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Não há nada mais desesperador do que a sensação da

incerteza, o anseio advindo da profundeza da alma perdida, da


insegurança de não ter certeza dos passos e de estar perdido
por caminhos caóticos e imprevisíveis. E era assim que eu me
sentia no momento em que abri os meus olhos e contemplei a
face opressora da negação. Onde eu estava? Como cheguei ali?
Quanto tempo já tinha se passado? Dias, horas, semanas? Não
sei dizer ao certo, entretanto posso lhes dar somente uma
certeza, a do embrulho vazio em minhas entranhas ao perceber
que me encontrava quase um semimorto, com poucas forças
para me manter em pé, sentindo em minhas costas magras e
esqueléticas o frio da parede negra e crua de pedra,
acorrentado pelos pulsos por autoritários grilhões de ferro.
Nesses terríveis e solitários momentos que descobrimos de
qual tipo de fibra nossa alma se alimenta. Sempre fui um
sobrevivente nessas terras injustas, e meu fim não tinha
chegado, com certeza não tinha chegado. Pelo menos era o que
eu desejava afirmar para mim mesmo.
Me apegando nesse desejo, resolvi abrir os olhos para
tão logo desejar nunca o ter feito. Pobreza, tristeza, podridão
eram palavras suaves para descrever aquele cárcere. Com
dimensões sufocantes, em meio ao cheiro repugnante da
mistura de excrementos, sangue seco e restos de comida
apodrecida espalhados pelos cantos do úmido chão de terra,
estavam um punhado de moribundos, espalhados pelo lugar tal
qual restos esquecidos da dádiva chamada vida. Aqueles que
ainda conseguiam se manter conscientes só tinham forças para,
pendurados pelos pulsos ensanguentados, murmurarem
gemidos de dor e sofrimentos devido as amputações e
escarificações afligidas, em total escárnio, nos seus pobres
restos de carne. Foi ali, digerindo toda essa loucura e
desespero, que minha lucidez retornou e acordei daquele transe
aterrador no qual me encontrava. Eu precisava fazer algo
rápido, antes que estripassem toda minha esperança e desejo.
Tal qual um bárbaro em seu frenesi comecei
nervosamente a perscrutar todos os cantos na tentativa de achar
alguma forma de escapar, algo ou alguma coisa, algum
utensílio em que poderia utilizar as minhas habilidades, mas
não encontrava absolutamente nada, estava sem minhas roupas
e seus compartimentos secretos, onde guardava as gazuas,
lixas e chaves-mestras, e o tempo estava passando
ansiosamente. O que poderia fazer? Mesmo com os pés
desamarrados e ágeis como sempre foram, agora eram inúteis e
a força bruta nunca foi um dos meus triunfos. O que fazer? O
que fazer? Pensa seu maldito! E agora? Será que sua sorte lhe
abandonou de vez? Acho que não, pois em meio a minha
angústia escutei o barulho de ferro rangendo na única saída
possível daquele inferno, e logo o som de passos aumentando.
De prontidão fingi estar ainda desmaiado.
Os passos revelaram dois homens, muito altos e
magros, vestindo robes totalmente negros e com o detalhe de
uma espiral prateada em suas costas. Suas faces estavam
ocultas pelo capuz, mas suas mãos revelavam fortes dedos
excessivamente compridos e pálidos. Junto com eles, atrás,
vinha cambaleante outro humanoide de tamanho descomunal,
curvado nas costas, vestido com roupas sujas de um sangue já
enegrecido e uma cinta com vários artifícios de corte, como
facas e serras. A forma desordenada em que seus membros se
ligavam ao seu tronco trazia sensações desagradáveis e
inquietantes. Sua face era horrenda, com olhos apáticos e
inchados. Mechas de cabelo escuro caiam ridiculamente
pobres e finas por cima das protuberantes orelhas. Um nariz
gordo e torto ocupava grande parte da face, terminando em
uma bocarra de dentes amarelados e quebrados. A criatura
empurrava um carrinho de rodas tortas e trêmulas, formado por
um aro metálico prendendo um grande saco de pano, tão sujo
quanto as vestes de seu condutor. E dentro havia um machado.
Dizem que o medo é um sentimento que se espalha
igual fogo em palheiro nos dias secos de verão, e a chegada
deles trouxe tanta inquietude no lugar que o ar foi preenchido
com uma onda de um silencioso temor. Logo os gemidos e
murmúrios dos cativos aumentaram em intensidade e, como se
fosse ainda possível, o que restou de alguma sanidade foi
sugada para o fundo do abismo da melancolia. Ao chegar no
centro da sala, os homens se separaram, e se aproximaram de
alguns prisioneiros. Como linces cercando suas caças,
farejavam ferimentos e rostos esquálidos. De súbito, um deles
se virou para mim, e veio serpenteante, como se flutuasse em
suas vestes até minha direção. Não sei nem explicar o grau de
terror que se apoderou do meu ser. Tudo ficou silencioso e o
tempo, lugar e mesmo minha mente pareceram não mais
existir. O seu hálito era de um calor sepulcral. Ele percorria de
cima a baixo, extremamente curvado, devido minha baixíssima
estatura, numa inquietante busca de algum odor específico. E o
que mais me afligia é que não conseguia vislumbrar a sua real
aparência. Logo, ele chegou em um de meus ferimentos,
esquadrinhando e farejando, enquanto seu corpo dava algumas
tremidas. Juro pelos deuses que ele sentia um odioso prazer
naquele ato, e sorte minha que tal regozijo não era de puro
êxtase, pois logo ele se levantou como se num chamado
silencioso, e voou em direção ao seu comparsa, parando ambos
em frente de um maltratado meio-elfo, e não mais prestou
atenção em mim. Juntos, fungavam sua presa e tremiam
espasmodicamente, soltando grunhidos de excitação. Os
dementes ao redor ficaram mais agitados e barulhentos,
respondendo aquela excitação, até que em um só movimento
os dois se retesaram, e tudo silenciou naquela maldita cela, e
em sintonia se dirigiram para a saída da cela. Nesse momento
o brutamontes, agarrado em seu artefato, começou a se
movimentar.
Foi forte, preciso, único, de uma habilidade invejável a
qualquer lenhador. Um golpe de misericórdia para aquela
sofrida alma. De um certo ponto de vista, pôs o fim aquela
miséria de ser. E isso transparecia na expressão de alívio na
face do meio-elfo, que se encontrava ainda em sua prisão, sem
a parte inferior do torso, onde agora, em meio ao sangue
jorrando, se dependuravam tripas e restos de carne misturados
a um toco da espinha dorsal. Subitamente uma ideia me veio a
mente, e como um alucinado comecei a me debater e berrar
xingamentos incoerentes entre outras escrotidões para aquela
aberração, o qual jogava os pedaços inferiores do defunto no
seu odioso carrinho, e funcionou, pois ele me olhou e veio
correndo em minha direção. Via a raiva em seu semblante, e
em todos esses anos de desafios e aventuras nunca levei uma
pancada tão forte quanto aquela. Senti meu estômago se
misturar aos músculos das costas, aos vômitos quase desmaiei.
Resolvi me aquietar e observar a vagarosa saída de meu captor.
Rangido de ferro, barulho abafado de algo pesado na
areia. Esse era o momento. Tolerando o máximo a dor que
sentia, foquei minha atenção entre os dedos do me pé peludo,
onde estava um dos apetrechos do cinturão daquele monstro.
Uma rústica agulha fina de metal. Ia servir, tinha que servir.
Em uma acrobacia, e se aproveitando de toda minha
elasticidade, consegui, com certa dificuldade, me manobrar, e
com um dos pés soltar uma das mãos. O restante foi moleza.
Estava agora ali, solto finalmente, e precisava fugir o mais
rápido possível. O portão de ferro e sua engrenagem. Moleza.
Aberto. Vamos seu ratinho, rápido, rápido. Como uma flecha
corria sem parar pelos corredores cavernosos. Qual era o
tamanho daquele lugar? Pareciam corredores eternos,
corredores iguais, sem fim. Maldição! Onde fica a saída? Perdi
a noção de quanto tempo estava correndo, e as pernas já doíam
e os pés sangravam. E nada da saída. Parei, e sentei ao chão.
Todo meu corpo doía, e que sensação era aquela? Olhei para as
paredes e o teto, eles pareciam se mexer, pareciam querer me
esmagar, e me vigiavam, tinha certeza em minhas quimeras
que olhos na escuridão riam de minha inútil tentativa. Mas não
podia parar, agora não era hora, tinha que continuar tentando,
correndo, até que... boa!! Uma porta. Entrei.
Nunca antes tinha entrado num aposento como aquele.
Não era grandioso em estrutura e tamanho. Um tanto vazio de
detalhes, salvo que em seu centro haviam quatro mesas de
pedra escura, sulcadas, dispostas em fileiras de dois. Perto das
paredes, ao lado das mesas, haviam quatro estruturas
cilíndricas que iam do solo até o baixo teto, borbulhando em
seu interior um esquisito e escuro líquido avermelhado. Essas
estruturas se ligavam por alguns tubos até os sulcos das mesas.
No outro extremo da porta havia outra mesa e uma cadeira,
onde estava um livro, pena e tinteiro e alguns pergaminhos.
Atrás dela na parede, uma estante recheada de pequenos
vidros, pedaços de ervas, algumas plantas, variados potes e
outros livros. Tudo era estranhamente limpo e organizado. E
por um breve momento, a curiosidade característica de minha
raça ganhou terreno acima de todo o cansaço e horror. Fui até
lá ávido por respostas. O livro era de capa preta e de um couro
endurecido. Sua capa mostrava, já meio apagado do uso e
tempo, a figura em baixo relevo da espiral prateada com uma
caveira ao centro. Suas páginas estavam em branco, todas sem
exceção. Tentei os pergaminhos. Eles estavam em uma língua
desconhecida, desejei ter um mago comigo, tinha cara de ser
algo dessa natureza, entretanto haviam desenhos de partes de
corpos, de muitas formas e aspectos. Alguns de humanos,
outros de animais, outros de criaturas disformas, maiores e
menores, de insetos, de Orcs e Trolls. Em cada figura
apareciam pequenos números salientando partes específicas
dos membros e mis escritos, como se nomeando-os. Um
desenho de uma estrutura como uma mola, similar a duas fitas
entrelaçadas, aparecia recorrentemente, junto com os mesmos
escritos, e que eu poderia jurar que eram cânticos ou algo do
gênero. Somente um nome, em um dos pergaminhos, eu
consegui ler: Garr.
Me dirigi até a estante, e comecei a mexer nas plantas,
abrir os potes, onde encontrei pós de cores diversas, pedaços
de couro, dentes e garras. Mas tudo mudou quando olhei para
os vidros, e tive a audácia de pegar um para ver de perto. O
horror voltou a mim, misturado com uma enjoativa
repugnância, aquilo que eu segurava entre minhas mãos era
uma blasfêmia, uma afronta a tudo que era belo e sagrado.
Dentro do vidro, boiando em um líquido transparente, rodeava
em posição fetal, uma criatura diminuta, horrenda e
malformada. Em cada movimento que fazia um desgosto e um
embrulho tomava conta de meus sentidos. Que tipo de criatura
pervertida podia ostentar em seus pertences e, foi quando
lembrei assombrado, que não havia somente uma daquelas
coisas, mas várias na estante. Um mal estar tomou conta de
mim. Onde eu estava, pelos deuses? Era algum tipo de
pesadelo? Uma ilusão maléfica de algum antigo inimigo? E foi
em meio aos meus delírios que aquela caricatura abriu um de
seus olhinhos, e um semblante de choro começou a se desenhar
nela. Aquele humúnculo me fitou e atravessou minha torturada
alma com todo o seu desespero e ânsia de ajuda e atenção.
Fraquejei e em minha covardia, deixei cair o vidro no chão, se
estilhaçando. Eu me afastei tropego, até encostar em um dos
tubos, sem desviar o olhar daquele serzinho se contorcendo em
sofrimento no piso molhado até seu último suspiro. Tudo o que
se sucedeu depois aconteceu rapidamente. Algo dentro do tubo
tentou me atacar, me fazendo pular de susto, ao mesmo tempo
que a porta se abriu. Instintivamente me escondi atrás de uma
das mesas e espiei. Era um daqueles homens de robe negro.
Ele entrou, e logo parou desconfiado. Farejava no ar,
mexendo o capuz de um lado para o outro. Foi quando
percebeu o meu pequeno estrago e correu na sua direção para
averiguar. Furtivo e com um pulo somente, armado daquela
agulha de ferro, ataquei por trás, perfurando o seu baço, ou
pelo menos foi o que eu tentei. Um líquido verde correu por
minha mão, e percebi que ele não era humano. A criatura
levantou, sem aparentar dor alguma, e travamos uma difícil
batalha. Minha agilidade e esperteza contra a sua força e
mágica. Raios e rajadas de energia saíam de suas mãos e eu me
esquivava com acrobacias, me aproximando e estocando as
suas partes vitais, mas logo percebi que era em vão. Nesse
momento tive uma ideia, e em meio as minhas cambalhotas me
prostei em frente ao tubo de vidro, esperando a rajada. Ela
veio. Me esquivei, e uma rachadura se formou, vazando um
pouco do líquido, exalando um cheiro de podridão. Naqueles
segundos passados rezei como nunca antes. O vidro quebrou.
Foi um desastre, e antes mesmo que todo aquele líquido
fedorento se espalhasse pelo aposento, a criatura pulou com
uma agilidade descomunal, e atacou o mago, o prensando na
parede. Ela era horrível, disforme, um retalho de outras
criaturas, com fortes e compridas pernas e braços. Ainda
faltava alguns pedaços do crânio e da face, com parte do
cérebro a mostra e uma língua comprida e suspensa. Detido
aquele ser apontou para mim e soltou um assustador e alto
guinchado. Senti o frio percorrer a espinha, mas era a minha
melhor chance. Abri a porta para escapar e fui agarrado pelos
ombros e jogado ao chão. Era o seu parceiro. Sentindo o toque
repugnante daquelas mãos lutei no desespero para escapar, e
em meio a confusão de golpes desferi um forte e certeiro chute
no interior do capuz, empurrando a cabeça da criatura para
trás. O golpe foi tão forte, que pela posição da cabeça, achei
que tinha deslocado o comprido pescoço. Estava errado. O
pescoço começou a voltar e devagar me vi frente a frente da
misteriosa face do feiticeiro. Realmente não era humano, era
uma cara cadavérica, de feições duramente marcadas, alongado
em exagero, com um fino nariz que mais parecia somente dois
buracos bifurcados e uma minúscula boca sem dentes. O pior
eram os olhos, eram desprovidos de órbita, retina ou qualquer
outra coisa, eram somente dois buracos, negros, profundos,
infinitos, opressores. Tentei com todas as forças restantes não
olhara, mas era impossível. Eles ao mesmo tempo me
amedrontavam e me seduziam, e ao fim fraquejei, me
afundando por entre aquele infindo vazio. Foi como se girasse
em uma espiral, sendo tragado, engolido para seu interior, para
o meu interior, para toda a verdade de meus mais terríveis atos,
para o penoso peso de conviver com meus pecados, com meus
erros, com todas ações bondosas que poderia fazer e não fiz,
seja qual for o motivo, não importava mais, era demais para se
suportar e assim desfaleci.
Acordei algum tempo depois, zonzo e enfraquecido.
Olhei o meu redor e, como se estivesse preso em uma piada
sádica de muito mal gosto, ali estava eu, em meio a miséria e
podridão, acorrentado pelos pulsos, só que com um sentimento
novo, tonificando toda aquela decadência, o fardo do
entendimento de conviver comigo mesmo, me unindo ao
cântico mórbido do murmúrio dos esquecidos, de volta ao
início desse contínuo pesadelo.

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