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A j u s t i f i cação
Sobre as economias da grandeza
tradução
Alexandre Werneck
Revisão
Paula Halfeld
Patrícia Vieira
www.editora.ufrj.br www.facebook.com/editora.ufrj
Apoio:
Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d’Aide à la Publication année X Carlos Drummond
de Andrade de l’Institut Français du Brésil, bénéficie du soutien du Ministère de l'Europe et des
Affaires étrangères.
Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação ano X Carlos Drummond de
Andrade do Instituto Francês do Brasil, contou com o apoio do Ministério francês da Europa e das
Relações Exteriores.
Sobre a tradução 9
Apresentação 17
Prefácio à edição brasileira 29
Prefácio 85
Outra opção digna de nota diz respeito ao subtítulo original e seus usos
conceituais ao longo do livro: este é um quadro de “economias” – por paren-
tesco com o trabalho anterior de Laurent Thévenot com as chamadas “eco-
nomias da coordenação”, na continuidade de um empreendimento que ele,
economista de origem, mantinha como um dos grandes nomes da chamada
“economia das convenções”. Assim, trata-se da descrição de diferentes formas
de gerir, em sentido amplo, a relação entre custo e retorno de investimento
***
Alexandre Werneck
Professor do Departamento de Sociologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
A j u s t i f i cação :
o r e s p l a n d e c i m e n to d e u m n ovo g e s to
p r ag m át i c o na s o c i o l o g i a f r a n c e s a
[...] eu me deparei pela primeira vez com essa obra [considerando-a] do ponto
de vista da pluralidade de fontes de justiça em paralelo com a leitura da obra de
Michael Walzer, Sphères of justice. É para eles que gostaria de trazer os problemas
ligados à pluralidade de mediações estruturais em relação à estima pública.
O que eu denomino reconhecimento, nossos autores chamam justificação. A jus-
tificação é a estratégia pela qual os competidores fazem com que se tornem
verossimilhantes seus lugares respectivos, nisso que os autores definem como as
economias da grandeza. [...] É preciso especificar a forma de justiça não como
* DaMatta, Roberto. Você sabe com quem está falando?. In: Carnavais, malandros e heróis.
Rio de Janeiro: Rocco, 1979.
** Ver, por exemplo, os artigos seminais de Laurent Thévenot, “Les investissements de forme”
(In: Thévenot, Laurent (org.) Conventions économiques. Paris: Presses Universitaires de
France (Cahiers de Centre d’Etude de l’Emploi, 1986, p. 21-71) e “Une vie éprouvée.
Entre migration postcoloniale, discrimination à l’embauche, maternité affectée et adop-
tion salvatrice: quelle ‘identité forgée’?” (In: Vrancken, Didier (org.). Penser l’incertain.
Québec: Presses de l’Université de Laval, 2014).
* Mota, Fabio Reis. Cidadãos em toda parte ou cidadãos à parte. Demandas de direitos
e reconhecimento no Brasil e na França. Rio de Janeiro: Consequência, 2014.
** Geertz, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópo-
lis: Vozes, 1997. Em especial o capítulo “Do ponto de vista do nativo: a natureza do
entendimento antropológico”.
*** Boltanski, Luc; Thévenot, Laurent. Sociologia da capacidade crítica. Antropolítica, Ni-
terói, n. 23, 2007.
* Uma das referências importantes do pragmatismo francês, Isaac Joseph chama atenção
para o caráter transitório e dinâmico da vida social ao considerar que o social é uma
entidade en train de se faire. Ver, por exemplo, Joseph, Isaac. L’athlète moral et l’en-
quêteur modeste. Paris: Economica, 2007.
** Ver, por exemplo, as apropriações originais dessa abordagem em trabalhos de cientistas
sociais no Brasil, tais como: Alexandre Werneck, A desculpa: as circunstâncias e a moral
das relações sociais (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012); Gabriel Feltran, Fronteiras
de tensão (São Paulo: Editora Unesp; CEM, 2011); Letícia de Luna Freire, Próximo do
saber, longe do progresso: histórias de uma vila residencial no campus universitário da
Ilha do Fundão (Niterói: Eduff, 2014); Jussara Freire, Mobilizações coletivas e problemas
púbicos em Nova Iguaçu (Rio de Janeiro: Garamond, 2016); Soraya Simões, Histoire
et ethnographie d’une cité à Rio: la Cruzada São Sebastião do Leblon (Paris: Karthala,
2010); Daniel Cefai, Fabio Reis Mota, Felipe Berocan Veiga e Marco A. da Silva Mello,
Arenas públicas: por uma etnografia da vida associativa (Eduff, 2011); Fabio Reis Mota,
Cidadãos em toda parte ou cidadãos à parte. Demandas de direitos e reconhecimento
no Brasil e na França (Rio de Janeiro: Consequência, 2014); dentre outros trabalhos
que foram desenvolvidos nas ciências sociais brasileiras na última década.
*** Boltanski, Luc. Préface. In: Nachi, Mohamed. Introduction à lá sociologie pragmatique.
Paris: Armand Colin, 2006.
C r í t i ca s e j u s t i f i caç õ e s d e A j u s t i f i cação
1. O pa p e l da m o d e l i z ação na s o c i o l o g i a d o j u l g a m e n to
Para que este projeto seja bem entendido, precisamos dizer algumas
palavras sobre a concepção de sociologia que adotamos. Deixamos de lado a
premissa de tomar como dado que os seres humanos sejam, de algum modo,
por determinação, seres sociais, o que muitas vezes leva a se considerar que
“tudo é social”. Esse pressuposto tem o defeito de privar a sociologia de um
objeto específico, apresentando como algo definido, ou pelo menos colocado
entre parênteses, aquilo que seria exatamente a questão com a qual a discipli-
na deve lidar. Em vez disso, partimos da dificuldade dos seres humanos para
produzirem o comum e mesmo da permanente ameaça de incompatibilidade
com a qual eles são confrontados, o que conduz a disputas, quiçá a confron-
tos violentos. De fato, as comunidades, nesse sentido, geralmente designadas
como “sociedades”, são associações que pretendem estabelecer uma relativa
condição de segurança e de paz, para além daquelas proporcionadas pelo
parentesco quando este, com base na biologia, dá origem a uma ordem ba-
seada na filiação e na aliança. Essas associações comunitárias estabelecem e
instituem um terceiro, ao qual é entregue o poder propriamente político de orde-
nar e, tanto quanto possível, de pacificar as relações de intercâmbio e rivalidade
entre parentelas. Essas comunidades, que oferecem a vantagem de proporcionar
segurança, devem, não obstante, fazer face à incerteza e até mesmo à ameaça
devida ao fato de serem compostas de seres dotados de uma interioridade cujas
peculiaridades sempre permanecem parcialmente desconhecidas e estranhas. Es-
ses seres devem, portanto, colocar em prática formas comuns, assegurando uma
relativa coordenação, da qual a lei oferece as versões concretas mais elaboradas
(Thévenot, 1984). Essas formas comuns fornecem recursos para evitar que a
* Traduzi “sens” ora como “senso” (de justiça) ora como “sentido” (da justiça ou do termo
justiça) conforme o conteúdo específico de cada trecho. Como se vê ao longo de todo o
livro, “sens de la justice” assume ora o significado de uma racionalização comum e de
uma faculdade cognitiva dos atores, ora de um elemento semiótico. Assim, fui levado
ao sabor de cada problematização pontual. (N. do T.)
disputa seja resolvida pela força (Boltanski et al., 1984). Os integrantes adminis-
tram a possibilidade de uma validação e de uma hierarquização de demandas
incompatíveis por meio da implementação de quadros mais formais. Estes
últimos, longe de serem imagens específicas das situações das quais emergem
(como sugerido pela etnometodologia), contam com uma validade que deve
se estender e ser conservada ao longo do tempo, assim como a comunidade
que eles contribuem para manter. O recurso a esses quadros e a essas formas
comuns torna possível se passar das exigências da situação para as formas
convencionais de se fazerem valer pretensões. E essas formas constituem um
dos principais objetos tratados em A justificação. Nós as identificamos ini-
cialmente a partir de observações empíricas de disputas comuns e depois as
modelizamos, tirando proveito de um corpus de obras da filosofia política.
Com efeito, diferentemente da sociologia, orientada para a descrição, assim
como a linguística, a filosofia política, da mesma forma como a economia e
outras ciências de sustentação da engenharia, põem-se a conceber essas for-
mas convencionais, algumas das quais consagradas na lei e nas instituições.
Nossa hipótese era que os membros de nossas sociedades, diante das
tensões e disputas da vida cotidiana, colocam em prática um senso de jus-
tiça que, sendo mantido pela mobilização dessas formas, permite uma certa
convergência entre as interpretações. E uma vez que a justiça implica uma
comparação e que esta não nos é necessariamente favorável, pode-se pensar
que todo senso de justiça inclui o pressuposto de que os outros contam com
igual acesso a ela, de modo a ser possível se entender com eles a respeito
da definição de um bem comum a propósito do qual as posições divergentes
se confrontam. É necessário que, ao final do processo de comprovação que
estabelece um julgamento a respeito de um ordenamento, aqueles que se
encontrem em desvantagem não questionem o sentido de justiça resultante.
Isso não impede que, em uma situação concreta, essas comprovações sejam
recolocadas em questão, mas desta vez invocando-se que seu agenciamento
e sua implementação tenham sido incorretos. Na verdade, o senso de justiça
que modelizamos é uma norma que se revela particularmente em situações
nas quais alguns integrantes considerem que ela os traiu em favor de uma
forma de dominação.
2. A m o d e l i z ação c o m o i n s t ru m e n to pa r a r e v e l a r
t e n s õ e s a n t ro p o l ó g i ca s
Uma vez que os estados não podem ser atrelados de uma vez por todas
às pessoas, como conciliar a previsibilidade ligada aos estados de grandeza
e a recolocação do processo de comprovação (Boltanski, 2012[1990])? Esse
problema lança luz sobre outra tensão do modelo, relacionada ao fato de
as pessoas deverem contar com uma identidade pessoal compatível com as
sucessivas mudanças de qualificação. Ora, nosso modelo, ao se deter no
julgamento, não comporta uma teoria da identidade pessoal, o que supõe
conceituar modos de continuidade temporal constitutivos das pessoas em
engajamento (Thévenot, 2006, 2013, 2016a).
O resultado da comprovação, quando estabilizado de forma duradoura
e mesmo quando, não sendo mais atualizado, estiver memorizado, tende não
apenas a identificar o estado de grandeza de um ser, mas a lhe conferir o que
* O sentido de governo usado aqui e em geral no texto se aproxima daquele adotado por
Foucault, ou seja, é pensado não como instituição, e sim como prática, a de ordenar e
controlar condutas. Nos outros usos, no entanto, são bastante claras as mobilizações
do termo em seu sentido institucional, motivo pelo qual usei a palavra indistintamente.
(N. do T.)
3. A j u s t i f i cação c o m o m at r i z d e qu e s t i o na m e n to s
lt e r i o r e s
u
divergências, todos em uma geometria tão mais flexível quanto esses espaços
comuns sejam de escalas muito diferentes.
O programa França-Rússia e outras pesquisas internacionais posteriores
seguindo seus passos (Clement, 2015b; Gabowitsch, 2016; Luhtakallio; Thévenot,
2018; Pattaroni, 2015; Thévenot; Rousselet; Daucé, 2017; Thévenot, 2019b;
Zhuravlev; Savelyeva; Erpyleva, 2019) permitiram uma considerável acumu-
lação de resultados relativos a mudanças nos modos contemporâneos de ação
política e protesto. Com base em preocupações – e, muitas vezes, ocupações –
ligadas a lugares, esses modos de ação correntemente são expressados em
termos apolíticos, e até mesmo de oposição à política. No caso bem conhecido
da praça Maïdan, em Kiev, na Ucrânia, mas também em outros (Clement,
2015a), a ocupação reuniu em um só lugar pessoas investidas ao mesmo tem-
po em uma multiplicidade de espaços comuns diversos dos quais cuidavam e
que eles pretendiam colocar em comunicação (colocar em comum) por meio de
sua presença, suas conversas e suas experiências em conjunto. A gramática dos
espaços comuns que governa essas comunicações mostra-se mais acolhedora
às vinculações pessoais do que a gramática constitutiva de espaços públicos
destacados. No entanto, diante de uma etapa de extensão da ação, coloca-
se a questão da passagem de uma gramática a outra, especialmente quando
entra em jogo a representação eletiva para se tomarem decisões políticas.
Ora, a prevalência de uma composição do comum a partir de espaços co-
muns plurais acarreta o risco de se facilitar a redução desse pluralismo pelo
abarcamento, em um único, de todos esses lugares – à maneira das bonecas
russas –, unificados por uma ideologia e por líderes nacionalistas (Thévenot,
2017a, 2019b). Uma evidência desse perigo é a onda de movimentos e líderes
chamados populistas que mudaram a política em escala global e pegaram de
surpresa as ciências políticas e sociais sem ferramentas analíticas adequadas.
Experiências históricas mostram que uma esquerda popular forte foi capaz de
bloquear essa ameaça por meio de dispositivos combinando espaços comuns
e qualificação cívica.
que supõe a noção de “prática social”. Por sua vez, o regime de engajamento
exploratório, identificado por Nicolas Auray (2011), produz um bem humano,
a excitação da descoberta pessoal, a partir de uma curiosa disposição com-
partilhada com outros seres vivos. A temporalidade é totalmente diferente:
ela não se volta mais para um passado, mas para o curto prazo de um pre-
sente. O ambiente apropriado é, nesse caso, preparado para criar surpresa
e novidade. Já o engajamento em um plano, voltado para o futuro, traz ao
modelo o benefício da capacidade de um indivíduo de projetar-se em um
porvir – o que é suposto frequentemente pela noção de vontade – e depende
de um ambiente preparado para ser capturado funcionalmente. Engajar-se em
um plano não é demonstrar a racionalidade otimizadora do economista –
que requer equivalência convencional – nem a racionalidade instrumental do
sociólogo. É um modo de se conformar como sujeito individual capaz, na
gênese de tal racionalidade, de projetar para si um futuro e a ele se dispor.
Esse engajamento, muitas vezes pressuposto na concepção do individualismo,
ajuda a compreender as exigências da gramática liberal de interesses, porque
as opções entre as quais as escolhas dos indivíduos são exercidas adquirem
o formato de planos, nos quais eles se projetam, com a condição adicional
de que a identidade desses planos é de conhecimento comum e que nesse
sentido eles são públicos. E a gramática das afinidades pessoais com os es-
paços comuns não implica uma projeção do indivíduo em um plano como
esse, mas, por outro lado, requer um investimento íntimo pessoal do espaço
comum frequentemente devido a um compromisso familiar.
Como se pode ver já no caso da promessa, cada regime de engajamento
está cindido entre duas posturas cuja categorização é a própria expressão
da tensão. A primeira delas é a busca por garantia, que imobiliza o engaja-
mento em sua face acordada, a do marco que lhe serve de fiador e que, por
meio de sua configuração, possibilita se repousar na confiança e se fechar
os olhos para o restante. Essa garantia representa a letra da promessa ou
da convenção, ou a forma rotineira de colocar suas marcas pessoais em um
ambiente familiar. A segunda postura é a dúvida suscitada pelo próprio mo-
vimento de engajamento, que abre os olhos para os sacrifícios exigidos pela
forma de garantia (Thévenot, 2006, 2013). Veremos que a diferenciação dos
engajamentos e a distinção entre suas duas faces possibilitam analisar uma
das importantes metamorfoses sofridas pelo capitalismo, aquela devida ao
governo pelos padrões.
A pesquisa centrou-se nas maneiras pelas quais os objetos mercantis são va-
lorados/avaliados/valorizados,* de modo a justificar seu preço, ou nas críticas
originadas pela oferta de uma mercadoria a um determinado custo. Com
base em uma análise do que chamamos estruturas da mercadoria, o estudo
das recentes transformações do capitalismo de mercado permitiu lançar luz
sobre o desenvolvimento de um novo tipo de riqueza baseado na exploração
do passado.
Em Enrichissement: une critique de la marchandise [Enriquecimento:
uma crítica da mercadoria] (Boltanski; Esquerre, 2017), desenvolvemos a
ideia de que, nas últimas décadas, assistimos à geração de uma nova maneira
de produzir riqueza que, na Europa Ocidental, não se fundamenta na indús-
tria, largamente deslocalizada, e sim no comércio e na crescente exploração
de recursos que, embora não sejam absolutamente novos, adquiriram uma
importância sem precedentes. Esse processo, muito marcante na Europa e
particularmente na França, tem tendido a se manifestar em outras regiões
do mundo, particularmente em bairros centrais de cidades renomadas como
Nova York, Rio de Janeiro, Quioto, etc.
A amplitude dessa mudança no capitalismo só se revela na condição
de se aproximarem domínios geralmente analisados de forma dispersa, quais
sejam, particularmente a patrimonialização, as artes – especialmente as artes
plásticas –, a cultura, o comércio de antiguidades, a criação e fundação de
museus, a indústria do luxo – seja na moda ou na alta gastronomia – e
o turismo de alto nível. As constantes inter--relações entre esses diferentes
campos possibilitam entender como eles geram lucro: eles têm em comum
tirarem partido não da produção de novos objetos, atividade que continua a
desempenhar um papel importante ao ser deslocalizada nos países e mantida
a baixos salários, e sim do enriquecimento das coisas que já estão lá. Chama-
mos de economia de enriquecimento essa forma econômica cuja substância é
derivada da exploração do passado. Nessa economia, os objetos do passado
são enriquecidos, notadamente ao serem associados a narrativas que destacam
seu caráter tradicional e, na maioria das vezes, suas raízes nacionais. E uma
das especificidades dessa economia é também tirar proveito do comércio de
coisas destinadas, prioritariamente, aos ricos do mundo inteiro.
O desenvolvimento dessa nova fonte de riqueza contribuiu para transfor-
mar profundamente os contornos da formação social em que estamos imersos
e sua estratificação. A economia do enriquecimento contribuiu enormemente
para fortalecer as classes e os grupos detentores da riqueza, em comparação
com aqueles que obtêm a maior parte de seus recursos do trabalho assalaria-
do. Com o declínio da produção industrial, essa nova ordem relegou muitos
membros das classes trabalhadoras ao status de prestadores de serviço. E foi,
finalmente, associada a uma ampliação significativa no número de trabalha-
dores da cultura que, desmunidos de organizações e instrumentos críticos,
contam atualmente com poucos meios para resistir à precarização que se
tornou mais frequentemente seu destino.
Nesse trabalho, propusemos ainda uma matriz para compreender como
essa economia se encaixa em uma trama composta, na qual circulam igual-
mente outros tipos de mercadorias. Essa matriz é baseada na análise daquilo
que chamamos de estruturas da mercadoria. Essas estruturas compreendem
uma variedade de formas de valoração/avaliação cuja composição é articu-
lada à maneira de um grupo de transformação, no sentido em que Claude
Lévi-Strauss (1962) utilizou essa noção. Juntamente com a forma-padrão,
dominante no contexto do capitalismo industrial, identificamos três outras
formas: a forma-coleção, na qual a economia do enriquecimento é largamente
baseada; a forma-tendência, que torna possível valorar/valorizar coisas de
rápida obsolescência, por exemplo, aquelas submetidas à moda, como as ves-
timentas; e, finalmente, a forma-ativo, que valora objetos, incluindo obras de
arte, exclusivamente na perspectiva de sua revenda com esperança de lucro,
tratando-as como se fossem ativos financeiros, cuja troca é principalmente
especulativa.
A França contemporânea constitui um campo privilegiado para estudar
essas novas formas de criação de riqueza, um pouco como foi o caso, se nos
permitirmos a comparação, da Grã-Bretanha para a economia industrial na
primeira metade do século XIX. A França, na qual essas diferentes formas
de avaliação/valorização estão ativadas, é um bom exemplo do que pode
ser chamado de um capitalismo integral, no sentido de que ele tira proveito
da ampliação do processo de mercantilização, impulsionado pela exigência de
lucro, a campos sempre novos.
* Termo que se refere, no islamismo, aos comportamentos autorizados pelo Corão, halal
(do árabe, permitido) passou a designar, ao longo dos anos 1990 na Europa, um con-
junto de normatizações de mercado, especialmente para alimentação, gerando inclusive
um sistema de certificação. (N. do T.)
4. C o n t e x to da e s c r i ta : a r e to m a da da d e m o c r ac i a
c o m o qu e s tão
essas palavras a mais a fim de se fazer entender o que eles disseram ou, para
ser mais preciso, aquilo que quiseram dizer, agora a novos leitores ou, no caso
de traduções, a leitores distantes, com experiências distintas e que enfrentam
problemas diferentes dos seus. O sentido de uma obra, como o de qualquer
enunciado, também depende de uma situação de enunciação, que não está
necessariamente referenciada no momento de se enunciar e que, no entanto,
contribui amplamente para orientá-lo. No caso de um trabalho sociológico,
essa situação de enunciação se encontra na interseção entre duas atmosferas.
Por um lado, aquela que se espalha pelo campo intelectual ou disciplinar e
que confere a preeminência, na compreensão da vida social, a certas abor-
dagens teóricas sobre outras, referidas então ao passado. Por outro lado, há
aquela atmosfera emanada da questão política e que, fundamentando-se na
rejeição de formas de governo das quais a crítica revelou inconsistências ou
falhas, procura redesenhar um horizonte do bem comum.
Uma maneira de tentar conferir sentido à noção de época sem recorrer
a uma pesada maquinaria historiográfica é a ela associar eventos históricos
que, em uma esfera pelo menos, tenham conduzido a uma reconfiguração de
relações e expectativas. De fato, o efeito de um evento histórico é justamente
coordenar várias expectativas.
poder, floresce durante esse período. Nesse sentido, e somente nesse sentido,
pode-se dizer que a expansão do mercado e do marketing, na França dos
anos 1980 e 1990, prolonga as experiências do Maio de 68.
Os eventos daquele ano, então, têm um caráter global, mas assumem
um significado diferente conforme a escala em que são analisados. Na larga
escala dos países chamados “desenvolvidos”, e que foram divididos e dila-
cerados pela Guerra Fria entre o poder soviético e o poder americano, uma
interpretação permite aproximar revoltas surgidas sob condições muito dis-
tintas e de objetivos declarados igualmente diferentes, reconhecendo neles as
revoltas contra a própria Guerra Fria. Mas essas revoltas são baseadas em
reivindicações diferentes no Oriente e no Ocidente. No Leste, as democracias
ocidentais servem de modelo. Para o Oeste, a rejeição do stalinismo que gras-
sava os países orientais não permite uma opção simétrica. Essa rejeição desvia
a energia de protesto no sentido de uma fidelidade a uma revolução cuja
vantagem é ser muito pouco conhecida, de modo que pode desempenhar um
papel imaginário ou utópico, representando o ideal revolucionário popular: a
Revolução Cultural Chinesa. Credita-se a ela, certamente de forma errônea,
ter simultaneamente impulsionado a ambição comunista aos seus limites, ao
contar com um caráter hiperdemocrático, isto é, anarquista, e, ainda mais
erroneamente, ter promovido atitudes não violentas ante a violência do Esta-
do. Ao mesmo tempo, em um país como a França, de todo modo dois ideais
se encontram reconciliados: de um lado, o comunista e, de outro, o de uma
democracia efetiva concebida como verdadeiramente “popular”. É, portanto,
muito paradoxalmente, por intermédio de uma adesão amplamente no plano
do imaginário à Revolução Cultural Chinesa que se pode expressar o ideal
democrático da juventude intelectual, que em grande medida caracteriza o
Maio de 68 na França.
Note-se que o epíteto “maoísta”, e de forma mais geral o de esquer-
dista, cobriu orientações políticas que, marcadas pelo marxismo, valorizam
particularmente a prática e o conhecimento nelas contidas, em detrimento
do acadêmico ou do escolar. No mesmo espírito, a sociologia do trabalho,
crítica dos anos 1960 e 1970, toma o conhecimento não reconhecido dos
trabalhadores e o opõe às prescrições formais – e insuficientes para agir – dos
engenheiros e integrantes dos quadros executivos. A inversão, por vezes mais
carnavalesca que revolucionária, expressada pelo slogan de 1969 “Todo pro-
fessor é aluno. Todo aluno é professor”, poderia levar em 1968 a experiências
de inversão – “de ponta cabeça” – de hierarquias no trabalho. Esse espírito
* No original, os “établis”, apelido dado aos jovens intelectuais militantes, em geral maoís-
tas, que na época ingressavam nas lignes de l’établissement, nas linhas de montagem,
nas bancadas (établis) de operação, das usinas, nas quais em geral se operavam tornos,
embora não apenas. Optei por essa tradução por conta da popularidade do termo em
português. (N. do T.)
** Trata-se da lei no 70.270, de 8 de junho de 1970, que alterou o artigo 314 do Códi-
go Penal francês. Nela, permitia-se responsabilizar todos os integrantes de um grupo
por eventuais danos a bens públicos ou privados em uma ação desse grupo – o que
significava dizer que todos os participantes de uma manifestação política poderiam ser
culpabilizados criminalmente pela destruição, por exemplo, de uma vidraça ou de um
veículo. O ponto fundamental atacado no artigo se concentrava na ideia de criação da
responsabilização coletiva, apontada nos debates na Assembleia Nacional pelos socialistas
como “aberração jurídica”. A lei seria derrubada em 1981. (N. do T.)
* A virada de austeridade consistiu em uma série de medidas adotadas por Mitterrand a
partir de março de 1983 diante da grave crise econômica pela qual passava a França
no começo da década. O pacote consistiu especialmente em um recuo na política de
incentivo ao consumo e de estatizações do começo da gestão em favor de um aperto
nos gastos públicos e uma onda de privatizações. (N. do T.)
* Onda de refugiados saindo do Vietnã após o fim da guerra, em 1975, marcada pela imagem
de embarcações superlotadas que muitas vezes sucumbiam a acidentes, provocando uma
crise humanitária, e que prosseguiu em ondas de intensidades variáveis até a década de
1990. Estima-se que 800 mil pessoas tenham deixado o país nesse movimento. (N. do T.)
** Massacre promovido em Phnom Penh em 1975 pelo ditador Pol Pot, líder do Khmer
Vermelho, contra a população rural que havia migrado para a capital do Kampuchea
Democrático, nome do Camboja sob sua ditadura. (N. do T.)
***
Como e s c r e v e m o s e s t e l i v ro
A g e n e r a l i z ação da s o b s e rvaç õ e s d e ca m p o
e a c o n s t ru ção da e qu i va l ê n c i a e s tat í s t i ca
Da a p rox i m ação ao j u l g a m e n to
que, por trás do jogo, havia uma pessoa real, o que não permitia mais que
aquilo fosse considerado apenas um jogo. Os jogadores mais qualificados
para lidar com indicadores indiretos – que poderíamos identificar como pri-
vados ou mesmo singulares – e que obtinham, regra geral, os maiores êxitos,
mostraram-se também os mais frequentemente desconfortáveis e até envergo-
nhados por terem que explicar publicamente seus métodos diante de outros
jogadores que haviam se apoiado em qualidades consideradas mais legítimas.
Mas esse mal-estar não os teria tomado se suas inferências tivessem tido lugar
no interior de uma conversa privada, em que nada os impede de submeter
os outros a uma avaliação com base nesses indicadores, por exemplo, para
se certificar de suas intenções. Em suma, é porque o dispositivo comportava
questionários estatísticos, referência a propriedades oficiais, debates públicos
que demandavam uma justificação em máxima generalidade para as aproxi-
mações realizadas, que parecia inaceitável a avaliação de uma personalidade,
algo ademais bastante comum.
O caráter problemático da contraposição de traços pessoais e categorias
de classificação, tornado visível por esse trabalho, conduziu-nos a uma análise
mais sistemática das classificações socioprofissionais (Desrosières; Thévenot,
1988). Mas a análise de como a singularidade é absorvida nas formas gerais
não se reduz às questões estatísticas nem aos problemas de classificação.
Assim, estendemos o estudo dos imperativos e constrangimentos atuantes
sobre o tratamento da singularidade com duas pesquisas aparentemente
muito distantes entre si, já que uma tratava das condições de validade de
reclamações de injustiça e a outra, das formas de ajustamento entre recursos
díspares em empresas.
A c o n s t ru ção da p rova e a t e n s ão e n t r e
o g e r a l e o pa rt i c u l a r
A t e n s ão e n t r e d i v e r s a s f o r m a s d e g e n e r a l i da d e
A at e n ção à s o p e r aç õ e s c r í t i ca s
são claramente distinguidos de outros seres, ao mesmo tempo que são apro-
ximados por uma igualdade fundamental. Essas filosofias políticas podem,
assim, ser definidas por sua orientação voltada para a construção de uma
humanidade comum. É isso que permite, antes de tudo, aproximar dife-
rentes conjuntos teóricos, mobilizando os princípios de ordem legítima por
eles delimitados: a inspiração em A Cidade de Deus, de Santo Agostinho; o
princípio doméstico na Política, de Bossuet; os sinais de glória e o crédito
da opinião no Leviatã, de Hobbes; a vontade geral no Contrato social, de
Rousseau; as riquezas segundo Adam Smith em A riqueza das nações; ou a
eficiência industrial em O sistema industrial, de Saint-Simon. Procuramos,
portanto, mostrar que mesmo uma filosofia política que deu corpo ao indi-
vidualismo, desenhando uma ordem assentada em transações mercantis, pode
estar reportada a um modelo de bem comum. Isso é mais bem percebido
na construção de Adam Smith que na ciência econômica a ela subsequente,
especialmente porque Smith explicita, em sua Teoria dos sentimentos morais,
uma antropologia própria às capacidades humanas em um mundo mercantil.
Mas o interesse nessa comparação não repousa apenas em tornar ex-
plícita uma recorrente referência a uma humanidade comum. Ele também
se encontra em demonstrar como cada uma dessas filosofias propõe um
diferente princípio de ordem que permite detalhar do que é feita a grandeza
dos grandes e, assim, fundamentar um ordenamento justificável entre pessoas.
É nesses ordenamentos que as pessoas se apoiam quando precisam justificar
suas ações ou sustentar suas críticas. Evidentemente, isso não significa que os
membros comuns de nossas sociedades tenham lido, textualmente, as obras
em que nos inspiramos para construir modelos da competência colocada em
ação nas disputas. Entretanto, as ordens formalizadas nessas filosofias polí-
ticas estão, elas também, inscritas nos dispositivos de objetos que compõem
as situações da vida cotidiana.
A bu s ca d e u m m o d e l o c o m u m
encontro de uma oposição mais geral – também vista a operar nos debates
entre direito e ciências sociais – entre a referência a regras e a referência
a práticas. A atenção às diferenças nas expressões de um senso de justiça
é mantida em nosso trabalho pelo reconhecimento de uma pluralidade de
formas de generalidade, que são, cada uma delas, formas de grandeza dispo-
níveis para justificar a ação. Esse pluralismo aproxima nossa posição daquela
desenvolvida por Michael Walzer (1983)* e, como em Esferas da justiça,
conduziu-nos a um interesse em uma teoria do justo que levasse em conta a
diversidade das formas de especificar o bem comum. Esse caminho nos leva
a travar contato com o sentimento de injustiça provocado pela confusão
entre diferentes ordens de justiça e notadamente pela disseminação de uma
justificativa mercantil para além de seus limites de pertinência.
Mas nosso esforço objetiva superar os problemas do relativismo cultural,
que implica necessariamente uma abertura para a diversidade. Para isso, é
preciso se engajar mais profundamente na análise da sensação de injustiça
que afeta os atores quando determinadas formas de justificação invadem ou
mesmo se apossam de situações nas quais elas não sejam pertinentes. Para
entender a capacidade dos atores de criticar, é preciso dotá-los também da
capacidade de passar de uma forma de justificação para outra, mas manten-
do as mesmas exigências. São essas exigências comuns a todas as ordens de
grandeza identificadas que procuramos explicitar e cuja integração em um
modelo de cité tentamos demonstrar. Esse modelo pode ser enxergado tanto
como uma teoria da justiça compatível com várias construções da filosofia
política quanto como uma capacidade cuja existência é preciso supor para
dar conta da maneira como membros de uma sociedade complexa efetivam
críticas, colocam situações em questão, disputam entre si ou convergem na
direção de um acordo. E uma das maneiras de verificar a validade desse
modelo é demonstrar que ele também diz respeito às dificuldades de se fun-
damentarem argumentos em valores ilegítimos, no sentido de que estes não
sejam compatíveis com esses princípios gerais de justificação, como pode ser
visto no caso da eugenia.
O modelo da cité vai ao encontro de certas exigências enunciadas por
John Rawls (1972) para justificar as desigualdades entre os estados de pessoas,
A r e l ação s o c i a l p o s ta à p rova p e l a s c o i s a s
Essa abordagem nos levou, assim, a nos afastarmos de alguns dos pressu-
postos mais habituais da sociologia, observados especialmente na forma como
ela trata as crenças, os valores e as representações e, de forma secundária,
A l i n h a m e s t r a d o a r g u m e n to
***
O imperativo de justificação
As ciências sociais
e a l e g i t i m i da d e d o ac o r d o
A c r í t i ca à fa lta d e r e a l i s m o da s o c i o l o g i a
O i n d i v i d ua l i s m o , u m a o u t r a m e ta f í s i ca s o c i a l
* Traduzido a partir da edição original em inglês (LSE, 1944). Nela, usam-se as expressões
“popular generalizations” e “popular theories”. Preferi traduzir “popular” dessa forma
para evitar um sentido que sugerisse popularidade, quando se trata, na verdade, do
caráter, por um lado, de senso comum e, por outro, de nível individual. (N. do T.)
A r e d u ção d e m e ta f í s i ca s p o l í t i ca s a c i ê n c i a s s o c i a i s
igualmente encerrado nas leis positivas prospectadas por sua disciplina. Esse
princípio poderia ser procurado a partir da propriedade, compartilhada pelos
atores econômicos, de serem movidos por um interesse ou por necessidades.
Veremos ser indubitavelmente mais claro depreendê-lo a partir do bem mer-
cantil, que desempenha, nas leis da economia, um papel exatamente idêntico
ao do ente coletivo de Durkheim. Os indivíduos do economista, que entram
em relação em um mercado, não são indivíduos específicos, e sim seres mo-
rais capazes de ultrapassar suas particularidades e de firmarem um entendi-
mento sobre os bens identificados comumente e pelos quais seus desejos de
apropriação concorrem e chegam a um acordo. O bem mercantil, avaliado
de forma comum por um preço, representa a urdidura mesma da metafísica
política contida na economia.
Sublinhemos uma diferença significativa na forma como a redução de
dois níveis da metafísica é realizada por cada uma das explicações menciona-
das, diferença que pode explicar a perenidade da oposição coletivo/individual
como forma de lidar com sua relação. Como indicamos, o realismo sociológi-
co passa por uma internalização da realidade coletiva que lhe confere caracte-
rísticas de um inconsciente. Na economia, a redução é concretizada por meio
de uma diferenciação entre bens e pessoas. O fato de os bens serem privados
mascara o bem comum representado pela universalidade de sua definição.
Essa universalidade é a condição de um acordo em nome da concorrência e
abre a possibilidade de as pessoas superarem suas diferenças. No entanto, o
rebatimento desse bem comum e sua transformação em lei positiva não tem
lugar sem deixar vestígios no modelo proposto para o entendimento humano
e para a psicologia das próprias pessoas. Se não são clivadas por uma tensão
entre a internalização das representações coletivas e seus motivos pessoais,
elas, contudo, trazem em si os traços do bem comum mercantil, sob a forma
do interesse, ou seja, de uma capacidade de reconhecer seus bens privados
universais para além de qualquer espécie de impulso particular.
A qu e s tão d o ac o r d o
A a p rox i m ação e a s f o r m a s d e g e n e r a l i da d e
A o r d e m d o g e r a l e d o pa rt i c u l a r
tudo funciona da melhor maneira possível, e cada ser que ele apresenta aos
visitantes se mostra como um exemplar típico de sua categoria em toda
sua generalidade. Os olhares passeiam por sobre objetos sem qualquer irre-
gularidade: nenhuma particularidade chama atenção. Tanto as palavras da
apresentação quanto o gabinete das novas máquinas refletem a série infinita
de coisas semelhantes que se reúnem sob um mesmo termo técnico. Não há
sequer operários e funcionários envolvidos em suas tarefas que não sejam
qualificados de acordo com a mesma forma de generalidade. O entendimento
dos visitantes e de seu anfitrião e guia a respeito da compreensão do que
têm diante dos olhos, isto é, sobre o funcionamento eficaz daquela unidade,
está assegurado. Se, ao final da visita, fossem a eles solicitados relatórios,
estes não necessariamente seriam todos iguais, mas sua confrontação não
resultaria em nenhuma contradição perturbadora: eles se complementariam
harmoniosamente.
Qualquer um reconhece a roupagem sacrossanta de um mundo edênico
no qual cenas como essa teriam lugar. Por exemplo, no decurso de uma longa
cerimônia que seguisse, ao pé da letra, uma etiqueta solidamente estabele-
cida. Mais esperto é aquele capaz de diferenciar entre a letra e a prática,
entre a narrativa e o que ocorreu. Contudo, nas sociedades que estudamos,
as situações naturais, nas quais tudo se encaixa, sem seres excepcionais, não
poderiam persistir a longo prazo. Mas de que maneira será abalado o agen-
ciamento harmonioso dessas coisas e pessoas em estado de generalidade? Em
termos simples, pela pane, pela ruptura. Eis então, em nosso exemplo, que a
atenção de um visitante é atraída por uma máquina parada diante da qual
se acumula uma pilha de peças em espera ou por uma estação de trabalho
vaga ou para ir para o amontoado de produtos rejeitados no fundo de uma
caixa. Intrigado, ele faz perguntas sobre esses objetos incômodos, que colo-
cam em questão o bom funcionamento daquela área da produção. Notemos
desde já a maneira como o visitante nelas se apoia para alicerçar sua dúvida.
A discordância prestes a se estabelecer não poderá ser expressada em um puro
debate de ideias, e deverá apelar para a participação das coisas concretas. E,
para apaziguar o transtorno provocado pelos questionamentos, o integrante
do quadro executivo da empresa deverá “entrar em detalhes” e os rebater
sobre a exigência de generalidade que mantinha abstrata sua apresentação
e conduzia à adesão: a máquina, explica ele, está com um defeito resultante
de certa particularidade de sua fabricação; o operário está ausente por certos
motivos pessoais; as peças estão defeituosas devido a certas impurezas na
A e x i g ê n c i a d e u m ac o r d o g e r a l
e a l e g i t i m i da d e da o r d e m
que nos parecem ser duas grandes dificuldades para a construção da legi-
timidade. A primeira diz respeito à ordem. Sugerimos anteriormente uma
descrição para a maneira como a exigência de acordo conduz à constituição
de uma ordem. A disputa requer uma ordem para se encerrar – por exem-
plo, quando duas pessoas se “medem” e se questionam sobre a importância
desigual de dois fatos colocados em comparação. Mas as desigualdades disso
resultantes não entrariam em conflito com o que poderia parecer um prin-
cípio que rege o conjunto das formas legítimas de justificação que tomamos
como objeto, ao qual daremos o nome de princípio de humanidade comum?
Será que, diante desse princípio, qualquer ordem relativa à humanidade não
poderia ser considerada uma “dominação” injustificável a serviço apenas do
“interesse pessoal” daqueles em vantagem?
Notemos que a teoria da sublimação (à qual Freud não deu forma
sistemática) é um dos mais minuciosos esforços para tratar dessa questão e
propor uma explicitação teórica da concepção de nossa sociedade a respeito
da grandeza e dos argumentos mobilizados, esparsamente, para justificar a
existência dos grandes. Essa teoria dá conta da possibilidade de haver grandes
homens (e, consequentemente, da possibilidade de uma aceitável desigualdade
de tamanhos). Nesse sentido, é uma teoria da legitimidade de uma ordem
social. Ela sugere uma economia interna ao indivíduo (a economia da libido
e do deslocamento de investimentos psicológicos), uma economia da relação
entre os indivíduos na sociedade e das desigualdades na distribuição dessa
grandeza (entre os gêneros, entre as classes, etc.) e uma economia da relação
entre culturas. Por outro lado, Freud também compreende a sublimação como
uma forma de generalização. A libido, essa energia misteriosa que unifica as
maneiras, tão diferentes na aparência, de os indivíduos se atraírem e se as-
sociarem, permite deslocamentos sobre o eixo que vai do particular ao geral.
Assim, mostrar-se sensível aos “interesses gerais da humanidade”, angustiar-se
por eles, falar em seu nome, é transformar um desejo singular associado a
uma conexão física (por um membro da família) em uma relação genérica
desencarnada que não pode ser mais objeto de uma satisfação individual e
corporal. Contudo, a construção analítica e sua aparelhagem metodológica
são atravessadas por tensões bastante vivas. Segundo uma primeira tendên-
cia, trata-se de levar a sério o processo de engrandecimento e demonstrar
seu lugar na fundamentação de uma sociedade. Mas uma outra tendência
é expressada no desvelamento crítico que, sob o discurso de um sujeito que se
exprime em nome dos “interesses gerais da humanidade”, da “ciência” ou da
A c o m p rovação d e r e a l i da d e e o j u l g a m e n to p ru d e n t e
A f u n da m e n tação d o ac o r d o na f i l o s o f i a
p o l í t i ca : o e x e m p l o da c i t é m e r ca n t i l
* Todas as citações à Teoria dos sentimentos morais foram extraídas da tradução de Lya
Luft publicada pela editora Martins Fontes. (N. do T.)
A razão pela qual as coisas raras são colocadas a um preço mais elevado que
outras é que a vaidade dos homens os faz estimar de forma suprema aquilo
que têm que não seja comum salvo a um pequeno número de pessoas, e, ao
contrário, tomar como muito vil aquilo que se vê nas mãos de todos. (Pufendorf,
1771, livro 5, § 6, v. 2, p. 3)
* No original, Smith usa o termo police, traduzido na edição brasileira como “ordem”, for-
mato que manterei nas outras ocorrências. Mantive “polícia” neste caso para aludir ao
original e para resgatar esse sentido clássico do termo mobilizado pelo autor, como o
conjunto das leis e organizações que garantem a ordem. (N. do T.)
*
Em alguns outros momentos, também chamado de opulência universal. Todas as cita-
ções a A riqueza das nações foram extraídas da tradução de Norberto de Paula Lima
publicada pela editora Nova Fronteira. (N. do T.)
Um perdigueiro procura, por mil recursos, chamar a atenção de seu dono, que
está jantando, quando quer ser alimentado por ele. O homem usa, às vezes, a
mesma arte com seus semelhantes, e quando não tem outro meio de levá-los
a agir de acordo com suas inclinações, procura, por toda servil e bajuladora
atenção, obter sua boa vontade. (Smith, 1982, p. 118)
Não há, então, quem não tenha grandes obrigações para com a ordem política;
e, para as compreender melhor, é preciso considerar que os homens, estando va-
zios da caridade pelo desregramento do pecado, permanecem, contudo, repletos
de necessidades e são dependentes uns dos outros em uma infinidade de coisas.
A cupidez tomou então o lugar da caridade para satisfazer essas necessidades,
e o faz de uma maneira que não a admiramos o suficiente; e que a caridade
comum não pode alcançar. [...] Que espécie de caridade seria construir uma casa
inteira para outrem, mobiliá-la, atapetá-la e lhe entregar a chave em sua mão?
A cupidez o faria alegremente. (Nicole, 1733, v. 2, p. 170-171)
Pode-se concluir de tudo isso que, para reformar completamente o mundo, isto
é, para banir dele todos os vícios e todas as formas graves de desordem, e para
tornar os homens felizes nesta vida mesma, seria necessário apenas, em vez de
caridade, oferecer a todos eles um amor de si esclarecido, que fosse capaz de dis-
cernir seus verdadeiros interesses, e tender para eles pelas vias que a verdadeira
razão descobrisse. [Ainda que a sociedade estivesse] completamente esvaziada de
caridade, veríamos por todos os lugares apenas a forma e o caráter da caridade.
(Nicole, 1733, v. 3, p. 176-177)
O c o n c e rto d o s i n d i v í d u o s na c o n c u p i s c ê n c i a d o s b e n s
*
Todas as citações aos Pensamentos foram extraídas da tradução de Mario Laranjeira
publicada pela editora Martins Fontes. (N. do T.)
[D]a ferocidade, da avareza, da ambição, que são os três vícios que põem à
deriva todo o gênero humano, [fazem-se] as atividades militar, mercantil e de
corte, a força, a sabedoria e a opulência das repúblicas; e desses três grandes
vícios, que destruiriam certamente a geração humana sobre a terra, deles [faz‑se]
a felicidade civil.*
* Todas as citações aos Principi di una scienza nuova foram extraídas da tradução de
Jorge Vaz de Carvalho publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian. (N. do T.)
** Todas as citações a O espírito das leis foram extraídas da tradução de Pedro Vieira
Mota publicada pela Editora Saraiva. (N. do T.)
Uma vez que o Estado comece a subsistir por meio dos produtos da indústria,
haverá menos perigo de ser capturado pelo poder do soberano. Os mecanismos
de sua administração se tornam mais complexos e [...] ele se vê tão contido pelas
leis de sua oeconomía política que qualquer transgressão a elas o lançará em
novas dificuldades. (Steuart, 1767, v. I, p. 215-217 apud Hirschman, 1982, p. 83)
[A] justiça nasce das convenções humanas; e [...] estas têm como objetivo reme-
diar alguns inconvenientes procedentes da concorrência de certas qualidades da
mente humana com a situação dos objetos externos. Tais qualidades da mente
são o egoísmo e a generosidade restrita; e a situação dos objetos externos é a
facilidade da sua troca, juntamente com sua escassez em comparação com as
necessidades e os desejos dos homens. (Hume, 1983, p. 612)
[S]e elas [as riquezas] forem afastadas de ti, [...] te parecerá que ficaste aban-
donado por ti mesmo; [...] as riquezas são minhas e tu és das riquezas. [...]
Colocai-me na casa mais opulenta, onde se usa profusamente o ouro e a prata.
Não me admirarei por causa dessas coisas. Embora estejam comigo, estão fora
de mim. (Sêneca, 1962, p. 744, 747)*
* Todas as citações a De vita beata foram extraídas da tradução de João Carlos Cabral
Mendonça publicada pela editora Martins Fontes. (N. do T.)
Pois apenas coisas do primeiro tipo podem ser colocadas a um preço tão alto
quanto desejemos. Para as outras, seja em um empréstimo ou em uma troca,
por exemplo, pretender-se-ia estimar seu grão ou seu vinho pelo maior valor,
muito embora fosse no fundo da mesma natureza e da mesma qualidade que
os do outro contratante; pecaríamos, disse o sr. Thomasius, contra a igualdade
natural dos homens, que não permite pesar o bem dos outros e o nosso próprio
em um equilíbrio desigual, nem julgar de forma diferente a eles ou àquilo que
lhes pertence sem uma justa causa. Acrescentamos que a natureza do comércio,
por meio do qual o preço é estabelecido, exige igualdade. (Pufendorf, 1771,
livro 5, cap. 1, § 8, v. 2, p. 9)
* Isto é, a coisa “cuja natureza mesma [...] é suficiente para conhecê-la distintivamen-
te”, como definiria o próprio Pufendorf (1771, livro 5, cap. 7, § 1, p. 55). (N. do T.)
que “quando vejo os efeitos da paixão na voz e nos gestos de alguém, minha
mente passa imediatamente desses efeitos a suas causas e forma uma ideia tão
viva da paixão que essa ideia logo se converte na própria paixão”. “Sempre
que um objeto tenha uma tendência a produzir prazer em quem o possui,
[...] ele seguramente agradará o espectador, por uma sutil simpatia com o
possuinte” (p. 701, 702).
Adam Smith (1860) acompanha esse pensamento e acredita que é se juntan-
do aos gostos e às paixões dos outros, e não diretamente pela ideia de utilidade
das condutas, que se forma o julgamento: “A ideia de utilidade de todas as
qualidades desse tipo é apenas uma reflexão posterior, não aquilo que primeiro
as recomenda a nossa aprovação” (p. 16). Retomando as elaborações anteriores
de Hume – “[A] utilidade de qualquer objeto agrada ao seu dono porque lhe
sugere, constantemente, o prazer ou a comodidade que é capaz de lhe propor-
cionar”, diz Smith (p. 205), aludindo ao antecessor –, ele pretende impulsionar
o argumento ainda mais adiante, observando que o prazer pode mesmo não
estar relacionado à utilidade. Ele apresenta, como ilustração desse ponto, uma
série de exemplos idênticos a críticas, a denunciarem o caráter ilusório de uma
referência às necessidades e à utilidade, colocando em questão, portanto, o que
designaremos adiante como grandeza industrial. O primeiro desses exemplos
mostra um homem mais atormentado pela ideia de organizar meticulosamente
sua casa que por se instalar à vontade:
Mas a pessoa que tem tanto zelo por essa máquina [que não se atrase mais que
um minuto a cada quinze dias] nem sempre seria mais escrupulosamente pontual
que outros homens, nem por algum outro motivo teria uma preocupação maior
de saber exatamente a hora do dia. O que a interessa não é tanto a obtenção
desse conhecimento particular, como a perfeição da máquina que serve para
alcançá-lo. (Smith, 1860, p. 206-207)
a que chamamos melhorar nossa condição [bettering our condition*]” (p. 54).
Mas muito embora essa equivalência entre grandeza e riqueza seja exposta
como ilusória, ela não constitui menos por isso a fórmula de expressão dos
outros da cité mercantil:
Todos os assuntos gerais que ocupam a ciência e o bom gosto são o que nós e
nossos companheiros consideramos como desprovidos de uma relação peculiar
com qualquer um de nós. Ambos os vemos segundo o mesmo ponto de vista, e
não temos motivo para simpatia, ou para aquela mudança imaginária de situa-
ções da qual ela brota, a fim de produzir, com respeito a eles, a mais perfeita
harmonia de sentimentos e afetos. (Smith, 1860, p. 15)
Como ficam aliviados os infelizes quando encontram uma pessoa a quem podem
comunicar a causa de sua dor! Com essa simpatia parecem livrar-se de parte de
sua aflição; e não sem razão se diz que essa pessoa partilha dela. Não apenas
sente uma dor da mesma espécie que eles sentem, mas é como se houvesse
transposto parte dela para si própria; o que ela experimenta parece aliviar o
peso do que eles sentem. (Smith, 1860, p. 9)
A simpatia moral oferece então efeitos enormemente dignos de nota. Pela mera
potência de seus sinais, as impressões podem ser comunicadas de um ser sensível,
ou considerado como tal, a outros seres que, para as partilhar, parecem, assim,
identificar-se com ele. Veem-se indivíduos se atraírem ou se repelirem: suas
ideias e seus sentimentos por vezes se comunicam por uma linguagem secreta,
tão acelerada que as próprias impressões se colocam em perfeita harmonia.
(Cabanis, 1843, p. 59)
Ainda de acordo com ele, essa simpatia moral repousa sobre as tendên-
cias orgânicas mais profundas: “Em todo sistema orgânico, a semelhança ou
a analogia das matérias os faz tender particularmente uns na direção dos
outros” (Cabanis, 1843, p. 467), como se observa no caso de cicatrizes ou
enxertos (p. 468).
A referência a um estado de “espectador” está já presente em Hutche-
son, de quem Smith diretamente recebeu ensinamentos, e em Hume, que os
influenciou enormemente. Para o primeiro, ele serve, como a mise-en-scène da
reação de “observadores”, apelando ao julgamento dos outros para justificar,
com o reforço da opinião pública, uma conduta inspirada por benevolência
[benevolence], cujas fundações Hutcheson busca estabelecer. “A virtude é
chamada amistosa ou encantadora a partir do momento em que provoca
boa vontade ou amor nos espectadores em relação ao agente” (Hutcheson,
1725/1726 apud Raphael, 1975, p. 86).*
* Citado em inglês no original: “Virtue is then called amiable or lovely, from its raising
goodwill or love in spectators toward the agent”. (N. do T.)
governa a reparação das grandes ofensas [...] pela indignação que naturalmente
provocam no espectador imparcial. [...] E assim como amar a nosso próximo do
mesmo modo que amamos a nós mesmos constitui a grande lei do cristianismo,
também é o grande preceito da natureza amarmos a nós mesmos apenas como
amamos a nosso próximo, ou, o que é o mesmo, como nosso próximo é capaz
de nos amar. (Smith, 1860, p. 21)
* Processo judicial no qual o comerciante Jean Calas, de Toulouse, foi, em 1762, preso,
torturado e executado pelo homicídio do próprio filho. Ele alegava inocência e sua história
é considerada um caso de flagrante perseguição religiosa, já que ele e a mulher eram
protestantes e a França, um país católico. Graças à defesa de Voltaire, o rei anularia a
sentença em 1764 e se reconheceria que o filho do casal se matara em virtude de uma
dívida de jogo. (N. do T.)
Mas, ainda que dessa maneira o homem se torne juiz imediato da humanidade,
isso se deve apenas a uma decisão de primeira instância; dessa sentença cabe
apelação para um tribunal superior, o tribunal de suas próprias consciências, o
tribunal do espectador supostamente imparcial e esclarecido, do homem dentro
do peito – o grande juiz e árbitro de suas condutas. (Smith, 1860, p. 147)
[É] apenas consultando esse juiz interior que poderemos ver o que nos diz
respeito em sua forma e dimensões apropriadas; ou que poderemos estabelecer
uma comparação apropriada entre nossos interesses e os de outras pessoas. No
que se refere ao olho do corpo, os objetos se apresentam grandes ou pequenos,
não tanto conforme suas reais dimensões,* mas conforme a proximidade ou
distância em que se encontram; o mesmo ocorre com o que se pode chamar
o olho natural do espírito; e remediamos os defeitos desses dois órgãos de
modo bastante parecido. [...] Posso estabelecer uma justa comparação entre os
grandes e pequenos objetos ao meu redor tão-somente me transportando, ao
menos na imaginação, a uma posição diferente, de onde posso examinar ambos
a distâncias quase iguais e assim formar algum juízo de sua real proporção.
(Smith, 1860, p. 151-152)
* Nesse ponto, Boltanski e Thévenot usam “grandeur réele” (“real grandeza”). Os grifos
do trecho são deles. (N. do T.)
Mas o que torna [o objeto da troca mercantil] algo universal é o fato de ele não
se prestar ao uso direto do indivíduo. [...] O estabelecimento, assim, do meio de
troca é algo altamente abstrato. Depende da capacidade do indivíduo de colocar
a si [himself] no lugar do outro para ver que o outro necessita daquilo de que
ele próprio não necessita e de ver que aquilo de que ele não necessita é algo
de que o outro necessita. Todo o processo depende da identificação de um self
com o do outro. (Mead, 1963, p. 255)
A sociedade humana ideal é aquela que coloca as pessoas tão próximas em suas
inter-relações, que tão profundamente desenvolve o sistema necessário a essa
comunicação, que os indivíduos que exercitam suas próprias funções peculiares
podem tomar as atitudes daqueles que afetam. (Mead, 1963, p. 275)
As cités
Ordens p o l í t i ca s e u m m o d e l o d e j u s t i ça
Filosofias p o l í t i ca s d o b e m c o m u m
* Conforme tradução de Maria Ermantina Galvão publicada pela editora Martins Fontes.
(N. do T.)
** Conforme tradução de Pinharanda Gomes publicada pela Guimarães Editores. (N. do
T.)
*** Todas as citações ao diálogo Górgias foram extraídas da tradução de Jaime Bruna
publicada pela editora Difel. (N. do T.)
homem justo (460c). Como explicar, então, que ele pudesse usar de sua arte
para fazer o mal (457c, 460d)?
Essa techné, que, para Platão, era para a justiça o que a culinária é para
a medicina, “uma outra parte da política” (465b-d),* em Aristóteles (1967)
liberta-se da tutela em que a moralidade a mantinha, conforme a formula-
ção de Médéric Dufour em sua introdução à edição francesa da Retórica:
“É preciso estar apto a persuadir os outros do contrário de sua tese”, pois,
para o autor, a retórica se aplica igualmente a teses contrárias (Aristóteles,
1355a, p. 7, 13). No entanto, a função dessa arte não é pura e simplesmente
persuadir, como na definição proposta por Platão, e sim “verificar as formas
de persuasão comportadas por cada tema” (1355b). E em outra diferença
em relação a Platão, aqui “o verdadeiro e aquilo que parece verdadeiro” são
considerados próprios da mesma faculdade e são extraídos “daquilo que cada
tema comporta de persuasivo” (1356a). É ao segundo termo, o verossímil,
que a retórica é consagrada, para permitir “as conversações e as disputas
casuais”,** objetivo estabelecido no início dos Tópicos (Aristóteles, 1984, I, 2,
101a). Aristóteles analisa “o ‘lugar’ [topikós, top(o)] a partir do qual vai con-
duzir a argumentação” (VIII, 1, 155b): “Se tivermos presentes a quantidade
e o tipo de coisas sobre que versam os debates dialéticos, de que elementos
eles são constituídos, e quando é que nos podemos considerar aptos a usar
todos os recursos, então teremos alcançado o nosso objetivo” (I, 4, 101b).
Cícero retoma profusamente a metáfora dos “lugares”, nos quais o
orador “escavará” (Cícero, 1922-1928, v. 2, § 146) e dos quais extrairá seus
argumentos, após tê-los colocado metodicamente “em reserva”, em uma
localização devidamente indicada, como um “tesouro enterrado” (§ 174).
Ele chega mesmo a mostrar os argumentos a fluírem dessas “fontes de pro-
vas”, apresentando-se “a si próprios para a questão a tratar como as letras
para a palavra a ser escrita” (§ 130):
Um objeto bem escondido, quando o lugar em que está ocultado esteja indicado
e identificado, é fácil de encontrar. Da mesma maneira, quando queremos ras-
trear argumentos, devemos conhecer os lugares onde são encontrados; é assim,
com efeito, que Aristóteles chama, por assim dizer, os locais [quasi sedes] nos
quais se buscam os argumentos. (Cícero, Tópicos, § 7)
* Vico, Giambattista. Vie et mort des nations: lecture de la science nouvelle de Giambattista
Vico, p. 49. Sobre as relações entre ingenium, ingenio, acumen e agudeza, consultar a
nota de Alain Pons (p. 131 da mesma obra).
***
não, por exemplo, um princípio válido apenas nas relações familiares. Essas
obras que fazem da comunidade doméstica o princípio mesmo do Estado se
distinguem daquelas que, como Aristóteles, tomam-na como uma parte da
cidade-Estado, uma vez que esta é “por natureza, anterior à família e captura
a cada um tomado individualmente: o todo, com efeito, é necessariamente
anterior à parte” (Aristóteles, 1962, I, 2, p. 30).*
d) Na medida em que têm como objetivo fundar uma ordem natural a
fim de instaurar situações estáveis sob os auspícios de um princípio superior
comum, os textos utilizados devem ter uma mirada prática. Eles não devem
desenhar uma utopia, uma “república como ideia”, como diz Jean Bodin,
referindo-se às formulações de Platão e Thomas More (Bodin, 1987). Trata-
-se de guias para a ação, escritos para serem utilizados por aqueles que a
conduzem.
Uma origem comum dessas obras pode ser buscada na tradição retórica,
cujas fundações brevemente revisamos. Quentin Skinner, em sua análise dos
fundamentos do pensamento político moderno, colocou em evidência o en-
contro de duas diferentes abordagens da retórica, à medida que avançou o Re-
nascimento. Ele demonstrou, por um lado, a continuidade, nas cidades-Estado
italianas dos séculos XII e XIII, entre os tratados de retórica meramente téc-
nicos, cujo objetivo era exclusivamente prático, as ars dictaminis designadas
para auxiliar na elaboração de documentos oficiais, e as obras que reuniam
recomendações para uma boa gestão dos assuntos jurídicos ou políticos, ou
ainda coleções de conselhos diretamente direcionados à podestade, gênero no
qual pode ser ainda incluído O príncipe (Skinner, 1978, v. 1, p. 28-35). Por
outro lado, a partir da segunda metade do século XIII, a influência de um
ensino francês de retórica baseado sobretudo nos autores clássicos, especial-
mente em Cícero, levou a conferir mais importância às questões abordadas
por esses autores. Skinner cita o exemplo do livro de Brunetto Latini, do meio
do século XIII, ao mesmo tempo um guia prático, por conta dos modelos de
cartas e discursos nele incluídos, e um tratado de retórica e filosofia política
e moral, devido às abundantes referências dedicadas a Aristóteles e Cícero,
com a insistência do autor na ideia de que a principal ciência do governo
das cidades-Estado é justamente a retórica (p. 40). Essas obras comportam,
O m o d e l o da c i t é
pelo termo Éden (H1). Seus membros podem ser, todos, confundidos em uma
mesma classe de equivalência, e a humanidade comum não conhece senão
um único modelo de homem, um Adão. Essas construções definem mundos
perenes nos quais reina um acordo perpétuo de todos com todos (como em
algumas utopias). Mas embora seja pouco elaborado, esse modelo é útil para
se ter em mente como limite da cité.
As construções aqui analisadas, no entanto, pressupõem imperativos/
constrangimentos adicionais. O segundo axioma do modelo, designado como
princípio de dessemelhança (a2), destina-se justamente a excluir os Édens, ao
supor pelo menos dois estados possíveis para os membros da cité. Supondo‑se
que os comportamentos possam ser ajustados a esses estados – segundo
modalidades que deixaremos de lado por ora –, sua diferenciação permitirá
a partir disso formas de justificação das ações e situações de comprovação
para se atribuírem os estados.
Mas se for tomado isoladamente, esse segundo princípio permite en-
gendrar uma outra construção política simplista, na qual as singularidades
pessoais sejam tão preservadas que se chegue ao ponto de existirem tantos
estados quanto pessoas. Sob essa hipótese, o princípio de humanidade comum
não pode mais ser respeitado, o que interdita toda possibilidade de aproxima-
ção dos seres humanos nos estados. Entretanto, embora seja também grossei-
ra, essa construção é igualmente interessante, pois marca mais um limite para
o modelo da cité, na direção do qual recai o questionamento de qualquer
qualificação, de qualquer representação, em nome das singularidades pessoais.
A construção do modelo da cité impõe uma determinação das condi-
ções de acesso dos membros desse ordenamento aos estados, e o primeiro
imperativo, o de humanidade comum, pesa sobre essa determinação. Assim,
o caso em que os estados são atribuídos de maneira permanente às pessoas
é excluído pelo primeiro princípio. Uma metafísica política que podemos
denominar como de castas (ou baseada, por exemplo, em diferenciações
sexuais) é incompatível, portanto, com a humanidade comum.2 Para per-
manecer, então, coerente com os modelos de humanidade e permitir a com-
patibilidade dos dois imperativos anteriores, o modelo deve pressupor, para
todos os seus membros, um idêntico potencial de acesso a todos os estados,
que denotamos como sua dignidade comum (a3). O modelo de humanidade
de vários estados assim definido (H2) cria, dessa forma, a possibilidade de
acordos não simplistas, bem como de desacordos limitados a litígios sobre a
atribuição de um estado a uma pessoa, sem conduzir imediatamente a uma
controvérsia mais profunda sobre a definição desses estados. Acordos como
é aquilo que for mais geral, e o grau de generalidade dos grandes contribui
não apenas para seu bem-estar (que se caracteriza, portanto, por uma forma
de expansão de seu estar), mas também para o bem-estar dos pequenos. Essa
contribuição é expressada em cada forma específica de cité, pela modalidade
segundo a qual os grandes abarcam os pequenos: o estado de grande apresen-
ta a medida da cité, e não se pode atribuir uma grandeza, ou seja, constituir
classes de estados e os ordenar, senão a partir do conhecimento desse estado
superior. A cité é identificada por seu estado de maior grandeza, e aceder a
ele significa estar identificado com a cité. Em um tal modelo da cité (H4),
sobrepõem-se as noções de grandeza (a4) e de bem comum (a6), reunidas
no princípio superior comum. E este permite conter as divergências no nível
do admissível, evitando que elas se degenerem ao ponto de colocarem em
questão o princípio de acordo, isto é, a definição dos estados de grandeza e,
assim, os fundamentos mesmos da cité. As divergências sobre a atribuição de
um estado a uma pessoa são de um nível lógico inferior à convenção sobre
esses estados e os benefícios a eles inerentes.
Após explicar os elementos constitutivos do modelo da cité – o princípio
de humanidade comum (a1), o princípio de dessemelhança (a2), a dignidade
comum (a3), a ordem de grandeza (a4), a fórmula de investimento (a5) e
o bem comum (a6) –, esclareçamos sua estrutura formal, nos questionando
sobre os problemas que ela deverá resolver. Esse esclarecimento implica um
passo atrás a partir das obras de filósofos políticos analisadas, a fim de com-
preender sua empreitada como tentativa de integrar dois requisitos cuja com-
patibilidade é problemática. A estrutura do modelo suporta duas exigências
fundamentais fortemente antagônicas: l) um requisito de humanidade comum
que implica uma forma de identidade partilhada por todas as pessoas; e 2)
um requisito de ordenamento dessa humanidade. A definição do bem comum
é a pedra angular da construção que deve garantir a compatibilidade entre
essas duas exigências.
Uma segunda perspectiva requer um recuo ainda mais significativo, uma
vez que supõe levar em consideração a pluralidade dos princípios de acordo,
em vez de se permanecer no âmbito de um deles, cuja unicidade seria preciso
fundamentar. Antecipando futuros desenvolvimentos, dedicados à coexistência
de várias cités, sugeriremos que nosso modelo é uma resposta ao problema
colocado pela pluralidade de princípios de acordo disponíveis, o que exclui
imediatamente a utopia de um Éden. O modelo da cité deve permitir, por meio
da construção de uma ordem em torno de um bem comum, a redução dos
***
política para ilustrar o modelo apresentado pode parecer arriscado por várias
razões. De fato, o mercado serviu constantemente para colocar em questão
a possibilidade de um acordo geral intencional. Além disso, a sociologia se
constituiu [em parte] a partir de uma análise dos efeitos destrutivos dos laços
mercantis na construção de uma sociedade. A própria noção de individualis-
mo atrelada a esse modo de relação opõe-se a tal ponto às noções de cultura,
comunidade, coletividade ou sociedade que é atualmente difícil compreender
que uma cité pudesse ser construída com base em uma forma mercantil de
relação da mesma maneira como o seria por referência a um interesse geral
coletivo. No entanto, a explicitação dessa similaridade, difícil de estabelecer
na leitura de textos contemporâneos de economistas ou sociólogos, é possível
com a ajuda do modelo apresentado, seja retornando, como acabamos de
fazer, ao trabalho de filosofia política de Adam Smith, seja analisando – como
no capítulo VI – textos contemporâneos que apresentam a grandeza própria
do mercado.
A primeira exigência do modelo, a de humanidade comum (a1), que
permite identificar os seres humanos, é fundamental na economia política,
uma vez que serve para distinguir as pessoas dos bens exteriores, por cuja
apropriação elas concorrem: na cité mercantil, as pessoas não podem ser ne-
gociadas, como ocorre com os bens. As distinções de estado (a2) são definidas
por diferenças de riqueza, e esses estados estão claramente ordenados (a4).
A hipótese segundo a qual a possibilidade de enriquecer está aberta a todos
os homens (a3) é frequentemente apresentada para sustentar que o princí-
pio mercantil pode fundamentar uma forma de justiça. O custo associado a
essa forma de grandeza (a5) é o custo do senso de oportunidade que supõe
estar o tempo todo nos negócios, à procura de uma ocasião favorável, sem
jamais se acomodar sobre tradições, ligações pessoais, regras, projetos, etc.
E a última exigência, a do bem comum (a6), é aquela cujo estabelecimento
é mais delicado e cuja formulação mais elaborada na obra de Smith justifica
que nela busquemos a expressão da filosofia política mercantil. Propor que
a riqueza dos ricos beneficie a todos passa por uma explicitação da harmo-
nia de uma distribuição ainda desigual dos estados de grandeza, resultante
da concorrência entre os apetites regulada pelo acesso aos recursos escassos
(a mão invisível). Como em todas as formas específicas de cité, são os gran-
des, por sua grandeza, que sustentam a possibilidade de uma referência a um
plano superior comum. São os ricos que, pelos negócios que realizam, mantêm
a concorrência em um mercado. É nesse sentido que o luxo beneficia a todos, e
não por meio da indústria que ele fará viver. Diferentemente dos patrimônios,
a riqueza que alimenta as trocas mercantis beneficia a cité.
A economia política fundamenta, assim, uma cité, ao demonstrar como
as pessoas, para evitar uma discórdia perpétua, podem fazer apelo a um
princípio de coerência em suas condutas e nas argumentações que as justifi-
quem. Na cité mercantil, toda divergência pode se tornar litígio e se resolver
por meio de uma comprovação mercantil à qual as pessoas concordam em
se submeter. O choque violento dos apetites antagonistas é, assim, pacificado
sob os auspícios de um mercado ao qual as pessoas podem fazer referência,
como princípio superior comum, na busca de um acordo.
As f o r m a s p o l í t i ca s da g r a n d e z a
A c i t é i n s p i r a da
* Neste capítulo, quatro termos são adotados para tradução do original francês cité: ci-
dade, usado para ser fiel ao título consagrado da obra de Santo Agostinho A Cidade de
Deus [em francês, La Cité de Dieu], e seguindo os usos mobilizados nesse livro, como
quando se fala na “Cidade Terrena” (embora, como veremos, o sentido seja o de uma
ordem social nos moldes da cidade-Estado), além de outros usos clássicos do mesmo
formato, como os empregados por Rousseau; cidade-Estado, tradução mais literal que
indicará justamente o tipo de organização político-geográfica antiga a que se referem
tanto essa obra quanto a própria construção utópica de Boltanski e Thévenot; ordem
política, forma mais genérica, referindo-se à associação territorial e de cidadania traduzida
por todas essas formas; e, evidentemente, cité, nos termos já explicitados em “Sobre a
Tradução”, indicando o conceito do modelo das economias da grandeza. Assim, o ponto
fundamental deste capítulo, no que diz respeito à terminologia, é o caminho segundo o
qual os termos cidade, como usado por Santo Agostinho, e cité, como usado no modelo
das economias da grandeza, se sobrepõem. (N. do T.)
já presente nos corações daqueles que, tocados pela graça, têm fé, ou seja,
aceitam, sem se opor, a graça a operar neles. Nesse sentido, o Reino está já
no mundo dos homens, mesmo não sendo, longe disso, a totalidade desse
mundo. A Cidade de Deus, obra histórica como a maioria dos livros do An-
tigo Testamento e da qual poderíamos dizer, com razão, que se trata de uma
das primeiras grandes construções de uma filosofia da história, é dedicada a
traçar a história da luta que se desenrola, depois da vinda do Messias, entre
dois mundos possíveis: um, habitado pela graça; outro, dela privado. Isso
significa que essas duas “cidades” – como os chama Santo Agostinho – são,
para ele, claramente modelos, nenhum deles plenamente realizado na vida
secular. Deste mundo, a graça de Deus não está totalmente ausente, porque
nem todos a rejeitam com a mesma força. Mas, ao mesmo tempo, a graça de
Deus não habita completamente este mundo, porque a maioria dos homens
a recusa. As “nações”, as “repúblicas” ou os “povos” deste “mundo” apre-
sentam “mesclas temporárias”, nas quais uma ou outra dessas duas cidades,
que o juízo final separará, estão, conforme o caso, mais ou menos presentes.
É para explicitar essa tensão entre dois mundos e para a colocar em ação em
uma história que, em Santo Agostinho, se prestam o uso do termo cidade – e
a nós o termo cité – e a metáfora das duas cidades. A colocação em paralelo
do Reino e do mundo, que permite sua redução a duas cidades comparáveis,
pelo menos em alguns aspectos, permite ligar a história da salvação e a história
política em uma filosofia da história. Transposto para o registro teológico, o
conceito de cidade, como empregado pelo autor, conserva, com efeito, algu-
mas de suas propriedades no registro político. A oposição das duas cidades
não é, assim, totalmente redutível a uma oposição nítida entre o Reino e o
mundo, o bem e o mal.
Essas duas ordens são classificadas conforme o grau em que realizam
o “bem comum” e asseguram a felicidade e a concórdia entre os seres. E o
conjunto desses seres não se limita aos homens; cada uma dessas duas con-
figurações é “comum aos anjos e aos homens”, uma vez que os anjos, tanto
quanto os homens, podem ser “bons ou maus” (CD, 35, 149).* O povo sobre
são bens e, não há dúvida, dádivas de Deus. Mas se, com desprezo dos bens
melhores que pertencem à cidade do alto em que a vitória se firmará em uma
paz eterna, soberana e segura, se desejam esses bens até se considerarem como
os únicos bens verdadeiros e se preferem aos bens considerados melhores – ne-
cessariamente que se seguirá a miséria agravando a que já havia. (CD, 36, 45)
[U]m que olha para o bem da utilidade comum em ordem à companhia celestial,
o outro, que submete o comum a seu poder por causa da dominação arrogante,
um, sujeito a Deus, o outro, rival de Deus; [...] um que quer para o próximo o
que quer para si, o outro, que quer submeter o próximo a si, um que governa
o próximo para a utilidade do próximo, o outro, para a sua utilidade. (CLG,
49, 261)
Quando tenho para falar sobre o estabelecimento das regras para o compor-
tamento e a conduta de uma vida santa, sempre saliento, em primeiro lugar, o
poder e a funcionalidade da natureza humana, e mostro o que ela é capaz de
fazer... Isso, temendo que eu pareça estar perdendo meu tempo, ao conclamar
as pessoas a se lançarem em um percurso que elas consideram impossível de
concluir. (Brown, 1971, p. 406)
A carne deve ser vencida porque ela é o motivo pelo qual as grandezas
próprias de outras cités, tratadas aqui como infortúnios, estabelecem-se da
maneira mais irrevogável ao se fixarem nos hábitos e nos corpos das pessoas.
Diz Artemidoro de Daldis: “A mulher representaria, na vida do homem, o
que mais o envolveria e aquilo com mais estabilidade”. E ainda segundo ele,
quando um homem sonha com sua mulher, ele normalmente está pensando
em seu trabalho: “A mulher representa a profissão do sonhador ou suas
obrigações profissionais” (Artemidoro apud Brown, 1983, p. 171).* A espo-
sa, sublinha Michel Foucault (1984, p. 31) em seu comentário ao mesmo
texto, está “em uma relação natural com a ocupação e a profissão”. Assim,
a renúncia aos “assuntos mundanos”, à vaidade das “honras e responsabi-
lidades”, à “conversação”, à tentação de “chamar a atenção das principais
figuras colocadas neste mundo” (CO, 14, 35), tem como condição a renúncia
de tudo de carnal porque o “desejo de união da carne” é a “corrente” que
nos submete à “escravidão pelos assuntos mundanos” (CO, 14, 35).
Romper com essas relações corporais, que, pela concupiscência carnal,
aferram-se ao mundo, é também pré-requisito à utilização do corpo como
ferramenta de acesso às verdades mais elevadas e, portanto, como um instru-
mento fundamental da grandeza. A grandeza inspirada é, com efeito, indisso-
ciável da pessoa, ligada a seu próprio corpo, cujas manifestações inspiradas
são o modo privilegiado de expressão e cujo sacrifício constitui a forma de
realização mais completa.3 A inspiração se perde quando se depara com o
que pode torná-la objetiva e a dissociar do corpo em si, com a inscrição que
fixa e transporta ou mesmo com a palavra interior que supõe já a referência
a um terceiro: “Primeiramente invocamos o próprio Deus, não em palavras
faladas, mas daquela forma de oração sempre a nosso alcance: voltando a
alma em direção a Ele por aspiração, um sozinho em direção a um sozinho”
(Plotino apud Brown, 1971, p. 194).**
* Conforme tradução de Eliana Aguiar publicada pela editora Zahar. (N. do T.)
** Conforme tradução de Américo Sommerman publicada pela editora Polar. (N. do T.)
* Monastério ermitão fixado nos primeiros séculos do cristianismo na região mais periférica
do Delta do Nilo, no meio do deserto da Nítria, próximo à comunidade de Kellia, que
também conta com um mosteiro do tipo. (N. do T.)
O pai Teodoro recusa o cargo de diácono e foge (p. 67). O pai Poimém es-
capa aos olhos de sua mãe e a deixa chorando a sua porta (p. 133). O pai
Longin esconde sua identidade para a mulher que, atraída por sua fama,
demanda vê-lo para ser curada: “Ao encontrá-lo, ela diz, ignorando se tratar
dele: ‘Abba, onde habita o abba Longin, o servo de Deus?’ E ele lhe diz: ‘Por
que buscais esse impostor?’” (p. 91). O pai Moisés foge para o pântano ao
saber que o chefe da região, que ouviu falar dele, virá vê-lo; lá, ele encontra
aqueles que o buscam e que lhe perguntam: “Diga-nos, velho, onde é a cela
do abba Moisés?” E ele responde: “O que desejais vós dele? Trata-se de um
homem simples de espírito”. Ao saber mais tarde ter conhecido o pai Moisés,
“bastante edificado, o chefe da região se retira” (p. 106).4
A c i t é d o m é s t i ca
cada um se move com um halo em torno de si, que é a história de sua categoria,
sua família, sua linhagem patrimonial, o espaço, o tempo e a memória ocupados
na aldeia por sua ousta* – sua casa, em sentido semelhante ao das casas reais.
[Pois essa] casa se cola a sua pele, e mesmo se lhe for dada a oportunidade
de se provar sua força individual, o que permanece em última instância é sua
linhagem ou situação familiar. Sem sua família não se é nada. (Claverie; La-
maison, 1982, p. 84)
* A palavra, em occitano, remete a um sentido de casa como uma unidade de vida comum
complexa que, ainda segundo Elisabeth Claverie e Pierre Lamaison, “antes de ser definida
como uma edificação de habitação-exploração econômica [como se poderia entender, por
exemplo, uma casa de fazenda], poderia ser definida como um ‘quem-vive’. Com efeito,
é em grande medida a atmosfera de espera por um combate que evoca a ousta por seu
conjunto de práticas sociais. [...] E ainda que a ousta seja uma unidade econômica –
uma casa, uma família, terras, gado – ela é também fruto de uma política”. (N. do T.)
** Literalmente, “apontar um filho mais velho”. (N. do T.)
O guarda suíço, o valet de chambre, o lacaio de libré, se não contam com mais
espírito que o conferido por sua condição, também não se julgam a si mesmos
por sua baixeza fundamental, mas pela elevação e a fortuna das pessoas a que
servem, e colocam a todos que passam por sua porta, e que sobem suas escadas,
indistintamente abaixo deles e de seus senhores: e tanto isso é verdade que todos
estão destinados a ser afetados pelos grandes e por aqueles a eles subordinados.
(La Bruyère, 1965, n. 33, p. 233)
* Conforme tradução de Eduardo Brandão publicada pela editora Martins Fontes. (N. do T.)
* Aqui, por oposição ao tipo de sociedade que abarca toda a humanidade e que seria uma
só e grande família. (N. do T.)
que todos eles pertencem à humanidade, mas não iguais, uma vez que têm
funções diferentes” (De Bonald, 1985, p. 449). A tensão por ele explicitada,
assim, entre um princípio de humanidade comum e um princípio de ordem
inscreve, sem ambiguidades, sua problemática no âmbito da axiomática da
cité, da qual se ergue o conjunto de metafísicas políticas analisado em nosso
livro. O pensador pretende dissociar essas três pessoas do quadro da família
nuclear, fundada com base em laços de sangue, para construí-las de forma
o mais geral possível, isto é, como seres morais a figurarem como atores em
um drama político:
A c i t é da o p i n i ão
Os sinais pelos quais conhecemos o nosso próprio poder são as ações que dele
procedem; e os sinais pelos quais outros homens o conhecem são as ações, os
gestos, o semblante e a linguagem, produzidos usualmente por tais poderes: o
reconhecimento do poder é chamado de honra; e honrar um homem é conceber
ou reconhecer mentalmente que esse homem está em vantagem, ou que excede
em poder aquele que rivaliza ou que se compara com ele; [...] e é de acordo
com os sinais de honra e desonra que calculamos e estimamos o valor [preço]
ou o mérito de um homem. (Hobbes, 1977, p. 164)*
Hobbes escreveu:
de desvelar, sob a invocação das certezas de foro íntimo, o poder das paixões
e dos apetites partidários o que permite estabelecer a equivalência entre
grandeza e renome sem que a revelação dos poderes da opinião assuma uma
forma crítica, como é o caso entre os moralistas franceses do século XVII e,
mais tarde, com Rousseau (a “consideração”).6 Os moralistas de inspiração
jansenista (La Rochefoucauld, Nicole, Pascal) desenvolvem análises da honra
nas quais a grandeza das pessoas e, mais particularmente, a grandeza dos
grandes é apresentada como o produto apenas da opinião dos outros, mas
essa redução adquire sempre a forma de uma revelação crítica: “O homem
não é grande. Seu desejo de se engrandecer não o engrandece” (Bénichou,
1948, p. 172). Assim, em oposição à honra da corte, isto é, às falsas grande-
zas, coloca-se a “honra de foro íntimo” [“in foro interno”], como diz ainda
Koselleck (1979). Essa distinção, que retoma a denúncia das glórias terrenas,
tal como praticada na tradição estoica e no cristianismo, e a radicaliza, revela
a verdade oculta da grandeza mundana, dependente dos olhares dos outros,
para melhor destacar as características por conta das quais se reconhece a
verdadeira grandeza: aquela que não se incomoda com a opinião do mundo e
leva em consideração apenas os sinais da eleição divina. Essa temática, desen-
volvida por Santo Agostinho nas Confissões e também em partes d’A Cidade
de Deus dedicadas a refutar as concepções clássicas da glória praticadas com
a finalidade terrena de aumentar a grandeza da cidade (Lida de Malkiel, 1968,
p. 89-92), é utilizada pelos juristas nas lutas que opõem a Igreja às sociedades
políticas para repelir as pretensões, e especialmente as pretensões espirituais,
dos poderes laicos (De Lagarde, 1956). E é igualmente contra a concepção
cristã da miséria humana que o Renascimento italiano desenvolve a ideia
ciceroniana de “virtus”. A vir virtutis, pertencente ao ideal do gentil-homem
renascentista, pressupõe a possibilidade de acesso neste mundo a uma forma
de excelência dramática e heroica oposta à representação da “miséria huma-
na” e à condenação da glória e dos grandes feitos em nome da providência
e da graça (Skinner, 1978, v. 1, p. 90-101). Entre os moralistas franceses do
século XVII, assim como em Hobbes, as ações heroicas que mobilizam a
força estão ligadas ao interesse e ao amor de si (Hirschman, 1977, p. 11).
Mas essas ações não se tornam objeto de um mesmo tratamento moral nos
dois casos. Hobbes se curva à realidade daquelas grandezas quando elas são
reconhecidas pelos outros como grandes sem buscar rebaixá-las em nome
de outro princípio de justiça. A estratégia dos moralistas é diferente. Eles
não atacam de frente as grandezas estabelecidas, que são reconhecidas na
que partido tomar; mas resolveu enfim prestar-se à sua boa fortuna. Recebeu
todas as homenagens que quiseram prestar-lhe e deixou-se ser tratado como rei.
Contudo, como não podia esquecer sua condição natural, pensava, ao mesmo
tempo que recebia essas homenagens, que não era o rei que esse povo buscava
e que esse reino não lhe pertencia. Assim, tinha um pensamento duplo: um pelo
qual agia como rei, outro pelo qual reconhecia seu verdadeiro estado e que era
apenas o acaso que o havia colocado no lugar em que estava. Ele escondia esse
último pensamento e revelava o outro. Era com o primeiro que lidava com o
povo e com o último que lidava consigo mesmo. (Pascal, 1912, p. 233-238)*
Contudo, o que possuís inteiramente em comum com ele é que esse direito que
tendes aos bens não está fundado, não mais que o dele, sobre alguma qualida-
de e sobre algum mérito que esteja em vós e que vos torne digno deles. Vossa
alma e vosso corpo são, por si mesmos, indiferentes ao estado de barqueiro
ou àquele de duque; e não há qualquer vínculo natural que os associe a uma
condição mais que à outra.
O que se segue daí? Que deveis ter, como esse homem do qual falamos, um
pensamento duplo; e que, se agis exteriormente com os homens conforme vossa
posição, deveis reconhecer, por um pensamento mais escondido, mas mais verda-
deiro, que nada tendes naturalmente acima deles. Se o pensamento público vos
* Todas as citações aos “Três discursos sobre a condição dos grandes” foram extraídas
da tradução de Flavio Fontenelle Loque publicada pela editora Autêntica (Do espírito
geométrico e Da arte de persuadir e outros escritos de ciência, política e fé). (N. do T.)
eleva acima do comum dos homens, que o outro vos rebaixe e vos mantenha
numa perfeita igualdade com todos os homens, pois esse é vosso estado natural.
* No sentido de protegido, que goza das boas graças de um monarca ou nobre. O favo-
rito é um dos personagens fundamentais da sociedade de corte, pois uma economia dos
protegidos contribuía no reconhecimento da grandeza dos nobres. (N. do T.)
nenhum seguidor; ele não tem compromissos ou laços; pode estar rodeado
por parentes e criaturas, mas ele não os possui; ele está dissociado de tudo, e
como que isolado” (Pascal, 1912, p. 250). Esse distanciamento é a condição
de acesso a uma grandeza da opinião (como será para uma grandeza mer-
cantil), e o homem da corte, na qual “a opinião dos outros funda a existên-
cia”, como diz Norbert Elias (1974, p. 85), existe apenas por meio do olhar
lançado sobre ele. “Afastar-se da corte por um só momento que seja é a ela
renunciar: o cortesão que a viu de manhã a vê à noite para reconhecê-la no
dia seguinte, ou a fim de que ele próprio seja conhecido” (La Bruyère, 1965,
p. 202). Mas ele pode ser apenas diminuído por ela, porque a grandeza da
opinião é denunciada como ilusória: “É-se pequeno na corte e não importa
a vaidade que se tenha, é pequeno que se é percebido nela; mas o dano é
comum, e mesmo os grandes nela são pequenos” (p. 202). A posição dos
grandes se encontra, assim, repleta de ambiguidade e incerteza. Não se pode
ignorar aquilo por meio do que eles se associam ao universo das grandezas
domésticas, e sua estatura preenche todo o espaço em que se lança a crítica.
Mas, como cortesãos, objetos de favores e desfavores, são colocados em
equivalência com aqueles que os servem. Então, sua grandeza não é mais
tomada como dada: “Há entre eles os que, se pudessem conhecer a seus
subordinados e se conhecerem a si mesmos, teriam vergonha de estar acima
daqueles” (p. 230). A tensão entre a grandeza doméstica e a grandeza da
opinião, não reconhecida como tal, habita a denúncia moral da corte, mina
a ordem das pessoas e libera um espaço em que outras grandezas, a cívica e a
industrial, podem ser implantadas:
A c i t é c í v i ca
não podem repousar sobre nenhuma norma legal ou moral vigente. “O rei é
levado a julgamento em uma violação das leis do Ancien Régime, as únicas
leis que ele reconhece; ele é julgado em nome de princípios políticos e legais
com os quais nunca consentiu e por um tribunal cuja autoridade não reco-
nhece” (Walzer, 1974, p. 70).
O estabelecimento de uma grandeza cívica passível de se constituir como
um princípio de ordem legítima na cité pode, assim, ser apresentado como
uma alternativa razoável, por um lado, ao reconhecimento da autoridade
carismática de um líder inspirado; por outro, à fidelidade às dependências
pessoais inscritas em hierarquias tratadas como naturais; por um outro ainda,
à submissão aos veredictos de um mercado das estimas. Com efeito, para
Rousseau, não é suficiente liberar os homens das relações de dependência que
os escravizam à pessoa de um superior para que seja revelada sua verdadeira
grandeza e, em consequência, para garantir as condições de um julgamento
autêntico. Pois, dissociados das relações hierárquicas, os homens podem
ainda sucumbir sob o poder da opinião. A busca pela “consideração” e pelo
“amor--próprio”, um de seus pendores, os insere em uma forma de depen-
dência que, sem representar um obstáculo direto ao corpo, como é o caso
das formas de dependência pessoal experimentadas no Antigo Regime, não é
menos tirânica, uma vez que sujeita todos à opinião dos outros e estabelece,
então, um “preço” para a “estima pública” (Rousseau, 1964, SD, p. 170).*
O amor-próprio não tem em Rousseau as virtudes paradoxais da “falsa hon-
ra” de que fala Montesquieu (1979, v. 1, p. 149-150), uma paixão que, por
mais egoísta e ilusória que possa ser, desvia para o benefício do “bem público”
(Pappas, 1982) ações voltadas originariamente para a satisfação de um interesse
não são grandes pela “distinção dos talentos” (Rousseau, 1964, PD, p. 26),
mas, de forma diferente, pela virtude, isto é, pelo zelo com o qual fazem o
sacrifício daquilo que os distingue do ponto de vista de outras grandezas,
qualificadas como pessoais. Diferentemente das distinções relacionadas à
posição e marcadas por títulos ou benefícios de distinção perseguidos pelo
renome conferido pelo reconhecimento dos outros, as distinções adquiridas
pelo mérito cívico atrelam-se às pessoas na medida em que servem às causas
maiores que estas. As relações entre as pessoas são meritórias quando elas
se dão no âmbito dos dispositivos capazes de as dessingularizar.
Caracterizada, por meio de uma analogia matemática, como o resultado
do “somatório” de “um grande número de pequenas diferenças” (Rousseau,
1964, PD, p. 371), a vontade geral, que pode ser expressada no exercício do
sufrágio, exige ainda, para ser ouvida, condições de consulta bastante espe-
cíficas: as pessoas devem, para que sua vontade geral possa se manifestar no
ato do voto, estar liberadas das cadeias hierárquicas e das dependências que
as assujeitam, ou seja, estar dissociadas umas das outras, estar constituídas
como indivíduos (Dumont, 1983) sem “nenhuma comunicação entre si”
(Rousseau, 1964, CS, p. 371), de modo que “cada cidadão opine somente de
acordo com seu entendimento” (p. 372). Sabe-se, por exemplo, que durante a
Revolução, esse princípio de independência será concretamente aplicado para
excluir os trabalhadores domésticos das votações: dependentes de seu senhor,
eles não contavam com a autonomia necessária para aceder ao estado em
que poderiam visar o bem geral. E o mesmo princípio dá conta, pelo menos
em parte, da relutância em incluir no corpo eleitoral as mulheres, que, como
filhas, esposas e mães, são por um longo tempo consideradas, por uma espé-
cie de destino natural, com base na cité doméstica, por demais parciais para
alcançarem a independência de julgamento. A lógica dessa construção leva,
por uma necessidade interna, a fazer pesar a suspeita de conspiração sobre
o mundo das relações pessoais como um todo. Qualquer relação de pessoa a
pessoa não mediada pela relação com a totalidade do corpo político torna-se
um obstáculo à expressão da vontade geral, degrada-a, atira-a na direção do
particular e constitui, nesse sentido, um complô a ser denunciado:
[P]ara que o corpo do governo tenha uma existência, uma vida real que distinga
do corpo do Estado, para que todos os seus membros possam agir harmoniosa-
mente e corresponder à finalidade para a qual foi instituído, ele necessita de um
eu* particular, de uma sensibilidade comum a seus membros, de uma força, de
uma vontade própria que tenda a sua conservação. (Rousseau, 1964, CS, p. 399)
como lhes seria fácil levarem as pessoas a adorá-los” (Rousseau, 1959, CO,
p. 527). A tensão entre a grandeza inspirada do gênio, a grandeza do renome,
da qual pode se valer o escritor célebre (que, como gênio, não ignora por-
tanto seu caráter artificial), e a grandeza relacionada à categoria hierárquica
é provisoriamente desarmada por meio do estabelecimento de um dispositivo
próprio para fazer surgir no primeiro plano a autenticidade das relações
inspiradas: a comunhão no amor ao belo e a singularização de uma relação
sem equivalente (no modo da relação amorosa) suspende a controvérsia so-
bre as grandezas relativas do célebre escritor e do nobre e rico mecenas. Na
relação inspirada, como a descrita nas Confissões, cada um se eleva acima de
atributos que lhe são próprios neste mundo e são devolvidos à contingência.
Permanecem, então, cara a cara, dois seres humanos em geral, no sentido,
definido anteriormente, segundo o qual a graça divina se direciona para os
homens destacados de suas particularidades terrenas, que se avaliam indis-
sociavelmente nos termos do que tenham de mais singular e mais universal.
Tomemos, por exemplo, a visita do príncipe de Conti a Montmorency: “Ali,
só eu o tratava como homem, e tenho todas as razões para crer que verda-
deiramente me ficou agradecido” (Rousseau, 1959, CO, p. 543). O nobre, um
príncipe, presta homenagem ao talento de Rousseau, um homem sem título
e sem fortuna, e a seu renome, visitando-o em seu lar, em seu “apartamento
tão pequeno”. Não obstante, é essa figura de primeira grandeza que se des-
loca até Rousseau, e o escritor, como é seu costume, introduz um jogo no
estabelecimento de equivalências, concedendo àquele que o dignifica com sua
presença a honra de tratá-lo como se ele não demandasse qualquer honraria:
ele recusa a grandeza de estabelecimento para mais valorizar sua grandeza na-
tural. Assim, eles se medem no xadrez. Rousseau ganha a partida e, seguindo
o mesmo esquema, rende as honras devidas ao príncipe, que designa por seu
título, escondendo-se atrás da verdade do processo de comprovação ao qual
ambos se submetem e que é indiferente à hierarquia: “Prezo por demais vossa
alteza sereníssima para não o vencer sempre no xadrez” (p. 543). Mas, na
ausência de uma grandeza cívica firmemente estabelecida nas instituições do
Estado, a boa vontade das pessoas, sua virtude, a confiança que se atribuem
e o amor que se dedicam não permitem superar as relações de subserviência
inerentes às formas de dependência pessoal, que sempre terminam por rea-
parecer e por prevalecer sobre elas. Para Rousseau, a cité cívica está presente
em seu tempo apenas como possibilidade teórica, e não como realização
concreta, já que a República das Letras, essa cidade ideal baseada na razão,
na realidade não é, ela mesma, senão uma conspiração pérfida. E fora dessa
cité, a dependência é incontornável. Ela submerge qualquer outra forma de
equivalência e de medição, ainda que seja obtida por esse dispositivo de jus-
tiça indiferente à posição hierárquica que é o jogo de xadrez. Aquele que em
particular for seu benfeitor é seu inimigo uma vez que seja inimigo da raça
humana (Berman, 1970, p. 96). A sequência é praticamente idêntica todas
as vezes: o de maior grandeza (a grande dama) incentiva, por suas marcas
de afeto, a familiaridade e, acima de tudo, a confiança. Mas a efusividade
tem como contraponto a polidez. Uma se libera e a outra se contém; uma
se entrega, a outra se resguarda. A injustiça se apresenta primeiramente sob
a forma de uma entrega de si traída pela contenção de um parceiro, que,
incentivando ao mesmo tempo a intimidade de uma relação que parece igual,
marca uma distância. A dependência hierárquica é, com isso, redobrada por
uma dependência emocional não correspondida:
Nunca soube, nas minhas afeições, conservar o justo meio, cumprindo sim-
plesmente os deveres de sociedade. Sempre quis ou tudo ou nada; em breve
quis tudo, e, vendo-me festejado, amimado por pessoas de tal consideração,
ultrapassei o limite, e ganhei-lhes uma amizade que só aos da sua igualha é
permitido ter. Pus nas minhas maneiras toda a familiaridade, ao passo que eles
nunca abandonaram nas suas toda a civilidade a que me haviam habituado.
(Rousseau, 1959, CO, p. 522)
A cité industrial
O governo, como toda gestão de bens, pode ser objeto de cálculo de cus-
tos e, “no estado atual de iluminação, aquilo de que o país precisa não é ser
governado, é ter administrado o melhor mercado possível; ora, não é senão na
indústria que podemos aprender a administrar a baixo custo” (Saint-Simon,
1869, Syst., tomo I, p. 151). E o pensador avalia ainda o custo dos “300 ou
400 mil juristas, aprendizes forenses ou auxiliares jurídicos na França, [que]
são o tanto de homens que nada produzem e que representam, portanto, um
encargo para a indústria, que os alimenta, os aloja, os veste gratuitamente”
(Ind., tomo II, p. 115-116).
A lei fundamental do Estado é, na cité industrial, a regra contabilística
do orçamento, “pois o dinheiro é no corpo político o que o sangue é para
o corpo humano. [...] Assim, a lei das finanças é a lei geral, aquela da qual
todas as outras derivam ou devem derivar” (Saint-Simon, 1869, Ind., tomo
II, p. 93). No ensaio Considérations sur les mesures à prendre pour terminer
la Révolution [Considerações sobre as medidas a adotar para encerrar a
Revolução], o autor propõe, a fim de se votar o orçamento, a criação de um
geral deve ser dirigida da mesma maneira que as fábricas particulares” (Syst.,
tomo III, p. 91).
Saint-Simon prevê, também expressamente, nas atribuições dessas câma-
ras, cuidar da expressão do princípio superior comum, por meio da criação
de museus e da realização de festas públicas. Os locais seriam
Os mundos comuns
O j u l g a m e n to s u b m e t i d o à c o m p rovação
O j u l g a m e n to e m s i t uação
* Conforme a edição de A ciência social e a ação publicada pela editora Difel, com tra-
dução de Inês D. Ferreira. (N. do T.)
do acordo e do desacordo que não seja apenas uma teoria dos argumentos
confrontados com princípios, mas que dê conta da confrontação com as
circunstâncias, com uma realidade, isto é, que dê conta do engajamento dos
seres humanos e dos objetos em uma ação.
Deixaremos, então, de lado os momentos nos quais a acumulação de
desacordos se mantém nas fronteiras do caos, bem como aqueles que dão
lugar a um arranjo. A concessão feita em um arranjo consiste precisamente
em não se remontar a um princípio de justiça. As pessoas fazem um arranjo
entre si (ou seja, localizadamente) para encerrar a controvérsia sem a esgo-
tar, sem esvaziar a discussão. Por isso, nos ocuparemos dos casos em que
a busca de acordo leva as pessoas a ultrapassarem as contingências, mas
levando em conta as circunstâncias, e a explicitarem a relevância dos seres
presentes em relação a um mesmo princípio geral de equivalência. A questão
do justo, da justiça ou da justeza da situação pode com isso ser colocada.
Algumas aproximações poderão ser justificadas, enquanto outras serão jul-
gadas injustificáveis.
Assim, tomemos o exemplo de alguns jovens que fazem uma algazarra
em um café, lançando pedaços de pão uns nos outros. Os elementos circuns-
tanciais da situação estão imersos na brincadeira, e nada importa. Mas eis que
um homem de idade intervém para lembrar que o pão não é um brinquedo
e que naquela cidade francesa, durante a guerra, as pessoas passaram fome.
O idoso, que se mantinha até aquele momento à parte, sem se manifestar,
atrás de seu jornal, engaja-se em sua intervenção em uma situação passível
de ser julgada em termos de ser ou não equitativa. Ele diz o que importa.
O movimento pelo qual as pessoas se elevam para além das circunstân-
cias, reconhecendo o que é importante e quem deverá ser engajado na ação
pode ser ilustrado pelo projeto de Carl von Clausewitz. A partir da tensão
entre a “guerra absoluta” e a “guerra real”, entre o princípio filosófico da
guerra e o caos do campo de batalha, lugar da contingência e da incerteza,
ele pretende tratar do método de comprovação pelas armas, o engajamento,
que é o modo de realização da guerra (Clausewitz, 1955, p. 672).* Ele quer
explicitar a “lógica interior” subjacente à “arte” de “mirar com precisão” no
calor da batalha, “a faculdade de utilizar o discernimento para detectar os
* Conforme a edição de Da guerra publicada pela editora Martins Fontes, com tradução
de Luiz Carlos Nascimento e Silva do Valle. (N. do T.)
A e x t e n s ão da c i t é a u m m u n d o c o m u m
* Conforme a edição de O ser e o nada publicada pela editora Vozes, com tradução de
Paulo Perdigão. (N. do T.)
compreender uma oposição de julgamento tão completa como essa, que gera
o risco de se constatar um caráter arbitrário, uma absoluta subjetividade de
pontos de vista. Essas determinações são inabaláveis, porque cada afirmação
pode ser sustentada em um mundo diferente para se comprovar: a primeira
no mundo da inspiração, no qual a convicção surge no foro íntimo, e a
segunda no mundo doméstico, no qual o julgamento pessoal se apaga em
favor das boas maneiras.
Para resolver a disputa, suspender a incerteza sobre os estados de gran-
deza e os tornar comprováveis, é necessário, então, que o modelo da cité
possa ser estendido a seres que não sejam pessoas. As pessoas e as coisas ofe-
recem suporte umas às outras. Ao se comporem conjuntamente, elas provam
a existência de uma justiça dos acordos entre os homens em conformidade
com uma justeza dos acordos com as coisas. Com a participação dos objetos,
que definimos por seu pertencimento a uma natureza, as pessoas podem es-
tabelecer estados de grandeza. A comprovação de grandeza não se reduz ao
debate de ideias. Ela engaja pessoas, com sua corporeidade, em um mundo
de coisas que servem a lhes dar suporte e sem as quais a disputa não encon-
trará motivos materiais para ser encerrada em uma situação de comprovação.
Os princípios comuns não se prestam simplesmente a orientar ações
ou argumentações, à maneira de “sistemas de valores” – no sentido, por
exemplo, em que Raymond Aron (1967, p. 567), comentando Max Weber,
fala de orientação “em relação a valores”. Em um nível mais fundamental,
eles encontram sua fundamentação na diferença entre mundos comuns.
Aquilo que, próprio de um mundo, é nele considerado existente é, em outro,
desconhecido: o mundo da inspiração reconhece, por exemplo, demônios e
monstros, enquanto o doméstico comporta animais de estimação ou criação,
seres desconhecidos no mundo cívico, no qual as crianças e os idosos também
são ignorados, etc. Objetos que, em uma natureza, constituem instrumentos
para tornar evidente a grandeza das pessoas, em um mundo diferente, não
são levados em conta.
O envolvimento de objetos obriga os seres humanos a se colocarem à
altura da situação, a objetivarem a si mesmos lançando mão desses objetos,
valorando-os. Ao se mobilizarem esses objetos, a situação singular em que eles
se encontram pode ser aproximada de outras, e, com isso, o recurso ao prin-
cípio superior comum pode ser aparelhado. O objeto alicerça a grandeza, mas,
ao mesmo tempo, restringe a comprovação ao demandar valoração. Na falta
desta, dir-se-á: “Ele detém a coisa, mas não sabe o que fazer com ela”. Não
tratáveis como gerais, autênticos, verdadeiros, etc. Como formulado por Bos-
suet, “os grandes têm grandes pensamentos” e são os únicos a manifestarem
plenamente essa capacidade cognitiva de generalização. A transgressão dessas
regras induz condutas consideradas anormais, como, por exemplo, quando
um simples moleiro pretende manter discussões teológicas (Ginzburg, 1980).
Sublinhamos que, para além de uma orientação para a justificação, a
questão da existência das coisas no universo não nos diz respeito. O proble-
ma ontológico da existência de seres e das modalidades de suas presenças
no mundo nos ocupará tão somente na medida em que esses seres possam
se encontrar engajados por atos justificáveis nos quais as pessoas estejam
implicadas. É sob esse ponto de vista que analisaremos sua coerência, em
mundos que determinam tanto os seres naturais quanto os engajamentos
naturais entre eles e que servem de referência nos julgamentos de grandeza.
A descrição desses mundos não pode ser feita sem a referência aos relatos
sobre eles. Isso não significa, no entanto, que eles sejam inapreensíveis, emba-
ralhados em uma cacofonia que teria a ver com a variedade de subjetividades.
Nosso objetivo é evidenciar os constrangimentos que limitam esse relativismo
ao atuarem sobre as descrições inscritas no âmbito de um mesmo mundo,
e os associar aos imperativos atuantes sobre a qualificação das pessoas no
âmbito de uma mesma cité.
A c o m p rovação
presença de forma insistente, será a situação que correrá o risco de, como
veremos na próxima seção, ser revertida. Essas situações, particularmente os
exames educacionais, acadêmicos ou profissionais, exigem uma apresentação
sóbria por razões de justiça. Não se devem introduzir grandezas outras, que
poderiam vir a perturbá-las, como seria o caso se uma candidata usasse joias
muito caras ou se um jovem estivesse vestido com trapos, explicitando sua
pobreza. Essas circunstâncias ameaçam um dispositivo que se destina a esta-
belecer o acordo sobre princípios de justiça sem “acepção de pessoas”, como
diz São Tomás de Aquino (1947), porque elas podem induzir no avaliador
a tentação de medir o avaliado e de se medir em comparação com ele, de
acordo com grandezas estranhas ao dispositivo cerimonial.
São frequentemente as situações perturbadas, problemáticas, que incitam
a dúvida sobre a grandeza e exigem, para serem resolvidas, o estabelecimento
da comprovação. Com ela, a situação é depurada, isto é, para se resolver o
litígio, apela-se somente para recursos de um mesmo mundo: o testemunho de
um servo fiel contribui para desmascarar o usurpador, o filho mais novo que
tomou o lugar do mais velho, legítimo herdeiro, graças à confusão causada
por um naufrágio (mundo doméstico); um especialista rigoroso pode testar
a eficácia de um procedimento (mundo industrial) cuja adoção sem testagem
se deveu apenas ao crédito do qual se beneficia seu inventor (mundo da
opinião); a reunião de todo o Congresso ou a convocação da Câmara põe
fim aos rumores circulantes e às ameaças de divisão levantadas por facções
(mundo cívico). Na verdadeira comprovação, o engano é revelado: a ervilha
debaixo do colchão revela a verdadeira princesa.* As máscaras caem, cada
um encontra seu lugar. Por meio da colocação em ordem que supõe, o grande
momento distribui os seres envolvidos e cada um deles comprova sua verda-
deira grandeza. O bem-estar dos de maior grandeza se confunde com o bem
comum, e eles, nesses momentos, são especialmente representativos de sua
condição. Sua grandeza se mostra ali, portanto, confirmada.
Uma vez que um litígio convoque um processo de comprovação, a si-
tuação é, portanto, organizada de modo a suspender uma incerteza e resolver
um desacordo, fazendo apelo ao princípio superior comum a fim de estabe-
O r e l ato s o b r e a s i t uação
engajados em uma ação justa e sua forma, que os dota de uma capacidade
de apresentar provas.
A comparação com a prova judicial evidencia especialmente a relação entre
a capacidade de estabelecer fatos envolvendo as pessoas e sua inclusão em um
relato coerente. Como as comprovações de julgamento no decurso do exer-
cício da Justiça, as comprovações de grandeza serão sempre consignadas na
forma de um relato, no qual serão qualificados os seres e estabelecidas suas
relações relativas. O julgamento da Justiça mostra, assim, a dupla face dos
objetos e fatos que contribuem para o arrolamento de provas, ao mesmo
tempo objetivas e relatáveis, que podem ser apresentadas em uma argumen-
tação. As coisas realmente têm peso sobre o julgamento, podem ser arroladas
e manipuladas no processo, e seu engajamento efetivo pode ser comprovado
na ocasião de uma reconstituição dos fatos; mas o agenciamento dos seres
não é definido sem um relato, um relatório, que os registre, sem autos que
deem conta de sua presença e de suas relações. Não se pode imaginar – nes-
se plano – “situações puras”, dissociadas de todo e qualquer relato. Assim,
embora a objetividade do bom funcionamento de uma máquina pareça algo
o mais distante do imperativo de justificação, essa máquina não funciona “so-
zinha”, mesmo no momento em que não necessite de ninguém para operá-la
ou em que não haja ninguém a observá-la, já que sua operação deve estar
em conformidade com um manual. Da mesma forma, a justificação inspirada
pressupõe um relato, e constatamos na descrição dessa cité o papel de uma
transcrição inspirada, registrada na forma da confissão.
A m at r i z d e a ná l i s e d o s m u n d o s c o m u n s
* Na física, uma grandeza é dita escalar quando sua definição é feita apenas por seu valor,
independentemente da direção em que atue – o que caracteriza as grandezas vetoriais.
São exemplos de grandezas escalares a massa ou o comprimento; a força, por sua vez,
é uma típica grandeza vetorial, já que depende do ângulo de sua aplicação. Uma ordem
de grandeza, assim, é uma escala que depende da direção, que tem um lado positivo e
um negativo. (N. do T.)
O s e n s o d o c o m u m : s e n s o m o r a l e s e n s o d o nat u r a l
Da mesma forma como as construções dos filósofos políticos, uma vez que
estejam completas, detalham o entendimento humano e a psicologia das pessoas
de uma maneira coerente com a definição do bem comum, assim também o
desenvolvimento do modelo da cité segue paralelamente uma hipótese sobre a
instrumentação mental de que dispõem as pessoas para se entenderem em uma
ordem de grandeza. Essa capacidade deverá poder estar presente em todos, o
que exclui a possibilidade de conhecimento do modelo a partir do contato
com uma filosofia política. Aqui, nos limitaremos a uma construção hipotética
dessa capacidade, adaptada aos requisitos mínimos do acordo em uma cité.
Se nos mantivermos restritos à ordem da cité, essa capacidade, que
chamaremos, então, de senso moral, implica a integração de dois impera-
tivos fundamentais que servem de sustentação para esse ordenamento: um
imperativo de humanidade comum, supondo o reconhecimento e a identi-
ficação comum dos seres humanos com os quais o acordo deve ser feito; e
um imperativo de ordem, pressupondo a generalidade de um princípio de
grandeza a regrar as aproximações possíveis. Para chegarem ao acordo sobre
o que é justo, os humanos devem, então, ter conhecimento de um bem comum
e atuarem metafisicamente. Essa capacidade não é exigida das teorias redu-
cionistas (fundadas em um biologismo ou mesmo em um economicismo) ou
das behavioristas, nas quais as condutas são determinadas por forças externas
ou representam respostas mecânicas a estímulos. E ela também é ignorada no
culturalismo, uma vez que faz as pessoas agirem harmonicamente sem neces-
sidade de se estabelecer a harmonia, ao as dotar de um programa idêntico, o
que permite salvaguardar o postulado de não consciência, cuja importância
na maioria das tradições da sociologia e da antropologia relembramos no
início do livro. O acordo não pode resultar simplesmente de uma espécie de
negociação permanente entre os seres que não possuam a faculdade de agir
para além de si mesmos, que sejam incapazes de estabelecer equivalências
generalizáveis, como nas sociedades de babuínos, nas quais a ordem das
grandezas deve ser incessantemente reparada, o que faz Bruno Latour dizer
que as coletividades de símios realizam na prática a concepção de sociedade
humana proposta pela etnometodologia.
No entanto, a extensão de uma cité a um mundo tem como consequên-
cia o fato de a competência nisso exigida não se limitar a esse senso moral.
Para fazer um julgamento de maneira justa, é também necessário ser capaz de
reconhecer a natureza da situação e de colocar em prática o princípio de justiça
a ela correspondente. Para se comportar em situações naturais, reconhecer os
A a rt e d e v i v e r e m d i f e r e n t e s m u n d o s
vizinho. Tais coisas e outras semelhantes devem então ser avaliadas sempre que
se trata de cumprir uma obrigação, e delas convém adquirir o hábito e a prática
para que sejamos bons calculadores de deveres e, adicionando e subtraindo,
obtenhamos o montante do resto, com base no qual decidiremos quanto deve
tocar a cada um. (Cícero, 1962, I, XVIII, 59, p. 515)*
O fim concerne às virtudes morais, não por o estabelecerem elas, mas por
tenderem elas para o fim preestabelecido pela razão natural. E para isso são
auxiliadas pela prudência, que lhes prepara o caminho, dispondo os meios.
Donde se conclui que a prudência é mais nobre que as virtudes morais e as
move. Ao passo que a sindérese move a prudência, assim como o intelecto dos
princípios, a ciência. (São Tomás de Aquino, 1947, q. 47, art. 6, p. 40; ver ainda
o Apêndice II, de T.-H. Denan)**
* Conforme tradução de Angélica Chiapeta publicada pela editora Martins Fontes. (N. do T.)
** Conforme tradução de Alexandre Correia publicada pela editora Permanência. (N. do T.)
* Título da edição brasileira, da editora Harbra, com tradução de Jean Jacques Salim. (N.
do T.)
Há uma diferença fundamental entre competir nos negócios e competir nos espor-
tes. Em ambos os casos, a ideia é vencer, superar outra pessoa. Mas, nos negócios,
o jogo não se encerra; não há lideranças insuperáveis. Um concorrente sempre
está em tempo de alcançar o outro. (McCormack, 1985, p. 190)
* Aqui, o termo “jogo” é usado no duplo sentido do esporte e dos negócios. (N. do T.)
A a p r e s e n tação d o s m u n d o s
O m u n d o da i n s p i r ação
O mundo doméstico
O m u n d o da o p i n i ão
O mundo cívico
A forma das evidências aqui é a lei, na qual a expressão O texto legal (evidência)
Lei (a), Normas
da vontade geral se encontra depositada. A realidade é clara
legais, Estatutos.
uma vez que esteja conciliada com textos que possam ser
invocados e com normas legais suscetíveis de serem aplicadas:
“Os novos delegados [...] encontrarão aqui as informações
úteis sobre as normas legais aplicáveis em circunstâncias
semelhantes”.
A cité se esfacela quando se entrega ao particular.
É pequeno tudo aquilo que dilui, fragmenta ou restringe: A divisão
(decadência)
“O que seria da seção sindical se ela se limitasse a um nú-
Dividido, Minoritário,
mero restrito de associados?”. Assim, os laços domésticos Particular, Isolado,
Desligado (da base),
do corporativismo são constantemente denunciados porque
Individualismo,
dividem os trabalhadores: “As reivindicações corporativistas Desvio, Categorial,
Irregular, Arbitrário,
[...] não fazem senão contribuir para dividir ainda mais os
Anulado, Derrubado.
trabalhadores de diferentes categorias”. Para dar fim a esse
estado de divisão, é preciso “despedaçar a estrutura de ocu-
pações que fatiaria a classe trabalhadora”. Os seres, quando
não estão fortemente ligados uns aos outros por relações de
solidariedade, desencaminham-se e se deixam conduzir pelos
desvios. Eles se dissolvem na categoria ou, pior, no individua-
lismo: “A democracia não pode ser improvisada neste mundo
moldado pelo individualismo”. As pessoas, deixadas por si
sós, habitadas pelo apetite de poder pessoal, monopolizam
a palavra e, “experientes em orientar os participantes das
assembleias”, “encaminham as decisões por uma via pouco
conforme com o interesse de todos os outros”. Minoritários,
eles formam um núcleo limitado: “O risco é grande de se ver
formar uma hierarquia entre os militantes e se testemunhar
a criação de um núcleo limitado e que não poderá realmente
lançar mão das possibilidades disponíveis”. Eles estão, enfim,
isolados e desligados da base, e esse vácuo de fundamenta-
ção no geral lhes confere um caráter arbitrário e contrário
à regra (irregularidades) capaz de os conduzir à decadência
e à anulação (qualidades que caracterizam neste mundo o
maior infortúnio concebível): “Os assalariados que foram
derrubados das suas funções sindicais”; “as irregularidades
capazes de conduzir à anulação das eleições”.
O m u n d o m e r ca n t i l
O mundo industrial
A crítica
O c o n f l i to e n t r e o s m u n d o s
e a c o l o cação d o j u l g a m e n to e m qu e s tão
A r e v e l ação
As cau s a s d e d i s c ó r d i a e o t r a n s p o rt e d e g r a n d e z a s
a grandeza das pessoas, ao mostrar que essa avaliação leva em conta sua
capacidade de valorar objetos estranhos ao mundo sobre o qual versa a com-
provação, seja porque elas tenham transportado esses objetos com elas seja
porque eles tenham sido destacados por elas nas circunstâncias – acusação
de transporte de grandeza. Diz-se que as pessoas cujas grandezas foram in-
justamente sobrevalorizadas foram beneficiadas por um “privilégio”. Em uma
segunda possibilidade, inversamente, pode-se demonstrar que o infortúnio
de uma pessoa em outro mundo a seguiu para a situação de comprovação
contra sua vontade e afetou seu desempenho. Diz-se, nesse caso, que a pessoa
não enfrentou a avaliação em condições de justiça satisfatórias, porque ela
sofre de uma “desvantagem” – e se denunciará, desta vez, um transporte de
infortúnio.
Analisemos mais de perto a primeira figura de acusação. Contesta-se a
validade da comprovação porque os objetos a serem valorizados para com-
provar as grandezas são falhos ou estão ausentes. Como o mundo a respeito
do qual se dá a comprovação não está plenamente colocado em prática na
situação, as pessoas não dispõem dos meios de realmente apresentar suas
provas em conformidade com ele e de demonstrar aquilo de que são capa-
zes, na realidade. Essa comprovação enganosa diminui suas grandezas na
comparação com outras pessoas submetidas a um processo de comprovação
agenciado em condições satisfatórias. Consequentemente, é injusto torná-las
responsáveis por seu fracasso, e a comprovação, para que seja conclusiva,
deve ser renovada em condições válidas, isto é, na presença de objetos ade-
quados. Esse é o argumento apresentado quando se julga, por exemplo, que
uma alta taxa de abstenção não deva ser atribuída a uma falta de espírito
democrático dos cidadãos, e sim a uma falha na colocação em prática da
natureza cívica, o que não teria permitido a expressão democrática da so-
berania popular – por exemplo, se o acesso às zonas eleitorais for impedido
ou envolva um risco físico, se o segredo de voto não for respeitado, etc. Ou
ainda quando se demonstra que os maus resultados obtidos pelos quadros
executivos e os engenheiros de um país pobre não resultam de uma incapaci-
dade de agir racionalmente (da qual são acusados), mas do fato de eles serem
lançados em situações de comprovação industrial nas quais, por falha dos
objetos (material de baixa qualidade, falta de informação, etc.), a capacidade
de valorizar o mundo industrial não é realmente oferecida a eles.
Procuremos agora dar conta das acusações do segundo tipo. Para isso,
é necessário que detalhemos um pouco melhor as capacidades atribuídas
para ter a certeza de sua avaliação, ele não mencionou sua riqueza e o
avaliador não a levou em conta de nenhuma forma. Apenas seus conheci-
mentos teriam sido avaliados. A acusação deverá, para se manter, detectar a
presença de objetos de natureza mercantil, de sinais de riqueza (“coisinhas”
sem importância na lógica de uma avaliação escolar), e demonstrar que eles
foram valorizados pelo estudante para se fazer apreciado. E deverá também
mostrar que o avaliador não se manteve cego a esse transporte de grandeza
(sem o qual não teria seu julgamento afetado) e que ele se deixou distrair
pelos sinais de riqueza aos quais permaneceu atento, sugerindo-se que ele
não estava menos preocupado que o candidato com a presença de objetos
capazes de engrandecer a pessoa em um mundo mercantil. Se ele se ativesse
a seu trabalho na prova escolar, teria permanecido indiferente às vestimentas
caras (grandeza mercantil) e às maneiras elegantes (grandeza doméstica) do
candidato e as teria deixado de fora da avaliação como simples “coisinhas”
irrelevantes. Teria apreciado o valor do aluno com justeza, isto é, levando
em conta apenas suas qualidades no mundo industrial, do trabalho, da re-
gularidade, da competência, etc. A possibilidade de contestar a validade de
uma avaliação, de uma comprovação, tem, assim, a consequência de tornar
a justificação mais exigente e promover uma explicitação do sacrifício con-
sentido que, sem o aguilhão da crítica, poderia ser pressuposto tacitamente.
A crítica, assim, contribui para que os grandes fiquem sabendo que, a respeito
de sua própria grandeza, devem justificá-la para fazer face a acusações cujo
objetivo é desqualificar as comprovações nas quais se destacam.
Mas também é possível se opor ao validamento de uma comprovação
mostrando-se não os benefícios trazidos pelo transporte de grandeza para
os de maior grandeza (privilégios), mas as desvantagens para os de menor.
Estabelece-se, assim, que a comprovação não é pura naquilo em que é afe-
tada pelo infortúnio dos de pequena grandeza em outro mundo, e que esse
transporte de infortúnio tem como resultante a diminuição destes no mundo
corrente (deficiência). É essa figura que está em operação quando são invo-
cadas circunstâncias atenuantes e é declarado equitativo um julgamento que
leve em consideração uma desvantagem: por exemplo, uma funcionária chega
atrasada ao trabalho; a sanção que a atingiria é suspensa quando se toma
conhecimento de que ela cria sozinha uma criança doente. Dir-se-á que seu
superior hierárquico foi justo ou que ele se mostrou “humano” ao levar em
conta essas circunstâncias atenuantes. Mas, no decurso da disputa, essa ava-
liação pode, obviamente, ser contestada, e a indulgência do chefe justo pode
A c o n t rov é r s i a e a d e n ú n c i a
qualificando-as por meio dos termos utilizados para designar os seres mais
desafortunados – ou levar em conta sua grandeza, de modo que a situação,
dessa forma, seja revertida. É essa operação – segundo a qual se demonstra
que os autoapontados grandes não são senão pequenos do mundo em curso –,
correspondente à primeira etapa da revelação (a falsa grandeza oculta um
infortúnio), que chamaremos crítica. Ela é articulada por operadores como:
“Na verdade”, “na realidade”, “são apenas”, etc. A controvérsia, na qual
vários princípios de justiça incompatíveis podem concorrer entre si, comporta,
assim, a possibilidade de várias comprovações. Por exemplo, a disputa sobre
a “competitividade dos serviços públicos” pode ser apontada para dois tipos
de verificação, um de natureza cívica, outro de natureza mercantil. As partes
presentes discordam sobre o mundo no qual essa avaliação deve ser realiza-
da para ser legítima. Portanto, esse tipo de situação é necessariamente um
momento instável da disputa. Diante do caixa do supermercado, a referência
a um direito, para todos, de igual acesso aos bens pode apenas perverter
uma comprovação mercantil como roubo; na fila do guichê da agência dos
correios, a justiça do atendimento do serviço público não pode senão ser
corrompida se houver alguma referência ao poder de compra do usuário a
sugerir alguma prioridade. Com efeito, para resolver a situação controversa, é
preciso revertê-la na direção de uma comprovação única, seja revendo a situa-
ção para fazer com que ela se converta a outra natureza, o que é objetivado
pela crítica – por exemplo, o suposto “público” não é senão a justaposição
de clientes dotados de interesses, ou, simetricamente, o suposto “cliente” é,
na verdade, um cidadão com direito a um serviço público aberto a todos –,
seja afastando as coisas insignificantes sobre as quais a revelação se apoiaria,
a fim de assentar novamente a comprovação em seu mundo original. Assim,
esse desvelamento pode também servir para descartar os perturbadores ob-
jetos de natureza estranha e para restaurar as condições de um processo de
comprovação sobre o qual os julgamentos possam convergir.
O caráter mais ou menos explícito da crítica depende do nível da
disputa. Enquanto ela permanecer limitada, as denúncias podem não ser
completamente esclarecidas por referência a um princípio e se manifestarem.
Por exemplo, as manobras de desengajamento, como a ironia, a hipérbole
ou o eufemismo, que, por meio da inversão, do aumento ou da diminuição
exagerados das grandezas, lançam descrédito sobre o princípio de avaliação
operante no momento, abrem a possibilidade de uma referência a grande-
zas alternativas. Isso se aplica mesmo às “manifestações de humildade”
A m o n s t ru o s i da d e d o ag e n c i a m e n to c o m p o s to
Uma vez que a crítica seja sustentada pela presença de seres de um outro
mundo, a possibilidade de dela se lançar mão depende da maneira como a
situação foi agenciada. São particularmente adequadas as situações de dis-
túrbio, cujo agenciamento composto coloca à disposição das pessoas coisas
próprias de diferentes mundos suscetíveis de serem envolvidas na comprovação.
A ambiguidade dos conjuntos compostos suscita entre os participantes um
* Conforme tradução de Paulo César de Souza publicada pela editora Companhia das
Letras. (N. do T.)
fossem objetos pessoais não representa mais o interesse geral; a criança que
distribui buquês como objetos anônimos falta com respeito a seus avós. Para
construir essas quimeras – como dizem os biólogos para designar os seres
sintéticos criados em laboratório –, utilizaremos os inventários estabelecidos
para descrever cada mundo. Podemos, assim, reconstruir os relatos de cenas
compostas e medir a que ponto esses enunciados desconcertantes nos afastam
da evidente plenitude sentida diante da leitura dos quadros que nos condu-
ziram ao coração de cada um dos mundos.
Tomemos, por exemplo, as situações seguintes, a respeito das quais
concordaremos, intuitivamente, em haver algo de incongruente ou incômodo:
– O pai, para atrair a atenção dos filhos, faz, em casa, uma apresenta-
ção típica de branding, expondo positivamente sua capacidade de gerenciar
um objetivo;
– O secretário administrativo da seção sindical faz abruptamente uma
aparição na tribuna do congresso da entidade, onde toma a palavra pas-
sionalmente e liberta sua imaginação, fazendo jogos de palavras insólitos e,
finalmente, questionando a si mesmo;
– O operador de um equipamento oferece um presente ao perito que
veio a seu setor medir a capacidade de produção da máquina da qual é
responsável e lhe pede uma recomendação para seu filho, um profissional de
tecnologia da informação muito bem formado, mas desempregado.
Essas três pequenas cenas, compostas pela colagem de elementos extraí-
dos da descrição dos mundos, oferecem cada uma a imagem de uma situação
perturbadora, desconfortável para os atores, que nela não podem estar à
vontade. A primeira combina elementos emprestados ao mundo doméstico
(um pai e seus filhos), ao mundo da opinião (atrair a atenção, apresentar uma
boa imagem) e, finalmente, ao mundo industrial (capacidade para gerir um
objetivo). Por que ela é incômoda? Atrair a atenção ou garantir uma ação de
branding sobre si próprio não são o tipo de relação que um pai deva man-
ter com suas crianças. Em relação a seus filhos, ele deve preferencialmente
apresentar provas de autoridade e consideração (mundo doméstico), e não
se apresentar a eles como um ator diante de seu público. Atrair a atenção é
uma conduta que, no mundo doméstico, qualifica os de menor grandeza: as
crianças, quando são mal-educadas, chamam a atenção. Além disso, um pai
não fala em casa, em família, de seu trabalho e de suas habilidades profis-
sionais nos termos próprios também do mundo industrial, com a finalidade
de se engrandecer aos olhos de seus entes próximos (o que sugeriria que ele
O ag e n c i a m e n to da s s i t uaç õ e s e s táv e i s
A h u m a n i da d e d e u m j u l g a m e n to e qu i tat i vo
Agostinho, 1955, XIV, IX, 12, v. 16, p. 379 apud Aubenque, 1963, p. 73).*
Uma justiça de vários mundos pressupõe, então, o livre-arbítrio de pessoas,
capazes, sucessivamente, de fechar os olhos (para se dedicar ao que estão
fazendo nas situações nas quais estão imersas, resistir à distração e se engajar
nos processos de comprovação que essas situações lhes configuram) e de abrir
os olhos (para contestar a validade da comprovação e, escapando da ditadura
da situação, distinguir os seres próprios de outros mundos).
As pessoas incapazes de mergulhar na plenitude das situações não po-
dem nem permanecer paradas nem se engajar. As “coisinhas” sem importância
se tornam explícitas por si próprias sem que sejam destacados os objetos que
a comprovação deve valorar. Elas não podem deixá-las de lado. Sua vigilância
está sempre alerta e elas ignoram a maneira de lá estar sem denunciar o que
as rodeia. Estão impedidas de se realizar por meio da identificação com aque-
les momentos privilegiados nos quais cada um dos mundos, colocando em
ação a grandeza que lhe seja própria, se permite ser escrutinado por aqueles
que sabem mergulhar na cena e afastar de si qualquer outra preocupação
para estarem totalmente presentes no que fazem. Esse estado de vigilância
se manifesta especialmente quando as pessoas se encontram associadas a
um mundo no qual se sintam confortáveis mas que, por uma dada situação,
possa lhes trazer problemas. Esses “personagens”, considerados “completos
demais”, para os quais nada ocorre por acaso, ignoram as circunstâncias e
revelam, em qualquer situação, o resultado oculto das mesmas causas sub-
jacentes. Sua preocupação fixada em uma mesma natureza os absorve e os
torna consistentes com a imagem muitas vezes conferida aos seres humanos
pelas teorias da personalidade.
No entanto, a capacidade de saber o que é importante por meio da
comprovação da autenticidade das situações puras não é tudo. Para contestar
a validade da testagem e denunciar sua injustiça, as pessoas devem também
ser capazes de escapar à ditadura da situação para obter conhecimento por
meio de um juízo crítico, isto é, abrindo os olhos para outros mundos e para
os seres que garantam sua presença. Por meio desse descerramento, que traz
à luz o que não tinha até então sido objeto de atenção, as pessoas prudentes
podem se instaurar como juízes do que realmente importa e dizerem do que
é feita a realidade das coisas. Ao colocarem em operação sua capacidade de
* Conforme tradução de frei Agustino Belmonte publicada pela editora Paulus. (N. do T.)
puderam apagá-la de sua memória, devem assumir sua relação com realidades
diferentes e sua sucessiva adesão a verdades cujo caráter incompatível não
podem ignorar. A coerência entre condutas em mundos diferentes, que não se
impõe com o mesmo grau de exigência se as situações estiverem nitidamente
separadas, deverá ser gerida pela pessoa. Esta pode ser levada a denunciar ou
a relativizar, ela própria, seus comportamentos anteriores, que descreverá, en-
tão, no registro do artifício e do teatro, da comédia, do jogo – “Era necessário
jogar o jogo” –, daquilo que se faz para os outros, desempenhando um papel,
por oposição à autenticidade do momento presente. Os comportamentos pas-
sados, nos quais se estaria, apesar disso, engajado sem reservas, tornam-se,
com a passagem para outro mundo, estranhos a si mesmos e são mantidos
a distância no registro do cinismo. Isso é visto uma vez que se tenha que
passar, por exemplo, de uma situação cívica a uma situação doméstica, cuja
tensão é retraduzida em termos de uma oposição entre o artifício do “oficial”
e a realidade do “oficioso”, ou, em termos pascalianos, entre “grandezas de
estabelecimento” e “grandezas reais”. Essas revisões de realidade são parti-
cularmente desconfortáveis quando vários participantes tiverem que deslizar
ao mesmo tempo entre situações em mundos diferentes, com cada um deles
permanecendo, no período de transição, em dúvida sobre o estado de natu-
reza em que se encontram os outros. Esse é o caso, por exemplo, quando os
integrantes do quadro executivo de uma empresa têm que passar em conjunto
da reunião de gestão, na qual atuam entre si em nome da empresa, para a
reunião do sindicato, da qual tomam parte como assalariados explorados.
Os comportamentos extremamente ritualizados que podem ser observados
nesses momentos delicados destinam-se a produzir uma mudança de estado
que, para ser realizada simultaneamente por todos, requer uma coordenação
particularmente difícil de assegurar (como pode ser visto naquelas reuniões
que não avançam porque alguns dos participantes não estão concentrados
no que fazem, ficam brincando e se mantendo sempre na situação anterior).
De fato, é suficiente que um único membro esteja em outro lugar, que se
mostre ausente ou se manifeste de forma expressiva a ponto de escapar da
ditadura da situação, para que esta perca sua estabilidade.
Levar em conta vários mundos permite detalhar o imperativo de justifi-
cação. As pessoas não estariam a ele sujeitas se não fossem defrontadas com
a crítica. A possibilidade de se retirar da situação presente e de a denunciar
com base em um princípio externo e, consequentemente, na pluralidade de
mundos, constitui, assim, a condição de uma ação justificada. Mas, pelas
O qua d ro da s c r í t i ca s
C r í t i ca s a pa rt i r d o m u n d o da i n s p i r ação *
C r í t i ca s a pa rt i r d o m u n d o d o m é s t i c o
Não fazer uma cena. Mas, dada a ambiguidade da oposição entre “público”
e “privado”, é por vezes difícil distinguir, nos agenciamentos
domésticos, as críticas direcionadas ao mundo cívico e aque-
las destinadas ao mundo da opinião. Assim, por exemplo,
o preceito doméstico segundo o qual “as controvérsias não
devem ser evocadas em público” pode apontar tanto para um
quanto para outro desses mundos sem que fique demarcada
a distinção entre essas duas formas de romper a oposição
doméstica entre interior e exterior, do espaço dividido em
territórios separados, em “domínios”, em casasd (“casas de
comércio”), e de extensão homogênea. No primeiro caso, a
designação de públicoc comportará a referência ao Estado –
como quando se resolve uma controvérsia definida como
“familiar”, “privada” ou “interna” recorrendo-se ao Sistema
Judiciário e a um processo, no qual o desacordo é tornado
público. No segundo caso, públicoo apontará centralmente
para os espectadores, e se criticará o fato de se fazer notar
(“É suficiente evitar ser notado”) – marca do abandono do
controle – ou, evocando-se de forma ainda mais clara a ana-
logia com o teatro, como é frequente nas denúncias contra a
opinião, de se fazer uma cena – como quando os cônjugesd
discutem em público e dão um show de seu desacordo. Em
A discrição das um espaço dividido em casas, territórios, domínios, e orga-
pessoas de confiança
nizado pela oposição entre interior e exterior, aquele que se
expõe fazendo uma cena corre, consequentemente, o risco de
ainda prejudicar os seus, traindo seus segredosd. A prudência
das pessoas importantes as incita a desconfiard. Por sua vez,
os de pequena grandeza (em uma configuração tradicional,
patriarcal, com mulheres, crianças, subordinados), menos
responsáveis, são inclinados a se fazer notar, a falar alto,
de forma ostentatória, para atrair a atenção, sem desconfiar
dos vizinhosd, o que os leva a trair segredos (especialmente
em jantares de negóciosd-u). A discrição e a reservad, atribu-
tos da grandeza doméstica que se opõem ao caráter osten-
tatoriamente pretensioso do arrivistao-d, são, elas próprias,
criticadas, a partir do mundo da opinião, como marcas de
falta de ambição. Caracterizam aquilo que, apagado, objetiva
permanecer nas sombras.
C r í t i ca s a pa rt i r d o m u n d o da o p i n i ão
C r í t i ca s a pa rt i r d o m u n d o c í v i c o
C r í t i ca s a pa rt i r d o m u n d o m e r ca n t i l
C r í t i ca s a pa rt i r d o m u n d o i n d u s t r i a l
O apaziguamento da crítica
Os c o m p ro m i s s o s e m n o m e d o b e m c o m u m
O c o m p ro m i s s o c o m o f o r m a d e e v i ta r
o u s u p e r a r a c o m p rovação
A f r ag i l i da d e d o c o m p ro m i s s o
çar a polêmica sobre a natureza dos objetos que importa levar em conta para
promover uma comprovação conclusiva. Apoiando-se em um dos mundos
presentes, pode-se acusar o caráter problemático e de distração dos seres de
outra natureza e promover a purificação da comprovação, denunciando-se o
compromisso como algo comprometedor.
Uma maneira de solidificar o compromisso é colocar a serviço do bem
comum objetos compostos por elementos pertencentes a diferentes mundos
e os dotar de uma identidade própria, de modo que sua forma não seja
mais reconhecível se forem subtraídos um ou outro dos elementos de origem
diferente daquela em que são constituídos. Essa transformação torna o com-
promisso mais resistente à crítica, porque ele, a partir daí, pode se apoiar em
objetos inquebráveis. Assim, na situação composta evocada anteriormente, de
um “serviço público competitivo”, o compromisso entre os princípios superio-
res comuns cívico (o serviço público) e mercantil (competitividade) pode ser
sustentado. A referência a seres e objetos de compromisso dá corpo à possi-
bilidade de se superar a oposição entre esses dois princípios: a identidade do
“usuário” abarca a contradição entre o “cidadão” e o “cliente”; o instrumento
chamado “caixa de sugestões”, disponível para o usuário, absorve a tensão entre
uma “lista de reivindicações” e um “livro de reclamações”. A multiplicação e a
estabilização desses objetos constituem o esboço de um novo mundo. Por exem-
plo, o agenciamento de um dispositivo como o Conselho Econômico, Social e
Ambiental,* órgão francês estatal, mas consultivo, formado por patrões, sin-
dicatos e entidades de classe, e que combina, com vistas a um bem comum,
uma preocupação industrial com uma forma cívica, enraíza o compromisso
no mundo das coisas. As pessoas podem, então, se apoiar sobre esse compro-
misso de Estado, associado a um regime político e legalizado por sua inscrição
no direito público, para propor ou defender outros compromissos similares.
No discurso de um presidente de empresa, por exemplo, um compromisso
cívico-industrial – “O aumento da produtividade é a goma-arábica da soli-
dariedade entre todos” – será mais facilmente aceito que um compromisso
doméstico-industrial – “Em nossa grande família, é uma tradição aumentar
a produtividade” – ou que um compromisso inspirado-industrial – “Eu tive
um sonho: um espírito entrava em vocês e a produtividade aumentava”.
Uma vez que um compromisso é estabelecido, ele pode por sua vez servir
como ponto de apoio para a crítica. Estamos, então, diante de uma figura
mais complexa, visto que ela faz intervirem mais de dois mundos e que a
crítica é estabelecida por referência a uma fórmula, ela própria resultante da
composição entre duas naturezas estranhas uma à outra. Mas a crítica não
pode nesse caso jamais ser completamente esclarecida, porque não é possível
se chegar a um princípio superior comum.
Assim, por exemplo, o tema do “gênio não reconhecido” (que aparece
no livro que usamos para analisar o mundo inspirado) apresenta-se à pri-
meira vista como uma crítica direcionada ao mundo da opinião a partir do
mundo da inspiração: o gênio, grande ser inspirado, é injustamente tratado
como um ser pequeno no universo da opinião (onde é desafortunado por ser
desconhecido). Mas essa crítica é inconsistente: se o renome é sem valor na
natureza inspirada e se uma das qualidades do autêntico gênio é precisamen-
te a indiferença à “vanglória”, então só se pode saudar a obscuridade com
que ele está cercado. Para abrir espaço para essa fórmula em nosso quadro
de análise, é preciso tomá-la como um exemplo de figura mais complexa,
na qual a crítica se sustenta em um compromisso já pavimentado entre a
inspiração e o renome. Esse compromisso identifica essas duas grandezas em
um mesmo bem comum. Elas são tratadas como equivalentes, pois se pode
igualmente denunciar o fato de os gênios não serem conhecidos ou o de as
pessoas conhecidas não serem gênios (o tema da “celebridade imerecida”).
Ainda assim, a indeterminação do bem comum não permite ir muito adiante
na controvérsia: se se empenha muito intensamente em desmascarar charla-
tães cuja fama é imerecida e em renunciar perante a opinião pública, nos
meios de comunicação, o sucesso de grande público obtido pelos criadores
medíocres, o gênio não reconhecido capturado como a contragosto sob a luz
dos holofotes pode, por sua vez, ser acusado de estar em busca de fama (ou de
ser amargurado por não a ter alcançado), o que desacredita a autenticidade
de sua paixão e o diminui no mundo inspirado.
Esse exemplo pode ser comparado ao do “paradoxo do panfletário” de
que fala Jean Starobinski sobre Rousseau:
A c o m p o s i ção d o s c o m p ro m i s s o s e a f o r m ação d e c i t é s
A e l a b o r ação d e u m c o m p ro m i s s o d e E s ta d o :
ru m o a u m a c i t é c í v i c o - i n d u s t r i a l
* O termo altruísmo, aqui, está especialmente circunscrito do ponto de vista teórico, não
representando simplesmente a acepção de senso comum de um desprendimento em relação
aos interesses com vistas ao bem do outro, mas o sentido original do pensamento de
Auguste Comte, que, no Catecismo positivista, cunha a palavra, propondo um altruisme,
um alter-ismo (ou outro-ismo), uma atitude de preocupação com o outro que, como
todos os comportamentos sociais morais, deve ser incentivada pela socialização – e,
portanto, pelos imperativos de pertencimento – em todos os indivíduos. (N. do T.)
** La science positive de la morale en Allemagne. Revue Philosophique, 1887. Republicado
em Durkheim, 1975, v. 1, p. 271-274 [“A ciência positiva da moral na Alemanha”, pu-
blicado no Brasil como Ética e sociologia da moral, pela editora Landy, com tradução
de Paulo Castanheira, edição usada para o cotejamento das citações]. Na sequência do
texto, esse artigo será designado pelas iniciais SP. As outras obras citadas mais de uma
vez serão designadas pelas seguintes iniciais: LS para O socialismo [citado em português
a partir do cotejo com a edição da editora Edipro, tradução de Sandra Guimarães];
MR, para Montesquieu e Rousseau [também a partir do cotejo com a edição da editora
Madras, tradução de Julia Vidili]; DT para Da divisão do trabalho social [cotejado com
a edição da editora Martins Fontes, tradução de Eduardo Brandão]; e LE para Lições
de sociologia [cotejado com a edição da Edipro, tradução de Cláudia Schilling].
se não houvesse entre eles algum vínculo de filiação. De fato, a corporação foi,
em certo sentido, herdeira da família. [...] Ela substituiu a família no exercício
de uma função que de início fora doméstica, mas que já não podia conservar
esse caráter. (Durkheim, 1960a, DT, p. XIII-XIV, XX)
* Lei aprovada em junho de 1791 nos Estados Gerais, proposta pelo deputado Isaac Le
Chapelier, e que determinava o banimento das organizações de trabalhadores e dos
sindicatos e a extinção das corporações de ofício. (N. do T.)
** Aqui, usado em sentido estrito, isto é, referindo-se às várias doutrinas corporativistas,
que consideram que os grupos profissionais são os agregados fundamentais da vida
social e fundamentam uma visão política a esse respeito. A palavra costuma ser usada
em sentido lato para indicar o favorecimento – em geral, tratado como corrupção – de
integrantes de uma categoria profissional ou funcional por seus pares contra outras,
sentido não aplicado aqui. (N. do T.)
Figuras d o c o m p ro m i s s o
C o m p ro m i s s o s e n vo lv e n d o o m u n d o
da i n s p i r ação
C o m p ro m i s s o s e n vo lv e n d o o m u n d o
doméstico
C o m p ro m i s s o s e n vo lv e n d o o m u n d o da
o p i n i ão
Basta ver as notícias com cuidado por um mês para ser con-
vencido: os acontecimentos que mobilizam a opinião pública
de um país por vários dias são, do dia para a noite, completa-
mente esquecidos, uma vez que desapareçam dos jornais. Ora,
se o jornalista não retornar ao assunto, é porque ele acredita
que o público não esteja mais aberto a ele, que ele “já não o
quer mais” e que outras informações são mais importantes.
C o m p ro m i s s o s e n vo lv e n d o o m u n d o c í v i c o
* Enquanto a atual École Centrale Paris, antiga École Centrale des Arts
et Manufactures, uma das mais tradicionais unidades de formação
tecnológica do mundo, tem um desenho destinado aos cursos genera-
listas de engenharia e forma profissionais que em geral vão para as
indústrias para atuarem diretamente em atividades mais técnicas, a
École Polytechnique, fundada ainda antes, mas direcionada em parte
ao ensino militar por Napoleão I, tem uma longa tradição de gerar
quadros para o Estado, com uma formação mais elitizada e voltada
para o planejamento estratégico. (N. do T.)
C o m p ro m i s s o s e n vo lv e n d o o m u n d o
m e r ca n t i l
A r e l at i v i z ação
Os a r r a n j o s pa rt i c u l a r e s
convenção explícita, não pode ser justificado publicamente e pode ser co-
locado em questão a qualquer momento; por exemplo, se for denunciado
como favoritismo injustificável por outros funcionários do órgão ou pelos
superiores hierárquicos. A supressão do privilégio do qual se beneficiam de
forma pessoal os funcionários envolvidos no arranjo não acarreta reclamações
públicas, e os interessados não dão vazão a seu descontentamento senão na
forma de resmungos e fofocas. Por outro lado, se é excluída uma bonificação
por graduação, afetando-os em seu pertencimento a uma categoria definida por
uma convenção coletiva, isso os direciona imediatamente para uma greve.
É muitas vezes a esse tipo de arranjo que nos referimos quando dizemos
que um relacionamento, uma situação, um acordo são “privados” ou quando
falamos, a partir deles, em uma modalidade como a “combinação”. O ter-
mo “privado”, em seu uso comum, tem significados variados. Ele pode ser
usado para descrever o que é próprio dos mundos doméstico ou mercantil
por oposição a outros mundos, do mundo cívico (o respeito às vidas priva-
das dos cidadãos) ou ainda do mundo da opinião (a vida privada de uma
celebridade). Mas serve também para tomar os arranjos entre pessoas e os
opor aos dispositivos, cujo caráter justificável possa ser tornado explícito por
meio da referência ao princípio que os sustenta. É essa acepção que levamos
em consideração aqui. É “privado” (ou “privativo”), nesse sentido, aquilo
que, ignorando o bem comum para levar em conta apenas o benefício das
partes envolvidas, não tem no horizonte uma justificação. Podemos dizer, por
exemplo, de uma combinação que ela tem um caráter privado, no sentido de
que não é justificável em referência a uma cité. Esses dois significados são
muitas vezes confundidos, principalmente quando o termo “privado” é usado
para descrever situações entre amigos ou mesmo familiares. Mas é necessá-
rio separá-los a fim de explicitar o mundo doméstico em sua generalidade
e de distinguir os dispositivos domésticos que se apresentam de uma forma
justificável, como, por exemplo, as reuniões de família por ocasião de um
casamento ou de um falecimento, situações a reunirem pessoas dispostas a
fazer arranjos entre si, afastando o imperativo de ter que justificar seu acordo
em um círculo mais amplo.
Assim, estar “entre nós” é suspender a mirada para o bem comum e
estabelecer relações não mais sustentadas por uma exigência de justiça e não ge-
neralizáveis: “Cá entre nós, vou te dizer...”. Entre nós, tudo se pode dizer, nos
entendemos. São precisamente esse afastamento dos outros e, eventualmente,
o segredo que contribuem para moldar a combinação, de cujos membros se
A i n s i n uação
E s ca pa r à j u s t i f i cação
* Ver posfácio.
O r e l at i v i s m o
regredir para o amor de si, para uma autossatisfação não mais preocupada
em estabelecer um acordo com os outros. Para assentar sobre a relativização
uma posição mais estável e com isso passar ao relativismo – como atitude
proclamada diante da vida –, é preciso, então, dar um passo adiante e,
colocando entre parênteses os imperativos da cité, adotar uma posição de
exterioridade a partir da qual o andamento do mundo possa estar subordi-
nado a um equivalente geral que não seja um bem comum. Esse equivalente
generalizado é, hoje em dia, muito recorrentemente denominado força, poder,
interesse ou potência, e tratado como se fosse naturalmente atrelado a todos
os seres. Dessa maneira, todos os seres se encontram confundidos em um
mesmo cosmos, o que tende a abolir a distinção entre os diferentes registros
de justificação e mesmo entre os seres humanos e os seres não humanos. As
grandezas próprias de cada um dos mundos aqui analisados podem com isso
ser tratadas por esse relativismo como uma manifestação disfarçada de uma
força primordial.1
O relativismo, portanto, distingue-se da relativização por sua capacidade
de denunciar o bem comum a partir de um ponto de vista geral. Mas ele não
reconduz com isso a situação para a denúncia. Em vez disso, toma aquilo
que importa na situação e o diminui, mas sem, para isso, se basear em um
princípio alternativo: os ricos fazem negócios porque amam o dinheiro da
mesma maneira que os magistrados ou ocupantes de cargos eletivos – ambos
de grandezas grandes em uma cité democrática – administram pelo gosto do
poder. Trata-se da mesma vontade de poder como vontade de não ter limi-
tes, que se realiza na paixão do lucro, no desejo de dominação, na força do
caráter, no desinteresse inspirado tratado como o interesse de estabelecer
uma contrapartida para atar uma ligação, na obscura teimosia do instinto,
na cega obstinação do inconsciente, todos forças indefinidas, reconvertíveis,
traduzíveis umas nas outras, e cuja impulsão sem freio é limitada apenas pelo
obstáculo representado por uma força superior. Assim, enquanto na denúncia
a contestação da validade de um princípio é feita sustentando-se em outro
princípio, que é, ao mesmo tempo, trazido à luz, o relativismo crítico permi-
te promover uma denúncia sem se esclarecer a posição a partir da qual ela
é colocada, porque ele toma como alvo não uma forma particular de bem
comum, mas a própria possibilidade de existência de um. Nessa leitura, por
exemplo, o interesse conduz o mundo e, com isso, cada um, dominado por
forças que nele habitam, “olha o seu lado”. E essa redução aos interesses é
* Conforme edição de A vontade de poder publicada pela editora Contraponto, com tra-
dução de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. (N. do T.)
Violência e j u s t i f i cação
Rumo a u m a p r ag m át i ca da r e f l e x ão
O l u g a r da j u s t i f i cação na g a m a da s aç õ e s
A qu é m d o j u l g a m e n to :
o i n c o n v e n i e n t e e o r e to r n o à ação qu e c o n v é m
Da cólera à crise
O m o m e n to da v e r da d e d o j u l g a m e n to
A t e n s ão d o j u l g a m e n to e a qua l i f i cação
da s p e s s oa s i n e s c ru táv e i s
O j u l g a m e n to , e n t r e p o d e r e e s qu e c i m e n to
A f o r m a h u m a na d e o p e r a r o j u l g a m e n to
e a to l e r â n c i a na ação
como uma falha e impede que suas consequências sobre os outros sejam
reparadas por correções. Do ponto de vista da moral, em comparação com
a figura do perdão, essa tolerância pragmática é compreendida no domínio
da paciência. Ao retardar o momento da comprovação, ela afasta a vontade de
conhecimento que impele à investigação e conduz ao julgamento.
A tolerância permite compreender a posição na qual os atores suportam
o peso da correção isoladamente, sem o revelar por meio de um comentário
ou de uma desculpa. Somente quando se revivem as atividades de acumu-
lação é que se desliza rumo a uma interrogação sobre as capacidades das
pessoas – “Isso não pode continuar. Ele é um incapaz” –, questionamento que
permanece inicialmente privado. E apenas quando se perde a paciência diante
de uma sucessão de incidentes experimentados em série é que se aproximam
as falhas de outras falhas anteriores.
O modelo de ação segundo o qual nos orientamos, que aproxima os
requisitos da pragmática e da ética, permite evitar uma redução da ética à
questão do julgamento, ao prestar atenção à maneira como as pessoas tratam
a tensão entre a exigência de um julgamento fundamentado, que absorverá
as pessoas nos estados-pessoa, e as exigências das pessoas de que lhes seja
deixado aberto seu campo de ação. Uma ação humana que renuncie ao pro-
cesso de comprovação e pretenda dispensar o julgamento pode ser conside-
rada utópica, mas um curso de ação perenemente controlado e generalizado
sob a forma da comprovação é propriamente inumano. Uma pragmática da
reflexão deverá dar conta da passagem entre momentos de engajamento na
ação e de suspensão da reflexão – que se manifesta na tolerância ou nas
acomodações localizadas e que pode chegar até o esquecimento característico
do perdão – e momentos de retorno da ação sobre si mesma, na crise, e de
fixação da realidade, no relato formal.
O c o n h e c i m e n to da ação
são indistinguíveis, uma vez que as pessoas estejam todas sob uma mesma
configuração, pois, nesse caso, a questão de se saber em que configuração se
encontram é indecifrável. Por outro lado, eles se tornam explícitos e oferecem
oportunidade para a análise quando os atores se encontram em diferentes
disposições. O afastamento entre as condutas daqueles que estejam preocu-
pados com uma investigação e a atitude daqueles que a rejeitam permite
localizar exatamente o trabalho de esquecimento e analisar as operações a
ele necessárias para se furtar ao processo de comprovação ou para apagar
os vestígios do julgamento.
O tratamento adotado permite escapar de uma alternativa clássica nas
ciências humanas, estendendo-se a análise sobre a justificação a uma discussão
mais geral sobre a relação entre reflexão e ação. Nessa alternativa clássica,
as abordagens que se interessam pelos comportamentos humanos apenas na
medida em que se reduzam a decisões da razão – tratadas como o único
objeto a permitir o acesso à verdade – se colocam de forma oposta àquelas
que, associando uma reflexão a uma racionalização ilusória, atribuem a si
como projeto um acesso direto à realidade das práticas, cujas razões seriam
desconhecidas pelos agentes. Para superar essa oposição, é preciso, assim,
extraí-la do espaço das querelas doutrinárias, no qual se opõem antropologias
incompatíveis, e passar a compreendê-la no decurso das atividades humanas,
nas quais está em operação. Com efeito, as pessoas devem, para fazer face
ao mundo, empreender um contínuo vai e vem entre reflexão e ação, pivo-
tando incessantemente entre momentos de domínio consciente e momentos
nos quais o apelo do presente as conduz no percurso das coisas. O estudo da
faculdade de julgamento e da estrutura dos julgamentos bem fundamentados
é certamente indispensável para a análise do senso do justo. Mas ele não
o esgota, pois deixa escapar a tensão que paira sobre esse sentido do justo
quando este é colocado em prática. Para prosseguir em sua exploração, é
preciso, assim, persegui-lo nas operações que formam o tecido da vida coti-
diana. A elaboração de um modelo dinâmico deverá permitir compreender as
sequências que até este ponto escaparam à análise, visto que as rupturas por
elas implicadas conferem uma aparência caótica à caminhada das pessoas, da
reparação à crise, da tolerância à disputa, do julgamento ao esquecimento.
15 de janeiro de 1991.
2. A f u n da m e n tação d o ac o r d o na f i l o s o f i a p o l í t i ca : o
e x e m p l o da c i t é m e r ca n t i l
1. Para qualificar as virtudes que atribui aos sistemas, Smith usa termos
que exprimem tanto sua capacidade de articulação, seu desempenho equipa-
rável ao das máquinas, quanto a graça que resultaria de sua adequação a um
propósito determinado. “Os sistemas, em muitos aspectos, se assemelham a
máquinas. [...] Um sistema é uma máquina imaginária, inventada para interli-
gar, na imaginação, os vários diferentes movimentos e efeitos que na realidade
já são realizados” (Astronomy, IV, 19 apud Smith, 1982). “Que a capacidade
de qualquer sistema ou de qualquer máquina para produzir a finalidade para
a qual foram planejados confere certa conveniência e propriedade ao todo e
torna agradável tão somente imaginá-lo ou contemplá-lo, é algo tão óbvio
que ninguém jamais deixou de notar” (Smith, 1860, p. 205).
2. Para uma análise dos conceitos de “simpatia” e de “espectador im-
parcial”, iluminando a relação entre os Sentimentos morais... e A riqueza...
e enfatizando o papel da simpatia como “autorregulador da harmonia so-
cial”, ver Dupuy (1987).
3. O r d e n s p o l í t i ca s e u m m o d e l o d e j u s t i ça
4. A s f o r m a s p o l í t i ca s da g r a n d e z a
1. A escrita de A Cidade de Deus pode ser situada entre 410 e 420. Ela
sucede à do Comentário ao Gênesis, escrito entre 400 e 410. E é aproxima-
damente contemporânea dos escritos sobre a graça, publicados por ocasião
da controvérsia com Pelágio. Ver Marrou, 1957, p. 48.
2. A grandeza doméstica, denunciada por enfatizar a dissociação em
relação à graça, torna-se objeto de um compromisso quando Santo Agosti-
nho se propõe a justificar o escravismo – “A escravidão, fruto do pecado”
(Santo Agostinho, 1959, CD, 37, 121-126) –, o que não pode ser tratado
no quadro do modelo da Cidade de Deus. Após ter reconduzido os escravos
à humanidade comum ao observar que Isaac, prescrevendo a circuncisão
“a todos, não só aos filhos, mas também aos escravos, nascidos em casa ou
comprados”, “atesta que essa graça pertence a todos” (CD, 36, 277), Santo
Agostinho estabelece, no livro XIX, um compromisso entre essa grandeza da
inspiração e a grandeza doméstica: “Por isso, os nossos santos patriarcas,
embora tivessem servos, administravam a paz doméstica de forma a distin-
guirem, quanto aos bens temporais, a sorte de seus filhos, da condição de
servos; mas, para o culto a prestar a Deus, em quem assentam a esperança
dos bens eternos, prestavam a todos os membros de sua casa todo o cuidado
com igual amor. Isso está tanto de acordo com a ordem natural, que o nome
de paterfamilias (pai de família) surgiu daí e vulgarizou-se tanto que até os
Senhores iníquos gostavam que lhes dessem esse nome” (CD, 37, 125).
3. O sacrifício do corpo inspirado torna-se objeto de um compromisso
doméstico na instituição de mecenato e no culto das relíquias do santo pa-
droeiro local de uma cidade ou comunidade. Ver Chiavaro, 1987.
4. Vico, para dar conta de um estado da sociedade anterior às constru-
ções dos jurisconsultos, que “supõem primeiramente um estado de civilização
no qual os homens estariam já esclarecidos por uma razão desenvolvida”, des-
creve duas outras maneiras de se conceber uma relação entre os homens, que
relaciona às “idades” da humanidade. A segunda, correspondente à “idade
heroica”, compreende os elementos daquilo que designaremos mais adiante
como cité doméstica. A primeira traz muitas características que atribuímos
à grandeza inspirada. Associada à idade divina, ela é sustentada por aquilo
que o pensador chama de “metafísica poética, na qual os poetas teólogos
tomavam a maioria das coisas materiais por seres divinos”, atribuindo a
essas coisas “sentimentos e paixões” (Vico, 1963, p. 124-126). E ele descreve
* Conforme tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva publicada
pela Editora Abril (Coleção Os Pensadores). (N. do T.)
** Conforme tradução de Cristina Murachco publicada pela editora Martins Fontes. (N. do T.)
5. O j u l g a m e n to s u b m e t i d o à c o m p rovação
7. O c o n f l i to e n t r e o s m u n d o s e a c o l o cação d e
j u l g a m e n to e m qu e s tão
9. O s c o m p ro m i s s o s e m n o m e d o b e m c o m u m
anões, seus loucos e seus bajuladores; mas invejo sua felicidade de terem a
seu serviço pessoas a ele iguais pelo coração e pelo espírito, e que por vezes
lhe são superiores” (La Bruyère, 1982, p. 226).
2. La Bruyère esboça a resposta em numerosas passagens dos Caractères
que se abrem para outras grandezas, com particular ênfase na capacidade e na
competência. Por exemplo, no aforismo 19 do mesmo capítulo: “Os grandes
se creem os únicos perfeitos, admitirão apenas a muito custo nos outros ho-
mens a retidão de espírito, a habilidade, a delicadeza e se apossarão de seus
ricos talentos como coisas devidas por nascimento. Há neles, no entanto, um
engano grosseiro em se alimentarem de tão falsos preconceitos: aquilo que
há de melhor em pensamento, em melhores palavras, em melhores escritos,
e talvez em conduta mais delicada, nem sempre nos vêm de seu meio” (La
Bruyère, 1982, p. 229). Sobre a crise de legitimidade, especialmente no dis-
curso de Pascal sobre a condição de grande, ver Marin (1981, p. 263-290),
especialmente o capítulo final, “L’usurpateur légitime ou le naufragé roi”
[“O legítimo usurpador ou o rei náufrago”].
3. Eis o que pode ser lido nesse artigo, em grande parte dedicado à críti-
ca ao utilitarismo: “Para a Escola de Manchester, a economia política consiste
na satisfação das necessidades do indivíduo e, especialmente, de suas neces-
sidades materiais. O indivíduo se torna, assim, nessa concepção, o fim único
das relações econômicas; é por meio dele e também para ele que tudo é feito;
quanto à sociedade, é um ser de pensamento, uma entidade metafísica que
o cientista pode e deve ignorar. Aquilo a que se refere por meio desse nome
não é senão a colocação em relação de todas as atividades individuais; é um
composto, no qual não há nada mais que a soma das suas partes”. A socie-
dade, diz ainda Durkheim no mesmo texto, “é um verdadeiro ser”; tem “sua
própria natureza e sua personalidade. Essas expressões da linguagem corrente,
a consciência social, o espírito coletivo, o corpo da nação, não têm um mero
valor verbal, e sim expressam fatos eminentemente concretos. É errado dizer
que o todo é igual à soma de suas partes”. O ser social “tem propriedades
especiais” e pode, até mesmo, “sob certas condições, tomar consciência de
si”. A sociedade “não se reduz à massa confusa dos cidadãos”, e o “orga-
nismo social” não é redutível a uma “coleção de indivíduos”. A totalidade à
qual Durkheim se refere quando fala da “sociedade” é retraçada aqui a uma
“nação”, um “país” ou “Estado”: “Em outras palavras, as grandes leis eco-
nômicas seriam exatamente as mesmas, ainda que não tivesse havido nunca
no mundo nem nações, nem Estados; elas supõem simplesmente a copresença
de indivíduos, que trocam seus produtos” (Durkheim, 1975, SP, p. 271-275).
* Conforme tradução de J. M. de Toledo Camargo publicada pela editora Forense. (N. do T.)
para reconstituí-las em novas bases. [...] Para que uma moral e um direito
profissionais possam se estabelecer nas diferentes profissões econômicas,
é necessário, pois, que a corporação, em vez de permanecer um agregado
confuso e sem unidade, se torne, ou antes, volte a ser, um grupo definido,
organizado, numa palavra, uma instituição pública” (Durkheim, 1960a, DT,
p. VI, VIII, grifo no original).
17. “Costuma-se crer que exista na consanguinidade uma causa excep-
cionalmente poderosa de aproximação moral. Mas tivemos a oportunidade
de mostrar que ela não tem, em absoluto, a extraordinária eficácia que se
lhe atribui. A prova está em que, num sem-número de sociedades, os não
consanguíneos são muitos no seio da família. [...] Inversamente, acontece,
com grande frequência, consanguíneos bem próximos serem, moral ou juri-
dicamente, estranhos uns aos outros; é, por exemplo, o caso dos cognatos
na família romana. Portanto, a família não deve suas virtudes à unidade de
descendência: ela é, simplesmente, um grupo de indivíduos que foram apro-
ximados uns dos outros, no seio da sociedade política, por uma comunidade
mais particularmente estreita de ideias, sentimentos e interesses” (Durkheim,
1960a, DT, p. VXII).
11. A r e l at i v i z ação
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abarcar (os outros), 168, 248, 271, 283, associação, 212, 213, 307, 367-368,
306, 318, 327. 423.
ação, 98-100, 163, 230, 254-255, 334, assuntos/negócios (ater-se a seus), 242,
394, 493-506. 242, 352.
acordo, 114, 115, 120, 156, 168, 170, atrelamento/associação (dos estados de
231, 334, 343, 344, 417, 466, 480, grandeza às pessoas), 166, 232, 357-
494, 496. 358, 501-502.
administração, 223, 344, 399-400, 407, autenticidade, 208, 216, 351, 355, 357,
471-472, 476. 362, 389.
altruísmo, 415-421. autodidata, 261, 370, 452, 453.
ambíguo/polissêmico (ser), 346-349, autoridade, 185, 189, 283, 300, 408,
380, 408-410. 426, 449, 452, 516.
autossatisfação, 343-344, 482.
amizade, 279, 281, 320, 406.
bem comum, 94, 114, 162, 164, 167-
amor de si, 177, 202.
168, 177, 314, 316, 338, 343, 406,
anedota/história/narrativa, 192, 235,
407, 409, 413, 416, 472, 476, 477,
288, 347.
478, 482, 483, 485, 486, 501.
animal doméstico, 134, 148, 184, 243,
bem mercantil, 110, 113, 128, 130, 133,
279, 285, 314, 368, 370.
135, 137, 138, 150, 309-321, 390,
anomia, 416, 516, 518.
392-393, 400.
Antigo Regime, 206-207, 385, 446.
benefício/bem-estar, 167, 167, 268, 343,
antropologia, 251, 390, 447.
353.
apontar (um ser pertinente), 250, 252, benevolência, 137, 140, 145, 447.
255, 337, 338, 344, 346. biológico, 172-173, 213, 251.
aproximação, 81-85, 116-118, 120, 145, burocracia, 387-388, 390, 396, 397,
165, 231, 239, 251-252, 478, 479, 429, 464.
481, 502. campo, 80, 90, 99-100, 260.
argumento, 94, 155-159, 230, 336, 414, caos, 231, 238, 249, 250, 252, 319, 416,
493, 498. 485, 497.
arranjo, 116, 231, 406, 476-478, 480. capital, 173, 386, 387.
arte de viver, 254-266. caridade, 134, 177.
artista, 182, 269, 270, 401. casa, 163, 173, 180, 184, 278, 280, 282,
ascetismo, 179-180, 183. 286, 287, 368.
caso [affaire], 90, 378, 380, 381-385, comprovação, 97, 117, 122, 126, 165,
432, 457. 213, 230, 232, 234, 236-242, 268,
causa, 82, 87, 211, 325, 351, 431, 434, 275, 291, 309, 311, 316, 319, 321,
446, 456-457. 322, 329, 333, 335-358, 406, 413,
celebridade, 291, 292-295, 298, 319, 415, 465, 479, 480, 481, 488, 494-
373, 428, 456. 506.
cerimônia, 120, 203, 224, 234, 287-288, comum humanidade/humanidade co-
297, 337, 355. mum, 95, 123, 164, 169, 478, 485,
cidadão, 206, 209, 212, 213, 222, 223, 500.
345, 351, 384, 386, 387, 406, 423, concorrência, 128, 135, 143, 171, 265,
432, 472. 312, 315, 317, 318.
ciência social, 219, 415-424, 483, 488, confiança, 89, 91, 276, 280, 288, 311,
505. 312, 369, 442, 447, 448, 450, 452.,
científico, 93, 321-322. 462.
cinismo, 357, 456. confissão, 182, 215, 244.
circunstâncias, 118, 121, 174, 231-232, conflito, ver disputa
243, 244, 342, 349-350, 353, 371, conhecido/obscuro, 197, 290, 298.
480-481, 496. conhecimento (modo/modelo de), 90,
cité (modelo da), 97, 124, 164-170, 333, 249, 354-356.
478, 482, 500, 501. conluios, 193, 208, 211, 213, 476, 478,
cliente, 133, 150, 344-345, 391, 406, 480.
461. consideração, 198, 204, 207, 282, 292,
codificação, 80-83, 233. 295, 361, 362, 408.
coerência, 87, 233, 346, 349, 350, 494. consumidor, 149, 262, 310.
cognitiva (capacidade), 84-86, 116, 118, contingente, 118, 238-239, 254-255,
235, 236. 336, 481, 488.
coisinha (sem importância), 336-337, contrato, 199, 209-210, 319, 418, 447,
341, 345, 355, 405. 487, 517.
coletividade, 90, 108-111, 113-114, 170, controvérsia, 166, 237, 257, 343-346,
299-300, 303, 304, 307, 321, 362, 366, 407, 413, 444, 465, 480, 481.
367, 408, 415-424, 444, 464, 470, convenção, 112, 138, 168, 312, 321,
486. 466, 477.
competência, 96-97, 125, 154, 249, 334, converter/reverter (uma situação), 337,
338-340, 515. 343, 349, 351.
complexa (organização, sociedade), 89, coordenação, 98, 116, 128, 230, 246,
89, 125, 334, 356, 472, 473. 309, 310, 314, 494, 497.
composto (agenciamento), 346-349, corpos, 144, 180-181, 187, 192, 206,
405-415, 473. 234, 235, 243, 246, 247, 270, 274,
compromisso, 100, 101, 148, 161, 263, 275, 299, 324, 325, 335, 337, 351,
368, 405-415, 476, 478. 381-382, 420, 425.
corpos (corporativismo), 181, 184, 385, distrair-se, 242, 252, 257, 289, 352,
391, 415-424, 452-453. 353.
corte, 205, 365, 513. economia, 110-111, 113, 128-129, 131-
crédito, 369, 406, 511. 132, 139, 170, 230, 264, 309, 315,
crença, 98, 248, 311. 321, 324, 390, 391, 400-401, 415,
criação, 239-240, 271. 416, 447, 451, 486.
criança/filho, 234, 238, 269, 279, 284, Éden, 120-121, 165, 168, 169, 239.
285, 289, 348-349, 384, 480, 481. educação, 274, 277, 284, 285, 453.
criatividade, 260-261, 268-274. eficiência/eficácia, 321-322, 473.
crise, 497-498, 504, 506. egoísmo, 168, 169, 190, 191, 208, 214,
critério, 85, 233, 235, 325, 451. 279, 284, 314, 316, 317, 415, 420.
crítica, 83, 84, 89, 92, 99, 139, 148, emoção, 216, 269, 272-273, 317, 347,
162, 169, 183, 204-205, 212, 240, 362, 365, 388, 425, 432, 497, 502.
259, 260, 275, 291, 310, 333-404, empresa/empreendimento, 87, 88, 99,
344, 411, 493-494, 499. 120, 257-259, 321, 387, 407, 426,
cultura, 98, 170, 257. 443, 444, 450, 452, 456, 460-461,
delegação, 187, 263, 300-301, 306-307. 468, 471-474.
deliberação, 256, 496-498. engajamento (na situação), 231, 236,
democrático, 97, 339, 379, 387. 354-358, 434.
dependência pessoal, 133, 138, 145, engendramento/geração, 173, 275, 277.
182, 184-185, 207, 215, 264, 274, engenheiro, 224, 451, 453.
290. equivalência (colocação em), 80, 89,
descerramento, 354-355, 356. 121, 164, 216-217, 233, 245, 247,
descrição (linguagem de), 81, 90, 92. 268, 291, 292, 299, 319, 329, 458,
desejo, 129-130, 135-136, 210, 312-316, 459, 478, 482, 484, 488, 494.
321, 362, 388, 416, 417, 436, 473, escândalo, 215, 381-382, 442.
475, 516. esclarecer (a situação), 242, 334, 343,
dessingularizar, 87, 90, 445. 349, 351.
dignidade, 166, 172, 232, 246, 279, 289, escola, 241, 261, 341, 384, 397, 442-
290, 301, 312, 314, 323, 329, 353. 443, 446-447, 453-470.
dinheiro, 182, 268, 319, 320, 362, 368, escravo, 165, 181, 357, 510.
410. espaço, 180, 184, 235, 303, 325-326,
diploma, 275, 360, 370-371, 453, 470. 328, 449, 450.
direitos, 301, 400, 405, 408, 445-446, espectador (imparcial), 145-150, 317,
464-466. 509.
dispositivo, 87, 93, 96, 100, 241, 247, especulação, 393, 462, 511.
405, 472, 473, 474, 477, 502. esporte (prova esportiva), 242-243, 265.
disputa, 83, 92, 94, 234, 238, 335-358, esquecimento, 501, 502, 505, 506.
405, 444, 445, 479, 480, 493, 494, Estado, 161, 189, 194, 213, 215, 268,
495, 502-503. 378, 407, 415, 424, 431.
estatística, 80-82, 85-86, 90, 208, 329, gramática (política), 129, 132, 154-164.
371. grande momento, 249, 266.
estima, 196-200. grandeza, 94, 97, 123-124, 147, 156,
ética, 127, 504. 167, 203-204, 281, 346, 353-354,
etiqueta/boas maneiras, 160, 262, 280- 365, 414, 453, 485, 496, 500-501,
281, 284, 285, 360, 366, 453. 515.
eugenia/eugênico, 171-173, 478, 485, greve, 123, 366, 477.
510. grupo social, 82-86, 98, 166, 172, 257,
exemplo, 81, 83, 85, 87, 90, 91, 371. 421, 435, 443-444, 464, 469, 470.
falha/defeito/deficiência, 121, 127, 237- hábito, 270, 274, 278, 360, 363, 451.
238. hierarquia, 133, 163, 184-185, 190, 217,
família, 163, 184, 187, 189, 262, 274, 268, 275-277, 280, 281, 283, 318,
290, 518. 323, 360, 375, 378, 440, 453.
familiar, 87, 91, 217, 288-289. história, 321, 371, 381, 413-415.
feitiçaria, 239, 519. holismo, 109, 129.
filosofia da história, 175-176, 219-220. honra, 194, 196, 197-198, 283, 511.
humildade, 177, 345, 361.
filosofia política, 94-96, 124, 131, 153-
igualdade, 95, 97, 123, 172, 353, 446,
156, 333, 353, 414-415, 423, 485,
472.
498, 500, 509.
igualdade/equidade, 159, 255, 256, 336,
fisiologia social, 220-221.
342, 352-354.
fofoca, 263, 289, 290, 295, 374, 410,
incerteza, 99, 232, 239, 242, 335, 346,
443, 477.
359, 497, 500.
força, 208, 295, 338, 416, 417, 445,
inconsciente, 110, 270, 271, 482, 487.
482, 485, 487, 496, 501, 519.
inconveniente (um), 496, 497.
forma de generalidade, 88-89, 116, 168.
índice, 84-86.
foro íntimo, 199, 201, 204, 205, 209,
indivíduo, 95, 110-111, 129, 138, 149-
214, 372, 420.
150, 170, 184, 210, 211, 299, 304,
função, 220, 310, 322, 324, 325, 329,
305, 309, 314-316, 376, 418-421,
370, 456. 517-518.
generalizar, 86, 123, 191, 223, 235, 246, inovação, 159, 182, 189, 321, 438, 451.
256, 371, 378, 476, 478, 494, 504. insinuação, 246, 479, 480.
gênio/genialidade, 172, 173, 216, 271, intenção, 479, 495, 504.
410, 435. interesse (geral), 90, 124, 170, 210, 223,
geração, 173, 179-180, 184-185, 189, 416, 445, 472.
241, 247, 277, 278-279, 283, 287, interesse (particular), 92, 113, 124, 128,
288, 452. 134, 136, 145, 169, 173, 207, 210,
gesto (de protesto), 389, 431, 433-435, 211, 215, 223, 305, 416, 420, 476,
457. 478.
graça, 162, 176, 178, 182, 201, 216, interiorização/internalização, 110, 113-
240, 425, 512. 114, 420, 425, 518.
mundo industrial, 132, 141, 144, 148- pequeno (estado de)/de menor grandeza,
149, 160, 173, 205, 218-225, 265- 168-170, 178, 190, 198, 223, 237,
266, 309-311, 320-330, 363-364, 369- 246, 247, 249, 353, 365, 481.
371, 376, 387-388, 395-402, 415-424, perdão, 480, 502-503, 505.
437-439, 449-454, 462-475. pertinência, 231-232.
mundo mercantil, 128-150, 170-171, pesquisa (de opinião), 294, 298, 385,
182, 253, 264-265, 290, 309-320, 459, 463.
362-363, 368-369, 375, 386-387, 388, pesquisa monográfica, 90, 371.
397, 400-402, 435-437, 447-449, 460- pessoa, 86, 270, 299, 303, 351, 353,
462, 472-475. 355, 482, 494, 499, 501, 503.
município, 379, 471-472, 477. pessoal (relação), 89, 91, 192, 380-384,
mútua colaboração, 191, 282-283. 389-391, 405, 449, 452.
natureza, ver mundo plano, 224, 325, 326, 360, 394.
normalidade, ver loucura pluralidade das formas de acordo, 124,
objetivar, 181, 299, 303, 504. 169, 256.
objeto, 85, 87, 93, 98, 120, 126-127, pluralismo, 96, 125-126.
229, 233, 247, 275, 288, 310-311, poder, 95, 126, 177, 196, 357-358, 482,
315, 324-325, 329, 336-358, 407-408, 484, 488, 501-502.
413, 502. poeta, 224, 269, 410.
ocasiões sociais, 275, 287, 366, 409. polidez, ver etiqueta.
olhar, 142, 204-205, 232, 234, 240, 249, positivo/metafísico, 219, 225, 248.
253. povo, 191-192, 431.
opinião, 92, 262, 268, 285-286, 290- pragmática, 97, 154, 493, 506.
298, 432-456, 459-463, 469. prática, 159, 230, 488, 505.
ordem, 99, 123, 166, 169, 246, 464, prático (guia), 163-164.
480, 487, 500-501, 510. preço, 128-130, 140, 197-198, 312, 319,
ordem política, ver grandeza 400, 401, 436, 474.
organização, 100, 115, 300, 322, 324, preocupação, 340-341, 352, 355, 514.
327, 430, 466, 471, 472, 473. princípio (de acordo), 94, 111, 117, 125,
orgulho, 134, 207, 292. 154, 155, 160, 168, 230, 245, 322,
padrão, 88, 90, 325, 370, 401, 426. 335, 343-346, 465, 481.
pai, 184, 188-191, 193, 252, 275, 279, processo, 238, 244, 350, 497, 499.
399, 453. produção, 225, 240, 320, 321-330, 450,
paixão, 136-137, 190, 269, 388, 436, 451, 462, 473.
437, 482. produtivo/produtividade, 221-222, 266,
panfleto, 382, 383, 412, 489. 467-468.
papel, 260, 356-357. produto (manufaturado), 265, 319, 324,
paternalismo, 374-375, 377-378, 442- 473.
451. profanação, 297, 409-410, 431.
pavimentar (um compromisso), 408-411. professor, 238, 240-241.
projeto, 224, 313, 329. relativizar, 116, 119, 356, 480, 481.
prova, 85, 93, 157, 233, 235, 244, 321, relato (da situação), 120, 236, 242-244,
371, 498, 499. 480, 496.
prudência [phronesis, sabedoria prática], relato formal, 243-245, 498-500, 502,
127, 160, 230, 232, 254-256, 258, 504.
353, 354. renome, 195, 293, 457, 513.
psicologia social, 166, 204, 425. representação coletiva, 417, 419, 420,
publicidade, 262, 375, 460. 488.
público/privado, 192-193, 262, 292, representação social, 97-98.
294, 295, 297, 300, 366, 373, 384, representante, 90, 196, 213, 263, 292,
394, 455, 477, 478. 300, 305, 306, 307.
qualidade (dos produtos), 89, 140, 315, responsabilidade, 283, 323, 367, 408,
316, 409, 452, 453. 453.
qualificação profissional, 89, 93, 165, retórica, 156-159, 163-164, 170, 233,
238, 245, 323. 254, 498.
qualificar, 79-84, 89, 119-121, 202-203, revelação, 86, 92, 333-338, 479, 486-
210, 232, 243, 244, 278, 499-501, 488.
502. revolução, 263, 362, 381, 384, 429-430.
queda/decaimento, 179, 239, 416. riqueza, 170, 179, 241, 264, 313-316,
quimera, 347-349. 320, 341.
raça, 172, 174, 479, 514. ritual, 194, 357.
razão/racionalização, 92, 136-137, 154, rotina, 261, 360, 363, 389, 466.
269, 328, 417, 506, 517. sacrifício, 162, 167, 173-174, 178, 187,
razão/racionalização prática, 99, 127, 208, 237-238, 247, 316, 340, 341,
417, 420, 472. 346, 417, 419, 434, 483, 510, 516.
realidade, 98-99, 113, 199, 219, 221, sangue (relações/laços de), 184, 187,
235, 248, 260, 271, 291, 497, 498, 193.
504, 505. santo, 180-181.
reflexão, 493, 495, 496, 497, 504, 505. segredo, 294, 367, 373, 381-382, 478.
regra, 96, 268, 275, 353, 371, 420, 441- segurança, 363, 469-471.
442. senhor, 185-186, 217-218, 425-426.
rei, 161, 186, 188, 203, 206-207, 235, senso de oportunidade (mercantil), 171,
276, 279, 441. 317, 436.
reino, 175-176. servidor, 185-186, 211, 217-218, 241,
relações pessoais, 261-262, 274, 283, 279, 280, 285, 411.
285, 439-440. simpatia, 140-145, 317, 447.
relações públicas, 262-263, 455, 457, sinal/signo, 195-196, 273, 321, 382,
461, 463. 427.
relativismo, 96, 122, 185, 236, 291, sindicato, 263, 376, 378, 380, 383-384,
322, 482, 485, 486, 489. 405, 443, 455, 464, 466, 509.
sistema, 98, 221, 323, 324, 327, 473, vaidade/caráter vão, 142, 181, 320, 361,
509. 484.
situação, 97-98, 119, 231-232, 244, 335, valor, 98, 172, 234, 257, 483-484, 485,
358, 499. 486, 488, 519-520.
situação estável, 120, 126, 240, 260, valorizar (os objetos), 234, 288, 335,
349, 352, 357. 339-358, 414.
situação natural, 119-120, 126, 252, vanglória, 139, 179, 182-183, 207-208,
349, 350, 356. 364, 413, 511.
soberano, 187, 206, 210, 213, 215, 430, verdade, 156, 158-159, 182, 314, 499,
432. 504.
social, 266, 415, 424, 445, 464. verossímil, 156-159.
sociedade, 170, 219, 221. violência, 122, 123, 190, 335, 338, 357,
sociologia, 107-114, 149, 160, 170, 208, 487-489, 496-497, 501.
221, 230, 248, 251, 321, 324, 333, vontade de poder, 482-485, 519.
371, 415-424, 451, 486-488, 511. vontade geral, 209, 212-213, 299, 301,
solidariedade, 211, 305, 309, 470. 312, 386, 418, 420, 430, 457, 466,
soma/somatório (e totalidade), 209-210, 471-472, 486, 512.
211. voto, 211, 212, 263, 339, 379, 385, 423.
sonho, 181, 408, 438. zum-zum-zum, 239, 336, 350.
suspeita, 124, 204, 211, 214, 260.
técnica, 160, 269, 329, 364, 411, 453,
463, 466, 473.
tempo, 90, 309, 310, 313, 322, 326,
327, 328, 395, 449.
testemunho/evidência, 241, 371.
tirania, 191, 202, 222.
tolerância, 502-504, 506.
trabalhador, 238, 334, 335, 370, 414,
470.
trabalho, 89, 132, 181, 225, 252, 262,
325, 369-371, 378, 406, 415, 418,
421, 437-438, 451, 452, 454, 464,
472.
tradição, 275, 276, 278, 312, 321, 360,
389, 392, 453.
transcendência, 208, 321, 330.
transporte (de grandeza), 339-342.
utilidade, 222, 224, 225, 414, 418, 423,
475.
utopia, 163, 165, 169, 415, 417, 504.
RAWLS, John, 102, 181. 152, 153, 154, 162, 169, 178, 261,
REVEL, Jacques, 110, 389, 516. 323, 326, 394, 452, 492, 511.
REYNAUD, Bénédicte, 471. SÓCRATES, 164.
REYNOLDS, Lloyd George, 397. STARK, David, 110.
RICŒUR, Paul, 109, 129, 163. STAROBINSKI, Jean, 418.
RILEY, Patrick, 217, 515. STEUART, James D., 141, 142, 143.
ROBERTSON, H. M., 137. STRAUSS, Leo, 526.
ROOVER, Raymond de, 141. SULLOWAY, Frank J., 493.
ROSANVALLON, Pierre, 428, 436.
T
ROSCH, Eleanor, 243.
TAYLOR, William L., 137.
ROUSSEAU, Jean-Jacques, 101, 153,
THÉVENOT, Laurent, 9, 10, 11, 12, 15,
154, 190, 195, 209, 212, 215, 216,
88, 89, 90, 92, 93, 95, 96, 105, 109,
217, 218, 219, 220, 221, 223, 224,
154, 179, 183, 449, 457, 480, 497,
225, 227, 230, 232, 255, 340, 390,
498, 501, 508, 512.
396, 414, 418, 423, 424, 425, 426,
TOCQUEVILLE, Alexis de, 194, 245.
483, 492, 515, 516, 517, 521, 522,
TOMÁS DE AQUINO (são), 249, 263,
523.
316.
S TURGOT, Anne Robert Jacques, 139,
SABEL, Charles, 340. 227, 392, 419.
SACCO, Nicola e VANZETTI, Bartolo- TURNER, Victor, 243.
meo, 367.
V
SAHLINS, Marshall, 180.
VEBLEN, Thorstein, 154, 155.
SAINT-SIMON, Claude-Henri de, 101,
VICO, Giambattista, 141, 142, 166,
137, 150, 226, 227, 228, 230, 231,
167, 168, 513, 514.
232, 233, 401, 421, 422, 423, 424,
471, 516, 521. W
SALAIS, Robert, 471. WALZER, Michael, 02, 201, 214, 215,
SARTRE, Jean-Paul, 240. 223.
SCHNEIDER, Christian, 269. WEBER, Max, 126, 190, 242, 490, 493,
SCHUMPETER, Joseph A., 145, 168. 494, 526.
SEIGNOBOS, Charles, 115. WEISS, John Hubbel, 402.
SÊNECA, Lúcio Aneu, 145, 326. WILLIAMSON, Oliver, 454, 479.
SEWELL, William H., 428. WINTER, S. G., 457.
SIEYÈS, Emmanuel Joseph, 232, 233, WISSLER, André, 110, 268, 375, 377,
428. 411.
SILVER, Alain, 326.
SKINNER, Quentin, 171, 209.
SMITH, Adam, 101, 116, 133, 134, 135,
136, 137, 138, 139, 141, 143, 144,
145, 146, 147, 148, 149, 150, 151,