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euESAMESQIUBRÛLENT
TELEBURNINGSOULS
euESAMESQIUBRÛLENT
TELEBURNINGSOULS
também conhecido comoMilícia

Uma memória poética de

- EUÉONDEGRELLE—

Traduzido por Rollo de Gaunt

Editora Antelope Hill


Direitos autorais 2020

impressão 2020
Todos os direitos reservados.

Traduzido por Rollo of Gaunt


Cover art por sswifty

O editor pode ser contatado em


Antelopehillpublishing.com
TRANSLATOR'SNOTE
Esta edição do livro de Léon DegrelleAs Almas Ardentesdestina-se
ao leitor inglês, para quem até agora não houve tradução confiável
desta obra em particular. Este trabalho foi um trabalho de amor e,
embora eu não seja o homem mais qualificado para produzir tal
tradução, tenho fé que aqueles mais habilidosos lingüisticamente do
que eu me perdoarão por quaisquer erros e, se eu inspirar algum
deles a produzir uma versão melhor, tanto melhor.As Almas Ardentes
é meio prosa, meio poético e, como tal, tentei preservar os
significados e intenções de Degrelle da melhor maneira possível e
também preservar a qualidade apaixonada com que ele falou e
escreveu ao longo de sua vida. Espero apenas ter feito alguma justiça
à profundidade das emoções do autor.
Que este homem que encontrou pouco descanso na vida encontre descanso no que
está além, e que todos os homens que se cansam e perdem a esperança sejam
inspirados por sua determinação inabalável e coragem inabalável diante de uma grande
tragédia.

ROLLO DEGTIA
CONTENTES
Parte Um: Corações Vazios
I – A Chama e as Cinzas II – A
Agonia do Século III – O
Caminho Certo
Parte Dois: Fontes da Vida
IV – A Terra do Nosso
Nascimento V – Lareira e Pedra
VI – O Sopro da Vida VII – A
Tarefa da Felicidade VIII –
Época de Natal
Parte Três: A Miséria da Humanidade
IX – Os Cegos X – As
Linhas da Tristeza XI –
Os Santos
XII – A Eterna Crucificação XIII
– Ninguém
XIV – Ter Amado Parte
Quatro: A Alegria dos Homens
XV – Forte e Duro XVI –
O Preço da Vida XVII –
Despoliação
XVIII – O Poder da Alegria
XIX – Sonhar, Pensar XX –
Paciência
XXI – Obediência
XXII – Bondade
XXIII – Feliz Isolamento
XXIV – Grandeza
Parte cinco: O dever de um homem

XXV – A Grande Retirada XXVI –


A Doma dos Cavalos XXVII – O
Ciclo Apocalíptico XXVIII – O
Iluminismo
XXIX – Intransigência
XXX – A Cruz
Parte Seis: Dar Completamente
XXXI – A Reconquista
XXXII – Flotilha das Almas
XXXIII – Cimeiras
PARTEONE:

—EMPTYHEARTS—
I – A Chama e as Cinzas
Aqui estou eu, quase no fim da minha vida. Eu senti quase tudo.
Sabia de tudo. Mais do que tudo, eu sofri.
Vi, deslumbrado, surgirem os grandes fogos dourados da minha juventude. Suas
chamas iluminaram minha terra. A multidão fazia as ondas estreladas de seus
milhares de rostos dançarem ao meu redor. Seu fervor, seus redemoinhos existiam.

Mas eles realmente, de fato, existiram? Não foi tudo um sonho? Não
sonhei que há trinta anos uma nação chamava meu nome, e que em
certos dias os jornais mais distantes do planeta o repetiam?
Escondido em minha tristeza exilada, não posso mais acreditar em meu
próprio passado. Eu vivi aqueles tempos ou não? Conhece essas paixões? Elevar
esses oceanos? Eu ando meus terraços. Eu me inclino sobre minhas rosas. Eu
percebo os cheiros. Eu já fui outro ser, além desse sonhador solitário que em vão
se agarra a memórias desgastadas como neblina nas montanhas?

Tudo isso não era mais do que uma alucinação?


Não consigo ver, muito, muito longe, em luzes esmaecidas, seus corpos,
como de uma pintura greco, cada vez mais magros. Esses homens que
desapareceram para sempre do horizonte me conheciam? Eles me
seguiram? Eu os liderei? Eu existi?

Nas minhas memórias, como nas minhas mãos, já não sinto esse
vento fugaz. Meus olhos - e que olhos devo ter, olhos de desespero? -
meus olhos podem vasculhar o céu impassível, tentar ver no fundo dos
anos, no fundo do século, o que isso significava?
O ser que sou, de que forma ainda é o ser que um dia carregou
meu nome, que foi conhecido, que foi ouvido? Por quem muitos
viveram e por quem, infelizmente, muitos morreram? Este ser, o que
tem a ver com o homem que caminha, amargurado, eternamente
sozinho, por alguns metros de terra estrangeira, remexer no seu
passado, perder-se nele, já não acreditar nele, perguntar-se se é
realmente ele que foi lançado cem vezes nos tornados de um Destino
implacável, ou se isso não passou de um sonho?
Então, se duvido da minha carne, dos meus ossos, do que outrora forjou
minha ação pública, se duvido da realidade do meu passado e da parte que
desempenhei em alguns anos de construção da história dos homens, o que
posso ainda acreditar do ideais que nasceram em mim, que me queimaram,
que projetei, do valor das minhas convicções na época, dos meus
sentimentos, do que pensei da humanidade, do que sonhei criar para ela?

Cada ser humano é uma sucessão de seres humanos, tão


diferentes uns dos outros quanto os transeuntes cujos rostos
díspares examinamos na rua.
Aos cinquenta anos, como ainda nos parecemos com o jovem de vinte
anos de quem estamos tentando nos lembrar e cuja sobrevivência
queremos a todo custo? Até sua carne não é mais a mesma carne, ela se
foi, foi refeita, renovada. Não mais do que um milímetro de pele é a pele
daquela época.

E quanto à alma? E nossos pensamentos? Os sentimentos que nos


impulsionaram à ação? E os sentimentos que nos passaram, como
sopros de fogo pelo coração?
Quantos homens distintos carregamos dentro de nós, que lutam,
que se contradizem, ou que até se ignoram? Somos bons e somos
maus, somos a abjeção e o sonho. Estamos ambos, emaranhados em
redes inextricáveis. Mas não é aqui que reside o horror do destino. O
atroz é quebrar essas próprias redes, jogar a alma ao mar; o horrível
é ter que dizer que o essencial da nossa vida foi caricaturado,
desfigurado por mil impurezas e mil negações.

Quem nunca experimentou esses desastres?

Alguns percebem sua falência com dor. Outros fazem a observação


com cinismo, ou com o sorriso arrogante de quem não escuta mais,
que está convencido de que o conhecimento do homem e a
superioridade do espírito consistem em fazer todas as “experiências”,
esgotando deliberadamente os prazeres mais perversos, sem
espanto excessivo e sem pesar, tendo encontrado, no uso e na
profanação de tudo, informação, a condescendência e indiferença de
uma “ética” de decomposição, livre de qualquer contrapeso espiritual.

Sem dúvida, o mundo em que vivemos tornou-se, em grande parte, o


mundo dessas pessoas amorais, tão seguras de si. Sem dúvida, aqueles
que persistem em imaginar uma humanidade de altas virtudes podem
imaginá-los como seres anacrônicos, não evoluídos, presos a velhos
modismos, vivendo separados dos homens, separados de seu tempo,
distantes da moda, distantes da realidade.
Foi aqui que cheguei. Eu tinha sonhado com um século de Cavaleiros, fortes e
nobres, dominadores. Duro e puro, diziam meus estandartes. Sinto-me
desequilibrado, com o meu feixe de velhos sonhos. Sei que sentimentos como os
que tentei expressar dificilmente podem mais ser sentidos, ou até mesmo
parecem “dolorosos” para alguns.

Mas já vi tanto, sofri tanto que mais um pensamento amargo não me


cansa além de minhas forças..Então, muito ruim! Esses sonhos, bem,
sim, eu os tive. Esses impulsos, sim, eu os carregava. Esse amor ao
próximo, sim, me queimou, me consumiu. Queria ver no homem um
coração para amar, para excitar, para elevar, uma alma que, mesmo
meio asfixiada pela pestilência da sua escravidão, aspirava encontrar um
alento puro e às vezes esperava apenas uma palavra, ou um olhar, para
emergir e renascer.
Sejamos diretos. O direito de interpor, de usar os outros, o direito à
consideração moral ou espiritual, esses eu não tenho. Eu sei disso muito
bem. Tive minha cota de misérias, infelizmente, como tantos outros; e
ainda que eu mesmo não as tivesse sofrido, me emprestaram tantas
misérias dos outros que só posso sentir, quando me analiso, confusão e
insondável tristeza. No entanto, o espírito do ideal que lança seu fogo
neste livro me devorou todos os dias da minha existência. Eu deveria, é
claro, ter deixado para outros, menos afetados, o cuidado e a
responsabilidade de devolver a luz e a música à humanidade. Mas
aquele fogo estava me queimando. Hoje, sufocado por um
feitiço implacável, o grande incêndio do passado não deixa nada além de
cinzas. Volto assim mesmo, teimosamente, porque essas cinzas evocam os
momentos de fervor da minha vida, os impulsos mais profundos, a própria
base espiritual da minha ação. Aqui estão eles, desordenados, entregues ao
vento que rapidamente os dispersará.

Esses pensamentos, esses sonhos estão todos em desordem. Eu


não fiz um plano. É a altura. Não me sentei à minha mesa como um
escritor distinto e razoável. Não escrevi um “Manual do Idealista”,
capítulo por capítulo, calculando tudo, medindo tudo. Não isso, nada
disso.
O que fazer!

Os impulsos da alma não são graduados como o fluxo de um


aparelho a gás. A esperança, a paixão, o amor, a fé, a dor e a
vergonha me ditaram os escritos que lancei, em tal e tal momento,
porque os senti então com muita força. Às vezes estava no ápice da
minha ação pública. Às vezes era no abandono, na lama e no frio da
minha vida distante como um soldado sofredor na vastidão da Frente
Oriental. Mas a alma que vivia esses impulsos seguia um fio comum,
invisível para muitos: era, no entanto, a artéria que alimentava
espiritualmente a minha existência. Portanto, essas notas não são tão
absurdas, elas registram os altos e baixos de uma alma entre as
almas, todas com seus altos e baixos.
Certamente, o espírito que chegou à velha “sabedoria” do cinismo,
pode dominar com seu sorriso frio, pode exibir o mármore gelado de
seu túmulo interior e neles gravar suas descobertas com uma pena
impassível. Mas o fogo tem muitas formas, sobe, desce, renasce,
recomeça. Este livro é o fogo, com as exaltações do fogo, o excesso do
fogo.
Se ao menos pudessem ter o calor benéfico! Se ao menos as almas
pudessem encontrar esse conforto e vigor, como as encontramos
meditando à noite, perto de um grande, quase silencioso, fogo de
lenha! As ondas de sua poderosa vida penetram, e sua radiação e sua
contemplação. Oferecem-se completamente, entregam-se
completamente. O presente, o verdadeiro presente é assim, aniquilando até a última
marca.

Para mim - meu fogo está morto. Minha vida mergulhou no


abismo, foi submersa pela aurora negra que tudo sufocou. Mas ainda
quero acreditar que esses impulsos, que animaram a ação de um
homem já morto aos olhos da maioria - embora tenha a infelicidade
de ainda viver para si - ainda poderão se unir espiritualmente daqui
para lá, no mundo, corações ansiosos.
Lembro-me de três palavras que um dia decifrei num túmulo de
mármore negro, lá em Damme, na Flandres, numa igreja da minha pátria
perdida: ETSI MORTUUS URIT. “Mesmo morto, ele queima.”

Que estas páginas, o último fogo fugaz do que fui, ardam por um
momento, aqueçam por um momento as almas assombradas pela
paixão de dar e acreditar, acreditar apesar de tudo, apesar das garantias
dos corruptos e dos cínicos, apesar do triste gosto amargo que nos
deixa a lembrança de nossas quedas, a consciência de nossa miséria e o
imenso campo de ruínas morais de um mundo que certamente não terá
mais salvação, que se orgulha disso e que, no entanto, deve ser salvos,
devem mais do que nunca ser salvos.

II – A Agonia do Século
Amor? Por que? Por que amor?

Os seres humanos se barricaram atrás de seu egoísmo e prazer. A


virtude abandonou sua canção natural. Rimos de nossos antigos ritos.
As almas sufocam. Talvez eles já estivessem liquidados, as evidências
escondidas atrás do decoro de hábitos e convenções.

A felicidade tornou-se, para o homem e para a mulher, um amontoado de


frutos que eles devoram apressadamente, ou no qual plantam os dentes, sem
mais, e os rejeitam desordenadamente - corpos danificados, almas
danificadas - rapidamente esgotados pelo fugaz frenesi, já em busca de
outros frutos mais excitantes ou mais perversos.
O ar está carregado de todas as negações morais e espirituais. Os pulmões
aspiram em vão por uma lufada de ar fresco, a frescura de um borrifo lançado
junto ao areal.

Os jardins interiores do homem perderam as cores e o canto dos


pássaros. O amor em si não é mais dado. E, além disso, o que é o amor,
a palavra mais bela do mundo, reduzida à categoria de passatempo
físico, instintivo e intercambiável?
A única felicidade está na dádiva, a única felicidade que consola,
que embriaga como a plena fragrância dos frutos e das folhas do
outono.
A felicidade só existe no dom, no dom completo; sua abnegação
lhe dá o sabor da eternidade; ele volta aos lábios da alma com uma
doçura intangível.
Dar! Ter visto olhos que brilham, ter sido compreendido, tocado,
realizado!
Dar! Sinta as toalhas de mesa grandiosas e felizes, flutuando como água dançando
em um coração repentinamente adornado com o sol!

Dar! Ter alcançado as fibras secretas que tecem os mistérios da


sensibilidade!
Dar! Ter este gesto que alivia, a mão que alivia o peso carnal, que
esgota a necessidade de ser amado!
Então o coração se torna leve como o pólen. Seu prazer sobe como o
canto do rouxinol, uma voz ardente que ilumina a escuridão. Nós
derramamos com alegria. Esvaziamos essa força de felicidade que não
era para ser compartilhada egoisticamente, que nos estorvava, que
tínhamos que derramar, da mesma forma que a terra não pode conter
infinitamente a vida das fontes e deixá-las explodir sob açafrões e
narcisos, ou nas falhas das rochas verdes.
Mas hoje em mil poços secos as fontes da vida deixaram de fluir. A
terra já não derrama este dom que a enchia. Ela segura sua
felicidade. Ela engasga.
A agonia do nosso tempo está aqui. O século não falha por falta de
apoio material. Nunca antes o universo foi tão rico, cheio de tanto
conforto, ajudado por uma industrialização tão produtiva. Nunca
houve tantos recursos ou bens oferecidos. É o coração do homem, e
somente ele, que está falido. É pela falta de amor, é pela falta de
acreditar e de se doar, que o mundo se dominou de golpes
assassinos.
Este século não quis ser mais que o século dos apetites. Seu orgulho
foi desperdiçado. Acreditava em máquinas, estoques e lingotes, sobre
os quais seria o mestre. Acreditava, tanto quanto, na vitória das paixões
carnais projetadas além de todos os limites, na liberação das mais
diversas formas de gozo, constantemente multiplicadas, cada vez mais
degradadas e degradantes, dotadas de uma “técnica” que é, afinal,
geralmente apenas um acúmulo, sem grande imaginação, de vícios
bastante empobrecidos, de seres esvaziados.
De suas conquistas, ou mais precisamente de seus erros, depois de suas
quedas, o homem adquiriu prazeres que pareciam a princípio
extremamente excitantes, e que na verdade eram apenas veneno, sujeira e
falsidade.

Pois esta falsidade, esta imundície e este veneno, porém, o homem e a


mulher abandonaram, profanaram, através dos seus sonhos e dos seus
corpos devastados, a alegria interior, a verdadeira alegria, o grande sol da
verdadeira alegria. Os sopros de prazer das posses - matéria ou carne -
devem, sendo ilusórios e agravados em suas falhas, mais cedo ou mais tarde
desaparecer.

O que resta é apenas a paixão por tomar, agarrar, em acessos de raiva que os
colocam contra todos os obstáculos e contra os odores rançosos da decadência
que se agarram às suas vidas saqueadas e podres.

Vaidosos, vazios, com as mãos pendentes, nem sequer vêem


aproximar-se o momento em que ruirá o trabalho artificial do seu
tempo.
Ele entrará em colapso porque é contrário às próprias leis do coração e -
digamos a grande palavra - às leis de Deus. Ele sozinho, tão forte
que rimos Dele, demos equilíbrio ao mundo, dirigimos as paixões,
abrimos para nós as portas da doação total e do amor autêntico, demos
sentido aos nossos dias, sejam quais forem as nossas alegrias e
infelicidades.
Podemos reunir todas as Conferências do mundo, reunir em
rebanhos os Chefes de Estado, os especialistas econômicos e os
campeões de todas as técnicas. Eles vão pesar. Eles vão decretar. Mas,
essencialmente, eles falharão porque ignorarão o óbvio.
A doença do século não está no corpo. O corpo

está doente porque a alma está doente.

Isso é o essencial, seja lá o que for necessário para


curar. O real, a grande revolução a ser feita está aí.
Revolução espiritual.
Ou a ruína do século.
A salvação do mundo está na vontade das almas que crêem.

III – O Caminho Certo


Aqueles que hesitam diante da luta são aqueles cujas almas estão
entorpecidas. Um grande ideal sempre lhe dá forças para superar o
corpo, para sofrer de fadiga, de fome, de frio. O que importa noites
sem dormir, trabalho extenuante, estresse ou pobreza! O principal é
ter no fundo do coração uma grande força que aquece e impulsiona,
que revive os nervos frouxos, que faz pulsar o sangue cansado com
grandes golpes, que põe nos olhos aquele fogo que queima e que
conquista. .
Então o sofrimento não tem importância, a própria dor torna-se
alegria porque é um meio de aumentar o legado, de purificar o
sacrifício.
A facilidade seda o ideal. Nada o endireita melhor do que o chicote da
vida dura; nos faz compreender a profundidade dos deveres a serem
assumido, missão da qual devemos ser dignos.
O resto não conta.
A saúde não importa. Não estamos na terra para comer na hora
certa, dormir na hora certa, viver cem anos ou mais. Tudo isso é vão e
tolo.
Só uma coisa importa: ter uma vida útil, aguçar a alma, aperfeiçoá-
la sempre, vigiar suas fraquezas e exaltar seus impulsos, servir aos
outros, lançar alegria e ternura ao seu redor, dar o braço ao próximo,
erguer-se tudo ajudando uns aos outros. Cumpridos esses deveres, o
que significa morrer aos trinta ou cem anos, sentir a febre latejar nas
horas em que a besta humana clama, no fim de suas forças?

Deixe-o se levantar de novo, apesar de tudo!

O ideal parece dar sua força apenas no ponto de ruptura.


Apenas a alma conta e deve dominar todo o resto. Curta ou longa, a
vida só é redimida se não tivermos motivos para vergonha no momento
em que temos que devolvê-la.

Quando nos chama a doçura dos dias, e a alegria de amar, e a


beleza de um rosto, um corpo perfeito, um céu claro, e o apelo de
raças distantes, quando estamos perto de ceder aos lábios, de as
cores, à luz, ao entorpecimento das horas relaxadas, apertemos no
coração todos estes sonhos, à beira da fuga dourada.
A verdadeira fuga é abandonar nossa querida e sensível presa, no exato
momento em que o doce perfume convida nossos corpos a desfalecer.

Nesta hora em que é preciso abandonar a suavidade e colocar o amor


acima do desejo, quando tudo é doloroso até a crueldade, um sacrifício
realmente começa a ser inteiro, a ser puro.

Então nos superamos, finalmente estamos dando algo. Antes,


olhávamos apenas para nós mesmos, e a preocupação com
orgulho e glória egoísta corromperam o que fluía de nossas almas, e foi
usado, em vez de dado.
A pessoa dá para sempre, sem cálculo – porque tudo é dado e
nada resta do doador – somente quando primeiro mata o amor de si.
Isso não acontece facilmente, porque a besta humana está relutante.
Entendemos tão mal o que pode ser aprendido com a amargura.

É doce sonhar com um ideal e construí-lo em sua mente. Ainda

assim, para dizer a verdade, isso é muito pouco.

O que é um ideal se é apenas um jogo ou um doce sonho? Você tem que construí-
lo, depois disso, na realidade.

Cada pedra deve ser arrancada do nosso conforto, das nossas alegrias, do nosso
descanso, do nosso coração.

Quando, apesar de tudo, o edifício sobe com o passar dos anos, quando
você não para pelo caminho, quando, diante de pedras cada vez mais
pesadas a serem colocadas, você continua, só então o ideal começa a viver.

Ele vive apenas na medida em que morremos para nós

mesmos. Que drama, no fundo, essa vida justa.


PARTETWO:

- CELLSPRINGS DEeuIFE—
IV – A Terra do Nosso Nascimento

Como homens pertencemos sempre a um povo, uma terra, uma história. Podemos
não saber. Podemos tentar esquecê-lo. Mas os eventos nos devolvem eternamente a
essas fontes de vida.

Eles nos trazem de volta primeiro aos homens de nosso sangue: vergonhosos ou
brilhantes, a família nos une, cada vez mais apertados e firmes com o tempo.

Pode até se tornar sufocante. Nunca nos livramos dele.

No que diz respeito ao nosso sangue, estamos ligados a ele. O sangue vem
sempre antes da razão. Somos um com esses laços, como se nossas veias
fossem um só organismo e a família tivesse um só coração, um coração que
bombeia o mesmo sangue em cada um de nós e nos lembra do nosso lar vital.

O mesmo se aplica à nossa pátria. Não

podemos escapar disso.

A visão de uma impressão amarelada de nossas catedrais, a lembrança


do cheiro das dunas, do tom cinzento de nossas encostas, da curva de
nossos rios, traz à nossa garganta um amor que nos sufoca, que torna
nossa voz rouca .

O passado do país está embutido nas profundezas de nossa consciência


e sensibilidade.
Tudo em nós é sobrevivência, renascimento, mesmo que inconscientemente.

O passado de um país renasce a cada geração com o retorno da


primavera, sempre em novos rebentos.

Podemos descarregar, percorrer o mundo, perder a cabeça: a terra


natal ainda manda para o nosso coração uma essência que não
criamos e que nos domina.
Basta a voz de uma estação de rádio captada em um país distante,
trazida por ondas imprecisas, para que memórias, laços e
as leis emergem novamente, verdadeiras marcas d'água indestrutivelmente incrustadas no
tecido de nossos dias atormentados.

V – Lareira e Pedra
Você deve ter vagado pelos mares mais distantes, conhecido as noites
vermelhas dos trópicos, as fogueiras de cana, as canções dos negros, os
desertos com suas areias rosadas, seus arbustos sem folhas, os esqueletos de
cavalos branqueados pelos ventos, você deve escalaram lagos congelados e
neve quente, colheram flores de mimosa nas ruínas de Cartago, toranjas em
Havana, uma folha de grama perto dos pilares canelados da Acrópole, para
amar plenamente sua pátria, aquela que vimos pela primeira vez, com os
únicos olhos lúcidos no mundo: os olhos de uma criança.

É preciso ter conhecido outras viagens, com móveis e roupas,


livros, mesas, os simples bens materiais, é preciso ter sido esse
nômade dos apartamentos anônimos onde se senta como se senta
no trem, para conhecer a paixão e a nostalgia da primeira de todas as
paisagens, deste lugar no coração que é “casa”.
Podemos falar sem pesar das grandes alegrias de terras
estrangeiras. Douram-nos ainda os olhos: o dia nasce amarelo e
prateado nas palmeiras que margeiam o mar das Antilhas; nuvens de
neblina nas oliveiras do vale de Delfos; pescadores remando na clara
noite azul das Cíclades; o palmeiral riscado de sol perto das paredes
vermelhas de Marrakech. Mas a lembrança de viagens errantes nas
prisões de nossos alojamentos sem alma nos oprime e nos sufoca.
O que resta em nossa vida desses relés impessoais?
As paredes onde impiedosamente penduramos e removemos as
pinturas? O apartamento ao lado de onde você foi vigiado? A
conversa misturada de telefones? A escada onde nos encontramos
sem nos conhecermos? O carro celular do elevador com suas barras
duplas?
Olhamos para este cenário de vida e morte com olhos opacos, carregados de
verdadeiro desespero.
O que nos dizem essas divisórias, a cozinha aberta para um pátio horrível, de
poucos metros de comprimento, sem recanto inesperado, sem peculiaridade,
árida de folhagem natural, sem ninho aconchegante? O que dizem essas camas e
móveis, sempre desajeitados e embaraçados, como se se sentissem deslocados,
pobres, infelizes, vagamente nômades?

Até os móveis têm alma.


O velho aparador que entulha o corredor, a caixa do relógio que já
não ressoa para não incomodar ninguém, já viveu, já conheceu uma
casa a sério, teve durante cem anos, duzentos anos, o seu lugar, o
seu toque, o seu cheiro.
Pobre aparador e pobre relógio, longe do soalho encerado, do
cheiro a alfazema, da escada gasta e manchada de água, da conversa
ao redor, da saudação do sol que entra repentinamente por uma
porta aberta.
Nós, modernos alienados, arrastados de apartamento em apartamento em
cidades sem alma, nos sentimos um pouco mais arrancados de nossos corações
cada vez que temos que cruzar um novo limiar, iluminar os estéreis corredores
brancos, nos acostumar com essas maçanetas, essas persianas, essa porta que não
aguenta, esse fogão a gás que queima rápido demais, esses ônibus que passam com
buzinas horríveis que esmagam a alma.

Estamos em silêncio.

Mas não esquecemos nada.

E o homem, como o velho aparador e o grande relógio, imóvel,


olha e vê.
A terra onde nascemos revive em nossas memórias. Aqui está. Um
pouco de folhagem ilumina a fachada. Dois degraus de pedra azul. Uma
grande varanda coberta de vinha nos jardins. Tudo está em seu lugar.
Tudo tem um significado, um cheiro, uma forma. Vamos ao armário: o
armário, essa palavra bela, cheia, séria porque contém o nosso pão
nutritivo. Tão familiar que podemos navegar de olhos fechados. Este
canto cheira a tabaco; aquele o gato, que sempre ronronava no lugar
mais quente. Esse barulho é o Pai se levantando do
cadeira de escritório. O passo vacilante é a mãe, que, na sala de jantar,
rega as flores. Estes quartos não são apenas lugares para parar. Este é o
quarto “em cima da sala de estar”, este é o quarto “em cima do escritório”,
este é o quarto “dos pequeninos”, mesmo quando eles se tornaram
homens compensamentos pesados.

Cada uma dessas salas tem sua história, conheceu suas vigílias, suas doenças;
nós o deixamos uma manhã carregando um corpo querido em nossos braços.

Ah! O horror de nossos filhos nascerem ou morrerem em


apartamentos anônimos, cercados de móveis vivos desde que partiram,
onde outros nômades, por sua vez, retomaram sua vida desajeitada,
sem memórias com alma, nem ousando lembrar, tão deslocados estão .

Casa de antigamente, com suas cortinas pobres, seu mau gosto


ocasional, essa bola na grade, essas fotos de crianças em umfila leu leu, o
piano de cauda, a lareira negra, a banheira de lata onde as pessoas se
lavavam umas atrás das outras, estes degraus que ainda escalamos vinte
anos depois nas memórias, as respirações que voltamos a ouvir passar
perto de nós, o rosto da mãe que aparece , primeiro ao longe, depois bem
diante dos nossos olhos, quase inescrutáveis, nos sentimos como crianças,
desejando de novo a sua suave carícia.

Chamadas de imensa ternura surgem com aromas distantes de flores e


folhagens; canções de água passam no fundo do jardim, o sol suave
enchendo todo o nosso mundo.
Tudo o que somos vem dessa época. Infeliz as crianças que nunca
tiveram casa própria, e que não recolhem essas memórias de onde
brota a nossa vida.
É o lar que nos transforma em quem somos.
Como podemos ter uma alma em uma casa sem rosto, que se transforma como uma
máscara de carnaval?

A vida é fixada na lareira e na pedra; o resto flui como madeira quebrada


flutuando em um riacho de inverno.

Casa, nossa tenra fortaleza.


Ela ganha aos poucos uma face única, construída ao longo do tempo, pelas
adversidades comuns e pelo nascimento dos filhos.

As paredes guardam amor e sonhos.

Seus móveis, bonitos ou feios, são nossos companheiros e


testemunhas.
Uma doçura sobe lentamente das almas, torna-se um lugar de
contemplação, descanso e certeza, ao invés de uma breve parada na
jornada de nossa existência.
Suavidade, equilíbrio, pontos de referência, testemunho,
autoexame. Sem mãe e casa, diga-me, minha alma, onde estaríamos?

VI – O sopro da vida
Os homens podem se rebaixar, podem viver em uma agitação cada vez
mais frenética, enquanto milhões de loucos se empanturram - mas a nobreza
da maternidade preserva, entre milhares de corações naturais e vibrantes,
seu próprio esplendor pálido. Hoje, a essência materna se move como nos
tempos em que as primeiras mulheres sentiam seus corpos agitados por suas
emoções indescritíveis.

A partir dessa hora as mulheres não são mais as mesmas. Ontem eles
estavam apressados, seus olhos claros, suas almas vazias, seus lábios
distraídos. A vida que nasce neles, como um florescer oculto, de repente
lhes dá gravidade, confiança, uma força grande e orgulhosa, a certeza
de criar, de dar, e o encanto emocional do mistério vivo que um dia
nascerá de sua dor.
Eles permanecem alegres, mas seu olhar se torna mais profundo. Eles
carregam dentro de si um tesouro cuja pulsação está intimamente ligada à
sua. O seu vigor, a sua melancolia, este grande ideal, por vezes não declarado,
que os eleva ou atormenta, os pensamentos e as saudades, as alegrias e os
desejos unem-se a esta vida oculta, sempre presente para quem lhe dá
sangue e alma nesta comunhão perfeita de carne e coração.
Eles são corajosos e cansados.

Cansados do corpo sobrecarregado, da juventude curvada como galhos


carregados de frutos, cansados do sol e do vento.

No entanto, ainda valentes, sabendo que renovação seus corpos agora contêm
ternamente, nesta carne que seus mais delicados tremores moldam.

Eles sabem que esta alma-flor, mal aberta à noite, florescerá


amanhã; o coração inocente que eles cobrem como o céu noturno
está cheio da doçura e da paz das estrelas e do silêncio.

Entre o mundo clamoroso eles carregam esta noite cintilante.


Seus olhos sonhadores contemplam essas grandes paisagens enluaradas,
onde um mundo conhecido apenas por eles jaz adormecido, poderoso e
imenso.

Eles veem montanhas azuis, águas negras e suaves, céus encantados


cravejados de fogueiras, colocados no azeviche da noite como joias
etéreas.

Avançam sob essas luzes noturnas, o coração tenso, mas inseguro.


Ninguém anda ao lado deles. O universo olha para outro lugar. Eles
sozinhos assistem. Só eles têm olhos para ver. Seguem, o corpo pesado,
a alma tensa e elevada, como se atraídos pela grandeza desta noite
secreta.
Estes meses em que a carne desabrocha são a sua primavera
privada em que só as sombras e os cheiros, as cores e as luzes
alcançam o seu grande amor, estendidos de braços abertos à vida,
como um pomar do coração.
Eles experimentarão o nascimento dessa nova vida, separados do
grande sonho, então se deparam com esforços constantes, a serviço
desses corpos e dessas almas que os encantam e que os amedrontam.

Realeza, trêmula e radiante. O que


vai renascer nesses corações?
Eles manterão a música e a pureza das águas da montanha?

Esses olhos ingênuos farão você chorar? Essa cabecinha


encaracolada, da cor do sol na parede de pedra, carregará pensamentos
bons e claros, o sonho da mãe, como lírios de espada de fogo? É melhor
não temer muito, mostrar o caminho reto, mas deixá-lo ladeado de
verde e bosques, e deixá-los percorrer, puros e brilhantes, o caminho de
terra até o horizonte.
A mãe colocará no coração dos pequenos, mais uma vez, apenas
aquilo que ela mesma terá nutrido.
A alma deles conterá o que a dela terá contido.
As imagens de seu coração traçarão neles grandes reflexos, como
sombras avançando nos campos sob as nuvens brancas do grande céu
de verão.
Ela só pode suportar o olhar deles se sua alma for tão clara quanto a deles.

Tudo o que não é fresco e puro surpreende as crianças e deixa uma marca
em seus corações.

Eles não terão mais tarde força e renúncia, sabedoria e simplicidade,


virtude e alegria, a menos que seu alimento espiritual seja tão puro quanto o
leite materno.

Os rostos das mães são nobres, extremamente claros, rejuvenescidos pela


presença de vidas intencionalmente inocentes, mesmo durante mil dias de
sofrimento.

As mulheres são grandemente abençoadas pelo corpo que treme,


voltado para o sonho interior, onde habita o grande segredo do sopro
da vida.

VII – A Tarefa da Felicidade


Quanto mais caminhamos entre falsos sorrisos, olhos gananciosos ou
impuros, mãos agarradas, corpos murchos, mais nos decepcionamos com a
mediocridade da existência.
Rapidamente percebemos que somente as alegrias colocadas em nossos corações
quando éramos jovens permanecem sólidas e eternas. É na juventude que nos tornamos
felizes ou infelizes para sempre.

Se tivéssemos uma infância tranquila, suave como um grande céu


dourado, se aprendêssemos a amar e a doar-nos, se gostássemos,
desde muito pequenos, do encanto que o céu e a luz nos davam a todo
o momento, a natureza sempre ao nosso alcance e sempre em
mudança, se fomos feitos com um coração simples, ingênuo como a
manhã, humanos, sensíveis, bons, ligados aos afetos reais e naturais,
então a vida nos restará até o fim de nossos dias atribulados como o céu
poderoso e claro até mesmo nas estradas mais traiçoeiras.
Há uma tarefa para a felicidade. Nós o

desenvolvemos ou o sufocamos.

Se educarmos as crianças, simplesmente, em alegrias profundas mas


elementares, elas avançarão na vida mantendo no olhar a luz de sua vida interior,
equilibrada, perseverante.

Mas se arruinamos sua infância, se eles viram ou ouviram demais,


se foram apanhados em um turbilhão, se anos de calma ternura não
fortaleceram neles a terna felicidade de sua inocência, então sua vida
será o que a infância deles foi: testemunhando a desordem, eles se
tornarão desordenados. Nunca tendo sido firmados em seus gostos,
sentimentos, pensamentos, eles estarão à mercê dos ventos,
possuindo apenas alegrias ilusórias que os queimarão e os
empobrecerão ao capricho dos outros.
Torna-se muito mais difícil mudar depois.
Uma árvore endurecida não pode ser endireitada; pode-se no máximo
limpar a folhagem ou cortar galhos.

Mas quando era jovem, cheio de seiva, poderíamos endireitá-lo


com um dedo ágil, guiá-lo, ajudá-lo a florescer.
É numa altura em que as crianças simplesmente parecem estar a brincar, a observar,
simplesmente a observar um pardal ou uma cotovia, a soletrar palavras e a dar
beijos, que fotografam no coração, na imaginação, exatamente aquilo
que lhes damos.
A vida é apenas o desenvolvimento desta fotografia; os ácidos da
existência imprimirão neles as imagens, belas e poderosas, ou perturbadas
e tristes, que oferecemos aos seus olhinhos curiosos, aos seus corações
límpidos como folhas de papel brilhante.
O que os privamos por nosso orgulho ou nossa agitação, ou, infelizmente, por
nossas paixões, será cruelmente retribuído a nós ao vê-los instáveis, insatisfeitos,
a alma enfraquecida ou devastada por nossa própria culpa.

VIII – Natal
Éramos apenas criancinhas das Ardenas.
A neve cobria o horizonte, acumulando-se acima dos beirais dos
telhados e apertando-se nas solas dos nossos sapatos.
Tínhamos certeza de ter visto São José dobrar a esquina da Rue du
Moulin. Subir o caminho até a igreja foi difícil na escuridão da meia-
noite. Na última ladeira íngreme, recorremos a carregar os sapatos
nas mãos. De repente, a noite de dardos congelados deu lugar ao
cheiro quente das naves deslumbrantes.
Nossas cabeças estavam girando um pouco.

O cheiro do incenso intoxicava. ODecanoele

mesmo estava pálido.

Mas por trás da tela do coro veio um estrondo forte o suficiente para afugentar
os javalis selvagens a dez quilômetros de nossas matas emaranhadas.

O tocador de órgão pedalava como se temesse chegar

atrasado. O diretor levou o coro a uma turbulência selvagem.

Na hora de “Meia-Noite, Cristãos”, a emoção e o barulho eram


tantos que subíamos na palha das cadeiras, esperando ver os anjos
aparecerem de repente sobre o coro.
Mas os anjos continuaram parados em silêncio entre as velas, com suas
grandes asas em repouso.

Nós nos aproximamos deles, as mãos entrelaçadas sob nossas grandes luvas
de lã. Estávamos ajoelhados no mármore. O boi marrom e o burro cinza estavam
por perto. Estávamos ansiosos para tocá-los, para ver se seus cabelos se
separariam como uma fonte de água.

Mas nós, crianças, amamos outras crianças ainda mais do que amamos
os animais. Jesus estava deitado na palha. Amoleceu nossos corações
pensar que ele devia ser frio. Ninguém lhe deu meias grossas como nós.
Sem sapatos. Nenhum lenço para enrolar no nariz. Sem luvas verdes de lã
para cobrir as mãos. Olhamos um pouco atônitos para o pai São José, que
humildemente se levantou, nada fazendo para se glorificar, e a mãe
vestida de azul e branco, tão quieta e tão bela.

Conhecíamos apenas lindas mães com olhos puros, nas quais víamos
tudo. Tínhamos olhado para aqueles olhos tantas vezes. Mas as da Mãe do
Menino Jesus nos encantaram ao extremo, como se o Céu permitisse que
as crianças vissem nelas mais do que os homens.

Não dissemos nada quando descemos para a costa.

Quando as crianças não dizem nada, é porque têm muito a dizer.

Em casa, o chocolate fumado e a grande mesa coberta de bolos


nunca conseguiram afastar-nos, no regresso, das conversas invisíveis
entre os filhos das mães humanas e o filhinho da Mãe do Céu.

Em cima do piano havia sido erguido um presépio onde poderíamos,


em cima de um banquinho, pegar o boi e o burro nas mãos.
Pequenas velas rosa e azuis eram acesas todas as noites. Cada
criança tinha a sua, na qual soprava fundo ao final das orações. Atrás,
ajoelhada perto de uma cadeira, no escuro, a mãe conduzia nossos
impulsos religiosos, nos guiava.
Quando tudo acabou, quando nos voltamos para ela para obter o
direito de apagar nossas luzinhas, vimos em seus dois olhos, brilhando, tão
muito fervor emocional. O paraíso entra no coração dos filhos através
do exemplo da mãe.
Naquela hora, humilde e comovente, a mãe soube que as alminhas
ficaram marcadas para sempre, que poderíamos soprar as velinhas
perto da manjedoura, mas que elas jamais se apagariam em nossos
corações.
Todo inverno, quando chega o Natal, as pequenas chamas acesas por nossas
mães mais uma vez queimam altas e brilhantes.
PARTETHREE:

—TELEMISÉRIA DEMANKIND—
IX – Os Cegos
O dinheiro, as honras, a confusão dos corpos, a ânsia de apoderar-se de
uma felicidade terrena que escorre entre os dedos e sempre escapa,
fizeram do rebanho humano uma miserável horda, arruinando-se,
despedaçando-se para encontrar uma libertação que não existir.

Só o falso riso que brota da turba serve para nos lembrar que não se
trata de animais de rebanho, mas de homens.
Esta debandada dos condenados apoderou-se primeiro do indivíduo, depois do
povo como um todo.

Não é mais um jogo solitário, em que se deixa fascinar por paixões


ou vícios pessoais. Comunidades inteiras são sugadas pela vertigem
dos desejos impossíveis, o desejo de ser o primeiro, ou seja, o desejo
de pisar, o desejo de poder puramente material, ou seja, o desejo de
sufocar e destruir o espiritual. Toda força de vontade, todo esforço se
torna inútil diante dessa dissolução humana, e é aqui que o espiritual
sempre reaparece, como repreensão, ou como maldição.

Essa baixeza se derramou dos círculos limitados das “elites” para


os círculos estendidos das massas, lançando-as em ondas de desejo
infinito, ambição e pseudo-prazeres que são apenas caricaturas de
alegria.
A água límpida do coração foi nublada até seus limites externos. O rio

dos homens agora carrega um fedor pútrido.

A desordem do século transtornou este rio que já foi luz, juncos e


revoadas de andorinhas.
Homens e povos se olham com olhos violentos, suas mãos
cauterizadas e mordidas por sua avareza.
A cada dia o mundo é mais egoísta e mais brutal.
Há um grande ódio entre os homens, entre as classes, entre os povos,
porque todos estão empenhados na busca de bens materiais que, em
última análise, nada valem.

Mas todos abandonam os bens, oferecidos a todos, do universo moral e


da eternidade da alma.
Corremos loucamente, sangrando nossas testas batendo nossas
cabeças contra as paredes, em caminhos de ódio, ou de abjeção, ou de
loucura, gritando nossas paixões, nos lançando descontroladamente em
tudo, desejando ganhar o que nunca poderemos ter.

X – As Linhas da Tristeza

São poucos os corações que não foram maculados com vilania, atos sórdidos,
faltas leprosas, deixando rachaduras reveladoras para quem tem olhos para vê-las.

Mesmo os corações lavados das manchas do pântano moral ainda guardam


um gosto amargo da imperfeição e das cinzas.

A porcelana rachada pode ser consertada: no entanto, quem a viu quebrada


reconhecerá para sempre as linhas, por mais finamente reparadas que sejam, da
quebra. Ele sabe que a unidade invisível dos perfeitos nunca retornará, mas se foi
para sempre.

Quanto mais se vive, mais o coração fica marcado por estas linhas de dor,
imperceptíveis para todos os que não viram ou não souberam o que as
fizeram, mas comoventes por tudo o que contêm de delicadeza partida, como
sedas finas que se rasgam silenciosamente.

Felizes novamente, aqueles que são purificados pelo sofrimento invisível!

Quantos outros, qualquer que seja o valor do vício, se esforçam


para se convencer de que essa humilhação foi útil, marcada para
sempre por essa vestimenta ardente que esfriou em sua pele e
grudou nela, corrompe sua carne e se torna uma com ela.
De quem são os olhos que alguém pode encontrar sem tremer?
O que eles estão escondendo?

Quem não foi um dia vil, quem não traz consigo palavras, gestos,
desejos, vergonhosas abdicações ou o cadáver mumificado de sua
vida interior?
Quantos homens, quantas mulheres nem mesmo escondem a
falência de seus sentidos, seus juramentos e a miserável profanação
de seus corpos? Às vezes com remorso. Na maioria das vezes, sem
remorso. Ou melhor, até com um toque de triunfo e provocação
insolente.
No final das contas, aqueles que liquidaram tudo, a decência, o pudor, o
respeito por si mesmo, pelo próprio corpo, pela própria palavra, e Deus com o
resto, são apenas o resultado de centenas de negações anteriores menores,
negadas ou escondidas desde o início .

O todo só é destruído quando as inúmeras fibras do coração são


dilaceradas uma após a outra por mentiras e más intenções, seguidas
de múltiplos abandonos cada vez mais irremediáveis, com a
consciência assassinada, ao final – desastre.
A decadência enfraquece a mente antes de se espalhar por todo o
ser.
O corpo não cede, não se deixa degradar, aprisionar e corromper
até a morte, até muito tempo depois que a alma, negligente ou
embriagada pelo apelo do pecado, abandonou os remos que, no
início, traçavam caminhos retos em águas puras .

XI – Os Santos
Os santos, variando em inteligência, mas possuindo um coração dado sem
limites, a quem os caídos e corruptos têm em tal estima, os santos nos mostram
que a perfeição está ao alcance de todos. Eles também eram homens simples,
mulheres simples, carregados de paixões, fraquezas e muitas vezes faltas.
Eles também às vezes se cansavam, cedessem e diziam a si mesmos que
nunca conseguiriam se livrar daquele cheiro de sujeira e pecado que nos
acompanha.

Mas ainda assim eles não renunciaram a si mesmos.

A cada queda, eles se endireitavam, determinados a serem ainda mais


vigilantes à medida que suas forças falhavam.

A virtude não é um deslumbramento repentino, mas uma conquista lenta, difícil e às


vezes muito dolorosa. Eles tiveram a alegria sobre-humana de finalmente se sentirem
vitoriosos sobre seus corpos e seus pensamentos.

Sua luta nos diz que a felicidade, na terra e além da terra, está ao
alcance de todos. Cada um de nós tem uma escolha a fazer.

Antes que o corpo falhe, é o espírito que triunfa ou capitula. E mesmo


quando o corpo cedeu, o espírito pode levantá-lo, ou deixá-lo corromper-se
ainda mais, e depois envenenar-se para sempre.

Nós somos nossos próprios mestres. Podemos afundar nos


abismos, ou ficar neles até o ombro, ou sair deles e superá-los. Tudo
pode ser evitado, e tudo pode ser feito.

XII – A Eterna Crucificação


Diante das ironias desdenhosas de hedonistas e céticos,
dificilmente alguém ousa lembrar que, há dois mil anos, o maior
drama humano, o da Paixão, se repete espiritualmente a cada
primavera.
Quem sofrerá, quem estará perto do Calvário nestes novos dias de
agonia?
No deserto do tempo está a Cruz.
A vida mundana, obscura ou perversa dos homens flui como um
rio sombrio. Cristo receberá os golpes e os espinhos. Ele cairá no
chão. A madeira da cruz esmagará Sua carne. O martelo
dará grandes golpes contra as duras vigas.Traspassaram minhas mãos e
meus pés, posso contar todos os meus ossos.
O que o mundo saberá?
Seu sangue descerá lentamente em seu corpo pálido. Seus olhos buscarão
tanto Seu Pai quanto nossas almas.

O que nossas almas entenderão sobre essa tragédia?

Eles não estremeceram ou choraram.

Nem sequer pensou nisso.

Nem visto.

Cristo se move bem sozinho. Sozinho.

As almas dormem, ou são estéreis, ou se suicidaram, enquanto é


para tirá-las de seu torpor, lama e morte que este corpo pende entre
o céu e a terra em dor.
A angústia deste coração lança em vão um grito de desespero que deveria
congelar a terra e parar a respiração dos homens.

No entanto, é por causa da asfixia espiritual do homem que o mundo está


desmoronando.

É esperança, caridade, justiça, humildade que o mundo precisa para encontrar ar


puro.

Recebemos esta vida espiritual como um dom. Nós

somos os portadores.

E nossas mãos estão penduradas ao lado do corpo. E nossos olhos estão


secos. E nossos lábios não tremem de fervor e emoção.

Nossos corações são como areia seca.

Nossas almas jazem sem vida onde morreram.

A fé só vale enquanto conquista, o amor enquanto queima, a


caridade enquanto salva.
XIII – Ninguém
Uma palmeira treme. A areia desliza entre os dedos bronzeados de uma
criança. Cordeiros marcados com sangue colidem com testas teimosas.
Burrinhos minúsculos, olhos molhados, descem da colina. A paisagem da
Páscoa, limpa e brilhante. O ar ainda está fresco. As margaridas estão
espalhadas na encosta.

Por que Cristo sofre novamente a agonia mais dolorosa nestes dias
em que leques de flores de mimosa enfeitam as estradas sinuosas?

Essas estradas claras e quentes o trazem de volta todos os anos, silencioso e


em agonia, aos pregos e espinhos, ao sangue e ao escarro.

Senhor, seguimos-te na tua poeirenta procissão, misturados com


aqueles rudes e covardes pescadores que te amaram, mas que te amaram
como nós: com medida, como se a medida não fosse um insulto ao teu
amor.

Somos como eles, não piores do que os outros, nossos olhos às vezes brilham
de alegria em servi-lo. Dispensamos os intrusos, acenamos com as palmas das
mãos, acreditamos estar muito perto do seu coração: pensamos que somos
melhores do que somos.

Em seus olhos tristes, é a nossa vaidade que projetamos.

E nesta hora de agonia, porque nosso amor está sempre por um


fio, nos afastaremos de suas feridas, de seu sangue e suor e desse
grande grito gelado que perfurará a terra.
Senhor, estamos voltando para seus pés azuis. Nós apertamos esta
madeira da cruz entre nossos braços trêmulos.

Como ousamos olhar para sua maldita cabeça?

Não ousamos fazer nada além de estender nossos corações consternados


a você. Teria sido tão doce entregar nossas almas a você em um ato completo,
estar com você desde o Jardim das Oliveiras até este monte onde você paira
inerte ao vento da noite. Nós nem sequer tivemos o destino do
Ladrão penitente, aquele que te amou por último, que te considerou quando
caiu no céu.

Sofremos a força avassaladora de nossas fraquezas, nossa covardia,


nossa tepidez. Senhor, trouxeste-nos o essencial e o eterno, o pão e a
bebida, a respiração e o sol. Você animou nossos corações, você nos deu
força. Devíamos ter pulado, leves, com o coração em festa, libertos para
sempre de todo laço, todo arrependimento, toda outra esperança. No
entanto, permanecemos, com medo, escondidos na sombra de uma porta
ou sob uma oliveira brilhante. Você foi, esmagado e sobrecarregado com
insultos. Ah! meu Deus ! Nestes minutos de dor e salvação não agarramos
a Cruz, não beijamos as tuas chagas e os teus espinhos, não pusemos em
fuga os teus carrascos, não quebramos os seus chicotes, não refutamos os
seus insultos. Não sabíamos amar.
No momento dessa entrega total, nossos corações estavam sem vida.

Meu Deus, aí estás abandonado por todos, calado e triste, de membros


rígidos. Não havia ninguém, ninguém.

Apertamos a madeira morta e partimos, sem erguer a cabeça, deixando


aos vossos pés os nossos corações derrotados.

Voltarás à luz, Senhor. Nesta hora, tenha piedade das almas


destruídas! Tenha piedade das almas vazias!
Sofremos tanto com nossos sentimentos mesquinhos e vis, tão imbuídos de
nós mesmos, tão preocupados com nosso egoísmo, nossas ambições, nossas
vaidades.

Deixamos você sofrer, vimos seu sangue fluir, vimos você plantar sua cruz,
vimos a vida desaparecer de seu rosto. Será que algum dia ousaremos olhar para
suas feridas abertas e encarar seus olhos cansados?

Senhor, a hora está próxima, sua luz irromperá repentinamente sobre a


colina. Ainda estaremos lá, envergonhados e tristes. Queime nossos corações
com sua doçura deslumbrante, dê-nos o calor e a pureza desse fogo divino do
qual você brotará.

Estamos sobrecarregados no limiar de sua tumba.


Senhor, faça florescer em nossas almas derrotadas a centelha da
ressurreição!

XIV – Ter Amado


No céu dourado e gelado, uma cotovia estremeceu. O

que ela estava pensando lá em cima?

Ela estremeceu, soltou gritos estridentes, desmaiando a cada


segundo, agarrando-se ao céu com um bater de asas que passou
como um raio.
Ela amava amar, até que quebrada, quebrada de felicidade, ela caiu como
uma pedra em um sulco

A alma também voa.


Ela chora de amor. Ela permanece, suspensa na imensidão mística, apenas
pela maravilha das asas invisíveis que a sustentam.

Ela nem sabe mais que pode cair, que o chão está sob ela; ela está
ali, desligada de tudo, trêmula, palpitante, como se falasse!

A cotovia que desmaia sobre a terra quente deve sentir também esta grande
alegria do amor realizado. A alma está ofegante. O amor retorna em ondas e se
divide em esforço, doação e alegria.

A grande tragédia do pecado, que causa tanto sofrimento, é que por causa
dele damos menos de nós mesmos, ou damos mal, oferecendo apenas uma
porção do que poderíamos ter, uma porção com indícios de impureza
indelével.

Amar é dar. E dar é dar tudo. O castigo da queda é a dor de ter


pisoteado o seu amor, de ter reduzido o amor que poderia ter dado.

Se ao menos pudéssemos tirar de nossos corpos, de nossas mãos, de


nossos olhos, essas forças que neles pulsam nas horas de fraqueza e
abjeção.
Tarde demais: para nosso desgosto.

Podemos chorar todas as lágrimas do mundo. Não importa o que aconteça, nunca
poderemos recuperar o que perdemos tão descuidadamente. O dia da Queda, apesar de
todo o nosso arrependimento e remissão, continuará sendo o buraco negro no qual o
bem do mundo será eternamente perdido.

Podemos nos esforçar para amar, a partir de então, tão ardentemente quanto
pudermos, mas não iremos recriar a pureza perdida, nem recuperar a parte mais
bela do amor que foi aniquilada. Nosso amor poderia ter sidomuito maior.

O que ainda possuímos para oferecer na hora do mais alto Amor levará,
façamos o que fizermos, esta terrível marca.

É por isso que ter profanado o Seu dom de si faz sofrer até o fim da
vida o coração que anseia pelo Absoluto.
Gostaríamos de ser nós mesmos Deus, recuperar este dia ou estes
tempos, dar-lhes o frescor da aurora e guardá-los com medo até a
noite.
Desde o primeiro passo em falso, sabemos que não vamos mais amar tanto
quanto poderíamos. Isso é o que torna o arrependimento – porque não pode
consertar um homem quebrantado – tão doloroso.

Quando conhecemos esta dor do irreparável, buscamos além das


possibilidades do nosso coração, para que alguns momentos de amor
sublime, apreendidos com grande esforço, possam compensar o que
caiu nos pântanos e nas sombras.
PARTEFNOSSO:

—TELEJOY DEMPT—
XV – Forte e Duro
O sol se foi. Em meia hora estará na sombra. Os pássaros,

que cantam loucamente nos jardins, percebem isso.

Há rosas por toda parte, tão cheias de luz que logo morrerão.

A madeira já está dormindo em torno de alguns telhados.

Como sempre, os pássaros agora começam a emitir seus gritos agudos e suas
súplicas, sem dúvida para os dois amantes sentados ali, sonhadores, com um enorme
chapéu branco caído sobre os joelhos.

Toda a vida parece aqui condensada, nada vive à parte destes


pássaros, deste cão que ladra no fim do mundo e destes dois
corações que batem sem parar na calma da noite, pesada com a
vibração de Junho.
Como alguém pode acreditar no ódio? Alguém nunca viu as últimas
rosas escurecerem no leve silêncio da noite?

Teremos que nos afastar deste grande oásis rural mais tarde.

Será preciso pegar, novamente, no final do caminho, a estrada onde os


carros rasgam o chão por meio de uma chuva crepitante e implacável.

Haverá luzes brutais, rostos vazios, olhos sem alma.


Esta paisagem noturna é tão clara, é dada com uma generosidade tão
completa! Essas rosas moribundas, esses buquês de árvores, esses campos
de aveia cintilantes e cinzentos, esses abetos graves, são tão puros e
simples que uma maravilha infantil surge em nossos seres, perto dessa
eterna juventude de ervas, árvores e flores.
Não podemos mais ouvir nada. A
noite alisa as rosas.
A floresta cortava sua silhueta recortada nos brilhos moribundos. O último
pássaro cantante pára como se também ele, de vez em quando, devesse
simplesmente escutar o silêncio. Os dois amantes desapareceram, as mãos
trêmulas, um leve vento nos cabelos.

Eu deveria seguir em frente.

Irei devagar, sem perturbar os ramos e a variedade da vida que


desliza pelas sombras. Vou adivinhar o esboço das coisas. Sentirei o
orvalho florescendo na ponta da grama, que refrescará o sol amanhã
quando subir no topo do bosque.
Onde está a noite dos corações, da qual brotaria a tenra manhã?

Teremos que renovar nossas mágoas, retomar nossas caminhadas pelos


campos e matas perdidas, entre corações frios.

Quem compreenderá depois, nos clarões selvagens, diante de


nossos olhos trêmulos, que acabamos de deixar as florestas e os
trigais, a sombra e o silêncio?
Mas por que vacilar? No final do caminho, vemos como a vida cruel
arrebata tudo na boca do lobo.
Já não olhamos para nada, já não pensamos, já não respiramos
este ar carregado de cheiro de morte passageira.
Apague as luzes. Que a noite pese em nossos corações.

Amanhã, quando a aurora chegar ao cume das árvores, teremos diante de


nós apenas o horizonte fechado do homem.

Teremos que ser fortes e duros, alegres por nada além do brilho
de nossas almas.
Tarde moribunda, silenciosa e certa da aurora, dai-nos a paz de
esperar a luz que renasce, renovada, da imensa e auspiciosa noite.

XVI – O Preço da Vida


Devemos reiterar o preço da vida. A vida é o admirável instrumento colocado
em nossas mãos, com o qual forjamos nossas vontades, elevamos nossas
consciências e construímos um monumento da razão e do coração.

A vida não é uma forma de tristeza, mas alegria que se fez

carne. Alegria de ser útil.

Alegria de dominar o que pode nos rebaixar ou enfraquecer.

Alegria de agir e doar.

Alegria de amar tudo o que estremece, o espírito e a matéria,


porque tudo sob o impulso de uma vida justa se eleva, ilumina em vez
de pesar.
Você tem que amar a vida.

Às vezes, em tempos de cansaço e desgosto, quase perdemos o amor


pela vida.
Você tem que se recompor, se endireitar.
Muitos homens são degradados? Mas, ao lado e em oposição àqueles
cuja baixeza é uma blasfêmia contra a vida, estão todos aqueles que
vemos, ou não vemos, que redimem o mundo e honram toda a vida.

XVII – Despoliação
A felicidade nascida da ignorância não é lisonjeira. É

uma espécie de felicidade estreita e vegetativa.

A inteligência não tem nada a ver com isso, nem o corpo.


A verdadeira felicidade, a felicidade digna do homem, aquela que o
eleva, é a felicidade assegurada pelo espírito,

A felicidade nascida do despojamento da alma, da renúncia da


alma, na contemplação dos prazeres humanos, é sempre feita ou
quebrada pelas circunstâncias.
Feliz aquele que não é escravo das circunstâncias, aquele que sabe
gozar tanto do prazer quanto da privação.
Enquanto alguém sofre de tal privação, enquanto sofre
comparando seu destino material com os outros, não somos felizes
nem livres.
Manter-se de bom humor, mesmo viver com a alma separada do
mundo quando o universo exterior não contém nada além de um vazio
escancarado, viver intensamente nesta “ausência material”, viver sem
arrependimentos, senhor de seus desejos, tendo-os dobrado ao domínio
completo do espírito marca a vitória do homem, a verdadeira, a única
vitória, perto da qual as maiores conquistas e domínios são meras
caricaturas do poder.

Qualquer comparação parece risível perto da libertação trazida pelo


domínio do espírito sobre nossas posses, nossas necessidades e nossas
correntes.

Somos libertos das velhas correntes enferrujadas que nos prendiam a conformismos
medíocres.

Temos o Destino em nossas mãos, Destino claramente descoberto em sua


nudez libertadora.

A felicidade pode nascer em qualquer lugar. Ele vem, não de fora, mas
de dentro de nós, contendo possibilidades infinitas.

XVIII – O Poder da Alegria


Há tantas coisas que podem lhe trazer alegria!
Mesmo quando, por meio de nossa força, estamos livres de nossos desejos,
somos felizes.

Apenas a alegria de viver é tão poderosa!

Alegria de ter um coração radiante!

A alegria de ter um coração robusto, braços e pernas duros como árvores,


pulmões que extraem vida e ar!
Alegria de ter olhos que ganham cores e formas em suas curvas
suaves!
Alegria de pensar, de passar horas traçando as linhas retas da
razão ou festejando os sonhos!
Alegria de acreditar, alegria de amar, de se doar, de caminhar pela vida,
flexível como a água!

Como alguém pode ser infeliz!

É tão simples, tão básico, tão natural!

Nas piores calamidades, a felicidade sempre irrompe como um


gêiser que tentamos obstruir em vão.
Felicidade e vida são a mesma coisa.
Não ser mais feliz é duvidar do próprio corpo, do calor do próprio
sangue, do fogo consumidor do coração, é duvidar dessas grandes luzes
do espírito que banham toda a existência.
Até o infortúnio ainda nos traz as alegrias da alma que dá seu próprio
sangue, que pesa seu sacrifício, que sente profundamente o aguilhão
amargo do infortúnio.

Uma alegria cruel, mas uma alegria maior, uma alegria reservada para o homem cujo
coração partido entende.

XIX – Sonhar, Pensar


As horas de sonho são horas de vida profunda, onde toda a poesia
que flutua na nossa consciência se levanta e corre aos borbotões.
Então o sol vem.
A névoa nevada desce como se fosse chamada pelo rio. Vemos
diante de nós a brilhante e clara espada de água. E a razão reordena
e reúne as descobertas dispersas, surgidas do sonho, unifica-as sob
seu domínio.
Alegria de encontrar, de comparar! Alegria de dar sentido e
direção! Alegria de compreender e de escalar as encostas e os cumes
do verdadeiro, do belo e do útil!
A mente o ordena em linhas claras e paralelas e extrai as leis reveladas
dentro delas. O homem sente-se então senhor de todos os elementos, senhor
deste universo desproporcionado onde o seu cérebro, não maior que um
pássaro ou uma fruta caída, impõe uma ordem e uma harmonia abrangentes.

Quem não sabe aproveitar as possibilidades de sonhar e pensar,


oferecidas ao homem a cada segundo, ignora a nobreza da vida.
Sempre podemos nos encantar, pois os sonhos são nossos violoncelos secretos.

Pode-se sempre pensar, isto é, tendo a mente não só ocupada,


mas vibrante, tendendo a uma dominação mais poderosa, mais
estimulante que o fogo de mil desejos.
Ficar entediado é desistir do sonho e do espírito.
O tédio é a doença das almas e cérebros vazios. A vida rapidamente se torna uma
tarefa terrivelmente monótona.

O próprio amor só se exalta e se maravilha na medida em que o


ser superior alimenta a poesia, fortalece os impulsos da sensibilidade.

Ainda é preciso sonhar e refletir sobre o amor deles.

XX – Paciência
A paciência é a primeira das vitórias, a vitória sobre si mesmo, sobre os
próprios nervos, sobre as próprias fraquezas.

Enquanto não a adquirimos, a vida é apenas uma cascata de


capitulações, capitulações feitas na luta, certamente, clamando no que
percebemos como manifestações de autoridade, mas que na verdade são
apenas uma abdicação ao orgulho mesquinho.
Ser paciente é esperar a sua hora, com o dedo no gatilho, como quem
espreita a presa; é construir cada uma das ações do dia em consideração à
ordem e ao equilíbrio, lançando cuidadosamente as pedras fundamentais
que sustentarão o edifício.

A paciência traz a alegria de não ter cedido.


A impaciência deixa o coração com a reprovação de ter sido
exilado e de ter sido autor de vaidade e vãs agitações.

XXI – Obediência
Nenhuma grande obra é realizada com egoísmo e orgulho. Obedecer é

uma alegria porque é uma forma de dom, de dom clarividente. Obedecer é

frutífero, multiplicando por dez o resultado dos esforços.

Obedecer é um dever, porque o bem comum depende do encontro


disciplinado de muitas energias.
A sociedade humana não é formada por uma nuvem de mosquitos
ferozes e fantasiosos, correndo ao vento de acordo com seus interesses
pessoais e seu humor. É um grande complexo sensível, tornado estéril ou
perigoso pela anarquia, ao qual a ordem e a harmonia dão possibilidades
ilimitadas.

Um povo rico de milhões de habitantes, mas egoisticamente isolado e


atomizado, é um povo morto.

Um povo pobre onde cada um reconhece com inteligência seus limites e


suas obrigações comunitárias, obedece e trabalha em equipe, é um povo
com vida. A obediência é a forma mais elevada de uso da liberdade.

É uma manifestação constante de autoridade, autoridade sobre si mesmo, a


mais difícil de todas.

Ninguém é realmente capaz de comandar os outros se primeiro não


souber comandar a si mesmo, domesticar nele o orgulhoso andarilho
que gostaria de se lançar loucamente aos ventos da aventura.
Depois de obedecer pode-se comandar, não como um bruto, gozando do
direito de esmagar os outros, mas porque o comando é uma prerrogativa
magnífica quando visa disciplinar as forças indisciplinadas, conduzi-las à
plenitude da obediência, a esta fonte superior de alegria.

XXII – Bondade
Às vezes uma palavra, uma única palavra, um gesto carinhoso, um olhar
cheio de amizade sincera, pode salvar um homem à beira do abismo.

Pelo carinho e pelo exemplo tudo podemos.


Gritar e atacar raramente leva à origem dos problemas.

É preciso ter bom coração, descobrir o que se passa entre a névoa


de cada coração, temperar a repreensão necessária com uma piada
amiga que dê esperança, colocar-se sempre no lugar do outro, na
alma do outro, pensar de sua reação pessoal se você tivesse recebido
a observação, o encorajamento, a repreensão, em vez de endereçá-la
a outros.
A maioria dos homens são adultos, bastante perversos, mas ainda sensíveis,
tensos em relação ao afeto.

Não há trinta e seis caminhos para guiá-los, há apenas um: o do


coração.
As outras estradas às vezes parecem mais fáceis de seguir, mas, no final das contas,
não levam a lugar nenhum.

XXIII – Feliz Isolamento


A companhia dos outros não passa, na maioria das vezes, de
inquietação, barulho, inquietações que giram em torno da solidão mútua.

Buscar constantemente o que se chama de estimulação é ter medo


de estar na presença de si mesmo.
É, na verdade, levantar voo moralmente.

Como você pode confundir alegria com estar constantemente misturado na


multidão tumultuada?

Por que alguém deveria absolutamente ser engolido entre outros


seres para se acreditar feliz?
A pessoa está, então, apenas em contato com a casca das árvores dos outros,
desfruta apenas de suas atitudes artificiais ou superficiais.

Isso obviamente pode dar distração, prazer temporário, uma espécie de


lufada de vento ou ar fresco.

Mas que abismo entre esse “prazer” superficial e a alegria profunda e


essencial da conversa consigo mesmo, da análise dos próprios
pensamentos íntimos e da sensibilidade mais secreta!
Lá vemos tudo; vamos à fonte de tudo.
Negar o poder, a magnitude dessa verdadeira alegria, é negar toda a
vida interior.
A solidão é uma oportunidade maravilhosa para a alma se
conhecer, vigiar, aprender.
Apenas cabeças vazias ou corações inconstantes têm medo de ficar calados
diante de si mesmos.

É nessas horas que vemos se nossos sentimentos são sólidos ou se


não passam de ruído.
Sentimentos elevados podem viver sozinhos, sem presença física; pelo
contrário, o isolamento os purifica e os faz crescer.

A alegria, a alegria que se espalha como um bloco de granito sob a


água da vida que flui, aquela que nunca desiste e que nunca desilude,
reside na luta interior, na exaltação interior: vigiar-se, dominar-se,
purificar-se, elevar-se, ter coragem de pensar.

Porque é tão simples ser preguiçoso ou covarde diante do trabalho


espiritual!
Tenha energia para expandir seu mundo oculto! Amar
intensamente, ou seja, doar-se silenciosamente, sem relutância!
Preferimos esquecer ou negar que essas alegrias fundamentais
existem, contentar-nos com gozos imediatos que julgamos superiores
a tudo, e depois dos quais nada temos, muitas vezes, senão pó no
coração e um murchar das asas.
Os místicos há muito conhecem essa constante animação da vida
interior.
Foram menos felizes, tiveram menos alegria do que nós que tagarelamos,
misturados com rostos onde só descobrimos aparências, alimentados por
palavras que morrem com o eco?

A alegria dos místicos é apenas um exemplo.

A mesma alegria interior existe em outros estágios de espiritualidade e


sensibilidade.

A presença de outros nem sequer é essencial.


Pode-se amar perfeitamente, ser possuído pelas maiores alegrias do
coração, na distância física e até na morte.
Enquanto não nos libertarmos uma vez dos elementos externos,
enquanto não pudermos viver sozinhos, ou seja, na companhia mais
real, que nada possa perturbar, ainda não atingiremos o próprio
limiar da alegria .
Ao invés de reclamar da solidão, você tem que abençoá-la, tem que
aproveitar essa possibilidade inesperada de se examinar em silêncio
e se dominar com lucidez, por completo, mesmo nos seus
pensamentos mais contraditórios.
Portas fechadas para o mundo? Rescisão intencional de contato com o
exterior?

Muito melhor!
Porque significa, se quiserem: portas abertas para a alma, contato exato
consigo mesmo; alegrias estimulantes do conhecimento, espiritual
realização e, misticamente, o presente mais delicado e completo.

XXIV – Grandeza
Muitas vezes é fazendo, com a máxima nobreza, mil coisinhas
chatas que você é grande.
É infinitamente mais difícil esticar a alma mil vezes, todos os dias,
sem alívio, do que dar um único grande impulso no momento de um
evento visionário.
O mérito a ser dado ali é pequeno.

A magnitude da oportunidade fugaz por si só nos dá força para agir, o


desejo de surpreender, ao mesmo tempo que nos permite ter a opinião mais
elevada de nós mesmos.

Você pode fazer uma grande coisa maravilhosamente e estar longe da verdadeira
grandeza.

A grandeza é a nobreza da alma que se desgasta, gotejando de vontade


de dar, cada um segundo os seus deveres, sobretudo quando se despoja
daquelas coisas que dão origem à vaidade.

Para mulheres e homens.


Grandeza para uma mulher é muitas vezes dedicar-se hora a hora a tarefas
domésticas enfadonhas e até prosaicas.

No entanto, quem irá admirá-lo?

Quem conhecerá as mil batalhas travadas, no fundo do coração, na


preguiça, no orgulho, nas paixões cantantes, na suavidade que
chama a alma e o corpo para as areias quentes da vida fácil?
Aquela que apesar de tudo isso avança, resiste, progride, é grande
porque a doação de si foi total, sem exigir a vaidade do
reconhecimento.
Tantas pessoas de alto status sempre reclamam, acham tudo
desagradável, nunca sabem como se alegrar francamente de nada!
Tudo lhes parece enfadonho porque nunca se desistem, porque se
aproximam de cada momento, mesmo quando isso exigiria apenas
um pequeno esforço, com a firme intenção de entregar apenas o
mínimo, e mesmo assim com relutância.
Tudo é uma questão de dar livremente.
Pessoas felizes são aquelas que se doam. Os insatisfeitos são aqueles
que estrangulam sua existência com uma retração perpétua, sempre se
perguntando o que vão perder.
Virtude, grandeza, felicidade, tudo gira em torno disso: doe-se!
Entregue-se completamente, o tempo todo. Faça o que tiver que fazer,
bravamente, com o máximo empenho, mesmo que o objeto seja apenas
um trabalho doméstico, sem grandeza aparente.

Onde quer que você esteja, acima ou abaixo, homem ou mulher, o problema é
exatamente o mesmo: é a doação que diferencia as almas claras das almas
atribuladas.
PARTEFEU TENHO:

- SOUAN'SDUTY—

(NOTES DOEÀ réFRONT)


XXV – O Grande Retiro
Morrer vinte anos antes ou vinte anos depois não tem importância.

Tudo o que importa é encontrar uma boa morte.

Somente com esse objetivo em mente podemos realmente começar a viver.

Como um simples soldado, eu morreria de bom grado amanhã. A humildade


de minha sorte na frente de batalha me reconciliou com tal resultado. Não tendo
vivido como santo, morrer como alma de soldado seria o mais adequado.

Minhas semanas estão contadas? Então é melhor aproveitar essas


oportunidades para purificar nossas almas. Certa vez, sonhei em morrer após
uma longa doença, para me preparar melhor para o inevitável. Mas tal morte
ocorre necessariamente em uma atmosfera de poluição.

Na frente, nossa preparação se dá no sentimento de poder, no


desabrochar da vontade. Eu percebo o quão sortudo eu sou.

Talvez eu volte vivo, mais vivo do que nunca?


De qualquer forma, este grande retiro, que a vida ou a morte encerrará,
terá sido uma bênção. Desfruto livremente, plenamente, como um sol
nutritivo e belo.

Por que eu deveria tremer sob seu fogo?

O soldado aprende a ser grande entre as coisas mais mundanas ou


mais dolorosas. Heroísmo é ficar de pé, lutar, estar sempre alerta,
feliz e forte, na miséria sem nome e não reconhecida da frente, na
lama, no excremento, nos cadáveres, na névoa de água e neve, nos
campos sem fim e sem cor, no total ausência de alegria exterior.
Todos os dias nos afastamos do mundo feliz do passado. Já não
estamos meio mortos, nós que avançamos, rangendo os dentes,
pelas brumas?
Sempre olhe para aqueles que têm menos do que você e regozije-se com o
que você tem, nunca cobiçando desejos efêmeros.

A vida é sempre bela quando você a olha com olhos serenos, a luz de
uma alma em paz.
Nós soldados, não temos nada, e somos felizes.
A alegria de uma alma desimpedida só pode florescer quando alguém se livra
dessa confusão de escravidão mental.

Guerra não é apenas combate. Acima de tudo, é um longo, às


vezes cansativo, às vezes até o tédio, de renúncias silenciosas, de
sacrifícios diários, sem alívio.
A virtude é forjada da mesma forma em todos os lugares.

As privações, suportadas com humildade, esperando pacientemente a


chegada da Morte, a doação de si – longe dos holofotes, faz-se o seu papel em
campos e bosques desconhecidos, neste deserto longe de toda a alegria
humana.

Tal é a verdadeira guerra, aquela travada por milhões de homens que


jamais conhecerão a ostentação da glória e que - se não morrerem -
voltarão para casa com as faces apertadas, os lábios cerrados, pois outros
não compreenderiam os desgostos e renúncias em seu obscuro heroísmo.

A multidão só fica impressionada com o heroísmo quando está brilhante e


barulhenta. O que impressiona o público é o brilho, e não a dolorosa e lenta
ascensão das almas que sobem no silêncio e na sombra à grandeza.

Mas alguma vez fomos compreendidos? Nós ouvimos, nós vemos


alguma coisa além do superficial? O fundo dos corações é um tal abismo
de desejos, negações, mágoas que preferimos não nos aproximar dele.
É mais simples, mais agradável ficar no superficial e, sem pensar muito,
apreciar as palavras e atitudes que tecem a tapeçaria do drama
humano.
Nós, soldados, estamos atrás dessa tapeçaria. Que almas
imaginarão nossas viagens; quem terá força para se juntar a nós
espiritualmente?

Zelo, mesmo inteligência, não pode ser suficiente.

Ter cultura é ter equilíbrio mental, iluminação, sabedoria, que só


pode ser resultado de uma longa disciplina das faculdades
superiores, onde o único método comprovado é a aplicação de amplo
contato com os trabalhos mais fundamentais da inteligência humana.

O estudo desinteressado das civilizações antigas, mães de idéias e


sistemas, o estudo da Filosofia, o estudo da Matemática, o tecido
secreto de todas as Artes, o estudo comparativo das lições da história,
só isso pode trazer a harmonia do ser humano. faculdades, sem as
quais os sucessos mais deslumbrantes sempre têm um caráter de
milagre e fragilidade.
A maturidade intelectual não é inconciliável com a genialidade. A
maturidade torna o gênio exato e humano, canalizando-o para um
fim desejável. Sua força não é assim diminuída, apenas mais útil.
Richelieu não teria dado à França metade das bênçãos de seu gênio
se tivesse sido autodidata.
A origem da debilidade mental do nosso século é que é o século dos
autodidatas. Seu trabalho tem um caráter desordenado, desumano e
instável. O verdadeiro gênio, ou pelo menos o gênio beneficente, é
equilibrado, o que traz felicidade, progresso e ordem.
O gênio instintivo é estonteante, deslumbrante, mas sempre a um grande
custo.

Quando os fogos de artifício desaparecem, o céu parece mais escuro do que antes.

O banal e o vulgar são vizinhos do grandioso e do eterno.

Anteriormente, observei um porco indo para o abate. Ele gostava da


vida, coitado. Quase exangue, ainda ofegava e gemia. Bestas e homens,
diante da morte, somos iguais. No entanto, a nossa honra exige, e
devemos ter muito cuidado para garantir, que na hora da nossa morte
tenhamos a coragem de enfrentá-la com dignidade.
Soldados, arriscamos nossas próprias peles o tempo todo e, portanto, temos uma alegria
muito simples em apenas existir.

A morte está sempre bem na nossa frente. A morte está em toda parte.
Portanto, entendemos a grandeza da vida melhor do que os outros.

Se a alma não se levantasse, reta como o cano de uma arma, reta como as
cruzes sobre os túmulos, rapidamente afundaríamos na decadência moral.

Todo o nosso mundo é feito de bosques, campos, pântanos, árvores


despojadas, perto das quais se vigia, de dia ou de noite, aquecendo as
mãos com o hálito, esfregando as orelhas, pisando terrenos hoje tão
duros e implacáveis como o granito onde ainda ontem era um mar de
lama.
À noite, a partir das quatro horas, observamos as sombras. Devemos
guardar bem o coração para não chorar diante de tamanho abismo. A
alma se depara com a entrega total.
E, no entanto, orgulha-se e canta, porque, desnudada como nos
tempos idos da inocência, conhece a gravidade da missão oferecida a
quem trilha este abismo solitário, a quem redimirá a cobardia e a
imundície de um mundo povoado por almas vazias.
Aqui suas asas começam a bater novamente, sacudindo a lama seca que
antes as sujava. Reencontram a alegria no retorno ao ar puro, ao espaço
aberto, às linhas distantes.

Se nós, aqui, tivermos compensado nosso sofrimento, teremos alcançado


nossa verdadeira vitória.

Mas nós, que sofremos, conseguiremos permanecer puros até o fim? Não

nos sentiremos ridículos, em nosso traje angelical, em nosso retorno?

Teremos a coragem de não nos envergonharmos quando


ouvirmos as inúmeras zombarias daqueles que sujaram suas almas e
que insolentemente se acreditam triunfantes?

XXVI – A domesticação dos cavalos


As pulgas se agarram aos nossos uniformes em fileiras cerradas. Ratos correm por
toda parte. No meio da noite, acordo e encontro um rato aninhado no meu nariz.

Esses companheiros nos fortalecem contra a vaidade e o orgulho, nós


que não podemos escapar nem do menor dos animais, do mais ridículo e
do mais sujo.
Mas a poesia está em todo lugar. Diante de nossas armas, milhares de
pardais pulam nas sebes, pássaros de barriga redonda dançando lentamente.
Eles ouvem, a um metro de distância, os pequenos elogios que lhes fazemos.
Então eles se acomodam em bandos selvagens nos juncos, choram, gorjeiam
e sibilam, como se o céu prateado tivesse jogado punhados de pura alegria
sobre a paisagem gelada. Há também corvos que passam, como relâmpagos
negros, poucos e silenciosos: de vez em quando soltam seu grande grito
rouco, sem dúvida para nos lembrar que a morte nos espera, dura como eles,
voraz como eles, em asas escuras e mortais.

Esforçamo-nos por sorrir sempre, aos pardais que cantam, aos corvos solenes
que passam.

Mas o coração é o coração; e todo homem, embora sorria com a boca


e os olhos, esconde-se sob os terríveis segredos de um animal sofredor.

Sentimos que a morte vigia por todos os lados. Cada passo cobra um preço,
nossos passos tornam-se pesados e devem ser tornados leves, apesar das
armas pesadas, dos pés tropeçantes, dos campos de grãos maduros que
arranham a pele, dos enormes buracos de granada nos quais um passo mal
colocado pode cair no chão. abismo sem uma palavra.

É isso, a vida ingrata de um soldado, que não conhece alegria nem


glória, onde, a qualquer momento, alguém pode ser esfaqueado, baleado
ou arrastado como prisioneiro pelo inimigo do outro lado. Você tem que
avançar com calma, metro a metro, mesmo quando os tiros podem soar
repentinamente a dez passos de distância. Ressoam tiros na noite, entre os
postos avançados, um grito rouco, e a noite avança, impenetrável,
congelada, implacável. Nessas horas, todo o nosso ser deseja se rebelar.
Cuidamos de nossas vidas, das de nossos camaradas, o sangue correndo
poderosamente em suas veias; somos seres da carne;
queremos que a luz renasça. Com vigor e calor, a besta humana ruge e
clama para que sua vontade se desdobre, queime, ressoe.
Permanecer encolhido, subjugado, permanecer nas sombras, pronto para o
ato final ou o último suspiro, exige uma disciplina terrível. Inflige ferimentos
terríveis à nossa vontade.

Mas o nosso gosto pela vida será ainda mais forte, porque
experimentamos mais intensamente o valor, o sabor, a doçura ardente de
cada segundo, caindo como uma gota de silêncio nesta grande tensão de
corações prontos.

Amamos, com poder desenfreado, nossa existência carnal, o ritmo de


nossos pensamentos, o ímpeto de nossos sentidos, que uma única bala na
noite poderia despedaçar.

Nossos braços! Nossas pernas! Nossos olhos! Cercar, cruzar, olhar


com paixão e domínio!
Tudo isso grita o direito do homem à vida, o direito do animal que
quer correr e agarrar, o direito da inteligência que quer encantar e
criar.
Vida! Que beleza, beleza indescritível, alegria, suavidade de corpo,
luz do meio-dia, ardor de fogo!
Nós cerramos esta vida em nossos punhos obstinados, os de silenciosos, atentos e pacientes
observadores das sombras.

Aprendemos a nos domar, a domar os cavalos selvagens que correm


pelos vastos campos dos nossos sonhos.
Mas segurando-os em nossas mãos com um punho de aço, fechamos os olhos e
inalamos o poderoso cheiro da vida que se acumula acima. Vida! Vida!

Está tão frio que os frascos de remédios quebraram. O próprio álcool


congelou na ambulância. Pobres pés, pobres orelhas, pobres narizes
congelados, mumificados na noite atroz, uivante, sibilante...
Esta manhã chegou a ordem de partir para outro setor de combate.
Iremos aonde nos ordenarem, sorrindo na neve que, desde que
acordamos, cai em flocos pesados.
Nossos pés estarão frios, nossos lábios estarão esfolados, nossos corpos,
encolhidos contra o frio, serão pesados e desajeitados, mas nosso fogo interior
continuará a crescer e encher nossos olhos com vislumbres do sol.

Aqui nossas almas estão tensas. Essas colinas baixas, essas fileiras de
abetos, essas mós abandonadas nos assistem, olhando nossas linhas com
olhos brilhantes.

Este céu negro que agora contemplo pela última vez, enchi-o com os
raios brilhantes de balas rastreadoras enquanto as balas do inimigo
soltavam seus gritos estridentes, como gatos atacando, ao meu redor.

Minha mala já está pronta. Olho para a palha amassada, quebrada em


pedaços menores no local onde habitualmente descansava depois de voltar,
cansado e congelado, das patrulhas noturnas. A pequena lanterna esfumaçada
lança uma luz amarela sobre meu último relatório diário. Mais algumas camisas,
alguns lenços, recém-lavados, já cobertos de poeira. Paredes toscas de barro, o
forno que aquecíamos com entulhos de barricadas, ladrilhos congelados,
pintados com desenhos de samambaias brancas…

Pegamos nossas tigelas surradas, nossos cantis, nossas armas


adornadas com raios negros.
Sem dúvida, a este lugar voltarão um dia plantas carregadas de
frutas, ícones cristãos, uma mulher vestida com pesadas anáguas e o
cheiro forte de gordura vegetal. Mas para sempre se foi a vida humilde e
agitada de muitos jovens estrangeiros, perdidos nas profundezas da
estepe, que partiram no meio da noite com mãos calejadas e sangue
congelado.
Esta praça miserável e mal iluminada tem sido o centro de uma
intensa vida espiritual. Essa vida partirá conosco e renascerá ao acaso
das estradas congeladas, alojamentos improvisados, aterros e
trincheiras de onde vigiamos e rastreamos nosso oponente, ou
evitamos seus golpes.
Podemos voltar a esses lugares um dia: mas o caráter essencial terá
desaparecido.

E assim, partimos de madrugada sem olhar para trás. A vida está à frente, mesmo
que a vida seja a morte.

Bah! quanto maior o sacrifício, mais damos de nós mesmos.


E foi para nos doarmos que nos levantamos, com o coração
radiante.

XXVII – O Ciclo Apocalíptico


O vento sopra em rajadas cortantes, açoitando a neve contra nossa
pele como dardos. O rio está congelado; congelado, seus pequenos
afluentes que corriam pelas fendas; congeladas, as colinas, os cardos
dos aterros, as fábricas em ruínas.
Meu próprio coração ficou frio, frio por causa desses meses de tensão da
alma, de recolhimento em solidão desumana; frias como essas rígidas árvores
negras que o vento norte açoita.

Aflição em tudo...
Todo mundo sente o frio. Partimos o nosso pão frio. Raspamos os
enormes pedaços de lama de nossas roupas com uma faca. Cortamos
grandes pedaços de cola preta de nossos sapatos e polainas.
Sem água. Você tem que percorrer três quilômetros para obter um líquido
marrom sujo cheio de aparas de grama.

Amemos nossa miséria de qualquer maneira, pois ela nos eleva, nos prepara para
destinos que exigem corações puros e fortes.

O ciclo das guerras é agora apocalíptico: as ondas alargam-se cada vez mais,
crescem em velocidade e força, para se espalharem num fabuloso movimento
giratório.

As guerras tornaram-se revoluções universais.


O mundo inteiro está preso em seu turbilhão: os exércitos se chocam,
as forças econômicas se chocam, se destroem, as forças do espírito
travam um duelo impiedoso.
O universo terá que sangrar, lutar, conhecer as dores da fuga, a
agonia da separação. Milhares de homens, milhões de homens terão
que olhar com olhos congelados ou febris para a Morte, sempre a
mesma, ou seja, sempre cruel, dilacerando o coração ao mesmo tempo
que a carne. Esse drama era inevitável. Só os cegos e os tolos, ou seja,
quase todos, acreditavam que se tratava de conflitos de nações rivais,
conflitos que podiam ser localizados.
No entanto, são guerras pseudo-religiosas implacáveis, bastante
semelhantes a todas as guerras religiosas, mas que tomarão proporções
quase ilimitadas, chegando até à última ilhota ou bloco de gelo, de modo
que todos os povos, sejam eles taitianos ou lapões, terão de escolha como
todo mundo.

Quando, como, terminará esse prodigioso acerto de contas?

Nossos céus serão cruzados por muito tempo por este raio. Nossos filhos
crescerão em meio aos clarões ofuscantes de ideias-ataques em queda ou
triunfantes.

Um século em que a escala do drama gela o sangue - mas um século


triste em que todo o universo está sendo refeito, mais pelo espírito do
que pelo ferro.
Tragédia como o mundo nunca conheceu tão completa, na qual somos
todos atores, mas onde é o coração que joga. Milhões de corações estão
em cena, ainda jovens e ingênuos, ou velhos e silenciosos, ou arruinados,
ou confusos.

Para caminhar cem metros entre as linhas lamacentas, voltamos quebrados,


como se cada passo exigisse todas as nossas forças.

Nada para fazer.

Nada para ler. Temos apenas um miserável lampião a querosene, com uma
pequena chama amarelada que ilumina um metro quadrado do nosso abrigo.
É preciso mais coragem para viver assim enfiado na lama do que
avançar sobre o inimigo com a metralhadora debaixo do braço. Você
pode sentir a tentação, as vozes abafadas, as perguntas
desmoralizantes: “O que você está fazendo aqui? Não vê que está
perdendo seu tempo? Seus esforços? Seus sacrifícios? Alguém ainda
lembra que você existe? Devemos deixá-lo sozinho para apodrecer no
esquecimento...? “
Mas a alma rapidamente recupera sua serenidade; ela sabe que
nada é mais precioso do que essa renúncia, essa descida silenciosa às
profundezas da consciência. A verdadeira vitória, a vitória sobre si
mesmo, pode ser melhor adquirida em outro lugar do que em meio a
essas humilhações, acolhida de cabeça erguida, contrapondo-se
diretamente a esse ambiente hostil, à solidão do coração e à astúcia
do inimigo que assalta o espírito?

XXVIII – Iluminismo
A guerra, para nós, soldados, é estar entre os pobres companheiros de
rostos sombrios, homens amontoados sob a terra gelada, definidos pelo
sofrimento sombrio, sem conforto; é a lama, é a neve, é o desespero sem
fundo, são os pés dilacerados pelos passos sem fim, são as centenas de
pequenas misérias vergonhosas que cercam a vida do soldado da frente,
como um apego e névoa de tristeza.

Esta vida sufocada pede sem cessar a convocação da energia, o


salto da alma, que deve arrancar-se dessa bruma para voltar a
brilhar.
Esta vida não tem nenhuma semelhança com as idéias brilhantes que
o público tem sobre as façanhas da guerra. Mas eles não devem ser
desenganados dessa noção. Com isso estragaríamos sua bela e colorida
imagem.
No entanto, deito-me exausto ao final de cada dia com uma alegria
um pouco triste, mas poderosa, porque é uma lição incomparável de
paciência, automortificação, elevação da alma.
Nunca devemos tentar enganar a provação ou abafar sua voz. Se a
lição fosse inútil, se não voltássemos como homens mudados pela
experiência, não haveria esse muro entre, de um lado, aqueles que
temiam a provação e, de outro, aqueles que olhavam para a
dificuldade em o olho e aprendeu com ele.
A vida crava suas presas em nós vez após vez. Escapei desta vez, como
tantas outras, com o coração cansado, preocupado e mastigado. Desejo agora
voltar para lá em paz, tendo encontrado a inocência na confiança.

É Natal. Observo a neve caindo incansavelmente e, apesar de sua


leveza, sinto que estou sufocando.
Soldados passam, curvados contra o vento, avançando rapidamente.

Ao meu redor, nada; sempre o vento soprando, um homem roendo


as unhas nervosamente, outros caindo no sono, exaustos pelas noites
de vigília.
Jesus poderia ter nascido em nosso pequeno abrigo.

Sinceridade dos bons animais sobre a manjedoura, que se


ofereceram inteiramente…
O coração sincero dos pastores, que não duvidaram nem por um
segundo, não hesitaram, e que de imediato deram tudo ao seu
dispor…
Eles só tinham ovelhas e deram suas ovelhas.
Quem, lembrando-se deles, não teria coragem? O que conta não é
o que você dá, ovelhas ou grandes tesouros: é o fervor do coração
que pesa na balança.
Às vezes a vida parece cansativa demais para carregar, dolorosa até
para pensar.
Hoje é quase uma angústia.
Para esquecer sua própria existência, sua alma gritando! O que

poderia nos deixar esquecer?


Passamos o dia matando às dezenas os piolhos que mastigam nossa
pele. Isso é tudo. E, no entanto, a alma deve permanecer alta, orgulhosa,
firme.

E deve permanecer assim.


Mas grandes vozes abafadas, no fundo, gemem.
Não somos homens de constituição diferente dos outros. Nós também
gostaríamos, quando ouvimos apenas os apelos dessa vida exterior, não fazer
nada além de acumular dinheiro ganho sem trabalho. Todos os homens
desejam isso, cujos corpos ficam quentes, cujos olhos brilham com aquela
mistura de desejo e prazer. A besta humana, a juventude, a necessidade de
dominar, ergue-se angustiada: você não está desperdiçando seus anos de
vida radiante? Observado pela morte a cada hora, não te arrependes, sentes
vontade de quebrar tudo e correr, de te lançares ao prazer, aos rostos
luminosos, às mulheres bonitas como os outros rapazes do teu tempo?...

São tempos em que é preciso abafar as paixões para alimentar a


alma e a fé, à custa de desejos tão humanos que brilham diante dos
nossos olhos como uma miragem.
Ficamos de guarda em nossos parapeitos gelados, com um toque de
amargura no coração, mas sumamente felizes pelo sacrifício renovado a
cada dia, sem saber se algum dia seremos compreendidos.

Final do ano. Eu recapitulo a linha dos dias de morte. Este

ano com seus segredos e suas luzes iluminantes...

Os segredos que se escondem atrás de um sorriso, mas que muitas vezes sangram,
como feridas nunca fechadas...

E então, as luzes, luzes mostradas sobre nosso caráter e nossas


ações.
Existem as luzes que podemos mostrar aos outros. São os menos
bonitos. Essas luzes heróicas que mostramos aos outros mantêm um ar
de teatralidade e falsidade, mesmo quando exibidas em modestas
moda. Só com grande dificuldade se pode manter um coração verdadeiramente
ingênuo e, ao mesmo tempo, evitar o excesso de orgulho...

Essas luzes, essas luzes imperfeitas permanecerão superficiais. Mas essas


luzes gloriosas machucam nossos olhos. Ficamos cegos quando os deixamos. E
tantas vezes somos lançados dessas luzes brilhantes para as sombras da
banalidade cotidiana ou de pequenos contratempos!

Eu me lembro dessas luzes. Amo-os apenas na medida em que


iluminaram aquele ideal para o qual caminho.
Eu só gostaria dessas luzes por esse motivo. Mas sei muito bem que
muitas vezes me deixei levar pela minha própria auto-satisfação.
Finalmente, essas luzes, necessárias para nos despertar para a ação, me
entristecem porque me mostram que, repetidamente, me encontro
mordendo o anzol da vaidade ou do orgulho.

E depois há as outras luzes, aquelas que ninguém mais vê de fora.


Eles iluminam nossas almas como raios-X. Então você sabe exatamente
o que você vale a pena. Pegamos essas luzes, não estamos mais muito
orgulhosos. Vemos claramente todas as nossas fraquezas, vemos
claramente a pobreza das desculpas que demos para cem erros, sempre
os mesmos.
Mas é precisamente por conhecermos bem a nossa própria
mediocridade que experimentamos alegrias inebriantes quando as
luzes que emergem do fundo da alma acabam por iluminar uma obra
heróica da nossa autoria. Ainda que seja um pequeno ato, nasceu de
tanta covardia secreta que aquele primeiro sorriso interior nos
mergulha em êxtases indizíveis.

XXIX – Intransigência
Quem nos manteve em seus pensamentos, os meninos perdidos das estepes,
que não tinham nada para beber para o ano novo, exceto neve derretida, riscada
com pedaços de grama amarela, ou alguns goles de café artificial que cheirava a
sabão?
Detalhes miseráveis, detalhes humilhantes, cuja evocação parece
deslocada: quem mais poderia imaginar como o frio cortante tornava
um esforço hercúleo mesmo nas tarefas menores, por exemplo a
miserável e inevitável doença da disenteria?
Claro, não tínhamos esgotos. Quinze, vinte vezes, em apenas algumas
horas, você teria que correr para a nevasca para se aliviar, deixando seu corpo
ser cortado por um vento cortante como uma lâmina, cortante como um
chicote.

Vaidade de nossos corpos, da qual tantas vezes nos orgulhamos!

A bela besta humana, forte, ardente de vida, deve se submeter a


essas humilhações! O corpo se rebela, mas deve ceder.
O corpo tão satisfeito com os ritmos agradáveis da vida! Corpo
que foi acariciado, beijado, amado: e nós acumulamos tanta
vergonha sobre você!
No entanto, nada pode atingir a mente que é mestre sobre si mesma.
Se o corpo é humilhado, é porque a vontade o conduziu a estas neves
sibilantes, ao fundo destes abrigos sórdidos. Ontem foi piolho. Hoje o
frio arranha a nossa pele. Nós desejávamos que fosse assim. Não nos
importamos que sejamos açoitados por esta situação hostil e feroz. Um
dia, os ventos cruéis se extinguirão com o retorno das folhas às árvores.
Nossos corpos, estendidos nas águas dos rios, ao sol e aos ventos,
sentirão a vida pulsando mais ardente do que nunca em torno de seus
ossos, fortes como o metal, sob a carne viva como a carne das flores,
dura e limpa como o mármore , mas dourado, cheio, vibrante! Tendo
sofrido e triunfado, abriremos os braços ao sol.
E nossos corpos lisos, poderosos e ásperos fluirão com sangue como a
seiva das grandes árvores virgens!

Nossas vontades trarão de volta à vida a bela fera humana, empinada com vida,
agora domesticada.

A estepe inteira, apanhada no turbilhão, pode muito bem crepitar, assobiar,


erguer-se em ondas gigantescas.
Apesar do frio que nos abrasava, apesar das rajadas de granizo
que crivavam nossos rostos, enfrentei cem vezes o turbilhão, para
encher os olhos dessa grandeza. Senti-me levado pelas rajadas,
comuniquei-me com esta força épica onde a planície branca, o céu e o
vento misturavam sua força, seus saltos, suas chamas geladas, seus
longos gritos brotando do horizonte e uivando ao final da a planície
trêmula.
Quais são, nesses momentos, as forças que se erguem em nós, em
comunhão com os grandes estalos naturais? Sinto-me então
transportado, uma felicidade imensa sobe de todo o meu corpo, como
se fossem estabelecidas correspondências fabulosas entre o meu
sangue que corre e o vento que sopra, entre a vida que ferve nos meus
membros e a vida selvagem que passa sob o grande céu .
Não há um de nós soldados que não precise estar preparado para
os finais mais horríveis.
Mas damos apenas com reserva?
A morte na humilhação, não é uma forma de dar ainda mais?

O verdadeiro sacrifício não pode ser calculado, não pode ser dado com
reservas.

Damos ouvidos aos cínicos com mais facilidade do que à mensagem dos corações
justos. No entanto, corações puros terão vitória. Somente os idealistas mudarão o
mundo.

Escrevo perto de um barril enferrujado, no fundo do qual flutuam os últimos


pedaços de grama da estepe suspensos em nossa água gelada. Essa pobreza, esse
isolamento, nós os conhecemos porque desejamos a sinceridade. E, mais do que
nunca, nesta solidão onde corpos e corações se sentem invadidos por um frio
mortal, renovo meus juramentos de intransigência.

Mais do que nunca, seguirei em frente, sem ceder, sem descanso, duro com
minha alma, duro com meus desejos, duro com minha juventude.

Prefiro ver dez anos de frieza e abandono, do que um dia sentir


minha alma esvaziada, esvaziada de seus sonhos vivos.
Escrevo estas palavras sem tremer, que no entanto me fazem sofrer. Na
hora da falência do mundo, são necessárias almas que possam
permanecer firmes e altas como penhascos rochosos, batidas em vão por
ondas furiosas.

XXX – A Cruz
Qual momento será o nosso fim?

A morte passa sem resposta e suas mãos estrangulam corações ao


acaso. A metralhadora dispara, zuniu, estalou ou perfurou com seus
dedos mortais o corpo de um jovem.
O que fazer, senão ter um coração puro, uma consideração silenciosa pelo
sacrifício oportuno, feito gratuitamente? Se vier, nossos cílios não tremerão e
sairemos com o leve e triste sorriso das ternas lembranças que cercam nossos
últimos segundos.

Se voltarmos, ainda que o calor da vida nos tenha feito esquecer este
sopro gelado, o nosso coração terá para sempre a compostura de uma
vida que não estremeceu perante a morte.

Que o destino sempre nos encontre fortes e dignos!

Você ainda tem que amar a felicidade, como ama a canção do


vento, por mais fugaz que seja, como ama as cores da noite, mesmo
sabendo que elas vão morrer.
Pois os grandes ventos renascem e voltam a cantar e, todos os dias, as
cores voltam ao eixo fulgurante do sol nascente.

Cabe a nós impedir que os ventos morram, ou impedir que o sol se


apague, mas tirar força deles enquanto ainda vivem.
A alegria é o fogo dos corações indomáveis, e nenhuma reversão pode
extinguir ou abafar suas cores ardentes.

Quando vires as ondas recuarem das areias, voltando para as


profundezas escuras do mar, pensa na grande enxurrada que voltará
algumas horas depois, branca, cintilante ao sol, arrojada e
forte, como se essas ondas fossem a vanguarda de um assalto ao próprio
mundo!

Ser feliz é ser altruísta. Felicidade é isso


mesmo: dar tudo de si.
Há tantas coisas medíocres na terra, baixas ou feias, que um dia
seríamos esmagados por elas se não carregássemos dentro de nós o
fogo que queima a feiúra, que a consome e nos purifica.

A arte é a nossa salvação interior, o nosso jardim secreto que


constantemente nos refresca e acalma. Poesia, pintura, escultura,
música, tudo menos fugir do mundano, erguer-se acima do pó que seca,
criar algo grandioso, em vez de se submeter ao pequeno, deixar escapar
aquela centelha de extraordinário que cada um de nós possui, e
convertê-lo em um fogo grandioso, devorador e inextinguível.
Os séculos mortos e sombrios são aqueles em que as almas hesitaram
ante este esforço. Os séculos luminosos são aqueles que viram esses
grandes fogos das almas delimitarem, dominarem, as montanhas do
espírito.

As únicas verdadeiras alegrias não são aquelas que os outros nos dão, mas aquelas
que trazemos dentro de nós, que nossa fé cria, que nos enchem de dinamismo.

O resto vem como a espuma do mar, brilhando na ponta das ondas,


estremecendo por um momento na beira da areia, depois morre
rapidamente, ou se retira com as ondas.
Essa é a felicidade que os outros nos trazem de vez em quando.

A alegria que nasce da nossa paixão pela vida e da nossa vontade é


como a grande força que ressoa e rola no fundo do mar, que brota ao
encontro do sol e se renova a cada segundo.
Como pendurados num barco, vemos o mar poderoso lançar as suas ondas
como imensas peles de leopardo, estendidas, flexíveis e brilhantes, erguendo-se
como uma chama prateada ou como um prodigioso borrifo de branco.
flores! Esta vida retorna constantemente, repercute; sabemos que
nada, até ao fim do mundo, irá parar este ímpeto!
Assim devem ser nossos corações, impetuosos, mas como esta maravilhosa força
rítmica: ordenados, entoados como uma canção eterna.

Durante o dia, somos apanhados em preocupações pobres e muitas vezes triviais.

Mas à noite, a imaginação se entrelaça em nossos sonhos, nos leva


em suas fantasias, sua reconstrução ou antecipação.
Às vezes fico maravilhado com a lucidez implacável dos sonhos.
Claro, o sonho muitas vezes é uma loucura selvagem, um fantasma. Mas muitas vezes é
também para mim um encontro com a minha consciência e com as minhas primeiras
intuições.

Eu me vejo naturalmente, como sou quando minha vontade não está lá


para travar o movimento de minhas paixões.

Então sei exatamente em quais pontos duvido de mim mesmo.

Cada vez devo dizer a mim mesmo: olha, aqui você vacila.

Tenho assim a prova quase quotidiana de que posso resistir a mil tentações,
conduzir a minha vida com honra apenas na medida em que um esforço
renovado domina e detém, todos os dias, no fundo de mim, um cavalo selvagem,
que nunca poderá ser totalmente domado, e que só o chicote da vontade,
brandido incessantemente, pode conter.

Se o relógio estivesse relaxado, tudo se desfaria. Eu vejo


isso em meus sonhos.
A própria vontade adormecerá? Eu acordo, derrotado, o sonho me
deixou à deriva.

Não há exame de consciência mais decisivo para mim do que o desenrolar dos
sonhos. Os sonhos desnudam minha alma diante de mim, deixam marcas
profundas em meus pensamentos, com o conhecimento de que devemos sempre
estar atentos aos nossos impulsos mais baixos, porque esses elementos mais
baixos não correm naturalmente para, mas, ao contrário, fogem dele assim que
como eles são tentados por belas falsidades.
A alma, libertada pelo dom que se fez, voa, paira alto e canta.

Porque ouvimos dentro de nós essas grandes canções de


serenidade, sabemos que o trabalho que iniciarmos será belo. Pois o
grande e o belo só podem ser criados na alegria e na fé.
Se amamos a virtude apenas na medida em que ela é notada, nós a
contaminamos com orgulho. Deixamos de ser virtuosos no momento em que
desejamos que a virtude, que acreditamos ter alcançado, seja vista e admirada.

Assim é com todas as virtudes. São belos, macios, radiantes, se os


amarmos por si mesmos, se os cultivarmos pelo prazer único de tê-
los alcançado.
Chegamos à vida sem pensar ou nos importar com o fato de não sermos
compreendidos pelos outros.

Os corações descomplicados não podem imaginar as complicações dos outros. Corações


frescos não podem imaginar outros corações sendo odiosos ou corrompidos.

O sofrimento é o mais maravilhoso dos companheiros, patético e


angelical, lavando as almas de todo desejo, elevando-as às alturas
com que tanto sonharam.
Derrotas, vitórias, sonhos ou sucessos materiais passam, são esquecidos,
fogos que brilham por um momento, cheiros que um vento que passa leva
embora.

Mas o essencial, o único, é para nós a grande conflagração


espiritual sem a qual o mundo não é nada.
Enquanto houver um pouco de fogo em algum canto do mundo, todos os
milagres de grandeza permanecem possíveis.

Tudo na vida é uma questão de fé e tenacidade. A confiança não pode ser


implorada, tem que ser conquistada. E a melhor forma de conquistar é
primeiro se doar.

Todos nós carregamos a nossa cruz: devemos carregá-la com um sorriso orgulhoso, para
que saibamos que somos mais fortes do que o sofrimento e também para que aqueles que
procuram nos prejudicar entendam que suas flechas nos atingem em vão.
O que importa se você sofre se teve algumas horas imortais em
sua vida?
Pelo menos temos vivido!
PARTESIX:

—TOGEU TENHOCTOTALMENTE—
XXXI – A Reconquista
O tumulto que agita a opinião pública, as guerras que abalam as
nações, são apenas episódios.

Reformas parciais acabarão com esse caos periódico.


Tentar mudar as pessoas seria um trabalho muito decepcionante se
não fosse acompanhado pelo trabalho essencial de mudar o que está no
fundo da alma, por uma transformação dos próprios fundamentos do
nosso tempo.
Todos os escândalos, o declínio da honestidade e da honra, o
despudor na certeza da impunidade, a paixão pelo dinheiro que varre as
convenções, a dignidade, o respeito próprio, a imoralidade, que se
tornou inconsciente, indicam a existência de um mal profundo que
exige remédios de igual magnitude. Não é de repente que mentimos,
que quebramos todas as leis morais, sobrenaturais ou naturais e, mais
simplesmente, as leis do código público. Não é da noite para o dia que
você se entrega à hipocrisia ousada, para falar a verdade apenas com
reticência, para mentir com palavras virtuosas.
Essa deformação da consciência que espanta, que assusta, hoje, ou
que assume um ar de superioridade sarcástica, é apenas a conclusão
de um longo declínio das virtudes humanas.
É a paixão pela riqueza, a vontade de ser poderoso aconteça o que
acontecer, é o frenesi de ser honrado, é o materialismo, é a gratificação
inescrupulosa dos instintos, que corromperam os homens e, através dos
homens, as instituições.

O mundo está cada vez mais preocupado com alegrias banais, materiais ou
simplesmente animais. Mantém-se apenas pelo princípio de maximizar a
riqueza material. Cada homem vive apenas para si mesmo e permite o
domínio da vida tanto dentro de sua própria casa quanto dentro do país por
um egoísmo constante que converteu os homens em lobos odiosos,
amargurados e gananciosos, ou meio-homens corruptos e sem alma.
Só sairemos desta queda através de uma imensa recuperação
moral, reensinando os homens a amar, a sacrificar-se, a viver, a lutar
e a morrer por um ideal superior.
Num século em que vivemos apenas para nós mesmos, serão necessárias
centenas, milhares de homens para viver não mais para si mesmos, mas para um
ideal coletivo, aceitando antecipadamente todos os sacrifícios, todas as humilhações,
todos os heroísmos necessários.

O que importa é a fé, a confiança brilhante, a total ausência de


egoísmo e individualismo, o impulso de todo o ser para o serviço,
sem promessa de recompensa, em qualquer lugar, por qualquer
meio, para uma causa que vai além do homem, pedindo-lhe tudo ,
prometendo-lhe nada.
As únicas coisas que contam são a qualidade da alma, o pulso, o
dom total, a vontade de erguer um ideal acima de tudo, na mais
absoluta abnegação.
Está chegando a hora em que salvar o mundo vai exigir esse punhado
de heróis e santos para fazer a grande Reconquista.

XXXII – Flotilha das Almas


As nações se recuperam rapidamente de reveses financeiros.

Eles podem reconstituir sem muita dificuldade um novo quadro


político.
Tudo o que é necessário são técnicos qualificados e vontade de trabalhar em
conjunto.

As grandes revoluções não são políticas ou econômicas. Estas são


pequenas revoluções, mudanças de natureza puramente mecânica.
Quando os especialistas juntam as peças, quando os motores
encontram seu ritmo e os capatazes de rosto severo são colocados
para vigiá-los, a revolução material é realizada.
O resto exigirá apenas reparos de tempos em tempos, uma modificação
aqui e ali. A máquina é montada ou revisada. As engrenagens giram.
A maior parte do trabalho está feito.

A verdadeira revolução é muito mais complicada, aquela que reúne


não a maquinaria do estado, mas a vida secreta de cada alma.

Lá não é mais uma questão de revisão e monitoramento automáticos.


Trata-se dos vícios e das virtudes, dos impulsos à profundidade e das
fraquezas, das esperanças desesperadas que nos são tão caras...

O que há no fundo desse olhar, por trás desses olhos que permanecem em nós
por um longo momento, como se grandes segredos repousassem sobre nossas
pálpebras?

Um coração oculto, uma alma, suas crises secretas, seus rompantes,


seus desesperos, os desejos do corpo e seu declínio indelével, as tristezas
tão difíceis de esconder ou adivinhar, a luta incerta e conturbada pela
felicidade, é o grande drama do homem.
Mas aí também está a verdadeira revolução: trazer luz aos espíritos
apanhados nas sombras; para ajudar na restauração de almas falidas;
reaprender que não somos apenas um corpo; aperfeiçoar o imperfeito;
elevar-se às alturas da virtude, por maiores que sejam os esforços que nos
são exigidos.

Esta revolução por si só pode ser encantadora – mas aterrorizante.

Todos nós caminhamos por um labirinto.

Aquela cabeça baixa e magra e aquele belo cabelo dourado, aquela risada
que explode repentinamente, aquele braço que desce? Dez faces, dez
abismos.

Quem nos engana? Quem está enganado? Quem procura nos enganar?

Vemos apenas as enganosas sombras dos seres. Todos tentam enganar


a si mesmos, enganar os outros, por simplificações e por artifícios mais ou
menos habilidosos.
E é entre esses subterfúgios, porém, que devemos avançar, nossas
chamas brancas ardendo na noite mais escura!
O que há para segurar?
O que podemos fazer com esses seres que aos nossos olhos impotentes
parecem apenas mistérios, mistérios ainda mais pungentes quando
observamos seu riso, olhos vivos, testas pálidas, essa carícia suave de
cabelos esvoaçantes, que com luz alegre se opõem a todos os nossos
lamentos, angústias , cansaço e corrupções!
Todos nós caminhamos por caminhos distantes. Só o fundo de nossos corações
conhece nossa verdadeira face, os falsos segredos de nossa alma, suas esperanças e
falhas, nossas verdadeiras alegrias e nossas verdadeiras tristezas.

Foram tantas alegrias e tantas lágrimas que os outros pensaram


conhecer, compartilhar ou aplacar... Olhamos, nas horas de solidão,
para o nosso verdadeiro eu, onde ninguém mais, infelizmente, jamais
poderá ir. Esse eu interior nos diz quem ele ama e a quem pertence, o
que o oprime e o faz tropeçar, e nos diz o que eleva seu espírito,
talvez, se por sorte, o sopro da verdade afastar esse véu invisível.

Ser esta corrente, este grande vento morno e longo que sobe do fundo
dos nossos horizontes espirituais, que dá às almas este primeiro
movimento...
De repente, a vela sofre um inchaço impalpável, arredondando-se
na luz.
O casco desliza em águas paradas.

A inflexão das velas brancas empurra suavemente o ar.


Pensamos naqueles milhares de velas imóveis esperando o que
lhes dará, imperceptivelmente a princípio, depois com força trêmula,
vida e movimento, a alegria de se mover pelo ar e pela água,
avançando para a linha clara do horizonte ao longe. .
Os barcos são pesados. A água é escura e lenta. Tudo
está em silêncio.
Seja este sopro que virá finalmente para despertar essas almas, para empurrá-
las, desajeitadas a princípio, abandonadas depois de tanta espera e estagnação,
então felizes e firmes como se confirma a força que os sustenta e a vida
que os reanima, mostra a todos estes seres que a existência pode ser
bela e pura, e grandiosa, mesmo depois de todas as fraquezas e de
todos os desencantos, para trazer à tona, destes corações secos ou
entorpecidos, ou pervertidos, a fonte da renovação: esta é a tarefa, a
real, a difícil, a tarefa necessária...
Tarefa terrível!

Gostaríamos de pegar essas pessoas semimortas em nossos braços, olhar


profundamente em seus olhos, afastar essas dúvidas e hesitações rastejantes,
passar nossos dedos trêmulos por seus cabelos sedosos.

Mas que emoção ao encontrar aqueles olhos que devolvem a luz dos
outros, aqueles olhos que tão rapidamente nos mostram, desde a sua
primeira mentira, ou a sua primeira confissão, a confusão que nos habita!

Como olhar para um rosto sem ouvir perguntas cruéis? Você está
mentindo? Como você se sairá sob o fogo, sob as privações da carne? E
o que restará amanhã das esperanças e aspirações, dolorosamente
suspensas, sustentadas por este olhar?
A fonte de toda redenção está aí, porém: dar vida às almas à deriva,
acalmar as tempestades que quebram seus mastros e rasgam suas
velas, dar-lhes sol e fôlego, tornar serenos os mares dos homens, tornar
claros seus horizontes , livre das sombras e perigos de céus violentos e
atormentados...
Respire... Retome a crença nas virtudes, na beleza, na bondade, no
amor...

Sinta-se dançando ao seu redor, nas ondas, mil outras velas, cheias
de vento, levadas no mesmo ímpeto rumo ao mesmo chamado...

Quando o mar dourado vir estas velas brancas avançarem, a


Revolução estará a caminho, levada por esta flotilha de almas.

XXXIII – Cimeiras
Seu caminho é difícil.

Você fica sem fôlego. Há momentos em que apetece deitar fora


este fardo que te pesa, deixar-te descer e regressar àquelas quintas
idílicas que te acolhem no sopé da serra, ribeiras azuis contra fundos
verdes e cinzentos de prados e ardósia telhados.

Você sente saudade das águas calmas e dos juncos límpidos, do remo
que bate na superfície, do caminho plano e sem esforço ao longo das
margens. Você gostaria de não pensar em nada, lavar de seus
pensamentos as lembranças dos homens e, de costas para a grama,
observar o céu que passa, iluminado pelos bandos de pássaros.

Chega de cansaço! Você não vai largar sua bolsa e sua bengala! Você
não vai cuidar de seus joelhos sangrando! Você não vai ouvir o clamor do
ódio; você não vai olhar para os olhos sorridentes e a maldade que eles
escondem! É para o cume que você deve lançar seus olhos! Seu corpo deve
viver apenas para esses caminhos tortuosos, seu coração deve sonhar
apenas com essas alturas que você e os outros devem alcançar.

O que está na raiz da sua confusão? Você pensou que encontraria


alegrias imediatas em escalar este caminho ao longo do mar, em criar este
hospedeiro humano. Muitas vezes você sofreu. Às vezes você sente
náuseas. No entanto, você precisava disso. Você teve que aprender que a
ambição não compensa, que mais cedo ou mais tarde cansa o coração que
possui. Você sabe disso agora. Você sabe que não deve esperar nenhuma
alegria constante de fora, aprendeu a duvidar do conforto dos homens,
seu rosto está corado, não pelo carinho que eles lhe deram, mas pelos
golpes que eles lhe deram.
Claro, você não pensou que seria. Você imaginou que ao longo da
estrada suas mãos e olhos encontrariam o que você tanto desejava.
Você olha para trás.

E você diz: eu vou voltar para baixo.


Não; É só então que a vida se torna nobre, quando ela te derruba,
quando você não tem mais ânimo para continuar.
Você se lembra dos primeiros dias? Você queria uma subida muito bonita;
é verdade. Você estava deixando este caminho para libertar sua alma. Você
sabia que o homem deve sempre superar suas limitações! Você não acreditou
nesse obscuro prazer da honra e da disciplina?

Você está chorando?

Você não pensou que fosse assim. Você rejeitou o conforto com
palavras suficientemente sinceras. Mas ainda cercou a borda de suas
ações, como a espuma margeia a borda do mar. Você honestamente
pensou que só vivia para este fio de luz, lindo apenas de longe, à
beira das areias. A tentação estava lá em seu coração. Você queria
algo grandioso, algo real. Mas você ainda tinha o pensamento de si
mesmo perto de você. Você anunciou sua prontidão para cumprir seu
dever. Mas você fez esta silenciosa adição, que cumprir seu dever
traria glória ao seu nome e satisfaria seus próprios desejos, o deixaria
dourado de orgulho!
É porque você não vê mais esse fantasma diante de você que seus olhos
refletem apenas sombras. Você está olhando no escuro.
Enfrente o fato de que você amou algo falso.
Aqueles que te enojaram cem vezes, com sua maldade e injustiça,
te carregaram mais do que suas próprias forças.

Você está desistindo? Você dá sua carne e sua respiração, seu coração e
sua mente, e você acha que agora é tudo em vão?

Em vão? Por que, porque você não os dá mais a serviço de seu


orgulho egoísta?
Só agora você pode começar a se doar.
Essa maldade teve que dominá-lo. No momento em que você estava
quase desmaiando, no final de seu esforço, as zombarias aumentariam e o
desprezo o levaria adiante.
Era necessário que todos os teus gestos de amor fossem cobertos de ódio,
que todos os teus impulsos fossem maculados, que cada pulsar do teu coração
ordenasse que um novo golpe caísse sobre o teu rosto...

Tu conheceste, tantas vezes, aqueles cansativos últimos metros em


que sorriste à entrada da baliza, apesar do teu suor e da tua palidez:
no momento seguinte caíste entre as rochas, traído pelos teus,
subjugado pelos outros . Tudo teve que ser refeito.

E sempre o encantador vazio do vale abaixo te saudava, os


choupos trêmulos te chamavam como uma linha de navios no mar de
dias fáceis.
Você sofreu com a dureza da luta. Você disse a si mesmo: seja qual
for a vitória, o preço é muito caro e não a desejo mais.

Você sempre pensou em si mesmo. Sim, para você, para o prazer


humano de ter chegado ao topo, você fez uma barganha. Mas se a
vida não tivesse te esbofeteado cem vezes, você teria entendido que
existem outros prazeres além do orgulho, do sorriso, da glória?

Você sentiu a hipocrisia de tantos rostos ao seu redor! Você adivinhou


todas as mentiras, toda a maldade, toda a mesquinhez que está reservada
para você, toda vez que começar a escalar novamente.

Você não tem mais direito a nada.


Você ouve o enxame de horrores rastejantes. Você sabe que vai continuar
com a abjeção de qualquer maneira.

É na hora em que você deu tudo que você será considerado


ganancioso.
É na hora em que seu coração sofrerá o maior abandono que lhe
serão feitas as mais baixas exigências.
Você se vira com lágrimas que brotam apesar de você. Por que? Você ainda
está pensando em si mesmo?
Você ainda sofre com a injustiça, é tudo sobre você? Como

é difícil sermos livres de nossa humanidade!

Deixe-os desabar sobre sua vida como chacais, deixe-os pisotear


seus sonhos, deixe-os abrir seu coração a todos os ventos!
Sofre por ser lançado às feras da inveja, da calúnia, da baixeza!
Agüentar, sobretudo - e isso é o que mais dói - que, no momento em
que não se aguenta mais, quando os joelhos se dobram, quando os
olhos procuram um olhar de apoio, os braços procuram uma mão
ardente, um apoio, enquanto você está pendurado em uma palavra, um
olhar, que esta palavra cai para te quebrar, aquele olhar para te
machucar; aceite que são aqueles que lhe eram mais próximos que
acabam com você, aqueles a quem você deixou tudo, a quem você
amou tão ingenuamente, sem reservas e sem hesitações ...
Seus olhos têm uma perplexidade pior do que lágrimas! Não grite.
Espere que tudo que você sofreu ontem, amanhã se renove. Aceite
isso com antecedência. Nem se vire quando ouvir aquele passo atrás
de você. Abençoe os golpes recebidos. Ame aqueles que os trarão.

Eles são mais úteis para você do que mil corações que o amam. Você
entendeu?
Você pode encontrar amanhã, ou talvez já tenha encontrado, aquela
ternura que chega até você como uma lufada de ar fresco ou como o perfume
de um cacho de flores do campo.

Você agora está sem fraqueza na frente deles.


Você só desfrutará da dignidade na medida em que, à força do
sofrimento, aprender a prescindir dela.

Isso você nunca teria obtido, se não tivesse pago o preço centenas
de vezes, sem nunca ter certeza de receber nada em troca.

Se um dia isso aparecer para você, aproveite-o como uma paisagem sublime
vislumbrada de passagem. Mas não é para isso que você veio: é o ar; isto
é a luz dos cumes que te chama! Você já está respirando melhor. Você
alcançará lentamente a verdadeira alegria, naqueles grandes picos de
consciência, brilhante, imaculado. Pense apenas nisso, veja apenas isso,
tente chegar lá, leve, puro, radiante com a luz do sol.

É sobre suas fraquezas e suas falhas que você deve pesar; apenas
neles; seu orgulho, seu nome, os apelos vãos do homem que parte,
jogue-os além das rochas!
Você os ouviu quebrar, enquanto quicavam pela encosta? Que tudo
pereça! Que a amargura e o abandono, ao invés da rebeldia, te
mantenham no caminho! Esses dois cães uivantes são os guardiões do
rebanho de seus pensamentos. Sem eles você pararia, você se afastaria.
Não perca um momento. Isso é longe. E você deve chegar ao cume.

Quando você alcançar essas imensidades puras, atrás de você haverá um


grande silêncio. Todos aqueles que gritaram atrás de você, que odiaram ou
pisotearam você apesar dos sorrisos em seus rostos, todos aqueles que,
apenas para bater em você, seguiram você na estrada, de repente perceberão
que neste jogo eles também alcançaram as neves , o novo ar e os horizontes
recortados no céu. Eles vão esquecer de te odiar. Eles terão olhos
maravilhosamente infantis. Eles descobrirão o essencial. Suas almas terão
sido elevadas a alturas que jamais teriam concordado em alcançar se suas
costas, que receberam seus golpes, não tivessem escondido o comprimento
da estrada.

Então você terá, sua vitória! Você poderá, tendo feito o esforço
final, cair repentinamente, com os braços estendidos, do topo da
montanha nas rochas abaixo.
Você será feito.
Você terá vencido. Chegar ao fim de sua própria jornada pelo
último esforço não importará mais se os outros estiverem lá, à beira
das imensidões puras da redenção.
Você está tão feliz, no fundo. Você sabe
que a única felicidade está lá.
Cantar!

Que a tua voz troveje nos vales!


Arrependimentos e lágrimas? O homem menos notável entre
todos vocês sofreu isso, e você o rejeitaria?
A coisa mais difícil está feita. Aguentar. Cerre os dentes. Silencie seu
coração. Pense apenas no topo! Ir para cima!

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