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NOS DOMÍNIOS DE SADOMANTE

“Welcome to the worse nightmare of all... Reality!”


PinHead

Aquela era mais uma das noites em que eu lutava contra a insônia. Buscando distrair a minha
mente, liguei o televisor. Eu já sabia de antemão que as programações da madrugada nada tinham de
interessante, mas como era o sono quem eu buscava, e não a cultura inútil de praxe das emissoras
abertas, limitei meu ser na busca pelo tédio. Deitado na cama, trocava os canais pelo controle remoto e
só achava programas evangélicos. De fato: não havia me dado conta que me encontrava no meio da
madrugada; o relógio marcava exatamente 03:33h, e esse tipo de programação sempre dominou as altas
horas da noite.
Deixei o televisor descansar em um desses canais. A cena que se passava era a de uma moça bem
apresentável, com um microfone na mão e a cabeça de um homem ajoelhado na outra. Ela gritava
coisas do tipo “sai, Satanás!” e “tá amarrado!”, enquanto o homem mantinha a cabeça baixa e os braços
retorcidos para trás. Não prestei muita atenção, pois estava absorto nos letreiros inferiores que diziam
“não deixe de fazer sua doação”, onde se seguiam números de telefone. Foi nesse exato momento que o
homem se desvencilhou da mão da mulher com movimentos frenéticos. Pude então notar o seu rosto;
era muito familiar com um colega de aulas da minha infância, qual atendia pelo apelido de Billy.
O tal de Billy costumava me dar algumas bordoadas quando estava de mau-humor, e não foi muito
agradável recordar essas passagens da minha vida. Hoje em dia eu entendia que a atitude covarde dele,
de bater em alguém mais novo e menor fisicamente, era somente uma forma de auto-afirmação e que
não havia nele nada de pessoal contra mim.
Foi entre essas memórias, distraído com o televisor, que eu creio ter adormecido. E o que tenho pra
relatar a partir de agora é por demais bizarro, são eventos que presenciei em um trauma realíssimo e
que tentarei descrever, porém sabendo que fatalmente serei mal sucedido, pois as coisas que vi fogem
até mesmo das mentes que agora descansam em sanatórios, devido à loucura que carregam consigo.
Logo “despertei”, e estava tudo escuro à minha volta, o que foi estranho, pois não me lembrava de
Ter desligado a TV. Meti a mão no bolso procurando meu isqueiro – um zipo –, e logo que o peguei
estendi a outra buscando o maço que eu havia deixado logo ao lado, no bidê. Minhas mãos tatearam em
busca. Não conseguia achar o bidê na escuridão, e foi quando me inclinei um pouco que minha mão
encontrou algo viscoso e gelado. Acendi o isqueiro, e, para meu espanto, notei que eu estava dentro de
uma enorme câmara de paredes recortadas na terra, e o que havia ao meu lado eram pedaços e restos
mortais do que aparentavam ser antes seres humanos, e toda a tumba estava também preenchida com o
nefasto conteúdo. Fiquei apavorado, mas tinha que manter o sangue frio. Mantive o isqueiro aceso, e
levantei em busca de uma saída. Meus pés vacilavam entre cabeças, pernas e órgãos expostos; era
quase impossível se locomover.
Depois de andar um pouco, vislumbrei em uma parede o que parecia ser uma tampa de pedra, a
alguns metros de onde eu me encontrava. Um passo em falso fez com que eu deixasse cair o meu
isqueiro, mas consegui memorizar o caminho até a lápide. Continuei caminhando e tateando o teto com
os braços sobre a cabeça, e logo cheguei até ela. Ergui a fria lápide sem muito esforço e subi pela
passagem que se abria e que me mostrava um céu avermelhado como sangue.
Havia uma neblina esbranquiçada até a altura dos meus joelhos, porém ventava muito, e o vento
trazia consigo muita poeira e um uivo assustador. Não fazia a mínima idéia de onde eu estava, e me
coloquei a caminhar em linha reta naquela planície vazia e avermelhada.
Logo avistei de longe o que parecia ser uma viga erguida. Chegando lá, notei que a viga na verdade
era uma espécie de forca em forma de L invertido, de onde pendia um corpo ressequido que balançava
morbidamente com o vento.
Súbito, o cadáver fixa a cabeça rente à minha pessoa, estendendo horizontalmente um dos braços,
apontando uma direção a ser seguida (não estranhe o leitor se uso o termo “cabeça” ao invés de
“olhar”, pois o cadáver em questão não possuía face, mas apenas uma pele lisa onde suas feições
deveriam estar).
O caminho levava à outra forca, onde a cena horripilante se repetia e o cadáver executava a mesma
ação que o outro, me apontando uma direção para o desconhecido. Depois de muito andar contra o
vento e passar por 6 desses cadáveres, cheguei por fim a uma escada em espiral escavada no chão, que
descia até onde minha visão permitia. Pus-me a descer os degraus, e logo me encontrava em uma
construção de corredores amplos e angulosos, com paredes cobertas de grandiosos tijolos de pedra e
com algumas tochas acesas. Correntes e ganchos pendiam das paredes e se mesclavam com desenhos
cabalísticos e símbolos estranhos, que pulsavam luminosamente em uma cor vermelha escura. Alguns
me eram conhecidos, mas eu preferi não crer muito no que eu estava interpretando. Conforme seguia
pelos corredores, notava que haviam algumas portas de madeira apodrecidas, com trincos feitos de
ossos. Não ousei sequer em pensar na possibilidade de tentar abrir uma dessas portas, pois tudo o que
eu ouvia ao passar por elas eram gritos distantes e agoniados que me gelavam a espinha.
Depois de andar por algum tempo, cheguei em uma câmara hexagonal que continha vários
instrumentos de tortura, e aonde desembocavam, junto com o meu, quatro outros corredores, sendo que
a parede à minha frente continha uma porta de ferro dupla, cheia de relevos disformes. Logo concluí
que todos os corredores de antes acabavam por desembocar naquela sala. Não havia outra saída: teria
de passar pela porta.
Ao me aproximar desta, percebi que os relevos eram na verdade escritas em aramaico. Tentei em
vão ler aquelas escrituras, e quando estava quase desistindo, todas as letras começaram a se aglomerar e
a mudar de forma; quando por fim pararam, pude ler nitidamente:
- DOMÍNIO DE SADOMANTE.
Comecei a ouvir vozes graves que, em uníssono, emitiam uma nota só, de forma crescente, como
um macabro coro de Igreja. Nesse momento todo o meu ser gelou, e os tremores nas mãos, pareciam
incontroláveis. Suava frio como um condenado à morte preste a ser executado. Por fim, fui me
acalmando aos poucos; tranquei o alento e tentei abrir a porta. No instante em que toquei a maçaneta,
uma tontura impressionante tomou conta de mim e me senti como que sendo sugado por uma espécie
de buraco negro.
Quando a tontura passou, estava eu jogado num chão espelhado. Levantando-me, olhei pra frente e
vislumbrei uma criatura abominável, a uma certa distância de mim. Possuía formas femininas, porém
nada atraentes. Ela (se assim posso chamar) estava de costas para mim, indiferente à minha presença.
Vestia longas botas de couro preto até a altura das nádegas, nádegas que possuíam uma cor cadavérica e
que estavam caseiramente costuradas uma à outra. Não possuía pele nas costas; o que expunha somente
um vazio negro preenchido pela coluna e pelas costelas. Por fim, na cabeça o ser possuía longos e lisos
cabelos de cor cinza (que se dividiam ao meio, revelando o oco das costas) e onde repousava um par de
chifres em forma de vírgula, arqueados para trás.
O ser estava perfurando um homem completamente nu, com vários tipos de agulhas. O pobre
coitado permanecia espetado pelos pulsos em duas lanças que emergiam do chão, uma de cada lado de
seu corpo, e na base destas estava com os tornozelos presos por correntes. Era notável que somente
essa estrutura mantinha o homem de pé, pois seus joelhos já jaziam flexionados, e ele sangrava muito.
O cheiro ferrenho de sangue invadia minhas narinas.
Tudo o que acabei de descrever surgiu na minha frente - logicamente - como uma visão só, e o
choque foi tanto que não pude conter o vômito. Mas mesmo assim o ser não se abalou. Como se não
bastasse, o homem pendeu a cabeça morbidamente para baixo, e mesmo com o passar do tempo, o
rosto dele me era conhecido:
Era Billy.
Entorpecido de terror, tentei perguntar à mulher-demônio explicações sobre aquilo tudo, mas não
consegui emitir nenhum som. Como se tivesse lido a minha mente, ela se virou para mim; ouvi dentro
da minha cabeça uma voz feminina, grave e estridente como uma serra:
- Esse ser humano execrável faleceu essa noite, e está pagando pelos tormentos que te causou.
Billy gritava agonizando, mas não emitia nenhum som, assim como eu não havia conseguido
emitir. Na sala pairava um silêncio absoluto, e notei que o diálogo deveria ser telecinético. Depois
disso, voltei a olhar para a "mulher", que agora estava de frente. Os cílios e a boca estavam costurados,
e onde deveriam existir narinas havia apenas dois buracos. Um desenho simétrico semelhante à um
olho estampava a fronte da mulher, completando a hedionda face ossuda. Olhando para ela, mentalizei:
- Por favor, pare com isso!Ele não me fez nada de tão grandioso! Além do mais, eu nunca o odiei!
- A Lei é uma só, e o débito triplicado. E no meu domínio, as dívidas são pagas com sangue -
respondeu o ser na minha mente.
- E o que eu estou fazendo aqui? Por que devo ver tudo isso?!
- Viestes por poder vir e por querer vir, e por aqui ser teu lugar.
- M... meu lugar? Como assim?!
- Este é um plano da Criação destinado à expiação de todos os seres conscientes do Universo.
Precisamos do teu conhecimento e do teu sofrimento; acumulados em vida. Depois disso estarás apto a
vir pra cá, e cumprir com o teu papel na Existência.
Enquanto as palavras de Sadomante chegavam à minha mente, ela calmamente enfiava uma longa
agulha na boca de Billy. Assim que a frase findou, ela acabou por enfiar topda a agulha, empurrando a
base desta com o auxílio do polegar. A ponta ficou visível no topo do crânio dele.
- Mas... qual papel?
- O de reinar sobre todas as castas pertencentes aos Domínios Inferiores, que por hora respondem a
Mamom - respondeu ela.
Comecei a entrar em pânico.
- Não! Isso não é justo! Não é o meu desejo vir pra cá!
Ela parou por um momento, depois continuou:
Como mortal chegaste por um caminho; e como Ente chegarás por outro. Por hora não desejas vir.
Momentos são momentos.
Logo depois ela parou tudo o que estava fazendo no corpo de Billy, tornou a virar de frente para
mim e suas palavras ecoaram novamente na minha cabeça:
- Além do mais... não depende da tua vontade - disse ela, apontando para o chão em frente aos
meus pés.
Olhei pra baixo. O chão espelhado refletia a minha imagem, mas era uma imagem que nunca foi
minha. As órbitas totalmente negras, os cabelos longos e pretos como a noite, tatuagens cabalísticas
cobriam todo meu corpo como um mosaico, das minhas costas surgiam asas coriáceas e negras, e dos
meus artelhos se projetavam garras pontudas.
Dei, com certeza, um dos gritos mais insanos da minha vida, mesmo que não pudesse ouví-lo.
Quando dei por mim, estava gritando exasperado na cama. Olhei em volta, e percebi, para o meu alívio,
que estava em meu quarto, mais suado que um porco gordo. Respirava ofegante, voltando a mim. O
relógio marcava 03:46, e me impressionei em como o tempo demorou pra passar no meu pesadelo.
Pude enfim fumar um cigarro, buscando esquecer aquilo. Não quis nem repetir a cena de pegar o
isqueiro: acendi o cigarro com os fósforos que estavam ao lado do maço.
Olhei pra TV: a mulher co0ntinuava o "exorcismo" no homem. Realmente muito pouco tempo se
passou.
Mas não conseguia esquecer o ocorrido, por mais que tentasse me distrair. Esperei o dia
amanhecer, e logo pela manhã me dei ao direito de servir-me um belo café. Enquanto comia, ouvia o
noticiário. A notícia me pegou de surpresa:
"Um trágico acidente nesta madrugada acarretou na morte de um caminhoneiro, na região oeste
do estado. O caminhão vinha no sentido norte-sul, quando entrou na contramão e chocou-se contra um
ônibus. A única vítima fatal foi o próprio caminhoneiro, que foi projetado para fora do veículo através
do pára-brisa. O caminhoneiro era Abelino Friedrich, também conhecido como Billy em sua cidade-
natal. O acidente ocorreu por volta das três e meia da madrugada".

Ato-reflexo, meti a mão no bolso procurando o isqueiro:


O bolso estava vazio.

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