial. Os dispositivos que
burocratização
estabilizam o compromisso entre o mundo cívico e o mundo

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O quadro das críticas 393

industrial são também objeto de críticas, especialmente sob a


forma canônica (ausente nos trabalhos analisados) da crítica
à tecnocraciau-c. Essas críticas, por sua vez, abrem caminho
para compromissos com o mundo inspirado, como se vê ao
se falar em formação. A operação por meio da qual a for-
maçãou (que consiste na aquisição de uma competência ou
de uma capacidade) é dissociada do mundo industrial para
ser valorizada no mundo cívico é a oportunidade para uma
crítica aos “conhecimentos apartados da vida” e aos “espe-
cialistas que levam o conhecimento [a alguém]”. Esses traços
a aproximam da crítica inspirada à rotina escolar.

A formaçãoc-u oferecida por um militantec sindicalista pouco


tem a ver com a prática escolaru habitual, na qual se engolem
os conhecimentos, que são conscientemente dissociados da
vida e apontam para os indivíduos com vistas a sua promoção
pessoal. A formação sindical [...], pelo contrário, só faz sentido
se for concebida como um enriquecimentoi coletivoc.

As críticas direcionadas ao compromisso entre o mundo


cívico e o mundo industrial adquirem a forma padrão de
críticas aos riscos da burocratização:

A estruturaçãou da seção sindicalc é indispensável. Uma des-


crição breve, como a que acabamos de fazer, poderia permitir
supor que o risco de burocratizaçãoc-u/c está presente. Não o
negaremos. É apenas quando a seção contar com um funcio-
namento coletivoc [...] que essa pirâmide de responsabilidadesu
adquirirá seu verdadeiro significado: assegurar um funciona-
mento democráticoc.

C r í t i ca s a pa rt i r d o m u n d o m e r ca n t i l

Direcionadas ao mundo inspirado. Ainda que im-


pulsionadas por desejos semelhantes às paixões, as ações
coordenadas pelo mercado se sustentam em bens externos e
exigem que se demarque certa distância em relação àqueles

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394 A crítica

com quem se firma uma negociação. Como as outras, a gran-


deza mercantil estabelece, dessa maneira, uma tensão entre
um estado particular e um estado propício à coordenação.
A fórmula de investimento pondera as riquezas associadas ao
acesso ao mercado e os sacrifícios exigidos pelo desprendi-
mento de si mesmo e pela atenção aos outros (o “espectador
imparcial” e a “simpatia” de Smith). A distância emocionalm
e o controle das emoçõesm são condições necessárias para
se aproveitarem as oportunidadesm e fazer negóciosm, sem se
deixar cegar por seus sentimentos “impulsivos” e, com isso,
“fazer qualquer coisa”, expressão que estigmatiza o compor-
tamento do homem de negócios que se abandona à inspiração
O sangue-frio nos do momento. A necessidade de sangue-frio nos negócios vai
negócios
de encontro às efusões que expressam a autenticidadei da ins-
piração. Por isso, a adesão ao gesto, que torna o corpo objeto
comprobatório da grandeza inspirada, é um embaraço para a
transação mercantil: “Previna-se contra as crises emocionais
mantendo-se de cabeça fria”. “Controlar suas emoções, [...]
alocá-las nos compartimentos adequados, é, antes de tudo,
impor voluntariamente uma distância emocional entre você
e a situação”.
O estabelecimento dessa distância necessária a uma
relação mercantil leva a criticar, como no mundo doméstico
(a displicência), qualquer expressão excêntrica e, portanto,
perturbadorai das pessoas em suas emoções, assim como em
sua forma de se vestir: “Vista-se de homem de negócios. [...]
Se uma pessoa chega para uma reunião de negócios calçan-
do mocassins sem meias, com uma camisa desabotoada até
a metade, uma corrente de ouro no pescoço ou no pulso,
isso pode evocar avaliações um tanto inquietantes sobre sua
personalidade nas mentes dos outros”.
Direcionadas ao mundo doméstico. O mundo mercantil,
por ser desprovido de fundações fincadas em um espaço e
carece do suporte de um tempo, abre espaço para a crítica
aos elementos do mundo doméstico que permitem a ancora-
gem dessas duas noções. As especificidades, os laços pessoais
e as relações locais são particularidades das quais é preciso

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O quadro das críticas 395

se liberar para se aceder a um mercado anônimo e sem


fronteiras. As tradições, os prejulgamentos, as rotinas são
apenas os freios que impedem o desenvolvimento das relações
mercantis, baseadas no senso de oportunidade.
A distânciam e a dissociaçãom efetivadas nas relações en- Libertar-se das
relações pessoais
tre os seres do mundo mercantil supõem tanto o controle das
emoções (e, portanto, a crítica à grandeza inspirada) quanto
a libertaçãom em relação à dependência pessoal, às trocas de
influênciad, e ainda críticas à ordem doméstica: “Longe da in-
fluência dos outrosd, concluímos as negociaçõesm com base em
um contrato que jamais cessou de fazer efeito”; “nunca será
suficiente enfatizar o perigo representado pelas confidênciasd
nos negóciosm”. As pessoas de influência, da mesma forma
como as relações de confiança alimentadas pelas confidências,
que naturalmente encontram seu lugar no mundo doméstico,
insuflam o distúrbio no livre contrato mercantil. Em uma
empresa, medidas cabíveis, como a rotação de pessoal, serão
postas em prática para evitar a ameaça de vínculos pessoais
ou locais, fontes de prejulgamento incômodos para o ajus-
tamento mercantil.
Essa crítica, incessantemente recolocada nas situações
cotidianas, reativa o questionamento de uma ordem política
tradicional que pôde se apoiar nos fundamentos de uma
ordem mercantil. Assim, para Ludwig von Mises, a burocra-
cia se confunde com uma ordem que “consiste em intrigas
palacianas diante dos homens no poder. Na corte de todos
os governantes despóticos, reinavam a bajulação, o servilismo
e a baixeza” (Mises, 1946, p. 115). Essa crítica perpetua a
passagem, saturada de consequências para a compreensão do
liberalismo, entre as noções de liberdade ou de autonomia e
as exigências do livre comércio. Essa crítica encontra também
eco nos debates das ciências sociais, nos quais antropólogos
e economistas se digladiam sobre a natureza das relações de
troca e sobre os limites do mercado nas sociedades tradicio-
nais (Mauss, 1960). O valor de um bem, na condição de obje-
to da dádiva, advém inteiramente das relações que o associam
com a pessoa mesma do doador. Por outro lado, o bem, na

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396 A crítica

condição de objeto de transação negociada em um mercado,


tem como propriedade fundamental ser independente das
personalidades tanto de compradores quanto de vendedores.
As ligações pessoais serão, então, criticadas como entraves
ao livre acesso do indivíduo ao mercado. A esse respeito, a
figura crítica que apela para que as pessoas se liberem das
relações pessoais não deixa de lembrar o questionamento do
mundo inspirado para as ligações domésticas (tudo abando-
nar), assim como a crítica cívica dessas ligações (derrotar o
paternalismo) – ver também, em Rousseau, as condições que
devem ser reunidas para que a vontade geral se expresse,
“a composição das pequenas diferenças”. As relações pessoais
de confiança, reduzidas em um mundo cívico a uma conspira-
ção contra o interesse geral, são aqui criticadas como formas
de entendimento que na verdade entravam a concorrência.
A atenção do cliente a propriedades singulares (do-
mésticas) das mercadorias e o modo de investigação por ela
implicado não são compatíveis com a natureza mercantil dos
bens dissociados das pessoas. Assim, a busca “intensiva” por
relações singulares dos produtos usados com seus proprietá-
rios anteriores se opõe à avaliação comparativa (“formulário
de survey”) do preço em um mercado oficial (Geertz, 1978).
No mesmo espírito, a qualidade doméstica das pessoas
expressada na idade ou na antiguidade é insignificante no
mundo mercantil, no qual o valor não depende do número
de anos: “Não me incomoda que as pessoas muito jovens que
trabalham para mim ganhem muito dinheiro”.
Romper os atrelamentos O mundo do mercado é sem limite ou distância e se
locais
opõe muito claramente nesse ponto ao mundo doméstico e a
sua topografia, orientada para os polos constitutivos de do-
mínios privilegiados. Os atrelamentos locais, o enraizamento
nos territórios regionais, o provincianismo são apenas obstá-
culos à expansão mundial do mercado. “Eu também viria a
sentir que a regionalidaded dos atletas de esporte de equipe
reduziria severamente sua negociabilidadem. Os golfistas são
quase mais vendáveism em Tóquio ou Kalamazoo que em seu
próprio paísd”.

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O quadro das críticas 397

Os privilégios territoriais das corporações são invaria-


velmente tachados em uma perspectiva mercantil, que supõe
sempre empurrar para adiante os limites espaciais das opera-
ções (Kaplan, 1988). Na literatura econômica, os elementos
próprios de uma ordem doméstica, como as “barreiras” que
delimitam um domínio, são criticados como freios à livre
circulação de mercadorias: “barreiras à entrada”, “barreira
à mobilidade”.
Mesmo os autores que buscam mostrar o lugar das
relações não conformes ao mercado, especialmente nos “mer-
cados de trabalho”, utilizam esse vocabulário depreciativo.
Assim, a operação mercantil é impedida por “grupos não
concorrenciais” (“non-competing industrial groups”) (Cair-
nes, 1874, p. 68) confinados nos limites dos departamentos
de pessoal de cada empresa (Reynolds, 1951, p. 42), “balca-
nizados” (Kerr, 1954), presos no tecido local de costumes dos
“mercados internos” (Doeringer; Piore, 1985).
A crítica à desordem causada pelos seres domésticos Desafiar os prejulgamentos

no mundo mercantil igualmente destaca as diferenças entre


as relações estabelecidas pelas duas grandezas com o tempo.
O mundo mercantil não conhece a perenidade dos seres
domésticos. As “ideias preconcebidas”, a “sabedoria popu-
lar”, que extrai sua grandeza da tradição, são verdadeiros
obstáculos à colocação em prática do mundo mercantil,
que exige desafiar os prejulgamentos. O grilhão do qual é
necessário se liberar é uma rotina incômoda, incompatível
com o senso de oportunidade mercantil tanto quanto com a
espontaneidade inspirada (ver a anotação O freio do hábito,
p.  365). Da mesma forma, a fidelização do consumidor
sustentada pelo dispositivo da marca pode ser criticada por
fazê-lo perder oportunidades e indevidamente “pagar pela
marca” (Eymard-Duvernay, 1989b, p. 126).
Direcionadas ao mundo da opinião. O mundo mercantil
difere fundamentalmente do da opinião no que diz respeito à
existência de bens externos que servem para regular a concor-
rência dos apetites e para determinar a medida das grandezas.
Uma vez que o bem não esteja mais presente, os desejosm

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398 A crítica

rivais de apropriação degeneram para a adesãoo gregária de


pessoas que se identificam com o mesmo signo, como os ad-
miradores de uma estrela ou aqueles que seguem uma moda
mais que a seus desejos. Confundidas nesse movimento de
identificação, as pessoas se comportam de forma semelhante,
ou, como se diz na crítica a este mundo, se imitam.
Os erros da especulação.
O esnobismo, assim, atribui à crítica uma busca de bens
que pavimenta um compromisso com este mundo por meio
da imitação de pessoas grandes em termos de renome e da
identificação com uma moda à qual elas se curvem servilmen-
te. O cliente “esnobe” pode virar as costas para um bemm
que não seja suficientemente distintivoo. Como na produção
sociológica que revela os mecanismos da acumulação de
crédito próprios do mundo da opinião, os bens se tornam
apenas sinais distintivos, e o uso extensivo do termo mercado
deixa, então, de dar conta da forma de coordenação baseada
na concorrência para se adquirirem bens escassos.
E uma vez que o mercado não possa mais ser invocado
como princípio superior comum, carente de uma identidade
e de uma consistência suficiente dos bens, o deslizar para o
mundo da opinião se manifesta por uma degeneração dos
preços, demonstrando-se os efeitos danosos da especulação.
Assim, nas manobras especulativas da opinião pública que
contribuem para fazer variar artificialmente os preços porque
atuam sobre as expectativas dos indivíduos, a mediação do
produto, que estabelece a realidade da troca e que é a condi-
ção de funcionamento do imperativo de escassez, desaparece
em favor daquilo que pode ser, dessa maneira, tratado como
o desejo dos outros (Aglietta; Orléan, 1982), em um prolon-
gamento das análises de René Girard (1972, p. 216) no qual
ele desvela uma rivalidade que “não é o fruto de uma con-
vergência acidental de dois desejos por um mesmo objeto”, e
sim o resultado de um “desejo essencialmente mimético”.
A relativa insignificância da O apelo ao retorno à ordem mercantil, especialmente
celebridade
diante dos compromissos com a grandeza do renome (o bran-
ding), pode ser expressado claramente em uma crítica ao
“baixo valor”, à “relativa insignificância” das aparências e

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O quadro das críticas 399

da celebridadeo: “Acabei [...] por perceber a relativa insigni-


ficância dos adereços externos, sejam eles a celebridade, a
posição social ou a aparência”.
Direcionadas ao mundo cívico. A ação no mundo mer- O bloqueio pela
ação coletiva
cantil é um assunto “privado”. O termo, inscrito na oposição
com um espaço “público”, tende, no entanto, a ofuscar a
relação com os outros que se constitui por meio dos bens
desejados e torna a ordem mercantil tão “coletiva” quanto
as outras, desde que não se limite à definição de coletividade
emprestada do mundo cívico.
Os negóciosm devem ser tratados cara a cara m, criti-
cando-se as disposições de grupoc: “Um único interlocutor.
Detesto as negociações comerciais realizadas na presença de
um grupo de pessoas e, se puder, evito esse tipo de situação.
Para mim, mais de uma pessoa é um grupo grande”. Mesmo
para atividades tendendo para o mundo industrial e que se
concluam por meio da “tomada de decisão” sobre um pro-
jetou, qualquer procedimento coletivo é criticado: “Embora
reuniões sejam necessárias no processo de tomada de decisão,
elas não constituem um bom fórum para se chegar a uma
resolução, e se houver mais de quatro ou cinco participantes,
será quase impossível chegar a ela”.
Quando a única forma de justiça for a da ordem mer- O custo da justiça

cantil, a atividade jurídica não terá mais estatuto especial e


será reduzida a uma negociação/transação como qualquer
outra, mais ou menos boa. E a ingerência do jurídico nas
relações mercantis será criticada a partir do momento em
que desvie os participantes do fechamento direto, face a face,
de um contrato.
Assim, apesar de ter tido formação no direito, o autor
critica esse tratamento jurídico das relações de mercado:

As querelas entre os advogados em nome de seus clientes


muitas vezes não são senão um caminho para suas bancas co-
brarem por seu tempo e ganharem dinheiro. Tenho a sensação
de que se pudéssemos colocar em uma sala, sozinhas, as duas

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400 A crítica

partes da maioria das disputas legais – mesmo que o litígio,


a disputa judicial, já durasse dois anos –, a questão seria
resolvida, certamente de forma mais barata e provavelmente
muito mais equitativa.

Os japoneses, sujeitos de grandeza grande do ponto de


vista desse guia por fazerem negócios no mundo inteiro, são
citados como exemplares, porque “há no Japão muito poucos
escritórios de advocacia”.
O abismo entre uma construção legal do contrato e a
forma de relação mercantil, muitas vezes atenuado em dis-
positivos compósitos nos quais o direito à propriedade vem
em auxílio à ordem de mercado, fica explícito na passagem
seguinte, na qual o autor critica a regulação jurídica das
transações. Mesmo a validade de um compromisso legal é
questionada diante do realismo, do senso de oportunidade
que deseja que nos adaptemos, com flexibilidade, a qualquer
momento, sem nos aprisionarmos na rigidez das obrigações:
“Como advogado, é fácil para mim tratar um compromisso
como um compromisso e um negócio como um negócio. Mas
eu muitas vezes observei que, ao se reconhecerem as circuns-
tâncias atenuantes e ao se liberar alguém de suas obrigações,
fiz muito mais no longo prazo por mim e por minha firma”.
Direcionadas ao mundo industrial. Por conta do enga-
jamento temporal implicado pelo investimento em objetos
técnicos, o mundo industrial é criticado por sua rigidez. Por
outro lado, a expressão anônima e formal da grandeza natu-
ral nesse mundo é questionada porque não deixa espaço para
a interação de desejos subjetivos: as capacidades industriais
(tanto as das máquinas quanto as dos peritos) são um incô-
modo para os negócios.
A rigidez das ferramentas A crítica à rigidez das ferramentas e métodos se direciona
e dos métodos
às estruturasu – “Não permita que as estruturas controlem a
operação”; aos organogramasu – “As empresas nunca operam
de acordo com seus organogramas”; aos sistemasu – “Para
dirigir uma empresa, é constantemente necessário escapar dos

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O quadro das críticas 401

sistemas [...] e se carregar de realidade”; e às organizaçõesu –


“Lucrosm primeiro, organizaçãou depois”. Todos esses objetos
perturbam a lógica mercantil e ameaçam fazer o sujeito
desse mundo esquecer sua dignidade, isto é, seu interesse em
enriquecer: “Quanto maior a empresa, mais fácil é sair pela
tangente e se esquecer de por que você está no negócio para
começo de conversa: obter lucros”.
Por conta de sua orientação temporal e de sua propen-
são a moldar o porvir, o planou é desprezado, e sua “falta
de realismo” vai de encontro ao senso de oportunidade
mercantil, que, ao ser seguido, impele o sujeito a agarrar a
cada momento sua oportunidade: “Um plano provisional se
opõe à vida real. Eu ficaria feliz de nunca mais ver um em
minha vida”.
A crítica aos grilhões das regras burocráticas, e espe-
cialmente ao planejamento, é particularmente explícita nos
chamados economistas liberais, como Ludwig von Mises
e Friedrich von Hayek. Mises argumenta que o lucro está
relacionado à instabilidade fundamental da ordem mercantil
e que um mundo estacionário veria ganhos e perdas se anu-
larem mutuamente: “A despesa global empenhada por um
fabricante para obter os fatores de produção necessários seria
igual ao retorno que ele receberia pelos produtos” (Mises,
1946, p. 34). Ele e Hayek, aliás, fazem ambos referência a
Saint-Simon, uma vez que buscam colocar em questão as
construções sistemáticas da grandeza que criticam (Mises,
1946, p. 111; Hayek, 1953, p. 159). Hayek, denunciando os
autores que defendem uma “sociedade [que] deveria funcio-
nar exatamente da mesma maneira que uma fábrica”, cita o
francês: “Todos os homens trabalharão; eles se considerarão
operários ligados a uma unidade fabril cujas atividades terão
por objetivo orientar a inteligência humana segundo uma
provisão divina”. O economista questiona a “mentalidade
politécnica” (Hayek, 1953, p. 13), e, de fato, os primeiros
esforços dos fundadores da escola saint-simoniana foram
dirigidos à École Polytechnique, onde a propaganda foi

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402 A crítica

maravilhosamente bem-sucedida. Prosper Enfantin escreveu:


“É preciso que a École Polytechnique seja o canal por meio
do qual nossas ideias se espalhem na sociedade. [...] Aprendemos
sua linguagem positiva e os métodos de pesquisa e demonstra-
ção que atualmente devem fazer andar a ciência política”
(Charlety, 1931, p. 45). Hayek sublinha a incompatibilidade
entre um princípio de ação, que ele atribui a essa mentalidade
e reconhece como guia dos comportamentos dos “engenhei-
ros e planejadores”, e o princípio que rege as atividades
comerciais: “O negociante entrará em conflito com os ideais
do engenheiro, [...] interferirá em seus planos e [...], assim,
receberá dele seu desprezo” (Hayek, 1953, p. 158-161).
Os maus negócios No comando das ferramentas e dos métodos rígidos,
dos tecnocratas
visados pela mesma crítica, está a figura do tecnocrata. Como
indica o título do guia usado para colocar em ação o mundo
mercantil (O que não se ensina em Harvard Business School –
em inglês, What they don’t teach you at Harvard Business
School), e como enfatizado pela chamada na quarta capa da
edição francesa – “Vender, eis o que não ensinam a você em
Harvard” –, o livro é amplamente dedicado a uma crítica à
falsa grandeza industrial em nome da verdadeira grandeza
mercantil: “Os problemas reais colocados pela vendam pouco
têm a ver com a competênciau. [...] Supor que as capacidadesu
de gerenteu possam suprir a falta das do vendedorm é uma
perigosa forma de enganar a si mesmo”.
A capacidade industrial é frequentemente criticada por
meio da educação escolar da qual é produto e à qual é por
vezes associada a “inteligência”, valor ilegítimo acomodado
no compromisso industrial que permite sua mediçãou na
forma de QI:

Há uma antiga história sobre dois amigos que se encontram


na rua depois de não se verem por 25 anos. Um deles, que se
formou como um dos primeiros de sua classe, estava então
trabalhando como subgerente de uma agência do banco local.
O outro, que nunca havia impressionado ninguém com sua

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O quadro das críticas 403

inteligência, tinha sua própria empresa e era um multimilio-


nário. [...] Pressupor, como já fiz, que elevados graus educa-
cionais ou QI alto automaticamente significam “inteligência
nos negócios” se provou na maioria dos casos um dispendioso
erro de julgamento.

C r í t i ca s a pa rt i r d o m u n d o i n d u s t r i a l

Direcionadas ao mundo inspirado. A grandeza indus- Os desperdícios provocados


pela improvisação
trial, suporte de uma coordenação direcionada ao porvir, é
perturbada pela qualidade eminentemente incerta dos seres
do mundo inspirado. Eles são criticados pelos desperdícios
provocados pela improvisação, por conta da imprevisibilidade
de uma atividade “atrapalhada”, ilustrada notadamente pela
inconsequência dos “iluminados”. A intrusão de eventos
inesperados, que implica o gesto inspirado do inventor, é
arriscada para o funcionamento da ordem industrial e não
cessará de ser criticada por conta dos momentos disfuncio-
nais que possa causar.
Direcionadas ao mundo doméstico. No que diz respeito O antigo é ultrapassado

à ordem industrial da eficiênciau e do progressou, o antigo


é ultrapassado; o tradicionald, pouco evoluídou; é a “Idade
Média”. Os mais velhosd, sujeitos de elevada grandeza na cité
doméstica, são colocados em seu lugar, isto é, qualificados
segundo a grandeza industrial por seu grauu de atividadeu:
“Com a média etária aumentando, a empresa deverá prever
o desenvolvimento de uma população ‘ineficiente’”. E da
mesma forma como as pessoas, as coisas dotadas de um
passado serão criticadas por sua inadequação, sua desatua-
lização, como a instalação industrial “vetusta” e, portanto,
não mais “funcional”.
A diferença de natureza entre o espaço doméstico e o A ineficiência dos
particularismos
espaço industrial é evidenciada pelas críticas referentes às
disfunções resultantes dos atrelamentos domésticos, à ine-
ficiência dos particularismos. Essa crítica diz respeito aos
distúrbios causados pelas relações pessoais no desempenho
de uma tarefa que se supõe delas se abstrair: “Não misture a

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404 A crítica

vida privada e a vida profissional. [...] É preferível não fazer


amigos no trabalho”. Os laços domésticos inscritos em um
capitalismo familiar não param de suscitar tensões críticas
quando julgados do ponto de vista de uma gestão industrial
da empresa. O conselho de administração é um dispositivo
facilmente perturbado pela confrontação das qualificações
doméstica e industrial, como quando o “papai” é também o
“querido presidente” e quando uma disputa familiar é trans-
portada para o seio da companhia (Chateauraynaud, 1989b).
Geralmente são questionados, em nome da eficácia in-
dustrial, os costumes e as práticas informais, os territórios
domésticos, os espaços reservados, os privilégios locais. A ex-
ploração sistemática de seres pouco ajustados a uma função
de produção, como os recursos naturais, exige investimentos
de forma destinados a desmontar as particularidades. Assim,
uma exploração sistemática de crustáceos pode passar pela
implantação de um impressionante dispositivo industrial,
indo de diários de pesca até a vigilância aérea por helicóp-
tero, a fim de tornar a atividade mensurável (Callon; Law,
1989, p. 20).
Dessa maneira, critica-se o compromisso com a gran-
deza doméstica, elaborado em torno da construção de uma
“atividade” ou de uma “arte”. Os dispositivos que o susten-
tam são denunciados como montagens monstruosas, marca-
das com a expressão “faro” – vergonhosa do ponto de vista
industrial –, designando um costume indevidamente elevado
à categoria de método.
A incompetência do Embora ambas as grandezas, industrial e doméstica,
“patrãozinho”
sejam distribuídas segundo escalas hierárquicas bastante lon-
gas, elas não são baseadas no mesmo princípio de ordem, e
a incompetência do patrãozinho, ou do “patrão por direito
divino”, estigmatiza a hierarquia doméstica em nome da
ordem industrial.
A ineficiência dos Direcionadas ao mundo cívico. A obra utilizada para
procedimentos
administrativos
prospectar as críticas produzidas a partir do mundo industrial
é por demais orientada para os compromissos com o mundo
cívico (ver infra) com o fim de dar vazão a possíveis críticas

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O quadro das críticas 405

a essa grandeza. Uma expressão comum desse questionamento


consiste em apontar a ineficiência dos procedimentos admi-
nistrativos. Além disso, uma figura mais complexa (ver infra),
mas não menos frequente, questiona o compromisso no direito
do trabalho e no previdenciário entre as grandezas industrial
e cívica em favor da flexibilidade mercantil ou ainda da au-
toridade doméstica. Assim, por exemplo, pequenos empre-
gadores impedem uma inspetora do Ministério do Trabalho
de entrar em uma empresa agrupando-se pessoalmente, com
uso da força. A inspetora deverá buscar refúgio no posto
da polícia. Ela só recuperará sua grandeza se reconstruir
um dispositivo cívico e transportar para a situação os seres
cívicos adequados.
E a crítica pode se concentrar mais nos compromissos Os custos de uma
política social
do direito do trabalho e do previdenciário entre as naturezas
industrial e cívica, refutando as “vantagens adquiridas” – “Es-
ses hábitos têm as características de vantagens adquiridas” –,
ou enfatizando os custos de uma política social – “Uma
empresa que praticasse uma política social dispendiosa, não
financiada por aumentos de produtividade, iria à falência e
perderia completamente sua função social”.
Direcionadas ao mundo mercantil. O questionamento O inútil
produto de luxo
da ambiguidade do produto pode ser expressado nas críticas
ao consumo ostentatório de produtos “de luxo”, carosm mas
inúteis, que não satisfaçam a necessidadesu reais.
A ambiguidade do produto, que pode servir a um com- O preço injustificado

promisso entre o mundo industrial e o mundo mercantil, está


no centro das controvérsias acadêmicas que, na literatura
econômica, dizem respeito à formação do valor e suas res-
pectivas expressões a partir do desejo ou do custo na forma
de trabalho.
As tensões entre a grandeza industrial e a mercantil
frequentemente se manifestam no decurso das comprovações
mercantis, quando se trata de fechar um negóciom e chegar ao
acordo sobre um preço justom. Os litígios mercantis, expressa-
dos durante as negociaçõesm anteriores à venda propriamente
dita, muitas vezes degeneram em controvérsias formais quando

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406 A crítica

o preço é questionado em nome de outra grandeza, uma vez


que se faça referência à baixa utilidade ou eficáciau de um ser
mercantil diante de seu preçom, quer se trate de um produto
quer se trate de uma pessoa: “Uma vez, o diretor de uma
grande fabricante de vestuário esportivo me disse que não ia
pagar a um atleta mais do que ele próprio ganhasse. Desse
ponto de vista, o valor de sete algarismos que pedíamos pelos
direitos de imagem soaria um ultraje”.
O autor relata um caso interessante, porém ainda mais
complexo por envolver também o mundo da opinião e o
mundo inspirado. Trata-se da famosa história da mulher
que abordou Picasso em um restaurante e pediu a ele para
rabiscar algum desenho em um guardanapo. Ela afirmou
estar disposta a pagar o quanto ele quisesse. O pintor o fez
e disse: “São 10 mil dólares”. “Mas você fez isso em trinta
segundos”, respondeu a mulher, espantada. “Não”, respondeu
o artista. “Levei quarenta anos para fazê-lo”. A situação é
complexa desde o início e compreende: um ser de renome, o
celebríssimo Pablo Picasso; um gesto inspirado, o rabisco que
carrega a marca do gênio e que não se confunde absoluta-
mente com o autógrafo da estrela, que é apenas seu nome; e
um ser mercantil, a soma em dinheiro oferecida pela mulher.
Após a execução da obra pelo mestre, a cliente critica o pre-
ço exorbitante por ele pedido com base em argumentos de
natureza industrial, fazendo valer o pouco trabalho deman-
dado pela execução, isto é, demonstrando a fraca grandeza
industrial do produto assim produzido. Picasso se mantém
preso à situação, que se converte em um litígio industrial
sobre a quantidade do trabalho incorporada no produto: ele
justifica o preço pelo tempo de trabalho preparatório (sua
formação, digamos), necessário para adquirir a competência
exigida para a feitura do produto. Outro resultado possível
a partir desse arranjo heterogêneo seria purificar a situação
no mundo inspirado (que teria exigido uma nova crítica, da
parte do artista), afirmando-se o caráter espontâneo, imediato
e absolutamente singular e sem preço do gênio criativo.

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O quadro das críticas 407

A tensão com a grandeza mercantil se expressa, no mun- Os caprichos do


mercado
do industrial, pela colocação em evidência da imprevisibili-
dade, do caráter aleatório dos seres mercantis. As grandezas
associadas a esses dois mundos se opõem, com efeito, no
que diz respeito à estabilidade. Assim, é enfatizada “a grande
variação de demandas urgentes do cliente ‘poderoso’, [...]
‘que deve ser atendido a todo custo’”. A pressão mercan-
til do cliente abala os dispositivos industriais, que supõem
planejamento e programação, e induz defeitos de qualidade
industrial (Chateauraynaud, 1989a, p. 267). Na organização
da atividade da indústria vivamente recomendada por Ford,
a ênfase depositada na padronizaçãou e na utilidadeu leva a
denunciar a incapacidade de investir e o excesso de versati-
lidade do mercado – “Apresentar todos os anos um modelo
novo é a concepção à qual as mulheres se submetem em suas
roupas e em seu cabelo” (Eymard-Duvernay, 1989a, p. 128).
Essa tensão está no cerne da teoria econômica. Uma vez
que ela se baseie em uma avaliação pelos preços e em uma
coordenação de mercado, é mal adaptada para dar conta de
uma orientação temporal das decisões e da irreversibilidade
resultante de um investimento, apesar da extensão da noção
de utilidade, na esperança da utilidade (Favereau, 1989a).

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QUINTA PARTE

O apaziguamento da crítica

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Capítulo 9

Os c o m p ro m i s s o s e m n o m e d o b e m c o m u m

O c o m p ro m i s s o c o m o f o r m a d e e v i ta r
o u s u p e r a r a c o m p rovação

Os dispositivos compostos que abarcam pessoas e coisas passíveis de


identificação com diferentes mundos não são desmontados pela disputa de
maneira definitiva. As relações que a eles dizem respeito nem sempre des-
pertam o sentimento de estranheza que emerge da leitura das amostras aqui
utilizadas para analisar as operações críticas. Tomemos, por exemplo, a fre-
quente referência aos direitos dos trabalhadores que aproxima um objeto do
mundo cívico (o direito) e seres do mundo industrial (trabalhadores). Essa
composição, inerente ao sindicalismo e, ainda mais amplamente, a todos os
dispositivos aos quais pode ser associada a qualidade de “social” – ação so-
cial, direito do trabalho e previdenciário (baseado nos direitos sociais), etc. –,
parece-nos aceitável, e sentimos que ela não é estranha à busca de um bem
comum. Diremos, então, que ela consiste em uma fórmula de compromisso.
Em um compromisso, as pessoas entram em um acordo para promover
uma composição, ou seja, para suspender a controvérsia, sem que ela seja
resolvida pelo recurso a um processo de comprovação em um mundo único.
A situação de compromisso permanece um compósito [o que seria a princípio
incômodo], mas o conflito é evitado. Os seres que importam em diferentes mun-
dos são mantidos em presença sem que sua identificação seja causa de disputa.
Mas, além dessas características, para identificar uma situação de compromisso,
não é suficiente constatar nela a presença de objetos díspares. É preciso ainda
assegurar que suas importâncias tenham sido apontadas e que eles não sejam
tratados pelos participantes como meras “coisinhas”, das quais o observador
apenas notará a presença. Assim, o fato de haver uma relação pessoal entre
o gerente de uma filial local de um banco regional e a pessoa que veio pedir
uma concessão de crédito (Wissler, 1989b) é um recurso sempre aberto para

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412 O apaziguamento da crítica

um compromisso. Mas este só será alcançado se a familiaridade entre esses


parceiros comerciais for explicitada (por exemplo, com o uso de tratamento
informal e familiar, pela evocação de memórias comuns ou pela citação de
parentes próximos) e, mais precisamente, se argumentos domésticos forem
colocados em equivalência com argumentos pertinentes ao mundo mercantil:
por exemplo, um amigo fiel é um cliente solvente. E o ponto fundamental
é que essa equivalência é tratada como evidente sem ser explicitada. No
compromisso, os participantes renunciam ao esclarecimento do princípio de
seu acordo, engajando-se somente em manter uma disposição intencional
orientada para o bem comum. Esse objetivo é alcançado pela busca do inte-
resse geral, isto é, não apenas os interesses das partes diretamente envolvidas,
mas também o interesse daqueles não diretamente afetados pelo acordo.
Assim, o imperativo de justificação não é satisfeito, mas, apesar disso, não
fica completamente fora do horizonte, como é o caso no arranjo de comum
acordo ou ainda no abandono à relativização, figuras que analisaremos mais
adiante. O compromisso sugere a possibilidade de contemplação de um prin-
cípio capaz de tornar compatíveis os julgamentos, baseando-se em objetos
próprios de mundos diferentes. Ele visa a um bem comum que superaria as
duas formas de grandeza confrontadas ao contemplar a ambas: por exemplo,
promover as “técnicas de criatividade” supõe a referência a um princípio não
especificado que faria a rotina industrial e a efusão inspirada servirem a um
mesmo bem comum.

A f r ag i l i da d e d o c o m p ro m i s s o

O princípio visado pelo compromisso permanece frágil, uma vez que


não pode ser relacionado a uma forma de bem comum constitutiva de uma
cité. O estabelecimento de um compromisso não permite ordenar as pessoas
de acordo com uma grandeza própria. Assim, por exemplo, no caso de um
compromisso cívico-industrial, fica difícil conceber, designar e justificar a sub-
missão das pessoas a uma comprovação capaz de mirar indissociavelmente,
ao mesmo tempo, suas grandezas na condição de cidadãos e na condição de
trabalhadores. Apesar da determinação para o interesse geral, a situação de com-
promisso se mantém composta, e recorrentemente se dirá de um compromisso
que ele não é totalmente defensável do ponto de vista lógico, embora seja preferível
a qualquer outra solução. Os seres nele reunidos mantêm seu pertencimento a seus
mundos originais. É, portanto, sempre possível retornar à controvérsia ao se relan-

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Os compromissos em nome do bem comum 413

çar a polêmica sobre a natureza dos objetos que importa levar em conta para
promover uma comprovação conclusiva. Apoiando-se em um dos mundos
presentes, pode-se acusar o caráter problemático e de distração dos seres de
outra natureza e promover a purificação da comprovação, denunciando-se o
compromisso como algo comprometedor.
Uma maneira de solidificar o compromisso é colocar a serviço do bem
comum objetos compostos por elementos pertencentes a diferentes mundos
e os dotar de uma identidade própria, de modo que sua forma não seja
mais reconhecível se forem subtraídos um ou outro dos elementos de origem
diferente daquela em que são constituídos. Essa transformação torna o com-
promisso mais resistente à crítica, porque ele, a partir daí, pode se apoiar em
objetos inquebráveis. Assim, na situação composta evocada anteriormente, de
um “serviço público competitivo”, o compromisso entre os princípios superio-
res comuns cívico (o serviço público) e mercantil (competitividade) pode ser
sustentado. A referência a seres e objetos de compromisso dá corpo à possi-
bilidade de se superar a oposição entre esses dois princípios: a identidade do
“usuário” abarca a contradição entre o “cidadão” e o “cliente”; o instrumento
chamado “caixa de sugestões”, disponível para o usuário, absorve a tensão entre
uma “lista de reivindicações” e um “livro de reclamações”. A multiplicação e a
estabilização desses objetos constituem o esboço de um novo mundo. Por exem-
plo, o agenciamento de um dispositivo como o Conselho Econômico, Social e
Ambiental,* órgão francês estatal, mas consultivo, formado por patrões, sin-
dicatos e entidades de classe, e que combina, com vistas a um bem comum,
uma preocupação industrial com uma forma cívica, enraíza o compromisso
no mundo das coisas. As pessoas podem, então, se apoiar sobre esse compro-
misso de Estado, associado a um regime político e legalizado por sua inscrição
no direito público, para propor ou defender outros compromissos similares.
No discurso de um presidente de empresa, por exemplo, um compromisso
cívico-industrial – “O aumento da produtividade é a goma-arábica da soli-
dariedade entre todos” – será mais facilmente aceito que um compromisso
doméstico-industrial – “Em nossa grande família, é uma tradição aumentar
a produtividade” – ou que um compromisso inspirado-industrial – “Eu tive
um sonho: um espírito entrava em vocês e a produtividade aumentava”.

* Originalmente, Conseil Économique et Social, renomeado em 2008 para incluir os temas


ambientais. (N. do T.)

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414 O apaziguamento da crítica

A multiplicação dos objetos compostos que se corroboram e sua iden-


tificação com uma forma comum contribuem, assim, para pavimentar o
compromisso. E uma vez que este tenha seu caminho preparado, os seres
por ele aproximados tornam-se dificilmente dissociáveis. A dificuldade de se
apartar, no caso já mencionado de “direitos dos trabalhadores”, aquilo que é
próprio da grandeza cívica daquilo que é guiado pela grandeza industrial se
manifesta, por exemplo, nas discussões sobre os “direitos dos trabalhadores
estrangeiros”, quando alguém busca desmantelar os compromissos frequen-
temente mobilizados a respeito deles (como bons trabalhadores, eles são
úteis para a coletividade nacional) para, em vez disso, tratar sua identidade
profissional sem fazer referência à cidadania. Essa operação é tão mais difícil
quanto mais se multiplicam as situações nas quais o dispositivo é construído
de modo a ir o mais longe possível na aproximação entre esses dois tipos de
grandeza (por exemplo, com eleições para a representação dos trabalhado-
res em diferentes instâncias). No caso de um compromisso profundamente
estabelecido, o processo de comprovação por vezes se aproximará do litígio
em um único mundo no ponto em que, sem se questionar a validade do
compromisso e, portanto, sem se levantar a questão de sua coerência, serão
criticados os comportamentos das pessoas, acusadas de não se orientarem
para manter a coesão entre os seres compromissados, de não estarem à altura
do compromisso e, assim, de contribuírem para que ele seja desfeito.
A formatação dos compromissos é facilitada uma vez que se possa in-
cluir em sua composição seres ou qualidades ambíguas, no sentido em que
possam dizer respeito, de acordo com vários significados, a vários mundos.
Esse é o caso, por exemplo, da “autoridade” e da “responsabilidade”, pas-
síveis de qualificar o relacionamento do pai com seus filhos no mundo do-
méstico, ou, em um mundo industrial, a relação de um superior com seus
subordinados. É também o caso da “consideração” que, qualificando do-
mesticamente a confiança de uma pessoa em outra – “Ele se mostra sensível
à consideração e à confiança que lhe dedicamos” –, adquire, no mundo da
opinião, o significado conferido por Rousseau quando este denuncia a busca
por consideração como uma submissão aos caprichos do mundo. Da mesma
forma, a partir de um mundo cívico, podem-se construir as seguintes pontes:
ao mundo doméstico, por meio dos “princípios”, deslizando-se de “princípios
fundamentais” (cívico) a “ter princípios” (doméstico); ao mundo da opinião,
por meio do “público”, da opinião pública, das campanhas e das manifes-
tações; e, finalmente, ao mundo inspirado, ao se fazer referência à “tomada

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Os compromissos em nome do bem comum 415

de consciência” do princípio superior comum e à convicção que “questio-


na” – “a capacidade permanente de se colocar em questão”; “reivindicações
corporativas relacionadas a um questionamento mais geral”, etc. O mundo
industrial pode entrar em um compromisso com o mundo doméstico por
intermédio da qualidade, e com o mundo mercantil por meio do produto,
objeto técnico ou bem cobiçado. E as figuras do bem comum prestam-se
igualmente a compromissos: assim, pode-se fazer referência “à sociedade” sem
que seja suspenso o equívoco entre a alta sociedade (doméstica), a sociedade
civil como um corpo político ou ainda a sociedade como designada pelas
ciências sociais e que, com suas regularidades e leis, conta com um forte
componente industrial.
Na falta desse objeto ambíguo, pode-se abrir caminho para um com-
promisso ao se criticar aquele que for de maior grandeza no mundo a partir
do qual se estende a mão na direção de uma natureza estrangeira. Por meio
dessa profanação (muitas vezes marcada pelas aspas que traduzem distan-
ciamento), escapa-se ao engajamento na completude de um mundo fechado
e se oferecem as garantias capazes de favorecer a reconciliação entre os
princípios incompatíveis. Nas obras de que tiramos partido para colocar
em ação os diferentes mundos, todas, lembremo-nos, guias empresariais,
essa figura aparece sobretudo para favorecer os compromissos muitas vezes
difíceis de pavimentar com o mundo industrial. Assim, o guia utilizado para
fazer o inventário do mundo doméstico, destinado a executivos autodidatas,
profanará as grandezas domésticas quando se fizer necessário organizar um
compromisso com a competência e a eficácia à qual os autodidatas devem sua
promoção, denunciando as trivialidades – as “boas maneiras” não devem se
aplicar a “trivialidades na ‘alta sociedade’”, mas “às relações cotidianas da
população em geral”; a natureza arcaica do protocolo; as convenções – “re-
jeitar as convenções”; e até mesmo a geração ou o nascimento, profanados
nesse trabalho destinado aos autodidatas para se assentar o compromisso
entre a competência (industrial) e as qualidades do homem “bem educado”
(mundo doméstico) sem se fazer referência à educação familiar. E se pode
mesmo favorecer, a partir do mundo da opinião, um compromisso industrial,
denunciando-se os rumores – “Em termos de imagem corporativa, é preciso
tomar o cuidado de não permitir que rumores se espalhem” –, e um compro-
misso cívico, condenando-se os slogans – “É preciso banir os slogans”. Ou
se pode favorecer ainda, a partir do mundo mercantil, um compromisso com
o mundo doméstico, denunciando-se o dinheiro e os comportamentos inte-

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416 O apaziguamento da crítica

resseiros por oposição à autenticidade das relações afetivas – por exemplo,


os integrantes de quadros executivos que mantêm uma “contabilidade de
serviços prestados e devidos”. Mas é indubitavelmente no livro usado para
colocar em prática o mundo inspirado, que, por conta de sua falta de apare-
lhamento, de estabilidade e de medidas, é particularmente rebelde em relação
ao compromisso industrial, que essa figura da profanação é a mais frequente,
com o desmascaramento dos magos – “Uma imagem como essa [...] (o poe-
ta é um mago que entra em comunicação direta com os céus) oferece uma
imagem bastante distorcida do criador”; dos charlatães – “Reconheçamos:
a criatividade tem seus iluminados e seus charlatães”; do milagre – “Muitas
empresas ainda procuram a cura milagrosa”; da aura – “Seria, então, inevitá-
vel que a criatividade, essa ‘ciência’ da descoberta, logo se ornasse com uma
aura própria para surpreender as multidões”; da genialidade – não “conside-
rar a criatividade [...] como a arma final suficiente para ser introduzida em
um grupo para que este, por um misterioso fenômeno, de repente se torne
genial”; e da própria inspiração – “os criadores, ou seja, os privilegiados
que receberam um dom no nascimento e que recebem a visita da inspiração,
quando a solicitam”. Tudo isso, por oposição a uma transmissão sistemática
de criatividade por meio do treinamento.
A identificação dos objetos de compromisso implica a busca por formu-
lações e denominações específicas capazes de fundar em um mesmo enunciado
as remissões aos mundos de origem. Grande parte do trabalho necessário para
pavimentar o compromisso consistirá, portanto, em construir um entendimen-
to sobre os termos adequados, em buscar uma formulação aceitável para to-
dos, que soe justa e a respeito da qual se estabeleça o acordo. É precisamente
o esforço para superar a tensão entre os termos do compromisso pela busca
de uma designação aceitável que, se for denunciado, será apresentado como
uma tentativa de maquiar a verdade para torná-la apresentável: o neologismo
seria, “na verdade”, apenas um eufemismo, e será pela atribuição aos objetos
associados no compromisso dos nomes que os designam em seu mundo de
origem que se encontrará a acepção justa. Aquela que uns chamam de “uma
funcionária do lar” (formulação que implica um compromisso com o mundo
industrial e que abre caminho para um compromisso cívico, como quando se
fala dos “direitos dos trabalhadores domésticos”) não é nada senão aquilo
que no mundo doméstico é chamado de uma “criada”, um ser que, nessa
natureza, é de pequena grandeza. Denunciar o primeiro termo como eufemis-
mo do segundo é revelar a persistência desse mundo e a manutenção de suas

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Os compromissos em nome do bem comum 417

dependências pessoais, sob as falsas aparências de uma denominação errônea


desejosa de fazer crer que a “doméstica” é um trabalhador “como os outros”.

Um exemplo de figura complexa:


a d e n ú n c i a a p o i a da e m u m c o m p ro m i s s o

Uma vez que um compromisso é estabelecido, ele pode por sua vez servir
como ponto de apoio para a crítica. Estamos, então, diante de uma figura
mais complexa, visto que ela faz intervirem mais de dois mundos e que a
crítica é estabelecida por referência a uma fórmula, ela própria resultante da
composição entre duas naturezas estranhas uma à outra. Mas a crítica não
pode nesse caso jamais ser completamente esclarecida, porque não é possível
se chegar a um princípio superior comum.
Assim, por exemplo, o tema do “gênio não reconhecido” (que aparece
no livro que usamos para analisar o mundo inspirado) apresenta-se à pri-
meira vista como uma crítica direcionada ao mundo da opinião a partir do
mundo da inspiração: o gênio, grande ser inspirado, é injustamente tratado
como um ser pequeno no universo da opinião (onde é desafortunado por ser
desconhecido). Mas essa crítica é inconsistente: se o renome é sem valor na
natureza inspirada e se uma das qualidades do autêntico gênio é precisamen-
te a indiferença à “vanglória”, então só se pode saudar a obscuridade com
que ele está cercado. Para abrir espaço para essa fórmula em nosso quadro
de análise, é preciso tomá-la como um exemplo de figura mais complexa,
na qual a crítica se sustenta em um compromisso já pavimentado entre a
inspiração e o renome. Esse compromisso identifica essas duas grandezas em
um mesmo bem comum. Elas são tratadas como equivalentes, pois se pode
igualmente denunciar o fato de os gênios não serem conhecidos ou o de as
pessoas conhecidas não serem gênios (o tema da “celebridade imerecida”).
Ainda assim, a indeterminação do bem comum não permite ir muito adiante
na controvérsia: se se empenha muito intensamente em desmascarar charla-
tães cuja fama é imerecida e em renunciar perante a opinião pública, nos
meios de comunicação, o sucesso de grande público obtido pelos criadores
medíocres, o gênio não reconhecido capturado como a contragosto sob a luz
dos holofotes pode, por sua vez, ser acusado de estar em busca de fama (ou de
ser amargurado por não a ter alcançado), o que desacredita a autenticidade
de sua paixão e o diminui no mundo inspirado.
Esse exemplo pode ser comparado ao do “paradoxo do panfletário” de
que fala Jean Starobinski sobre Rousseau:

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418 O apaziguamento da crítica

Aquele que se torna escritor para denunciar a mentira da sociedade coloca-se em


uma situação paradoxal. Ao se tornar um autor, especialmente uma vez que se
inicie sua carreira com um prêmio da academia, ele ingressa no circuito social
da opinião, do sucesso, da moda. Ele é, portanto, desde o início, suspeito de
duplicidade e contaminado pelo pecado que ataca. [...] A única remissão possível
consiste em promover um ato público de separação: uma retirada torna-se ne-
cessária, e um desligamento perpétuo terá lugar de justificação. [...] As próprias
desculpas, a partir do momento em que se tornam públicas, são ainda um elo
com o mundo da opinião, e não apagam a falta. (Starobinski, 1971, p. 52-53)

Assim, uma vez que se recuse a fazer de Émile um “fazedor de li-


vros”, Rousseau antecipa a objeção esperada, “És um você mesmo”, em um
enunciado particularmente refinado do paradoxo do panfletário: “Sou-o para
meu infortúnio, confesso; e os meus erros, que acredito ter expiado o suficien-
te, não são, para os outros, motivo para serem semelhantes. Não escrevendo
para desculpar meus erros, mas para impedir meus leitores de os imitarem”
(Rousseau, 1966, livro III, p. 256). Essa fórmula retorna, aliás, muitas vezes
no “discurso panfletário”, em que se confere o “mandato paradoxal de procu-
rar convencer do óbvio”, denunciando publicamente a “impostura” da opinião,
em nome de uma “verdade de foro íntimo” que se precisa compartilhar com
todos (Angenot, 1983, p. 85-92).

A c o m p o s i ção d o s c o m p ro m i s s o s e a f o r m ação d e c i t é s

A pavimentação dos compromissos contribui para se extraírem os re-


cursos passíveis de serem mobilizados a fim de estender o modelo da cité a
novos princípios. A indeterminação do bem comum visado pelo compromisso
torna-se cada vez mais problemática à medida que, com a proliferação dos
objetos compostos, constitui-se o esboço de um novo mundo e se multipli-
cam ao mesmo tempo as situações de comprovação nas quais esses objetos
estarão envolvidos. Sua fragilidade, a facilidade com que podem ser denun-
ciados, conduz a uma revisão muito rápida das comprovações, que não são
consideradas suficientemente conclusivas para suspender a controvérsia. As
controvérsias às quais essas comprovações dão lugar são particularmente fa-
voráveis ao trabalho de explicitação, o que pode levar ao estabelecimento de
novos princípios de equivalência e ao esclarecimento do bem comum visado.
E no decurso desse processo de generalização, qualidades associadas a fins

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Os compromissos em nome do bem comum 419

específicos são estendidas gradativamente a fim de qualificar os seres cuja


propriedade comum é valorizada e adquire um caráter explícito.
Assim, por exemplo, a grandeza da opinião é levada em conta por si
própria no decurso das controvérsias que acompanham a multiplicação das
comprovações relacionadas ao desenvolvimento da sociedade de corte e às
novas controvérsias que ele fez surgir (especialmente entre a grandeza nobi-
liária e os favores do rei). Esse trabalho de detalhamento é feito por vezes em
formas acusatórias (como quando os moralistas franceses do século XVII de-
nunciam a “vã” glória ou, ainda, por exemplo, na distinção de Pascal entre
grandeza de estabelecimento e grandeza natural), por vezes sob a forma de
uma elucidação que, inspirando-se no projeto de descrever a realidade sem
a submeter a um juízo de valor, abre caminho para legitimar o que ela é.
Esse é o caso nas páginas da obra de Hobbes que utilizamos para oferecer
uma primeira descrição da cité da opinião. O questionamento da validade
da comprovação leva a formular o princípio que a justifique. Assim, quando
La Bruyère escreve, no aforismo 21 do capítulo intitulado “Sobre os gran-
des”, dos Caractères [Personagens], “que há [grandes] tais que, se pudessem
conhecer seus subordinados e conhecer a si mesmos, teriam vergonha da
primazia” (La Bruyère, 1982, p. 230),1 ele esboça uma inversão das gran-
dezas sem envolver seres estranhos ao mundo doméstico. Na maioria dos
aforismos desse capítulo dedicado aos “grandes”, ele constata um estado
de decadência: os grandes não estão à altura de sua própria grandeza. Mas
para dar conta da reversão – “Em que os grandes deveriam se envergonhar
de sua primazia?” –, é preciso reunir as qualidades de pouco alcance e a
elas atribuir um valor geral, o que cria a possibilidade de ordenar as pes-
soas em função de outras grandezas, tais como, por exemplo, a utilidade,
princípio da grandeza industrial, cuja compatibilidade com os imperativos
e constrangimentos próprios de uma cité deve ser estabelecida.2 Da mesma
forma, a defecção dos artesãos especializados que, no final do século XVIII,
se livraram do domínio dos mestres das guildas para se fixarem livremente
nos faubourgs, os antigos subúrbios das cidades francesas – como na área
do Faubourg Saint-Antoine, em Paris –, e, de maneira mais abrangente, as
discussões gerais sobre as corporações de ofício que acompanharam a reforma
de Turgot (Kaplan, 1986) contribuem para a determinação de novas formas
de justificação, seja em termos de mercado seja em termos de capacidade, e
ingressam por seu turno em compromissos com a grandeza cívica da cole-
tividade, quando o estabelecimento de procedimentos que visam permitir a

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420 O apaziguamento da crítica

expressão da vontade geral pelo sufrágio incentiva um debate político sobre


a definição de cidadania.
A filosofia política opera uma conformação sistemática desses debates,
que ela submete a critérios de coerência interna e de compatibilidade com
as convenções admitidas em outros contextos. Esses imperativos devem ser
satisfeitos para que um princípio de justiça seja dotado de uma validade uni-
versal que lhe garanta a legitimidade. O trabalho filosófico constitui, assim,
um momento fundamental do processo de generalização que, consagrando
ao bem comum as qualidades associadas até então a propósitos particulares,
alcança a universalização dos valores. Ele assegura a reprodução do modelo
da cité em novas formas de grandeza sem exigir necessariamente um do-
mínio teórico completo da estrutura do modelo, submetendo as qualidades
levantadas pela valorização de novos objetos de compromisso a um controle
lógico e a uma confrontação sistemática com os requisitos de justiça próprios
da comum racionalização. O rigor desse trabalho de formatação contribui
para explicar como as pessoas comuns poderiam contar com a competência
necessária para reconhecer, intuitivamente, a validade de um argumento sem,
entretanto, contarem com a capacidade de engendrar novos princípios de
justificação que, na ausência de uma natureza na qual se colocar em ação
prática, seriam, de todo modo, próprios de utopias.

A e l a b o r ação d e u m c o m p ro m i s s o d e E s ta d o :
ru m o a u m a c i t é c í v i c o - i n d u s t r i a l

Para ilustrar as análises anteriores, tomamos um exemplo familiar aos


historiadores das ciências sociais: o da filosofia moral de Durkheim. Esse caso
nos permitirá precisar como essa filosofia política, que constitui a “ciência da
moral” durkheimiana, favorece o estabelecimento de compromissos e, pela
mesma operação, coloca em pauta novas grandezas, esclarecendo um bem
comum capaz de sustentar aproximações legítimas. Para depreender os com-
promissos para os quais Durkheim pavimentou o caminho, é preciso primeira-
mente localizar sua filosofia moral em relação aos princípios já estabelecidos
que definem os limites de seu universo de referência: o princípio cívico ao
qual se associa a noção de coletividade, o princípio industrial que funda a
divisão do trabalho e a orientação para a ciência, e o princípio doméstico,
presente notadamente na referência às corporações. O compromisso entre o

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Os compromissos em nome do bem comum 421

altruísmo* coletivo e a eficiência industrial afasta o princípio mercantil, cuja


capacidade de sustentar uma cité harmoniosa e justa é contestada e cujos
utilitarismo e egoísmo são incessantemente denunciados.
A ciência da moral durkheimiana reconhece o princípio de utilidade e a
divisão do trabalho que suportam a cité industrial, cujo modelo construímos
nos apoiando na obra de Saint-Simon. Mas, diferentemente da economia po-
lítica, que também os toma por base, ela os dissocia do princípio mercantil
para associá-los a outra exigência da justiça coletiva, fundada na solidarie-
dade. Para realizar essa modificação de aliança, que substitui a divisão do
trabalho pela divisão do trabalho social, Durkheim recorre à construção
rousseauniana, que teve de ser denunciada como utópica para se construir
a grandeza industrial.
A edificação da grandeza coletiva e a crítica aos valores apoiados na
economia política estão indissociavelmente ligadas. É na polêmica, e para se
defender da acusação de ter recorrido a uma “metafísica”, que Durkheim
é mais especialmente levado a insistir na realidade da “sociedade”, do “ser
coletivo” como totalidade, como “verdadeiro ser” irredutível a uma “coleção
de indivíduos”, por vezes apresentado de forma mais específica como “na-
ção”, “país” ou “Estado”, o que favorece o encadeamento com a temática da
filosofia política e a passagem do corpo político ao corpo social: o “ser social”
não deve ser confundido com “um indivíduo ou outro” ou com “a maioria
dos cidadãos”, mas com “o país em seu conjunto”.** Com base no “egoísmo”

* O termo altruísmo, aqui, está especialmente circunscrito do ponto de vista teórico, não
representando simplesmente a acepção de senso comum de um desprendimento em relação
aos interesses com vistas ao bem do outro, mas o sentido original do pensamento de
Auguste Comte, que, no Catecismo positivista, cunha a palavra, propondo um altruisme,
um alter-ismo (ou outro-ismo), uma atitude de preocupação com o outro que, como
todos os comportamentos sociais morais, deve ser incentivada pela socialização – e,
portanto, pelos imperativos de pertencimento – em todos os indivíduos. (N. do T.)
** La science positive de la morale en Allemagne. Revue Philosophique, 1887. Republicado
em Durkheim, 1975, v. 1, p. 271-274 [“A ciência positiva da moral na Alemanha”, pu-
blicado no Brasil como Ética e sociologia da moral, pela editora Landy, com tradução
de Paulo Castanheira, edição usada para o cotejamento das citações]. Na sequência do
texto, esse artigo será designado pelas iniciais SP. As outras obras citadas mais de uma
vez serão designadas pelas seguintes iniciais: LS para O socialismo [citado em português
a partir do cotejo com a edição da editora Edipro, tradução de Sandra Guimarães];
MR, para Montesquieu e Rousseau [também a partir do cotejo com a edição da editora
Madras, tradução de Julia Vidili]; DT para Da divisão do trabalho social [cotejado com
a edição da editora Martins Fontes, tradução de Eduardo Brandão]; e LE para Lições
de sociologia [cotejado com a edição da Edipro, tradução de Cláudia Schilling].

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422 O apaziguamento da crítica

e nos interesses, por oposição aos “sentimentos desinteressados” da moral


social, a economia política não poderia pretender fundar uma cité: ela “se
aparta radicalmente da moral, se é que ainda restará algum ideal moral à
humanidade, uma vez dissolvido todo vínculo social” (Durkheim, 1975, SP,
p. 271-274).3 O “interesse”, na acepção entendida aqui por Durkheim, está
associado à singularidade das pessoas desejantes. Ele não pode, consequente-
mente, servir como princípio de equivalência, o que é coerente com a intenção
de demonstrar a impossibilidade de se construir uma cité harmoniosa e justa
fundada na troca de mercado.
A cité mercantil, então, só pode ser entendida de forma negativa. Assim,
por exemplo, as relações de concorrência são tratadas como encontros do aca-
so, puramente contingentes, porque, próprios do domínio do individual, eles
escapam à obrigação da regra.4 A extensão das relações de mercado cria um
mundo sem regras, sem moral e sem justiça no qual a cité se desfaz. A “ano-
mia”, dessa maneira, designa, no prefácio à segunda edição de A divisão do
trabalho social (Durkheim, 1960a, DT), a perda do bem comum e a queda
em um estado de caos, de “desordem”, de “aleatoriedade” e de discórdia, no
qual o “sucesso” supera a “moral”, a “força” supera a “justiça”, é a “lei do
mais forte” tratada como uma “lei natural” por oposição às “leis sociais”.5
Um primeiro passo na direção de se fundamentar a grandeza de com-
promisso objetivada por Durkheim consistirá em substituir os interesses dos
indivíduos pelo interesse coletivo. É por meio de uma análise do socialismo
e especialmente da obra de Saint-Simon (Durkheim, 1971, LS) que ele em-
preende a associação entre uma grandeza da indústria e o bem de todos.
E diferentemente do “comunismo”, movido “por razões morais e atempo-
rais” (p. 68), o socialismo, “que se vê surgir em um momento preciso da
história”, é impulsionado por “considerações de ordem econômica”.6 Para os
“socialistas”, como para os “economistas”, “as relações sociais são reduzidas
a relações de interesse” (p. 220). Mas enquanto estes últimos sustentam que
“não há nada que no fundo seja verdadeiramente coletivo, que toda sociedade
é apenas uma soma de indivíduos justapostos e os interesses sociais, a soma
dos interesses individuais” (p. 222-223), os primeiros e, especialmente, entre
eles, Saint-Simon, consideram que os “interesses econômicos, [...] como a ma-
téria única da vida em comum, devem ser organizados socialmente” (p. 222).
Mas a subordinação da indústria ao bem comum desejada por Saint­
‑Simon é insuficiente e utópica, porque não leva em conta a violência dos
apetites humanos.7 Com efeito, na antropologia durkheimiana – sem dúvida

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Os compromissos em nome do bem comum 423

parcialmente inspirada em Schopenhauer (Chamboredon, 1984), o que da-


ria conta das homologias com a filosofia política de Freud (Nisbet, 1984,
p. 110) – os seres humanos são animados por desejos sem freios (Besnard,
1973), que, diferentemente dos apetites animais, não são naturalmente limi-
tados por um instinto: “Não há nada no interior do indivíduo que contenha
seus apetites” (Durkheim, 1971, LS, p. 225). Eles devem, portanto, a fim de
não se tornarem “insaciáveis”, ser “contidos por alguma força externa ao
indivíduo” (p. 225). Essa força é a das representações coletivas e, nesse caso,
das representações morais, que emanam da sociedade, do ser social, do grupo,
como instâncias supraindividuais da razão prática. Apenas as coletividades,
lugares nos quais se engendra a moral, contam com a autoridade necessária
para conter os apetites individuais – cuja expressão descontrolada levaria a
sociedade a um estado de desagregação e de conflito próximo ao estado de
natureza8 – e para impor a cada pessoa o “sacrifício” necessário para que
a “utilidade privada” seja submetida à “utilidade comum”. Para Durkheim,
assim como para os outros filósofos políticos cujas construções nos serviram
para colocar em ação o modelo da cité, esse sacrifício é o fundamento mesmo
da concórdia entre as pessoas em uma sociedade.9
A construção durkheimiana de uma grandeza coletiva destacada dos
indivíduos e superior a eles, única coisa capaz de submetê-los a um impe-
rativo de solidariedade, pode ser, com vistas a abrir o caminho para um
compromisso industrial, tratada como uma reelaboração da grandeza cívica,
cujo modelo estabelecemos com base na obra de Rousseau. No curso que
consagra a este, Durkheim (1966, MR), assim como fará também mais tarde
Halbwachs em sua edição de Do contrato social (Halbwachs, 1976), levanta
aquilo que pode servir para fundamentar a realidade e a grandeza do ser
coletivo. Ele critica, em outro texto, o desinteresse de Rousseau pela atividade
econômica e o caráter puramente moral e, portanto, utópico de seu “comu-
nismo”, ou, em outro ainda, seguindo Saint-Simon, seu “individualismo” e o
voluntarismo como elementos subjacentes à ideia de contrato.10 Certamente,
ele opõe de forma clara “a concepção vitalista e substancialista da vida e da
sociedade”, que identifica com a obra de Rousseau, a uma concepção “orgâ-
nica”, a de um “todo, formado de partes distintas e solidárias umas às outras,
precisamente porque são distintas” (Durkheim, 1966, MR, p. 169-170), o que
prepara uma abertura para uma cité de compromisso, em parte inspirada
em Saint-Simon, e na qual a solidariedade coletiva repousa na divisão do
trabalho e na complementaridade das utilidades sociais. Não obstante, ele

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424 O apaziguamento da crítica

destaca igualmente em Rousseau todos os textos nos quais “o corpo políti-


co” é descrito na forma de um “ser coletivo” “superior aos indivíduos”, de
um “ser moral sui generis” não redutível à soma de suas partes, e dedica a
ele um comentário elogioso. É o caso, por exemplo, das páginas do Manus-
crito de Genebra, no qual Rousseau compara as sociedades a “compostos
químicos”, cujas “propriedades” não “se devem a nenhuma das substâncias
que os compõem”.11 Durkheim escreve: “Essa passagem notável prova que
Rousseau tinha um sentimento muito vivo da especificidade do reino social;
ele o concebia muito nitidamente como uma ordem de fatos heterogêneos em
relação aos fatos puramente individuais. [...] Para ele, a sociedade não é nada
se não for um corpo uno e definido, distinto de suas partes, [...] um corpo
organizado, vivo e semelhante ao do homem” (Durkheim, 1966, MR, p. 136-
137). Durkheim traduziu, como observa Steven Lukes (1973, p. 282-288), a
linguagem da “vontade geral” na linguagem da “consciência coletiva”, por
exemplo, ao falar de “vontades coletivas” (Durkheim, 1966, MR, p. 164),
ou ainda quando faz do “princípio socialista”, em Rousseau, a “base de sua
concepção orgânica da sociedade” (p. 141) e de uma origem supraindividual
da moral: “O que essa teoria expressa é que a ordem moral ultrapassa o
indivíduo, que ela não é realizada na natureza física ou psíquica” (p. 160-
161). Diferentemente, portanto, do que se pode ler, uma vez que a referência
a Rousseau seja usada para criticar o individualismo e, por seu intermédio,
para denunciar a grandeza mercantil, a interpretação é estirada na direção
do compromisso industrial. O pensador francês, então, esforça-se para orga-
nizar uma passagem do “corpo político”, objeto do contrato, para a “socie-
dade” como ser “objetivo”. E, independentemente das vontades individuais,
subordinadas a uma lei interna, ela apresenta suas próprias regularidades
e é suscetível de ser submetida à medição da mesma forma que os corpos
naturais. Durkheim, em seguida, explicita em Rousseau as análises que lhe
parecem conceder ao meio social “essa invariabilidade e essa necessidade que
caracterizam a ordem natural” (p. 151), que aparentemente fundam as “leis
escritas” nas “moralidades” e nos “costumes difusos” (p. 181) e lhes confere
“uma força que, por sua impessoalidade, seria idêntica, mutatis mutandis, às
forças da natureza” (p. 150). Da mesma forma, para enfatizar a transcendência
do ser social, ele retoma por sua conta a oposição presente em Rousseau entre
“agregação” e “associação”, entre a “soma” e a “composição”. Ele escreve
no artigo já citado, que “a sociedade é algo distinto da soma aritmética dos
cidadãos” (Durkheim, 1975, SP, p. 274).

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Os compromissos em nome do bem comum 425

Finalmente, a maneira como Rousseau concebe a tensão, em cada


homem, entre o particular e o geral, ilumina a concepção durkheimiana da
relação entre os seres individuais e o ser social. Se a edificação de uma cité
justa demanda “sacrificar o individual ao social”, esse sacrifício, necessário
“como o de Abraão, não é feito sem esforço, hesitação e concessão”, escreve
Georges Davy em sua Introdução às Lições de sociologia (Durkheim, 1950,
LE, p. XXV). Assim, Durkheim está ciente de que deve ser capaz de dar conta
dos atos individuais. Embora os verdadeiros seres sejam os coletivos, não se
pode, contudo, ignorar que essas coletividades incluem os “indivíduos”: se
“a sociedade é um ser verdadeiro”, permanece verdade que esse ser “não é
nada fora dos indivíduos que o compõem” (Durkheim, 1975, SP, p. 272). Lu-
gares dos quais emanam as representações coletivas, a sociedade ou o grupo
são também, em Durkheim, as instâncias normativas. Isso é consistente com a
ética rousseauniana, que fundamenta a virtude na obediência à vontade geral,
da qual procede a lei. Mas o movimento que consiste em dissociar a razão
prática do entendimento próprio de cada indivíduo para instalar o princípio
em uma instância superior às pessoas, já mobilizado em Rousseau, é levado a
termo propriamente por Durkheim.12 O homem durkheimiano não é menos
partilhado que o homem rousseauniano. Em Durkheim, a tensão entre o
interesse individual e a vontade geral, no foro íntimo de cada homem, toma
a forma de uma tensão entre os desejos egoístas do indivíduo, a que se con-
fere livre curso na troca mercantil, e as tendências altruístas, que a ele vêm
por seu pertencimento a uma coletividade. Na antropologia rousseauniana,
o interesse particular tende sempre a prevalecer em cada homem sobre a
submissão à vontade geral, porque o primeiro é diretamente dependente dos
apetites naturais, enquanto a segunda, desprovida de aparelhamento, está
submetida à pura vontade e à virtude. Para Durkheim, por sua vez, a socie-
dade é dotada da estabilidade e da objetividade que qualificam as coisas, e
ele pode se perguntar sobre a maneira como a natureza social é capaz de se
fazer senhora da natureza humana, impondo aos indivíduos o respeito pelas
regras supraindividuais. Ele se concentra, consequentemente, em analisar
as condições para a realização dos imperativos e constrangimentos sociais.
Para que a autoridade do corpo coletivo seja concretizada, cada indivíduo
deverá senti-la em si próprio e, mais especificamente, em seu próprio corpo.
A solidariedade, para ser efetiva, supõe, portanto, um duplo movimento:
a tomada das regras das quais depende o julgamento e sua passagem da
pessoa para o coletivo devem ser seguidas por um movimento inverso, por

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426 O apaziguamento da crítica

meio do qual as representações morais coletivas retornam, para se inscrever


no coração de cada um. A fim de que a sociedade possa opor resistência à
anarquia destrutiva do desejo, a exteriorização da razão prática deve andar
junto com o movimento de interiorização. As pessoas individuais, mesmo
tomadas separadamente em um estado isolado, podem estar em conformidade
com a moral, porque interiorizaram as representações coletivas. É esse duplo
movimento de exteriorização-interiorização que garante, no que poderia ser
chamado de uma cité coletiva, a coordenação das ações individuais e sua
orientação para a solidariedade.13
Mas esse movimento não é inexorável. Para que a autoridade coletiva
se faça sentir e para que a interiorização seja consumada, é necessário que
a distância entre a instância coletiva e as pessoas individuais não seja muito
grande. A coletividade deve garantir sua presença sob a forma de “institui-
ções”, capazes de aparelhar, instrumentalizar, a relação dos indivíduos uns
com os outros. Trata-se de uma modificação do esquema rousseauniano, que
carece de aparelhamento, cuja coerência supõe, assim, um componente inspi-
rado e no qual os corpos intermediários são visíveis apenas sob a forma de
“conluios”, opondo a resistência do indivíduo à expressão da vontade geral.
Essa modificação permite relacionar a grandeza cívica com a divisão do tra-
balho: entre a coletividade nacional e as pessoas individuais, há espaço para
grupos, concebidos, eles próprios, como totalidades, andando lado a lado com
os contornos de diferentes estados profissionais.14 Esses grupos apresentam
um caráter de necessidade. Eles mantêm a coesão do corpo social, que sem
eles se desfaz como uma justaposição de indivíduos egoístas. Durkheim, as-
sim, toma a realidade de uma sociedade que abarca corpos intermediários e
a opõe à abstração da República de Rousseau, na qual nada se impõe entre
o indivíduo e o Estado e que não pode, assim, impor um freio à anarquia
das relações mercantis.15
A referência às “corporações”,16 com base em uma análise das congre-
gações romanas e das guildas da Idade Média, introduz no compromisso
cívico-industrial, do qual emerge o projeto de uma cité coletiva, um compo-
nente doméstico:

Um culto comum, banquetes comuns, festas comuns, um cemitério comum: não


estão reunidas todas as características distintivas da organização doméstica entre
os romanos? Por isso pôde-se dizer que a corporação romana era uma “grande
família”. [...] A comunidade dos interesses assumia o lugar dos vínculos de
sangue. [...] O grupo profissional não lembraria a esse ponto o grupo familiar

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Os compromissos em nome do bem comum 427

se não houvesse entre eles algum vínculo de filiação. De fato, a corporação foi,
em certo sentido, herdeira da família. [...] Ela substituiu a família no exercício
de uma função que de início fora doméstica, mas que já não podia conservar
esse caráter. (Durkheim, 1960a, DT, p. XIII-XIV, XX)

A passagem pela cité doméstica é necessária para aproximar as instân-


cias de regulação e as pessoas engajadas nas atividades produtivas e para
remediar a diminuição das pressões exercidas pelos “grupos domésticos” e
pelos “grupos locais”. Ela transfere para as atividades econômicas as fun-
ções de moralização e de repressão exercidas por esses grupos no jogo de
relações de dependência pessoal. No entanto, não se trata, para Durkheim,
apenas de compensar a diminuição das dependências familiares com uma
ampliação dos imperativos e constrangimentos de ordem profissional. Com
efeito, o autor se empenha em dissociar da consanguinidade o princípio da
instituição familiar, para valorizar seu caráter de relação política, de modo
que não é nada impróprio falar, no seu caso, do recurso ao plano superior
comum de uma cité doméstica.17
Mas as corporações não podem ser mais simplesmente instituições do-
mésticas. Para ingressar no compromisso da cité coletiva, elas devem entrar
em composição com as grandezas industrial e cívica. Durkheim enumera,
então, na terceira das Lições de sociologia dedicadas à “moral profissio-
nal” (Durkheim, 1950, LE, p. 36-51), adentrando bastante profundamente
nos detalhes dos “problemas práticos”, os ajustes que devem ser feitos na
antiga instituição das corporações para adaptá-la à indústria e ao Estado
modernos: a deslocalização – substituir um “organismo local, comunal” por
um “organismo geral, nacional, unificado” (p. 47); o estabelecimento de co-
légios eleitorais independentes para empregadores e empregados, “pois seus
interesses também seriam manifestados de forma antagônica” (p. 49-50); a
ligação das corporações ao Estado (p. 50), que pode transferir para aquelas
o peso da realização da “tarefa legislativa” em relação à economia, que deve
ser “diversificada conforme as indústrias”, da gestão de “caixas de aposenta-
doria e previdência” (p. 50) e da resolução dos “conflitos de trabalho” por
“tribunais especiais” (p. 50-51).
O recurso às corporações para instrumentalizar a relação entre indiví-
duos e as coletividades constitui, assim, uma das soluções propostas no século
XIX para resolver o problema da “representação dos interesses profissionais”
(Parrot, 1974). É, com efeito, nesses termos que se coloca historicamente a
questão da relação entre as grandezas cívica, industrial e doméstica, tornada

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428 O apaziguamento da crítica

particularmente espinhosa pelo desenvolvimento da indústria e sobretudo pela


dissociação – após a lei de Le Chapelier* e o desmantelamento das corpora-
ções pela Revolução Francesa – entre a condição profissional e a cidadania
política, concebida, no espírito do jacobinismo, como o estado ao qual ace-
dem os indivíduos “despojados de toda particularidade concreta”, uma vez
que realizam pelo voto o pertencimento à nação (Furet, 1978, p. 224-226).
Essa questão tolera muitas outras respostas, como as associações de trabalha-
dores (que conduzem ao sindicalismo), cuja formação, entre 1830 e 1848, é,
antes de tudo, o resultado de um trabalho de compromisso entre a grandeza
doméstica e a grandeza cívica, trabalho por meio do qual os trabalhadores,
como mostra William Sewell, “combinaram suas noções corporativas de so-
lidariedade profissional com as ideias revolucionárias de soberania popular”
(Sewell, 1983, p. 33). Ela também é abordada pelas construções destinadas
a harmonizar a tensão entre a utilidade social, medida pelas competências,
e a participação no exercício da soberania nacional, como mostra a história
dos debates que tiveram como objetivos fundamentar a distinção, esboçada
por Sieyès, entre “cidadãos ativos” e “cidadãos passivos”, e associar a ca-
pacidade profissional à capacidade eleitoral (Rosanvallon, 1985, p. 95-132),
em um compromisso entre a grandeza industrial e a grandeza cívica próprio
a expurgar a grandeza doméstica (com, por exemplo, a distinção entre “su-
perioridade” e “privilégio”, “superioridade de funções, e não das pessoas”).
Isso significa que não se pode, como fazem muitos comentadores, a
fim de evitar em relação a esse assunto uma crítica ideológica precipitada
e sumária, dissociar a construção durkheimiana das outras tentativas de
restauração das corporações, particularmente desenvolvidas nas filosofias
políticas nas quais se inspiram as correntes legitimistas e o catolicismo social
em suas tendências tradicionalistas e antiliberais. E essas tentativas levarão
ao renascimento do pensamento corporativista** na década de 1930 e à cria-

* Lei aprovada em junho de 1791 nos Estados Gerais, proposta pelo deputado Isaac Le
Chapelier, e que determinava o banimento das organizações de trabalhadores e dos
sindicatos e a extinção das corporações de ofício. (N. do T.)
** Aqui, usado em sentido estrito, isto é, referindo-se às várias doutrinas corporativistas,
que consideram que os grupos profissionais são os agregados fundamentais da vida
social e fundamentam uma visão política a esse respeito. A palavra costuma ser usada
em sentido lato para indicar o favorecimento – em geral, tratado como corrupção – de
integrantes de uma categoria profissional ou funcional por seus pares contra outras,
sentido não aplicado aqui. (N. do T.)

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Os compromissos em nome do bem comum 429

ção de instituições baseadas nessa doutrina sob o Regime de Vichy, em um


horizonte de compromisso com a grandeza industrial. O abandono dessa
primeira “terceira via” (entre o “coletivismo” e o “liberalismo”) favorecerá o
desenvolvimento e o aparelhamento do compromisso cívico-industrial – por
exemplo, com a instituição do Commissariat Général du Plan, encarregado
do planejamento econômico quinquenal da França, entre 1946 e 2006. Essa
segunda “terceira via” é baseada na crítica do “coletivismo” e do “tradi-
cionalismo” (sob a forma de “malthusianismo”, de “paternalismo”, etc.) e
pretende vincular, com vistas a um mesmo bem comum, a eficiência industrial
e a justiça social (sistemas de proteção social, redistribuição dos ganhos de
produtividade, etc.). Ela supõe a instauração, no Estado, de novas formas
de representação da condição profissional das pessoas (convenções coletivas,
classificações profissionais negociadas com os sindicatos, etc.), tendendo a
alterar as qualidades inerentes à cidadania (Boltanski, 1982, p. 66-154, 170-­
‑178). Entretanto, por mais aparelhado que seja esse compromisso, resulta
que, na falta de uma nova cité, na qual as grandezas nele envolvidas fossem
superadas, a profissão, considerada pelos atores sociais em muitas situações
um atributo fundamental da pessoa, permanece como um ponto de passagem
entre grandezas e um objeto de tensões, cuja apreciação é muitas vezes oca-
sião de controvérsias, porque ela pode reivindicar princípios de equivalência
dificilmente compatíveis. Como evidência disso, nos exemplos reunidos no
capítulo anterior, estão o grande número de críticas girando sobre o eixo da
profissão (como a crítica inspirada à falsa grandeza dos especialistas, a crítica
industrial à aprendizagem tradicional ou ainda a crítica cívica à transmissão
familiar de posições profissionais).

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Capítulo 10

Figuras d o c o m p ro m i s s o

C o m p ro m i s s o s e n vo lv e n d o o m u n d o
da i n s p i r ação

Com o mundo doméstico. A inspiração, que é consisten-


te com seu próprio conceito apenas como experiência pura,
não pode se inscrever em uma cité e se tornar o sustentáculo
de um princípio universal de justiça sem ser transmitida e,
com isso, sem haver um comprometimento para com ela. Já
nos deparamos com esse paradoxo diante dos argumentos
de Santo Agostinho para justificar a escrita e a publicação de
uma confissão que, no que diz respeito a Deus, é inútil, vis-
to que ele já a conhece desde toda a eternidade, e que, em
relação aos homens, é desculpável apenas se relacionada a
um projeto de edificação. Dado que a experiência dos movi-
mentos da alma sob a influência da graça e dos estados do
corpo por ela suscitados é por definição inefável, salvo de
uma forma metafórica e abordada de maneira mística, a meio
caminho, assim, entre a poesia e a psicologia, sua transmissão
necessita de um compromisso, muitas vezes envolvendo o
mundo doméstico, como é o caso na relação iniciática entre A relação iniciática
entre mestre e discípulo
mestre e discípulo. A proximidade dos corpos, a permanência
de um contato bastante prolongado, a entrega total de si, a
partilha de emoções e afetos, a monotonia do canto, da re-
citação ou da ladainha, a repetição que conduz à formação
de hábitos incorporados tornam possível a transmissão e a
internalização de um conhecimento enormemente difícil de
transportar pela via única da escrita ou mesmo simplesmente
pela palavra. Nesse tipo de aprendizagem, que raramente se
libera de forma completa do estudo de textos ou da pregação,

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432 O apaziguamento da crítica

o conhecimento adquirido pela transmissão escrita ou oral é


continuamente comprovado e recomprovado de uma outra
forma, na relação prática com o mestre, com os outros, com
espécies naturais ou com poderes sobrenaturais. Nesse modo
de aquisição de conhecimento, no qual a fé precede uma
compreensão da qual ela é condição prévia, e que por sua vez
a reforça, e assim por diante de forma circular, a experiência
de aprendizado se confunde com a experiência de aprofun-
damento, de uma remodelação permanente da relação com o
mundo, tratado como um texto de significados inesgotáveis.
Na obra que analisamos e que, destinada a empresas,
comporta necessariamente um forte componente industrial,
esse compromisso não está plenamente desenvolvido. Entre-
tanto, o autor enfatiza repetidamente a ideia de traição com-
portada pela tradução do conhecimento sob a forma de uma
mensagem padrão própria a se tornar objeto de uma trans-
missão uniforme, como vimos no caso de tipos inspirados de
denúncia do conhecimento do especialistau ou da autoridade
em um assunto, o mandarimu. Ele sugere, em vez disso, que
aquele que sabe, por ter experimentado em si mesmo aquilo
que é chamado a transmitir, é levado a se fazer mestrei-d para,
em uma relação de autoridaded pessoal e corporal, reconsti-
tuir a experiência que detém para outro, que ele toma por
discípulo e no qual ele fica decalcado, por sua convicção, seu
engajamento, seu exemplo ou ainda por gestos ou pelo tim-
bre de sua voz. O mestre despertai o discípulo. O autor diz:
“Tento ser, como diz um estagiário, aquele capaz de despertar
[os aprendizes]”. Mas os compromissos com outros mundos
acompanham necessariamente a transmissão da inspiração
uma vez que ela crie um caminho entre as pessoas. E não por
um impulso que lhe seja inerente, mas sim pela combinação
com a vontade e as ações dos homens. Esses compromissos
assumem diferentes formas, conforme a situação seja peda-
gógica, como no caso mencionado anteriormente, no qual se
faz nascer para uma nova vida uma pessoa adotadad como
discípulo (compromisso doméstico), ou seja política, quando,
em um impulso profético, se lança um chamadoi ao povo para

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Figuras do compromisso 433

se mobilizarc (compromisso cívico), ou seja ainda midiática,


quando o ato inspiradoi é dado como espetáculoo, dirigido
a uma multidão a fim de a seduzir e conquistar sua adesão.
Este último caso hipotético introduz um compromisso entre
a inspiração e a opinião do qual se pode encontrar um outro
exemplo em certas formas de identificaçãoo que abrem espaço
para manifestações emocionaisi espetaculareso.
Com o mundo da opinião. Lembremo-nos, com efeito, A histeria dos fãs
de que, no mundo da opinião, a identificação define a relação
de grandeza entre os seres. Esse mecanismo é trazido à luz
no texto que fundamenta essa cité e, nele, o Leviatã, os de
maior grandeza são os “atores” que abarcam os de menor
ao “personificá-los” por “sinais”, ao desempenharem seu
“papel”, ao “oferecerem como apresentação” suas “palavras”
e “ações” em uma “cena”, ao “assumirem” a “personalidade”
deles, “atuando” em seu nome (Hobbes, 1971, p. 161-162).
Assim, na cité da opinião, os pequenos se identificam com
os grandes; os desconhecidos, com aqueles à vista; os que se
encontram na obscuridade, com os que brilham, com as cele-
bridades ou estrelas: eles se submetem à influência e imitam
aqueles com os quais se identificam. Os escritos sobre o star­
‑system e a sociedade midiática, particularmente numerosos
nos anos 1960, descrevem, geralmente de uma maneira críti-
ca, esses processos de identificação, seja em uma formulação
que os encaminha para o mundo mercantil, uma vez que os
sinais do renome estejam atrelados a produtos – “A estrela
publicitária nos convida a nos identificar parcialmente com
ela” (Morin, 1972, p. 124) –, seja nas expressões que apelam
para os recursos do mundo inspirado: “O culto às estrelas
revela seu sentido mais profundo nos momentos de histeria
coletiva” (p. 87).
Como vimos em nossa leitura de Hobbes (1971, p. 71),
em um mundo da opinião, a inspiração é interpretada como
fonte de loucura. A composição de duas grandezas é realizada
no meio da multidão em delírio. Nela, as pessoas perdem
uma individualidade necessária nesse mundo para dar ou re-
ceber crédito. Elas se integram com o ator que as personifica,

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434 O apaziguamento da crítica

identificam-se com ele e se deixam invadir por sua presença


como por uma força exterior. É a esse estado de inspirada
confusão com a estrela que se entrega a “massa idólatra dos
fãs” (Morin, 1972, p. 65). Uma vez que a identificação tome
por modelo um lídero políticoc e que este seja naturalmente
objeto de denúncias cívicas, ela habitualmente não é mais
assumida nas expressões canônicas da grandeza da opinião,
e sim apresentada, de maneira ainda muito mais clara que no
caso das estrelaso, sob a forma de uma crítica: as “multidões
sugestionáveis” por um “condutor” (Le Bon, 1971, p. 18).
No guia de relações públicas que utilizamos, é, então,
de uma forma profanatória que a identificação com o líder
político é vista, por meio das considerações sobre a “idade
mental” do “grupo” – “Uma vez que um grupo é reunido,
quanto maior o número de participantes, tanto menor é sua
idade mental” – e da denúncia da propaganda. De fato, esta
constitui uma forma ilegítima, da qual as relações públicas
da empresa devem se afastar para constituírem um compro-
misso válido. A ilegitimidade da propaganda não se deve à
associação da opinião e do civismo, que pode abrir caminho,
como se verá adiante, para a formação de compromissos
aceitáveis, mas à presença de um componente industrial,
este muito fortemente acusado e que, dedicado a confundir
a capacidade crítica das pessoas e, no limite, a atacar sua
humanidade (“lavagem cerebral”), contraria os princípios de
comum humanidade e de dignidade comum.
O homem revoltado Com o mundo cívico. A exigência de questionamento
comum aos mundos inspirado e cívico favorece as passa-
gens e compromissos entre eles. Conforme o agenciamento
em que figure, esse questionamento pode consistir em uma
manifestação puramente inspirada, necessária para se atingir
o desprendimentoi, ou se direcionar para o mundo cívico, se
for suportada pelo horizonte do bem-estari públicoc. Fala-se,
então, de um “questionamento mais geral”. Engajada em um
compromisso cívico-inspirado, essa colocação em questão as-
sume a forma de uma revolta antes de tudo espontâneai, mas
que, diferentemente das rebeliões anárquicas, é canalizada em

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Figuras do compromisso 435

um movimentoc revolucionário organizadou, isto é, no qual a


montagem da relação cívica é aparelhada por meio de “méto-
dos eficazesu de mobilizaçãoc” e em que a contestação política
pode se fundamentar em uma teoria científicau da história
políticac. A ação revolucionária dificilmente pode recusar al-
gum compromisso com a inspiração, porque sua legitimidade
repousa, em última instância, sobre a experiência vivida dos
trabalhadores e em sua tomada de consciência. É na medida
em que estão próximos dos “trabalhadores”, que “começam
(na empresa) a tomar consciência” de seus “interesses co-
muns” e a saber “extrair da experiência vivida pelos militan-
tes [...] os ensinamentos”, que os responsáveis podem ser os
artesãos da união de todos. Um movimento que se dissocie
da experiência dos trabalhadores corre o risco de se esvair
na burocracia. Mas a “tomada de consciência” só constitui
uma força revolucionária na condição de se inscrever no pro-
grama de um aparato coletivo. Ela permanece tácita, latente,
na forma de um mal-estar individual, se não for colocada
em operação pelos porta-vozes capazes de a despertari, de a
expressar e de a mobilizar para uma ação construtiva:

No âmbito de suas atividades, os sindicalizados tomam ciên-


cia da pulsação dos trabalhadores. Ficam sabendo quais são
seus desejos, quais aspirações surgem no local de trabalho.
Eles podem, se a seção sindical tiver a tendência a adormecer,
despertá-la, suscitar debates, etc. Os membros estão realmente
na base da seção sindical.

Com efeito, a tomada de consciência não é suficiente


para edificar e estabilizar as pessoas coletivas. Para solidificar
a coletividade e conferir a ela uma vontade única, é preciso
traduzir as aspirações dos trabalhadores. Essa tradução é ne-
cessária para transformar a revolta, manifestação individual
que pode ser criticada como individualista, em reivindicação,
isto é, em expressão cívica de um interesse coletivo: a seção
sindical “deve estar atenta aos milhares de fatos cotidianos,
às milhares de questões que os trabalhadores se colocam,
por vezes inconscientementei, se ela desejar transformar a

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436 O apaziguamento da crítica

revoltai em reivindicaçõesc e mostrar que as saídas existem,


que a resignação não é uma solução”. O reconhecimento
de uma grandeza própria da experiência vivida permite,
como é frequentemente o caso nos compromissos nos quais
ingressa o mundo da inspiração, lidar com a oposição entre
o fechado e o aberto, entre o que diz respeito à organização
(ponto de passagem para o mundo industrial) e aquilo que
advém da imaginação – “O essencial é também uma questão
de imaginação [...] no âmbito do sindicato” –, entre o estável
e o inquieto, entre aquilo que está congelado e aquilo que
está vivo: “A prática sindical é viva, ela evolui permanente-
mente graças às lições que podemos extrair das experiências
[...] acumuladas pelos militantes no decurso de suas ações
cotidianas”.
Os intercâmbios entre o mundo inspirado e o mundo
cívico são, por outro lado, favorecidos pelas incertezas que
pesam sobre as formas de expressão da vontade geral, pelo
menos na versão canônica da cité cívica, de inspiração rous-
seauniana, que prevaleceu na França: a definição de sobera-
nia desenvolvida sob a Revolução Francesa é, como se sabe,
atravessada por uma tensão bastante viva entre uma “demo-
cracia pura”, que condena a representação, e um “modelo de
democracia representativa”, fundamentado no sufrágio ou na
competência (Furet, 1978, p. 227; Rosanvallon, 1985, p. 95-
104). Essa tensão entre a soberania popular e o aparato de
representação da vontade nacional no Estado figura, no livro
usado para analisar o mundo cívico, no tratamento dado à
“justiça”. A referência à “justiça” figura nele, na maioria das
vezes, de forma profanatória, como se evidencia, particular-
mente, no uso sistemático de aspas quando o termo se refere
ao Judiciário. Os autores pretendem com isso desqualificar o
sistema judiciário do Estado e as decisões tomadas por seus
magistrados, demonstrando que elas não estão em confor-
midade com a verdadeira justiça, cuja legitimidade repousa
não na instituição, mas no povo soberano. As expressões de
indignação e enfurecimento diante de injustiças e, especial-

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Figuras do compromisso 437

mente, diante do caráter injusto das decisões judiciais podem


se constituir como as manifestações espontâneas do senso de
justiça inerente ao povo. Essa oposição pode também se com-
binar com a distinção, mais geral, entre o direito processual,
tratado como uma tecnologia destinada ao uso instrumental
(procedural), e a justiça, tratada como uma extensão do
senso moral.
O caminho para os compromissos com o mundo inspi- O gesto de
protesto
rado, que favorece a tensão inerente na cidade cívica entre
a soberania popular e o aparelho estatal, é muitas vezes
tomado emprestado por aqueles que, apoiando-se de forma
por vezes explícita na Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão, reivindicam, contra a Constituição que a
ela se segue, o direito de levar diretamente diante do povo
soberano as causas que lhes sejam importantes e das quais
são muitas vezes partes envolvidas, na condição de vítimas.
A expressão de sua causa e a revelação das injustiças que
combatem muitas vezes são acompanhadas da denúncia do
aparelho judiciário e dos juízes que tenham tratado do caso
e que são acusados de trair os deveres de seus cargos para
benefício dos poderosos.
Na falta de recursos políticos legítimos que permitam
construir uma ponte entre as pessoas na condição de cidadãos
e o povo na condição de soberano (como, por exemplo, o
direito de petição ou de expressão direta perante a assembleia
dos representantes do povo), esses defensores de uma causa
justa só podem acessar o povo soberano tomando emprestado
as vias da mídiao. Eles não podem levar diante do tribunal
do povo as injustiças pelas quais demandam reparação senão
escrevendo aos jornaiso, à rádio ou à televisão. O acesso à
mídia é o único meio de que eles dispõem para alcançar a
opinião públicac. Ora, essa entidade pode se alternar em
diferentes significados, do polo do mundo cívico ou do polo
do mundo da opinião. A construção de um compromisso
inspirado-cívico os conduz quase necessariamente a entrar
em composição também com o mundo da opinião. Mas essa
forma de compromisso cívico-inspirado é difícil de sustentar,

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438 O apaziguamento da crítica

como evidenciado pelo fato de os protestos desses denuncian-


tes serem muitas vezes desacreditados aos olhos do mundo e,
especialmente, aos olhos dos jornalistas a que se direcionam,
por conta dos traços que evidenciam sua estranheza. Quando
se trata de um texto escrito, um libelo, uma carta aberta,
uma carta ao editor, etc., esses sinais estranhos, de ordem
estilística ou gráfica (zombarias, ênfases, insultos, etc.), devem
ser relacionados às formas de prova do mundo inspirado.
Eles explicitam a força da convicção do foro íntimo, o vigor
da indignação, a autenticidade da revolta, tornada evidente
pela emoção que conduz o denunciador, quase contra sua
vontade, e pelos riscos incorridos, que garantem o caráter não
instrumental e desinteressado de seu empreendimento. Mas
essa maneira de se apoiar no mundo inspirado para funda-
mentar a legitimidade de um protesto público é uma faca de
dois gumes, pois é precisamente o aparecimento simultâneo
de seres próprios de diferentes naturezas em um mesmo
contexto, isto é, principalmente (mas não exclusivamente) do
mundo inspirado e do mundo cívico, que é interpretado pelos
outros como um signo de anormalidade, quiçá de loucura
(Boltanski, 1990).
Mas o questionamento inspirado das grandezas cívicas
não toma o caminho apenas da escrita. Ele também pode ser
expressado por meio de gestos de protesto. Muitas vezes se
usa o termo gesto para designar um sacrifício pertinente no
mundo da inspiração, mas consumado por fins da grandeza
cívica. Assim, fala-se de um gesto para descrever a ação de
alguém que se demitiu, que recusou um prêmio, que devolveu
uma condecoração, etc. e que o fez tornando público esse ato.
A renúncia a distinções cívicas não é, nesse caso, uma ma-
nifestação da grandeza inspirada que, como tal, desdenharia
das honras desse mundo. Se esse fosse o caso, esse movimento
de divulgação do gesto seria incongruente. Pelo contrário,
esse sacrifício adquire todo o seu sentido em um compro-
misso inspirado-cívico destinado a dar suporte às revelações
de impurezas que ameaçam as comprovações cívicas. Pode-se,
por exemplo, devolver uma condecoração para denunciar o

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Figuras do compromisso 439

tráfico de influência representado justamente pela concessão


desse tipo de reconhecimento. Aquele que executa um gesto
de protesto atrai para si a atenção dos outros por conta de
um ato extraordinário que demanda interpretação. Esses ges-
toso espetaculareso, que colocam os instrumentos da opinião
a serviço de causas coletivasc, supõem, portanto, a presença
dos outros, mas sem ser a eles explicitamente direcionados.
Com efeito, em sua pureza natural, o gesto inspirado é soli-
tário. Mas não exerce nesse caso nenhum efeito direto sobre
outrem. Para se constituir como uma ferramenta efetiva de
mobilização, o gesto deve ser visível e marcante. Mas, com
isso, corre o risco de escapar do mundo inspirado e pivotar
totalmente para o lado do mundo da opinião, o que o faz
perder seu valor demonstrativo. Pois o gesto – e este é o
paradoxo – só pode suscitar mobilização se for conhecido
pelos outros, sem que possa, apesar disso, ser acusado de
ter sido realizado com a intenção de influenciar esses outros.
De fato, se esse for o caso, ele pode ser denunciado como
“interesseiro” e como “instrumental”: fala-se, por exemplo,
do “gesto calculado” de alguém que quer fazer uma cenao,
mostrar-se interessante, fazer-se bem-visto ou se fazer amado
pelo público. A perspectiva de um sacrifício corporal constitui
uma das formas privilegiadas de se preservar a dimensão ins-
pirada do gesto cívico ao elevar o custo das críticas voltadas
para a revelação como inautêntico, estratégico, dissimulado,
interesseiro ou espetaculoso. Isso é visto, por exemplo, nos
casos de automutilação destinados a protestar contra o
universo carcerário ou, ainda, na greve de fome. Esse tipo
de manifestação, realizada por uma pessoa singulari, mas
por uma causa comumc, é um objeto de compromisso que
atrela, no polo da fome, a compaixão íntima pelo corpo em
sofrimento e, no polo do civismo, a responsabilidade pública
das autoridades.
Mas essa forma de protesto, que, contudo, exige das
pessoas um alto grau de engajamento, pode também tombar
diante da acusação de falta de sinceridade ou de simulação,
porque permite tornar o sacrifício progressivo e, com isso,

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440 O apaziguamento da crítica

graduar a ameaça exercida sobre os outros. Será apenas


quando o gesto consistir em fazer o sacrifício da própria vida
que não se poderá aceitar a acusação de falta de autentici-
dade. Esse sacrifício, que não pressupõe a posse de qualquer
bem senão o próprio corpo, é, justamente por essa razão,
uma das vias pelas quais as pessoas ignoradas, sem autori-
dade ou fortuna, podem aceder a uma forma de grandeza.
O anarquista italiano Bartolomeo Vanzetti disse, depois de
sua condenação:

Se isso não tivesse ocorrido, poderia ter passado toda a minha


vida a falar nas esquinas para homens desdenhosos. Poderia
ter morrido desconhecido, ignorado: um fracassado. Agora
não somos fracassados. Essa é a nossa trajetória e nosso
triunfo. Nunca, em todas as nossas vidas, poderíamos esperar
fazer tanto pela tolerância, pela justiça, pela compreensão
mútua dos homens como fazemos hoje, por acaso. Nossas pa-
lavras, nossas vidas, nossos sofrimentos não são nada. Mas o
sacrifício de nossas vidas, vidas de um bom sapateiro e de um
pobre peixeiro ambulante, isso é tudo! Este último momento
é nosso. Esta agonia é o nosso triunfo!*

A genialidade coletiva A capacidade de criar, um atributo de gênioi sob domí-


nio da inspiração, pode ingressar em um compromisso com a
natureza cívica quando for atribuída a um grupoc. A exalta-
ção do espírito de um povo, isto é, de sua capacidade, como
uma coletividade, de gerar formas literárias, artísticas, polí-
ticas, conforme uma genialidade própria, constitui uma das
expressões canônicas desse compromisso. Ela está presente,
embora de modo menos ambicioso, no guia de criatividade
que nos serve como obra de referência, na afirmação de que
“um grupo pode aprender a criar da mesma maneira que um
gênio individual”. Esse compromisso, organizado por uma
passagem pelo mundo industrial (aprendizagem), está direta-
mente relacionado com a profissão do autor, cuja atividade

* Declaração de Vanzetti após sua condenação em 9 de abril de 1927,


retirada do filme Sacco e Vanzetti (1971), de Giuliano Montaldo, com
roteiro de Fabrizio Onofri, Giuliano Montaldo e Ottavio Jemma.

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Figuras do compromisso 441

de “consultor de criatividade” é exercida diante de grupos


reunidos no decurso das sessões. A criação em grupoi-c ul-
trapassa ainda esse contexto, como evidenciado pela alusão
à efervescência coletiva de Maio de 1968, que “fez muitos
tomarem consciência de qual é o poder da imaginação”, e
ao calor dos encontros libertos, capazes de fazer eclodir a
inspiração, por oposição à rigidez hierárquica da “sociedade
bloqueada”.*
Com o mundo mercantil. No mundo mercantil, como
no inspirado, a coordenação das ações não passa por uma
continuidade temporal, que, pelo contrário, é desconsiderada,
porque bloqueia os impulsos, elãs do desejom ou da criaçãoi.
A instabilidade de ambas as grandezas, mercantil e O mercado criativo
inspirada, pode servir a uma composição com o objetivo
de tomar as singularidades do que é incertoi, marcadas pela
insegurança e pela ansiedade, e as tornar compatíveis com
a oportunidadem, da qual podemos tirar vantagem uma vez
que saibamos aproveitar a ocasião, transformando, assim, o
acaso em sorte. Como escreveu Mises (1946, p. 33-34): “Os
homens ávidos de lucro estão sempre em busca de ocasiões
favoráveis. [...] Quem quer que persiga o lucro deve estar
absolutamente aberto a novas oportunidades”.
A descoberta de novos bens, que tomam forma no
decurso do processo de comprovação mercantil, transforma
uma coisa insignificante em bem precioso nitidamente identi-
ficável. A brusca e imprevisível emergência desse novo objeto
é uma oportunidade para dar suporte ao compromisso de um
mercado criativo.
Resulta, no entanto, que o compromisso pavimentado
pela possibilidade de se tirar proveito do acaso pode ser
denunciado por meio da especificação do mundo do qual
são próprios os seres pelos quais se é capturado por uma
casualidade. Será feita, assim, a distinção entre o acaso
inspirado, que marca um ser para o alçar a um estado de

* Alusão ao livro de Michel Crozier A sociedade bloqueada. Crozier,


Michel. La Société bloquée. Paris: Le Seuil, 1971. Edição brasileira:
A sociedade bloqueada. Brasília: Editora UnB, 1983. (N. do T.)

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442 O apaziguamento da crítica

eleito (o criador chamando a atenção para a graça contida


em um encontro que poderia passar por fruto do acaso), e a
chance do século, a oportunidade mercantil que percebe no
objeto a possibilidade de uma convergência dos desejos em
sua direção.
Fazer uma loucura Se a chegada inesperada de um novo bem ao mercado
pode ser aproximada da súbita ruptura que instaura o gesto
criativo, o avanço de um desejo irreprimível de apropriação
pode também ser relacionado com a paixão irresistível a que
se entrega a pessoa inspirada. Assim, fala-se, por exemplo, da
paixão que impulsiona para o mercado quando se “faz uma
loucura” (consumista), do furor de empreender e da força
do “desejo ardente” que conduz ao sucessom nos negócios.
O sublime não tem Considerar que a beleza não tenha preço é uma forma
preço
de promover um compromisso entre o mundo mercantil e
o mundo da inspiração, ao atribuir, diferentemente ao ex-
pressado pela frase, um preço (certamente bastante elevado)
para um ser inspirado. Encontra-se, na obra analisada para
descrever o mundo mercantil, dois exemplos particularmente
significativos desse compromisso. No primeiro, o autor lança
o seguinte slogan, perturbador se nos ativermos a qualquer
uma das duas naturezas a que possam corresponder os seres
envolvidos: “Saibas extrair lucro de um pôr do sol”. Ele des-
creve uma negociação na qual tais seres sublimesi puderam
ser envolvidos em um negóciom, e um negócio bem-sucedi-
do. Um outro exemplo, já citado, e, aliás, bem conhecido,
é “a história daquela mulher que se aproximou de Picasso
em um restaurante e lhe pediu para rabiscar algo em um
guardanapo; ela afirmava estar disposta a pagar o quanto ele
quisesse. Picasso o fez e disse: ‘São 10 mil dólares’”.*
A paixão pelo trabalho Com o mundo industrial. A energia, que representa a
rigoroso
especificidade da dignidade humana no mundo industrial,
o potencial de atividade que alimenta a máquina humana

* Para uma análise do restante da história, ver o item sobre as críticas


ao mundo mercantil a partir do mundo industrial (p. 406).

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Figuras do compromisso 443

em seu trabalhou, pode ingressar em compromissos com a


paixãoi inspirada, uma vez que o esforçou corporal esteja
ligado a uma expressão sensíveli (no sentido de que seja
afetável). O compromisso composto é uma “capacidade de
criação”: “O homem é intuitivoi, sensíveli [...], e a eficiênciau
da organização é função desse homem”. Um compromisso
como esse é expressado na figura do “responsável (provando
ser) eficiente, demonstrando ser apaixonadoi por sua ativida-
deu” e extraindo da “surpreendente ferroada da criatividade”
uma “garantia de maior participação do pessoal”.
Para buscar conciliar paixão e eficiência, pode-se fazer As técnicas de
criatividade
uma composição com o repertório de compromissos já con-
solidados nos dispositivos oferecidos pela psicologia, a ciên-
cia das sensibilidades. Assim, o livro analisado faz referência
a uma “atmosfera psicológica satisfatória”, que “favorece a
mobilização de energia criativai e produtivau”, associando-se as
“falhas de produtividade” a “falhas de animação”. De fato,
essa ambiência designa, no mundo industrial, o ambiente,
tomado como reservatório de fatores passíveis de produzir
efeitos sobre a atividade. Conforme seja “térmica”, “hierár-
quica” ou “psicológica”, ela se inscreverá em uma composi-
ção coerente de elementos ou em um compromisso.
Comparadas às técnicas de criatividade que “ensinam a
sonhar” e propõem métodos para “não se pensar incessan-
temente em ser útil, eficaz, lógico, racional”, as técnicas de
animação de grupo preparam compromissos mais complexos
com outros mundos. Para compreender seu uso sem lhes
conceder poderes mágicos nem as reduzir à condição de
discursos ideológicos, é útil analisar os compromissos por
elas aparelhados. O transbordamentoi espontâneo da livre
expressão, em sessões de “brainstorming”, prolonga-se por
um diálogo coletivoc, em grupo, que pressupõe uma escuta
atenta a todos, constitui uma experiência vividai comumc e
conduz a questionamentosi-c eventualmente sancionados por
um processo de votaçãoc: “Aquele que está com a palavra
oferece, então, a cada um uma possibilidade de expressão,

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444 O apaziguamento da crítica

de diálogo, de questionamento que permite a ele melhor


captar a realidade que deve fazer evoluir. Assim, é forjada
uma experiência comum”. Nos “círculos de qualidade”, as
ideias originais assim surgidas, submetidas a um debate que
contribuirá para forjar uma vontade geral, são sistematica-
mente organizadas segundo diagramasu de causa e efeito a
fim de serem testadas, muitas vezes se recorrendo a métodos
estatísticos.
O inventor De modo mais geral, o cenário da “descoberta”, que
exige transformar uma intuição insólitai em uma inovação
eficazu, contém um compromisso assim. A mente aberta que
é fonte de ações criativas se confunde, assim, na figura do in-
ventor, com a evolução inovadorau que caracteriza a dinâmica
do mundo industrial. No entanto, a ruptura radical impulsio-
nada pelo gesto inspirado produz o risco de se romper esse
compromisso com a garantia de um futuro previsível: “Não
há, então, necessidade de se provocar uma mudança brutal,
mas é absolutamente necessário traçar as linhas principais da
organização do amanhã”.

C o m p ro m i s s o s e n vo lv e n d o o m u n d o
doméstico

Alimentar bons Com o mundo da opinião. Os compromissos entre o


contatos
mundo doméstico e o mundo da opinião têm lugar quando
for necessário associar os dispositivos destinados a atrair a
atenção do público com os dispositivos favoráveis ao esta-
belecimento de relações pessoais entre as pessoas. Assim, por
exemplo, a recepçãod, puramente doméstica, uma vez que se
trata de tornar ainda mais estreitos os laços de amizade com
os próximos, pende para o mundo da opinião quando estiver
em pauta uma questão de conexões e conhecimentos. Esse
compromisso se confirma quando a recepção é promovida
como uma maneira de se estabelecerem relaçõeso, ficando‑se
lado a lado com pessoas importantes: “A vantagem das re-
cepções de pé sobre as recepções com as pessoas sentadas

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Figuras do compromisso 445

está em se ficar ombro a ombro com muito mais pessoas que


apenas seus vizinhosd de mesa”. A torção para o mundo da
opinião é, dessa maneira, mais fácil no caso da recepção que
no do banquete, este mais fortemente estabilizado no mundo
doméstico. É a possibilidade oferecida aos convidados de se
deslocar à vontade que promove a suave transição para o
mundo da opinião. Os participantes podem entrar em con-
tato pessoal uns com os outros, com cada um sendo tomado
separadamente, particularmente, aos olhos da audiência e em
posição de, a cada momento, saber quem dá e quem recebe
marcas de reconhecimento.
Esse compromisso instável é pródigo, assim, para o
deslocamento rumo ao mundo da opinião, como evidenciado
pelas passagens a ele dedicadas no guia de relações públicas
que usamos para identificar os objetos dessa natureza. Por
exemplo, a recepção promovida para uma inauguraçãoc é des-
crita nessa obra unicamente como uma forma de aproximar
personalidadeso qualificadas por sua celebridadeo, os públicoso
selecionados e importantes e os jornalistaso, a fim de produzir
a “máxima repercussãoo” para o evento a que se deseja dar
destaque. Por outro lado, o banquete constitui um disposi-
tivo mais favorável à formação de um compromisso entre o
mundo cívico e o mundo doméstico. De fato, a reunião em
torno de uma mesma mesa para uma refeição em comum
com vistas a celebrar uma mesma causa assegura a presença
do mundo cívico, enquanto o registro da hierarquiad na dis-
posição de pessoas nos assentos (lugares de honra, cabeceiras
ou posições secundárias, etc.) e na ordem de precedência
que rege a distribuição dos pratos favorece a reativação das
grandezas domésticas. Esse dispositivo de compromisso pode
ser bem visto nos banquetes de reencontro (de ex-alunos,
por exemplo), celebrando a persistência de ligações estabe-
lecidas no passado, ou ainda naqueles almoços ou jantares,
minuciosamente descritos por Antoine Prost (1977), que, no
entreguerras, reuniam em cada localidade da França os vete-
ranos do conflito anterior.

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446 O apaziguamento da crítica

A referência à opinião pode também promover a passa-


gem do mundo inerente a ela ao mundo doméstico, no qual
a grandeza está inscrita na cadeia de relações pessoais: o
superior, por exemplo, conta com uma “opinião positiva” de
seu subordinado. Assim, compromissos com seres do mundo
doméstico são esboçados uma vez que a opinião esteja ligada
a uma relaçãod pessoal, a um contato cultivado, a uma “rede
de relações”: “Em matéria de relações públicas, concentramo­
‑nos em tecer uma rede de boas relações”. “A melhor técnica
consiste em telefonar, duas semanas antes da data prevista,
aos jornalistas que gostaríamos de convidar. O assessor de
imprensa – se for um bom profissional – deverá conhecer
quase todos”. A grandeza de renome é estabilizada por esse
tipo de compromisso, no qual a “boa imagemo” está ligada à
confiançad. Da mesma forma, a consideração ou a reputação
podem – de acordo com o agenciamento em que figurem, e
notadamente conforme dependam do númeroo ou da posição
hierárquica daqueles que as confiram e produzam – pivotar
de uma economia da opinião para uma natureza doméstica,
como é o caso no seguinte exemplo:

As mulheres, em particular, são, de certo modo, as embaixa-


doras da casa. A partir da maneira como elas se comportam
no açougue, no correio ou no cabeleireiro, fazem-se algumas
deduções que acabarão por estabelecer a reputação da mo-
rada. “Conheci a sra. Fulana esta manhã, na mercearia, e é
uma loucura como ela é agradável...” [...] E isso é suficiente
para fundar uma reputação, a partir de uma atitude que, na
verdade, muito recorrentemente reflete a realidade.

A correção em relação Com o mundo cívico. É possível esboçar um compro-


aos funcionários
misso entre o mundo doméstico e o mundo cívico ao se
tratarem, no registro das relações pessoais, aquele das boas
maneiras e da etiqueta, as situações que colocam diretamente
em contato, nos edifícios públicos, os cidadãos e os represen-
tantes do Estado. É preciso, portanto, “agir apropriadamented
em relação aos agentes da ordemc, que estão simplesmente

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Figuras do compromisso 447

aplicando um regulamento, pelo qual não são originalmente


responsáveisd”. Da mesma forma, a espera em uma repartição
pública, que contraria a cortesia doméstica – “A pontualidade
é a cortesiad dos reis” –, não deve excluir as boas maneiras:
“Esteja-se na prefeitura, em órgãos da burocracia municipal,
no correio, na assistência social ou em uma agência da previ-
dência, é habitual esperar. [...] Dito isso, as boas maneiras são
recomendadas como em todo lugar”. É a esse compromisso
que se faz referência, a partir do mundo cívico, quando se
trata de “humanizar os serviços públicos” (por exemplo, co-
locando-se no escritório dos funcionários que travam contato
com a população um painel com seus nomes).
A necessidade de se mostrar “humano” (em vez de se O bom senso na
aplicação dos
agir de uma forma “rígida”, como uma “máquina”) é também
regulamentos
frequentemente invocada para sustentar o compromisso entre
o mundo doméstico e o mundo cívico, que consiste em dar
provas de bom sensod na aplicação da regrac (Corcuff; Lafaye,
1989). Assim, por exemplo, nos serviços municipais de uma
cidade de médio porte francesa, um integrante do Conselho
Municipal demanda ao chefe do Departamento de Vias e ao
chefe do Departamento de Jardins Públicos que demonstrem
bom senso no sentido de colaborarem (no interesse de todos
os habitantes) com a manutenção de áreas limítrofes, que não
seriam próprias de suas atribuições regulamentares (Lafaye,
1987). Esses compromissos entre as pessoas suficientemente
“elásticas” para não aplicarem a regra simplesmente “ao pé
da letra” e que demonstrem confiançad umas em relação às
outras, a fim de superar barreiras, soariam como escândalosd/c,
arranjos particulares não conformes com a leic, se denun-
ciados no mundo cívico. Da mesma forma, apela-se muitas
vezes às pessoas de bom senso quando se deseja aplicar a lei
e respeitar as regras sem destruir as boas relaçõesd entre os
indivíduos. A tensão entre as formas de julgamento doméstico
e os dispositivos cívicos de administração de conflitos pode
ser superada por fórmulas de compromisso, como quando
se apela à conciliação mediada por um árbitro. Esses com-
promissos podem ser observados em alguns dispositivos de

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448 O apaziguamento da crítica

tratamento de falhas e de controvérsias profissionais, como


o Conseil de Prud’Hommes, uma instância de conciliação da
Justiça do Trabalho francesa, que em geral busca o acordo
e que poderia, portanto, ser denunciada como paternalistad/c
(Cam, 1981). Os árbitros, personalidades cuja autoridade é
respeitadad, esforçam-se para promover a justiça buscando
composições em torno da leic, a fim de favorecer o acordo,
e levando em conta a singularidade de casos particulares e as
personalidades das pessoas. É ainda um compromisso dessa
natureza o que tem lugar quando, por exemplo, em uma
escola francesa, o Conselho Disciplinar é reunido para julgar
os alunos problemáticos: pessoas que se conhecem, os pais
e/ou os professores, devem instaurar um tribunal para julgar
seus filhos e/ou alunos, fazendo-se magistrados por um dia.
A mudança de estado, muitas vezes incompleta, exige uma
longa preparação para atenuar a pregnância dos laços do-
mésticos, por exemplo, examinando-se os textos legais que
fundamentam a legitimidade desse fórum ou ingressando em
disputas em torno de minúcias jurídicas. Os laços domésticos
deverão, apesar de tudo, continuar presentes para que se
possa chegar a uma solução humana e aceitável para todos
(Derouet, 1984).
Pode-se observar o mesmo trabalho de apagamento das
relações domésticas a introduzir a possibilidade de suporte
em uma forma cívica em alguns conflitos na empresa, basea-
dos, pelo menos em seus estágios iniciais, em discordâncias
entre as pessoas – por exemplo, entre os funcionários de escri-
tório e seus chefes diretos. Esse trabalho em geral acompanha
a encampação do conflito pelos sindicatos. Estes devem, com
efeito, suprimir qualquer vestígio de relações pessoais para
transformar os litígios passíveis de descrição no registro do
mundo doméstico em conflitos coletivosc, julgáveis em ter-
mos da questão social. Para tanto, faz-se necessário alterar
a qualificação das pessoas em foco e, mais profundamente,
transformar a lista de seres pertinentes. Os protagonistas não
são mais designados pelo primeiro nome (como quando o
caso é relatado de boca em boca em conversas com colegas

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Figuras do compromisso 449

ou na forma de fofocas), por seus sobrenomes (como, por


exemplo, nos relatos de ordem judicial) ou mesmo pelo seu
título (como, por exemplo, “chefe da equipe”, como quando
o caso é formatado no registro da gestão). Em vez disso,
eles são designados por meio de forças, das quais são os
“agentes” (o capitalismo, o Estado-patrão, etc.). A disputa
singular que opõe Paul a Jacques (suponhamos que eles se
tratem informalmente, pelos primeiros nomes), o sr. X ao sr.
Y, o colaborador ao chefe de seção, é redefinida por referência
a uma luta de amplitude muito maior entre o trabalho e o
patronato, da qual ela é apenas um exemplo entre muitos.
Cada pessoa em questão é, assim, tratada como um membro
de uma categoria, de modo que se poderia substituir cada
um dos atores por qualquer outro membro da classe sem que
a relação conflituosa, reduzida a sua estruturac-u, seja, com
isso, modificada.
É possível ver esse esforço de transformação a atuar
observando-se a forma como as controvérsias surgidas local-
mente como litígios entre pessoas (em um escritório, na área
de produção, etc.) se estendem pela empresa e para fora dela,
associando-se com as formas convencionais (Thévenot, 1986)
que unem as unidades de produção a outras empresas da
mesma região ou do mesmo ramo, e que as fazem aceder ao
status de conflitos trabalhistasc-u. A atividade sindical e, mais
precisamente, o trabalho do delegado do sindicato, consiste,
com efeito, ao menos em grande medida, em selecionar, entre
as múltiplas controvérsias cotidianas, aquelas que podem se
tornar objeto de uma abordagem cívica e, portanto, passíveis
de serem elevadas à ordem da reivindicação coletivac. Esse
trabalho de esclarecimento transforma em conflito categorial
a situação de litígio pessoal na qual as pessoas se digladiavam
e se engajavam pessoalmente. Essa clarificação no mundo
cívico é necessária para que a denúncia possa ser formulada
publicamente sem parecer embaraçosa ou mesmo anormal,
no sentido da insanidade, como seria o caso se a denúncia
pública adquirisse a forma de “reclamações pessoais”, de um
“ataque ad hominem” ou de “lavagem de roupa suja”, como

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450 O apaziguamento da crítica

se diz especificamente para designar e condenar a exposição


pública de litígios domésticos. Aproximadas dos conflitos
coletivos, que são peculiares, no sentido de que não envol-
vem diretamente interesses particulares, as discórdias entre as
pessoas apresentam algo de sujo e impuro. Elas são muitas
vezes qualificadas de mesquinhas, com a sugestão de serem
motivadas por interesses ocultos e inconfessáveis. Delas se
fala em palavras veladas. São objeto de fofocasd e de burbu-
rinhos de corredor, e não é conveniente levá-las em conta em
situações nas quais os participantes se apresentem conforme
pertençam a coletividades e em função de interesses gerais,
como em assembleias geraisc, comissões paritárias, comitês de
empresa, etc. Assim, por sua vez, os conflitos cujos objetos
são as grandes causasc devem ignorar as pessoas: eles têm
como referência o interesse comum, e cada uma das partes
deverá buscar apenas o bem geral. As pessoas, que neles não
se encontram implicadas e que podem não manter relações
familiares ou mesmo jamais se encontrar, concordam em se
oporem umas às outras apenas enquanto forem a “personifi-
cação” de forçasu sociaisc objetivasu, concebidas conforme o
modelo de forças do mundo industrial. A expressão pública
de um desacordo deverá, para ser considerada normal (em
vez de ser considerada a manifestação patológica de um
desequilíbrio psíquico), ser empreendida por uma instância
reconhecida como de interesse públicoc para fins coletivos,
tal como o sindicato, uma associação, etc., algo capaz de
dessingularizar a relação entre as diferentes partes envolvidas,
construindo-se a controvérsia por meio dos equipamentos do
mundo cívico (formas jurídicas, convenções coletivas, etc.) e
da formulação do desacordo em termos considerados gerais
nesse mundo e que, assim, tornem sua expressão pública
aceitável (Boltanski, 1990).
A extensão dos direitos Aquilo que é chamado a extensão dos direitos cívicos
cívicos
ou dos direitos civis consiste, assim, na construção de instru-
mentos jurídicos e no estabelecimento de pessoas coletivas de
modo a tornar possível a expressão pública de controvérsias
tratadas até então como próprias das vidas privadas das

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Figuras do compromisso 451

pessoas. Vê-se esse trabalho em ação no surgimento de no-


vas causas na atualidade, relacionadas ao gênero, às relações
familiares, à idade, além de outras condiçõesc-u (condição
feminina, condição paternal/parental, direitos da criança, da
terceira idade, etc.) para cuja defesa formam-se associações
(Ligue du Droite des Femmes [Associação para o Direito
das Mulheres], Mouvement de la Condition Paternelle [Mo-
vimento de Defesa da Condição Parental]), estatutos, cartas
de direitos ou reivindicações legais. Assim, por exemplo, foi
necessária a instituição de uma condição feminina para que
os ultrajes cometidos contra as mulheres, especialmente os
assédios e mesmo abusos sexuais no local de trabalho, pudes-
sem começar a ser objeto de denúncias públicas e processos
judiciais. É apenas como cidadãs ou trabalhadorasu-c que o
mundo cívico reconhece as mulheres, que devem, nas situa-
ções agenciadas segundo um princípio de grandeza cívica,
suspender a referência a sua feminilidade ou, alternativamen-
te, justamente a endossar, mas na forma categorial de uma
identidade coletiva, ligada a uma causa.
A instituição escolar francesa, quando apreendida na A comunidade
escolar
materialidade de um estabelecimento concreto de ensino
(Derouet, 1989), é muitas vezes objeto de relações determi-
nadoras de um compromisso capaz de dissolver a tensão entre
dois modelos pedagógicos opostos. O primeiro é o modelo
da educação cívica, elaborado durante a Revolução Francesa
e desenvolvido sob a Terceira República. Fundamentado no
princípio de igualdade perante o processo de instrução, ele
levou ao estabelecimento de relações dessingularizadas entre
os professores, entre os alunos e, especialmente, entre profes-
sores e alunos, com as violações a esse imperativo sendo de-
nunciadas como favoritismo [ou perseguição]. Esse princípio
deposita sua ênfase nas formas impessoais de transmissão e
avaliação de conhecimentos, nos diplomas, nos estatutos e graus
nacionais e em uma educação fundada em valores universais.
Da mesma forma, nesse modelo, cada unidade educacional,
a respeito da qual não se supõe contar com uma identida-
de própria, é tratada como uma projeção particular de um

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452 O apaziguamento da crítica

modelo nacional. O segundo paradigma, predominante no


Antigo Regime, mas ainda muito presente, em particular
no ensino privado, enfatiza a continuidade entre a educação
da criança em sua família e a educação na escola. Ele encon-
tra sua justificação não na conformidade com o princípio da
igualdade, mas na busca da “coesão” e do “bem-estar” em torno
de uma “pequena comunidade calorosa, enraizada em suas pecu-
liaridades”. Dessa maneira, nas fórmulas de compromisso, a
escola se mostra indissociavelmente como uma comunidade
escolar dependente da qualidade das pessoas que a compõem
e da qualidade das relações entre elas e como um serviço
público justificado pela aplicação de regras nacionais [isto
é, universalizadas].
Com o mundo mercantil. A interrogação sobre a relação
possível entre uma coordenação pelo mercado e uma coor-
denação pela confiança foi uma questão central na economia
política, antes de ocupar um importante espaço na literatura
antropológica sobre as trocas. Recordamos os escritos jan-
senistas que sugerem que o mercado contribui para simular
os efeitos de uma caridade falha. Na tradição de Locke,
trata-se a confiança mais como um requisito das transações
contratuais, estabelecendo-se, assim, uma estrutura hierárqui-
ca entre essas duas ordens. No entanto, sublinhamos que a
simpatia, determinante, em Smith, de uma natureza humana
propícia à troca, se distancia da benevolência. A pergunta
sobre a posição relativa dessa benevolência na ordem mer-
cantil, sobre sua necessidade, seu papel complementar que
tempera a dureza do laissez-faire ou as perturbações por
ela provocadas, percorre os debates sobre o liberalismo. Os
debates sobre uma definição “substancial” ou “formal” de
mercado, desencadeados por uma abordagem antropológica
de sua realização, lançam luz sobre as relações críticas e as
possibilidades de compromisso entre os mundos mercantil e
doméstico.
Deixada de lado pela teoria econômica do equilíbrio
geral, a ordem doméstica da confiança retornou nas últi-
mas décadas ao centro do debate sobre as modalidades não

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Figuras do compromisso 453

mercantis de contratos e de transações, cuja importância é


reconhecida nas situações caracterizadas por bens específicos,
relações duradouras ou pela oferta de informação assimétrica.
A referência à reputaçãod ou a mobilização menos explícita
dos efeitos de memóriad em abordagens que utilizam modelos
de teoria dos jogos repetidos são passos que pressupõem a
elaboração de um compromisso com essa ordem.
As relações domésticas estão, assim, por vezes inseridas A confiança nos
negócios
no cerne de uma situação mercantil, na forma das figuras de
compromisso. Assim, recomenda-se “um gesto”: “Nos negó-
cios, um gesto é um ato que praticamos a favor de alguém ou
a seu pedido, para que essa pessoa crie uma obrigação para
com você”. Esse deslocamento pode mesmo levar a se criti-
car um cálculo mercantil que despiria o gesto de seu caráter
desinteressado: “Fiz negócios com executivos que pareciam
manter uma contabilidade de serviços devidos e prestados”.
A “personalização” das relações com os clientes, a venda
de bens ou serviços “sob medida” passam por um compro-
misso desse tipo, assim como os “mercados domesticados”
ou “combinados”,* descritos na literatura como tipos que
colocam em questão o modelo mercadológico clássico. Des-
sa forma, as atividades comerciais das empresas, além dos
compromissos com o mundo industrial pavimentados nos
manuais de vendas, implicam arranjos que visam contribuir
para “fidelizar a clientela”. Mais fundamentalmente ainda,
a “confiança” que permite inscrever o tempo nas relações
mercantis, além da garantia das promessas, supõe uma aco-
modação com a reputação doméstica.
De acordo com Keynes, em sua Teoria geral (1982, livro
IV, 12, II, p. 161), é também a um “estado de confiança”
que os homens de negócios recorreram para organizar um
dispositivo mercantil e lhes garantir alguma estabilidade por
meio de uma convergência das expectativas.

* Modalidades de mercado nas quais os participantes, em vez de com-


petirem entre si, cooperam, por meio de vários dispositivos de ação
conjunta. (N. do T.)

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454 O apaziguamento da crítica

A transformação do espaço mercantil, homogêneo e


mundial em espaço doméstico com a fisionomia de um terri-
tório compõe um compromisso semelhante com o mundo das
relações domésticas: “Mesmo se você contar com um escritó-
rio minúsculo, seria melhor que a reunião acontecesse em seu
próprio território”. Notemos que, na literatura neoclássica, a
qualificação de “específico” – “investimento específico”, “in-
formações específicas” (Eymard-Duvernay, 1986) – serve
para pavimentar um compromisso de forma a tratar de um
espaço que não teria a homogeneidade do espaço industrial
ou mercantil. Da mesma forma, o conceito de “mercado de
trabalho interno” (Doeringer; Piore, 1985) colocou em evi-
dência o lugar dos costumes e das relações de autoridade, ao
mesmo tempo que atua uma instrumentalização industrial nas
relações de trabalho, que com isso se distanciam significativa-
mente de uma transação mercantil e na verdade a substituem
(Favereau, 1982, 1986). A abordagem em termos de “custos
de transação” atribui igualmente uma grande importância às
relações duradouras, demonstrando sua congruência com as
especificidades locais (Williamson, 1985).
O serviço personalizado A qualificação de “serviço”, entendida como uma exten-
são dos bens ligados ao mundo mercantil, encaminha desde
o princípio um compromisso com o mundo doméstico, pois
abarca uma relação pessoal difícil de dissociar das relações
específicas e duradouras, como se vê de forma especialmen-
te clara quando o serviço é chamado de “sob medida” ou
“personalizado”.
A propriedade alienável Apesar da necessidade, já destacada, de, no mundo
mercantil, se liberar das relações pessoais e se afastarem
os objetos patrimoniaisd em favor de objetos mercantism, a
apropriação de bens tende a compor um compromisso entre
esses dois mundos. A propriedade assim como frequentemen-
te a própria ideia de um bem são noções que permitem se
tomar o resultado de uma operação mercantil, sem passado
ou futuro previsível, e perfeitamente revogável, e se deslizar

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Figuras do compromisso 455

na direção de uma associação durável inscrita nas relações


de responsabilidade e confiança.
Com o mundo industrial. Como os mundos industrial
e doméstico permitem que todos promovam deslocamentos
no espaço e no tempo, podem ser construídos compromissos
com a tentativa de se passar ao largo das diferenças separan-
do as topografias e as temporalidades relativas a esses dois
mundos. Por outro lado, as duas grandezas correspondentes
são avaliadas de acordo com escalas de estados, ambas al-
tamente diferenciadas, o que possibilita também a busca de
compromissos por meio da aproximação entre essas hierar-
quias.
Os compromissos compostos entre uma empresa in- O espírito e o savoir­
‑faire da casa
dustrial e uma casa doméstica buscam superar as diferenças
de qualificações do espaço e das relações entre pessoas que
manifestam a incompatibilidade entre essas duas naturezas.
No mundo industrial, o espaço é homogêneo, estabelecido
por eixos e dimensões capazes de definir coordenadas, en-
quanto no doméstico ele é determinado pelos domínios, que
demarcam um exterior, pelas distâncias ou pelas vizinhanças.
Assim, encontram-se muitas fórmulas que, combinando qua-
lidades domésticas a objetos do mundo industrial, permitem
que se deslize de uma natureza a outra. Trata-se de dispo-
sitivos como, por exemplo, os escritóriosu acolhedoresd e as
fábricasu com jardinsd, que deverão garantir a “harmonia das
relações individuais”. E uma vez que a empresa seja tratada
como um territóriod – e não como uma unidade funcionalu –,
são ativados compromissos com o mundo doméstico, como
quando alguém se refere a um “espírito da casa”, à “repu-
tação de uma casa” ou ao “espírito da empresa”. Assim, a
reorganização da empresa em unidades de produção indepen-
dentes é acompanhada por um compromisso com a grandeza
doméstica: “Cada unidade de produção ‘independente’ deve
ocupar um espaço a ela reservado com todos os recursos
humanos e materiais”.

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456 O apaziguamento da crítica

Os arranjos a respeito da natureza do espaço andam de


mãos dadas com as conveniências típicas das relações entre
as pessoas: “O mundo do trabalho é uma forma de sociedade
na qual nada obriga ninguém a ser desagradável”, “há uma
interdependência tão grande entre a vida profissional e a vida
familiar que os problemas decorrentes da profissão ganham
suas repercussões em casa e vice-versa”. Esse é o caso quando
um superior, para “julgar o comportamento de um integrante
do quadro executivou, convida-o para almoçard”. O compro-
misso é frágil, pois, aproveitando-se de um “clima de confian-
çad”, ele corre o risco de “abusar da situação”. A colaboração
de uma “pessoa de confiança” será particularmente preciosa
em circunstâncias especiais, em caso de urgência, quando se
faz necessário “dar um gás” em algo. É o mesmo tipo de
compromisso buscado quando for recomendada uma boa
apresentação no trabalho, particularmente nas situações de
recrutamento, e quando se acrescentam formas de avaliação
próprias do mundo doméstico (cordialidade, aparência, fisio-
nomia, etc.) aos procedimentos de seleção regrados com base
em critérios formais. Essa fórmula de compromisso entre o
mundo doméstico e o mundo industrial ignora as relações
jurídicas e trata as relações profissionais no modo das pes-
soais. No mundo cívico, esse compromisso é denunciado em
termos de paternalismo.
Pode-se associar a esse compromisso a atenção à “locali-
dade”, que pode ser manifestada pelos dirigentes de empresa
ciosos de se “implantarem” em uma “rede tradicional” e,
eventualmente, de se referirem a uma forma de bem comum
que supõe o desenvolvimento de uma região ou localidade
(Pharo, 1985, p. 144-145).
A eficácia dos bons E é também um compromisso entre esses dois mundos o
hábitos
que é buscado nos esforços para superar as diferenças entre
a perpetuação de um costume enraizado e a regularidade do
funcionamento de uma ferramenta, colocando-se em primeiro
plano a eficácia das boas práticas – experimentadas como
hábitos. Destacar os elementos próprios dessa coordenação

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Figuras do compromisso 457

doméstica foi por muito tempo apanágio de uma abordagem


sociológica do trabalho industrial ou das técnicas, que buscou
dar conta de um dispositivo mais complexo que uma função
de produção integrando fatores, quando essa abordagem dei-
xava de se sustentar em “práticas locais” e no “savoir-faire”
reais, a fim de denunciar o caráter ilusório dos “procedimen-
tos formais”.
Atualmente, até mesmo a literatura econômica sobre
as mudanças técnicas está atenta a esses tipos de objetos e
relações cuja coerência buscamos restituir no seio do mundo
doméstico. A chamada abordagem evolucionista busca ultra-
passar a figura do “engenheiro-chefe”, ajustado a uma capa-
cidade técnica que pode ser formalizada nos manuais e nas
instruções – “blueprints” [plantas] (Nelson; Winter, 1982).
Inspirando-se nas análises de Michael Polanyi (1962) sobre
o “conhecimento tácito”, ela enfatiza o caráter específico das
competências técnicas e seu enraizamento, que dificulta sua
transferibilidade. Os hábitosd (“rotinas”), transmitidos por
aprendizagem, são a memóriad do know-how ­– “lembrar-se
ao fazer” (Nelson; Winter, 1982, p. 99).
O trabalho de estabelecimento de um compromisso é
particularmente intenso nos esforços de modernizaçãou des-
tinados a preservar uma arte e uma qualidade tradicionald,
a automatizaru a chamada mão de ourod (Boisard; Letablier,
1989). No entanto, ele faz parte da operação corrente das
empresas, que envolve tornar compatíveis formas industriais e
formas domésticas, e que repousa na mediação conduzida por
“especialistas domésticos” (Thévenot, 1989a, p. 184). Nem
mesmo o mais industrial dos experts, aquele que lida com
as contas nacionais – que pode ser desde um economista até
um estatístico –, é levado a buscar esse tipo de compromisso,
a “recolocar de pé” um “equilíbrio que não o agrada”, que
ele “não reconhece”. Ele, então, promove a composição en-
tre medidas industriais, números e índices apresentados em
listagens, e apreciações de caráter doméstico sobre o que as
pessoas e as coisas podem oferecer, obtidas a partir de relações

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458 O apaziguamento da crítica

duráveis que permitem, passo a passo, estimar a confiança


que se pode conceder aos seres de natureza doméstica (Kra-
marz, 1989).
A competência do A figura do artesão, ou do profissional especializado,
profissional especializado.
pavimenta um compromisso semelhante, ao não distinguir a
capacidade técnica de uma experiência adquirida no decurso
do trabalho e ao fazer descobrir, nas tecnicalidades mais ele-
vadas, formas de aprendizagem e de transmissão dos saberes
aparentadas aos dispositivos domésticos dos ofícios. Como a
autoridade doméstica é ordenada pelas geraçõesd, as pessoas
mais velhas, mais antigas na casa, são de maior grandeza
que os jovens. O compromisso com a autoridade industrial
atribui, portanto, aos mais antigos uma aptidão associada a
sua experiência profissionalu-d: “O setor mais nobre da fábrica
deve ser confiado ao pessoal mais velho, altamente cons-
ciencioso”. Esse compromisso, que se concretiza na figura
do funcionário “com trinta anos de casa”, é evidentemente
ameaçado pelo apelo à ordem de comprovação industrial, que
reconhece como determinantes apenas as capacidades técnicas
padronizadas. A qualidade de engenheiro autodidata ou de
“engenheiro formado na casa” está sujeita a essa tensão, e a
obra analisada, particularmente bem adaptada a esse público,
é destinada a ensinar aos “integrantes dos quadros executivos
promovidos a partir do corpo de funcionários” a maneira
de se tornarem dignos dos “engenheiros” vindos dos “cursos
de engenharia”. Estes últimos contam com um diplomau-c
assentado em um quadro de conhecimentos generalista; os
primeiros, uma bagagemd que “deve comportar pelo menos
o ABC da etiqueta profissional”. O compromisso é elaborado
em torno de uma “educação continuada”: “Em última aná-
lise, atualmente a ‘etiqueta’ profissional deve ser incluída no
quadro de uma educação continuada, que evolua ao longo do
tempo, [permitindo-se] ter sucesso com ou sem um diploma”.
Os procedimentos franceses de homologação de diplo-
mas de ensino tecnológico, que levam, por exemplo, a se
homologar “no nível IV” o título de “melhor trabalhador

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Figuras do compromisso 459

da França”, supõem um compromisso semelhante (Affichard,


1986, p. 155-156).*
O compromisso montado para superar, na qualificação A qualidade
tradicional
das pessoas, a tensão crítica entre antiguidade e competência
técnica pode também ser buscado para definir a qualidade
dos produtos. De fato, um dos benefícios da abordagem aqui
adotada é tratar em um mesmo quadro a qualificação das
pessoas e a das coisas.
As grandezas industrial e doméstica têm em comum serem A responsabilidade do
chefe
colocadas em ação em uma ampla gama de estados, e a escala
desses estados poder ser expressada em uma hierarquiad-u atri-
buída em termos de autoridaded-u. Essa autoridade de múltiplos
sentidos desenha a figura do patrão provido da autoridade
tanto de paid sobre seus filhosd quanto de dirigenteu sobre seu
pessoalu. Por esse compromisso, “o responsável pela unidade,
com sua equipe de gestão, torna-se um verdadeiro patrão-
zinho”. Trata-se da mesma ambiguidade colocada em ques-
tão na denúncia do “chefinho”, cuja autoridade doméstica
(respeitabilidade) é desmontada tendo-se em vista sua fraca
autoridade industrial (competência).
Mais claramente engajados no mundo industrial, os Os recursos
humanos
dispositivos de relações humanas tendem a tornar compa-
tíveis as normas de eficiênciau e as de boas relações entre
pessoasd. As relações humanas são, assim, aproximadas das
relações qualificadas como tradicionaisd, naturais no mundo

* O sistema educacional público francês prevê cinco níveis de titulação,


sendo o I o mais alto. Os Diplômes de l’Enseignement Technologique
et Professionnel ficam situados nos níveis III, IV e V e correspondem
a formações técnicas, podendo ser obtidos por provas nacionais que
exigem formação desde a mais básica à de nível superior, indo em
geral do Brevet d’Études Professionnelles (BEP) – necessário para, por
exemplo, ser padeiro – ao Brevet de Technicien Supérieur (BTS) – de
nível superior, requisito para, por exemplo, ser químico industrial –,
passando pelo Certificat d’Aptitude Professionnelle (CAP) – de nível
médio e exigência para ser, por exemplo, cabeleireiro, vendedor, ins-
trutor de direção, técnico eletrônico e outras profissões tecnológicas
auxiliares, além de uma vasta galeria de profissões de nível secundário.
As engenharias contam com um sistema à parte. (N. do T.)

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460 O apaziguamento da crítica

doméstico: “As relações humanas, das quais se faz tanto caso


no momento atual, [...] são, na verdade, apenas uma versão
atualizada das tradicionais regras de etiqueta”.

C o m p ro m i s s o s e n vo lv e n d o o m u n d o da
o p i n i ão

Tocar a opinião Com o mundo cívico. O público, ser ambíguo, favorece


pública
as passagens entre o mundo cívico e o mundo da opinião. Os
dispositivos que levam em conta o número são muitas vezes
comuns a essas duas naturezas, nas quais eles são objetos de
especificidades distintas. É o caso, por exemplo, da manifes-
tação, associada ao protesto no mundo cívico (manifestação
reivindicatória) e ao espetáculo no mundo da opinião (o tom
de manifesto muitas vezes está presente em uma apresentação
de relações públicas). Mas isso se aplica também às ações de
mobilização que significam a convocação para uma causa no
mundo cívico – “a mobilização consciente e ativa do máximo
número de trabalhadoresc” – e a captação dos olhares no
mundo da opinião – “encontrar novos temas passíveis de
mobilizar o interesse do públicoo”. Suspender a ambiguidade
levaria a se denunciar o compromisso, mas é possível des-
tacá‑la, colocando-se entre aspas o termo ambíguo, e, com
isso, sugerir que a referência conduz a uma diferente natu-
reza. Dessa maneira, no livro que utilizamos para analisar o
mundo cívico, o termo público é colocado entre aspas quando
faz se manifestar uma grandeza de opinião:

A informaçãoo-c de uma a seçãoc sindical é uma ferramentau


a serviço da açãoc. Ela deve, portanto, ser organizadau. [...]
É necessário, então, estudar o “públicoo-c” ao qual se quer se
remeter (todos os empregados da empresa ou determinadas ca-
tegorias...), as formas de informação (folheto, cartaz, reuniãoc,
etc.), sua frequência, seus objetivos precisos.

A informação, que, como vimos, não é estranha ao


mundo cívico (o “povo” deve, para “deliberar”, estar “su-
ficientemente informado”) e que é frequentemente invocada
nos folhetos que usamos para descrevê-lo, permite igualmente

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Figuras do compromisso 461

sustentar um compromisso com o mundo da opinião, como


quando o autor do manual de relações públicas utilizado
invoca a necessidade de informar a opinião pública: “Atual-
mente, uma empresa não pode mais se permitir negligenciar
a opinião pública”, especialmente uma vez que o tratamento
da informação seja uma oportunidade para a participaçãoc de
responsáveisc-u e de representantesc:

Antes de qualquer apresentação, faça uma campanha de rela-


ções públicaso interna, com o objetivo de informaro-u os funcio-
nários sobre os objetivos perseguidos e sobre a solução visada,
e de demandar ideias, sugestões, ajuda. Assim, será possível
apresentaro em seguida alguma ação adotada como oriunda
das sugestões recolhidas (ainda que isso não seja inteiramente
verdadeiro). Notadamente, é sempre possível promover de vez
em quando, evidentemente sem recair no excesso, reuniõesc,
ditas de coordenação, para as quais são convidados os respon-
sáveisc-u por outros serviçosu e representantesu dos funcionários
em vários escalõesu.

Mas, como indicam os parênteses que o autor introduz


em seu texto, destinados não aos sindicalistas, mas aos execu-
tivos de relações públicas, esse compromisso pode facilmente
ser denunciado a partir do mundo cívico como algo cínico,
instrumental e manipulador.
Entre os compromissos que, a partir do mundo da
opinião, constroem pontes para o mundo cívico, figura tam-
bém o mecenato empresarial, que pode associar o interesse
nacionalc a uma ação de relações públicaso:

Conscientec de suas responsabilidades cívicasc e sociaisc-u para


com a coletividade nacionalc, a Companhia Singer estabeleceu
para si como objetivou, por meio da Journée Singer Mécénat
[Jornada Singer de Mecenato], chamar a atençãoo da opinião
públicao-u para um deverc de interesse nacionalc.

“Uma campanhao-u de interesse nacionalc (segurança rodoviá-


ria, campanha contra a fome, etc.) pode ser, para a empresa, a
oportunidade ideal de explorar habilmente sua participaçãoc

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462 O apaziguamento da crítica

e de aparecero diante da opinião pública com uma imagemo


muito simpática, muito humanac”. Mas, nesse caso ainda,
assim como no exemplo anterior, o autor apela de alguma
forma para a denúncia do compromisso que ele próprio em-
preende pela introdução de uma referência a uma atividade
estratégica (“explorar habilmente”).
Colocar seu nome a Os compromissos entre a grandeza cívica e a de opinião
serviço de uma causa
serão sustentados por objetos, pessoas ou dispositivos tendo
como qualidade, por um lado, serem célebreso e, por outro,
estarem a serviço do bem comumc. Assim, na petiçãoo-c, a
presença de pessoas é assegurada por seus nomes. É na me-
dida em que elas se tornam um nomeo (uma assinatura) que
são dignas de serem incluídas na lista de signatários, que
pode também, aliás, ter sido montada com base em relações
pessoaisd. A opinião que determinou sua celebridadeo é o
princípio de equivalência sobre o qual repousa a sequência,
em ordem alfabética (ou na ordem em que as assinaturas
tenham sido trazidas), de pessoas sem uma medida comum
do ponto de vista de outras maneiras de produzir a gran-
deza. E é o mesmo em outros dispositivos, como nos guias
de celebridades (Quem é quem, etc.), nos quais as pessoas
de profissõesu ou funções diferentes são colocadas em equi-
valência do ponto de vista do renomeo. Mas nas petições,
como nas reuniões ou nos comitês de apoio, a congregação
dos indivíduos famosos é determinada pelo serviço a uma
causac. Eles servem de testemunhas perante a opinião pública,
que incarnam justamente graças ao fato de serem célebres,
de modo que seu número pode ser tão menor quanto mais
conhecidos sejam.
E uma vez que o número de signatários aumente, mas
que a celebridade de cada um decaia, a petição desliza para
o mundo cívico, ou, como no gesto c-i, na direção de um
compromisso cívico-inspirado se for apresentada como uma
manifestação espontâneai da vontade geralc. Como já obser-
vamos no caso do gesto, que, para congregar, deve ser visível,
os meios de comunicação são um instrumento necessário para
o estabelecimento de um compromisso entre a grandeza da

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Figuras do compromisso 463

opinião e a grandeza cívica. A história desse compromisso


se funde com a história da opinião pública, especialmente
em suas relações com a imprensa, e sua elaboração está
associada ao aparecimento dos grandes casos judiciais. Ela
sem dúvida esteve particularmente ativa no Caso Dreyfus,
que colocou em ação os compromissos e as tensões entre
naturezas e, especialmente, a tensão entre o sistema judiciário
e a opinião pública.
No mundo da opinião, a aparência e a realidade se A garantia oferecida por
uma figura oficial.
confundem. Mas a visão de outros mundos na direção dos
quais são pavimentados os compromissos leva a concessões,
podendo-se chegar até a se profanar a expressão mais pura da
grandeza do renome. Na obra utilizada para colocar em ação
essa grandeza, a profanação se manifesta pelo questionamen-
to, ao menos parcial, da realidade da aparência. As medidas
que objetivam fazer ver ou promover o reconhecimento são,
então, tratadas como objetivos instrumentais, sustentados por
uma intenção manipuladora. O autor por vezes aconselha a
apresentaro as coisas de certas maneiras, mesmo, acrescenta
ele, “se não for de todo verdade”. Em outros momentos, ele
sugere, aos especialistas em relações públicas aos quais seu
livro se endereça, a possibilidade de se “criar do zero” um
“evento”, o que implica a referência implícita a uma realida-
de distinta daquela, e que o executivo de relações públicas faz
aparecer por meio de uma “hábil exploração” dos recursos de
que dispõe: “Quando um evento não existir naturalmente, é
possível criá-lo do zero [...], organizar um dia de portas aber-
tas, promover uma conferência, criar uma exposição”. Assim,
por exemplo, a validade de se convidar um ministro como
parte de uma operação de relações públicas não depende
apenas da reputação dessa autoridade (única realidade a im-
portar no mundo da opinião), mas de seu caráter públicoc,
que aporta, com sua presença, uma “aprovação” oficialc à em-
presa. As figuras oficiais que conferem sua validação podem
ser representantes ou magistradosc e, de forma mais geral,
personalidades, pessoas visadaso, contempladas nas situações
que as integram ao interesse de todosc.

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464 O apaziguamento da crítica

O efeito de aprovação é invocado igualmente a respeito


das apresentaçõeso-c e, particularmente, das inaugurações e
dos lançamentos. Esse tipo de evento, em sua forma canônica,
consiste em tomar um objeto, produto de uma indústria –
uma ponte, uma construção, um navio, etc. –, e o destacar do
mundo industrial, para consagrá-lo ao interesse geral, remetê-
‑lo a todos e o tornar público. Assim, esse objeto é tratado,
no decurso de uma cerimônia, como um elemento do mundo.
De modo que, quando um ministro c, representante desse
mundo cívico, estiver presente “na inauguração de uma nova
fábricau ou no lançamentoo de um novo produtom”, “seus
comentários se tornam, assim, elementos interpretados pela
opinião pública como uma aprovação oficialc”.
Conferir essa ratificação, no mundo no qual a opinião
produz equivalência, diz respeito à operação por meio da
qual um ser amplia sua potência ao tornar o outro um aliado,
cujo crédito lhe aporta um excedente de força (Latour, 1983).
Mas essa sanção diz respeito também à grandeza da qual os
seres grandes em termos de renome podem se beneficiar em
outros mundos. Esse tensionamento entre o princípio de equi-
valência próprio da opinião e outros princípios se expressa
no desconforto – “por assim dizer” – ou na distância com a
qual essa legitimação é tratada, uma vez que sejam implica-
dos seres mercantis (mercadorias ou produtos) ou cívicos (um
ministro). Pelo intermédio de uma autoridade competente, o
Estado certifica aquilo que é tomado como verdadeiro – “Não
resta dúvida, é oficial”.
Da mesma forma, diz-se da pesquisa de opinião que ela
ratifica a grandeza do renome. Esse objeto de compromissos
promove várias passagens, visto que constitui um aparelha-
mento industrial da opinião o-u, à qual confere um caráter
objetivou, mas permite também que se deslize na direção da
consulta cívica e do princípio de maioriao-c:

O recurso cada vez mais frequente às pesquisas de opinião


permitiu chamar a atenção para o seguinte fato: a publicação
de resultados capazes de fazer notar que uma maioriac de

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Figuras do compromisso 465

pessoas tem tal opiniãoo reforça justamente a opinião dessas


pessoas, a sanciona de alguma forma e influenciao as opiniões
dos outros.

E, igualmente, “para seus leitores, o jornalista representa


uma validação”: “Ele julgou interessante uma informação,
verificou-a com toda a objetividadeu, reproduziu-a em suas
colunas, pensando que ela poderia ser útil a quem lê o jornal.
A diferença entre um artigo assinado por um jornalista e um
anúncio ou informe publicitário é evidente”.
Dispositivos próprios do mundo da opinião são intro-
duzidos em situações de natureza cívica quando as opera- Promover uma campanha
de adesão
ções destinadas a suscitar a expressão da vontade geralc são
acompanhadas de medidas visando à adesão de pessoas.
A propaganda, que é denunciada no mundo da opinião, no
qual designa um comprometimento com interesses políti-
cos – “Convém destacar que as relações públicas não são
sinônimo de propaganda nem de ‘lavagem cerebral’” –, é, no
mundo cívico, um meio pelo qual se pode pavimentar um
compromisso com o renome. Assim, na obra que utilizamos
para colocar em prática o mundo cívico na empresa, lê-se
que “a seção sindical determinará sempre coletivamentec os
setores nos quais fará chegar com regularidade seus esforços
de propagandac-o”. Esse horizonte de compromisso a partir
do mundo cívico é notado particularmente no caso de campa-
nhas (dispositivo comum ao mundo da opinião – campanha
publicitária – e ao mundo cívico – campanha eleitoral), em
que, “para se criar um climao favorável à adesão”, apela-se
para instrumentos estranhos ao civismo, a temas mobilizado-
res avaliados pelo grau em que sejam cativanteso e atraiam a
atenção. Os dispositivos que deverão suscitar a adesão são,
com efeito, bastante favoráveis à confusão entre as grande-
zas cívica e da opinião, pois as aspiraçõesc de todosc, não
podendo ser expressadas diretamente, devem ser traduzidas
por uma organização, que, provocando a conscientização
das pessoas, é encarregada de as difundiro. Fala-se, então, de
influênciao – “Quais são os setores ‘estratégicos’ da fábrica,
aqueles nos quais seria útil ter uma forte influência?” –, de

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466 O apaziguamento da crítica

audiênciao ou de impactoo: “Essa distribuição [do veículo de


imprensa sindical] é muito importante. Ela permitirá à seção
medir sua audiência e dela extrair elementos de avaliação que
muito nos ensinarão sobre o seu impacto”.
O branding Com o mundo mercantil. As tentativas de compromisso
entre a grandeza da opinião (celebridadeo) e a grandeza mer-
cantil (preçom) são reforçadas por sua comum versatilidade,
pela escala contínua de seus estados e pela homogeneidade
dos espaços em que são valoradas. A grandeza de um bem
mercantil em termos de opinião, que está no coração das
ações de marketing ou publicidade, compõe um compromisso
desse tipo entre esses dois valores.
Como já indicamos anteriormente, o manual escolhido
para retratar o mundo mercantil é especialmente rico em
exemplos desse compromisso, uma vez que o autor tem
como profissão vender seres renomados, representaro a marca
de pessoas famosas (“celebridades do esporte”: jogadores de
tênis ou de golfe) ou de organizações mundialmente conhe-
cidas (a Fundação Nobel, o Vaticano, a Igreja Católica na
Inglaterra). Ele, então, se dedica a fazer negóciom com nomes
conhecidoso, cujos “marketing e gestão” estejam sob seus
cuidados, compondo uma grandeza de opinião com uma
grandeza mercantil. Assim, ele explica a um cliente, presidente
de empresa, que considera excessivo o preço a pagar para
associar o nome de seu produto ao de um desportista famoso:
“Aquilo que ele estava comprando era a identificação de sua
marca com um nome e, comparado às dezenas de milhões de
dólares que custaria desenvolver uma identificação de marca
a proporções semelhantes, a contrapartida que demandáva-
mos era bastante razoável”.
De modo mais geral em uma companhia, o “clima pro-
pício à venda” perseguido pelas ações de relações públicas
depende de um compromisso semelhante, concebido para
atrair a atenção do público para um produto. No entanto, o
conjunto de dispositivos de relações públicas não é construí-
do na perspectiva de um compromisso desse tipo, como se vê
nas situações nas quais a purificação do mundo da opinião

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Figuras do compromisso 467

leva a se criticar uma dependência do serviço de relações


públicas em relação à gestão comercialm e/ou de marketingm,
isto é, em relação ao “modo de pensar” dos comerciantes ou
dos marqueteiros, ou, ainda, quando leva a se distinguir a
imagem corporativao, própria desse mundo, da atividade de
brandingo-m, de gestão de imagem de marcao-m, o que supõe
o compromisso com o mundo mercantil:

Os problemas de imagem podem ser contraditórios. Se a polí-


tica geral de imagem corporativa não estiver claramente defi-
nida, o serviço de relações públicas estará sempre preso entre
duas tendências: promover a imagem da marca ou promover
a imagem da empresa. Ora, a curto prazo, as ações implemen-
tadas para promover uma imagem corporativa podem muito
bem não interessar em nada à diretoria comercial e/ou de
marketing, que desejará, ela própria, atuar sobre o branding.

O dispositivo do mercado de ações pode igualmente


ser envolvido em tal compromisso – “Uma boa imagem [...]
estimula o valor na bolsa” –, mas com o risco de se redun-
dar em movimentos especulativos e em uma degeneração do
mercado.
É raro que esse tipo de compromisso não se estenda a
um terceiro mundo (industrial ou doméstico), que contribua
para estabilizar a “imagem de marca” do produto ou sua
reputação (Eymard-Duvernay, 1986). No primeiro caso, essa
constância é garantida pelo suave deslocamento rumo ao
mundo industrial. A estabilidade do renome de uma mar-
ca depende da estabilidade dos equipamentos e métodos
de produção, assim como da manutenção da eficáciau do
produto para o consumidor. No segundo caso, ela se man-
tém porque a empresa tem sua existência determinada pela
condição de casad, tendo uma reputação a manter, e porque
ela alimentad relações domésticas de confiançad mútua com
sua clientela (em teoria de marketing, fala-se em “mercados
domesticados”), de modo que o consumo de seu produto não
esteja sujeito às bruscas flutuações das avaliações, naturais
no mundo mercantil.

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468 O apaziguamento da crítica

Os métodos para se Com o mundo industrial. A grandeza da opinião é


implementar uma imagem
inconstante:

Basta ver as notícias com cuidado por um mês para ser con-
vencido: os acontecimentos que mobilizam a opinião pública
de um país por vários dias são, do dia para a noite, completa-
mente esquecidos, uma vez que desapareçam dos jornais. Ora,
se o jornalista não retornar ao assunto, é porque ele acredita
que o público não esteja mais aberto a ele, que ele “já não o
quer mais” e que outras informações são mais importantes.

As tentativas de tornar essa grandeza menos cambiante


passam por compromissos, tanto com o mundo doméstico
(quando a opiniãoo passa a confiard) quanto com o mundo
industrial. No primeiro caso, encontramos esse “estado de
confiança” capaz de estabilizar a opinião e que Keynes des-
tacou como um freio aos movimentos especulativos (Keynes,
1982, p. 161, 165). No segundo caso, é o ancoramento nas
ferramentas de natureza industrial que contribui para a es-
tabilização: meiosu, métodos e organização garantem mais
previsibilidadeu e estabilidade.
O que se entende por “relações públicas”, que é o
tema do livro escolhido para colocar em prática a imagem
do mundo da opinião, apresenta as especificidades da ca-
pacidade profissionalu de especialistas que operam em em-
presas os compromissos há pouco apresentados por meio
de ferramentas e técnicas para controlar a opinião. Nosso
material é, dessa maneira, enormemente rico nesse tipo de
compromisso. Assim, “uma campanha visa [...] implementaru
uma imagemo”, como se instalau um equipamento industrial.
E essas ferramentas, como aquelas colocadas em operaçãou na
sequência de investimentosu industriais, demandam manuten-
çãou para durar: “Uma imagem que não receba manutenção
sistematicamente pouco a pouco desvanece diante da opinião
pública e todo o capital investido nessa imagem desaparece”.
A medição da O compromisso entre o mundo da opinião e o mundo
opinião
industrial se manifesta ainda na montagem de instrumentos
para mediru a audiênciao conquistada por uma campanha,

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Figuras do compromisso 469

especialmente nas pesquisas de opiniãoo-u, fundamentadas em


uma amostragem representativa.
E é ainda de um compromisso com o mundo industrial Uma opinião objetiva
que dependem as figuras nas quais se faz referência a uma
realidade apenas da ordem da opinião, como ocorre quando
se diz que uma opinião é “fundada ou não”, ou ainda quando
se distingue o “objetivo” do “subjetivo”: “O produto em si
é bom ou de qualidadeu discutível, útil ou inútilu, caro ou
baratom, etc., e promove ipso facto um julgamento em grande
parte objetivou entre os consumidores, subjetivo ante os não
consumidores, e que se refere apenas à opinião dos outroso”.

C o m p ro m i s s o s e n vo lv e n d o o m u n d o c í v i c o

Com o mundo mercantil. No livro analisado, não foi


encontrado nenhum compromisso entre essas duas grandezas.
Com o mundo industrial. A despeito de tudo aquilo
que separa uma ordem na qual o que importa mais é a efi-
ciência de uma ordem na qual o que importa é a vontade
geral, ambas as grandezas, industrial e cívica, são, especial-
mente na sociedade francesa, objeto de intensos esforços de
compromisso, como vimos no empreendimento de filosofia
política promovido por Durkheim. A figura do trabalhador,
sustentada pelos dispositivos do sindicalismo e pelo aparato
dos direitos sociais – o direito do trabalho e previdenciário
e a seguridade social –, é resultante desse trabalho de com-
promisso. O qualificativo social serve muitas vezes, por si
só, para traçar uma ponte entre uma dignidade exercida na
construção de uma vontade coletiva inscrita nos grupos e
uma dignidade expressada no trabalho. Os grupos sociais são,
assim, constituídos de pessoas que, ao mesmo tempo, tendem
a se fundir em uma única vontade coletiva e exercem uma
mesma função em uma divisão do trabalho.
Ao compromisso central que designaremos como “direi-
tos dos trabalhadores” acrescentam-se figuras menos simétri-
cas, nas quais uma das duas grandezas vem, mais instrumen-
talmente, reforçar a outra. Assim, pode-se buscar fortalecer
a relação cívica de solidariedade por meio de “métodos de

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470 O apaziguamento da crítica

mobilização eficazes”, mas se correndo o risco de denunciar


a burocracia do sindicato. Também se pode encontrar na
aspiração dos homens a estarem em coletivo, no seio de
equipes e de grupos, o meio de “aumentar a produtividade
dos trabalhadores motivados” e os benefícios do “trabalho
em grupo”.
Os direitos dos O compromisso entre as grandezas cívica e industrial,
trabalhadores
colocado em ação no direito do trabalho e previdenciário, foi
objeto de uma intensa atividade de construção e sustentação.
Esse trabalho, iluminado pela obra de François Ewald l’État
providence [O Estado-providência] (1986), pode oferecer
uma ideia das elaborações preliminares ao surgimento de uma
nova cité. Esse movimento não está, no entanto, consumado,
por falta de uma sistematização que pressupõe a formulação
de um novo princípio de equivalência e do equilíbrio capaz
de fundamentar um processo de comprovação de justificação.
O caráter inacabado se manifesta claramente uma vez que
as controvérsias envolvendo seres do mundo industrial e do
mundo cívico não possam ser resolvidas sem um acordo
capaz de chamar a atenção para a necessidade de se promo-
verem composições com diferentes requisitos. Essa impossi-
bilidade de se rumar até a conclusão de uma comprovação
única, por falta de um princípio superior comum, observada
notadamente na aplicação do direito previdenciário ou do
trabalho, define precisamente o compromisso cujo objetivo,
que não pode ser alcançado, é ultrapassar os dois princípios
disponíveis.
O compromisso buscado é instrumentalizado pelo sindi-
calismo e, ainda mais amplamente, por todos os dispositivos
passíveis de ser qualificados como sociais (aparatos jurídicos
da seguridade social, assistência social, política social, etc.).
Ele busca uma dupla referência, tanto à unidade de todosc,
ao grupo, à solidariedade coletiva, quanto a uma função
de utilidade, às capacidades produtivasu. Esse compromisso,
que valoriza a dignidade dos trabalhadores, é marcado pela
substituição dos trabalhadores pelos cidadãosc, ou pelos ho-
mens ou humanos em geral, termos utilizados para designar

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Figuras do compromisso 471

a grandeza cívica. Muitas vezes invocados na obra de Saint­


‑Simon, na qual se opõem aos inativos, os trabalhadores não
figuram mais hoje em um contexto industrial salvo se essa
imagem comportar também um componente cívico. “Con-
frontados com a mesma política de exploração praticada pelo
patrão”, os trabalhadores são qualificados por sua condição,
que consiste em “avançar” e que pode dar conta tanto de uma
qualidade de expressão política quanto de uma satisfação de
funções. A própria situação de “desempregado” (em oposição
àquela estritamente industrial, do “inativo”) está inserida em
um regime de indenização, de pensão securitária, capaz de
promover esse compromisso com o mundo cívico (Salais;
Baverez; Reynaud, 1986).
A composição entre os bens comuns cívico e industrial é
realizada também em situações cujo objetivo é de colocação
à prova, como a greve, que “demonstra, pela capacidade de
mobilização da população, a presença de uma ‘insatisfação’
latente”. Da mesma forma, o fiscal do trabalho participa
ativamente desse compromisso uma vez que, em situações de
desacordo, por meio de um apelo à solidariedadec ou pela
mobilização do direitoc, promove a moderação das exigên-
cias de produçãou ou dos imperativos do mercadom (Dodier,
1989). O alicerçamento do compromisso cívico-industrial fica
explicitado na abundância de dispositivos descritos e cuja
serventia é precisamente estabelecer a convenção ou o acordo
coletivos, por meio de uma negociação contratual; permitir
concessões, compromissos, no sentido usual do termo, “em
que estão envolvidas organizações de trabalhadores, mas
também em que há o engajamento dos empregadores e do
Estado”; e implementar uma política social, pelo intermédio
de reuniões paritárias com os parceiros sociais e os repre-
sentantes do pessoal. Esses compromissos afastam os “mé-
todos produtivistas clássicos, que podem levar a um amargo
desapontamento e quase sempre desenvolver o antagonismo
‘interesses corporativos x interesses dos trabalhadores’, cujas
consequências negativas se estendem por muito tempo”.

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472 O apaziguamento da crítica

Métodos E os compromissos com a grandeza industrial podem


eficazes de
dizer respeito também à própria forma de conceber a rela-
mobilização
ção cívica. Eles são estabelecidos a respeito da organização,
associando em um mesmo agenciamento instrumentos de
estabilização baseados em rotinasu e a manifestação da von-
tade geralc e estão frequentemente associados a denúncias da
inspiração. Além disso, se cristalizam em torno de objetos
tecnológicos, de instrumentos de medição ou previsão, de
competências ou de capacidades qualificadas como técnicas:
“Se os problemas colocados aos trabalhadores e às seções
sindicais necessitam, para serem resolvidos, de uma vontade
de açãoc, eles exigem também um mínimo de capacidade
técnicau”. A pessoa cívica, aqui representada pela seção sin-
dicalc, é caracterizada por seu potencial de açãou e, assim,
tratada, à maneira de uma máquina, como se fosse passível
de avaliação em termos de eficácia ou de rendimento, que
podem ser objeto de uma medição e uma previsão. Isso se
aplica, por exemplo, ao plano de trabalho, cuja “elaboração
representa um grande momento para a seção sindical”: “Os
militantes não podem viver jogados de um lado para o outro
pelos acontecimentos. Eles devem assumir o controle sobre eles.
Devem estar à altura de fazer face à realidade, dia a dia,
para serem capazes de dispor de todos os instrumentos a
lhes permitir enfrentar o inesperado”. Além disso, o sindicato
deverá elaborar um plano de trabalho que levará a introduzir
toda uma série de objetos e dispositivos próprios do mundo
industrial: tarefas a cumprir, objetivos úteis para os membros
de modo que “saibam onde estão e quais são os esforços a
fazer”; programas; gráficos “indicando o progresso das trans-
missões”; levantamentos – “Por exemplo, se houver 70% de
trabalhadores no estabelecimento e se apenas 10% dos sindi-
calizados da seção forem trabalhadores, isso representará um
problema para a entidade”; mapas – “A fim de aperfeiçoar o
plano de recrutamento, um mapa da empresa que indique os
escritórios, as unidades operacionais, os serviços, a repartição
de pessoal, o número de filiados e os nomes dos militantes
será um instrumento útil. Ele permitirá visualizar os esforços

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Figuras do compromisso 473

necessários”; um orçamento, “o que obriga a colocar sobre a


mesa o tema da relação entre a ação e as finanças”.
A busca por meios de “deixar as pessoas mais interes- A ampliação de
produtividade dos
sadas em seus trabalhos”, de as “motivar”, de as “respon-
trabalhadores motivados
sabilizar”, objetiva construir um dispositivo não puramente
industrial, que não seja mantido por uma dignidade das
pessoas fundada em suas atividades, de modo que suas ati-
vidades não sejam, então, como se diz, um fim em si mes-
mo. “Uma motivação superior, uma melhor ambiência e um
interesse maior no trabalho conduzem a uma mobilização
mais considerável e, com isso, a uma maior capacidade pro-
dutiva”. Os compromissos esboçados dessa maneira tomam
a evoluçãou técnica, figura harmoniosa da ordem natural
industrial (e outra formulação para o progressou), e a asso-
ciam com a aspiração das pessoasc, expressão da dignidade
dessas pessoas no mundo cívico. “Definir o futuro da empresa
levando em conta ao mesmo tempo a evolução técnica e as
aspirações dos homens é apresentar elementos de resposta a
uma sociedade industrial cujos membros toleram cada vez
menos sua indústria sem serem capazes de passar sem ela”.
O caráter humanitário do trabalho pode reforçar um
dispositivo capaz de dar suporte a um compromisso como
esse. Dessa maneira, o ministro da Educação inaugura um
escritório nacional da Mutuelle Générale de l’Éducation Na-
tionale (MGEN),* em uma cena dotada de caráter industrial
(visita às instalações, equipamentos hospitalares de tecnologia
avançada, orçamento robusto, gestão da saúde definida por

* As mutuelles générales são associações sem fins lucrativos constituídas


para o bem-estar de seus membros. Apresentam fins previdenciários
em geral, mas mais habitualmente de assistência de saúde – como um
plano de saúde administrado pelos próprios usuários: cada associado
paga uma cota mensal e tem acesso com isso ao fim a que a mutuelle
se destina. São baseadas no lema “chacun cotise selon ses moyens et
reçoit selon ses besoins” [cada um contribui conforme seus meios e
utiliza conforme suas necessidades]. A MGEN é a maior associação
desse tipo no serviço público francês (e a segunda no universo dos
trabalhadores do país) e é mantida pelos funcionários da educação
nacional. (N. do T.)

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474 O apaziguamento da crítica

sua utilidade profissional, etc.), mas que inclui também seres


cívicos, na apresentação da natureza humanitária e desinte-
ressada da atividade psiquiátrica desse centro e da convenção
que o liga ao ministério:

Em paralelo às atividades de cuidado de saúde, a MGEN de-


sejou criar as condições para a readaptação dos pacientes a
seus postos de trabalho e à sociedade. Se para alguns esse
objetivo tem um valor utilitário, considerando-se o funcioná-
rio meramente como elemento da produção, ele tem, para os
associados, os mutualistes, um valor humano que vai além dos
critérios econômicos e visa restituir ao portador de transtorno
seu lugar, sua independência, sua dignidade; em uma pala-
vra, recolocá-lo no caminho da emancipação humana graças
aos esforços coletivos de solidariedade. (MGEN Actualité,
jun. 1985)

O compromisso entre essas duas grandezas busca,


então, compatibilizar o aumento da produtividadeu com a
satisfação de aspiraçõesc, pois “há soluções que otimizam ao
mesmo tempo os custos e a satisfação de todas as categorias
de pessoal” e que repousam no “entendimento combinado
dos problemas técnicos e dos problemas humanos”. Assim,
o “grupo de trabalho” coloca lado a lado, e na mesma es-
cala, o “especialista” e “o membro especialmente motivado
da equipe”, arranjo cuja inconsistência não resistiria a uma
comprovação puramente industrial (ou puramente cívica).
A identificação das “condições de trabalho” e a avalia-
ção da “segurança no trabalho” também participam dessa
modalidade de compromisso. Certamente, pode-se, ainda
se mantendo no mundo industrial, colocar em evidência os
fatoresu que, no ambiente ao redor do posto de trabalho,
tenham um efeito negativo ou nocivo sobre a eficiência da
atividade. Mas a organização das condições laborais por
meio de arranjos supõe uma tensão entre dois princípios
de grandeza, como se vê claramente nas denúncias de más
condições e “insalubridades”, ou nos compromissos por meio
dos quais a administração de pessoal “isola as soluções que

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Figuras do compromisso 475

otimizam a produtividade das que o fazem com as condições


de trabalho”. É por meio de uma passagem pelo mundo
cívico que se pode apelar a uma dignidade humana que
transcenda o escopo de seu ofício: “O investimento humano
de uma empresa é sem dúvida tanto o mais difícil quanto
o mais frutífero, mais rentável mesmo, se se quiser colocar
nesses termos, mas de uma rentabilidade que ultrapassa os
limites da própria empresa”.
A passagem para o mundo cívico pode se apoiar não na O trabalho em grupo
dignidade cívica das pessoas (as “aspirações dos homens”),
mas na referência ao princípio superior comum e na forma
de grandeza (todosc, juntos, em grupo; coletividade): “Todosc
juntos para melhor produziru”. Por meio desse deslocamento,
o estado de maior grandeza não é o estado de especialistau,
e sim o estado de grupoc: “Já não é mais o especialista que
fala, mas a coletividade: ‘Sim, estamos de acordo, essas con-
dições térmicas não são saudáveis. Como se poderia querer
trabalhar corretamente em tais condições?’”. Da verdade por
meio da medidau, ideia matemática, desliza-se para a verdade
pela opinião públicac, pela opinião do grupo:

Uma vez que é tão difícil estimar o imensurável, a aborda-


gem adotada por este guia foi de estabelecer cotações ou
classificações [...] e acumular classificações, de maneira não
matemática, e as sintetizar de tal forma que possamos delas
estimar que ofereçam um sentido para a [...] confrontação
de opiniões. [...] Essa síntese não é aritmética, mas a mul-
tiplicidade de cotações conduz a uma capacidade global de
classificação representativa da opinião do grupo e que oferece
um direcionamento para a ação.

A mobilizaçãoc dessa energiau da coletividade passa


por compromissos como os que sustentam os métodos pós­
‑tayloristas de organização do labor, como a “equipe autô-
noma”, “na qual um conjunto de trabalhadores executa um
conjunto de tarefas sem que haja uma relação biunívoca entre
uma pessoa e uma tarefa”. Mais geralmente, deslocamentos
semelhantes têm lugar uma vez que “os problemas sejam

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476 O apaziguamento da crítica

tratados de uma forma participativa”, que “permita obter


um consenso”.
Igualmente, pode-se citar como aplicações práticas desse
tipo de compromisso os dispositivos, nesse caso instalados
por trabalhadores em vez de por padrões, de compensação
de cargas de trabalho por solidariedade no interior de uma
equipe (Dodier, 1986).
A certificação da O compromisso entre os mundos cívico e industrial su-
competência
posto pela certificação das competências impõe-se atualmente
a tal ponto que se faz necessário retornar a um estado ante-
rior a sua consolidação para analisar seus elementos. Assim,
John Hubbel Weiss mostrou, ao comparar os funcionamentos
das escolas Central e Politécnica no início do século XIX na
França, que as taxas de abandono antes da obtenção do
título eram maiores na primeira (60%, enquanto a outra
apresentava 10%), porque os empresários da indústria nela
matriculavam seus filhos para adquirirem uma competência
estritamente industrial, sem atribuir importância ao título,
que, por outro lado, era altamente relevante em carreiras a
serviço do Estado (Weiss, 1982, p. 183-185).*
O imperativo de segurança Uma outra forma de compromisso cívico-industrial pode
ser sustentada por referência a um requisito de segurança,
como pode ser visto no caso de uma grande empresa públi-
ca de transportes, a Société Nationale des Chemins de Fer
Français (SNCF) [Companhia Nacional Francesa de Estradas
de Ferro] (Corcuff, 1989). Embora comporte um grande
número de dispositivos de natureza industrial (máquinas,
unidades operacionais, etc.), essa companhia, como serviço
público, deve manter uma forte ligação com o mundo cívico.

* Enquanto a atual École Centrale Paris, antiga École Centrale des Arts
et Manufactures, uma das mais tradicionais unidades de formação
tecnológica do mundo, tem um desenho destinado aos cursos genera-
listas de engenharia e forma profissionais que em geral vão para as
indústrias para atuarem diretamente em atividades mais técnicas, a
École Polytechnique, fundada ainda antes, mas direcionada em parte
ao ensino militar por Napoleão I, tem uma longa tradição de gerar
quadros para o Estado, com uma formação mais elitizada e voltada
para o planejamento estratégico. (N. do T.)

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Figuras do compromisso 477

E diferentemente das ferrovias americanas, fortemente mar-


cadas desde seu princípio por preocupações comerciais, as
estradas de ferro francesas, apesar de terem sido geridas até
a Segunda Guerra por empresas privadas, foram associadas
à construção de um compromisso cívico-industrial cuja esta-
bilidade foi fundamentada, em grande parte, nos dispositivos
implementados para garantir a segurança dos transportes.
Definidas como “serviço público”, as ferrovias estão ligadas
à segurança em um imperativo público. A ênfase nesse im-
perativo de segurança para o bem comum aumenta o peso
dos engenheiros na gestão da empresa e facilita a introdução
da tecnopsicologia, definida como um esforço para estender
aos seres humanos a preocupação com a confiabilidade dos
equipamentos, oferecendo formas de garantir, por meio de
métodos não menos científicos, a capacidade e a previsibili-
dade dos comportamentos das pessoas.
Os serviços públicos oferecem um outro exemplo de
compromisso entre o mundo cívico e o mundo industrial A eficiência do serviço
público
quando medidas voltadas para o aumento da eficiência do
trabalho são justificadas, especialmente para o pessoal, com
base na preocupação com o bem comum dos usuários. É o
caso, por exemplo, dos serviços municipais de uma cidade
de média importância do norte da França estudados por
Claudette Lafaye (1989). Em uma organização desse tipo, de
dimensões comparáveis às de uma grande empresa e que deve
garantir a realização de uma grande variedade de tarefas, são
particularmente numerosos os dispositivos de compromisso
entre o mundo cívico e o mundo industrial. Na verdade, uma
ação municipal baseia sua legitimação antes de tudo em um
princípio cívico, suportado por um conjunto de textos legais
e regulamentares nos quais se encontra depositada a vontade
geral, da qual a administração é executora. Assim, o prefeito
e o Conselho Municipal, eleitos por sufrágio universal, têm
uma missão de interesse geral e devem garantir, entre outras
coisas, a igualdade dos cidadãos perante o serviço público.
Mas, para cumprir sua missão, eles devem se apoiar em um
grande número de dispositivos técnicos de ordens bastante

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478 O apaziguamento da crítica

diferentes, cuja colocação em prática se baseia na detenção


de uma competência específica e cuja avaliação apela para
um princípio de legitimidade industrial. E uma tensão entre
a cité cívica e a cité industrial está inscrita no próprio dis-
positivo que determina a execução de cada atividade par-
ticular, cuja responsabilidade recai ao mesmo tempo, e de
uma forma que pode facilmente se tornar conflituosa, sobre
um conselheiro municipal, eleito pelos cidadãos, mas sem
competências específicas, e sobre um chefe de departamento,
sem necessariamente legitimidade de ordem cívica, mas em
condições de reivindicar a posse do conhecimento necessário
para executar a tarefa para a qual o órgão seja designado.
Assim, diante da população, mas também diante dos agentes
municipais, o investimento em um equipamento técnico não
será jamais justificado por referência apenas a um princípio
de eficiência industrial, como visto, na citada pesquisa, por
exemplo, no caso de um novo sistema de recolhimento de
lixo doméstico, justificado tanto em termos de bem comum
(“cidade limpa”, e também “melhores condições de traba-
lho para o pessoal”) quanto em relação à “rentabilidade”
(“amortização rápida”, “eficiência”, etc.).

C o m p ro m i s s o s e n vo lv e n d o o m u n d o
m e r ca n t i l

Com o mundo industrial. Nossa opção por extrair


todas as nossas racionalizações de caráter prático, nossas
razões práticas, de manuais dedicados à empresa demonstra
suficientemente que esse ambiente é um dispositivo complexo
composto por elementos próprios de todas as naturezas aqui
analisadas. É indubitavelmente a partir de um reconhecimen-
to da pluralidade de registros de ação identificados neste
capítulo que podemos esperar progredir na compreensão
desse tipo de organização, analisando-a como um dispositivo
composto que lança mão de várias formas de justificação.
No coração mesmo da empresa, está a necessidade de
pavimentar um compromisso entre uma ordem estabelecida
pelo mercado e uma ordem baseada na eficiência. Sem esse

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Figuras do compromisso 479

requisito, a empresa não tem razão de ser. Em um mundo


mercantil, ele é apenas uma fonte de rigidez para as rotinas
que implica. Em um mundo industrial, representa uma fon-
te de ineficácia, devido à imprevisibilidade dos desejos dos
clientes que prejudica a organização rigorosa dos dispositivos
técnicos. É à explicitação da necessidade do compromisso
entre essas grandezas que é dedicada a literatura econômica
de tradição institucionalista, que enfatiza o papel das orga-
nizações e das firmas (Coase, 1987). Ela ressalta que sua
operação é composta por transações mais complexas que
a troca mercantil (Williamson, 1975, 1985) e, para citar o
título do livro de Alfred Dupont Chandler, chama a atenção
para uma “mão visível” (Chandler, 1977).
O produto é o ponto de contato mais empregado entre Um produto vendável
a natureza industrial e a natureza mercantil. Ele pode resultar
do funcionamentou de uma unidade de produção eficiente ou
constituir um bemm, um recursom, mais ou menos escasso,
cobiçado por desejos concorrentes.
Os sistemas chamados “fordistas” ou de “produção em O controle da
demanda
massa” são dispositivos de compromisso que procuram con-
ciliar as exigências de uma produção eficiente, caracterizada
por uma alta produtividade, e a necessidade de atender à
demanda no mercado. Esses dispositivos são fundamentados
em economias de escala, implicando que o preço da merca-
doria baixe conforme aumente o número de compradores
que expressem o desejo de dela se apropriar, uma relação
que não é natural da natureza mercantil. Aquilo que, então,
é designado como o tamanho do mercado não é estritamente
um indicador da grandeza mercantil, pois aponta para uma
concentração que contradiz a concorrência (Eymard-Duver-
nay, 1989b, p. 128). Ford dizia: “Desdenhais do espírito de
concorrência e se especializem”. Essas palavras de ordem
indicam claramente que, para esse modelo, a divisão do
trabalho é uma exigência funcional sem qualquer natureza
comum com o mundo mercantil. No caso do sistema fordista,
o dispositivo é composto de elementos capazes de garantir a
eficiência industrial e um “mercado pujante”, e a padroniza-
ção do produto e o modo de remuneração devem garantir o

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480 O apaziguamento da crítica

compromisso entre os objetos próprios das duas naturezas.


Com a criação de um mercado de massa, a queda do preço
de custo deverá ser acompanhada por uma estabilização da
demanda, supondo-se conciliar a fluidez do mercado com a
previsibilidade característica da natureza industrial, controlaru
(especialmente por meio do marketing) a instabilidade das
grandezas mercantis.
De forma mais geral, a decisão de investimento e o cál-
culo econômico que a sustenta pressupõem um compromisso
entre uma exigência industrial – enfrentada, por exemplo,
quando se coloca à prova a eficiência técnica do novo equi-
pamento – e o imperativo de um mercado financeiro que
poderia ser expressado pelos interesses imediatos, de curto
prazo. Esse compromisso se baseia na referência a uma taxa
de crescimento e a um horizonte (outra forma de expressar
as taxas de juros), com vistas a se decidir sobre as ações a
serem adotadas, na busca de compatibilidade entre as duas
exigências (Favereau; Thévenot, 1991).
Os métodos para Os compromissos com a natureza industrial são re-
fazer negócios
lativamente raros no manual analisado, especialmente em
comparação com as obras francesas mais assemelhadas e
que, mesmo quando dedicadas principalmente aos negócios
e à venda, apresentam todas um aparelhamento de métodos
altamente instrumentalizados, demonstrando grandes refe-
rências à natureza industrial. Esses manuais franceses não se
dirigem aos homens de negóciosm, e sim aos executivos co-
merciais de empresas, representantes, vendedores, engenheiros
técnico-comerciais, diretores comerciais, gerentes de vendas,
diretores de marketing e gerentes de produto. Sua aborda-
gem é essencialmente industrial, pois eles dizem respeito, por
meio da implementação de métodosu racionais, a aumentar a
eficiência e a produtividade dos vendedores.
Por sua vez, a obra americana analisada demonstra
uma natureza industrial bem menos presente, ainda que se
manifeste quando o autor se dirige ao empreendedor, que
deve “assumir o leme”. Esses empréstimos simbólicos se refe-
rem principalmente aos instrumentosu de registro e medição

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Figuras do compromisso 481

que permitem estabilizar e prever: as “notas” – “Anotar é


se comprometer” –, os “cadernos de notas”, as “rotas”, as
“agendasu”, que devem ser respeitados, os plannings e timings,
em relação aos quais se deve se manter fiel e que, com isso,
tornam possível “gerenciaru o tempo [...] com uma pontua-
lidade militar”. Simetricamente, o CEO é grande tanto por
conta de seus pontos de vista de longo prazo quanto por seu
senso de negócios e de oportunidade: “Nunca conheci um
presidenteu ou CEOu que não se orgulhe da sua habilidade
de persuasão... isto é, de sua arte de venderm”.
Assim como o produto permite, no dispositivo comple- A utilidade, entre o desejo e
a necessidade
xo que é a firma, a passagem entre o mundo do mercado e
o mundo da indústria, o conceito de utilidade, quando não
corresponde estritamente à satisfação de um desejo, serve
frequentemente para pavimentar um compromisso com a
exigência de funcionalidade própria do mundo industrial.
Esse compromisso tende a tratar como indistintos aquilo que
motiva uma pessoa à mercê de desejosm subjetivos e aquilo
que a impulsiona por razões funcionaisu.

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Capítulo 11

A r e l at i v i z ação

Os a r r a n j o s pa rt i c u l a r e s

A pressuposição de um bem comum é necessária para fundamentar o


compromisso. Mas, para que este se sustente, ele não precisa se encaminhar
na direção de um esclarecimento, pois não existe cité de plano superior para
o qual os mundos incompatíveis, associados no compromisso, pudessem con-
vergir. O esforço para estabilizar o compromisso, oferecendo a ele uma base
mais sólida, mais produz, por conseguinte, o efeito oposto. De fato, procu-
rar definir do que poderia ser feito o bem comum que se supõe sustentar o
compromisso traz o risco de rompê-lo e de se voltar na direção da discórdia,
pois essa exploração das bases do acordo faz o compromisso soar como uma
simples montagem sem fundamento, o que é equivalente a denunciá-lo. Ele
não aparece mais como um acordo entre todos visando ao bem comum, e
sim como um acordo circunstancial entre as pessoas que se entendem bem
juntas. A mira no interesse geral é, dessa maneira, o que eleva o compro-
misso para além de um acordo “local”, “amigável”, “pessoalizado”, no qual
os integrantes fazem concessões mútuas e transigem momentaneamente na
definição de um bem que lhes seja comum na situação.
Chamaremos essa transação para o benefício dos presentes de um
arranjo (Rousseau falava de “conluios” para descrever essas associações no
interesse de indivíduos em particular). O arranjo é um acordo contingente
para ambas as partes – “Você faz isso, isso me convém; eu faço isso, isso
lhe convém” – referido a sua conveniência recíproca, e não a um bem geral.
A relação que, nesse caso, aproxima as pessoas não pode ser generalizada
para todas as pessoas em todos os casos. Assim, por exemplo, em um órgão
subordinado de uma administração municipal, o diretor permite ao sub-
diretor, muito prestativo e atencioso na repartição e com quem tem bons
contatos, que ele fique com o veículo de serviço no fim de semana. Trata-se
de um arranjo, um acerto amigável entre eles. Ele não foi objeto de nenhuma

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484 O apaziguamento da crítica

convenção explícita, não pode ser justificado publicamente e pode ser co-
locado em questão a qualquer momento; por exemplo, se for denunciado
como favoritismo injustificável por outros funcionários do órgão ou pelos
superiores hierárquicos. A supressão do privilégio do qual se beneficiam de
forma pessoal os funcionários envolvidos no arranjo não acarreta reclamações
públicas, e os interessados não dão vazão a seu descontentamento senão na
forma de resmungos e fofocas. Por outro lado, se é excluída uma bonificação
por graduação, afetando-os em seu pertencimento a uma categoria definida por
uma convenção coletiva, isso os direciona imediatamente para uma greve.
É muitas vezes a esse tipo de arranjo que nos referimos quando dizemos
que um relacionamento, uma situação, um acordo são “privados” ou quando
falamos, a partir deles, em uma modalidade como a “combinação”. O ter-
mo “privado”, em seu uso comum, tem significados variados. Ele pode ser
usado para descrever o que é próprio dos mundos doméstico ou mercantil
por oposição a outros mundos, do mundo cívico (o respeito às vidas priva-
das dos cidadãos) ou ainda do mundo da opinião (a vida privada de uma
celebridade). Mas serve também para tomar os arranjos entre pessoas e os
opor aos dispositivos, cujo caráter justificável possa ser tornado explícito por
meio da referência ao princípio que os sustenta. É essa acepção que levamos
em consideração aqui. É “privado” (ou “privativo”), nesse sentido, aquilo
que, ignorando o bem comum para levar em conta apenas o benefício das
partes envolvidas, não tem no horizonte uma justificação. Podemos dizer, por
exemplo, de uma combinação que ela tem um caráter privado, no sentido de
que não é justificável em referência a uma cité. Esses dois significados são
muitas vezes confundidos, principalmente quando o termo “privado” é usado
para descrever situações entre amigos ou mesmo familiares. Mas é necessá-
rio separá-los a fim de explicitar o mundo doméstico em sua generalidade
e de distinguir os dispositivos domésticos que se apresentam de uma forma
justificável, como, por exemplo, as reuniões de família por ocasião de um
casamento ou de um falecimento, situações a reunirem pessoas dispostas a
fazer arranjos entre si, afastando o imperativo de ter que justificar seu acordo
em um círculo mais amplo.
Assim, estar “entre nós” é suspender a mirada para o bem comum e
estabelecer relações não mais sustentadas por uma exigência de justiça e não ge-
neralizáveis: “Cá entre nós, vou te dizer...”. Entre nós, tudo se pode dizer, nos
entendemos. São precisamente esse afastamento dos outros e, eventualmente,
o segredo que contribuem para moldar a combinação, de cujos membros se

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A relativização 485

dirá que estão em uma relação de “cumplicidade”. Quando duas pessoas


fazem piadas de uma terceira, o que seria inaceitável não apenas na presença
da pessoa à qual se referem, mas até mesmo para um público não diretamente
concernido, denuncia-se a conivência que as une, dizendo ser feita pelas costas
do terceiro, que eles estariam “pegando para Cristo”. A chacota feita “entre
nós”, se realizada em plena luz do dia, ou seja, diante de uma exigência
de justificação, seria considerada de mau gosto, e a ironia “duvidosa”, os
comentários de pé de ouvido e, mais genericamente, tudo o que exprime a
cumplicidade constituiriam formas de direcionamento para os arranjos.
Seria necessário analisar a figura do arranjo para entender como uma
solução de compromisso pode ser denunciada. Na denúncia de um compro-
misso, ele é reduzido a um arranjo para benefício das partes interessadas.
O bem comum não especificado buscado pelo compromisso é descrito como
um interesse, ou seja, uma qualidade passível de ser usada para estabelecer
as equivalências entre as pessoas e as ordenar sem essa ordem ser justificável
em plena generalidade, uma vez que não foi baseada em um princípio de
equivalência respeitando o pertencimento das pessoas a uma humanidade co-
mum. De fato, os arranjos repousam em interesses partilhados, que, colocados
em ação para qualificar outras pessoas, são, nesse caso, mobilizados em um
processo de generalização sem legitimidade. Mas é ainda preciso distinguir
aqui as aproximações apontadas simplesmente como “arbitrárias”, no senti-
do de que não tenham sido confrontadas com os imperativos e constrangi-
mentos de uma cité, daquelas aproximações com um caráter inaceitável por
não serem compatíveis com o modelo da cité com o qual confrontamos as
competências operacionalizadas pelas pessoas em seus julgamentos, como é
o caso, por exemplo, dos estabelecimentos de equivalência de tipo eugenista,
que subordinam a grandeza à presença de uma qualidade biológica inscrita
fundamentalmente no corpo.

A i n s i n uação

Quando, no decurso de uma disputa, uma parte acusa a outra de fazer


insinuações, atribuindo assim a essa operação um valor negativo (o que,
evidentemente, não abrange todos os casos de subentendidos), ela tem como
objetivo revelar intenções ocultas. O adversário é acusado de promover, no
recôndito de seu peito, aproximações inaceitáveis que traem, a sua revelia –
ou, pior, intencionalmente –, a multiplicidade de sentidos das declarações

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486 O apaziguamento da crítica

apresentadas. Forma de dissimulação, o subentendido, quando apontado a


respeito de uma figura polêmica, não pode, por definição, ser apresentado
como tal pelo emissor. E para levá-lo a desempenhar um papel no processo
de comprovação, é, portanto, necessária uma interpretação, cuja validade
pode, por sua vez, ser contestada. Assim, apontar uma insinuação pertence
ao quadro dos desvelamentos. A acusação, amparando-se em um enunciado
julgado ambíguo por meio da alegação da presença de algo implícito, lança
para o outro lado, para o oponente, o desafio de tornar explícitas suas inten-
ções. E a acusação de insinuação pressupõe, com efeito, que a ambiguidade
não pode ser suspensa, pois o esclarecimento exigiria a referência explícita a
formas de equivalência injustificáveis. Nesse processo, a demanda de escla-
recimentos pode ser sustentada. A pessoa desafiada reconhece de fato haver
um subentendido, mas se defende, alegando seu desejo de não radicalizar a
disputa. O esclarecimento a levará, então, a se engajar mais adiante no pro-
cesso de justificação, apresentando claramente, categoricamente, o argumento
válido ao qual faria alusão, e a referência a um princípio legítimo teria como
resultado intensificar a controvérsia.
Apontadas e desafiadas a se justificarem – o que faria, por exemplo,
no caso de uma alusão racista ou sexista, a situação ser voltada na direção
de uma comprovação cívica –, as insinuações podem também ser repelidas
por meio de uma brecha. Assim, diz-se que o incidente foi reconduzido “às
proporções adequadas” – “Não vamos criar um caso. Tudo não passou de
uma brincadeira”. Por exemplo, durante uma altercação com colegas a res-
peito de problemas com os horários de trabalho, um radiologista ouve: “Você
estaria melhor se ficasse em Saint-Germain que em um hospital”, declaração
que interpreta como uma referência a sua homossexualidade, por associação
com uma região parisiense em torno do boulevard com esse nome e muito
relacionada a um mundo artístico e fútil, especialmente de grandes butiques.
A fim de obter um esclarecimento, diz: “O que você quer dizer com isso?”, ao
que ouve a resposta: “Não quero dizer nada de especial, apenas que você
mora em Saint-Germain-des-Prés”, bairro parisiense, cortado pelo boulevard e
em torno da abadia de mesmo nome, mas não estigmatizado como na outra
construção. Como se vê nesse exemplo, a acusação de insinuações em uma
situação sujeita ao imperativo de justificação pode ser associada à denúncia
de uma combinação oculta, de uma conspiração, recheada de cenas nas
quais julgamentos injustificáveis poderiam solidificar um acordo (diz-se, por

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A relativização 487

exemplo, que as pessoas falaram entre si pelas costas de um terceiro, que


circularam fofocas, que houve muita falação ou boatos, etc.).

E s ca pa r à j u s t i f i cação

A análise de como as pessoas são capazes e passíveis de renunciar ao


esforço de sustentar um arranjo ou de se recusar a esclarecer uma insinuação
nos leva a observar uma outra maneira de se retirar de uma disputa. Mas, di-
ferentemente das soluções discutidas até agora, a denúncia e o compromisso,
a saída que agora exploraremos permite escapar dos rigores da disputa apenas
por meio da suspensão do imperativo de justificação, sem, contudo, se dobrar
na direção dos tipos de imperativo que abrem a possibilidade de perdão e
cuja análise não se enquadra no âmbito do programa aqui desenvolvido.*
Com efeito, para evitar o processo de comprovação e escapar à con-
trovérsia sobre o que importa na verdade, as pessoas podem concordar que
nada importa. Afinal, qual o sentido de um desacordo se nada importa?
Chamaremos essa figura de relativização. Nela, a comprovação, a testagem de
realidade, é abandonada em favor de um recurso às circunstâncias. A situação
é tratada como sem consequências e puramente local e os seres nela contidos,
como sem ordem e sem importância, de modo que seria tão desnecessário
quanto impossível tentar estabelecer entre eles uma forma geral de relação.
O alívio trazido pela relativização se deve precisamente ao apaziguamento
buscado pelo retorno às situações arrefecidas, nas quais a questão do acordo
está suspensa. Essa figura, assim, pode constituir uma resposta ao receio de
se enfrentar uma comprovação (como quando crianças fazem bagunça em
um dia de uma prova). Mas ela pode também ser uma forma de administrar
uma transição suave para um outro mundo, evitando a discórdia que não
pode deixar de surgir uma vez que um princípio alternativo de justiça seja
introduzido por uma denúncia.
Mas, para relativizar, não é suficiente apenas deixar as coisas aconte-
cerem. A relativização requer conivência ativa das pessoas para se interes-
sarem pela contingência e trazê-la para o primeiro plano. A virada rumo
às circunstâncias demanda um esforço para pôr em suspenso a questão da
justiça, deixando de lado ou ignorando os seres cuja importância, se fosse
apontada, lançaria a situação novamente na direção do processo de compro-

* Ver posfácio.

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488 O apaziguamento da crítica

vação. É preciso limitar as aproximações para evitar quaisquer generalizações


que possam recolocar a tensão entre princípios incompatíveis e demarcar que
nada importa e merece ser levado em conta: “não é nada”; “nenhum pro-
blema”; “isso pouco importa”; “que seja”, etc. Entretanto, uma vez que a
proximidade espacial ou temporal imponha aproximações difíceis de ignorar,
elas serão contornadas por um tratamento externo à justificação, por meio
da comparação metafórica, da associação momentânea e fortuita, “que não
prova nada”. É preciso, portanto, ficar mais próximo do pouco significativo
e, como no caso da regressão ao comportamento infantil, desfrutar da alegria
de ser pequeno.
As crianças não têm a sua disposição todas as formas de denúncia por-
que não têm acesso à generalidade em todas as naturezas. Em algumas, como
na natureza cívica, elas permanecem à margem da humanidade, uma vez que
não são relevantes senão como futuros cidadãos e, portanto, como passíveis
de serem objeto de uma instrução cívica. Elas estão equipadas para desmontar
os momentos mais fortemente tendentes para uma grandeza com seus gritos e
seus movimentos intempestivos, com seus risos capazes de desarmar qualquer
um e com suas falas infantis. A relativização, que ignora as grandezas, é um
dos estados para os quais elas podem facilmente reverter a situação. Mas a
tentação do retorno às circunstâncias, nas quais elas estão à vontade, uma
vez que tudo nelas é pequeno, entra em tensão com o desejo de “se tornar
grande”, isto é, com o acesso à possibilidade de uma generalidade capaz de
definir o estado de adulto.
A valorização da contingência confere à relativização um caráter emi-
nentemente instável. Se tudo se equivale porque não há nenhuma medida
comum, a cité se espedaça. Certamente a controvérsia é suspensa, mas apenas
quando qualquer julgamento se torna impossível. É por isso que a relativi-
zação é frequentemente uma forma de passagem entre as comprovações de
diferentes naturezas.

O r e l at i v i s m o

A relativização constitui um momento particularmente instável da disputa,


um momento que suspende a controvérsia, porque organiza uma passagem
para uma outra natureza se o perigo tiver sido afastado. Com efeito, as
pessoas não podem permanecer muito tempo na insignificância sem que se
apague a relação de identidade que as une, sem deixar o estado político para

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A relativização 489

regredir para o amor de si, para uma autossatisfação não mais preocupada
em estabelecer um acordo com os outros. Para assentar sobre a relativização
uma posição mais estável e com isso passar ao relativismo – como atitude
proclamada diante da vida –, é preciso, então, dar um passo adiante e,
colocando entre parênteses os imperativos da cité, adotar uma posição de
exterioridade a partir da qual o andamento do mundo possa estar subordi-
nado a um equivalente geral que não seja um bem comum. Esse equivalente
generalizado é, hoje em dia, muito recorrentemente denominado força, poder,
interesse ou potência, e tratado como se fosse naturalmente atrelado a todos
os seres. Dessa maneira, todos os seres se encontram confundidos em um
mesmo cosmos, o que tende a abolir a distinção entre os diferentes registros
de justificação e mesmo entre os seres humanos e os seres não humanos. As
grandezas próprias de cada um dos mundos aqui analisados podem com isso
ser tratadas por esse relativismo como uma manifestação disfarçada de uma
força primordial.1
O relativismo, portanto, distingue-se da relativização por sua capacidade
de denunciar o bem comum a partir de um ponto de vista geral. Mas ele não
reconduz com isso a situação para a denúncia. Em vez disso, toma aquilo
que importa na situação e o diminui, mas sem, para isso, se basear em um
princípio alternativo: os ricos fazem negócios porque amam o dinheiro da
mesma maneira que os magistrados ou ocupantes de cargos eletivos – ambos
de grandezas grandes em uma cité democrática – administram pelo gosto do
poder. Trata-se da mesma vontade de poder como vontade de não ter limi-
tes, que se realiza na paixão do lucro, no desejo de dominação, na força do
caráter, no desinteresse inspirado tratado como o interesse de estabelecer
uma contrapartida para atar uma ligação, na obscura teimosia do instinto,
na cega obstinação do inconsciente, todos forças indefinidas, reconvertíveis,
traduzíveis umas nas outras, e cuja impulsão sem freio é limitada apenas pelo
obstáculo representado por uma força superior. Assim, enquanto na denúncia
a contestação da validade de um princípio é feita sustentando-se em outro
princípio, que é, ao mesmo tempo, trazido à luz, o relativismo crítico permi-
te promover uma denúncia sem se esclarecer a posição a partir da qual ela
é colocada, porque ele toma como alvo não uma forma particular de bem
comum, mas a própria possibilidade de existência de um. Nessa leitura, por
exemplo, o interesse conduz o mundo e, com isso, cada um, dominado por
forças que nele habitam, “olha o seu lado”. E essa redução aos interesses é

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490 O apaziguamento da crítica

um dos instrumentos favoritos do relativismo. Mas “interesse” deve ser dis-


tinguido aqui do significado que o termo pode adquirir quando referenciado
a uma cité mercantil, na qual ele é a propriedade que permite aos seres,
por meio do sacrifício do atrelamento singular, acederem à generalidade da
grandeza. Por sua vez, no relativismo crítico a redução aos interesses serve
para suspender a referência à grandeza e para desafiar a realidade de toda
forma de sacrifício.
As ciências sociais são hoje frequentemente invocadas pelos atores para
fundamentar posições relativistas, quando eles têm acesso a elas como re-
curso. Essa deriva não é totalmente desprovida de fundamento. Com efeito,
é na postura crítica adotada por Nietzsche e transportada, principalmente
por meio da obra de Max Weber (Fleischmann, 1964), para a prática das
ciências sociais que se encontra a expressão mais sistemática das questões
que levantam a possibilidade oferecida às pessoas para relativizar. O tema
do “niilismo” tanto pode ser usado para revelar o estado desafortunado a
que é reduzido um mundo privado de valores, o que implica, ainda que
implicitamente, a esperança de uma restauração destes (“Falta o fim; falta a
resposta ao ‘por quê?’”) (Nietzsche, 1948, v. 2, p. 43, fragmento de 1887),*
quanto ser mobilizado como um procedimento crítico a fim de se colocar em
uma posição liberta da tirania dos valores, lançando-os uns contra os outros
(“Todos os fins são neutralizados e os juízos de valor viram-se uns contra
os outros”) (p. 51, fragmento de 1881-1882). Essa figura se aproximaria da
denúncia (apoiando-se em um princípio contra outro) se a referência a cada
um dos valores não estivesse subordinada a um projeto crítico que preten-
desse superar todos eles. Os valores são tornados relativos pela associação de
denúncias contrárias, cuja reunião em um mesmo corpo de textos visa atirar
todas as grandezas ao infortúnio e desvelar o caráter vão de um bem comum
seja ele qual for. Todo sacrifício não é senão o disfarce de um interesse: “Se-
guimos o nosso gosto, e é isso o que chamamos, em termos nobres, de dever,
virtude e sacrifício” (p. 121, fragmento de 1881-1882). E como a equiva-
lência é estabelecida pela vontade de persistir no ser, é possível esboçar uma
economia geral das formas de reconversão desse comum apetite de poder:

* Conforme edição de A vontade de poder publicada pela editora Contraponto, com tra-
dução de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. (N. do T.)

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A relativização 491

Na realidade, age-se com “désintéressement” [desinteresse] porque é com base


nessa única condição que ainda se pode existir; adquirimos o hábito de pensar
na existência dos outros em vez de em sua própria (por exemplo, o príncipe na
de seu povo; a mãe, na de seu filho, porque sem isso o príncipe não existiria
mais como um príncipe, nem a mãe); mas o que querem todos é conservar seu
sentimento de potência, mesmo que isso exija atenções perpétuas e sacrifícios
inumeráveis em favor de seus subordinados. (Nietzsche, 1948, v. 2, p. 120-121,
fragmento de 1881-1882)

O recurso a um equivalente geral é necessário porque o relativismo mais


consistente não pode superar os imperativos e constrangimentos a pesarem
sobre a relativização sem recair em um niilismo radical e autodestrutivo,
visto que se condenaria ao silêncio, que não é jamais plenamente realizado
no niilismo filosófico ou político. Uma vez tendo sido consumada a colo-
cação em perspectiva crítica de todos os valores, o relativismo é por seu
turno convocado a se fundamentar e se justificar, o que o conduz a sair de
sua lógica própria, seja retornando à denúncia, que buscará outro princípio
de grandeza, seja (e as duas operações não são incompatíveis) se orientan-
do para a busca de um novo princípio. O relativismo crítico pode, assim,
pivotar para a indignação, que se baseia em uma grandeza para denunciar
o infortúnio das vaidades ilusórias. Em Nietzsche, a grandeza da opinião é
frequentemente criticada pela grandeza inspirada: “Em nossos dias, não
é senão pelo eco que os eventos adquirem a ‘grandeza’ – pelo eco dos jor-
nais!” (Nietzsche, 1948, v. 2, p. 63, fragmento de 1882-1884). E o relativismo
pode também se orientar para a reconstrução de uma cité pela transformação
da força – equivalente geral subjacente, como mestre absoluto liberado do
fardo da justificação e puramente afirmativo – em uma grandeza verdadeira,
destinada a fazer reconhecer sua vocação universal para ordenar os seres da
maneira mais justa, o que restauraria o horizonte de um bem comum: “O que
determina a posição, o que distingue a posição, é unicamente a quantidade
de potência, e nada mais” (p. 195, fragmento de 1887). A fundação dessa
cité, na qual a justiça será “a vitalidade da própria vida”, não é alcançada,
em parte, provavelmente, devido a uma reticência do filósofo em admitir o
princípio de uma humanidade comum (associada por ele ao judaísmo e ao
cristianismo e tratada como uma expressão da moral do ressentimento e
como modo de opressão dos grandes pelos medíocres), o que levaria a fixar
as pessoas nos estados de grandeza (obstáculo já encontrado nas tentativas
de se fundamentar em uma equivalência biológica uma cité eugenista).

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492 O apaziguamento da crítica

Violência e j u s t i f i cação

Mas há uma terceira alternativa. Na impossibilidade de recair em um


bem comum, o relativismo pode ainda buscar uma aliança com a ciência,
como sugere, no fragmento citado, a referência à quantidade de potência.
Ou bem essa quantidade não é mensurável, o que introduz uma contradi-
ção em termos, ou bem se pode estabelecer para ela uma medida, o que é
coerente com o projeto de tornar a força um equivalente geral, e é preciso
definir as regras metodológicas a permitir o estabelecimento dessa medida, a
fim de torná-la objetivável por meio da dissociação em relação às pessoas.2
A redução aos interesses constitui, assim, o momento crítico do positivismo,
no qual a ciência se autonomiza em relação aos valores. Mas ela não pode
constituir a totalidade da atividade científica, que, para comprovar sua vali-
dade, deve capturar o real, fazer previsões e ultrapassar o reducionismo do
interesse singular. Se cada ser é dominado por seus interesses próprios, esses
interesses são incomensuráveis e disso se segue uma ordem caótica da qual
nada se pode dizer. A ciência é, portanto, obrigada a definir o interesse por
meio de um constrangimento suplementar e a submetê-lo a uma determinação
que especifique sua direção. Esse imperativo se distingue dos princípios da
filosofia política na medida em que é tratado como uma determinação atuante
nos indivíduos sem exigir uma intervenção de sua vontade. Isso se aplica, por
exemplo, à distinção entre a consciência coletiva em Durkheim e a vontade
geral em Rousseau, ou ainda entre a determinação pelo mercado na economia
e a definição do mercado como um princípio de acordo em Adam Smith.
Essa distinção fica particularmente demarcada uma vez que possa ser
demonstrado que o constrangimento ao qual a ciência submete o interesse é
distinto dos valores aos quais as pessoas fazem referência ao justificar suas
condutas. Mas além de não poderem garantir seu próprio fundamento, crítica
recorrentemente a elas dirigida,3 as ciências humanas que tiraram proveito
dessa aliança e se sustentam no relativismo para se libertar da autoridade dos
valores (e, em especial, para se dissociar das disciplinas jurídicas) não podem
mais reconhecer a necessidade dos homens de assentar seus acordos sobre um
bem comum e fundamentar a legitimidade em uma metafísica. Aquilo que
há de mais específico em seu objeto tende, portanto, a lhes escapar. Não que
elas pudessem fechar os olhos para as metafísicas de acordo que sustentam
as justificações das pessoas. Mas, embaraçadas por desenvolvê-las em uma
ciência, elas as externalizariam como ilusórios saberes nativos. Elas já não

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A relativização 493

podem capturar o imperativo de justificação senão por meio de uma operação


de desvelamento, atribuindo a ele a forma de uma ilusão ou de um engano
(ou mesmo de enganação), como demonstram, por exemplo, os usos mais
frequentes do termo “ideologia”. Ao mesmo tempo (e o próprio Max Weber
é ainda ambíguo sobre esse ponto), o estudo do imperativo de legitimidade
cede lugar a uma análise da legitimação, não mais como fundamento neces-
sário, mas como racionalização, no sentido da psicanálise, como empreen-
dimento de a posteriori tornar lícito, de transformação do ser em dever ser,
de validação por meio de uma retradução normativa do estado das coisas.
A legitimação contribui, dessa maneira, para conferir coerência à concepção
sociológica de ordem social como produto de regulações inconscientes e, por
outro lado, como uma expressão da dominação dos fortes sobre os fracos.
Ela é revelada como arbitrária e, portanto, ao menos implicitamente, como
injusta, embora a falta de referência a um bem comum produza um obstáculo
para o esclarecimento da injustiça que implicaria, logicamente, ser possível se
sustentar em um princípio de grandeza, fundando, assim, uma ordem legítima
e, portanto, a saída do relativismo.
Retomando por sua vez a questão das condições de possibilidade de
uma ordem política sem recorrer às teorias do contrato, contra as quais ela
é [em parte] construída, a sociologia europeia clássica construiu modelos
para tomar os fatores da ordem e da estabilidade e os dissociar dos motivos
e causas invocados pelos atores. Esses modelos pressupõem a existência de
um inconsciente (Nisbet, 1984, p. 110), embora esse esquema muitas vezes
pouco explícito não chegue a adquirir um estatuto propriamente teórico,
como será o caso, no final do século, com a psicologia, a partir de tradições
parcialmente distintas e com apoio na biologia (Sulloway, 1981). Esses mode-
los, em suas formas mais desenvolvidas, integram as contribuições advindas
do durkheimianismo e do marxismo, cujas divergências mais patentes – entre
consenso e conflito – turvam as ligações profundas devidas, notadamente,
como demonstrado por Pierre Ansart (1969), a uma influência comum saint­
‑simoniana. As pessoas são apresentadas como incoerentes (e, portanto, de
grandeza pequena), porque justificam racionalmente seus comportamentos
com base em motivos aparentes e falaciosos (preconceitos ou ideologias),
enquanto essas condutas seriam determinadas, na verdade, por forças ocultas,
mas objetivas. A ordem é, por essa abordagem, mantida por obra de uma
enganação (alienação, crença), que, embora não seja imposta pela força das
armas, depende da violência. Esse equívoco garante a estabilidade da ordem

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494 O apaziguamento da crítica

social, que é tomada como dada e raramente é colocada em questão. O soció-


logo conquista um ofício de estudioso na medida em que ele próprio não seja
enganado e que saiba revelar o que esteja escondido sob falsas aparências, em
conformidade com o axioma segundo o qual “toda ciência seria supérflua se
a aparência e a essência das coisas se confundissem” (Marx, 1950, livro III,
p. 96). O esquema do inconsciente oferece uma solução original para a ques-
tão do ordenamento, pois permite conceber os imperativos e constrangimentos
sob a forma de uma potência indissociavelmente externa e interna à pessoa,
como uma exterioridade interiorizada: uma força que, caso fosse imposta de
fora, se manifestaria como violência, viria habitar as pessoas, impelindo-as a
partir de dentro, determinando seu comportamento, irmanando-se aos con-
tornos de sua própria vontade. Ela tende a borrar a diferença entre violência
física e outras formas de constrangimento e, em última instância, a tratar
em pé de igualdade todas as determinações, sejam estas justificáveis ou não.
A explicação geral com base em “relações de força” – expressão eminente-
mente ambígua, uma vez que associa o recurso à violência* e a referência a
um princípio de equivalência, necessário para se entrar “em relação” – não
deixa espaço para as justificações das pessoas para suas ações. No entanto,
o caráter falacioso das interpretações das pessoas não pode ser explicado por
uma incapacidade de se chegar à natureza oculta dos fenômenos por conta de
uma cegueira natural, visto que, nos casos estudados pelas ciências sociais, os
sistemas que asseguram a regularidade das causas são da mesma ordem que
as razões oferecidas pelas pessoas (o valor do trabalho, a educação familiar,
a solidariedade coletiva, etc.). As pessoas são, aliás, creditadas por teorias que
subordinam o empreendimento científico a um princípio de não consciência, a
uma capacidade de perda das ilusões e de tomada de consciência da realidade
uma vez que ela lhes seja revelada pela ciência.
Levar a sério as justificativas das pessoas e as metafísicas do acordo nas
quais aquelas se baseiam constitui a condição de uma ciência social rigorosa

* O uso do termo “violência”, traduzido literalmente, é aqui congruente com o tratamento


dos autores em outras obras – notadamente de Boltanski em L’amour et la justice comme
compétences, no qual fala em “regime de violência” – e coerente com várias das abor-
dagens que lhes servem de base e/ou formação. Segundo tais abordagens, diferentemente
do tratamento dado na maior parte dos estudos de conflito e violência brasileiros (que
o tratam como um rótulo moral), o termo representa um sinônimo para recurso à força
(física ou simbólica) desproporcional e, no caso do modelo das economias da grandeza,
representa igualmente o outro lado, o oposto, do recurso à justificação (salvo, eviden-
temente, quando o uso da força for algo a ser justificado, como no caso, por exemplo,
do monopólio legítimo da “violência” pelo Estado descrito por Weber, em que ela deixa
de ser competência e se torna objeto). (N. do T.)

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A relativização 495

porque esse requisito impõe um imperativo sobre a interpretação. Ora, essa


interpretação está ameaçada de ser considerada arbitrária uma vez que trate
da mesma forma qualquer apreciação e que ofereça a si própria como objeto
um universo infinito de “representações” ou “valores”, ou ainda uma vez que
ela se curve à espontaneidade da prática, à natureza anárquica da realidade
ou à imprevisibilidade das associações entregues ao acaso do encontro entre
forças. Ao colocar sobre a mesa as determinações trazidas à tona por um
imperativo de justificação, o modelo aqui apresentado evidentemente não
tem a intenção de ignorar que as pessoas podem se subtrair desse imperati-
vo por meio da violência ou da enganação; e sim, em vez disso, ele permite
precisamente identificar as passagens à violência ou as regressões à insigni-
ficância, distinguir as situações orientadas para a justificação das situações
de dominação ou de contingência e, depreendendo os imperativos gerais aos
quais um princípio deve obedecer para ser passível de ser colocado em ação
em um julgamento, diferenciar as justificativas aceitáveis das aproximações
inaceitáveis. Com isso, o modelo pretende estar em sintonia com a competên-
cia que as pessoas colocam em prática para fundamentar sua concórdia ou
conduzir suas disputas. A capacidade do modelo para circunscrever e detalhar
os objetos a serem tratados e, particularmente, sua ênfase nas situações de
comprovação em detrimento das circunstâncias contingentes são precisamente
os aspectos que possibilitam registrar novos fatos cuja pertinência não pode
ser captada a partir de quadros analíticos centrados na violência, e descrever
as operações de justificação, de denúncia ou de comprometimento, escapan-
do-se do vai e vem entre o relativismo desiludido e a acusação panfletária.
De fato, é nas situações de comprovação, ou nas situações preparadas para
ela, que as pessoas colocam em ação sua capacidade de julgamento, porque
essas situações devem ser coerentes para que um acordo possa ser feito a
respeito do resultado desse teste.

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POSFÁCIO

Rumo a u m a p r ag m át i ca da r e f l e x ão

O modelo de justificação cujas linhas gerais acabamos de apresentar não


pretende dar conta dos comportamentos dos atores em todas as situações
com as quais eles podem ser confrontados. Os numerosos trabalhos empíricos
a operarem com base nesse modelo (Boltanski; Thévenot, 1989) demonstra-
ram sua relevância para a análise das operações de justificação localizadas
nos pontos mais centrais das situações de disputa, demonstrando, ao mesmo
tempo, a necessidade de ampliar o quadro para se ter acesso às condutas
menos diretamente confrontadas com um imperativo de justificação. De fato,
os momentos de disputa constituem interrupções nas ações conduzidas com
outras pessoas; eles devem, então, ser reenquadrados em um curso de ação
que, a montante e a jusante do momento de julgamento, se desenrola externa-
mente aos fortes imperativos de reflexão e de justificação por nós analisados.
Por conta disso, a sequência normal do programa, objeto de nossos trabalhos
posteriores, consistiu em dedicar atenção às configurações nas quais o peso
da justificação não se faz sentir da mesma maneira, seja porque o ator não
tenha por que confrontar a crítica e a exigência de argumentar a respeito
do que faz, seja ainda porque a exigência de justificação abriria espaço para
o risco de fazer as relações pacificadas se direcionarem rumo à discórdia.

O l u g a r da j u s t i f i cação na g a m a da s aç õ e s

Essas novas análises consistiram, inicialmente, em explorar os limites


do modelo de justificação, buscando-se situações bastante distintas daquelas
a partir das quais ele foi estabelecido, e, com base nisso, tentou-se aplicá-lo a
casos que não envolvessem todas as especificidades da crítica (Thévenot,
1989b). Assim, exigências assemelhadas à justificação podem atuar sobre um
comportamento individual, independentemente de uma controvérsia com os
outros, uma vez que se manifestem os imperativos de coerência e de con-
trole. Assim, por exemplo, o efeito de uma resistência encontrada na ação
conduzida, comparável à de uma objeção a exigir resposta, lembra o ciclo

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498 A justificação

da crítica e da justificação. Ações que não envolvam a participação de outras


pessoas e que, portanto, não pareçam ser confrontadas com os imperativos de
acordo não podem, apesar disso, ser descritas sem envolver comprovações
de coordenação entre diferentes estados de uma pessoa. De modo que, ain-
da que sem comportar justificações no sentido em que a usamos até aqui,
a coordenação entre as ações de um mesmo indivíduo pressupõe, então, um
retorno do ator sobre sua própria ação e um processo de comprovação de
sua coerência (Thévenot, 1990a). Além disso, as mesmas pesquisas mostraram
que muitas pessoas podem coordenar suas ações sem, no entanto, apresentar
os requisitos de controle comum do acordo comparáveis àqueles descritos
em termos do imperativo de justificação. Finalmente, as observações de
campo fariam ver momentos de abandono das disputas sem que pudéssemos
identificar um retorno ao acordo com base em uma argumentação geral e
em operações de colocação em equivalência a oferecer bases sólidas para
sustentar um julgamento.
A estratégia adotada não foi abordar essas novas configurações igno-
rando o obtido em trabalhos anteriores, mas sim verificar até que ponto elas
acomodariam os constrangimentos e imperativos que havíamos detalhado,
no modelo das economias da grandeza, a partir das situações de justificação.
A análise das etapas que precedem a justificação ou a ela se seguem nos con-
duziu a estudar, a montante do julgamento, os momentos de ação nos quais
o desacordo não é declarado, sem que se pudesse dizer, no entanto, que as
pessoas entram em acordo, posto não ter havido julgamento. Ao examinar
como as pessoas se dirigem para o julgar, atribuímos uma atenção especial
à forma como os desvios em relação às expectativas são reparados, na exata
medida, sem se passar por uma disputa capaz de interromper o curso da ação,
nem mesmo, consequentemente, por uma ascensão em generalidade capaz
de conduzir a atenção para as equivalências (Thévenot, 1990a). E, a jusante
do julgamento, essa análise nos levou a dar atenção ao que se segue a ele e
às modalidades de apaziguamento e abandono da crítica necessários para se
encerrar a disputa (Boltanski, 1990).

A qu é m d o j u l g a m e n to :
o i n c o n v e n i e n t e e o r e to r n o à ação qu e c o n v é m

Sem desenvolver totalmente nesta obra uma pragmática da reflexão, que


era ainda objeto de pesquisas em curso no momento da publicação original,

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Pósfácio 499

algumas configurações principais, a partir de momentos de menor reflexi-


vidade situados aquém do julgamento, em suas proximidades, podem ser
sugeridas para, em seguida, com a retomada da tensão relativa à conclusão
dessa avaliação, finalmente serem analisadas as oportunidades de reduzir essa
tensão pela diminuição da distância reflexiva.
A fim de estudar a maneira como os atores se orientam para o jul-
gamento em um curso de ação, adotamos um ponto de vista sobre a ação
que privilegia o momento reflexivo de revisão daquilo que se passou ou de
interpretação do que está em curso. Limitamos as interrogações a respeito das
intenções ou crenças à análise da busca empreendida pelas próprias pessoas,
especialmente quando se dedicam a uma avaliação de intenção. Com isso,
mantivemos a posição metodológica adotada para estudar a justificação em
disputas, que consiste, como visto, em acompanhar de mais perto os mo-
vimentos dos atores, sem nos rendermos às facilidades de uma abordagem
avassaladora, superior, e, portanto, sem nos incluirmos nas operações que
eles desempenham. Nosso interesse no julgamento não se inscrevia em uma
reflexão crítica sobre as categorias de conhecimento; partia, em vez disso, de
uma análise das disputas concretas que conduziria, assim, a uma pragmática.
Da mesma maneira, nossa atenção sobre a revisão reflexiva deve ser funda-
mentada no modo como os atores operam esse processo.
A opção por observar a ação a partir do momento da revisão interpre-
tativa não foi, entretanto, influenciada pela importância por nós atribuída à
justificação em fases anteriores da pesquisa. Ela constitui uma entrada que faz
todo o sentido, na medida em que leva em conta os limites a que os atores
estão submetidos para identificar as ações dos outros e suas próprias. Ora,
o conhecimento dos atores pode se formar apenas por meio da experiência
malsucedida, ou seja, no encontro com algo errado, na descoberta de um
inconveniente. Para acessar a revisão reflexiva, é preciso dar atenção priori-
tária aos inconvenientes que levam o ator, mesmo sem a presença de outros
seres humanos, mas a fortiori se estiver envolvido em uma ação conjunta
com eles, a explicitar as expectativas em relação a coisas ou pessoas envol-
vidas. Encontramo-nos, então, diante de uma relação que lembra aquela do
julgamento, entre uma expectativa insatisfeita e a necessidade de identificar
os seres com cuja capacidade se deve poder contar para se realizar uma ação
que convenha.
O fato é que a revisão reflexiva no decurso da ação não se baseia na
mobilização da mesma linguagem utilizada no julgamento, que requer que

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500 A justificação

se dê conta de um estado de coisas por meio de um relato. Diferentemente


do relato, a revisão reflexiva não tem por imperativo concentrar o estado
de coisas em uma forma tal que ele possa ser transportado sem trazer em
seu rastro um cortejo de circunstâncias para o qual apontaria. As designa-
ções dos seres podem permanecer turvas e locais, contanto que sirvam aqui
e agora para dar conta do inconveniente. Elas são fracamente controladas
em sua relação com os referentes e amplamente sustentadas por atos de
demonstração. A questão de uma qualificação comum não é colocada, e a
necessidade de se passar por grandezas legítimas para se apreenderem as pes-
soas não se impõe. O curso da ação pode ser modificado por qualquer dos
atores envolvidos, sem que se manifeste qualquer exigência de acordo sobre
o que esteja ocorrendo ou qualquer identificação de falhas que permitam
generalizar o incidente e apontar suas consequências. Nessa configuração,
os atores não dispõem de nenhum meio de obter garantias de conformidade
das interpretações efetuadas pelos vários protagonistas. Será precisamente
a explicitação das divergências de interpretação que abrirá o caminho para
outras possibilidades, que agora examinaremos.

Da cólera à crise

Quando o inconveniente não é reparado, pode-se procurar reduzi-lo,


redirecionando-se à força o curso de ação, sem considerar as circunstâncias,
mas se correndo o risco de promover um acesso de cólera. Na urgência desse
tipo de intervenção, o momento de deliberação precedente à formação de um
julgamento comum é escamoteado. Em seu lugar é adotada uma opção que,
não sendo explicitada, não é objeto de uma qualificação compartilhada. Ela
é expressada no acesso de fúria e irrompe como insulto. A carga emocional
característica desse instante responde à tensão criada pela impossibilidade de
se deliberar. Ela captura o ator em um gesto que se impõe e é consumado
sem possibilidade de revisão ou reflexão.
Se, na sequência de um inconveniente, a emenda falhar, ou seja, se
não for bem-sucedida em silenciar as interpretações divergentes, os atores
só poderão escapar de recair na violência se se engajarem na formação de
um julgamento comum. Tão diferente da emenda quanto do acesso de ira,
a operação de julgamento pressupõe suspender as ações anteriores e se de-
dicar a um processo. Para entender a tendência à cólera, é necessário medir
o custo da redução das interpretações divergentes em favor da deliberação,

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Pósfácio 501

possibilidade que examinamos em Les économies de la grandeur (Boltanski;


Thévenot, 1987) e neste livro, e para a qual retornaremos em breve. A pas-
sagem ao debate conduz, com efeito, a uma profunda perturbação, porque
o acesso ao espaço de deliberação, interna ou pública, supõe interromper a
ação em curso, que, por definição, envolve o futuro, orientando-se na direção
a uma mudança do estado do mundo.
Com a passagem ao debate, manifesta-se o desacordo que os momentos
tensos no decurso das ações não foram capazes de explicitar, uma vez que
os julgamentos divergentes não haviam sido expressados. O que se segue é
uma crise que acompanha a suspensão da ação. Optamos por enfatizar, no
conceito de crise, não a imagem de um caos criado pelos atores, a seguirem
cada um seu próprio caminho sem qualquer busca por coordenação, e sim
os momentos nos quais os participantes se entendem sobre a necessidade co-
mum de estabelecer (comumente) a realidade. Apenas então se pode falar de
incerteza, uma noção que não teria seu lugar na confusão das ações caóticas.
O esforço comum para reduzir a incerteza de uma realidade conduz a qua-
lificações capazes de trazer em si próprias garantias sobre o porvir. Ele exige
não se engajar imediatamente em uma intervenção que, realizada de forma
isolada, se manifestaria como um recurso à violência. A crise é, portanto, um
momento paradoxal, no qual, diferentemente do que ocorre no momento da
ação, a questão do acordo sobre a realidade ocupa todos os espíritos, mas
no qual, ao mesmo tempo, na carência de realização em um presente preen-
chido por engajamentos e expectativas, o senso de realidade se mostra como
uma lacuna. Com efeito, no acordo, a realidade adquire a forma de uma
matriz de objetos dotados de capacidades gerais, enquanto na realização ela
consiste em fazer face às coisas presentes. Em situações de crise, essas duas
modalidades são suspensas. As pessoas já não são mais confrontadas com
a presença localizada de coisas a serem feitas imediatamente, sem poderem
ainda buscar sustentação na realidade de um julgamento comum. Elas são,
então, levadas a fundamentar pessoalmente os julgamentos com vistas a uma
validade geral. E correm, assim, o risco de se verem mergulhadas no tipo de
irrealismo no qual a diferença entre o local e o pessoal – e, por outro lado,
entre o geral e o universal – se encontra abolida. O irrealismo patológico
dos delírios de grandeza ou da paranoia se manifesta especialmente uma vez
que os atores eternizem o momento de crise, recolocando continuamente
interpretações que lancem suspeitas sobre a realidade. De fato, a interrupção
da ação na crise é aceitável apenas se os atores manifestarem boa vontade

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502 A justificação

na busca de uma convergência. E para não ser patológica, a deliberação


deverá estar orientada para uma conclusão sobre uma decisão coerente com
os argumentos mobilizados.

O m o m e n to da v e r da d e d o j u l g a m e n to

A deliberação orientada para o julgamento está sujeita ao mesmo tempo


a imperativos e constrangimentos argumentativos próprios de um relato for-
mal, como um despacho judicial, e à obrigação de fundamentar argumentos
em provas, procedendo-se a constatações com o fim de restaurar a realida-
de abalada pela crise. O estatuto da linguagem no julgamento se ajusta às
demandas retóricas de argumentação e às da busca científica pela verdade.
O movimento de se levar em conta as operações argumentativas conduz à
análise dos imperativos de legitimidade e coerência que o julgamento deve
satisfazer para ser concluído, inscrevendo-se, como dissemos, em um relato,
comparável a um despacho ou resolução legais. É precisamente a dimensão
argumentativa da justificação o que é racionalizado pela filosofia política,
pelas teorias da justiça e pela retórica, quando esta mantém suas associações
com as disciplinas normativas. O que importa nessa ótica é fundamentar uma
decisão, não como uma mera adaptação às circunstâncias, mas oferecendo a
ela um escopo geral, que permita transportar sua validade a outro tempo e
outro lugar. A conclusão do processo de tomada de decisão e o encerramento
consensual da investigação são mais importantes na hora do julgamento que
a constatação da maneira como essa decisão terá prosseguimento quando o
curso da ação for retomado. Ao se concluir a ação por meio de uma decisão,
ingressa-se em um espaço deliberativo no qual se trocam argumentos cuja
única questão é sua consistência lógica.
Mas o julgamento não compreende apenas os aspectos argumentativos
da comunicação. Ele é também o momento da verdade, no qual os atores,
para fazer valer suas posições, devem qualificar os seres presentes, tornar
evidente o que estes são e passar da coerência argumentativa à comprova-
ção dos fatos. As operações de prova exigem que se esteja atento à relação
guardada pelo relato definitivo com a realidade e que se privilegie um uso
referencial da linguagem. A realidade deve ser representada na prestação
de contas formal, deve produzir um relato controlado dos fatos e os regis-
trar um formato dissociado das contingências locais, de modo a permitir
sua transposição para além dos limites da situação, de maneira totalmente

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Pósfácio 503

independente em relação à qualidade daquele que enuncia ou transmite o


julgamento. Ora, essa delimitação comum daquilo que esteja envolvido não
se impõe em todas as formas de ação. Será apenas quando ela estiver em
operação que se apresentarão configurações correspondentes ao conceito de
situação. A dinâmica do processo, com suas críticas, suas colocações à prova
e suas retomadas de investigação, desenha as situações e contribui para a
objetividade dos seres nelas engajados como provas. O julgamento, para se
referir a fatos, deve apreender dos seres aquilo que ultrapasse a ação imediata
e garanta sua subsistência. É por isso que identificar a situação exige uma
suspensão da ação, a fim de se depreender sua pertinência.

A t e n s ão d o j u l g a m e n to e a qua l i f i cação
da s p e s s oa s i n e s c ru táv e i s

Ao problematizar o tema da interrupção do julgamento, lançamos luz


sobre a tensão interna que paira sobre o senso do justo quando se parte de
uma construção sujeita ao imperativo de um julgamento adequado e se passa
à integração do julgamento ao curso da ação. Para observar essa tensão, é
preciso levar a sério as consequências pragmáticas do julgamento e antecipar
o ingresso em uma ação comum das pessoas em presença. Tal ação não é
visível quando o julgamento é capturado no momento em que é interrompido
por meio do relato conclusivo produzido na comprovação e, portanto, nas
qualificações gerais das pessoas.
Essa tensão pode ser esquematicamente descrita da seguinte maneira:
a resolução da disputa por meio do processo de comprovação pressupõe
uma qualificação das capacidades das pessoas com base em uma abordagem
determinada, isto é, em um mundo, e, com isso, em um estado de grandeza
que permita a convergência das expectativas. O julgamento estabelece, assim,
a relação entre a capacidade e a ação. Mas, como demonstrou a apresen-
tação do modelo da cité, o senso do justo apenas aceita uma qualificação
sob a garantia de um não atrelamento de grandezas a pessoas. Como se viu,
esse modelo busca conciliar dois imperativos dificilmente compatíveis: por
um lado, uma exigência de ordem, necessária para tornar possíveis as ações
em relação aos outros que sejam distintas das disputas, e, por outro, uma
exigência de comum humanidade. A referência a uma igualdade fundamental
entre os seres humanos interdita a ideia de os hierarquizar definitivamente
por uma qualificação, seja qual for, o que faria desmoronar a humanidade,

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504 A justificação

conduzindo a um continuum, a uma escala, entre o mais e o menos huma-


no. Propriedades permanentemente atreladas aos seres na verdade permitem
a construção de expectativas. Mas elas impõem obstáculos à concepção de
uma humanidade comum e também ao reconhecimento de uma incerteza que
define propriamente a atuação dos seres humanos.
Uma vez que se recoloque o julgamento como integrante de uma série de
ações, uma das consequências do requisito de não atrelamento é expressada
na necessidade de manter permanentemente em aberto a possibilidade de uma
nova atribuição de grandeza, por meio de uma nova comprovação, na qual
se reprocesse a colocação em relação entre estados-pessoa e estados-coisa.
É, com efeito, na provação das coisas que as capacidades das pessoas se re-
velam. Mas essa possibilidade supõe igualmente que os estados-pessoa não
possam ser confundidos com as pessoas. Passa-se, então, de uma abordagem
sobre a humanidade comum centrada na impossibilidade de uma hierarquia
essencial e na igualdade – enquadramento partilhado pelas filosofias políticas
do bem comum e pelas teorias da justiça – para uma orientada na direção
do caráter inescrutável das pessoas e na impossibilidade de as encerrar em
uma qualificação que sintetize o conhecimento de suas capacidades. A tensão
entre os dois requisitos do modelo da cité (ordem e comum humanidade)
está, assim, no âmago da relação entre a suspensão do julgamento e aquilo
que a ela se segue.
Ao tomar o julgamento e o mergulhar novamente na ação, vê-se, as-
sim, reaparecer a difícil compatibilidade entre as exigências de ordem e de
humanidade comum que a construção formal do bem comum contribui para
apaziguar. A exigência de qualificação deve ser integrada a uma ontologia da
pessoa que reconheça tanto a subsistência de um ser por entre os atos – o que
supõe uma potência capaz de tornar possível a qualificação no julgamento –
quanto o caráter inesgotável, e, com isso, incognoscível em sua totalidade,
das potências das pessoas, o que limita consideravelmente a possibilidade
de se apoiar em um julgamento para se estabelecer a maneira como alguém
pode se comportar em relação aos outros. A interrupção do julgamento
resulta de um trabalho retrospectivo de investigação para qualificar o que
ocorreu e está orientado para a estabilização das expectativas mútuas, uma
vez que desenha as capacidades para o porvir. Assim, ela é confrontada com
a acusação de tentar absorver completamente as inesgotáveis pessoas na
qualificação de seu estado.
A possibilidade sempre aberta de essa acusação ser feita e o conhecimen-
to comum de uma impossibilidade de se interromper de uma vez por todas a

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Pósfácio 505

investigação conferem à suspensão do julgamento seu caráter convencional,


no sentido de que todos sabem que as qualificações não podem resumir a
totalidade da ação passada nem abraçar todas as potencialidades das ações
vindouras.

O j u l g a m e n to , e n t r e p o d e r e e s qu e c i m e n to

Um julgamento instalado nos fatos traz consigo o risco de ser denun-


ciado como perpetuador abusivo de um estado passado da comprovação, ao
reduzir as pessoas a suas qualificações e as encerrar nas relações de grandeza
estabelecidas. É esse tipo de julgamento que é designado pelo termo poder,
cujo significado é sempre denunciatório. A passagem pelos fatos pressupõe
que as pessoas possam ser confundidas com as capacidades que o julgamento
tenha qualificado e, portanto, que suas ações possam ser controladas, seja
diretamente, o que se refere à força e à violência, seja indiretamente, por
meio do dispositivo de objetos que as envolve. A denúncia do poder não mira
apenas na circunscrição das pessoas a um dispositivo de objetos sem margem
de tolerância, no qual sua atuação é reduzida à de agentes passivos. E o
poder pode ainda ser denunciado nas formas mais insidiosas. Assim, mesmo
que uma ação seja confrontada com comprovações, o insucesso dos objetos
disponíveis poderia impedir a manifestação da grandeza das pessoas, o que
eternizaria as consequências de uma comprovação passada. Nessa situação
hipotética, a inferioridade não é mais claramente o resultado de uma arbitra-
riedade disciplinar. Pelo contrário, ela se inscreve em um julgamento comum
do qual a própria pessoa não pode escapar, já que se torna incessantemente
objeto de uma verificação. Os comportamentos dos seres humanos nesse es-
tado não correspondem mais à linguagem da ação, mas podem ser descritos
sem problemas na linguagem das forças. As equivalências necessárias para
generalizar a descrição na forma de leis estão, assim, asseguradas.
Uma figura oposta de suspensão da disputa é oferecida pelo perdão,
caso no qual a qualificação das capacidades é abandonada. Nele, com efei-
to, a atenção se dissociará da avaliação, que pressupõe colocar em prática
equivalências, para se concentrar em uma abordagem singular das pessoas.
O movimento do perdão abre a possibilidade de um esquecimento que per-
mite escapar ao trabalho de integralização das ações passadas necessárias ao
julgamento. Diferentemente daquilo que se passa na situação em que se julga,
a suspensão da disputa permitida pelo perdão não fundamenta expectativas
que suporiam a referência a capacidades qualificadas e, consequentemente,

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506 A justificação

a equivalências. Mais seguramente que o julgamento, essa figura marca uma


nítida interrupção da investigação, desqualificando-a. O perdão desfaz as
operações de aproximação necessárias à avaliação e renuncia à colocação em
perspectiva e à totalização das ações passadas. Sua expressão em uma forma
emocional repele o uso da linguagem – que sempre carrega a ameaça de uma
aproximação –, particularmente, o uso da linguagem que entra em operação
nos relatos formais, orientado para a comprovação de verdade. A referência
a objetos não encontra mais lugar, uma vez que traz consigo a equivalência
implicada na identificação dos mesmos e o processo de comprovação para
os valorizar. Finalmente, o perdão só pode ser exercido na presença de pes-
soas e, com isso, não é generalizável. O curso da ação, assim, é retomado
após o perdão sem que as consequências da crise tenham sido apreendidas
e sem que sejam aproveitados os ensinamentos trazidos pela investigação e,
eventualmente, pelo julgamento.

A f o r m a h u m a na d e o p e r a r o j u l g a m e n to
e a to l e r â n c i a na ação

A forma propriamente humana de abordar o julgamento consiste em


não fazer desaparecer a perturbação interrompendo a apreensão das pessoas
nesse momento. Ela pressupõe aceitar, na sequência da ação, a tensão entre
a qualificação dos estados-pessoa e a construção da noção de pessoa como
ser irredutível a suas qualificações. Essa postura é efetivada no fato de não
se tratar qualquer ação como um processo de comprovação, isto é, de se
permanecer no plano da ação sem se preocupar incessantemente com sua
conformidade em relação ao julgamento. Isso requer uma tolerância com os
desvios, tratados como se não tivessem consequências. E essa tolerância não
é abordada aqui, então, como uma conduta moral, mas como uma exigência
pragmática. Sem ela, a retomada do plano da ação encontra um obstáculo.
Ou bem se permanece em uma perspectiva de permanente julgamento, ma-
nifestada por uma suspeita, o que, impedindo-se de se tomar parte na ação,
junta-se à ansiedade paranoica anteriormente mencionada; ou bem, ainda,
engajando-se na ação, procura-se concretizar um dispositivo de objetos ri-
gorosamente em conformidade com o julgamento, tornando toda ação uma
comprovação. Esse é o caso, por exemplo, da concepção de linha de monta-
gem. A coordenação é a tal ponto fincada em instrumentos de capacidades
rigorosamente definidas que qualquer desvio se torna imediatamente visível

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Pósfácio 507

como uma falha e impede que suas consequências sobre os outros sejam
reparadas por correções. Do ponto de vista da moral, em comparação com
a figura do perdão, essa tolerância pragmática é compreendida no domínio
da paciência. Ao retardar o momento da comprovação, ela afasta a vontade de
conhecimento que impele à investigação e conduz ao julgamento.
A tolerância permite compreender a posição na qual os atores suportam
o peso da correção isoladamente, sem o revelar por meio de um comentário
ou de uma desculpa. Somente quando se revivem as atividades de acumu-
lação é que se desliza rumo a uma interrogação sobre as capacidades das
pessoas – “Isso não pode continuar. Ele é um incapaz” –, questionamento que
permanece inicialmente privado. E apenas quando se perde a paciência diante
de uma sucessão de incidentes experimentados em série é que se aproximam
as falhas de outras falhas anteriores.
O modelo de ação segundo o qual nos orientamos, que aproxima os
requisitos da pragmática e da ética, permite evitar uma redução da ética à
questão do julgamento, ao prestar atenção à maneira como as pessoas tratam
a tensão entre a exigência de um julgamento fundamentado, que absorverá
as pessoas nos estados-pessoa, e as exigências das pessoas de que lhes seja
deixado aberto seu campo de ação. Uma ação humana que renuncie ao pro-
cesso de comprovação e pretenda dispensar o julgamento pode ser conside-
rada utópica, mas um curso de ação perenemente controlado e generalizado
sob a forma da comprovação é propriamente inumano. Uma pragmática da
reflexão deverá dar conta da passagem entre momentos de engajamento na
ação e de suspensão da reflexão – que se manifesta na tolerância ou nas
acomodações localizadas e que pode chegar até o esquecimento característico
do perdão – e momentos de retorno da ação sobre si mesma, na crise, e de
fixação da realidade, no relato formal.

O c o n h e c i m e n to da ação

A crise e seu encerramento na forma do relato formal, que nos serviram


como ponto de partida para construir o modelo da justificação, oferecem
uma via de acesso para a análise da ação que permite evitar os problemas da
introspecção, nas intenções não manifestadas, ou da objetificação mecanicista,
nos sistemas estabelecidos. Com efeito, a crise e o julgamento são as ocasiões
nas quais os atores expõem e operacionalizam verbalmente sua ação. Eles
buscam, então, generalizar e estabelecer os fatos por meio da linguagem e

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atribuem a ela, portanto, um uso semelhante ao promovido pela ciência. Uma


vez que os atores estejam imersos nesse processo, eles próprios se lançam ao
trabalho de investigação e de imputação de intenções que coloca em prática as
categorias de análise da ação. É por isso que a estratégia de pesquisa baseada
nos momentos de comprovação e de explicitação nos pareceu particularmente
oportuna. Interrogando-se sobre a realidade e colocando à prova o que se
mostra estável, os atores afastam fenômenos contingentes em favor daquilo
que se pode valorar em geral, tornando explícitas as relações que unem o
local ao global. Analisando a ação com uma distância objetiva e com uma
mira na verdade, eles ativam linguagens de descrição que abrem espaço para
a apreensão pelas ciências sociais. É, portanto, nos momentos de perturbação
orientados para o julgamento (nos quais se confrontam várias realidades) ou
no momento da verdade do julgamento (que devolve corpo à realidade) que
a transposição da prática dos atores em uma apresentação científica suporta
os riscos de deformação mais frágeis. Mas, ao nos concentrarmos na justi-
ficação, não correríamos o risco de nos afastarmos – como as pessoas que
se entregam ao julgamento – dos imperativos e constrangimentos da ação?
Esse desvio é, contudo, necessário, pois é apenas ao se concentrar no
momento da justificação que se pode empreender uma abordagem da ação
capaz de levar em conta o lugar ocupado pela revisão reflexiva. Assim, para
ampliar nosso programa na direção de uma pragmática da reflexão, nos
concentramos notadamente nos momentos do curso de ação caracterizados
por uma correção. Essas correções respondem à resistência de um outro ser
que não corresponde mais às expectativas e adquire, assim, uma relevância
que o destaca do pano de fundo da ação em curso. O estudo desses mo-
mentos pode se beneficiar da análise da justificação já empreendida até aqui,
visto que eles têm em comum com o julgamento a ideia de se pressupor um
retorno ao que se passou – o que não representará mais que um circuito di-
minuto. Essas revisões se sustentam na identificação de solavancos no curso
da ação, que representam esboços de objetos. Por outro lado, esses retornos
se distinguem dos julgamentos estudados em Les économies de la grandeur
(Boltanski; Thévenot, 1987) e neste livro no que diz respeito a não estarem
sujeitos aos mesmos imperativos de explicitação e conhecimento comuns. Nes-
ses momentos, os atores não são obrigados nem a chegar a um acordo sobre
o objeto de suas preocupações, nem mesmo a compartilhar um desconforto.
Essa diferença de posição é o ponto de apoio que permite chegar à análise
dos momentos de esquecimento e de perdão. Com efeito, esses momentos

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Pósfácio 509

são indistinguíveis, uma vez que as pessoas estejam todas sob uma mesma
configuração, pois, nesse caso, a questão de se saber em que configuração se
encontram é indecifrável. Por outro lado, eles se tornam explícitos e oferecem
oportunidade para a análise quando os atores se encontram em diferentes
disposições. O afastamento entre as condutas daqueles que estejam preocu-
pados com uma investigação e a atitude daqueles que a rejeitam permite
localizar exatamente o trabalho de esquecimento e analisar as operações a
ele necessárias para se furtar ao processo de comprovação ou para apagar
os vestígios do julgamento.
O tratamento adotado permite escapar de uma alternativa clássica nas
ciências humanas, estendendo-se a análise sobre a justificação a uma discussão
mais geral sobre a relação entre reflexão e ação. Nessa alternativa clássica,
as abordagens que se interessam pelos comportamentos humanos apenas na
medida em que se reduzam a decisões da razão – tratadas como o único
objeto a permitir o acesso à verdade – se colocam de forma oposta àquelas
que, associando uma reflexão a uma racionalização ilusória, atribuem a si
como projeto um acesso direto à realidade das práticas, cujas razões seriam
desconhecidas pelos agentes. Para superar essa oposição, é preciso, assim,
extraí-la do espaço das querelas doutrinárias, no qual se opõem antropologias
incompatíveis, e passar a compreendê-la no decurso das atividades humanas,
nas quais está em operação. Com efeito, as pessoas devem, para fazer face
ao mundo, empreender um contínuo vai e vem entre reflexão e ação, pivo-
tando incessantemente entre momentos de domínio consciente e momentos
nos quais o apelo do presente as conduz no percurso das coisas. O estudo da
faculdade de julgamento e da estrutura dos julgamentos bem fundamentados
é certamente indispensável para a análise do senso do justo. Mas ele não
o esgota, pois deixa escapar a tensão que paira sobre esse sentido do justo
quando este é colocado em prática. Para prosseguir em sua exploração, é
preciso, assim, persegui-lo nas operações que formam o tecido da vida coti-
diana. A elaboração de um modelo dinâmico deverá permitir compreender as
sequências que até este ponto escaparam à análise, visto que as rupturas por
elas implicadas conferem uma aparência caótica à caminhada das pessoas, da
reparação à crise, da tolerância à disputa, do julgamento ao esquecimento.

15 de janeiro de 1991.

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N ota s

2. A f u n da m e n tação d o ac o r d o na f i l o s o f i a p o l í t i ca : o
e x e m p l o da c i t é m e r ca n t i l

1. Para qualificar as virtudes que atribui aos sistemas, Smith usa termos
que exprimem tanto sua capacidade de articulação, seu desempenho equipa-
rável ao das máquinas, quanto a graça que resultaria de sua adequação a um
propósito determinado. “Os sistemas, em muitos aspectos, se assemelham a
máquinas. [...] Um sistema é uma máquina imaginária, inventada para interli-
gar, na imaginação, os vários diferentes movimentos e efeitos que na realidade
já são realizados” (Astronomy, IV, 19 apud Smith, 1982). “Que a capacidade
de qualquer sistema ou de qualquer máquina para produzir a finalidade para
a qual foram planejados confere certa conveniência e propriedade ao todo e
torna agradável tão somente imaginá-lo ou contemplá-lo, é algo tão óbvio
que ninguém jamais deixou de notar” (Smith, 1860, p. 205).
2. Para uma análise dos conceitos de “simpatia” e de “espectador im-
parcial”, iluminando a relação entre os Sentimentos morais... e A riqueza...
e enfatizando o papel da simpatia como “autorregulador da harmonia so-
cial”, ver Dupuy (1987).

3. O r d e n s p o l í t i ca s e u m m o d e l o d e j u s t i ça

1. A aceitação ou a recusa de uma miscibilidade ou de uma composição


de diferentes princípios é uma questão clássica da filosofia política. Assim,
Jean Bodin, nos Seis livros da República, ao confrontar diversas espécies
dessa forma de governo, analisa a possibilidade de mesclar os benefícios
do “Estado aristocrático” àqueles do “Estado popular”. Projetando a opo-
sição entre esses dois princípios de soberania sobre a distinção de Aristóteles
(1965, V) entre justiça distributiva (que se torna a “proporção geométrica”
no “Estado aristocrático”) e justiça restaurativa (a “proporção aritmética” do
“Estado popular”), Bodin demonstra os méritos de uma situação intermediária,
caracterizada por uma “proporção harmônica” e exemplificada pela autori-

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dade popular de Veneza (Bodin, 1987). No entanto, como sublinha Pierre


Mesnard, “a mescla não é (nessa perspectiva) um princípio, uma bandeira que
se possa bravamente plantar sobre as instituições. Trata-se, muito antes, da
declaração de um fato que emerge da prudência dos governantes” (Mesnard,
1977, p. 516-517). Ademais, Samuel Pufendorf, referindo-se a Bodin, ergue-se
contra o entendimento das pessoas resultante dessa proporção harmônica e
que faz com que se “trate de forma desigual aqueles que mereceram a mesma
punição” (Pufendorf, 1771, VII, III, § XXV, v. 2, p. 493). O autor do Abrégé
de la République nos oferece um bom exemplo da posição contrária quanto
à questão da miscibilidade. Afastando como “pura questão de gramática” a
identificação de diferentes espécies de repúblicas, ele ressalta que “a questão
interessante para o direito político é saber se o conjunto de dois ou três (de
seus tipos) pode ser vantajoso e merecer o nome de república bem governada”
como “república composta ou mista”.
2. Notemos que algumas ordens que não satisfazem os axiomas do mo-
delo da cité poderiam, no entanto, comportar uma fórmula de sacrifício e a
possibilidade de um equilíbrio, ao longo de várias vidas. Mas não incluímos
em nosso campo de estudo ordens tais que envolvam uma reencarnação, nem
construções teológicas que reportem a um estado pós-morte o julgamento dos
atos cometidos durante a vida.
3. Na França, a demografia, em particular a “demografia qualitativa”, e
secundariamente a estatística administrativa, foi palco de um intenso traba-
lho de composição entre o valor eugênico e as grandezas industrial, cívica e
doméstica, trabalho cujos marcos podem ser encontrados na genealogia das
pesquisas sobre as qualidades das pessoas, a partir do projeto de “recensea-
mento de crianças deficientes na França”, nos levantamentos sobre o “estado
qualitativo da população”, empreendidos pela Fondation Française pour
l’Étude des Problèmes Humains, e até nas pesquisas de orientação profissio-
nal e de formação e qualificação profissional do Institut National d’Études
Démographiques (Ined) e do Institut National de la Statistique et des Études
Économiques (Insee) (Thévenot, 1990b).
4. Como coloca Francis Galton, “o aperfeiçoamento dos dons naturais
das gerações futuras da raça humana está amplamente, ainda que indire-
tamente, sob nosso controle” (Galton, 1972, p. 41), o que é resumido por
Lucien March, eugenista e diretor da Statistique Générale de la France (Des-
rosières, 1985), em uma fórmula que evoca ainda mais claramente o bem co-
mum: “O credo eugenista estende a função de filantropia às gerações futuras”.

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Notas 513

4. A s f o r m a s p o l í t i ca s da g r a n d e z a

1. A escrita de A Cidade de Deus pode ser situada entre 410 e 420. Ela
sucede à do Comentário ao Gênesis, escrito entre 400 e 410. E é aproxima-
damente contemporânea dos escritos sobre a graça, publicados por ocasião
da controvérsia com Pelágio. Ver Marrou, 1957, p. 48.
2. A grandeza doméstica, denunciada por enfatizar a dissociação em
relação à graça, torna-se objeto de um compromisso quando Santo Agosti-
nho se propõe a justificar o escravismo – “A escravidão, fruto do pecado”
(Santo Agostinho, 1959, CD, 37, 121-126) –, o que não pode ser tratado
no quadro do modelo da Cidade de Deus. Após ter reconduzido os escravos
à humanidade comum ao observar que Isaac, prescrevendo a circuncisão
“a todos, não só aos filhos, mas também aos escravos, nascidos em casa ou
comprados”, “atesta que essa graça pertence a todos” (CD, 36, 277), Santo
Agostinho estabelece, no livro XIX, um compromisso entre essa grandeza da
inspiração e a grandeza doméstica: “Por isso, os nossos santos patriarcas,
embora tivessem servos, administravam a paz doméstica de forma a distin-
guirem, quanto aos bens temporais, a sorte de seus filhos, da condição de
servos; mas, para o culto a prestar a Deus, em quem assentam a esperança
dos bens eternos, prestavam a todos os membros de sua casa todo o cuidado
com igual amor. Isso está tanto de acordo com a ordem natural, que o nome
de paterfamilias (pai de família) surgiu daí e vulgarizou-se tanto que até os
Senhores iníquos gostavam que lhes dessem esse nome” (CD, 37, 125).
3. O sacrifício do corpo inspirado torna-se objeto de um compromisso
doméstico na instituição de mecenato e no culto das relíquias do santo pa-
droeiro local de uma cidade ou comunidade. Ver Chiavaro, 1987.
4. Vico, para dar conta de um estado da sociedade anterior às constru-
ções dos jurisconsultos, que “supõem primeiramente um estado de civilização
no qual os homens estariam já esclarecidos por uma razão desenvolvida”, des-
creve duas outras maneiras de se conceber uma relação entre os homens, que
relaciona às “idades” da humanidade. A segunda, correspondente à “idade
heroica”, compreende os elementos daquilo que designaremos mais adiante
como cité doméstica. A primeira traz muitas características que atribuímos
à grandeza inspirada. Associada à idade divina, ela é sustentada por aquilo
que o pensador chama de “metafísica poética, na qual os poetas teólogos
tomavam a maioria das coisas materiais por seres divinos”, atribuindo a
essas coisas “sentimentos e paixões” (Vico, 1963, p. 124-126). E ele descreve

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514 A justificação

ainda as formas de generalidade daquilo que chama de uma “tópica delicada,


na qual [as pessoas] uniriam as propriedades, as qualidades ou relações de
indivíduos ou espécies” (p. 160). Sempre atribuindo uma importância decisiva
à linguagem, ele apresenta as sinédoques como instrumentos privilegiados
para se acessar uma maior generalidade: “A sinédoque foi empregada em
seguida [após a metáfora], à medida que se eleve das particularidades às
generalidades, ou que se reúnam as partes para compor seus todos” (p. 129).
5. Retornaremos adiante à forma como o mercado se distorce na crença
(ver infra: “Os efeitos danosos da especulação”). Notemos, no entanto, já
aqui, que essa transição do valor mercantil ao do renome alimenta grande
parte da literatura sociológica, que repousa no uso dos conceitos de “crédito”
ou “mercado” em referência às opiniões dos outros.
6. Hobbes fala, ele próprio, da “vanglória”, que, para ser distinguida do
renome, supõe uma sutil distinção entre a “bajulação” e a estima: “A alegria
proveniente da imaginação do próprio poder e capacidade é aquela exultação
do espírito a que se chama glorificação. A qual, quando baseada na expe-
riência de suas próprias ações anteriores, é o mesmo que a confiança. Mas
quando se baseia na lisonja dos outros, ou é apenas suposta pelo próprio,
para deleitar-se com suas consequências, chama-se vanglória. Nome muito
apropriado, porque uma confiança bem fundada leva à eficiência; ao passo
que a suposição do poder não leva ao mesmo resultado, e é, portanto, jus-
tamente chamada vã” (Hobbes, 1971, p. 53).*
7. Michael Walzer (1938, p. 19-20) se baseia nesse pensamento para
desenvolver sua construção de esferas autônomas de justiça.
8. “A honra move todas as partes do corpo político; liga-as com sua
própria ação; e assim todos caminham no sentido do bem comum, pensando
ir em direção a seus próprios interesses. É verdade que, em termos filosóficos,
é uma falsa honra que conduz todas as partes do Estado; mas essa falsa
honra é tão útil para o público quanto o seria a verdadeira honra para os
particulares que poderiam possuí-la. E não é muito obrigar os homens a rea-
lizarem todas as ações difíceis, que demandam força, sem outra recompensa
além do alarde dessas ações?”** (Montesquieu, 1979, v. 1, p. 149-150). Sobre
a tradição à qual se associa esse argumento, ver Hirschman (1977).

* Conforme tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva publicada
pela Editora Abril (Coleção Os Pensadores). (N. do T.)
** Conforme tradução de Cristina Murachco publicada pela editora Martins Fontes. (N. do T.)

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Notas 515

9. A relação entre a vontade geral em Rousseau e as teorias da graça é


analisada por Patrick Riley em sua história da ideia de “vontade geral” (Riley,
1986). Ele mostra como essa concepção é desenvolvida no século XVII por
meio das discussões sobre a graça. A vontade geral, que é antes de tudo um
conceito teológico, designa a espécie de vontade atribuída a Deus quando
ele decide quem deve receber a graça suficiente para a salvação. A questão é
levantada a respeito da interpretação da ideia de São Paulo segundo a qual
“Deus quer que todos os homens sejam salvos”. Os jansenistas interpretam
essa vontade divina da seguinte maneira: a referência a “todos” não se diri-
ge a “todos os homens”, tomando-se cada um em particular; ela designaria
uma vontade de salvação passível de atuar sobre qualquer espécie de homem,
sejam quais forem suas qualidades, judeu ou gentio, escravo ou homem livre,
etc. O termo “geral” é, assim, associado à ideia de “homem em geral”, disso-
ciado de suas qualidades particulares, o que abre caminho para uma transição
para o uso do termo na teoria política para designar um cidadão em geral –
por oposição ao pertencimento aos corpos e às dependências hierárquicas que
qualificam as pessoas na cité doméstica (Riley, 1986, p. 4-13).
10. Em uma obra anterior, dedicada à análise do conceito de vontade nas
filosofias políticas contratualistas, Patrick Riley enfatiza o caráter paradoxal
da vontade em Rousseau. De acordo com a tradição do contrato, Rousseau
faz do consentimento a condição da legitimidade de uma ordem política. Mas
esse voluntarismo é obscurecido pela natureza ambígua da vontade geral.
Esta é por vezes equiparada à vontade que emana da totalidade do corpo
político, por vezes à vontade de um indivíduo, na medida em que se dispõe
a renunciar a sua própria vontade, bem como a seus apetites particulares, a
fim de aceder ao estado geral. Ele explica essa ambiguidade pela intenção
de conciliar o individualismo contratualista, como princípio de legitimidade,
e a nostalgia da coesão e da unidade imediatas da cidade-Estado antiga –
especialmente Esparta e Roma na época da República –, concebidas como
formas “não individualistas” ou “pré-individualistas” de solidariedade (Riley,
1982, p. 99-100).
11. A influência de Saint-Simon sobre Marx, que Pierre Ansart analisa
em Marx et l’anarchisme [Marx e o anarquismo] – especialmente no capítulo
intitulado “Uma crítica saint-simoniana da filosofia” (Ansart, 1969, p. 329-­
‑358) – , é sublinhada por Georges Gurvitch em sua introdução à edição das
obras selecionadas do pensador: “Gans, um dos poucos professores cujos
cursos Marx seguiu na Universidade de Berlim, foi o primeiro hegeliano a

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516 A justificação

se esforçar para corrigir A filosofia do direito, de Hegel, por meio da ideia


saint-simoniana de que a sociedade econômica (chamada “civil”) é muito
mais importante que o Estado e determina o funcionamento, bem como o
destino mesmo, deste último” (Saint-Simon, 1965, p. 36).

5. O j u l g a m e n to s u b m e t i d o à c o m p rovação

1. Amelot de la Houssaye traduziu assim em francês o título do trabalho


de Gracian El oraculo manual y arte de prudencia, inspirando-se explicita-
mente, como sublinha Alain Pons, em II libro del cortegiano, de Castiglione
(1987, p. II). Houssaye o explica por esse livro ser “uma espécie de rudimento
de vida na corte e de código político” (Gracián, 1692, prefácio). Notemos
que, nessas obras, a prudência é principalmente regulada pelo renome, com
a medida das grandezas realizada sob os olhares dos outros. Grandes são
as ocupações “universalmente aplaudidas”, que “conquistam a benevolência
comum porque são exercidas às vistas de todos” (p. 85). La civilité française
[A civilidade francesa – na verdade, Nouveau traité de la civilité qui se prati-
que en France parmi les honnêtes gens], de Antoine de Courtin (1671), é, por
comparação, mais claramente orientado por uma hierarquia doméstica, e a
primeira lição consiste, como observou Jacques Revel (1986), em “reconhecer
seu lugar e a inclinação particular” de cada relação social.

7. O c o n f l i to e n t r e o s m u n d o s e a c o l o cação d e
j u l g a m e n to e m qu e s tão

1. Rousseau utiliza essa figura em muitas passagens das Confissões, es-


pecialmente para denunciar o renome e a riqueza. É o caso, por exemplo, na
história da “iluminação de Vincennes”, que pertence ao registro da inspiração,
como testemunham não apenas a súbita emoção que suscita a escrita do
Segundo discurso, mas também a descrição da maneira como foi composto:
“Trabalhei o discurso de uma maneira bastante singular, que quase sempre
segui nas minhas outras obras. Consagrei-lhe as insônias das minhas noites.
Na cama, meditava de olhos fechados, e com incríveis dificuldades moía e
remoía na cabeça os meus períodos; depois, quando conseguia achar-me satis-
feito com eles, alojava-os na memória até que pudesse trasladá-los ao papel:
mas enquanto me levantava e me vestia, esquecia tudo, e quando me achava
em frente do papel, quase nada me ocorria do que havia composto”. Para
retratar essa cena particularmente inspirada, o autor afasta as grandezas

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Notas 517

alternativas e, reivindicando, com orgulho, sua solidão e sua pobreza, cami-


nha a pé sob um “calor excessivo”, porque estava “parcamente em condições
de pagar por suas carruagens” (Rousseau, 1959, p. 350-352).
2. Essas traduções que fazem uma aproximação entre o bem comum
de uma cité e aquilo que, em outra, pode ser identificado apenas como bem
particular, sem generalidade ou grandeza, são facilitadas se puderem seguir a
construção de uma associação registada na linguagem. Assim, para retomar
o exemplo precedente, a referência a uma forma comum por meio da qual
expressar, em termos diferentes, por vezes o surgimento da grandeza inspirada
(efervescência), por vezes o descontrole em uma linguagem familiar (febre),
a referência àquilo que ferve, ao que se mistura e se agita sem ordem sob o
efeito de uma causa externa e, por associação, que conduz as pessoas e que
perturba, permite uma inversão das grandezas que não se imporia com a
mesma evidência se se devesse, por exemplo, passar de “febril” ou “fervente”
para “útil” ou “operacional”. Nada neste último caso impediria a abertura
do caminho da denúncia, que pode, contrariamente, seguir no exemplo, um
percurso já traçado nas palavras: “O que você chama de febre para diminuir
é, na verdade, a efervescência do gênio”. O que chamamos linguagem comum
encerra já, na matéria que lhe é própria, ou seja, no jogo de homônimos e
sinônimos, o traço de relações naturais e também as denúncias ou compro-
missos entre naturezas. Os sinônimos, e particularmente os dobretes depre-
ciadores ou denunciadores, surgem frequentemente associados à necessidade
de se reformularem as qualidades dos grandes em uma natureza, desqualifi-
cando-os de maneira que elas pudessem ser aplicadas aos pequenos de outra.
Mas essas transformações são promovidas com ainda mais facilidade quando
podem se sustentar em uma raiz comum, em uma homonímia ou em uma
falsa etimologia, isto é, naquilo que se poderia chamar de relações domésti-
cas entre as palavras. Uma vez que o elemento depreciador se sustente sobre
uma raiz comum, toda uma família de palavras é levada à queda ou deixada
em suspeita. Essas aberturas de caminhos não são, no entanto, suficientes
para sustentar uma denúncia, porque não contêm a justificação que poderia
fundamentá-las. Dizer de alguém que ele “deve estar com febre” ou que está
“fervendo a ponto de explodir” nada mais é que lançar insultos, a menos
que se possa estabelecer a referência ao princípio de justiça que fundamente
a justeza de uma ordem nas coisas. Mas essas pavimentações podem, ainda
assim, contribuir para sustentar e orientar a intenção justificativa em seu
caminho na direção de um princípio fundador. É preciso, contudo, abrir uma

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518 A justificação

exceção para a natureza inspirada, na qual o jogo de homônimos, sinônimos


e associações por ela permitido, tratado como a revelação de uma mensagem
traçada pelas mãos do Criador ou como uma expressão de uma autenticidade
oriunda das profundezas do inconsciente, representa o princípio mesmo de prova,
com a multiplicidade inesgotável de acepções contida na língua, repositório
do qual a poesia ou a mística desvelam os tesouros, constituindo aqui a forma
de generalidade mais elevada.
3. No Maio de 1968, era possível converter o público de um teatro e o
torcer do renome ao civismo, porque as pessoas estavam preocupadas com
os eventos e porque elas não podiam se subtrair de preocupações que lhes
eram próprias como cidadãs e que lhes eram lembradas constantemente pelo
barulho da multidão na rua. Esse dispositivo é, ele próprio, frequentemente
mobilizado em obras teatrais para criar uma camada que permita expor a
artificialidade, apartada da “realidade”, da atividade à qual se entregam os
atores no palco. Assim, por exemplo, em O balcão, de Jean Genet, os ruídos
do motim por trás das persianas cerradas denunciam o universo fechado, a
perversidade acolhedora do bordel no qual os grandes desempenham sua
grandeza, e, assim, revelam o seu caráter vão, em esquetes que perturbam a
realidade por meio da grita exterior.
4. Assim, nas condições mais extremas de submissão como, por exemplo,
em campos de concentração nazistas (Pollak, 1986, 1990), os algozes têm em
relação aos detentos um comportamento sádico, que seria incongruente se
seu poder fosse exercido sobre coisas, ou até mesmo sobre animais, o que
prova que eles reconheciam a humanidade de suas vítimas. Nos testemunhos
de judeus deportados, frequentemente se encontram narrativas de momentos,
apresentados como particularmente perturbadores, em que seus carrascos se
esqueciam, como se cometessem um lapso, de negar a humanidade dos sub­­
‑humanos – por exemplo, quando um médico alemão de Auschwitz entra no
cômodo em que uma deportada designada para a enfermaria se despe e recua
às pressas, pedindo-lhe “perdão”. Essas lembranças estão contaminadas com a
vergonha que acompanha o compromisso, uma vez que a vítima reconheceu
esse reconhecimento – por exemplo, devolvendo um olhar – e dele extraiu
um benefício, ou sua sobrevivência.

9. O s c o m p ro m i s s o s e m n o m e d o b e m c o m u m

1. Pode-se aproximar essa passagem ao aforismo 3: “A vantagem do


grande sobre os outros homens é enorme em um domínio: concedo-lhe sua
boa comida, seu rico mobiliário, seus cães, seus cavalos, seus macacos, seus

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Notas 519

anões, seus loucos e seus bajuladores; mas invejo sua felicidade de terem a
seu serviço pessoas a ele iguais pelo coração e pelo espírito, e que por vezes
lhe são superiores” (La Bruyère, 1982, p. 226).
2. La Bruyère esboça a resposta em numerosas passagens dos Caractères
que se abrem para outras grandezas, com particular ênfase na capacidade e na
competência. Por exemplo, no aforismo 19 do mesmo capítulo: “Os grandes
se creem os únicos perfeitos, admitirão apenas a muito custo nos outros ho-
mens a retidão de espírito, a habilidade, a delicadeza e se apossarão de seus
ricos talentos como coisas devidas por nascimento. Há neles, no entanto, um
engano grosseiro em se alimentarem de tão falsos preconceitos: aquilo que
há de melhor em pensamento, em melhores palavras, em melhores escritos,
e talvez em conduta mais delicada, nem sempre nos vêm de seu meio” (La
Bruyère, 1982, p. 229). Sobre a crise de legitimidade, especialmente no dis-
curso de Pascal sobre a condição de grande, ver Marin (1981, p. 263-290),
especialmente o capítulo final, “L’usurpateur légitime ou le naufragé roi”
[“O legítimo usurpador ou o rei náufrago”].
3. Eis o que pode ser lido nesse artigo, em grande parte dedicado à críti-
ca ao utilitarismo: “Para a Escola de Manchester, a economia política consiste
na satisfação das necessidades do indivíduo e, especialmente, de suas neces-
sidades materiais. O indivíduo se torna, assim, nessa concepção, o fim único
das relações econômicas; é por meio dele e também para ele que tudo é feito;
quanto à sociedade, é um ser de pensamento, uma entidade metafísica que
o cientista pode e deve ignorar. Aquilo a que se refere por meio desse nome
não é senão a colocação em relação de todas as atividades individuais; é um
composto, no qual não há nada mais que a soma das suas partes”. A socie-
dade, diz ainda Durkheim no mesmo texto, “é um verdadeiro ser”; tem “sua
própria natureza e sua personalidade. Essas expressões da linguagem corrente,
a consciência social, o espírito coletivo, o corpo da nação, não têm um mero
valor verbal, e sim expressam fatos eminentemente concretos. É errado dizer
que o todo é igual à soma de suas partes”. O ser social “tem propriedades
especiais” e pode, até mesmo, “sob certas condições, tomar consciência de
si”. A sociedade “não se reduz à massa confusa dos cidadãos”, e o “orga-
nismo social” não é redutível a uma “coleção de indivíduos”. A totalidade à
qual Durkheim se refere quando fala da “sociedade” é retraçada aqui a uma
“nação”, um “país” ou “Estado”: “Em outras palavras, as grandes leis eco-
nômicas seriam exatamente as mesmas, ainda que não tivesse havido nunca
no mundo nem nações, nem Estados; elas supõem simplesmente a copresença
de indivíduos, que trocam seus produtos” (Durkheim, 1975, SP, p. 271-275).

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520 A justificação

4. “Sem dúvida, os indivíduos que se consagram a um mesmo ofício


estão em relações mútuas por causa de suas ocupações similares. A própria
concorrência entre eles os põe em relação. Mas essas relações nada têm de
regular; elas dependem do acaso dos encontros e, na maioria das vezes, têm
um caráter totalmente individual. É este industrial que se acha em contato
com aquele, não é o corpo industrial de determinada especialidade que se
reúne para agir em comum” (Durkheim, 1960a, DT, p. VII, grifos nossos).
5. “Insistimos várias vezes, ao longo deste livro, sobre o estado de ano-
mia jurídica e moral em que se encontra atualmente a vida econômica. [...]
Os atos mais censuráveis são com tanta frequência absolvidos pelo sucesso
que o limite entre o que é permitido e o que é proibido, o que é justo e o
que não é, não tem mais nada de fixo, parecendo poder ser modificado quase
arbitrariamente pelos indivíduos. [...] É a esse estado de anomia que devem
ser atribuídos, como mostraremos, os conflitos incessantemente renascentes
e as desordens de todo tipo de que o mundo econômico nos dá o triste
espetáculo. Porque, como nada contém as forças em presença e não lhes
atribui limites que sejam obrigadas a respeitar, elas tendem a se desenvolver
sem termos e acabam se entrechocando, para se reprimirem e se reduzirem
mutuamente. Sem dúvida, as mais intensas acabam conseguindo esmagar
as mais fracas, ou submetê-las. Mas, se o vencido pode se resignar por um
tempo a uma subordinação que é obrigado a suportar, ele não a aceita e,
por conseguinte, ela se mostra incapaz de constituir um equilíbrio estável.
[...] Que tal anarquia seja um fenômeno mórbido, é mais que evidente, pois
ela vai contra o próprio objetivo de toda sociedade, que é suprimir ou, pelo
menos, moderar a guerra entre os homens, subordinando a lei física do mais
forte a uma mais alta” (Durkheim, 1960a, DT, p. II-III, grifos nossos).
6. Durkheim distingue a “questão social” da questão trabalhadora, o pro-
blema da “justiça social” e o da extinção do pauperismo. Essas distinções são
claramente visíveis nas passagens nas quais ele diferencia o socialismo, carac-
terizado pela predominância conferida às “funções econômicas” (Durkheim,
1971, LS, p. 92), do comunismo (associado por ele a Rousseau – p. 222),
que busca apenas neutralizar seus efeitos. O que o comunismo “coloca em
questão são as consequências morais de propriedade privada em geral e
não, como faz o socialismo, a possibilidade de uma organização econômica
específica” (p. 66).
7. “[Para Saint-Simon,] o meio de realizar a paz social é, por um lado,
liberar os apetites econômicos de todos os freios e, por outro, satisfazê-los

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Notas 521

atendendo suas demandas. Porém, tal tentativa é contraditória, pois só podem


ser satisfeitos se forem limitados (para serem preenchidos parcialmente) e eles
só podem ser limitados por si mesmos. Disso se conclui que não poderão ser
considerados o fim único da sociedade, uma vez que devem estar subordina-
dos a algum fim que os supere, e somente com essa condição são suscetíveis
de serem realmente satisfeitos. Imaginemos a organização econômica mais
produtiva possível e uma divisão das riquezas que assegure, mesmo aos mais
humildes, um grande conforto: talvez tal transformação produzisse, no mesmo
momento em que se estabelecesse, um instante de apaziguamento. Mas essa
paz não será, nunca, mais que provisória, pois os desejos, por um momento
acalmados, irão rapidamente adquirir novas exigências” (Durkheim, 1950,
LE, p. 225-226).
8. “O que é preciso, para que a ordem social reine, é que os homens
em geral se contentem com sua sorte; mas o que é preciso, para que eles se
contentem com ela, não é que tenham mais ou menos, mas que sejam conven-
cidos de que não têm o direito de possuir mais. E, para isso, é absolutamente
necessário que haja uma autoridade, cuja superioridade eles reconheçam, que
lhes diga o que é certo, pois nunca o indivíduo, abandonado apenas à pressão
dos seus desejos, irá admitir que chegou ao limite extremo de seus direitos. Se
não sente acima de si uma força a qual respeita e que o detém, que lhe diz
com autoridade que a recompensa que lhe era devida foi alcançada, é inevi-
tável que reclame como lhe sendo devido tudo o que suas necessidades exigem,
e, como na nossa hipótese essas necessidades não têm freio, suas exigências
são necessariamente sem limites. Para que seja de outra maneira, é preciso
que haja um poder moral, cuja superioridade ele reconheça e que grite: ‘Você
não pode ir mais longe’” (Durkheim, 1971, LS, p. 226-227).
9. “A subordinação da utilidade privada à utilidade comum, qualquer
que seja esta, tem sempre um caráter moral, pois implica necessariamente
algum espírito de sacrifício e de abnegação. [...] essa subordinação dos in-
teresses particulares ao interesse geral é a própria fonte de toda atividade
moral. [...] A vida em comum é atraente, ao mesmo tempo que coercitiva. [...]
Eis por quê, quando alguns indivíduos que apresentam interesses em comum
se associam, não é apenas para defender esses interesses, é para se associar,
para não se sentirem mais perdidos no meio dos adversários, para terem o
prazer de comungar, de formar com vários um só todo, isto é, enfim, para
levarem juntos uma mesma vida moral” (Durkheim, 1960a, DT, p. XV-XVII).
Nota-se a semelhança entre este último argumento, que evoca a grandeza

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522 A justificação

cívica, e aquele desenvolvido por Albert Hirschman (1983, p. 135-150) em


sua crítica à hipótese da free ride de Mancur Olson (1978), segundo a qual
a ação coletiva é buscada em si mesma, de modo que “o benefício individual
da ação coletiva não é a diferença entre o resultado desejado e o esforço
empreendido, mas a soma dessas duas grandezas”.
10. As muitas passagens em que Durkheim critica o artificialismo, o
voluntarismo e o individualismo da teoria do contrato, críticas que muitas
vezes ele associa à obra política de Rousseau – por exemplo, na quarta das
Lições de sociologia, dedicada à “moralidade cívica” (Durkheim, 1950, LE,
p. 62), na introdução do estudo sobre Montesquieu (Durkheim, 1966, MR,
p. 30) ou ainda na “Leçon d’ouverture du Cours de sciences sociales de la
Faculté de Bordeaux” [“Aula inaugural do curso de Ciências Sociais da Facul-
dade de Bordeaux”] (publicada em 1888, nos Annales de la Faculté des lettres de
Bordeaux e republicado em Durkheim, 1970, p. 77-110) –, tenderam a ocultar
as semelhanças entre a construção da totalidade em Rousseau e nele; ver,
por exemplo, Lacroix (1981, p. 73) ou Boudon e Bourricaud (1982 p. 189).
Da mesma forma, a crítica à filosofia política à qual Durkheim muitas vezes
recorreu para valorizar a especificidade e a novidade da ciência social rele-
gou a segundo plano os aspectos de seu trabalho que retomam as questões
da filosofia política clássica. Essas questões ressurgem claramente nos textos
nos quais Durkheim se propõe a definir as instituições mais adequadas para
garantir a felicidade e a justiça na sociedade.
11. Uma sociedade é “um ser moral com qualidades próprias e distintas
daquelas dos seres particulares que a constituem, algo próximo a como os
compostos químicos apresentam propriedades que nada têm a ver com as dos
elementos misturados que os compõem. [...] Haveria uma espécie de sensório
comum que serviria à correspondência de todas as partes; o bem e o mal
públicos não seriam apenas a soma dos bens ou males particulares como em
uma simples agregação, mas residiriam na ligação que os une, seria maior
que essa soma, e a felicidade pública, longe de ter sido estabelecida sobre
as felicidades dos indivíduos, será ela a lhes servir de fonte” (Do contrato
social, primeira versão de Rousseau, 1964, p. 285, citado em Durkheim,
1966, MR, p. 136).
12. Essa razão desencarnada é, em Durkheim, realizada pela ciência,
“coisa social e impessoal antes de tudo”, como uma forma “mais elevada” da
consciência coletiva: “No reino moral, como nos demais reinos da natureza, a
razão do indivíduo não tem privilégios só pelo fato de ser razão de indivíduo.

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Notas 523

A única razão pela qual podereis reivindicar legitimamente, aqui como em


qualquer lugar, o direito de intervir e de se elevar acima da realidade moral
histórica, como a finalidade e reformá-la, não é nem a minha razão nem a
vossa, é a razão humana, impessoal, que não se realiza verdadeiramente senão
na ciência” (Durkheim, 1967, p. 74-75, grifos no original).*
13. A importância atribuída por Durkheim à interiorização das regras
supraindividuais se manifesta claramente em seu interesse pelo processo de
educação. Suas preocupações pedagógicas o conduzem novamente a Rousseau,
como é evidenciado pelo programa de curso dedicado à pedagogia do ilumi-
nista e publicado em 1919 na Revue de Métaphysique et de Morale – republi-
cado em Durkheim (1975, v. 3, p. 371-401). Esse texto permite ver de forma
particularmente clara, como sublinha Philippe Besnard, as homologias entre
a antropologia rousseauniana e a antropologia durkheimiana: “Durkheim leu
no Émile que ‘o caminho para a verdadeira felicidade’ consiste em se ‘reduzir
o excesso de desejos nas faculdades’” (Besnard, 1987, p. 28-29).
14. “Para que a anomia tenha fim, é necessário, portanto, que exista ou
que se forme um grupo em que se possa constituir o sistema de regras atual-
mente inexistente. Nem a sociedade política em seu conjunto nem o Estado
podem, evidentemente, incumbir-se dessa função; a vida econômica, por ser
muito especial e por se especializar cada dia mais, escapa à sua competên-
cia e à sua ação. A atividade de uma profissão só pode ser regulamentada
eficazmente por um grupo próximo o bastante dessa mesma profissão para
conhecer bem seu funcionamento, para sentir todas as suas necessidades e
poder seguir todas as variações destas” (Durkheim, 1960a, DT, p. VI).
15. “Uma sociedade composta de uma poeira infinita de indivíduos
desorganizados, que um Estado hipertrofiado se esforça por encerrar e reter,
constitui uma verdadeira monstruosidade sociológica. [...] Uma nação só se
pode manter se, entre o Estado e os particulares, se intercalar toda uma série
de grupos secundários” (Durkheim, 1960a, DT, p. XXXII-XXXIII).
16. “O único grupo que corresponde a essas condições é o que seria
formado por todos os agentes de uma mesma indústria reunidos e organiza-
dos num mesmo corpo. É o que se chama de corporação ou grupo profis-
sional. [...] Desde que, não sem razão, o século passado suprimiu as antigas
corporações, não se fizeram mais que tentativas fragmentárias e incompletas

* Conforme tradução de J. M. de Toledo Camargo publicada pela editora Forense. (N. do T.)

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524 A justificação

para reconstituí-las em novas bases. [...] Para que uma moral e um direito
profissionais possam se estabelecer nas diferentes profissões econômicas,
é necessário, pois, que a corporação, em vez de permanecer um agregado
confuso e sem unidade, se torne, ou antes, volte a ser, um grupo definido,
organizado, numa palavra, uma instituição pública” (Durkheim, 1960a, DT,
p. VI, VIII, grifo no original).
17. “Costuma-se crer que exista na consanguinidade uma causa excep-
cionalmente poderosa de aproximação moral. Mas tivemos a oportunidade
de mostrar que ela não tem, em absoluto, a extraordinária eficácia que se
lhe atribui. A prova está em que, num sem-número de sociedades, os não
consanguíneos são muitos no seio da família. [...] Inversamente, acontece,
com grande frequência, consanguíneos bem próximos serem, moral ou juri-
dicamente, estranhos uns aos outros; é, por exemplo, o caso dos cognatos
na família romana. Portanto, a família não deve suas virtudes à unidade de
descendência: ela é, simplesmente, um grupo de indivíduos que foram apro-
ximados uns dos outros, no seio da sociedade política, por uma comunidade
mais particularmente estreita de ideias, sentimentos e interesses” (Durkheim,
1960a, DT, p. VXII).

11. A r e l at i v i z ação

1. As construções que definem os seres de acordo com o grau em que


sejam habitados por uma força e, consequentemente, tratam essa força pri-
mordial como um equivalente geral não são apanágio das ciências sociais. As
pessoas recorrem constantemente a esse tipo de interpretação quando devem
dar conta de condutas que pareçam escapar ao imperativo de justificação e
da repetição de comprovações cujo resultado seja sempre considerado injusto,
como se elas opusessem uma resistência anormal às regras de equidade sobre
as quais se fundamenta a possibilidade de um acordo. Assim, por exemplo,
o modelo de feitiçaria na região francesa de Mayenne, descrito por Jeanne
Favret-Saada com base em uma teoria da força – o feiticeiro é o homem
forte que tudo consegue e cuja grandeza é ampliada de forma injustificada
e incompreensível (Favret-Saada, 1977) –, constitui uma das formas segundo
as quais pode ser esquematizada a competência colocada em prática pelas
pessoas para explicar ações que se renovam com sucesso, embora escapem às
regras de equivalência e equidade a que obedecem as comprovações justas ou,
ao menos, discutíveis (que Favret-Saada chama de “mediações ordinárias”).

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Notas 525

A capacidade de se engrandecer em detrimento dos outros por conta de um


excesso essencial de força, que está no centro do modelo de competência,
permitindo gerar interpretações em termos de feitiçaria (Augé, 1975), é seria-
mente levada a sério pelas pessoas, porque elas próprias reconhecem estados
nos quais se sentem fortes o suficiente para se subtrair à instauração de uma
comprovação adversa, assumindo o controle de sua fraqueza para a inverter,
por um puro ato de vontade sem justificação ou fundamento. Essa fórmula
de inversão – “sob sua grandeza repousa um infortúnio; sob meu infortúnio,
esconde-se meu poder” – descreve a maneira como as grandezas ausentes se
agitam em seus limites e vêm bater à porta. O poder se manifesta, então,
como na primeira infância, como um desejo de onipotência em estado bruto,
tanto ilimitado quanto impreciso. Mas essa erupção de potência, sobre a qual
a feitiçaria construiu sua própria teoria da grandeza, deverá, em um modelo
de ação justificada, se transformar, a partir do momento em que se depare
com o obstáculo da crítica na forma de uma exigência de esclarecimento, à
qual as pessoas não podem escapar sem suas pretensões serem desqualificadas
pela acusação de loucura. Para ser exprimível e justificável, o crescimento em
poder deverá ser especificado por referência a uma grandeza estabelecida, o
que o faz se comutar para outra natureza, compreendendo novas formas de
comprovação (muitas vezes, porque a instrumentação é reduzida ao próprio
corpo, na natureza inspirada).
2. Sobre o projeto de fundamentar valores sobre forças cientificamente
mensuráveis e, mais genericamente, sobre o problema delicado da medição
de forças em Nietzsche, ver Gilles Deleuze, que escreve em Nietzsche e a
filosofia: “Nietzsche sempre acreditou que as forças eram quantitativas e
deviam ser definidas quantitativamente” (Deleuze, 1962, p. 48). Ele cita, em
favor da sua tese, a seguinte passagem, extraída de A vontade de poder,
na qual é claramente expressada a intenção de fazer da força um novo
equivalente geral permitindo distinguir a verdadeira grandeza dos valores
ilusórios: “Nosso conhecimento tornou-se científico na medida em que pôde
lançar mão de números e medidas. Deveríamos experimentar, se possível
edificar, uma ordem científica dos valores simplesmente sobre uma escala
numeral e quantitativa de forças. Todos os outros ‘valores’ são preconceitos,
ingenuidades, equívocos. São em toda parte redutíveis a essa escala numeral
e quantitativa” (Nietzsche, 1948, v. 2, p. 352, grifos no original). Mas esse
projeto é tornado ambíguo pelo preço atribuído ao “inequalizável”, isto é,
ao que é “inequalizável em quantidade”, uma vez que “a quantidade em si

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526 A justificação

não é [...] separável da diferença de quantidade”. Se a “diferença de quan-


tidade é a essência da força, a relação da força com a força”, as forças têm
existência apenas como “encontros de forças”. Elas dependem, assim, do
acaso dos encontros e permanecem, “como tais, alheias a toda lei” (Deleuze,
1962, p. 49-50), o que viola particularmente o princípio industrial, inerente
ao empreendimento científico, da estabilização da medição.
3. Ver, por exemplo, a crítica de Max Weber por Leo Strauss (1954,
p. 48-75).

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Índice r e m i s s i vo

abarcar (os outros), 168, 248, 271, 283, associação, 212, 213, 307, 367-368,
306, 318, 327. 423.
ação, 98-100, 163, 230, 254-255, 334, assuntos/negócios (ater-se a seus), 242,
394, 493-506. 242, 352.
acordo, 114, 115, 120, 156, 168, 170, atrelamento/associação (dos estados de
231, 334, 343, 344, 417, 466, 480, grandeza às pessoas), 166, 232, 357-
494, 496. 358, 501-502.
administração, 223, 344, 399-400, 407, autenticidade, 208, 216, 351, 355, 357,
471-472, 476. 362, 389.
altruísmo, 415-421. autodidata, 261, 370, 452, 453.
ambíguo/polissêmico (ser), 346-349, autoridade, 185, 189, 283, 300, 408,
380, 408-410. 426, 449, 452, 516.
autossatisfação, 343-344, 482.
amizade, 279, 281, 320, 406.
bem comum, 94, 114, 162, 164, 167-
amor de si, 177, 202.
168, 177, 314, 316, 338, 343, 406,
anedota/história/narrativa, 192, 235,
407, 409, 413, 416, 472, 476, 477,
288, 347.
478, 482, 483, 485, 486, 501.
animal doméstico, 134, 148, 184, 243,
bem mercantil, 110, 113, 128, 130, 133,
279, 285, 314, 368, 370.
135, 137, 138, 150, 309-321, 390,
anomia, 416, 516, 518.
392-393, 400.
Antigo Regime, 206-207, 385, 446.
benefício/bem-estar, 167, 167, 268, 343,
antropologia, 251, 390, 447.
353.
apontar (um ser pertinente), 250, 252, benevolência, 137, 140, 145, 447.
255, 337, 338, 344, 346. biológico, 172-173, 213, 251.
aproximação, 81-85, 116-118, 120, 145, burocracia, 387-388, 390, 396, 397,
165, 231, 239, 251-252, 478, 479, 429, 464.
481, 502. campo, 80, 90, 99-100, 260.
argumento, 94, 155-159, 230, 336, 414, caos, 231, 238, 249, 250, 252, 319, 416,
493, 498. 485, 497.
arranjo, 116, 231, 406, 476-478, 480. capital, 173, 386, 387.
arte de viver, 254-266. caridade, 134, 177.
artista, 182, 269, 270, 401. casa, 163, 173, 180, 184, 278, 280, 282,
ascetismo, 179-180, 183. 286, 287, 368.

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552 A justificação

caso [affaire], 90, 378, 380, 381-385, comprovação, 97, 117, 122, 126, 165,
432, 457. 213, 230, 232, 234, 236-242, 268,
causa, 82, 87, 211, 325, 351, 431, 434, 275, 291, 309, 311, 316, 319, 321,
446, 456-457. 322, 329, 333, 335-358, 406, 413,
celebridade, 291, 292-295, 298, 319, 415, 465, 479, 480, 481, 488, 494-
373, 428, 456. 506.
cerimônia, 120, 203, 224, 234, 287-288, comum humanidade/humanidade co-
297, 337, 355. mum, 95, 123, 164, 169, 478, 485,
cidadão, 206, 209, 212, 213, 222, 223, 500.
345, 351, 384, 386, 387, 406, 423, concorrência, 128, 135, 143, 171, 265,
432, 472. 312, 315, 317, 318.
ciência social, 219, 415-424, 483, 488, confiança, 89, 91, 276, 280, 288, 311,
505. 312, 369, 442, 447, 448, 450, 452.,
científico, 93, 321-322. 462.
cinismo, 357, 456. confissão, 182, 215, 244.
circunstâncias, 118, 121, 174, 231-232, conflito, ver disputa
243, 244, 342, 349-350, 353, 371, conhecido/obscuro, 197, 290, 298.
480-481, 496. conhecimento (modo/modelo de), 90,
cité (modelo da), 97, 124, 164-170, 333, 249, 354-356.
478, 482, 500, 501. conluios, 193, 208, 211, 213, 476, 478,
cliente, 133, 150, 344-345, 391, 406, 480.
461. consideração, 198, 204, 207, 282, 292,
codificação, 80-83, 233. 295, 361, 362, 408.
coerência, 87, 233, 346, 349, 350, 494. consumidor, 149, 262, 310.
cognitiva (capacidade), 84-86, 116, 118, contingente, 118, 238-239, 254-255,
235, 236. 336, 481, 488.
coisinha (sem importância), 336-337, contrato, 199, 209-210, 319, 418, 447,
341, 345, 355, 405. 487, 517.
coletividade, 90, 108-111, 113-114, 170, controvérsia, 166, 237, 257, 343-346,
299-300, 303, 304, 307, 321, 362, 366, 407, 413, 444, 465, 480, 481.
367, 408, 415-424, 444, 464, 470, convenção, 112, 138, 168, 312, 321,
486. 466, 477.
competência, 96-97, 125, 154, 249, 334, converter/reverter (uma situação), 337,
338-340, 515. 343, 349, 351.
complexa (organização, sociedade), 89, coordenação, 98, 116, 128, 230, 246,
89, 125, 334, 356, 472, 473. 309, 310, 314, 494, 497.
composto (agenciamento), 346-349, corpos, 144, 180-181, 187, 192, 206,
405-415, 473. 234, 235, 243, 246, 247, 270, 274,
compromisso, 100, 101, 148, 161, 263, 275, 299, 324, 325, 335, 337, 351,
368, 405-415, 476, 478. 381-382, 420, 425.

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Índice remissivo 553

corpos (corporativismo), 181, 184, 385, distrair-se, 242, 252, 257, 289, 352,
391, 415-424, 452-453. 353.
corte, 205, 365, 513. economia, 110-111, 113, 128-129, 131-
crédito, 369, 406, 511. 132, 139, 170, 230, 264, 309, 315,
crença, 98, 248, 311. 321, 324, 390, 391, 400-401, 415,
criação, 239-240, 271. 416, 447, 451, 486.
criança/filho, 234, 238, 269, 279, 284, Éden, 120-121, 165, 168, 169, 239.
285, 289, 348-349, 384, 480, 481. educação, 274, 277, 284, 285, 453.
criatividade, 260-261, 268-274. eficiência/eficácia, 321-322, 473.
crise, 497-498, 504, 506. egoísmo, 168, 169, 190, 191, 208, 214,
critério, 85, 233, 235, 325, 451. 279, 284, 314, 316, 317, 415, 420.
crítica, 83, 84, 89, 92, 99, 139, 148, emoção, 216, 269, 272-273, 317, 347,
162, 169, 183, 204-205, 212, 240, 362, 365, 388, 425, 432, 497, 502.
259, 260, 275, 291, 310, 333-404, empresa/empreendimento, 87, 88, 99,
344, 411, 493-494, 499. 120, 257-259, 321, 387, 407, 426,
cultura, 98, 170, 257. 443, 444, 450, 452, 456, 460-461,
delegação, 187, 263, 300-301, 306-307. 468, 471-474.
deliberação, 256, 496-498. engajamento (na situação), 231, 236,
democrático, 97, 339, 379, 387. 354-358, 434.
dependência pessoal, 133, 138, 145, engendramento/geração, 173, 275, 277.
182, 184-185, 207, 215, 264, 274, engenheiro, 224, 451, 453.
290. equivalência (colocação em), 80, 89,
descerramento, 354-355, 356. 121, 164, 216-217, 233, 245, 247,
descrição (linguagem de), 81, 90, 92. 268, 291, 292, 299, 319, 329, 458,
desejo, 129-130, 135-136, 210, 312-316, 459, 478, 482, 484, 488, 494.
321, 362, 388, 416, 417, 436, 473, escândalo, 215, 381-382, 442.
475, 516. esclarecer (a situação), 242, 334, 343,
dessingularizar, 87, 90, 445. 349, 351.
dignidade, 166, 172, 232, 246, 279, 289, escola, 241, 261, 341, 384, 397, 442-
290, 301, 312, 314, 323, 329, 353. 443, 446-447, 453-470.
dinheiro, 182, 268, 319, 320, 362, 368, escravo, 165, 181, 357, 510.
410. espaço, 180, 184, 235, 303, 325-326,
diploma, 275, 360, 370-371, 453, 470. 328, 449, 450.
direitos, 301, 400, 405, 408, 445-446, espectador (imparcial), 145-150, 317,
464-466. 509.
dispositivo, 87, 93, 96, 100, 241, 247, especulação, 393, 462, 511.
405, 472, 473, 474, 477, 502. esporte (prova esportiva), 242-243, 265.
disputa, 83, 92, 94, 234, 238, 335-358, esquecimento, 501, 502, 505, 506.
405, 444, 445, 479, 480, 493, 494, Estado, 161, 189, 194, 213, 215, 268,
495, 502-503. 378, 407, 415, 424, 431.

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554 A justificação

estatística, 80-82, 85-86, 90, 208, 329, gramática (política), 129, 132, 154-164.
371. grande momento, 249, 266.
estima, 196-200. grandeza, 94, 97, 123-124, 147, 156,
ética, 127, 504. 167, 203-204, 281, 346, 353-354,
etiqueta/boas maneiras, 160, 262, 280- 365, 414, 453, 485, 496, 500-501,
281, 284, 285, 360, 366, 453. 515.
eugenia/eugênico, 171-173, 478, 485, greve, 123, 366, 477.
510. grupo social, 82-86, 98, 166, 172, 257,
exemplo, 81, 83, 85, 87, 90, 91, 371. 421, 435, 443-444, 464, 469, 470.
falha/defeito/deficiência, 121, 127, 237- hábito, 270, 274, 278, 360, 363, 451.
238. hierarquia, 133, 163, 184-185, 190, 217,
família, 163, 184, 187, 189, 262, 274, 268, 275-277, 280, 281, 283, 318,
290, 518. 323, 360, 375, 378, 440, 453.
familiar, 87, 91, 217, 288-289. história, 321, 371, 381, 413-415.
feitiçaria, 239, 519. holismo, 109, 129.
filosofia da história, 175-176, 219-220. honra, 194, 196, 197-198, 283, 511.
humildade, 177, 345, 361.
filosofia política, 94-96, 124, 131, 153-
igualdade, 95, 97, 123, 172, 353, 446,
156, 333, 353, 414-415, 423, 485,
472.
498, 500, 509.
igualdade/equidade, 159, 255, 256, 336,
fisiologia social, 220-221.
342, 352-354.
fofoca, 263, 289, 290, 295, 374, 410,
incerteza, 99, 232, 239, 242, 335, 346,
443, 477.
359, 497, 500.
força, 208, 295, 338, 416, 417, 445,
inconsciente, 110, 270, 271, 482, 487.
482, 485, 487, 496, 501, 519.
inconveniente (um), 496, 497.
forma de generalidade, 88-89, 116, 168.
índice, 84-86.
foro íntimo, 199, 201, 204, 205, 209,
indivíduo, 95, 110-111, 129, 138, 149-
214, 372, 420.
150, 170, 184, 210, 211, 299, 304,
função, 220, 310, 322, 324, 325, 329,
305, 309, 314-316, 376, 418-421,
370, 456. 517-518.
generalizar, 86, 123, 191, 223, 235, 246, inovação, 159, 182, 189, 321, 438, 451.
256, 371, 378, 476, 478, 494, 504. insinuação, 246, 479, 480.
gênio/genialidade, 172, 173, 216, 271, intenção, 479, 495, 504.
410, 435. interesse (geral), 90, 124, 170, 210, 223,
geração, 173, 179-180, 184-185, 189, 416, 445, 472.
241, 247, 277, 278-279, 283, 287, interesse (particular), 92, 113, 124, 128,
288, 452. 134, 136, 145, 169, 173, 207, 210,
gesto (de protesto), 389, 431, 433-435, 211, 215, 223, 305, 416, 420, 476,
457. 478.
graça, 162, 176, 178, 182, 201, 216, interiorização/internalização, 110, 113-
240, 425, 512. 114, 420, 425, 518.

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Índice remissivo 555

interpretação, 495-498. martírio, 182, 351, 434.


íntimo/intimidade, 87, 91, 93, 215, 281. medida/medição, 268-269, 291, 325,
investimento, 132, 310, 321, 326, 329, 326, 329, 370, 463, 469, 475, 485.
448, 463, 468-469, 474, 476. memória, 291, 313, 371, 447.
investimento (fórmula de), 167, 170, mercado, 89, 133, 161, 170-171, 309-
247, 326, 388. 312, 390, 391-392, 401, 435-436,
ironia, 345, 353, 478. 447, 449, 473-474.
Judiciário, 233, 243-244. metafísica política, 111-114, 129, 164,
julgamento, 83-85, 97, 117, 233-234, 168, 251, 312, 486.
249, 286, 298, 310, 321, 342, 350, métodos, 320, 321, 324, 395, 397, 462-
355, 371, 379, 420, 472, 478, 480, 463, 474-475.
493, 494-506. mídias, 87, 253, 262, 290-298, 367,
juramento, 188-189. 373, 412, 432, 438, 459.
justiça, 82, 87, 92, 96-97, 118, 127, mobilização, 302, 307, 324, 325, 429,
157, 202, 224, 237, 244, 299, 394, 454, 458, 460, 467, 470.
431, 478, 483, 498, 500. moral, 130, 221.
justificação, 116, 119, 321, 341, 357- moral (ser), 110, 113, 130.
358, 369, 406, 414, 473, 477-478, mulher, 181, 211, 269, 279, 284, 289,
479, 480, 482, 484, 486, 488-489, 445, 446.
493, 494, 505. multidão, 183, 200, 300, 427.
legitimidade, 122, 123-124, 161, 350, mundo (comum), 100, 126, 233, 240,
414, 471, 486. 245-249, 260, 321, 333-338.
lei científica, 85, 98, 112-114, 230. mundo cívico, 139, 161, 205-218, 263-
lei, 210, 223, 268, 302-303, 502. 264, 299-309, 338, 362, 367-368,
liberalismo, 316, 390, 423. 376-388, 394-395, 399-400, 415-424,
linguagem, 145, 181, 182, 384, 410-411, 429-435, 441-447, 454-460, 472.
426, 496, 499, 502, 504, 513-514. mundo da inspiração, 162, 173, 175-
litígio, 166, 236, 312, 408. 183, 186, 199-201, 216, 260-261,
livre-arbítrio, 179, 179, 354, 355. 268-274, 351, 359-365, 372-374, 376-
local, 383-384, 391-392, 399, 451, 476, 377, 388-389, 398, 410, 425-439.
480, 496. mundo da opinião, 142, 146, 162, 181-
loucura, 98, 141-142, 172-173, 178, 183, 194-205, 207, 253, 262-263,
185, 200, 239, 250, 252, 269, 340, 290-298, 361-362, 366-367, 372-376,
351, 356, 372, 373, 428, 433, 498, 385-386, 392-393, 427-429, 439-441,
503. 454-463.
magistrado, 212-213, 338, 379-380, mundo doméstico, 133-134, 139, 161,
431, 458, 482. 163, 173, 184-194, 205, 207, 261-
mais velha (pessoa), 234, 278-279. 262, 274-290, 359-361, 364-371,
marca, 297, 460, 462. 374-375, 377-385, 389-392, 398-399,
marketing, 262, 460-462, 474. 425-427, 439-454, 477.

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556 A justificação

mundo industrial, 132, 141, 144, 148- pequeno (estado de)/de menor grandeza,
149, 160, 173, 205, 218-225, 265- 168-170, 178, 190, 198, 223, 237,
266, 309-311, 320-330, 363-364, 369- 246, 247, 249, 353, 365, 481.
371, 376, 387-388, 395-402, 415-424, perdão, 480, 502-503, 505.
437-439, 449-454, 462-475. pertinência, 231-232.
mundo mercantil, 128-150, 170-171, pesquisa (de opinião), 294, 298, 385,
182, 253, 264-265, 290, 309-320, 459, 463.
362-363, 368-369, 375, 386-387, 388, pesquisa monográfica, 90, 371.
397, 400-402, 435-437, 447-449, 460- pessoa, 86, 270, 299, 303, 351, 353,
462, 472-475. 355, 482, 494, 499, 501, 503.
município, 379, 471-472, 477. pessoal (relação), 89, 91, 192, 380-384,
mútua colaboração, 191, 282-283. 389-391, 405, 449, 452.
natureza, ver mundo plano, 224, 325, 326, 360, 394.
normalidade, ver loucura pluralidade das formas de acordo, 124,
objetivar, 181, 299, 303, 504. 169, 256.
objeto, 85, 87, 93, 98, 120, 126-127, pluralismo, 96, 125-126.
229, 233, 247, 275, 288, 310-311, poder, 95, 126, 177, 196, 357-358, 482,
315, 324-325, 329, 336-358, 407-408, 484, 488, 501-502.
413, 502. poeta, 224, 269, 410.
ocasiões sociais, 275, 287, 366, 409. polidez, ver etiqueta.
olhar, 142, 204-205, 232, 234, 240, 249, positivo/metafísico, 219, 225, 248.
253. povo, 191-192, 431.
opinião, 92, 262, 268, 285-286, 290- pragmática, 97, 154, 493, 506.
298, 432-456, 459-463, 469. prática, 159, 230, 488, 505.
ordem, 99, 123, 166, 169, 246, 464, prático (guia), 163-164.
480, 487, 500-501, 510. preço, 128-130, 140, 197-198, 312, 319,
ordem política, ver grandeza 400, 401, 436, 474.
organização, 100, 115, 300, 322, 324, preocupação, 340-341, 352, 355, 514.
327, 430, 466, 471, 472, 473. princípio (de acordo), 94, 111, 117, 125,
orgulho, 134, 207, 292. 154, 155, 160, 168, 230, 245, 322,
padrão, 88, 90, 325, 370, 401, 426. 335, 343-346, 465, 481.
pai, 184, 188-191, 193, 252, 275, 279, processo, 238, 244, 350, 497, 499.
399, 453. produção, 225, 240, 320, 321-330, 450,
paixão, 136-137, 190, 269, 388, 436, 451, 462, 473.
437, 482. produtivo/produtividade, 221-222, 266,
panfleto, 382, 383, 412, 489. 467-468.
papel, 260, 356-357. produto (manufaturado), 265, 319, 324,
paternalismo, 374-375, 377-378, 442- 473.
451. profanação, 297, 409-410, 431.
pavimentar (um compromisso), 408-411. professor, 238, 240-241.

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Índice remissivo 557

projeto, 224, 313, 329. relativizar, 116, 119, 356, 480, 481.
prova, 85, 93, 157, 233, 235, 244, 321, relato (da situação), 120, 236, 242-244,
371, 498, 499. 480, 496.
prudência [phronesis, sabedoria prática], relato formal, 243-245, 498-500, 502,
127, 160, 230, 232, 254-256, 258, 504.
353, 354. renome, 195, 293, 457, 513.
psicologia social, 166, 204, 425. representação coletiva, 417, 419, 420,
publicidade, 262, 375, 460. 488.
público/privado, 192-193, 262, 292, representação social, 97-98.
294, 295, 297, 300, 366, 373, 384, representante, 90, 196, 213, 263, 292,
394, 455, 477, 478. 300, 305, 306, 307.
qualidade (dos produtos), 89, 140, 315, responsabilidade, 283, 323, 367, 408,
316, 409, 452, 453. 453.
qualificação profissional, 89, 93, 165, retórica, 156-159, 163-164, 170, 233,
238, 245, 323. 254, 498.
qualificar, 79-84, 89, 119-121, 202-203, revelação, 86, 92, 333-338, 479, 486-
210, 232, 243, 244, 278, 499-501, 488.
502. revolução, 263, 362, 381, 384, 429-430.
queda/decaimento, 179, 239, 416. riqueza, 170, 179, 241, 264, 313-316,
quimera, 347-349. 320, 341.
raça, 172, 174, 479, 514. ritual, 194, 357.
razão/racionalização, 92, 136-137, 154, rotina, 261, 360, 363, 389, 466.
269, 328, 417, 506, 517. sacrifício, 162, 167, 173-174, 178, 187,
razão/racionalização prática, 99, 127, 208, 237-238, 247, 316, 340, 341,
417, 420, 472. 346, 417, 419, 434, 483, 510, 516.
realidade, 98-99, 113, 199, 219, 221, sangue (relações/laços de), 184, 187,
235, 248, 260, 271, 291, 497, 498, 193.
504, 505. santo, 180-181.
reflexão, 493, 495, 496, 497, 504, 505. segredo, 294, 367, 373, 381-382, 478.
regra, 96, 268, 275, 353, 371, 420, 441- segurança, 363, 469-471.
442. senhor, 185-186, 217-218, 425-426.
rei, 161, 186, 188, 203, 206-207, 235, senso de oportunidade (mercantil), 171,
276, 279, 441. 317, 436.
reino, 175-176. servidor, 185-186, 211, 217-218, 241,
relações pessoais, 261-262, 274, 283, 279, 280, 285, 411.
285, 439-440. simpatia, 140-145, 317, 447.
relações públicas, 262-263, 455, 457, sinal/signo, 195-196, 273, 321, 382,
461, 463. 427.
relativismo, 96, 122, 185, 236, 291, sindicato, 263, 376, 378, 380, 383-384,
322, 482, 485, 486, 489. 405, 443, 455, 464, 466, 509.

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558 A justificação

sistema, 98, 221, 323, 324, 327, 473, vaidade/caráter vão, 142, 181, 320, 361,
509. 484.
situação, 97-98, 119, 231-232, 244, 335, valor, 98, 172, 234, 257, 483-484, 485,
358, 499. 486, 488, 519-520.
situação estável, 120, 126, 240, 260, valorizar (os objetos), 234, 288, 335,
349, 352, 357. 339-358, 414.
situação natural, 119-120, 126, 252, vanglória, 139, 179, 182-183, 207-208,
349, 350, 356. 364, 413, 511.
soberano, 187, 206, 210, 213, 215, 430, verdade, 156, 158-159, 182, 314, 499,
432. 504.
social, 266, 415, 424, 445, 464. verossímil, 156-159.
sociedade, 170, 219, 221. violência, 122, 123, 190, 335, 338, 357,
sociologia, 107-114, 149, 160, 170, 208, 487-489, 496-497, 501.
221, 230, 248, 251, 321, 324, 333, vontade de poder, 482-485, 519.
371, 415-424, 451, 486-488, 511. vontade geral, 209, 212-213, 299, 301,
solidariedade, 211, 305, 309, 470. 312, 386, 418, 420, 430, 457, 466,
soma/somatório (e totalidade), 209-210, 471-472, 486, 512.
211. voto, 211, 212, 263, 339, 379, 385, 423.
sonho, 181, 408, 438. zum-zum-zum, 239, 336, 350.
suspeita, 124, 204, 211, 214, 260.
técnica, 160, 269, 329, 364, 411, 453,
463, 466, 473.
tempo, 90, 309, 310, 313, 322, 326,
327, 328, 395, 449.
testemunho/evidência, 241, 371.
tirania, 191, 202, 222.
tolerância, 502-504, 506.
trabalhador, 238, 334, 335, 370, 414,
470.
trabalho, 89, 132, 181, 225, 252, 262,
325, 369-371, 378, 406, 415, 418,
421, 437-438, 451, 452, 454, 464,
472.
tradição, 275, 276, 278, 312, 321, 360,
389, 392, 453.
transcendência, 208, 321, 330.
transporte (de grandeza), 339-342.
utilidade, 222, 224, 225, 414, 418, 423,
475.
utopia, 163, 165, 169, 415, 417, 504.

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Índice onomástico

A BOISGUILBERT, Pierre Le Pesant, se-


ADORNO, Theodor W., 274. nhor de, 141.
AFFICHARD, Joelle, 459. BOLTANSKI, Luc, 9, 10, 11, 15, 88,
AGLIETTA, Michel, 10, 101, 170, 183, 90, 92, 105, 109, 190, 310, 376, 386,
184, 185, 186, 187, 190, 191, 194, 429, 438, 450, 497, 498, 501, 508.
209, 359, 360, 431, 513. BONALD, Louis Gabriel Antoine, vis-
AGOSTINHO (santo), 27, 94, 107, 108, conde de, 201, 202.
109, 111, 114, 115, 118. BOOTH, Charles, 180.
AKRICH, Madeleine, 392. BOSSUET, Jacques-Bénigne, 101, 194,
ANGENOT, Marc, 388, 418. 195, 196, 197, 198, 199, 200, 212,
ANSART, Pierre, 170, 226, 493, 516. 214, 216, 244.
ARISTÓTELES, 134, 165, 168, 171, BOUDON, Raymond, 522.
BOURDIEU, Pierre, 11, 87, 206, 389.
177, 262, 263, 374, 375, 376, 511.
BOURRICAUD, François, 522.
ARNAULD D’ANDILLY, Antoine, 367.
BROWN, Peter, 187, 188.
ARON, Raymond, 242.
AUBENQUE, Pierre, 262, 360. C
AUERBACH, Erich, 193. CABANIS, Pierre-Jean-Georges, 150,
AUGÉ, Marc, 525. 151, 227.
B CAIRNES, John Elliott, 397.
CALLON, Michel, 108, 404.
BAKER, Keith Michael, 392.
CAM, Pierre, 374.
BASTID, Paul, 233, 255.
CAMUSAT, Pierre, 268.
BAVEREZ, Nicolas, 471.
CARREL, Alexis, 105.
BÉNICHOU, Paul, 209.
CASTIGLIONE, Baldassare, 261, 516.
BENJAMIN, Walter, 379. CERTEAU, Michel de, 389.
BERMAN, Marshall, 223, 225. CFDT, 270, 385.
BESNARD, Philippe, 423, 523. CHAMBOREDON, Jean-Claude, 423.
BLOCH, Maurice, 202. CHANDLER, Alfred Dupont, 479.
BODIN, Jean, 171, 511, 512. CHARLETY, Sébastien, 402.
BÖHM-BAWERK, Eugen von, 257. CHATEAURAYNAUD, Francis, 110,
BOISARD, Pierre, 110, 457. 390, 404, 407.

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560 A justificação

CHIAVARO, Francesco, 190, 513. F


CÍCERO, Marco Tulio, 136, 164, 165, FACCARELLO, Gilbert, 141.
166, 171, 262. FARGE, Arlette, 201.
CLAUSEWITZ, Carl von, 239, 240. FASSÒ, Guido, 167.
CLAVERIE, Élisabeth, 110, 193, 387. FAUCCI, Dario, 167, 168.
COASE, Ronald H., 479. FAVEREAU, Olivier, 110, 334, 407, 454,
CONDORCET, Marie Jean Antoine 480.
Nicolas de Caritat, marquês de, 227, FAVRET-SAADA, Jeanne, 206, 525.
391. FLEISCHMANN, Eugène, 490.
CORCUFF, Philippe, 110, 447, 476. FOUCAULT, Michel, 121, 189, 201.
CROCE, Philippe, 167, 168. FURET, François, 109, 194, 221, 222,
389, 428, 436.
D
DARRÉ, Jean-Pierre, 376. G
DELAMOURD, Vinoli, 110, 376. GALTON, Francis, 168, 179, 180, 512.
DELEULE, Didier, 138. GEERTZ, Clifford, 396.
DELEUZE, Gilles, 525, 526. GINSBURG, Carlo, 17, 168.
DEMORY, Bernard, 268. GIRARD, René, 398.
DERATHÉ, Robert, 109, 448, 451. GODARD, Olivier, 376.
DEROUET, Jean-Louis, 36, 375, 378. GOLSDSCHMIDT, Victor, 128.
DESCARTES, René, 164, 166. GOUHIER, Henri, 227.
DESROSIÈRES, Alain, 88, 92, 109, 377, GRACIÁN, Baltasar, 516.
512. GRASSI, Ernesto, 168.
DI BELLA, Maria Pia, 207. GUY, Jean-Claude, 191.
DODIER, Nicolas, 110, 376, 377, 471, H
476. HABERMAS, Jürgen, 113.
DOERINGER, Peter B., 397, 454. HACKING, Ian, 377.
DOMAT, Jean, 139, 141. HALBWACHS, Maurice, 115, 401, 402.
DUBY, Georges, 199, 254. HAYEK, Friedrich A. von, 41, 328, 329.
DUMONT, Louis, 109, 163, 219. HIRSCHMAN, Albert O., 108, 141,
DUPUY, Jean-Pierre, 511. 142, 209, 216, 515, 522.
DURKHEIM, Émile, 116, 118, 119, 150, HOBBES, Thomas, 101, 108, 170, 195,
155, 226, 228, 238, 420, 421, 422, 203, 204, 205, 206, 207, 208, 209,
423, 424, 425, 426, 427, 469, 492, 213, 217, 301, 378, 419, 433, 514.
519, 520, 521, 522, 523, 524. HUME, David, 138, 143, 144, 145, 146,
147, 151, 152, 326.
E
HUTCHESON, Francis, 137, 150, 151.
ELIAS, Norbert, 213, 371.
EWALD, François, 470. J
EYMARD-DUVERNAY, François, 93, JAMOUS, Raymond, 206.
95, 109, 322, 397, 407, 454, 467, JAUME, Lucien, 204.
479. JULIA, Dominique, 389

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Índice onomástico 561

K MEAD, George Herbert, 155, 156, 157.


KANTOROWICZ, Ernst, 192, 201. MESNARD, Pierre, 512.
KAPLAN, Steven L., 110, 199, 397, MISES, Ludwig von, 395, 401, 441.
419. MONTESQUIEU, Charles-Louis de
KAUDER, Emil, 137. Secondat, barão de, 141, 142, 215,
KEOHANE, Nannerl, 195. 515, 522.
KERR, Clark, 397. MORIN, Edgard, 379, 433, 434.
KEYNES, John Maynard, 316, 454, 468. MOSCOVICI, Serge, 110.
MOUSNIER, Roland, 192.
KOSELLECK, Reinhart, 207, 209.
KRAMARZ, Francis, 110, 458. N
L NELSON, Richard R., 457.
NICOLE, Pierre, 139, 140, 141, 166,
LA BRUYÈRE, Jean de, 193, 196, 197,
209, 210.
212, 213, 419, 519.
NIETZSCHE, Friedrich, 318, 351, 490,
LACAN, Jacques, 379.
491, 525, 526.
LACROIX, Bernard, 522.
NISBET, Robert A., 423, 493.
LAFAYE, Claudette, 110, 447, 477.
LAGARDE, Georges de, 209. O
LAMAISON, P., 193. OLSON, Mancur, 522.
LANGLOIS, Charles Victor, 115. ORLÉAN, André, 398.
LATOUR, Bruno, 108, 258, 464. OZOUF, Jacques, 389.
LAW, John, 108, 404.
P
LE BON, Gustave, 434.
PALÁDIO DE GALÁCIA (bispo), 215.
LETABLIER, Marie-Thérèse, 110, 457.
PAPPAS, John N., 428.
LÉVY-BRUHL, Henri, 123.
PARROT, Jean-Philippe, 354.
LEWIS, Andrew W., 195, 196.
PASCAL, Blaise, 139, 209, 210, 211,
LIDA DE MALKIEL, Maria Rosa, 209.
213, 369, 419, 519.
LUKES, Steven, 424. PEARSON, Karl, 180.
LÜTDKE, Alfred, 340. PHARO, Patrick, 456.
M PIERROT, Maurice, 273.
MACKENZIE, Donald A., 180. PIORE, Michael, 397, 454.
MACPHERSON, Crawford Borough, PIZZORNO, Alessandro, 114.
204. PLATÃO, 136, 164, 165, 171, 262.
MANDEVILLE, Bernard, 137. POLANYÏ, Michael, 169, 457.
POLLAK, Michael, 446.
MARIN, Louis, 196, 519.
PROST, Antoine, 446.
MARROU, Henri Irénée, 513.
PUFENDORF, Samuel, 135, 137, 145,
MARX, Karl, 168, 226, 494, 516.
146, 512.
MAUSS, Marcel, 374, 395.
MCCORMACK, Mark H., 256, 271, R
272. RAPHAËL, D. D., 136, 151, 153.

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562 A justificação

RAWLS, John, 102, 181. 152, 153, 154, 162, 169, 178, 261,
REVEL, Jacques, 110, 389, 516. 323, 326, 394, 452, 492, 511.
REYNAUD, Bénédicte, 471. SÓCRATES, 164.
REYNOLDS, Lloyd George, 397. STARK, David, 110.
RICŒUR, Paul, 109, 129, 163. STAROBINSKI, Jean, 418.
RILEY, Patrick, 217, 515. STEUART, James D., 141, 142, 143.
ROBERTSON, H. M., 137. STRAUSS, Leo, 526.
ROOVER, Raymond de, 141. SULLOWAY, Frank J., 493.
ROSANVALLON, Pierre, 428, 436.
T
ROSCH, Eleanor, 243.
TAYLOR, William L., 137.
ROUSSEAU, Jean-Jacques, 101, 153,
THÉVENOT, Laurent, 9, 10, 11, 12, 15,
154, 190, 195, 209, 212, 215, 216,
88, 89, 90, 92, 93, 95, 96, 105, 109,
217, 218, 219, 220, 221, 223, 224,
154, 179, 183, 449, 457, 480, 497,
225, 227, 230, 232, 255, 340, 390,
498, 501, 508, 512.
396, 414, 418, 423, 424, 425, 426,
TOCQUEVILLE, Alexis de, 194, 245.
483, 492, 515, 516, 517, 521, 522,
TOMÁS DE AQUINO (são), 249, 263,
523.
316.
S TURGOT, Anne Robert Jacques, 139,
SABEL, Charles, 340. 227, 392, 419.
SACCO, Nicola e VANZETTI, Bartolo- TURNER, Victor, 243.
meo, 367.
V
SAHLINS, Marshall, 180.
VEBLEN, Thorstein, 154, 155.
SAINT-SIMON, Claude-Henri de, 101,
VICO, Giambattista, 141, 142, 166,
137, 150, 226, 227, 228, 230, 231,
167, 168, 513, 514.
232, 233, 401, 421, 422, 423, 424,
471, 516, 521. W
SALAIS, Robert, 471. WALZER, Michael, 02, 201, 214, 215,
SARTRE, Jean-Paul, 240. 223.
SCHNEIDER, Christian, 269. WEBER, Max, 126, 190, 242, 490, 493,
SCHUMPETER, Joseph A., 145, 168. 494, 526.

SEIGNOBOS, Charles, 115. WEISS, John Hubbel, 402.
SÊNECA, Lúcio Aneu, 145, 326. WILLIAMSON, Oliver, 454, 479.
SEWELL, William H., 428. WINTER, S. G., 457.
SIEYÈS, Emmanuel Joseph, 232, 233, WISSLER, André, 110, 268, 375, 377,
428. 411.
SILVER, Alain, 326.
SKINNER, Quentin, 171, 209.
SMITH, Adam, 101, 116, 133, 134, 135,
136, 137, 138, 139, 141, 143, 144,
145, 146, 147, 148, 149, 150, 151,

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Outros livros da coleção:

1. Pessoas desaparecidas: uma etnografia para muitas ausências.

2. Acertar as contas: como melhorar a pesquisa e a teoria social.

3. Do ritual ao teatro: a seriedade humana de brincar.

4. Ciladas no caminho do conhecimento sociológico.

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Este livro foi impresso pela Gráfica Triunfal para a Editora UFRJ em fevereiro de 2020.
Utilizaram-se as tipografias Metrópolis e Sabon na composição,
papel offset 90g/m2 para o miolo e cartão supremo 250g/m2 para a capa.

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